24.12.2018 Views

Atos I Quando passam os índios (Adaptação teatral)_Paulo Vitor Grossi (2018)

“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS” PEÇA EM QUATRO ATOS Adaptação teatral de Paulo Vitor Grossi com base em poemas ameríndios

“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS” PEÇA EM QUATRO ATOS
Adaptação teatral de Paulo Vitor Grossi com base em poemas ameríndios

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS” PEÇA EM QUATRO ATOS<br />

<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong> de <strong>Paulo</strong> <strong>Vitor</strong> Gr<strong>os</strong>si com base em poemas ameríndi<strong>os</strong><br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS”<br />

PERSONAGENS<br />

A Índia, o Cacique, o Homem, um Menino, o Granjeiro<br />

e demais índi<strong>os</strong> da caravana.<br />

ÉPOCA<br />

Primeira parte do século XXI<br />

LUGAR<br />

Um calmo palco e seu fundo preto.<br />

Projeções permeiam o discurso<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


ATO UM<br />

[Ao abrir o pano, uma bela ÍNDIA está de pé no palco. Tem por volta d<strong>os</strong> vinte an<strong>os</strong> e<br />

veste roupas modernas. Seu incrível tom de voz preenche o cenário.]<br />

ÍNDIA<br />

(enfática)<br />

Por enquanto não precisa som algum! É a oportunidade de entenderm<strong>os</strong><br />

o porquê de estarm<strong>os</strong> aqui (...)<br />

[Algumas lufadas de vento são ouvidas e o palco é preenchido pela projeção de uma mão<br />

mexendo uma câmera. A<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> a câmera vai se ajustando como se estivesse sendo<br />

ligada e lentamente focaliza uma paisagem desértica.]<br />

ÍNDIA<br />

(cheia de energia)<br />

(...) em uma paisagem árida com seu desenho que agora é n<strong>os</strong>sa realidade.<br />

[A projeção se mantém em um ponto fixo, é um deserto debaixo de um sol forte. A seguir,<br />

a compenetrada voz da índia comenta enquanto um música tribal é tocada.]<br />

ÍNDIA<br />

(mais lenta)<br />

O Estado moderno é resultado de várias conquistas que resultaram na<br />

submissão d<strong>os</strong> mais frac<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> mais fortes, na dizimação de culturas e<br />

extinção de muit<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>.<br />

[Após a última palavra, ouvim<strong>os</strong> um som provocado por algo similar a uma estática; o áudio<br />

do teatro fica um tanto embolado, entre ruíd<strong>os</strong> e pic<strong>os</strong> agud<strong>os</strong>. A índia fica um tanto<br />

abalada, chega inclusive a abaixar o corpo, mas em seguida se repõe.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


ÍNDIA<br />

(indecisa)<br />

Seria a sintonia? Mesmo confus<strong>os</strong> ou surpres<strong>os</strong>, continuam<strong>os</strong> escutando.<br />

Tem<strong>os</strong> que ser fortes.<br />

[Mais sons de estáticas e ruíd<strong>os</strong> elétric<strong>os</strong> e então o cenário é tomado pela projeção de outra<br />

paisagem árida, um caminho de terra.]<br />

ÍNDIA<br />

(concentrada)<br />

Assim também aconteceu com a América descoberta por Cristóvão<br />

Colombo. Os grandes navegantes encontraram às c<strong>os</strong>tas do vasto oceano o<br />

que chamaram de Atlântico, imensas paragens transbordantes de leite e<br />

mel, de ri<strong>os</strong> límpid<strong>os</strong> e solo fértil. O novo continente urdia por ser<br />

explorado. Mas pov<strong>os</strong> pagã<strong>os</strong> que nessas terras habitavam eram provid<strong>os</strong><br />

de uma cultura paralela, de deuses própri<strong>os</strong> e fil<strong>os</strong>ofia voltada para a<br />

Natureza, esses pov<strong>os</strong> contrapunham a<strong>os</strong> desígni<strong>os</strong> d<strong>os</strong> conquistadores<br />

europeus em tudo. Considerad<strong>os</strong> ilidim<strong>os</strong> na sua fé, a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

american<strong>os</strong> verdadeir<strong>os</strong>, chamad<strong>os</strong> de ‘índi<strong>os</strong>’ pel<strong>os</strong> europeus, e que<br />

habitavam a América do Alasca à Terra do Fogo, foram conquistad<strong>os</strong>,<br />

catequizad<strong>os</strong>, aprisionad<strong>os</strong>, mort<strong>os</strong> e praticamente extint<strong>os</strong>, dando<br />

passagem para fronteiras invisíveis de nações concretas, hummm.”<br />

[Tum! Uma forte pisada da índia no chão corta o clima de passividade que suas palavras<br />

evocavam. Ela fica ali parada respirando fundo enquanto o pano desce.]<br />

FIM DO ATO UM<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


ATO DOIS<br />

[O pano abre ao som de uma música compassada e muitas pessoas entram no palco, uma<br />

a uma carregando seus pertences. É uma caravana. Eles se arrastam atravessando o palco<br />

de fora a fora. São índi<strong>os</strong>, mas não há bravura, apenas semblantes de cansaço. Crianças<br />

acompanham <strong>os</strong> pass<strong>os</strong> de seus pais e cantarolam a música enquanto projeções do caminho<br />

de terra batida abrangem a visão do grupo coeso. O caminho é visto de vári<strong>os</strong> ângul<strong>os</strong>. Já<br />

a canção que chega a<strong>os</strong> ouvid<strong>os</strong> é a seguinte: “E eu te disse que a caravana quando passa<br />

por terra ganha razão”. Não é tampouco alegre ou monótona, mas beira um coro de guerra,<br />

tende a ser como a vibração de uma oração conjunta.]<br />

[Terminada a melodia da música de fundo, entram duas pessoas descalças. Dois homens<br />

adult<strong>os</strong>, um deles é o CACIQUE, o orador daquele grupo em caravana. É um ancião. O<br />

outro é o HOMEM, sucessor e futuro pajé.]<br />

CACIQUE<br />

(fatigado)<br />

(para o Homem)<br />

A Terra então diminui sua rotação! É como uma película velha se<br />

esticando e retorcendo enquanto ressoam <strong>os</strong> sons finais de n<strong>os</strong>sa melodia.<br />

Agora tem<strong>os</strong> o horizonte. E calor! É debaixo do forte sol a pino que se<br />

aproxima a caravana comp<strong>os</strong>ta hoje por três “etnias” vistas como<br />

‘indígenas’ – melhor não se envolver em discussões contra ou a favor de<br />

tais designações miscigenarias! Contemplem a diversidade, meus amig<strong>os</strong>.<br />

Logo vocês guiarão uns a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> (...)<br />

HOMEM<br />

(para o Cacique)<br />

Eu vou ajudá-l<strong>os</strong>, estou atento.<br />

[Sai o Homem na direção d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> da caravana. O Cacique fica sozinho no palco.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


CACIQUE<br />

(olhando a plateia)<br />

Eu sei que vai.<br />

[A narração do Cacique é lenta, seu olhar vai para todas as direções, ele é o mais velho do<br />

grupo. Tem não só a idade avançada, mas também uma fala que se desenrola a partir de<br />

um longo suspiro. Um suspiro e ele fala! Usa um tom de desabafo para uma sentença<br />

seguida da outra.]<br />

CACIQUE<br />

(compenetrado)<br />

Fico sendo n<strong>os</strong>so orador por mais esse momento, venho com essas<br />

palavras, alguém tem que dizer; meu r<strong>os</strong>to marcado é de todo jeito<br />

amigável. Vim<strong>os</strong> o cenário paralisante de n<strong>os</strong>sa gente pouco a pouco<br />

passando mais perto da comentada área da ‘civilização’; essa é a minha<br />

fonte energética. Uma energia acima da idade. Alguma respiração a mais<br />

para falar de n<strong>os</strong>so povo. Tem<strong>os</strong> tanto lirismo, muitas sociedades também,<br />

mas hoje vam<strong>os</strong> contá-las. São antiquíssimas poesias das travessias<br />

indígenas, sempre relembradas através das gerações. Isso não é apenas um<br />

novo alerta, não é um choramingo, aqui assistim<strong>os</strong> uma cerimônia. Eu<br />

estendo meus braç<strong>os</strong>, eu aconchego essa gente e a elas m<strong>os</strong>tro meu<br />

respeito. N<strong>os</strong>sa gente... Humana!<br />

CACIQUE (cont.)<br />

(carid<strong>os</strong>o, estendendo <strong>os</strong> braç<strong>os</strong>)<br />

No local onde a água se divide, nós n<strong>os</strong> pusem<strong>os</strong> em movimento,<br />

chegam<strong>os</strong> desse campo de batalha... n<strong>os</strong> dispersam<strong>os</strong>. Sou um antigo,<br />

rogo não haver mais muito o que salvar para mim, pensem então nas<br />

próximas vidas. Prestem atenção, é o mínimo que podem<strong>os</strong> fazer; algumas<br />

pessoas se refugiaram nas margens; então essas águas estão repletas de<br />

homens, replet<strong>os</strong> de homens estão <strong>os</strong> caminh<strong>os</strong>.<br />

(pausa) Som<strong>os</strong> fugitiv<strong>os</strong>? Em n<strong>os</strong>so próprio planeta? Aqui fugim<strong>os</strong>, e<br />

assim muit<strong>os</strong> se acabaram. Nas saídas das cidades <strong>os</strong> conquistadores<br />

vasculhavam e inspecionavam tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> farrap<strong>os</strong>, foi assim que o<br />

povo se dispersou, quando não se escondendo n<strong>os</strong> recant<strong>os</strong>, a<strong>os</strong> soluç<strong>os</strong>.<br />

<strong>Quando</strong> irem<strong>os</strong> n<strong>os</strong> reunir de novo lá onde a água se divide? <strong>Quando</strong><br />

estarem<strong>os</strong> sem escud<strong>os</strong> e não mais sofrendo pelo que comer?<br />

(tom) Tudo isso contemplam<strong>os</strong> com n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> olh<strong>os</strong>, tudo isso querendo n<strong>os</strong><br />

sobrecarregar!<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


[Algumas pessoas chegam com punhad<strong>os</strong> de madeira, ganh<strong>os</strong> sec<strong>os</strong>, capim e outr<strong>os</strong><br />

materiais, incluindo rest<strong>os</strong> inflamáveis de utensíli<strong>os</strong> modern<strong>os</strong>. Entregam nas mã<strong>os</strong> do<br />

Cacique e ele arruma no chão do teatro. Vem alguém com uma tocha cenográfica nas mã<strong>os</strong><br />

e atira no local que o ancião indica. Uma fogueira rapidamente se faz projetada por cima<br />

deles, a chama se propaga de forma espant<strong>os</strong>a. Mais pessoas jogam rest<strong>os</strong> no chão que<br />

seria a fogueira. Por cima disso o Cacique se prepara para falar, seus gest<strong>os</strong> denunciam<br />

alguma apreensão, indicando com as mã<strong>os</strong> o movimento do fogo.]<br />

CACIQUE (cont.)<br />

(solene, mã<strong>os</strong> para o alto novamente)<br />

Pai-Céu, Mãe-Terra, som<strong>os</strong> v<strong>os</strong>s<strong>os</strong> filh<strong>os</strong>, e nas c<strong>os</strong>tas cansadas trazem<strong>os</strong><br />

as dádivas. Por favor, ouçam n<strong>os</strong>sas súplicas! Venho recontando a canção<br />

do tear d<strong>os</strong> Tewas, mas bem que estas letras poderiam ser Astecas, Maias,<br />

Quíchuas, Guaranis, Tupis.<br />

Para nós mesm<strong>os</strong> trazem<strong>os</strong> as vestes esplendor<strong>os</strong>as. Que seja a urdidura a<br />

luz branca da aurora, que a trama seja a luz vermelha da tarde, que sejam<br />

as franjas a chuva que tomba, que a orla seja o arco-íris que se levanta.<br />

(tom) Para nós mesm<strong>os</strong> tecem<strong>os</strong> as vestes esplendor<strong>os</strong>as. Para poder<br />

caminhar por onde cantam <strong>os</strong> pássar<strong>os</strong>, para poder caminhar por onde é<br />

verde a erva, Pai-Céu, Mãe-Terra.<br />

[O calor se propaga na projeção. O ancião caminha ao redor da fogueira imaginária, ele<br />

olha para cada um daqueles seres de pé ao seu redor. As pessoas estão concentradas,<br />

muitas olhando para o alto. Nesse momento, novas projeções são exibidas com mais<br />

pessoas, elas estão suando e têm seus corp<strong>os</strong> em alerta. A fogueira trepida cada vez mais e<br />

por fim uma enorme fumaça sobe o mais alto p<strong>os</strong>sível. Diante disso, o Cacique volta a<br />

falar.]<br />

CACIQUE<br />

(rodeando a fogueira)<br />

Há suor, é como se de seus por<strong>os</strong> estivesse sendo expelido an<strong>os</strong> de<br />

impurezas e tratament<strong>os</strong> h<strong>os</strong>tis.<br />

CACIQUE (cont.)<br />

(sorridente)<br />

A Terra inteira é uma só alma, som<strong>os</strong> parte dela.<br />

(pausa) Mudar, sim, mudarão as n<strong>os</strong>sas cascas, mas não morrerão nunca<br />

as n<strong>os</strong>sas almas. Som<strong>os</strong> uma alma única como única é a Terra.<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


[A<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> uma música é ouvida enquanto uma sequência de imagens do C<strong>os</strong>mo é<br />

exibida.]<br />

CACIQUE (cont.)<br />

(gesticulando)<br />

Cobre a Terra, minha Mãe, quatro vezes de flores inumeráveis. Que <strong>os</strong><br />

céus se cubram de nuvens acumuladas. Que a Terra se cubra de névoa;<br />

cobre a Terra de chuvas. Grandes águas, chuvas, cubram a Terra.<br />

Relâmpago, cobre a Terra. Que se ouça o trovão por cima de toda a<br />

Terra; que se ouça o trovão. Que se ouça o trovão por cima das seis<br />

regiões da Terra.<br />

[O Cacique termina de falar e abaixa a cabeça em reverência. A música termina. Tod<strong>os</strong><br />

saem do palco e o pano se fecha.]<br />

FIM DO ATO DOIS<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


ATO TRÊS<br />

[Abre o pano e novamente a caravana está ali, dessa vez fixada em cabanas e tendas<br />

projetadas pelo telão, ainda que muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> estejam realmente sentad<strong>os</strong> no palco.<br />

Seu descanso pelo telão é um local de sombra, parece ser um vale. À frente alguns<br />

conversam, o som é rico neste cenário. Um HOMEM está falando para o Cacique e um<br />

MENINO, é como uma confissão entre eles.]<br />

HOMEM<br />

(cansado)<br />

Cada parcela deste solo é sagrada, no modo de ver do povo. Meu povo é<br />

este mundo! Cada enc<strong>os</strong>ta, cada vale, cada planície e b<strong>os</strong>que foi<br />

santificado através de algum acontecimento triste ou alegre em dias há<br />

muito desaparecid<strong>os</strong>. O pajé sabe, eu disse para <strong>os</strong> branc<strong>os</strong>, minha<br />

consciência não mente. Falei para muit<strong>os</strong> que a própria poeira sobre a<br />

qual eles agora se erguem responde mais amor<strong>os</strong>amente a<strong>os</strong> seus pass<strong>os</strong><br />

do que a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, porque foi enriquecida com o sangue d<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong><br />

antepassad<strong>os</strong> e <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> pés nus estão conscientes da empatia do contato.<br />

Até as criancinhas que aqui viveram e se divertiram durante uma breve<br />

estação irão amar estas solidões sombrias e, ao cair da noite, saudarão <strong>os</strong><br />

assombrad<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> que regressam.<br />

(tom) E quando o último Pele-Vermelha tiver perecido e a memória das<br />

trib<strong>os</strong> se tiver tornado um mito entre o homem branco, <strong>os</strong> mort<strong>os</strong><br />

invisíveis das trib<strong>os</strong> irão pulular por suas praias; e quando <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> d<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> se julgarem sós no campo, no armazém, na loja, na estrada<br />

ou no silêncio das florestas sem caminh<strong>os</strong>, não estarão sós. Pela noite,<br />

quando as ruas das vilas e das cidades brancas estão silenci<strong>os</strong>as e <strong>os</strong><br />

homens as supõem desertas, estarão apinhadas com as h<strong>os</strong>tes que<br />

regressam e que outrora encheram e ainda amam esta bela terra.<br />

[Acabada a narração do Homem, o Cacique se cala enquanto contempla sua gente<br />

seguindo, indo ou vindo; muit<strong>os</strong> <strong>passam</strong> ao seu redor. O Cacique olha e olha <strong>os</strong> índi<strong>os</strong>,<br />

então ele por fim se detém em um ponto longínquo, na direção da plateia. Bem ao lado, o<br />

Homem que falava também olha para o que o Cacique vê. O menino chega mais perto e<br />

questiona.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


MENINO<br />

(curi<strong>os</strong>o)<br />

Velho, por que dizem isso do n<strong>os</strong>so povo? Chamam n<strong>os</strong>sa gente de índi<strong>os</strong><br />

bêbad<strong>os</strong>... da Amazônia?<br />

[O Cacique então responde para o menino e para o Homem ali ao lado. Não é nem sério<br />

nem triste, é realista.]<br />

CACIQUE<br />

(maneando o r<strong>os</strong>to)<br />

Eles não entendem; nunca entenderam e tampouco querem tentar.<br />

Representam<strong>os</strong> o passado; e isso quer dizer que devem<strong>os</strong> ser sepultad<strong>os</strong>.<br />

Somente n<strong>os</strong>sas terras e o interessante do que podem furtar da maneira<br />

que lidam<strong>os</strong> com as curas e medicament<strong>os</strong> pode se salvar disso.<br />

(tom) “É uma corrida’, eles dizem. No fundo já entenderam que o tempo<br />

passa para as sociedades deles também, e seu tempo se estreita... a ponto<br />

de ruir e voltar ao estágio zero; para eles quer dizer estágio primitivo. Mas<br />

tudo acaba mesmo, não quer dizer que devem<strong>os</strong> acabar uns com <strong>os</strong><br />

outr<strong>os</strong>. O mundo é um aprendizado temporário; as eras são suplantadas<br />

umas pelas outras, e as extinções são um fato comprovado. Os human<strong>os</strong><br />

então retornam ao natural e forç<strong>os</strong>amente se deparam e convivem com a<br />

Mãe Natureza. Lendas relatam, em term<strong>os</strong> quase idêntic<strong>os</strong> e utilizando as<br />

mesmas imagens, o grande naufrágio, a queda da estrela, o<br />

desaparecimento de muitas nações, outrora p<strong>os</strong>santes e soberanas, isso<br />

tudo indo para o fundo das águas. Assim aprendem<strong>os</strong> a lição da tribo d<strong>os</strong><br />

branc<strong>os</strong>, entre sangue, lágrimas, entre memórias!<br />

HOMEM<br />

(esperanç<strong>os</strong>o)<br />

Que pena, Velho, vam<strong>os</strong> rezar por suas almas, pedir ao Pai Celestial que<br />

tenha piedade d<strong>os</strong> err<strong>os</strong> d<strong>os</strong> socializad<strong>os</strong>.<br />

[O menino olha para o Homem com admiração também. Tod<strong>os</strong> ali se conhecem, tod<strong>os</strong><br />

são pais e filh<strong>os</strong>.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


Sim, isso podem<strong>os</strong> rogar!<br />

CACIQUE<br />

(leve sorriso para o menino)<br />

MENINO<br />

(entusiasmado)<br />

Foi meu Pai! Ouve, meu Velho! Peço que sim, eu lembrei!!<br />

(tom) Ele me fez ver que se me ponho a cantar, se faço como a trepadeira<br />

vermelha meu canto se entrelaça; igual a flor que cheira a milho torrado,<br />

onde se ergue a Árvore; que perfume de flor de cacau, dança junto ao<br />

tambor, dança libertando o teu perfume. Ergue-se além o Sol num vaso de<br />

esmeralda coberto de Quetzal; cinge ele um colar de turquesas, e as flores<br />

caem entre todas as cores.<br />

Sim, sim, a fé!<br />

CACIQUE<br />

(sorrindo melhor)<br />

[Depois o Homem fica com a vista mais corada também, e coloca a mão no ombro do<br />

menino. Os dois olham para <strong>os</strong> lad<strong>os</strong> e veem alguns índi<strong>os</strong> passando. O Cacique fica<br />

contente com o carinho entre eles.]<br />

CACIQUE<br />

(relaxado)<br />

Vam<strong>os</strong> aproveitar e ficar mais perto d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> no centro da caravana.<br />

[Ele caminham junt<strong>os</strong>. Crianças correm por perto, mulheres falam umas com as outras;<br />

em projeções alternadas, pássar<strong>os</strong> sobrevoam por sobre as cabeças daquelas pessoas em<br />

um céu ao entardecer. Então o Cacique, o menino e o Homem se falam outra vez e <strong>os</strong><br />

outr<strong>os</strong> ouvem.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


MENINO<br />

(alegre)<br />

(se adiantando para frente)<br />

Como desejaria vaguear na noite. Contra <strong>os</strong> vent<strong>os</strong>. Vaguear na noite<br />

quando a coruja ulula. Como desejaria vaguear como antes. Como<br />

desejaria vaguear na alba contra <strong>os</strong> vent<strong>os</strong> e sem pressa nem fuga.<br />

Vaguear na alba quando a gralha grita. Como desejaria vaguear, ah, e<br />

respirar fundo.<br />

CACIQUE<br />

(para o menino)<br />

Era digno de se ver, esse mundo novamente criado. Sobre toda a largura e<br />

amplidão da Terra, a n<strong>os</strong>sa, estendia-se o reflexo verde da sua cobertura e<br />

<strong>os</strong> perfumes que ascendiam eram doces de respirar. A consciência estava<br />

ligada à Natureza, <strong>os</strong> mund<strong>os</strong> sutis eram percebid<strong>os</strong> por n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong><br />

de forma normal, tudo era simples. Ainda tivem<strong>os</strong> algo disso, mas agora a<br />

era é outra; esta é a era da desconexão, como dizem, a expiração após tão<br />

longa e bela inspiração. As pessoas é que complicaram o mundo para<br />

nada, e para nada serviu. Vivem<strong>os</strong> uma transição, e em uma transição<br />

impera o inesperado.<br />

A transição.<br />

MENINO<br />

(repete para o Cacique)<br />

HOMEM<br />

(ansi<strong>os</strong>o)<br />

(para o Cacique)<br />

Até eu estou curi<strong>os</strong>o por mais revelações. Por favor, adiante!<br />

CACIQUE<br />

(agitado)<br />

E morte inevitável! Ouçam mais, aonde irem<strong>os</strong> que não haja morte? Por<br />

isso, chora meu coração. Tenha coragem, menino, ninguém vai viver aqui!<br />

Mesmo <strong>os</strong> príncipes são levad<strong>os</strong> pela morte: assim, desolado está meu<br />

coração. Oh! Meus amig<strong>os</strong>, onde é a terra em que não se morre? Mais<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


coragem: ninguém vai viver aqui! (para a plateia) Leia, leia em meus olh<strong>os</strong>,<br />

você que deve descobrir n<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> futur<strong>os</strong>, isso se seus deuses lhe<br />

tiverem dado o poder de ler. Leia, oh filho do futuro, aprenda <strong>os</strong> segred<strong>os</strong><br />

do passado, para você é longínquo mas na verdade tão próximo.<br />

Os homens não vivem somente uma vez para em seguida desaparecerem<br />

para sempre; eles vivem várias vidas em lugares diferentes, mas sempre<br />

neste mundo. E entre cada vida, há um véu de trevas.<br />

(pausa) Vam<strong>os</strong> na transição, é uma passagem.<br />

(sussurrando) Logo chegarem<strong>os</strong> ao limite entre n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> territóri<strong>os</strong>, e pode<br />

ser que vejam<strong>os</strong> a gente branca.<br />

[O menino meio que sorri, sem graça. O Homem se movimenta, completando tardiamente<br />

o que o Cacique falara.]<br />

Ver<br />

HOMEM<br />

(para a plateia)<br />

(pausa) de novo. Só por breve tempo viverem<strong>os</strong> nesta terra; mas não será<br />

sempre assim, já que n<strong>os</strong> espera a região do mistério.<br />

[O Cacique se agita, levanta as mã<strong>os</strong> e canta de olh<strong>os</strong> fechad<strong>os</strong>. O Homem e o menino<br />

abaixam suas cabeças em respeito. Entra a projeção de um morro.]<br />

CACIQUE<br />

(tenso)<br />

Ali onde o morro se acaba; lá em cima, nem eu mesmo sei aonde, vagueei<br />

por ali, por onde a minha cabeça e o meu coração pareciam perdid<strong>os</strong>.<br />

Vagueei lá longe. Vagam<strong>os</strong> tod<strong>os</strong>! A minha casa lá longe, lá mesmo! A<br />

minha casa lá longe, agora me recordo! E quando vejo esse morro lá<br />

longe, pois bem, choro. Ai! Que p<strong>os</strong>so fazer? Que p<strong>os</strong>so fazer?<br />

(tom) Ai! Quê? A minha casa lá longe, agora me recordo. Lá existe alegria,<br />

amizade?<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


CACIQUE (cont.)<br />

(já mais calmo)<br />

Já eu que sou velho, nasci qual planta que no deserto irrompe sem seiva e<br />

sem calor: no caule que sobe, ríspido, hirto, abrolha um germe, não abre a<br />

flor. Que não vi estrela assim tão áspera: fechada nas trevas, nunca arder.<br />

E sobre o meu berço agras lágrimas: porque eu nasci só para morrer.<br />

Acabará minha estéril história que a si própria se liga por dentro: a vida, o<br />

nome, a minha memória, gravad<strong>os</strong> fundo no esquecimento. Glória ao<br />

Criador! Eu me zero por Ti!!!<br />

[Começa uma música suave. Novamente a movimentação das pessoas que compõem a<br />

caravana domina o palco, alguns estão comendo, outr<strong>os</strong> cuidando de animais, outr<strong>os</strong><br />

confeccionando utensíli<strong>os</strong>. Uma extensa série de gest<strong>os</strong> e emoções são representadas pel<strong>os</strong><br />

atores da caravana. A longa música toca até que se feche o pano.]<br />

FIM DO ATO TRÊS<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


ATO QUATRO<br />

[O quarto ato se inicia como que à distância, com mais profundidade, de forma<br />

compassada. Abre o pano e a projeção a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> m<strong>os</strong>tra uma rua de terra batida e uma<br />

varanda, cada vez mais nítidas; folhas são dispersas pelo vento, o clima é seco e o som<br />

ambiente calmo. Começa o chiado de um rádio e entra um homem com uma cadeira na<br />

mão, seu r<strong>os</strong>to quase não é visto atrás do chapéu. Ele senta na cadeira e se rec<strong>os</strong>ta o<br />

máximo que pode. Seguramente é um homem comum, alguém de ‘beira de estrada’, um<br />

GRANJEIRO acomodado como se estivesse na varanda de sua modesta casa. Ele se mexe.<br />

A fisionomia bem morena contrasta com feições europeias, como o nariz e a cor clara d<strong>os</strong><br />

olh<strong>os</strong>; seguramente nascera de uma união de pais indígenas e branc<strong>os</strong>. Sentado, o granjeiro<br />

busca estações, sintoniza uma delas para melhor entender a narração feminina que vem<br />

pelas ondas radiofônicas. O aparelho está longe e ele se levanta e regula até definir aquela<br />

estação. A voz que se faz ouvir é pausada, algo monótona e distante, quase um lamento. A<br />

voz é da Índia. Entra ela esquerda e se dirige ao centro palco para narrar, agora<br />

caracterizada como repórter.]<br />

ÍNDIA<br />

(...) e agora falam<strong>os</strong> novamente da aculturação, da perda de identidade, da<br />

utilização de um produto comercial e turístico de n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> bens naturais;<br />

podem<strong>os</strong> comentar sobre monetarism<strong>os</strong>, futilidades. N<strong>os</strong>so país fornece<br />

uma estranha gama de explicações étnicas que se intercalam ao meio<br />

ambiente. Uma prova disso é a superação d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong>.<br />

Atualmente, a moda das passarelas até tenta reproduzir sua pintura<br />

corporal; nas músicas populares imitam seus tambores e até mesmo a<br />

linguagem d<strong>os</strong> seus corp<strong>os</strong>; imitam sua expressão de vivacidade, cores,<br />

natureza das danças e manifestações artísticas. Tudo isso é um desafio<br />

para a compreensão moderna se notarm<strong>os</strong> a situação real dessa gente!<br />

(pausa) Será mesmo que a população indígena não passa de mero<br />

zoológico a céu aberto perante a sociedade imbecil e consumista? Que<br />

estão tod<strong>os</strong> bêbad<strong>os</strong>, vagabundeando estigmatizad<strong>os</strong>? Ou que são<br />

dizimad<strong>os</strong>, roubad<strong>os</strong> em suas p<strong>os</strong>ses cada vez mais? Como se dará a<br />

transmissão de valores em um contexto de apenas sobrevivência?<br />

Generalizando<br />

(pausa) toda uma cultura<br />

(tom) incalculável, brutalizada pelo riso e desleixo cultural. Dessa forma.<br />

Olha, qual o teu passado? Esquece não. Você veio da cultura antiga, é a<br />

evolução natural d<strong>os</strong> teus antepassad<strong>os</strong>! Que triste saber que fazem isso<br />

com a população indígena, esta por demais pega na tal da ‘defasagem de<br />

raciocínio e compreensão’, relegada às tais comunidades aut<strong>os</strong>sustentáveis<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


toleradas apenas com fins lucrativ<strong>os</strong>, eleitorais ou humanitári<strong>os</strong> para<br />

p<strong>os</strong>tagens em redes sociais. O ritual está esvaziando<br />

(pausa) as flautas vendidas para comprar aliment<strong>os</strong> às crianças (...)<br />

[O granjeiro vira um pouco o r<strong>os</strong>to ao se rec<strong>os</strong>tar mais na cadeira, e em nenhum momento<br />

repara na Índia narrando à sua frente. Ele então estica um pouco <strong>os</strong> pés se espreguiçando.<br />

Após isso, uma projeção m<strong>os</strong>tra <strong>os</strong> camp<strong>os</strong> à sua frente, detrás da rua de terra batida. A<br />

Índia volta à sua narração enquanto outra projeção apresenta uma plantação de cana<br />

balançando ao vento.]<br />

ÍNDIA<br />

(mais nítida)<br />

‘Os c<strong>os</strong>tumes vão se dissolvendo’, dizem, ‘perdendo seus significad<strong>os</strong> e<br />

us<strong>os</strong> tradicionais’, mas muita gente ainda precisa d<strong>os</strong> remedinh<strong>os</strong> e plantas<br />

das florestas que a burguesia renomeou, sim, esses fitoterápic<strong>os</strong> ou essas<br />

receitas de manipulação! As grandes corporações sugam o conhecimento<br />

indígena enquanto há tempo, enquanto existe uma mistura ou outra para<br />

patentear!! Tal é o ‘capitalismo’ e a mania de<br />

(pausa) souvenires! Tamanha analgesia da mente.<br />

Este país imediatista virou as c<strong>os</strong>tas para o lado do pulmão do mundo,<br />

suas belas matas foram devastadas, todo um passado sepultado; que será<br />

das próximas gerações? Não conhecerão suas raízes além do que está n<strong>os</strong><br />

livr<strong>os</strong>? Serão mer<strong>os</strong> manuais reorganizad<strong>os</strong> cada vez mais para atender às<br />

necessidades econômico-sociais de bloc<strong>os</strong> mundiais, e para você...<br />

mediante rápidas conclusões. Não terem<strong>os</strong> mais anciões contadores de<br />

histórias, só gente caquética atrás de pílulas!<br />

(pausa) A destruição de antigas culturas não é um problema atual, vem<br />

sendo um processo sem dó nem piedade; parece até que há um medo<br />

desse relembrar das próprias origens. Fica também a impressão de que a<br />

onda continua sendo a de ‘apartamentar’ o Ser Humano, fazer com que<br />

decaia nessa visão horrível sob a égide de cidades abarrotadas. Vistas do<br />

alto, são semelhantes a formigueir<strong>os</strong>.<br />

(tom) E vocês pertencem às formigas!! Essa imagem já está batida.<br />

Formigas trabalhadoras da ‘rainha’ do pedaço… Quem é tua<br />

(tom) rainha? Anda difícil descobrir ou está à espera das férias após aquele<br />

ano sofrido?? Sua cabeça pende, cai a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>.<br />

(pausa) Mas contra <strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> maus há aqui e ali <strong>os</strong> cântic<strong>os</strong>, vestuári<strong>os</strong>,<br />

utensíli<strong>os</strong>, arte plumária<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


(pausa) a realidade que fora idealizada n<strong>os</strong> megatotens, pensada para<br />

gerações após gerações, ela reside no sangue de cada um de nós. Você<br />

sabe o que é patrimônio? O que disseminar? Não como o disseminar de<br />

educação e amor pelo próximo?<br />

(pausa) Não é igual ao concreto que esfarela com <strong>os</strong> an<strong>os</strong>.<br />

Mesmo sendo a população indígena efêmera, transitória, grupal; mesmo<br />

sendo vist<strong>os</strong> como nômades ou seminômades, tudo ali está correlacionado<br />

harmonicamente... porque vivem do planeta!<br />

Até o sentido artístico<br />

(tom) que não é o mesmo entre <strong>os</strong> divers<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> indígenas<br />

(gracejo) nem sempre quer dizer o mesmo que para nós, urbanizad<strong>os</strong><br />

chei<strong>os</strong> de padrões que sobrepõem padrões; o normal seria achar ‘belo’<br />

aquilo que em sua utilidade atinja o ápice. E, ainda assim, variando de<br />

tribo para tribo! São artes indígenas, não há uma só definição, há uma<br />

gama.<br />

Elegância, majestade; o meio, sua valorização, seu lugar e funções<br />

específicas. No meio natural, por exemplo, e de maneira muito singular, o<br />

indígena desconhece esse conceito de<br />

(riso) inveja; quem criou esse defeito!?<br />

O futuro dará sua sentença; a Terra julga o que dela nasce.<br />

(pausa) Um bom argumento sempre salva do sufoco do inesperado.<br />

Quem puder acreditar em si, aprender com o passado, continue a falar<br />

sem interrupção. Seguramente uma arte!<br />

(pausa) Muito bem, agora vam<strong>os</strong> para n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> comerciais e (...)<br />

[Tum! A Índia joga o microfone no chão e sorri. Atrás dela, o granjeiro estica a mão<br />

fazendo movimento para desligar o rádio, quase ao mesmo tempo. A seguir, o granjeiro<br />

comenta em voz alta com seu sotaque acentuado. Ele fala e sorri também.]<br />

GRANJEIRO<br />

(divertido)<br />

(para a plateia)<br />

Eu é que não vou assistir desmoronando, não demora a chegar por aqui.<br />

[O granjeiro suspira, continua olhando para o horizonte. Uma leve brisa é projetada na<br />

varanda imaginária em que ele está.]<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


GRANJEIRO (cont.)<br />

(calmo)<br />

O sol forte da estrada enfim atrai algo.<br />

[Ele aperta <strong>os</strong> olh<strong>os</strong>, sorri mais abertamente e se espreguiça em sua cadeira. Então a<strong>os</strong><br />

pouc<strong>os</strong> o granjeiro começa a discernir algumas pessoas caminhando em sua direção, vind<strong>os</strong><br />

das duas direções para o centro do palco, são <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> da caravana. Eles <strong>passam</strong> bem na<br />

frente do granjeiro.]<br />

GRANJEIRO<br />

(relaxado)<br />

A caravana que se aproxima, é.<br />

ÍNDIA<br />

(para a plateia)<br />

É a hora de n<strong>os</strong>sa reunião, que bom!<br />

GRANJEIRO<br />

(para a plateia)<br />

A gente um dia foi simples, tomara que isso volte. Penso alto.<br />

[Nesse ponto algo diferente ocorre, pois se somando à voz do granjeiro e da Índia, as vozes<br />

de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> atores deste drama narram em uníssono. Cada vez mais pessoas se somam à<br />

narração enquanto entram no palco. Tod<strong>os</strong> agora estão de pé.]<br />

GRANJEIRO E DEMAIS ATORES<br />

(junt<strong>os</strong>)<br />

Oh, irmão, veio a um lugar semeado de numer<strong>os</strong><strong>os</strong> perig<strong>os</strong>, muitas penas<br />

e horrores.<br />

(pausa) Veio a um<br />

(respiração profunda) lugar em que <strong>os</strong> nós e as malhas estam<strong>os</strong><br />

interligad<strong>os</strong> e superp<strong>os</strong>t<strong>os</strong>, de forma que ninguém p<strong>os</strong>sa passar sem cair.<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


(pausa) Teus pecad<strong>os</strong> são <strong>os</strong> nós e malhas, <strong>os</strong> poç<strong>os</strong> onde pode cair, mas<br />

além deles também existem animais ferozes que matam e despedaçam o<br />

corpo e a alma.<br />

(pausa) <strong>Quando</strong> você foi criado e enviado por Ele, teu Pai e Mãe, n<strong>os</strong>so<br />

Deus, te moldou como uma pedra preci<strong>os</strong>a.<br />

(pausa) Mas você se sujou por tua própria vontade.<br />

E, agora, confessa!<br />

GRANJEIRO<br />

(sozinho, sorriso amarelo)<br />

GRANJEIRO E DEMAIS ATORES<br />

(junt<strong>os</strong>)<br />

Descobrindo e manifestando tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> teus pecad<strong>os</strong> a n<strong>os</strong>so Senhor, que é<br />

o protetor e purificador de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> pecad<strong>os</strong>. Não considera isso com<br />

superficialidade, pois, na verdade, você entrou na fonte da misericórdia,<br />

que p<strong>os</strong>sui aquela água muito clara com a qual n<strong>os</strong>so Deus, protetor de<br />

tod<strong>os</strong>, lava as impurezas da alma (...)<br />

GRANJEIRO<br />

(sozinho, olhando para cima)<br />

Deus, protetor de tod<strong>os</strong>, lava as impurezas dessas almas.<br />

[Acabada a narração, tudo fica em silêncio, desde <strong>os</strong> atores até a sonorização. Eles se<br />

acomodam sentad<strong>os</strong> no fundo do palco enquanto algumas crianças entram em cena. Outra<br />

vez aparecem projeções da rua de terra batida e das plantações.<br />

Após algum tempo, vem o Cacique caminhando devagar, ele ao chegar é rodeado pelas<br />

felizes crianças. Ele fala olhando para elas.]<br />

CACIQUE<br />

(sorridente)<br />

Agora vocês nasceram de novo, aqui, de novo começam a viver e, neste<br />

mesmo momento, n<strong>os</strong>so Deus n<strong>os</strong> ilumina com um novo Sol. Vocês estão<br />

então a florir e brotar como umas outras pedras preci<strong>os</strong>as, muito puras,<br />

saindo do ventre da suas mães.<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)


[Depois dessas últimas palavras, o Cacique fica junto das crianças e uma delas entrega a ele<br />

um cajado de bambu.]<br />

CACIQUE<br />

(tranquilo)<br />

(para as crianças e plateia)<br />

Convém que façam<strong>os</strong> n<strong>os</strong>so trabalho, é a casa de Deus! Para que enfim<br />

sejam perdoadas as falhas cometidas, as palavras e injúrias pelas quais más<br />

línguas n<strong>os</strong> feriram; o homem branco, tão próximo mas também tão<br />

injusto pela sua ingratidão que já m<strong>os</strong>trou em relação às bondades de<br />

n<strong>os</strong>so Senhor, e pela inumanidade que um dia demonstrou em relação a<br />

eles mesm<strong>os</strong><br />

(suspiro) não partilhando com <strong>os</strong> pobres <strong>os</strong> bens temporais que n<strong>os</strong> foram<br />

dad<strong>os</strong>, bem, o homem branco percebe suas ofensas, está confuso. Cabe a<br />

nós dizer. Vocês terão que oferecer a<strong>os</strong> que têm fome, <strong>os</strong> que têm sede,<br />

a<strong>os</strong> que não têm para vestir, mesmo que precisem retirar de suas bocas<br />

parte do que será dado. Não esqueçam que a carne deles é como as tuas, e<br />

que eles são, tal como vocês, human<strong>os</strong>.<br />

[Termina de falar o Cacique e começa uma música. As crianças da caravana se divertem,<br />

são vári<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de sorris<strong>os</strong>; uns menin<strong>os</strong> correm e quase esbarram na figura dócil do<br />

Cacique.<br />

Um tempo depois dessa diversão, também as crianças se juntam a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> no fundo do<br />

palco, ficando apenas uma menina. Ela sorri de forma doce durante alguns minut<strong>os</strong>. Por<br />

fim, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> atores da peça se movem e pisam forte no chão do palco enquanto cantam<br />

uma melodia tribal. Depois se aquietam e aplaudem.]<br />

FIM<br />

<strong>At<strong>os</strong></strong> I <strong>Quando</strong> <strong>passam</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!