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Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>252</strong> Março de 2019<br />
Celestial paradoxo:<br />
Deus Se fez escravo!
Extraordinária<br />
força de alma<br />
Flávio Lourenço<br />
São João de Deus foi fundador<br />
de uma Ordem religiosa<br />
famosa, tornando-se um<br />
dos homens mais conhecidos de<br />
seu tempo.<br />
Sua fisionomia é toda marcada<br />
pelo olhar. Os traços são comuns,<br />
regulares, não dizem nada<br />
de especial. O bigode, muito<br />
fininho, ralinho, com certeza fazia<br />
parte dos costumes do tempo;<br />
e a barba aparada, cobrindo<br />
quase todo o rosto. Caixa ocular<br />
bem feita, com certa profundidade,<br />
mas nada de extraordinário.<br />
Nariz, sobrancelhas, testa<br />
e carnatura comuns. Entretanto,<br />
tudo sai do banal por causa<br />
desses olhos escuros e profundos.<br />
Olhar pensativo e analítico,<br />
ao mesmo tempo de um místico<br />
e teólogo, cogitando em algo muito elevado que o toma por inteiro. Uma força de alma<br />
verdadeiramente extraordinária.<br />
Quando consideramos um semblante como este, devemos compará-lo com as fisionomias<br />
que encontramos nas ruas. Quantas caras comuns existem pelas vias públicas! Mas<br />
este olhar, onde encontraremos?<br />
Compreendemos assim o trabalho da graça, colhendo um homem que provavelmente<br />
foi comum, tornando-o uma grande alma e fazendo, através dele, uma grande obra.<br />
São João de Deus - Casa dos Pisa, Granada, Espanha<br />
(Extraído de conferência de 17/1/1986)
Sumário<br />
Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>252</strong> Março de 2019<br />
Vol. XXII - Nº <strong>252</strong> Março de 2019<br />
Celestial paradoxo:<br />
Deus Se fez escravo!<br />
Na capa, Anunciação do<br />
Anjo a Nossa Senhora<br />
Museu de Bellas<br />
Artes, Dijon, França.<br />
Foto: Flávio Lourenço<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
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Impressão e acabamento:<br />
Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />
Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />
02911-000 - São Paulo - SP<br />
Tel: (11) 3932-1955<br />
Editorial<br />
4 Lição de humildade<br />
Piedade pliniana<br />
5 “Faça-se a vossa vontade!”<br />
Dona Lucilia<br />
6 Elevação de alma e bondade<br />
De Maria nunquam satis<br />
10 Encarnação do Verbo: o mistério<br />
da Contra-Revolução<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
12 Espírito metafísico e<br />
espírito sobrenatural - II<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
16 Considerações sobre o<br />
Brasil Império - I<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Março<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum............... R$ 200,00<br />
Colaborador........... R$ 300,00<br />
Propulsor.............. R$ 500,00<br />
Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />
Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Hagiografia<br />
26 São Teófanes e os peculiares<br />
esplendores da Igreja no Oriente<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
30 Símbolo da santidade,<br />
majestade e força - II<br />
Última página<br />
36 Consorte da Sede da Sabedoria e<br />
pai do Leão de Judá<br />
3
Editorial<br />
Lição de humildade<br />
A<br />
Anunciação<br />
do Anjo São Gabriel a Nossa Senhora é uma das maiores festas da Santíssima<br />
Virgem.<br />
Ela tem um significado especial, pois é a festa em que se realiza, com a Encarnação do<br />
Verbo, esse mistério insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo Se colocando numa dependência tão<br />
completa de Nossa Senhora que, como diz São Luís Maria Grignion de Montfort, Ele Se fez escravo<br />
d’Ela.<br />
Realmente, o Deus onipotente, infinito deixou-Se conter pelo ventre puríssimo de uma Virgem.<br />
Durante esse tempo, o Criador de todo o universo ficou em relação a Maria Santíssima na maior dependência<br />
que alguém possa estar em relação a uma pessoa.<br />
Se tomarmos em consideração que desde o primeiro instante de sua concepção o Verbo de Deus<br />
humanado foi inteiramente consciente, compreenderemos o que significava essa presença n’Ela: a<br />
intimidade inefável ao lado dessa dependência completa. Por outro lado, podemos imaginar também<br />
o cuidado, a veneração, a ternura sem fim da Santa Virgem das virgens conduzindo em Si este Celeste<br />
e Divino Prisioneiro.<br />
Aquele que é maior do que todo o universo foi contido no ventre puríssimo de Nossa Senhora.<br />
Que paradoxo celeste, que grandeza neste paradoxo, e que imensa lição de humildade nos dá Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo logo ao entrar nesta vida, obscuro, apagado, despretensioso, ignorado dos homens,<br />
reduzido ao menor estado em que uma criatura possa estar, mas adorado pelos Anjos que não<br />
tinham o que dizer de enlevo e de entusiasmo pelo que viam e, muito mais do que pelos Anjos, adorado<br />
por sua Mãe Santíssima, que sendo criatura humana, entretanto – outro paradoxo –, na ordem<br />
sobrenatural valia incomparavelmente mais do que todos os Anjos reunidos!<br />
Então, o que devemos fazer no dia da Anunciação? Eu acredito que esta data pode ser considerada<br />
o dia especial daqueles que se consagram a Nossa Senhora como escravos. É o dia próprio a imitarmos<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo e pedirmos à Mãe de Deus que faça conosco, na sua misericórdia,<br />
o que Ela fez com seu Divino Filho: que Ela nos abranja, nos envolva, nos prenda, nos acorrente<br />
a Ela, e faça com que tenhamos em relação a Ela a dependência perfeita e omnímoda que Nosso<br />
Senhor teve.<br />
É, portanto, o dia adequado para aqueles de nós que tenham feito a consagração a Maria como escravos,<br />
renová-la. Por esta forma nós nos entregamos à Santíssima Virgem do modo incondicional e<br />
absoluto pelo qual a Ela entregou-Se Nosso Senhor Jesus Cristo. *<br />
* Extraído de conferência de 24/3/1969<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Francisco Barros<br />
Mãe do Bom Conselho - Capela de Nossa Senhora<br />
da Boa Ajuda, Montreal, Canadá<br />
“Faça-se a vossa vontade!”<br />
ÓMãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades<br />
em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias,<br />
vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer padecimento a<br />
continuar como estou. Portanto, se a condição para deixar o estado infeliz em que me<br />
encontro é que Vós me façais sofrer, peço-vos a força para suportar o sofrimento que<br />
me enviardes. Com os joelhos dobrados em terra e as mãos unidas, de toda a alma, ó minha<br />
Mãe, peço-vos o sofrimento necessário para eu ser totalmente vosso.<br />
Entretanto, se for possível unir-me inteiramente a Vós sem esse sofrimento, suplico-<br />
-vos que afasteis de mim esse cálice. Mas, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-<br />
-se a vossa vontade e não a minha! A vossa vontade, Mãe de misericórdia, pois Vós sois<br />
o conduto necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças<br />
venham até nós.<br />
Mãe do Bom Conselho, uma vez mais vos peço, tende piedade de mim!<br />
5
Dona Lucilia<br />
Elevação de alma<br />
e bondade<br />
A Revolução insinua existir um conflito entre elevação e<br />
grandeza, de um lado; bondade e amenidade, de outro. Dona<br />
Lucilia desmentia este erro pela sua presença. Do alto de seu<br />
espírito desciam, como quedas d’água limpidíssimas e discretas,<br />
ondas de doçura, bondade, ternura sobre as pessoas que se<br />
aproximavam dela. Mas com quanta elevação e dignidade!<br />
Na alma de todo revolucionário<br />
existe um horror –<br />
que eu não hesitaria em<br />
qualificar de ateu – a uma dimensão<br />
das coisas, a certa profundidade, certa<br />
elevação de vistas que vê tudo com<br />
uma grandeza fenomenal, relacionada<br />
com uma porção invisível e maior, tão<br />
grande que chega até aos pés de Deus.<br />
A Revolução detesta<br />
contemplar as coisas<br />
pelo lado mais elevado<br />
A Revolução acusa esse estado<br />
de espírito de gerar a guerra santa,<br />
o fanatismo, não a bondade; pode<br />
gerar o entusiasmo, não o bem-estar.<br />
As grandes elevações de espírito<br />
conduzem a alturas que o espírito<br />
não foi feito para habitar. E, portanto,<br />
no máximo se deve esvoaçar por<br />
lá um pouco e depois voltar às planícies<br />
do cotidiano. Em outros termos,<br />
é preciso viver a vida a pé ou montado<br />
num burro, como Sancho Pança,<br />
ao invés de viver montado a cavalo,<br />
como Dom Quixote.<br />
Insinua a Revolução que há um<br />
conflito entre esses dois estados de<br />
espírito, essas duas perfeições: a elevação<br />
e grandeza, que se exprimem<br />
numa seriedade extraordinária, de<br />
um lado, e de outro a bondade, a<br />
amenidade.<br />
Tenho lido furtivamente uma ou<br />
outra descrição desses voos em que<br />
o astronauta sai da órbita da Terra e<br />
entra numa espécie de noite que há<br />
entre os vários astros, e vê tudo se<br />
modificar. Noto que fazem uma descrição<br />
de caráter estritamente científico,<br />
sem perceber a seriedade que<br />
aquilo tem, a qual envolve o homem.<br />
Quando o astronauta sai da atração<br />
da gravidade da Terra e começa<br />
a se deixar atrair por outros planetas,<br />
isto tem uma seriedade imensa.<br />
Ele é chamado para vias que não<br />
são as comuns do homem, e para órbitas<br />
que não são as dele. Ele constitui<br />
uma exceção na ordem do universo<br />
e é posto como espetáculo para os<br />
Anjos e para os homens.<br />
O homem moderno detesta contemplar<br />
as coisas por este prisma.<br />
6
NASA (CC2.0)<br />
Gustave Doré (CC2.0)<br />
Ele quer ver na viagem astronáutica<br />
um mero percurso de uma mercadoria.<br />
Mandam um foguete para a Lua.<br />
Dentro tem um homem que aperta<br />
uns botõezinhos e complementa a<br />
máquina. Esse homem chega ou não<br />
chega? Traz ou não traz amostras para<br />
a Terra? Acabou-se.<br />
O grandioso dessa viagem interastral<br />
formidável, que nunca ninguém<br />
fez até então, a grandeza do homem<br />
que extrapola da regra e fica num zênite<br />
ao longo dos séculos, como sendo<br />
o único que pousou na Lua – uma<br />
coisa fenomenal! – isso as pessoas<br />
não querem perceber. Todas as grandezas<br />
estão alheias.<br />
Grandeza sem interstícios<br />
de mediocridade<br />
Os revolucionários querem afirmar<br />
que esse tipo de alma não tem bondade,<br />
doçura, amenidade, nem misericórdia<br />
e, portanto, perto de uma pessoa<br />
assim encanta-se sem se distender.<br />
E como não se pode viver tenso, é necessário<br />
tomar férias da grandeza.<br />
Se analisarmos os mais diversos ambientes<br />
contemporâneos, encontraremos,<br />
talvez com raras exceções, o choque<br />
entre a grandeza de alma a que os<br />
panoramas da Fé nos convidam e o pedestre<br />
do pequeno arranjo doméstico,<br />
da pequena situação para resolver: a<br />
criada que entrou, o emprego que o pai<br />
tem ou não tem, o famoso problema da<br />
saúde, enfim, essas coisas todas que vão<br />
entrar na primeira linha da preocupação.<br />
E o homem é levado, pelos hábitos<br />
mentais recebidos desde muito cedo, a<br />
esperar precisamente que lhe seja dado<br />
um intervalo entre grandeza e grandeza,<br />
no marco da mediocridade. Esses<br />
são os momentos de interstício dentro<br />
da vida de entusiasmo, de grandeza.<br />
Esta espécie de tentação dos hiatos<br />
de grandeza encontrava na alma de<br />
mamãe o desmentido mais completo.<br />
Porque se uma coisa havia que a caracterizasse<br />
era exatamente essa grandeza<br />
que ela punha na menor coisa.<br />
Dona Lucilia era uma pessoa a<br />
quem se fosse dada uma rosa podia ficar<br />
horas contemplando a flor e fazendo<br />
comentários. Mas comentários que<br />
7
Dona Lucilia<br />
tinham isso de característico: desciam<br />
ao mais miúdo da vida e tomavam os<br />
pormenores mais minúsculos para os<br />
analisar. Entretanto, quando se via com<br />
que espírito aquilo estava sendo analisado,<br />
percebia-se que tocava no alto.<br />
Tudo interessava a ela na medida em<br />
que certas altas cogitações, que ela não<br />
largava nunca, estavam presentes nela.<br />
Devo dizer que, embora um homem<br />
em nada se deva comparar a<br />
uma flor – ele pode se comparar a um<br />
fruto ou a uma árvore, mais do que a<br />
uma flor –, entretanto, era assim que<br />
eu me sentia tratado por ela em minha<br />
infância. A vinculação profunda<br />
de alma entre ela e eu tinha a sua razão<br />
mais profunda neste ponto de enlevo<br />
meu com ela, desde pequeno.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
“Luciliotropismo”<br />
Eu percebia que, sendo muito pequenino,<br />
mamãe tratava comigo, debaixo<br />
de certo ponto de vista, como<br />
com um brinquedinho. Ela achava<br />
graça na minha fragilidade, na minha<br />
insipiência, enfim no meu estado de<br />
principiante em tudo. Mas eu notava<br />
que naquilo entrava uma espécie<br />
de carinho contemplativo que ia até<br />
as mais altas regiões e – vejam o paradoxo<br />
da linguagem – as mais altas<br />
profundidades da alma dela. E que<br />
aquele carinho, cheio de um pensamento<br />
inteiramente superior, me envolvia<br />
todo: “Este é meu filho. Dele<br />
tenho razão para esperar que seja de<br />
tal jeito, de tal outro... Vou brincar<br />
com ele envolvendo-o no meu afeto,<br />
protegendo-o, mas procurando nele<br />
os sintomas precursores de minha<br />
esperança. O que de minha esperança<br />
poderá se realizar?” Eu me sentia<br />
estimulado por uma indagação esperançosa<br />
como quem dizia com afeto:<br />
“Meu filho, tu serás aquilo que eu<br />
tenho no fundo de minha alma?”<br />
Assim como existe o heliotropismo,<br />
pelo qual a planta procura o Sol,<br />
assim também, por uma espécie de<br />
“Luciliotropismo”, eu era tendente<br />
a me voltar a ela. Quando mamãe fazia<br />
as menores coisas para mim, como,<br />
por exemplo, ajudar-me a passar<br />
de minha cama de menino de dois ou<br />
três anos para a dela, sorrindo, brincando,<br />
eu percebia que algo de muito<br />
mais alto me envolvia e que um<br />
dia compreenderia a doçura dos altos<br />
píncaros, a distensão e a suavidade<br />
dos altos ideais, e como aquilo que<br />
era majestoso era doce e atraente!<br />
Isso aprendi com ela de tal maneira<br />
que contemplei nela até o fim da sua vida,<br />
e tive com ela o trato cheio de veneração<br />
que correspondia a uma alma<br />
como a dela. Minha mãe merecia<br />
meu respeito e eu prezava essa circunstância.<br />
Mas não era só isso. Ela era daquele<br />
jeito e tinha em sua alma aquela<br />
grandeza; por esta razão, eu sentia que<br />
todas aquelas qualidades dela caíam<br />
sobre mim, circundavam-me e penetravam<br />
em mim por uma osmose, para a<br />
qual eu abria todos os meus poros.<br />
É no alto das serranias<br />
que se encontra a paz<br />
Mais de uma vez desci com ela o<br />
caminho de Santos em trem, num período<br />
em que quase não se fazia essa<br />
viagem de automóvel. É um lindo caminho<br />
que passa por serras com manacás<br />
em flores, e onde se vê a água<br />
correr abundante do alto dos penhascos,<br />
e escorrer até os vales que circundam<br />
aquilo tudo, no meio do verde<br />
de uma floresta onde nunca os pés<br />
humanos pousaram, e que estão como<br />
os via o Padre José de Anchieta.<br />
Quantas vezes acompanhei o olhar<br />
de Dona Lucilia que contemplava<br />
aquele panorama! Ela baixava o vidro<br />
da janela, encostava a fronte sobre<br />
o braço e ficava olhando aquela<br />
natureza toda...<br />
Confesso que eu olhava muito<br />
mais para ela do que para o panorama.<br />
Discretamente, para ela não<br />
perceber, porque ela não gostaria...<br />
Mas são os raros contrabandos que<br />
um filho pode fazer.<br />
Eu olhava para tudo aquilo e pensava:<br />
“Isso tem uma qualquer analogia<br />
com ela, que algum dia explicitarei...”<br />
Estou explicitando agora. Do alto<br />
do espírito dela desciam as ondas de<br />
doçura, de bondade, de ternura, como<br />
quedas d’água limpidíssimas, discretas<br />
– não é a Cachoeira Paulo Afonso com<br />
aquela barulheira –, e vinham suave e<br />
docemente como tudo quanto dela baixava<br />
sobre nós. Mas quanta elevação,<br />
quanta altura, quanta dignidade!<br />
Se nós queremos encontrar a paz, a<br />
tranquilidade, a doçura, o afeto de que<br />
por alguns lados, a justo título, a nossa<br />
alma é sedenta, sejamos os homens<br />
que compreendem que isso só se acha<br />
no alto das serranias. E cada vez que,<br />
arrastados pela influência subconsciente<br />
do espírito moderno, procura-<br />
8
Quantas vezes acompanhei o olhar de Dona Lucilia<br />
que contemplava aquele panorama! Ela baixava<br />
o vidro da janela, encostava a fronte sobre o<br />
braço e ficava olhando aquela natureza toda...<br />
Confesso que eu olhava muito mais para ela<br />
do que para o panorama. Eu olhava para tudo<br />
aquilo e pensava: “Isso tem uma qualquer<br />
analogia com ela que algum dia explicitarei...”<br />
Divulgação (CC2.0)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
mos o cotidiano sem as suas grandezas<br />
e sem sua beleza, de fato nós estamos<br />
afastando com a mão essa coisa colossal,<br />
pois todas as suavidades e convites<br />
para a doçura do Quadrinho 1 não<br />
vão com quem tem a alma posta nessas<br />
coisas revolucionárias.<br />
Subir as vias escarpadas<br />
da grandeza<br />
Pelo contrário, mamãe fazendo-me<br />
sentir, desses altos píncaros, a bondade,<br />
a doçura, o bem-estar do convívio<br />
com ela, tive uma ideia experimental,<br />
viva, do que sejam essas qualidades,<br />
como não conheço que tenha havido<br />
igual. Quer dizer, quem busca o muito<br />
alto, muito majestoso, muito grandioso,<br />
aquele que caminha com o passo<br />
resoluto até dentro do trágico, e que<br />
é sedento do trágico porque sabe que<br />
este é a escada que leva até os píncaros<br />
– a Via Crucis é a única que conduz<br />
até o alto do Calvário –, esse encontra<br />
as coisas que procura. O outro é desviado<br />
pelo espírito moderno.<br />
Na hora em que tudo convida à falta<br />
de seriedade, ao relaxamento, ao meramente<br />
florido, ornamental, gostozinho,<br />
nós devemos estar de pé, em toda<br />
a nossa estatura, contra a tentação<br />
da trivialidade e escorraçá-la com o pé,<br />
dizendo: “Futuro, com os pés postos<br />
sobre os escombros desta banalidade<br />
blasfema, eu te chamo. Vem, ó futuro!”<br />
Ide resolutamente escalando as<br />
vias escarpadas da grandeza. Ao longo<br />
dessas vias encontrareis não só a proteção<br />
de quem com uma real grandeza<br />
teve tanta bondade, mas Aquela que,<br />
incomparavelmente superior a todas<br />
as criaturas, é ao mesmo tempo a Rainha<br />
majestosa do universo que calca a<br />
serpente para todo o sempre. Ela é a<br />
Conceição Imaculada, de quem dizemos:<br />
“Vida, doçura, esperança nossa,<br />
salve, ó Rainha! ”<br />
Subi, não vos deixeis atrair pelo<br />
visgo do cotidiano, evitai o banal e<br />
amai a grandeza, e ter-me-eis dado<br />
aquilo que mais desejo de vós!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
12/12/1982)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />
a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />
discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucilia. Cf. <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
9
De Maria nunquam satis<br />
Fra Angelico (CC3.0)<br />
Encarnação do Verbo:<br />
o mistério da Contra-Revolução<br />
A Festa da Anunciação do Anjo a Nossa Senhora nos convida a admirar<br />
este sublime paradoxo: no momento em que a Virgem Santíssima<br />
afirmava ser a serva do Senhor, o próprio Deus quis fazer um supremo<br />
ato de servidão, de dependência e de escravidão em relação a Ela.<br />
Nisto encontramos a perfeição do espírito da Contra-Revolução.<br />
Em seu Tratado da Verdadeira<br />
Devoção à Santíssima Virgem<br />
1 , São Luís Grignion de<br />
Monfort tem o seguinte pensamento:<br />
Os verdadeiros devotos de Nossa<br />
Senhora terão uma devoção especial<br />
pelo mistério da Encarnação do Verbo,<br />
a 25 de março, que é o mistério<br />
adequado a esta devoção,...<br />
Quer dizer, da sagrada escravidão.<br />
...pois que esta devoção foi inspirada<br />
pelo Espírito Santo: primeiro, para<br />
honrar e imitar a dependência em<br />
que Deus Filho quis estar de Maria, para<br />
glória de Deus seu Pai e para nossa<br />
salvação; dependência que transparece<br />
particularmente neste mistério em que<br />
Jesus se torna cativo e escravo no seio<br />
de Maria Santíssima, aí dependendo<br />
dela em tudo; segundo, para agradecer<br />
a Deus as graças incomparáveis que<br />
concedeu a Maria, principalmente por<br />
tê-La escolhido para sua Mãe digníssima,<br />
escolha feita neste mistério. São estes<br />
os dois fins principais da escravidão<br />
a Jesus Cristo em Maria.<br />
Um grau de sujeição<br />
inimaginável<br />
O pensamento muito profundo é<br />
de que Nosso Senhor, vivendo em Maria<br />
durante o tempo da Encarnação,<br />
esteve em uma dependência incomparável<br />
d’Ela, pois sendo já inteiramente<br />
lúcido, ficou, entretanto, completamente<br />
dependente, como uma criança<br />
no seio materno depende de sua mãe.<br />
É o maior estado de submissão<br />
que se possa imaginar. Uma crian-<br />
10
ça fora do ventre materno tem uma<br />
vida própria, liberdade de movimentos,<br />
enfim, todo um dinamismo próprio<br />
ajudado pela mãe. Mas não vive,<br />
propriamente, da vida da mãe.<br />
Pelo contrário, a criança que está no<br />
seio materno, vive da vida da mãe;<br />
em tudo é conduzida e, por assim dizer,<br />
circunscrita por ela.<br />
Como sujeição, é um estado bastante<br />
semelhante ao de escravidão,<br />
porque neste o escravo renuncia<br />
completamente à sua liberdade para<br />
ficar inteiramente circunscrito pela<br />
vontade de seu senhor. Sua vida,<br />
seus atos são para o serviço de seu<br />
senhor, seus pensamentos tendem a<br />
ele. Assim era Nosso Senhor em relação<br />
a Nossa Senhora.<br />
Aquele que, sendo infinito, criou<br />
o universo e a quem o Céu e a Terra<br />
não podem conter, foi contido pelas<br />
entranhas indizivelmente gloriosas<br />
da Santíssima Virgem e teve para<br />
com Ela um grau de sujeição inimaginável!<br />
Em resposta ao “Non<br />
serviam” de Lúcifer, o<br />
“Amém” do Filho de Deus<br />
Portanto, quem quiser ser verdadeiro<br />
escravo de Nossa Senhora deve<br />
venerar de modo muito especial essa<br />
miraculosa e insondável sujeição de<br />
Jesus a Maria, na qual o infinitamente<br />
maior deixou-Se dominar e conter<br />
pelo menor, na realização de um<br />
plano divino, cuja sabedoria excede a<br />
qualquer cogitação humana.<br />
Por outro lado, este é o mistério da<br />
Contra-Revolução, porque se a Revolução<br />
é um grande “Non serviam” 2 ,<br />
o mais alto grau de alienação – praticado<br />
pelo Filho de Deus em Maria<br />
Santíssima – é o mistério que mais esmaga<br />
a psicologia, a mentalidade e os<br />
falsos ideais da Revolução. Em lugar<br />
do “Non serviam” é o “Amém”. Lúcifer<br />
bradou: “Não servirei”; Nosso Senhor<br />
disse: “Assim seja” a tudo quanto<br />
Nossa Senhora quis.<br />
Exatamente isso dá uma constrição<br />
especial no homem de espírito revolucionário,<br />
diabólico. Não é apenas<br />
ver a Deus servido por sua criatura<br />
e, portanto, sendo observada aí uma<br />
espécie de ordem de mérito, mas é o<br />
próprio Criador querendo obedecer à<br />
sua criatura e esta mandando n’Ele.<br />
É levar a obediência a um grau que se<br />
não soubéssemos, pela Revelação, ter<br />
havido a Encarnação, nunca poderíamos<br />
imaginar que essa virtude chegaria<br />
a tal extremo.<br />
Se isso deu tanta glória a Deus, a<br />
ponto de naquilo que abusivamente<br />
poderíamos chamar a História d’Ele<br />
– porque Deus é infinito e não tem<br />
História – Ele quis que figurasse esse<br />
ato de obediência insondável, compreendemos<br />
também como a obediência<br />
praticada por nós dá glória a<br />
Nossa Senhora. Em contrapartida,<br />
como a revolta injuria a Maria Santíssima<br />
e seu Divino Filho.<br />
Vemos, assim, até que ponto a Revolução<br />
é odiosa a Deus, e isso nos leva<br />
a compreender melhor o Inferno,<br />
com seus tormentos eternos, o desespero<br />
completo, o esmagamento perpétuo<br />
do demônio, à vista do fato de<br />
que ele atentou contra este princípio:<br />
ele deveria obedecer e não quis.<br />
Certos teólogos dizem que a revolta<br />
de Lúcifer deu-se porque lhe<br />
foi mostrado o plano da Encarnação<br />
e dada a ordem de adorar o Verbo<br />
de Deus Encarnado. E por ser um<br />
anjo de tão alta categoria, ele não<br />
quis e revoltou-se.<br />
Esta hipótese, que me parece totalmente<br />
provável, adquire uma clareza<br />
ainda maior se pensarmos no<br />
demônio considerando Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo contido no claustro<br />
sacratíssimo de Nossa Senhora<br />
e obedecendo a Ela. Ver essa obediência<br />
do Verbo Encarnado a uma<br />
criatura infinitamente menor do que<br />
Deus – por mais excelsa que seja –,<br />
e a inferioridade d’Ele em relação a<br />
essa criatura, isso deve ter levado ao<br />
paroxismo a indignação de Lúcifer.<br />
A festa da Contra-Revolução<br />
Nós podemos dizer, portanto, que<br />
o dia 25 de março é a festa da Encarnação<br />
do Verbo, da escravidão a<br />
Nossa Senhora, da Contra-Revolução.<br />
É a festa na qual se celebra o espírito<br />
de obediência, o amor à hierarquia,<br />
à ordem, à dependência, a<br />
tudo quanto a Revolução odeia.<br />
É mais do que concebível que nos<br />
preparemos para essa festa por meio<br />
de orações especiais para pedir a<br />
Nossa Senhora que esse espírito representado<br />
pela Encarnação atinja<br />
em nós a plenitude desejada por<br />
Deus quando nos criou.<br />
De outro lado, vemos também o<br />
espírito mais do que humilde e contrarrevolucionário<br />
de Maria Santíssima<br />
em face deste mistério. Quando<br />
Ela soube que o Verbo Se encarnaria<br />
n’Ela, sua reação não foi de Se<br />
vangloriar, mas de pronunciar esta<br />
frase humílima: “Eis aqui a escrava<br />
do Senhor, faça-se em mim segundo<br />
a tua palavra” (Lc 1, 38). Como<br />
se dissesse: “Se Deus quer de mim<br />
essa coisa inexplicável, isto é, que eu<br />
mande n’Ele, até isso Ele pode exigir<br />
de mim. Portanto, se Deus pede<br />
o meu consentimento a essa situação<br />
inimaginável, por obediência a Ele,<br />
n’Ele mandarei! Mas é Ele o Senhor,<br />
e a sua vontade, em todas as coisas,<br />
eu farei.”<br />
Como ganha um realce especial, à<br />
luz disso, a atitude de Nossa Senhora<br />
na Anunciação, dizendo-Se escrava<br />
de Deus no momento em que Ele<br />
queria fazer um ato supremo de servidão,<br />
de dependência, de escravidão<br />
em relação a Ela! Encontramos<br />
nisto a perfeição do espírito da Contra-Revolução.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
16/3/1971)<br />
1) Cap. VIII, art. 1, §4, n. 243.<br />
2) Do latim: “Não servirei.”<br />
11
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Tomas T.<br />
Espírito metafísico e<br />
espírito sobrenatural - II<br />
Parque Nacional<br />
de Yellowstone,<br />
Estados Unidos<br />
A pessoa com espírito<br />
verdadeiramente católico<br />
é muito hierárquica,<br />
pois em todas as coisas<br />
procura os arquétipos<br />
aptos a encaminhá-la para<br />
Deus Nosso Senhor. Eis<br />
o ponto fundamental de<br />
toda verdadeira formação<br />
católica, nos termos que<br />
podem interessar ao<br />
homem de nossos dias.<br />
São Tomás apresenta cinco provas<br />
racionais da existência de<br />
Deus. Destas provas uma das<br />
menos tratadas pelos autores de vida<br />
espiritual é a chamada “quarta via” 1 .<br />
Esta procede de um princípio muito<br />
bonito que tentarei explicar agora.<br />
Flavio Lourenço<br />
As qualidades existentes em<br />
determinado ser procedem<br />
de seres superiores<br />
Exprimindo-me em termos meramente<br />
físicos, se eu analiso um azul-<br />
-claro percebo que deve haver uma<br />
cor intensamente azul da qual este<br />
azul tênue não é senão uma mistura.<br />
O fato de existir o azul tênue<br />
12<br />
Santo Tomás de Aquino jovem - Igreja de<br />
São Domingos, Osuna, Espanha
Gabriel K.<br />
é uma prova de que em algum lugar<br />
do mundo há um azul-marinho intenso,<br />
carregado.<br />
Então, poderíamos afirmar, de algum<br />
modo quase alegórico, que todos<br />
os azuis existem porque há um<br />
azul – que, numa linguagem também<br />
inadequada, chamaríamos de absoluto<br />
– do qual todos os outros são dimanações.<br />
Esse princípio abre o nosso espírito<br />
para outro mais genérico: sempre<br />
que uma coisa tem uma qualidade<br />
em determinado grau, ela só existe<br />
porque há algo mais perfeito do qual<br />
ela participa. O ser dotado de qualidade<br />
em grau menos alto participa<br />
de algum modo dessa mesma qualidade<br />
existente em grau supremo em<br />
outro ser.<br />
Suponhamos que alguém vá à Inglaterra<br />
e encontre várias senhoras<br />
finas, distintas. São senhoras da boa<br />
burguesia antiga e tradicional da Inglaterra.<br />
Donde receberam as influências<br />
que as tornam tão finas? De<br />
uma classe social superior, a nobreza,<br />
que ainda tem muito mais finude<br />
irradiação de qualidade dos quais os<br />
outros participam.<br />
Assim está organizado o universo.<br />
Todas as qualidades existentes em<br />
determinado ser procedem de seres<br />
superiores.<br />
Pirâmide de arquétipos<br />
Madonna dei Raccomandati - Catedral de Orvieto, Itália<br />
ra do que essas senhoras da burguesia.<br />
Portanto, a finura delas é a participação<br />
da finura das<br />
senhoras nobres. E essas<br />
senhoras da nobreza,<br />
de quem receberam<br />
esta finura? De uma<br />
rainha, o protótipo da<br />
finura, que possui essa<br />
qualidade como em<br />
sua fonte. Há burgueses<br />
finos porque existem<br />
nobres, e nobres<br />
porque há reis.<br />
Num país com a vida<br />
cultural bem constituída,<br />
se vemos homens muito<br />
cultos chegamos à conclusão<br />
de que esse país tem<br />
excelentes universidades e<br />
deve contar com grandes<br />
sábios, porque não pode<br />
haver tantos homens cultos<br />
sem a existência de um<br />
foco em uma universidade<br />
dotada de alguns sábios,<br />
pelo menos. Quer dizer,<br />
deve haver sempre focos<br />
Deste princípio São Tomás tira a<br />
seguinte conclusão: se existe numa<br />
criatura uma qualidade qualquer,<br />
deve haver um ser extrínseco ao universo<br />
criado que tenha essa qualidade<br />
em grau infinito.<br />
Com efeito, o exemplo da rainha<br />
não explica tudo, pois quem lhe deu<br />
tal predicado? Se chego apenas até a<br />
rainha, tenho uma pirâmide truncada.<br />
Deve existir um Ser de quem ela<br />
tenha recebido aquela qualidade, o<br />
qual, por sua vez, a possua de modo<br />
absoluto e infinito, e não a tenha recebido<br />
de ninguém. Este Ser no qual<br />
todas as coisas excelentes existem de<br />
um modo perfeito e infinito é Deus.<br />
Elisbeth I no dia de sua coroação<br />
Coleção Real, Londres, Inglaterra<br />
Royal Collection (CC3.0)<br />
13
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Assim, o fato de haver no mundo<br />
coisas belas, nobres, elevadas, harmônicas,<br />
ordenadas demonstra a<br />
existência de Deus. Demonstração<br />
esta muito importante para se compreender<br />
o verdadeiro feitio do espírito<br />
católico e o dinamismo do amor<br />
de Deus.<br />
Nisso está, inclusive, a prova da<br />
existência dos Anjos, pois é preciso<br />
haver criaturas que tenham de um<br />
modo arquetípico essas qualidades,<br />
e é de arquétipos em arquétipos, ora<br />
maiores, ora menores, que as coisas<br />
se difundem.<br />
O arquétipo é um tipo que tem<br />
certas qualidades de um modo ultracaracterístico,<br />
saliente e pleno, tanto<br />
quanto cabe em uma criatura. Então<br />
podemos ter tanto um rei quanto<br />
um porteiro, como um guerreiro ou<br />
um professor arquetípico.<br />
Quando existe um<br />
arquétipo, florescem<br />
em torno dele muitos<br />
homens possuindo<br />
em grau menor as<br />
qualidades desse arquétipo,<br />
participadas<br />
dele. E para que as<br />
qualidades existam<br />
no gênero humano<br />
é preciso haver uma<br />
pirâmide de arquétipos.<br />
Todas as<br />
qualidades<br />
presentes nas<br />
criaturas<br />
existem em Deus<br />
de modo infinito<br />
Porém, para além<br />
do gênero humano<br />
deve haver Anjos<br />
que possuam determinada<br />
qualidade<br />
com uma densidade<br />
muito maior do que<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
nós, homens, temos. E depois é preciso<br />
que haja Deus. Quer dizer, prova-se<br />
a existência dos Anjos com o<br />
mesmo argumento da existência de<br />
Deus.<br />
Todas as qualidades presentes nas<br />
criaturas – Anjos, homens, animais,<br />
vegetais e minerais – existem em<br />
Deus de modo infinito. Por que um<br />
brilhante brilha? Porque Deus tem,<br />
de um modo espiritual, uma qualidade<br />
cuja imagem material é o brilhante.<br />
Se Deus deixasse de existir, todos<br />
os brilhantes deixariam de brilhar<br />
porque todo o brilho dos brilhantes<br />
deflui continuamente de Deus que<br />
não brilha como uma pedra porque<br />
Ele não é pedra, mas tem uma perfeição<br />
que a pedra imita brilhando.<br />
O perfume de uma flor é uma<br />
qualidade que, a seu modo, exis-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> recebe a Sagrada Eucaristia em 1990<br />
te de maneira infinita em Deus, como<br />
num espírito e não como na matéria.<br />
Ao sentir o aroma daquela flor<br />
tem-se uma ideia misteriosa e inefável<br />
de algo presente em um Ser perfeito<br />
e infinito.<br />
Passando para o gênero humano,<br />
se eu conhecesse um perfeito causeur,<br />
um homem que conversa brilhantemente,<br />
portanto agradável, interessante,<br />
atraente, gentil, enfim,<br />
com todas as qualidades possíveis,<br />
teria vontade de passar o tempo inteiro<br />
em contato com essa pessoa.<br />
Imaginem alguém cujo repouso<br />
me descansasse, cuja ação me estimulasse<br />
a agir, cujo timbre de voz<br />
soasse para mim como uma música,<br />
cujo olhar emitisse uma luz, cuja<br />
presença fosse um calor! Pois bem,<br />
eu olharia para esse homem e pensaria:<br />
“Ele é um tão<br />
grande causeur, entretanto<br />
poderia ser<br />
mais. Em última análise,<br />
se ele tem isso<br />
deve haver alguém<br />
que tenha mais do<br />
que ele e, por fim,<br />
um Ser que possua<br />
essa qualidade em<br />
proporções infinitas.<br />
Que maravilha<br />
quando eu puder ver<br />
Deus face a face!”<br />
Todas as coisas foram<br />
criadas e dispostas<br />
para despertar<br />
em nós o gosto pelo<br />
mais. Querer mais é<br />
o movimento contínuo<br />
da alma católica.<br />
Não só desejar mais,<br />
mas querer tudo. E<br />
porque quer tudo,<br />
não encontra a plena<br />
satisfação em nada<br />
terreno, mas a razão<br />
mostra que existe<br />
além da Terra e de<br />
um modo infinito.<br />
14
Nasce, então, a possibilidade de<br />
gostar das coisas de um modo não<br />
frustrante, porque embora todas as<br />
criaturas decepcionem, considerando-as<br />
nesta linha elas contêm um<br />
anúncio, uma promessa e um antegozo.<br />
Aí sim somos capazes de viver,<br />
tendo o espírito anti-igualitário, pois<br />
naqueles que são arquétipos vemos<br />
imagens de Deus, aptas a me atrair<br />
como a plenitude atrai a parte, mas<br />
que me encaminham depois para a<br />
plenitude das plenitudes que é Deus<br />
Nosso Senhor. Por esta forma eu me<br />
oriento para Deus. Eis como o espírito<br />
católico deve estar continuamente<br />
considerando as coisas.<br />
Fra Angelico (CC3.0)<br />
Isso é viver; o resto é<br />
arrastar a vida<br />
Fra Angelico visitado pelos anjos<br />
Museu de Belas Artes de Rouen, França<br />
Esta postura diante da vida, ao<br />
invés de torná-la monótona, torna-<br />
-a entretida. Tenho pena de quem<br />
não faz isso como alguém que enxerga<br />
tem compaixão de um cego. Mais<br />
ainda: se aguento tantos dissabores<br />
desde a manhã até a noite é porque<br />
este entretenimento me dá forças.<br />
Por exemplo, na hora da Comunhão<br />
pensar como este Deus perfeito<br />
e absoluto, omne delectamentum<br />
in Se habentem – tendo em Si toda<br />
espécie de sabores –, embora de<br />
modo insensível, entra na minha alma,<br />
e já nesta Terra, nesta noite, me<br />
é concedida a semente da luz que terei<br />
quando meus olhos se fecharem<br />
definitivamente para este mundo.<br />
Esta é a impostação do espírito<br />
católico, o qual é muito hierárquico,<br />
porque em todas as coisas procura o<br />
arquétipo, a maior perfeição criada, e<br />
depois voa para a perfeição incriada.<br />
Dou um exemplo de como se faz<br />
uma operação mental dessas. Enquanto<br />
falava, meus olhos caíram na<br />
parte de trás dessa imagem de Nossa<br />
Senhora, e me chamou a atenção a<br />
boa ordenação das dobras do manto<br />
esculpido, dando a impressão de um<br />
pano grosso que não se deixou amarfanhar<br />
nem amarrotar, mas que também<br />
não está dobradinho como para<br />
uma vitrine; são dobras aparentemente<br />
espontâneas, produzidas por<br />
um bonito movimento.<br />
Passou-me pela mente como seria<br />
interessante estar junto ao escultor e<br />
vê-lo imaginar essas dobras. Por assim<br />
dizer, entrar na sua cabeça e ver<br />
qual o estado de espírito por onde<br />
ele excogitou isso. Para mim, ver o<br />
espírito dele produzir a dobra é ainda<br />
mais interessante do que fazê-la.<br />
Então, ter visto o escultor excogitar<br />
a dobra, esculpi-la, olhar para ela e,<br />
por fim, analisar a fisionomia do escultor<br />
e fechar o ciclo da minha observação<br />
entreter-me-ia extraordinariamente.<br />
Em vários museus europeus<br />
vi artistas pintando e gente em<br />
volta olhando os pintores, e compreendo<br />
isso.<br />
Porém eu quereria mais. Como<br />
seria maravilhoso ver Deus quando<br />
criou o mundo! Na criação de todo<br />
o universo, que coisa superior! Deus<br />
é eterno e imutável, e vendo-O face<br />
a face, eu O verei como quando Ele<br />
estava criando o universo.<br />
Está aí uma meditação que me<br />
eleva. Isso é viver, o resto é arrastar<br />
a vida.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/11/1972)<br />
1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.<br />
15
Perspectiva pliniana da História<br />
Considerações sobre o<br />
Brasil Império - I<br />
O reinado de Dom Pedro I,<br />
príncipe romântico, impulsivo,<br />
tumultuoso e inconstante, inquietou<br />
e deslumbrou pacatos brasileiros,<br />
desorientou combativos portugueses,<br />
deixando um sulco na alma e na<br />
formação psicológica do Brasil.<br />
Ao fazer uma exposição sobre<br />
a História do Brasil, se<br />
eu fosse começar por mencionar<br />
as capitanias, os governadores,<br />
pondo num quadro-negro a lista<br />
deles todos, datas em que tomaram<br />
posse e deixaram seus cargos, a história<br />
das bandeiras, era muito pouco<br />
provável que despertasse a apetência<br />
de meus ouvintes.<br />
O verdadeiro numa formação intelectual<br />
e, sobretudo, espiritual é alargar<br />
o campo do interesse, de maneira<br />
que os ouvintes tenham amplos horizontes.<br />
Não ficar tratando como especialista<br />
de um tema, por exemplo,<br />
de que doença morreu Fernão Dias<br />
Pais Leme. Não sou médico, nem contemporâneo<br />
dele, não me interessa<br />
saber do que ele faleceu, isso não é tema<br />
para mim. Mas alargar os horizontes,<br />
isto sim é formação.<br />
Dois modos tipicamente<br />
brasileiros de interessar-se<br />
pela História<br />
Nas anteriores reuniões sobre<br />
História do Brasil fui jogando no<br />
ar dados com alguma conexão entre<br />
si, mais ou menos como um piloto<br />
a bordo de um navio que, entrando<br />
num porto, vai atirando sondas para<br />
saber por onde sua embarcação deve<br />
rumar. Fui lançando sondas para<br />
ver quais eram os temas que interessavam<br />
mais. E acabei percebendo<br />
que um assunto que interessa muito<br />
ao feitio do nosso povo e, aliás,<br />
corresponde à mentalidade e ao ambiente<br />
brasileiro diz respeito à seguinte<br />
temática:<br />
Cada chefe de Estado que passa é<br />
uma figura; ele governa e pode-se fazer<br />
a história do seu governo. O go-<br />
GAP (CC3.0)<br />
16<br />
Dom Pedro I - Museu<br />
Imperial, Petrópolis, Brasil
verno dele é o conjunto de atos de caráter<br />
político, diplomático, econômico,<br />
administrativo com os quais ele<br />
dirigiu o Estado brasileiro durante<br />
certo período, seja um monarca, seja<br />
um presidente da República, seja um<br />
ditador. Esta é uma faixa na qual se<br />
pode estudar a História de um povo.<br />
Mas há outra faixa que me parece<br />
muito mais brasileira. Um chefe<br />
de Estado consegue ou não projetar<br />
a sua figura aos olhos do povo,<br />
de maneira a ser uma personalidade<br />
que marque por sua presença<br />
a vida psicológica, intelectual, afetiva<br />
do povo. Se ele consegue isto,<br />
o período de governo dele é<br />
uma era na História. E quando<br />
ele sai, o colorido da História<br />
muda.<br />
Tem pouco a ver com<br />
a diplomacia, as finanças,<br />
a guerra e tudo mais. É a<br />
apresentação e a ação que<br />
toda pessoa exerce sobre outra<br />
quando estão juntas.<br />
Tomem dois homens num gabinete<br />
dentário, por exemplo, esperando<br />
a hora de serem atendidos.<br />
Eles não se conhecem, olham-se vagamente<br />
e um não se interessa pelo<br />
outro, se rejeitam. Dir-se-á que não<br />
exerceram influência um sobre o outro.<br />
Não é verdade. Naquela mútua<br />
rejeição cada um afirmou alguma<br />
coisa de si que o outro recusa. E<br />
naquilo eles se acentuam em alguma<br />
coisa.<br />
Todo contato humano exerce<br />
uma influência afirmativa<br />
ou negativa. Mesmo quando<br />
essa influência é neutra, ou seja,<br />
fecha o guichê, ainda aí há<br />
uma afirmação.<br />
Dom Pedro I, um<br />
verdadeiro herói<br />
de romance<br />
Um chefe de Estado<br />
tem sua presença muito<br />
mais realçada do que<br />
um particular. Então,<br />
pergunta-se:<br />
Coroa Imperial do<br />
Brasil - Museu Imperial,<br />
Petrópolis, Brasil<br />
essa presença não exerce um efeito<br />
sobre toda a nação? Exerce. Qual<br />
foi o efeito pessoal de Dom Pedro I?<br />
E o de Dom Pedro II? Como eram<br />
eles? Como o Brasil os recebeu? Como<br />
foram os primeiros presidentes<br />
da República Velha? São temas de<br />
que se poderia eventualmente tratar.<br />
Parece-me que nesta faixa interessaria<br />
muito mais do que o estudo de finanças,<br />
por exemplo. Então, vamos<br />
expor um pouco sobre isso.<br />
Dom Pedro I era um príncipe romântico<br />
por excelência. A Europa<br />
estava sob o signo do romantismo,<br />
do qual fazia parte uma sentimentalidade<br />
opulenta, ligada a um gosto<br />
pela aventura e a uma certa ponta<br />
de heroísmo pessoal. Sem isso não<br />
se era um verdadeiro herói de romance.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Monumento à Independência<br />
São Paulo, Brasil<br />
Danilo Prudêncio Silva (CC3.0)<br />
17
Perspectiva pliniana da História<br />
Jean-Baptiste Debret (CC3.0)<br />
Litogravura do “Dia do Fico” - Biblioteca do Congresso<br />
dos Estados Unidos, Washington, EUA<br />
Modelado pela época, Dom Pedro<br />
I foi um verdadeiro herói de romance.<br />
Os heróis de romance têm<br />
muito de romance e pouco de herói.<br />
Eles não merecem ser chamados heróis,<br />
a não ser num certo sentido da<br />
palavra, porque aquilo não é heroísmo.<br />
Satisfazer seus impulsos não é<br />
heroísmo. Dirigi-los segundo a Lei<br />
de Deus, isso é o heroísmo!<br />
Ele era um homem eminentemente<br />
impulsivo, e toda a sua vida, que poderia<br />
ter sido uma série de êxitos brilhantes,<br />
foi uma sucessão de fracassos.<br />
Porém, esses fracassos foram brilhantes,<br />
porque ele conduzia suas derrocadas<br />
com a virtuosidade de um herói de<br />
teatro. Essa teatralidade fez dele uma<br />
pessoa que inquietou os pacatos brasileiros,<br />
mas um pouco os deslumbrou.<br />
Agitou os portugueses de então – pouco<br />
pacatos e muito combativos –, mas<br />
os desorientou. Assim, ele marcou a<br />
fundo as duas nações.<br />
Dom Pedro I era um homem, em<br />
certo sentido da palavra, brilhante.<br />
Muito vistoso, com muita vitalidade,<br />
tinha um todo verdadeiramente aristocrático<br />
que ele conduzia com ideias<br />
democráticas e acessos de absolutismo,<br />
dependendo da veneta dele. Ele<br />
era fundamentalmente “veneteiro”.<br />
Uma Commonwealth<br />
luso-brasileira<br />
O que teria sido o êxito de Dom<br />
Pedro I? Se considerarmos o assunto<br />
do ponto de vista meramente da<br />
ambição pessoal, na situação em que<br />
ele estava como homem ambicioso,<br />
o que poderia ter feito?<br />
Ele declarou a independência do<br />
Brasil e o fato ficou consumado. A<br />
partir desse momento ele rachou os<br />
Estados do pai dele, que eram muito<br />
amplos e compreendiam: Angola,<br />
Moçambique, Guiné e outras possessões<br />
na Índia, o que constituía um<br />
império muito vasto. Mas a maior<br />
esmeralda ou rubi desse império<br />
caiu da coroa no momento em que o<br />
Brasil se separou de Portugal.<br />
Com efeito, quando se separou, o<br />
Brasil deixou de ser colônia para se<br />
tornar reino unido a Portugal. O que<br />
vem a ser um reino unido?<br />
Antigamente, os reis de Portugal<br />
recebiam este título: Rei de Portugal<br />
e dos Algarves. Algarves é a parte<br />
sul de Portugal, assim chamada<br />
por causa do sentido de uma palavra<br />
moura algaribe, que designava terras<br />
onde habitavam mouros. Como a dinastia<br />
portuguesa conquistou os Algarves<br />
para Portugal, o monarca ficou<br />
sendo Rei de Portugal e dos Algarves.<br />
O Algarve não ficou uma colônia,<br />
mas um reino bem menor do<br />
que Portugal, com suas leis, seus costumes<br />
próprios, como hoje em dia<br />
são a Inglaterra e a Escócia. A Escócia<br />
não é uma colônia da Inglaterra,<br />
é um reino irmão geminado com ela,<br />
o qual tem seus hábitos, estilos, sua<br />
autonomia, embora constitua um todo<br />
com a Inglaterra.<br />
O Rei de Portugal, Dom João VI,<br />
tinha declarado o Brasil reino unido<br />
a Portugal. Esse reino foi separado<br />
por Dom Pedro I e declarado Império.<br />
Mas não estava dito que o imperador<br />
do novo Império não pudesse<br />
herdar a coroa de Portugal;<br />
nem que, separando uma monarquia<br />
da outra, Dom Pedro I não pudesse<br />
herdar a velha monarquia e reconduzir<br />
à união. A meu ver, se ele<br />
olhasse para sua ambição pessoal, a<br />
18
jogada inteligente dele seria levar as<br />
coisas de maneira a sossegar os brasileiros<br />
quanto à animosidade deles<br />
contra os portugueses. Assim, quando<br />
morresse Dom João VI, Dom Pedro<br />
I deveria tentar reunir os dois<br />
reinos.<br />
Nessas circunstâncias, ele teria<br />
uma linda tarefa para executar que<br />
corresponde a um problema muito<br />
bonito a resolver. O mundo português<br />
do lado de lá do Atlântico<br />
tem o pequeno peso de uma economia<br />
metropolitana e de um território<br />
também pequenos, mas o peso<br />
enorme de uma História gloriosa,<br />
de uma longa tradição, de uma ligação<br />
afetiva muito grande com o Brasil,<br />
além do peso considerável de todo<br />
o império colonial que Portugal<br />
ainda possuía, e com o qual o Brasil<br />
perdeu o nexo quando se tornou<br />
independente. Não seria inteligente<br />
ter proposto aos brasileiros e aos<br />
portugueses uma Commonwealth,<br />
à maneira da Inglaterra,<br />
com todos esses<br />
Estados? Era evidente<br />
que o Brasil ficaria<br />
tão grande que,<br />
em certo momento,<br />
não seria mais governável<br />
a partir<br />
de Lisboa.<br />
É como o Canadá<br />
e a Inglaterra.<br />
O Canadá<br />
não é governável<br />
a partir da Inglaterra.<br />
Os ingleses<br />
tiveram o bom senso<br />
de ir dando uma<br />
certa autonomia ao<br />
Canadá, para não pesar<br />
demais num cetro<br />
que acabaria se quebrando.<br />
Fizeram um regime<br />
um pouco parecido com<br />
Dom João VI - Arquivo<br />
Nacional, Rio de<br />
Janeiro, Brasil<br />
Rodrigo.Argenton (CC3.0)<br />
Arquivo Nacional (CC3.0)<br />
Proclamação da<br />
Independência - Museu<br />
Paulista, São Paulo, Brasil<br />
19
Perspectiva pliniana da História<br />
Jean-Baptiste Debret (CC3.0)<br />
Casamento de Dom Pedro I com Dona Amélia - Coleção Itaú Cultural<br />
a velha monarquia austro-húngara,<br />
em que os imperadores da Áustria<br />
eram reis da Hungria, da Checoslováquia,<br />
duques de tal e tal lugar na<br />
atual Iugoslávia. Tinham todas essas<br />
coroas e iam tocando essa política<br />
juntos.<br />
Fracassos de Dom Pedro I<br />
Os reis de Portugal tinham pensado<br />
em transferir a sede da monarquia<br />
portuguesa para o Pará e<br />
fazer uma monarquia amazônica,<br />
a pouca distância de Lisboa, portanto<br />
governável meio de Lisboa<br />
e meio do Pará e, através deste,<br />
exercer sua influência sobre todo o<br />
Brasil. A meu ver – se consultasse a<br />
ambição dele – Dom Pedro I deveria<br />
ter dirigido sua política no sentido<br />
de constituir uma monarquia<br />
bipolar: Pará-Lisboa. E quando os<br />
meios de comunicação fossem mais<br />
rápidos, passar o governo ao Rio<br />
de Janeiro. Mas esperar e deixar<br />
maturar a história. Ele não fez isso.<br />
Chegou ao Brasil, brigou com os<br />
brasileiros, foi para Portugal, abriu<br />
uma questão e brigou com os portugueses.<br />
Acabou morrendo prematuramente<br />
tuberculoso em Portugal,<br />
vítima da doença de que os<br />
heróis de romance achavam bonito<br />
morrer.<br />
Como se deu isso? Ele declarou a<br />
independência, foi coroado e entronizado<br />
como Imperador do Brasil.<br />
Aliás, a coroa dele é bonita e está no<br />
Museu de Petrópolis.<br />
Ele recebeu uma monarquia absoluta,<br />
como vigorava em Portugal.<br />
Entretanto, começou um movimento<br />
para transformá-la em monarquia<br />
parlamentar, com a convocação de<br />
um Parlamento e uma Constituição<br />
que limitasse os poderes dele.<br />
O que fez Dom Pedro I? Disse<br />
que sim, mas com uma condição: a<br />
Constituição seria concedida por<br />
ele, que inauguraria o Parlamento.<br />
Mas quando ele quisesse fecharia<br />
o Parlamento e revogaria a Constituição.<br />
Compreende-se que essa hipótese<br />
de nenhum modo agradaria os liberais,<br />
pois aquela era uma liberdade<br />
condicional. Na hora em que o Imperador<br />
franzisse a sobrancelha, cessaria<br />
a liberdade. Disseram-lhe, então,<br />
que não aceitavam, e saiu daí<br />
uma tensão medonha que acabou<br />
dando em sua partida para Portugal,<br />
porque ele não podia mais governar<br />
o Brasil.<br />
Guerra entre absolutistas<br />
e liberais<br />
Dom Pedro I embarcou num navio<br />
para Portugal com a sua segunda<br />
esposa, Dona Amélia de Leuchtenberg,<br />
e com a filha que ele tivera da<br />
Marquesa de Santos, a Duquesa de<br />
Goiás.<br />
20
Eduardo Bueno (CC3.0)<br />
António José Quinto (CC3.0)<br />
Dom Miguel - Biblioteca Nacional,<br />
Lisboa, Portugal<br />
Corte Portuguesa em 1822 - Museu Paulista, São Paulo, Brasil<br />
Chegando a Portugal, encontrou<br />
a seguinte situação: Dom Miguel, irmão<br />
mais novo de Dom Pedro I, tinha<br />
se candidatado ao trono português.<br />
Morreu Dom João VI, Dom Pedro<br />
I tornara-se Imperador do Brasil<br />
e se descolara de Portugal. Logo,<br />
argumentava Dom Miguel, uma vez<br />
que ele traíra a nação, separando dela<br />
uma parte, não tinha mais direito<br />
a ser Rei de Portugal. E afirmava:<br />
“O rei sou eu!” Dom Pedro I dizia o<br />
contrário: “Eu não renunciei, e agora<br />
que deixei o Brasil quero governar<br />
aqui em Portugal!”<br />
A isso somava-se uma complicação<br />
de caráter ideológico: também<br />
os monarquistas portugueses estavam<br />
divididos pela mesma questão<br />
que dividira as opiniões no Brasil.<br />
Aliás, era a grande questão daquele<br />
tempo: saber se uma monarquia<br />
deveria ser absoluta, à maneira<br />
do Ancien Régime, ou parlamentar,<br />
como vigorou após a Revolução<br />
Francesa.<br />
Os partidários de Dom Miguel<br />
eram monarquistas absolutistas, enquanto<br />
os de Dom<br />
Pedro I eram a favor<br />
da monarquia<br />
parlamentar. Ele<br />
que no Brasil tinha<br />
sustentado o princípio<br />
da monarquia<br />
absoluta, com<br />
o direito de fechar o<br />
Parlamento quando<br />
quisesse, em Portugal<br />
chefiou o parido<br />
liberal.<br />
A guerra entre<br />
esses dois partidos<br />
dividiu Portugal a<br />
fundo. Quase todas<br />
as boas famílias de<br />
Portugal tiveram antepassados lutando<br />
ou do lado dos “miguelistas”,<br />
ou de Dom Pedro I, ou de sua filha,<br />
Dona Maria da Glória, a quem ele<br />
deixou os direitos quando morreu.<br />
Morto Dom Pedro I, sua imagem<br />
apagou-se na recordação dos brasileiros<br />
como fato político, mas permaneceu<br />
como fato lendário-histórico.<br />
E ficou como a de um príncipe<br />
tumultuoso e inconstante.<br />
Muito curiosamente veio parar<br />
em mãos de minha família uma espada<br />
pertencente aos partidários de<br />
Dona Maria da Glória, filha de Dom<br />
Pedro I. Era uma espada em forma<br />
ligeiramente curva à maneira das espadas<br />
turcas, em cuja copa estava es-<br />
21
Perspectiva pliniana da História<br />
José Joaquim Rodrigues Primavera (CC3.0)<br />
aventuras, e o próprio caso da Marquesa<br />
de Santos, deu um certo colorido<br />
à sua vida – um colorido vivaz,<br />
mas nem sempre limpo... Trata-<br />
-se de uma pessoa cuja biografia se<br />
compreende, por exemplo, que uma<br />
revista publique porque é uma coisa<br />
interessante.<br />
No total, a recordação dos brasileiros<br />
é positiva. Vê-se, por exemplo,<br />
uma coisa curiosa em Brasília, a cidade<br />
moderna projetada por Oscar<br />
Niemeyer. Na sala do Presidente da<br />
República – que é um recinto inteiramente<br />
do estilo da cidade –, atrás<br />
da cadeira de despacho dele, colocaram<br />
um quadro representando Dom<br />
Pedro I como Imperador do Brasil,<br />
com todas as suas condecorações.<br />
Pode-se bem compreender o que<br />
isto representa no sentir de toda a<br />
Nação. Não foi um homem qualquer,<br />
mas um chefe de Estado hábil<br />
que mandou pendurar o quadro<br />
lá, por saber que causava bom efeito<br />
em todos os visitantes do exterior<br />
e do interior que ali chegassem e encontrassem<br />
a recordação daquele<br />
homem, com aquele passado.<br />
Imaginem uma arara que voasse<br />
de modo meio aloucado, ora quase<br />
caindo, ora subindo novamente,<br />
mas que durante seu voo nada bonito<br />
desse a oportunidade de se ver,<br />
em vários aspectos, suas lindas penas<br />
coloridas. Este foi o reinado de Dom<br />
Pedro I e o sulco que deixou na alma<br />
e na formação psicológica do Brasil.<br />
“Meu Imperador<br />
e meu filho!”<br />
Morte de Dom Pedro I - Biblioteca Nacional, Lisboa, Portugal<br />
culpida em marfim uma cabeça de<br />
turco, com turbante e tudo. Na espada<br />
vinham gravados os dizeres: “Viva<br />
Dona Maria I”. Era, portanto,<br />
uma arma com a qual tinha combatido<br />
algum homem graduado, provavelmente<br />
nobre – a julgar pelo tipo<br />
da espada –, a serviço de Dona Maria<br />
I. Quer dizer, a favor da causa<br />
constitucionalista.<br />
Infelizmente, quando se dividiram<br />
os bens de minha família, isso<br />
ficou com outro ramo e não sei<br />
que fim levou. Assim, não pude reter<br />
essa espada que era uma curiosidade.<br />
Como o voo aloucado<br />
de uma arara<br />
Apesar de tudo, há alguns lances<br />
brilhantes da vida de Dom Pedro<br />
I, como o casamento dele com<br />
a Princesa Leopoldina d’Áustria,<br />
a Proclamação da Independência<br />
do Brasil. Além disso, o fato de ele<br />
ser um homem cheio de repentes e<br />
Dom Pedro I tinha um ministro<br />
com quem conviveu numa amizade<br />
adversária e numa adversidade amiga:<br />
José Bonifácio de Andrada e Silva.<br />
Os três irmãos Andrada eram inteligentíssimos<br />
e tinham feito excelentes<br />
estudos em Coimbra. José Bonifácio<br />
viajou por vários países da<br />
Europa e se tornou amigo de muitos<br />
dos homens que haveriam de trabalhar<br />
depois na Revolução Francesa.<br />
Imperador Dom Pedro II e<br />
suas irmãs - Museu Imperial,<br />
Petrópolis, Brasil<br />
22
Mas ele era caracteristicamente um<br />
aristocrata brasileiro.<br />
Havia no Brasil duas espécies de<br />
aristocracia: uma era a aristocracia<br />
dos nobres de Portugal vindos para<br />
cá, nomeados pelo rei; outra, nascida<br />
da terra. Famílias que vieram para cá,<br />
não aristocráticas, que se constituíram<br />
aqui, tiveram larga descendência<br />
e uma longa série de gerações de proprietários<br />
rurais, exercendo seu domínio<br />
sobre extensões enormes.<br />
Essas pessoas tomavam um ar,<br />
uma tradição e um jeito aristocráticos<br />
e descendiam, em geral, dos fundadores<br />
do lugar onde viviam. Eram<br />
reconhecidas pelas leis coloniais do<br />
Brasil como aristocratas, e não menos<br />
autênticos do que os portugueses.<br />
Era uma aristocracia nascida da<br />
terra. Isso se deu largamente no Brasil<br />
e de uma delas era José Bonifácio.<br />
Homem muito inteligente, cortês<br />
e representativo.<br />
Com a partida de Dom Pedro I, os<br />
acontecimentos políticos no Brasil<br />
Pedro Corrêa do Lago (CC3.0)<br />
poderiam ter transcorrido<br />
de tal maneira<br />
que com ele<br />
fosse exilada para<br />
Portugal toda a sua<br />
descendência. Entretanto<br />
tal não se<br />
deu, e isso assegurou<br />
a unidade nacional.<br />
Porque o Brasil<br />
era grande demais<br />
para não se fragmentar,<br />
como ocorreu<br />
com as colônias<br />
José Bonifácio de Andrada e Silva<br />
Museu Paulista, São Paulo, Brasil<br />
espanholas quando<br />
ficaram independentes.<br />
A única coisa<br />
que podia torná-lo<br />
unido era um<br />
chefe de Estado não<br />
originário de nenhuma<br />
das Províncias<br />
brasileiras, mas que<br />
pairasse acima do<br />
Brasil como um símbolo.<br />
Assim, mantiveram-se<br />
aqui os filhos<br />
de Dom Pedro I, órfãos<br />
de Dona Leopoldina<br />
e já então<br />
órfãos de pai também,<br />
porque este ia<br />
para longe, para outra<br />
vida com outra esposa. Eles ficavam<br />
sem nada... Dom Pedro I deixou<br />
como tutor de seus filhos o próprio<br />
José Bonifácio, como o mais capaz<br />
de educá-los, orientá-los.<br />
Narra-se que, quando Dom Pedro<br />
I partiu para Portugal, José Bonifácio<br />
foi ao Palácio Imperial tomar<br />
contato com as crianças, e apresentaram-lhe,<br />
deitado numa almofada,<br />
o Imperador Pedro II. Ele tomou<br />
com ternura a almofada com o pequeno<br />
monarca e disse: “Meu Imperador<br />
e meu filho!” O que é uma exclamação<br />
muito brasileira...<br />
A reverente compaixão nacional<br />
pousou sobre essas crianças órfãs e<br />
isoladas, a bem dizer pupilas do País<br />
inteiro, e por cuja salvaguarda,<br />
educação, saúde, casamento sentia-se<br />
responsável a Nação inteira<br />
também.<br />
Desabrochava, assim, um vínculo<br />
filial e afetivo em torno da figura de<br />
Dom Pedro II, de todo o seu reinado<br />
e de sua família, constituindo uma<br />
espécie de relação familiar que vinha<br />
desse berço de onde renascia a monarquia.<br />
E fez com que Dom Pedro<br />
II, ao longo de sua vida, se tornasse<br />
pai e depois avô do Brasil. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
23/11/1985)<br />
Benedito Calixto (CC3.0)<br />
23
fotograf nieznany (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
Beata Ângela Salawa<br />
1. São David, bispo (†c. 601). Fundou<br />
em sua diocese de Menévia, País<br />
de Gales, um mosteiro de onde partiram<br />
missionários para evangelizar a<br />
Irlanda, a Cornualha e a Armórica.<br />
2. São Lucas Casali de Nicósia,<br />
abade (†s. IX). Abade do mosteiro de<br />
Agira, Itália, célebre por sua humildade,<br />
sabedoria e prudência.<br />
3. VIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato Pedro Jeremias, presbítero<br />
(†1452). Religioso dominicano que,<br />
confirmado por São Vicente Ferrer<br />
na pregação, consagrou-se totalmente<br />
à obra da salvação das almas. Faleceu<br />
em Palermo, Itália.<br />
4. São Casimiro (†1484).<br />
Beata Maria Luísa de Lamoignon,<br />
viúva (†1825). Após seu marido<br />
ser guilhotinado, fundou em Vannes,<br />
França, a Ordem das Irmãs da Caridade<br />
de São Luís.<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. São João José da Cruz, presbítero<br />
(†1734). Franciscano que, seguindo<br />
o exemplo de São Pedro de Alcântara,<br />
restaurou a disciplina da Regra em<br />
muitos conventos de Nápoles, Itália.<br />
6. Quarta-Feira de Cinzas.<br />
São Fridolino, abade (†s. VIII).<br />
Oriundo da Irlanda, peregrinou através<br />
da Gália e chegou a Säckingen,<br />
Alemanha, onde fundou dois mosteiros<br />
em honra de Santo Hilário.<br />
7. Santas Perpétua e Felicidade,<br />
mártires (†203).<br />
Beato José Olallo Valdés, religioso<br />
(†1889). Da Ordem Hospitaleira de São<br />
João de Deus, dedicou-se aos enfermos<br />
durante 54 anos servindo como enfermeiro<br />
num hospital de Havana, Cuba.<br />
8. São João de Deus, fundador<br />
(†1550). Ver página 2.<br />
Beato Faustino Míguez, presbítero<br />
(†1925). Religioso escolápio que fundou<br />
a Congregação das Filhas da Divina<br />
Pastora, em Sanlúcar de Barrameda,<br />
Espanha, para a formação das jovens.<br />
9. Santa Francisca Romana, religiosa<br />
(†1440).<br />
Santa Catarina de Bolonha, virgem<br />
(†1463). Fundadora e abadessa do mosteiro<br />
das clarissas da Bolonha, Itália.<br />
Destacou-se por seus dons místicos e pelas<br />
virtudes da humildade e penitência.<br />
10. I Domingo da Quaresma.<br />
Beato João José Lataste, presbítero<br />
(†1869). Dominicano e fundador<br />
da Congregação das Irmãs Dominicanas<br />
de Betânia, em Frasne-le-Château,<br />
França.<br />
11. Santos Marcos Chong Ui-bae e<br />
Aleixo U Se-yong, mártires (†1866).<br />
Decapitados em Sai-Nam-The, Coreia,<br />
por praticarem e propagarem a<br />
Fé Católica.<br />
12. São Teófanes, abade (†817).<br />
Ver página 26.<br />
Beata Ângela Salawa, virgem<br />
(†1922). Terciária franciscana, santificou-se<br />
exercendo a profissão de empregada<br />
doméstica, em Cracóvia, Polônia,<br />
onde morreu em extrema pobreza.<br />
13. São Leandro de Sevilha, bispo<br />
(†c. 600). Irmão de Santo Isidoro, São<br />
Fulgêncio e Santa Florentina, governou<br />
a Arquidiocese de Sevilha, Espanha,<br />
e com sua pregação converteu à<br />
Fé Católica o rei visigodo Recaredo.<br />
14. Beata Maria Josefina de Jesus<br />
Crucificado, virgem (†1948). Priora<br />
do Carmelo de Ponti Rossi, em Nápoles,<br />
Itália. Aceitou com alegria várias<br />
enfermidades, oferecendo tudo pelas<br />
almas e sacerdotes.<br />
15. São Zacarias, Papa (†752). Governou<br />
a Igreja com sabedoria e prudência,<br />
freou a invasão dos lombardos,<br />
indicou o justo governo aos francos, do-<br />
Mattis (CC3.0)<br />
24<br />
São Zacarias
––––––––––––––––– * Março * ––––<br />
tou de igrejas os povos germanos e promoveu<br />
a união com a Igreja Oriental.<br />
reclusa numa cela junto ao convento<br />
dos franciscanos, em Tours, França.<br />
16. São Julião de Anazarbus, mártir<br />
(†s. IV). Por se recusar a negar a Fé,<br />
depois de várias torturas, foi fechado<br />
num saco com serpentes e lançado ao<br />
mar, na Cilícia, atual Turquia.<br />
17. II Domingo da Quaresma.<br />
São Patrício, bispo (†461).<br />
Beata Maria Bárbara da Santíssima<br />
Trindade, virgem (†1873).<br />
Nascida em Viena, fundou em Catumbi,<br />
Rio de Janeiro, a Congregação<br />
do Imaculado Coração de Maria.<br />
18. São Cirilo de Jerusalém, bispo<br />
e Doutor da Igreja (†c. 386).<br />
São Frediano, bispo (†c. 588). Natural<br />
da Irlanda, reuniu em Lucca, Itália,<br />
uma comunidade de monges em<br />
torno a si, desviou o curso do Rio Serchio,<br />
tornando mais fértil a terra, e<br />
converteu os lombardos à Fé Católica.<br />
19. São José, esposo da Bem-<br />
-Aventurada Virgem Maria, Padroeiro<br />
da Igreja Universal.<br />
20. São João Nepomuceno, presbítero<br />
e mártir (†1393).<br />
21. Santo Agostinho Zhao Rong,<br />
presbítero e mártir (†1815). Sendo<br />
guarda de cristãos encarcerados, converteu-se<br />
e tornou-se sacerdote. Durante<br />
perseguição em Sichuan, China,<br />
foi preso e morto.<br />
22. Beato Clemente Augusto Graf<br />
von Galen, bispo (†1946). Como Bispo<br />
de Münster, Alemanha, refletiu<br />
diante do povo e do clero a imagem<br />
evangélica do Bom Pastor. Lutou<br />
abertamente, contra os erros do nacional-socialismo<br />
e contra a violação<br />
dos direitos do homem e da Igreja.<br />
23. São Turíbio de Mogrovejo, bispo<br />
(†1606). Nascido na Espanha, foi<br />
eleito Bispo de Lima, no Peru, onde<br />
Domkapitular Gustav (CC3.0)<br />
Beato Clemente Augusto<br />
Graf von Galen<br />
defendeu a Igreja, catequizou os povos<br />
nativos e combateu com sínodos<br />
os abusos no clero da época.<br />
24. III Domingo do Tempo Comum.<br />
São Mac Cairthind, bispo (†s. V).<br />
Governou a diocese de Clogher, Irlanda.<br />
Acredita-se que tenha sido discípulo<br />
de São Patrício.<br />
25. Anunciação do Senhor. Ver página<br />
10.<br />
26. São Pedro de Sebaste, bispo<br />
(†c. 391). Irmão mais novo de São Basílio<br />
Magno, lutou como Bispo de Sebaste<br />
(atual Sivas, Turquia), defendeu eximiamente<br />
a Fé contra a heresia ariana.<br />
27. Beato Peregrino de Falerone,<br />
presbítero (†1232). Um dos primeiros<br />
discípulos de São Francisco de<br />
Assis, que dirigindo-se como peregrino<br />
à Terra Santa, esperando receber<br />
o martírio, não teve seus anseios<br />
realizados, pois suscitou a admiração<br />
dos próprios sarracenos.<br />
28. Beata Joana Maria de Maillé,<br />
viúva (†1414). Após a morte de seu<br />
esposo na guerra, reduzida à miséria<br />
e expulsa de sua própria casa, viveu<br />
29. São Guilherme Tempier, bispo<br />
(†1197). Governou com prudência<br />
e firmeza a diocese de Poitiers, França,<br />
corrigindo os costumes do povo<br />
e dando exemplo irrepreensível de<br />
uma vida íntegra.<br />
30. São Leonardo Murialdo,<br />
presbítero (†1900). Fundou em Turim,<br />
Itália, a Pia Sociedade de São<br />
José, para que as crianças abandonadas<br />
pudessem sentir os efeitos da<br />
Fé e da caridade cristãs.<br />
31. IV Domingo da Quaresma.<br />
São Benjamim, diácono e mártir<br />
(†c. 420). Por insistir em pregar a palavra<br />
de Deus, na Pérsia (atual Iraque),<br />
foi torturado e morto sob o governo<br />
do imperador sassânida Vararanes V.<br />
São Fridolino<br />
Samuel Holanda<br />
25
Hagiografia<br />
São Teófanes<br />
e os peculiares esplendores<br />
da Igreja no Oriente<br />
Pertencendo a uma das mais nobres famílias do Império Bizantino,<br />
Teófanes abandonou todas as suas riquezas e dirigiu-se para um<br />
mosteiro, do qual se tornou abade. Um imperador adepto da seita<br />
dos iconoclastas lançou-o num calabouço, onde permaneceu por dois<br />
anos sofrendo horríveis privações e chicotadas. Depois foi exilado<br />
para a Samotrácia e ali entregou sua bela alma a Deus.<br />
ichel Wolgemut, Wilhelm Pleydenwurff (CC3.0)<br />
T<br />
emos para comentar uma ficha<br />
biográfica a respeito de<br />
São Teófanes, abade, que me<br />
dá a oportunidade, antes mesmo de<br />
entrar na consideração da vida deste<br />
Santo, de analisar a expressão, o<br />
valor simbólico e o efeito que o nome<br />
produz para se considerar o indivíduo.<br />
Um nome que evoca teofania:<br />
a manifestação de Deus<br />
Um homem comum, da vida corrente,<br />
que se chamasse Teófanes poderia<br />
nos dar a impressão, antes de conhecê-lo,<br />
de alguém pertencente ao que<br />
se costuma chamar classe média baixa,<br />
de um jeito extremamente anacrônico<br />
dentro dessa classe, vestido à conservador,<br />
com um colarinho engomado alto<br />
e amarelado, uma gravatinha pequenininha<br />
ensebada, tossindo abundantemente,<br />
com os óculos à meia distância<br />
entre a ponta e o topo do nariz, com<br />
uma vozinha roufenha, magrelinho e<br />
pretensioso. Esse poderia ser, segundo<br />
nossa imaginação, o Sr. Teófanes.<br />
Xilogravura de Constantinopla<br />
26
Para a sensibilidade de certas pessoas,<br />
o nome “Teófanes” tem qualquer<br />
coisa de glacialmente sentencioso,<br />
hirto. Entretanto, o sentido<br />
etimológico da palavra é lindo, porque<br />
teofania é a manifestação de<br />
Deus. Ora, um homem chamado Teófanes<br />
deveria ser uma pessoa maravilhosa,<br />
ter um jeito de Anjo celeste,<br />
herói, um São Miguel Arcanjo, algo<br />
assim. Mas os conceitos variam e os<br />
nomes acabam tomando essa conotação<br />
pejorativa.<br />
Contudo, quando se pensa num<br />
Abade Teófanes, já a coisa muda<br />
completamente. Porque abade é um<br />
título que evoca um homem meio<br />
misterioso, isolado, colocado acima<br />
de seus monges, com pouca comunicação,<br />
em geral, com os outros homens,<br />
e correspondendo à frase que<br />
uma revista de História, a qual li outro<br />
dia, punha nos lábios de Moisés:<br />
“Senhor, fizestes de mim um homem<br />
solitário e poderoso.” É bem a ideia<br />
que faço de um abade: poderoso na<br />
ordem espiritual, mas solitário. Todo<br />
vestido com um grande traje beneditino<br />
preto, com aquelas pregas que<br />
se desdobram, um capuz que vira um<br />
pouquinho para trás, um bastão na<br />
mão e um ar cheio de ideias, de pensamentos,<br />
que fala pouco, mas domina<br />
toda uma comunidade de cenobitas,<br />
todos eles em silêncio ou entoando<br />
o cantochão, em longos corredores<br />
com arcadas regulares, e que<br />
voltando para as celas rezam de novo,<br />
fazem iluminuras e trabalhos de<br />
pesquisas inimagináveis.<br />
O abade mantém na abadia uma<br />
atmosfera de bom gosto, de luta<br />
guerreira, de polêmica e, ao mesmo<br />
tempo, de recolhimento e de silêncio<br />
que dá todo o perfume da Idade Média<br />
e, mais ainda, do antigo monaquismo<br />
do Oriente, mosteiros gregos<br />
situados em montes de nomes fabulosos,<br />
em ilhas do Mediterrâneo onde<br />
os Apóstolos ensinaram, em colinas<br />
da Terra Santa onde Nosso Senhor<br />
fez milagres, etc. Essa é a ideia<br />
que me dá um Teófanes abade, e me<br />
incentiva a conhecer sua biografia.<br />
Membro de uma das<br />
mais nobres famílias do<br />
Império Bizantino<br />
São Teófanes<br />
Teófanes, nascido em Constantinopla,<br />
pertencia a uma das mais nobres<br />
famílias do Império Bizantino. Perdendo<br />
seu pai aos três anos de idade,<br />
foi educado pelo próprio Imperador<br />
Constantino Coprônimo.<br />
Casou muito jovem ainda, praticamente<br />
obrigado, com uma jovem patrícia.<br />
Mas ambos, de comum acordo,<br />
fizeram voto de continência perpétua.<br />
Seu sogro, vindo a descobrir isso mais<br />
tarde, encheu-se de furor, pois desejava<br />
herdeiros que entrassem no gozo da<br />
imensa fortuna do genro. Queixou-se<br />
assim ao imperador e este enviou Teófanes<br />
para Sísico com o título de Intendente<br />
Real dos Trabalhos Públicos<br />
no Helesponto e na Lísia. Aí o Santo<br />
encontrou um monge que o iniciou<br />
nos caminhos da contemplação e Teófanes<br />
abandonou o mundo, recolhendo-se<br />
a um mosteiro, onde veio a ser<br />
abade.<br />
Que coisa linda: um dignatário<br />
da corte imperial de Constantinopla!<br />
Para pensar nisso é preciso<br />
imaginar aqueles basileus, aqueles<br />
imperadores de Constantinopla<br />
hirtos, com aquelas caras de ícones,<br />
todos rodeados de pérolas, com ar<br />
sentencioso, com uma mão que ensina<br />
ou com uma vara toda de marfim,<br />
com uma imagem de ouro de<br />
São Miguel em cima, e olhando para<br />
todos os séculos, imóveis sobre<br />
um fundo de ouro.<br />
Podemos imaginar como era o palácio<br />
imperial em Constantinopla,<br />
junto às margens poéticas do Bósforo<br />
e à Basílica de Santa Sofia, onde<br />
o Imperador Coprônimo educou Teófanes.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
Luis Samuel<br />
Teófanes é um homem puro que<br />
se casa com uma moça pura; e os<br />
dois, coisa ainda mais rara, resolvem<br />
guardar a castidade perfeita.<br />
O Imperador intervém e manda<br />
esse homem para uma espécie de<br />
exílio dourado. Ele vai com um título<br />
meramente administrativo, mas<br />
pomposo – todos os títulos bizantinos<br />
eram pomposos –, para essa região<br />
exercer suas funções. Imaginem<br />
como era uma cidade de província<br />
daquele tempo: pequena, com um<br />
pequeno palácio destinado ao representante<br />
do imperador, com um tronozinho,<br />
sendo a miniatura – mas<br />
que miniatura! – do fausto imperial,<br />
e Teófanes movendo-se dentro daquilo<br />
diante de um povo genuflexo.<br />
Abandona tudo e vai<br />
para o deserto<br />
Entre os que vão falar com Teófanes<br />
aparece um monge vindo de<br />
algum deserto, de onde saiu levando<br />
consigo todos os silêncios daqueles<br />
pores de sol incandescentes, daquelas<br />
montanhas torradas pelo Sol,<br />
ou batidas por um vento tremendo,<br />
daquelas contemplações caracteristicamente<br />
orientais, com aqueles<br />
olhos enormes olhando para um firmamento<br />
lindíssimo e rezando. Esse<br />
monge sai de repente de seu isolamento,<br />
vai para a cidade e encontra<br />
Teófanes.<br />
Pode-se imaginar a conversa dos<br />
dois:<br />
— Teófanes, o que te adianta gozar<br />
essas coisas da Terra? Vejo em<br />
ti que és um homem puro, Deus te<br />
chama para uma pureza maior. Deixaste<br />
as delícias da carne, deixa, ó<br />
Teófanes, os outros deleites, pois<br />
maiores maravilhas te aguardam.<br />
E Teófanes pergunta:<br />
— Pai santo, o que farei?<br />
— Vai comigo ao deserto, onde os<br />
varões amados de Deus se separam<br />
de tudo quanto é do mundo e vivem<br />
exclusivamente na familiaridade do<br />
Senhor.<br />
Então, Teófanes deixa tudo e vai<br />
para o deserto. Isso é ambiente, isso<br />
é vida, isso é história.<br />
Após fazer promessas<br />
de benefícios, o<br />
Imperador o ameaça<br />
Anos depois, quando Leão, o Armênio...<br />
Que lindo nome para um imperador!<br />
Todas essas coisas em Constantinopla<br />
têm um outro jeito. Há uma<br />
coisa mais banal do que um homem<br />
chamado Leão? Há coisa mais comum<br />
do que um homem ser um armênio?<br />
Mas “Leão, o Armênio”, Imperador<br />
de Constantinopla, é uma<br />
coisa que se destaca de uma série<br />
de outras por vários imponderáveis.<br />
O Imperador Leão, o Armênio, que<br />
traz consigo os luxos e os mistérios da<br />
Armênia para o trono de Bizâncio, é<br />
uma coisa muito mais evocativa.<br />
Continua a ficha:<br />
Leão, o Armênio, renovou a perseguição<br />
às santas imagens...<br />
Era a heresia dos iconoclastas,<br />
que quebravam as imagens nas igrejas,<br />
uma forma ancestral de protestantismo<br />
e de progressismo.<br />
...e soube que Teófanes gozava de<br />
alta consideração entre os ortodoxos.<br />
Ortodoxos aqui somos nós, católicos,<br />
porque não tinha ainda havido<br />
o cisma.<br />
Querendo atraí-lo à sua causa,<br />
chamou-o à Constantinopla. Quando<br />
ele ali chegou, recebeu uma carta do<br />
soberano: “Vossas disposições pacíficas<br />
me fazem crer que aqui viestes para<br />
confirmar com vossos votos minhas<br />
opiniões sobre esse problema. Esse,<br />
aliás, é o meio certo de obter meus favores<br />
e de conseguir para vós, vossos<br />
parentes e vossos mosteiros, todas as<br />
graças que estão ao alcance do imperador<br />
conceder...”<br />
Portanto, todas as que existem,<br />
porque o Imperador de Constantinopla<br />
era onipotente.<br />
Se, ao contrário, vos recusardes a<br />
aquiescer comigo, incorrereis em minha<br />
indignação e dela sentireis todo o<br />
peso, vós e vossos amigos.<br />
É bem claro, o Armênio. No meio<br />
de frases amáveis, a coisa é suborno<br />
ou tiro.<br />
Jogado num calabouço<br />
Teófanes, que nunca se intimidara<br />
com promessas ou ameaças, assim<br />
respondeu:<br />
“Idoso e enfermo como estou, tenho<br />
cuidado em não ambicionar as<br />
coisas que desprezei por Jesus Cristo,<br />
em minha juventude, quando me era<br />
fácil usufruir das coisas do mundo.”<br />
Linda resposta. “Você me oferece<br />
o que eu desdenhei quando podia<br />
28
IABI (CC3.0)<br />
Um aspecto da Basílica de Santa Sofia em Constantinopla<br />
gozar? Você pensa em me comprar<br />
com essas coisas, agora que não estou<br />
em idade de gozá-las? Oh!” Vê-<br />
-se o Armênio minguar...<br />
“Quanto ao meu mosteiro e aos<br />
meus amigos, coloco sua sorte nas<br />
mãos de Deus. Quanto ao mais, se<br />
acreditais assustar-me com vossas esperanças<br />
como se assusta uma criança<br />
com as varas, vos enganais. Porque,<br />
embora não tenha forças para<br />
caminhar e esteja sujeito a numerosas<br />
outras enfermidades corporais,<br />
espero que Jesus Cristo me dará coragem<br />
de sofrer pela sua causa todos os<br />
suplícios aos quais poderíeis me condenar.”<br />
Tudo dito, está acabado. Quer dizer:<br />
“Seus subornos não me interessam,<br />
suas ameaças não me fazem recuar.<br />
Está feito seu balanço, ó Leão,<br />
o Armênio.” É um Teófanes, a manifestação<br />
de Deus através da boca de<br />
um homem.<br />
Encolerizado, o imperador enviou<br />
Teófanes a um calabouço, onde o<br />
Santo permaneceu por dois anos, sofrendo<br />
horríveis privações. Chegaram,<br />
um dia, a dar-lhe trezentos golpes de<br />
chicote.<br />
Num velho enfermo, hein!<br />
Saindo da prisão, exilaram-no na<br />
Samotrácia, onde ele morreu a 12 de<br />
março de 817.<br />
Aqui está a história de São Teófanes.<br />
Nós podemos imaginar a Samotrácia<br />
e São Teófanes morrendo. Talvez<br />
embaixo de uma palmeira, ao ar<br />
livre, assistido apenas por um auxiliar.<br />
Mas na hora em que ele morreu,<br />
uma bola de fogo subiu ao céu, e na<br />
cidade tal viram isso e comentaram:<br />
“Morreu Teófanes, o virtuoso...” Ou<br />
algo nessa linha. Seria o desfecho<br />
legendário e simétrico dessa história.<br />
Com isso nos familiarizamos um<br />
pouco com os esplendores peculiares<br />
que a Igreja teve no Oriente. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/3/1971)<br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Símbolo da<br />
santidade,<br />
majestade e<br />
força - II<br />
Percorrendo o périplo que nos<br />
conduz das realidades visíveis<br />
às invisíveis, por meio da<br />
bondade e beleza das criaturas,<br />
chegamos a Deus, Nosso<br />
Senhor. Nada torna a vida tão<br />
agradável e interessante quanto<br />
fazer este tipo de meditação.<br />
Estamos longe de analisar o leão simplesmente<br />
enquanto um animal forte que domina os outros.<br />
Consideramo-lo, isto sim, como um ser de uma<br />
rara beleza, que exprime certos predicados intrínsecos<br />
de sua natureza, entre os quais um determinado tipo de<br />
força e de coragem.<br />
30<br />
“Sala do Reino de Maria”,<br />
São Paulo, Brasil
Força régia a serviço<br />
da majestade<br />
A força possui todas as<br />
características do vigor a<br />
serviço de quem é rei. É<br />
uma força régia, quer dizer,<br />
de quem tem o direito<br />
e a missão de mandar,<br />
possui a nobreza intrínseca<br />
de uma superioridade<br />
de alma inerente ao ser dele,<br />
tem um direito normal a<br />
ocupar os cargos de mando e<br />
deve normalmente ocupar esses<br />
cargos. E por causa disto o<br />
leão exprime a ideia de força régia<br />
a serviço de uma majestade régia<br />
e dominadora. O papel da heráldica<br />
é exatamente pintá-lo de um modo<br />
meio irreal, que exprima o melhor da realidade<br />
dele, de maneira que se percebe mais<br />
facilmente do que num leão de verdade. O<br />
que, aliás, é sempre o papel da arte: desfigurar um pouco<br />
a realidade para obter o melhor da realidade.<br />
O leão é, em última análise, o símbolo da majestade, a<br />
qual inclui, entre outras coisas, a força. É próprio da majestade<br />
ser suprema dentro da ordem e da lei, um ente<br />
supremo que funciona segundo a ordem natural das coisas<br />
e mantém esta ordem. O adequado da lei é ser um<br />
ditame da razão, promulgado pela<br />
autoridade competente; essa é<br />
a definição de lei. O próprio do<br />
rei, que é o autor da lei, é de ser<br />
o auge do bem, o auge da sabedoria,<br />
o auge da justiça e o auge<br />
da força.<br />
O leão tem exatamente isto:<br />
está numa harmonia com toda a<br />
natureza, é uma espécie de obra-<br />
-prima da natureza. E, enquanto<br />
tal, é verdadeiramente régio<br />
porque supremo na boa linha, na<br />
boa ordem; supremo considerado<br />
como tendo uma força que<br />
lhe assegura o exercício da supremacia<br />
que lhe compete.<br />
Um animal ordenador<br />
Brasão de Armas do<br />
Império Austro-Húngaro<br />
conceito de leão. Ele representa<br />
o que há de santo na dignidade<br />
régia. Porque o que há<br />
de santo, de reto conforme<br />
a ordem estabelecida pelo<br />
Criador, de supremo, de<br />
excelente feito por Deus,<br />
o leão representa. De maneira<br />
tal que assim como,<br />
Sodacan (CC3.0)<br />
por exemplo, na heráldica,<br />
temos águias com halos<br />
de santos, nós poderíamos<br />
ter um leão com um halo de<br />
santidade. Pelo mesmo título;<br />
e até a um título mais alto.<br />
O que quer dizer a santidade<br />
da majestade? A majestade<br />
é o poder supremo legítimo, e toda<br />
autoridade legítima enquanto tal é<br />
santa. Quer dizer, foi instituída por Deus<br />
para um fim santo. Posso falar da santidade<br />
de qualquer autoridade: por exemplo,<br />
de um professor dentro da sala de aula. Segundo<br />
a própria expressão da palavra “santo”, a autoridade<br />
do professor sobre os alunos decorre da ordem natural<br />
estabelecida por Deus. E enquanto querida pelo<br />
Criador para um fim bom aquela função é santa. Nesse<br />
sentido a função de rei é ainda mais santa, porque mais<br />
alta, mais nobre; é a mais alta de todas na esfera temporal,<br />
portanto enquanto tal ela é a mais santa de todas.<br />
Mathias Appel (CC3.0)<br />
De onde, então, existe uma<br />
ideia de santidade ligada ao<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
Luis Samuel<br />
O resultado disso é que se eu souber fazer uma boa<br />
interpretação do leão, nele deverei ver a majestade santa,<br />
portanto sabedoria santa pelo discernimento com que<br />
ele cumpre o seu papel; força santa porque colocada a<br />
serviço de quem precisa mandar e para o estabelecimento<br />
da ordem que deve reinar. O leão é um animal ordenador.<br />
O contrário de um chacal, por exemplo, que tira<br />
os cadáveres da tumba, os devora e deixa toda a sujeira<br />
sobre a terra.<br />
Quem considera assim a figura de leão fica conhecendo<br />
o que é santidade, majestade e força.<br />
A convergência da teoria com o concreto<br />
proporciona o conhecimento pleno<br />
32<br />
São Luis IX - Igreja Nossa Senhora<br />
da Glória, Juiz de Fora, Brasil<br />
Alguém poderia objetar que esse é um modo medíocre<br />
de conhecer esses predicados. Melhor seria tomar<br />
um compêndio de Moral católica ou uma enciclopédia e<br />
ver a definição de majestade, santidade e força. Para que<br />
toda essa explicação sobre o leão? A definição abstrata é<br />
muito mais enriquecedora do que a noção de leão.<br />
Eu digo: é preciso ter as duas coisas. Para um completo<br />
conhecimento do que é a santidade, a majestade<br />
e a força é necessário conhecer a definição e depois ir<br />
ao leão e verificar como essa definição se aplica a ele. A<br />
meu ver, quem se contenta com apenas uma dessas duas<br />
formas de conhecimento faz o papel de um homem que<br />
diz o seguinte: “Eu posso perfeitamente vender um olho<br />
para um transplante, porque com um olho só vejo bem.<br />
Basta-me ver com um olho só.”<br />
Ora, embora se veja com um olho, a visão completa<br />
se obtém pela conjugação dos dois olhos. É aí que a noção<br />
completa da coisa se estabelece. A convergência da<br />
noção teórica com a coisa concreta bem analisada é que<br />
dá o conhecimento pleno. Nós não podemos nos contentar<br />
com uma coisa ou com outra. O espírito integralmente<br />
formado quer as duas coisas.<br />
Um homem que tenha tido a oportunidade de ir a um<br />
parque de leões e analisar tal atributo em um leão, tal<br />
predicado em outro, tal atitude num terceiro, e depois<br />
considerar o leão heráldico como reunindo todas as características<br />
vistas nos vários leões, e só então conferir<br />
com a noção consignada no dicionário, ficará com a ideia<br />
completa e íntegra de santidade, majestade e força.<br />
O Leão de Judá<br />
Vendo as coisas assim, uma pessoa com a mentalidade<br />
bem constituída ficaria com a alma cheia de cogitações.<br />
Ao invés de pôr um ponto final no processo intelectual,<br />
começaria a levantar uma pergunta: Se a santidade<br />
e a majestade são qualidades tão belas, a santidade de
uma função é algo tão bonito, se é tão esplêndida a força<br />
quando colocada a serviço da majestade, não haverá outros<br />
seres nos quais eu possa considerar, para nutrimento<br />
de minha alma, maior majestade, maior força, maior santidade?<br />
Minha alma já se extasia vendo esses atributos<br />
simbolizados no leão, mas eu quisera ver mais.<br />
Vem, então, a conclusão: no homem precisa haver<br />
mais majestade. Devem existir homens que me deem essa<br />
ideia de um modo mais perfeito do que o leão. Que<br />
homens terão sido?<br />
A pessoa passará, então, a estudar os homens que foram<br />
majestosos na Terra como, por exemplo, Carlos<br />
Magno, São Luís IX. E, de majestade em majestade, chegará<br />
Àquele que a Escritura qualificou de Leão de Judá:<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Contempla o Santo Sudário de Turim e diz: “Nenhuma<br />
majestade realizada por um filho de homem atingiu a<br />
daquele infortúnio, daquela dor, daquela certeza, daquela<br />
esperança e daquela recusa. Aquela é a majestade das<br />
majestades, a mais alta das majestades que a face humana<br />
possa exprimir!”<br />
Então, na sua peregrinação pelas majestades, essa<br />
pessoa vai estudar a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
no Evangelho. E, após ter considerado a própria humanidade<br />
do Redentor, dirá: “Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
na sua humanidade, é Corpo e Alma. Entretanto, eu<br />
vejo apenas os reflexos da Alma no Corpo, não vejo a Alma.<br />
Que feliz seria eu se contemplasse a Alma d’Ele diretamente!<br />
Como veria melhor a majestade e a santidade<br />
d’Ele se eu pudesse ver a Alma d’Ele, e não apenas a<br />
sua face divina!”<br />
E depois dirá mais ainda: “A Alma d’Ele é humana, e<br />
tudo quanto é humano é limitado. Deve haver algo infinitamente<br />
maior do que a Alma humana d’Ele, e que<br />
tem uma majestade, uma santidade e uma força que, estas<br />
sim, concebidas em último grau, enchem completamente<br />
a minha alma. Para contemplá-las eu serei capaz<br />
de todos os esforços, todas as renúncias, todos os sacrifícios.<br />
É a natureza divina d’Ele. Porque Deus é infinito,<br />
supremo, perfeito, Ele tem tudo. Há, portanto, um Ser<br />
incriado que foi o ponto de partida de todas as coisas,<br />
e que possui num grau infinito aquilo que eu comecei a<br />
considerar no leão de um modo finito.”<br />
Père Igor (CC3.0)<br />
Meditação com seu périplo total<br />
Neste ponto os olhos se voltam novamente para o leão<br />
e a pessoa passa a ver nele, em todos os seus movimentos,<br />
em toda a sua sublimidade, reflexos criados da natureza<br />
divina; um espelho de perfeições inexcogitáveis e infinitas<br />
de Deus das quais, entretanto, a cada movimento<br />
do leão pode-se ter uma certa ideia. Porque, ao contem-<br />
Imperador Carlos Magno - Igreja<br />
Saint-Géraud, Cantal, França<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
plar aquilo e perguntar-se como seria em ponto infinito,<br />
fica no fundo da alma algo de indizível, objeto de uma<br />
meditação propriamente religiosa e que lhe dá a verdadeira<br />
apetência do Céu.<br />
Esta é a fase religiosa e final da meditação. É um tipo<br />
de meditação caracteristicamente da quarta via de São<br />
Tomás de Aquino 1 que, através de um ente criado, nos<br />
eleva até o Céu, mas depois nos faz voltar aos entes criados<br />
para ir degustando-os como prelibações do Paraíso,<br />
ocasiões de sentirmos um antegozo do Céu. Assim levamos<br />
a vida cercados de coisas palpáveis e visíveis, sempre<br />
considerando as coisas impalpáveis, supremas e invisíveis<br />
que elas representam.<br />
Então eu tenho o leão, acima dele o rei, acima do<br />
rei os Anjos, acima dos Anjos Nossa Senhora, infinitamente<br />
acima de Nossa Senhora, Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, e em Nosso Senhor Jesus Cristo tenho o próprio<br />
Deus.<br />
Quer dizer, por esta forma eu faço todo um circuito. E<br />
compreendo perfeitamente que no Reino de Maria houvesse,<br />
por exemplo, uma igreja consagrada a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, onde existisse, quiçá do lado de fora,<br />
na praça pública, um leão heráldico, escultura talvez fundida<br />
em ouro, na base da qual estivesse escrito “Imagem<br />
do Leão de Judá”. Sei que essa escultura deixaria muita<br />
gente furiosa, mas isso seria exatamente fazer uma meditação<br />
com seu périplo total.<br />
A graça de ver os imponderáveis da Criação<br />
É próprio à natureza humana desejar levar<br />
uma vida agradável sobre a Terra. Eu lhes<br />
posso garantir que nada, no sentido mais estrito<br />
da palavra, torna a vida tão agradável<br />
e interessante quanto vivê-la assim. Um<br />
homem que não vive desse modo está para<br />
quem vive pior do que um cego em relação a<br />
quem enxerga normalmente. Mas muito pior,<br />
não há comparação.<br />
Poderíamos encerrar estas considerações<br />
com a seguinte súplica a Nossa Senhora:<br />
Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito<br />
Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis<br />
da Criação, de me enlevar por eles e<br />
de ser impelido assim, por um amor desinteressado,<br />
à contemplação das perfeições que<br />
a alma humana possui pela natureza e pela<br />
graça.<br />
Fazei-me subir dessa consideração à da<br />
natureza angélica, puramente espiritual e,<br />
por fim, à de vosso Divino Filho que na sua<br />
humanidade santíssima é o ápice e a síntese<br />
de toda a Criação. Fazei-me em seguida, por<br />
um voo ainda mais possante de desinteresse<br />
e enlevo, fixar a minha mente na consideração<br />
da própria essência divina, da qual toda a<br />
Criação é imagem ou semelhança, de maneira<br />
que, analisando depois as criaturas, possa<br />
antegozar o Céu, preparando-me assim para<br />
entrar nele e lá Vos louvar por toda a eternidade.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 5/1/1973)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1970<br />
1) Cf. Suma Teológica I, q. 2, a. 3.<br />
34
The Yorck Project (CC3.0)<br />
A Coroação da Virgem - Museu do Louvre, Paris, França<br />
35
Marcus Ramos<br />
Consorte da Sede da Sabedoria<br />
e pai do Leão de Judá<br />
Para se ter alguma noção do semblante de São José seria preciso deduzir, à maneira de suposição, o<br />
caráter de um homem que esteve à altura de ser o pai d’Aquele cuja Sagrada Face está estampada<br />
no Santo Sudário de Turim. Quer dizer, o homem que foi o educador, o guia, o protetor do Senhor<br />
daquele rosto impresso no Sudário; um homem da mesma linhagem, parente e esposo da Mãe d’Ele.<br />
Conceber algo menor do que isso é não ter ideia da extraordinária figura de São José, modelo de fisionomia<br />
sapiencial porque consorte da Sede da Sabedoria, do Espelho da Justiça, Maria Santíssima. Modelo<br />
de fortaleza, porque pai do Leão de Judá, Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
A este verdadeiro São José devemos elevar nossas preces, rogando-lhe interceda por nós junto à Virgem<br />
Santíssima e a seu Divino Filho, e nos alcance a graça de o imitarmos nas suas excelsas virtudes.<br />
(Extraído de conferência de 18/3/1967)