Rascunho_194_book
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2 | | junho de 2016<br />
translato | Eduardo Ferreira<br />
A alma da tradução<br />
“Traduzi Ruskin em<br />
francês, ou Renan em<br />
inglês; perderiam a alma.<br />
A alma do escritor<br />
é feita em grande parte de sua<br />
língua. De uma raça a outra, duas<br />
palavras imateriais não podem ter<br />
o mesmo valor, nem o mesmo peso.”<br />
Palavras de Joaquim Nabuco,<br />
citadas por Wilson Martins em<br />
sua monumental História da inteligência<br />
brasileira.<br />
Verdadeira defesa da intraduzibilidade<br />
da essência do autor<br />
e, por consequência, de seu<br />
texto (pelo menos em sua condição<br />
de texto autoral). Até onde<br />
chegaria essa verdade?<br />
Paulo Leminski, em seus<br />
Anseios crípticos, escreveu algo<br />
ligeiramente similar: “...nossa<br />
língua materna é a substância<br />
de que é feita nossa alma”. O<br />
poeta não parece apontar, com<br />
isso, para a intraduzibilidade do<br />
autor ou do texto autoral. Mas<br />
salienta fortemente a importância<br />
da língua materna como<br />
elemento de formação e individualidade<br />
de qualquer pessoa —<br />
um escritor, por exemplo.<br />
Nabuco ressalta a singularidade<br />
de cada língua — usando como<br />
exemplo dois escritores de sua<br />
predileção. Destaca também que,<br />
“de uma raça a outra”, ou de uma<br />
língua a outra, duas palavras “imateriais”<br />
não terão nem o mesmo valor<br />
nem o mesmo peso. Não terão<br />
significados plenamente equivalentes,<br />
em todos os sentidos. Perderão<br />
algo nessa arriscada travessia.<br />
Sobressai aqui a imaterialidade<br />
da palavra. Não se trata<br />
da tinta no papel, nem do jogo<br />
de luzes e contrastes na tela, mas<br />
daquilo que deve evocar cada<br />
um desses conjuntos de sinais.<br />
O peso e o valor que deve evocar<br />
toda palavra.<br />
Nenhuma reputação<br />
se sustenta diante<br />
do narrador de<br />
Marcelo Mirisola.<br />
Em Animais em extinção, romance<br />
de 2008 do escritor paulista,<br />
o pessoal do hip-hop, os<br />
tipos mundanos da Praça Roosevelt<br />
e até um escritor ilustre como<br />
Jorge Luis Borges são cutucados,<br />
desautorizados. Como definir o<br />
narrador de Animais em extinção?<br />
Canalha, mesquinho, preconceituoso<br />
(profundamente!),<br />
Ruskin e Renan, para Nabuco, perderiam<br />
a alma se traduzidos do inglês e do<br />
francês, respectivamente, para qualquer<br />
outro idioma.<br />
Muita coisa se perde numa tradução,<br />
não há dúvida. Talvez seja a alma apenas mais<br />
uma dessas coisas. Alma que poderia significar<br />
“identidade literária” ou “estilo”. O estilo<br />
próprio do autor e, mais que isso, o estilo do<br />
autor expresso em sua língua materna.<br />
Jean-Pierre Brisset, citado por Michel<br />
Foucault na mesma obra de Martins, dizia<br />
que seu livro La Science de Dieu “não pode<br />
ser inteiramente traduzido”. Foucault infere<br />
que ele (o livro, ou quem sabe o próprio<br />
Brisset) “permanece imóvel, com e na língua<br />
francesa, como se ela fosse de si mesma<br />
a sua própria origem”. Novamente a intraduzibilidade<br />
— nesse caso com uma pitada<br />
de autoexaltação por parte de Brisset.<br />
A obra de Brisset pareceria inamovível<br />
de seu ambiente francês. Ambiente<br />
que teria a característica toda especial da<br />
originalidade — uma língua que não deve<br />
nada a nenhuma outra. Que não tem tributários<br />
que para ela concorreram, embora<br />
possa ter descendência. A língua original,<br />
a mais próxima do próprio Verbo, que serviu<br />
de elemento de expressão de um tema<br />
nada menor: a ciência de Deus. Foucault,<br />
novamente citado por Martins, diria que a<br />
pesquisa sobre a origem das línguas, com<br />
Brisset e outros, começava a “derivar pouco<br />
a pouco para o lado do delírio”.<br />
Mas Brisset, aparentemente, não queria<br />
individualizar o francês. Se assim não<br />
fosse, não teria afirmado, conforme Wilson<br />
Martins, que “a origem de cada língua está<br />
nela mesma”. Não apenas o francês, mas<br />
qualquer outra língua dispensaria tributários<br />
— o que, do ponto de vista atual, não<br />
deixa de parecer um completo disparate.<br />
Sejam quais forem as origens das línguas,<br />
contudo, parece claro o conceito de<br />
impossibilidade de uma tradução completa,<br />
ou que transplante também a “alma”,<br />
tanto em Brisset como em Nabuco. Difícil<br />
pensar em algo mais perto da verdade,<br />
desde que se tenha alguma fé na alma do<br />
texto autoral.<br />
rodapé | Rinaldo de Fernandes<br />
Anotações sobre<br />
romances (34)<br />
desabusado, desmedido, atirado,<br />
insensato, incorreto politicamente...<br />
São muitos os termos.<br />
A linguagem intempestiva dele<br />
chama bastante a atenção, sendo<br />
o palavrão uma de suas marcas<br />
— mas também o termo<br />
erudito, a apreciação teórica ou<br />
conceitual (ao modo dele!). Um<br />
erotismo bizarro também é marca<br />
da narrativa, em que o escatológico<br />
brutaliza e fere o “bom<br />
gosto” literário. O talentoso cronista<br />
de costumes aparece em<br />
vários capítulos e andamentos do livro<br />
— e aí são vários os tipos e elementos<br />
da cultura contemporânea<br />
que são ironizados (e até barbarizados).<br />
Mas ainda me pergunto sobre<br />
quem é esse narrador? Que tipo ele<br />
quer significar em nossa sociedade?<br />
Aparentemente, o urbano, de classe<br />
média sem perspectiva, buscando<br />
sentido na violência (trata-se de um<br />
narrador muito violento!).<br />
>> CONTINUA NA<br />
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