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numero 20 UM ELOGIO AO REBELDE completo

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RENZO NOVATORE<br />

<strong>UM</strong> <strong>ELOGIO</strong> <strong>AO</strong> <strong>REBELDE</strong><br />

ÍNDICE<br />

1. Renzo Novatore - Enzo Martucci<br />

2. Renzo Novatore foi assassinado - G. Romiti<br />

3. No segundo aniversário da morte de renzo novatore – Severino di Giovanni<br />

4. Elogio ao rebelde – Textos Subterrâneos<br />

5. O temperamento anarquista no turbilhão da história – Renzo Novatore<br />

6. Flores selvagens – Renzo Novatore


1. RENZO NOVATORE<br />

O anarquismo é o esforço heróico que o indivíduo realiza para se libertar de todos os entraves<br />

que oprimem o seu espírito e o seu corpo – para destruir todas as leis, religiões, morais -, para reagir<br />

contra a baixeza conformista e servil das multidões abúlicas e sem vigor – para viver intensamente a<br />

sua vida para lá do bem e do mal. Na espontaneidade inflamada de um sul tropical ou de uma grécia<br />

embriagada de Dionísio e de Afrodite.<br />

Este esforço só é conseguido por poucos, um pequeno grupo de malditos que persegue e<br />

condena a humanidade repugnante das ovelhas e dos pastores. É por isto que o anarquismo é um<br />

sentimento aristocrático, irracional e anti-histórico.<br />

Se este sentimento, já abafado pelo peso dos milênios na natureza de alguns – se este<br />

sentimento se revelasse numa maioria, seguir-se-ia a morte dos deuses, a luta devoradora contras as<br />

forças de um misticismo tirânico, a anomia universal no seio da qual os indivíduos, livres de qualquer<br />

obstáculo espiritual e material, desenvolveriam novas relações, de todas as maneiras e segundo as<br />

necessidades, instintos e ideias, manifestando-se em diferentes instantes. Não existiria mais lei, regra,<br />

princípio, que todos devessem respeitar e o equilíbrio resultaria da capacidade de todos os homens se<br />

defenderem e conservarem a sua liberdade pessoal. Mas a maioria está imobilizada na triste cama de<br />

Procusto, no sono estupidificante do escravagismo.<br />

A maioria só acordará tardiamente ou talvez não acorde nunca. Apesar de todos os esforços<br />

daqueles que agitam a tocha. E assim o anarquismo continua, na fuga do tempo, como o poeta<br />

titânico dos “anormais” e dos “insatisfeitos”, como a luta desesperada da minoria e dos raros qie, à<br />

existência pacífica e sem cor do resignado, preferem a agitação tempestuosa, o espasmo agudo, a<br />

batalha insensata contra a totalidade, a alegria amarga da conquista conseguida pela audácia – o<br />

prazer divino do carpe diem e o beijo gelado da morte. E mortos, ficam mais vivos que nunca.<br />

Porque a imortalidade os acolhe no seu seio.<br />

***<br />

Estas ideias, Renzo Novatore e eu, defendíamo-las em 19<strong>20</strong> na revista Iconoclasta, contra os<br />

pontífices solenes da ordem atual, cristã e burguesa, e contra os profetas inspirados na ordem futura<br />

apresentada sob o aspecto de um leviatã onde o rebanho organizado e os seus pequenos santos<br />

abafam o indivíduo em nome da coletividade. Os profetas vermelhos e negros cobriram-nos de<br />

injúrias. Os pontífices burgueses “retiraram-nos” da circulação. Eu fui preso. Abele Riziere Ferrari,<br />

que assinava os seus textos com o pseudonimo Renzo Novatore, foi morto numa luta com os esbirros<br />

governamentais. Com ele desapareceu um artista genial, um jovem e grande rebelde – um indomável<br />

que fez sua a sentença remis non velis. Soberba, estrondosa, maravilhosa, como uma cascada<br />

incendiando-se sob o abraço louco do sol, a sua poesia – rica de imagens e de sentimentos, de cor e<br />

de paixão – exprimia as necessidades da sua natureza vulcânica, a sua sede de sensações violentas, de<br />

orgias loucas, de sublimações espirituais, o seu apetite intenso pela vida. “Eu sou um poeta estranho e<br />

maldito – escrevia – tudo o que é anormal e perverso suscita em mim um fascínio doentio. O meu<br />

espírito, borboleta venenosa de aparências divinas, é atrído pelos perfumes pecaminosos emanados<br />

pelas flores do mal...”<br />

Queria ser “a águia de todos os cumes e o mergulhador de todos os abismos.” Como<br />

Nietzsche, como Baudelaire, como D´annunzio, sentia a necessidade de aceitar toda a vida na sua rica<br />

diversidade, sem exclusão nem limitação. Sentia que para viver verdadeiramente, é conveniente viver<br />

pelo pensamento e pelos sentidos – usufruir dos prazeres do espírito, mas também dos da carne – e de<br />

usufruí-los todos ao mais alto grau. Compreendia que, de acordo com o momento, o homem deve<br />

fazer de si um deus ou um bruto, porque todas as experiências têm o mesmo valor, no sentido que são<br />

todas necessárias para nos fazerem provar as diversas emoções oferecidas pela existência.<br />

Irracional, seguia o seu próprio instinto, sabendo bem que este, como qualquer outra tendência<br />

natural, empurra o indivíduo para o seu verdadeiro interesse. Ria das teorias áridas que são destiladas<br />

2<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


pela razão fria e que querem modificar, corrigir e ordenar a vida sem outro resultado que empobrecêla<br />

e torná-la feia.<br />

Renzo Novatore declarava a alto e bom som que só libertando-se de todos os preconceitos,<br />

dogmas e regras que o rebanho criou para destruir a independência do pensamento e da ação<br />

individual, é que o eu consegue as condições nas quais se revela criador soberbo, original. A<br />

sociedade qualifica de delito a revolta do forte que não se resigna a submeter-se aos entraves e às<br />

mentiras cegamente aceitas pelas massas. Mas é justamente esse crime que o individualista deve<br />

perpetrar para viver a sua vida, imediata e completamente, ultrapassando todas as barreiras,<br />

quebrando todas as correntes, conquistando todas as alegrias às quais o seu coração aspira.<br />

“A minha alma é um templo sacrílego onde soam bem alto os sinos do pecado e do crime, com<br />

ênfases voluptuosos e perversos de revolta e desespero”. Empurrado pela chama que inflamava o seu<br />

sangue, insurgiu-se heroicamente e foi morto perto de Gênova, em 1922, com 33 anos. Caiu, olhos<br />

cheios da visão fantástica da bacante divina com seios elevados e com cabelos ao vento. Apenas<br />

deixou duas pérolas poéticas: Al di sopra dell´arco (por cima do arco) e Verso il nullo creatore (para o<br />

nada criador). Os seus escritos perderam-se. Ninguém fala mais dele. O anarquismo bem pensante<br />

tem vergonha do rejeitado.<br />

Enzo Martucci<br />

L´Unique, Novembro de 1946<br />

2. RENZO NOVATORE FOI ASSASSINADO<br />

Iconoclastas, irmãos na alma e na dor, o nosso Renzo caiu, derrotado pelo furacão. A notícia<br />

chegou-nos com poucos detalhes, mas, apesar disso, dilacera-nos o espírito e o coração. Mesmo os<br />

iconoclastas não ficam calados na dor. Somos os eternos hereges, os negadores de tudo, mas na luta<br />

que eleva a paixão e que tudo quer esmagar e destruir, temos irmãos dignos de todas as angústias e de<br />

todo o bater do nosso coração.<br />

Amávamos o Renzo, porque era uma mente fogosa e inteligente, que tinha o “demônio” do<br />

gênio e porque era uma alma grande, boa, audaz e generosa.<br />

Vivia há alguns meses à “margem” desta sociedade abjeta e nojenta… Deixou de o fazer:<br />

desapareceu: incendiou a alma no seu Ideal.<br />

Nós que não temos bandeiras para dobrar, nós que não temos jardins onde colher flores para<br />

espalhar pelo seu corpo, que nos foi devolvido inanimado por uma qualquer mão assassina, não<br />

somos capazes de pronunciar a nossa dor agonizante, porque é demasiado profunda.<br />

Aquela dor que ele amava por não ser covarde.<br />

G. Romiti<br />

Il Proletario, 12 de dezembro de 1922<br />

3. NO SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE RENZO NOVATORE<br />

… com o rochedo,<br />

o tempestuoso furacão<br />

e as vagas do oceano.<br />

Era o cervo inalcançável, a sublime voz anunciadora, o grito precursor, o centauro arauto da<br />

rebelião, da força pensadora hercúlea.<br />

Magnífico criador de beleza e possuidor do delirante amor supremo.<br />

Ele, Renzo Novatore, o tribuno provocador da ação e o sonhador da poesia demolidora do<br />

grotesco, da funda que ataca a injúria e as expressões verbais onanísticas.<br />

3<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


Sempre à ação, pela ação, abrindo caminho através da luta, com esforços titânicos, e<br />

alcançando os cumes cantando a sua vitória com uma violência lírica, superando de forma valorosa a<br />

exaustão.<br />

E caminhando, forte e belo, à luz do amanhecer que chega, beijado pelo nascente Febo e pelo<br />

amplo manto azul, entre as selvas profusas de maravilhosas conquistas, para ele tão caras, tocado<br />

pelo verde inexplorado, pioneiro da vitória.<br />

Sem titubear, ultrapassava os seus obstáculos com ligeireza; com perigo e cheio de beleza,<br />

lutava, alcançando a sua meta sem cansaço, ocupando vivazmente o espaço reservado aos homens<br />

livres.<br />

Porque ele era livre,<br />

À margem dos foras-da-lei.<br />

Com a natureza que o criou.<br />

À natureza se dava.<br />

Prazenteiramente.<br />

Recebendo dela os beijos que abundantemente lhe dava.<br />

E desses beijos sugava a melhor parte, da qual extraía força para a luta quotidiana.<br />

Ele.<br />

O caminhante subversor da demagogia vã.<br />

O poeta da ação libertária vitoriosa.<br />

Vitorioso também na derrota, porque ao cair sabia golpear antes de contrair os nervos<br />

quebrados.<br />

E quando tudo o que diz respeito à vida se torna um deserto, e bate as asas por vezes branca<br />

como a neve e outras vezes avermelhada como o sangue, que é tudo: pena, amor e glória, então –<br />

como a flor do vento, que desaparece, cresce e é soberana da criação – ergue-se um grito.<br />

O grito que convida à rebelião.<br />

O grito do poeta vitorioso.<br />

O grito imperial do artista aristocrático da ação.<br />

O grito de Renzo Novatore.<br />

Mas como o Outono e a Natureza, que se monda lentamente preparando-se para o longo<br />

repouso, triste e gélido, e que sustém a luta dos filhos do sol, enche a sua exuberante e destemida<br />

juventude de nostalgia.<br />

E entregando-se à corrida vertiginosa, invocando a vinda de novas lutas.<br />

Forçou a natureza.<br />

Que não lhe foi surda.<br />

E que lhe concedeu tudo.<br />

E a luta veio.<br />

Mas foi uma luta outonal, fustigada por um vento gélido.<br />

Mas ele a quis, enfrentou-a.<br />

Heroicamente.<br />

Até que caiu como porta-estandarte de uma nova vida, procurando manter bem alta a sua<br />

chama.<br />

Cai e, num último esforço, derrotou o Outono amarelo fustigado por um vento gélido.<br />

E com a morte conquistou a sua última vitória.<br />

Cala-se a sua lira rebelde e o grito percursor saciou mais uma vez o nosso sentir elevado de<br />

sua poesia.<br />

De Renzo Novatore, o Hércules imolado pela ação libertária.<br />

Severino di Giovanni<br />

4<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


L´Avvenire, 5 de dezembro de 1924<br />

4. <strong>UM</strong> <strong>ELOGIO</strong> <strong>AO</strong> <strong>REBELDE</strong><br />

“O tipo do criminoso é o tipo do homem forte colocado em condições desfavoráveis,<br />

um homem forte posto enfermo. O que lhe falta é a selva virgem, uma natureza e uma<br />

forma de existir mais livres e perigosas, nas quais seja legítimo tudo o que no instinto<br />

do homem forte é a arma de ataque e de defesa. As suas virtudes foram proscritas pela<br />

sociedade: os seus instintos mais enérgicos, que lhe são inatos, misturam-se<br />

imediatamente com os efeitos depressivos, com a suspeita, o medo, a desonra. Mas esta<br />

é quase a fórmula da degeneração fisiológica. Quem tem de fazer às escondidas, com<br />

uma tensão, uma previsão, uma angústia prolongadas; tudo aquilo que melhor pode<br />

fazer, torna-se forçosamente anêmico; e como a única colheita que obtém dos seus<br />

instintos é sempre perigo, perseguição, calamidades, também o seu sentimento se vira<br />

contra esses instintos – sente-os como uma fatalidade. É assim na nossa sociedade, na<br />

nossa domesticada, medíocre, castrada sociedade onde um homem vindo da natureza,<br />

chegado das montanhas ou das aventuras do mar degenera necessariamente em<br />

criminoso.”<br />

Friedrich Nietzsche, O Crepúsculo dos ídolos<br />

O proscrito, o marginal, o criminoso, o anarquista, adjetivos que não tendo o mesmo<br />

significado se podem muitas vezes conjugar na vida de um indivíduo como retalhos da sua história. O<br />

rebelde é, muitas vezes, visto como uma figura monstruosa, desenquadrada da realidade existente,<br />

que é jogada para o lado, repudiada, apartada do corpo social para que possa ser olvidada. A sua<br />

marginalidade advém de uma não conformação, uma impossibilidade de ser arrebanhado pela massa<br />

que compõe o mundo civilizado. E se alguma vez ele se atreve a entrar nesse campo social,<br />

conformando-se, logo sente o mal-estar que este lhe causa, principalmente porque é um inadaptado,<br />

um indivíduo pleno e único.<br />

Nietzsche nunca conheceu Abele Rizieri Ferrari, mas poderia ter-se baseado nele quando<br />

definiu o “tipo do criminoso”. Ou talvez tenha sido precisamente a definição que Nietzsche dá do<br />

indivíduo desajustado que tenha ajudado a traçar a linha pela qual o poeta anarquista, conhecido<br />

como Renzo Novatore, decidiu viver sua vida. Uma vida plena de um indivíduo pleno. Uma vida<br />

trágica de um indivíduo trágico. A própria tragédia de Abele Rizieri Ferrari poderá ter sido tramada<br />

pelo fatum das palavras iconoclastas e corrosivas dos cantores do indivíduo livre, destruidor de<br />

fantasmas e deicida. A influência que as palavras poderosas de Nietzsche e Stirner tiveram no sentir<br />

do anarquista são notáveis e encontra-se espelhada na magnífica prosa demolidora de Abele Rizieri<br />

Ferrari, assim como nos fatos conhecidos da sua vida.<br />

Abele Rizieri Ferrari foi um poeta trágico, e o seu caminho fez-se através de escarpas<br />

demasiado íngremes para que quaquer um as pudesse escalar. O seu objetivo foi sempre a sublime<br />

visão dos cumes, o olhar da águia que lá do alto observa com argúcia a sua presa. É nas alturas que,<br />

como Zarathustra, o poeta se isola e se e individualiza das formigas que lá por baixo se movimentam<br />

num frenesim tresloucado. E aí ele prepara o seu ataque, respirando o ar limpo e puro dos cumes,<br />

longe da civilização pestilenta e nauseabunda. O ataque feroz contra a sociedade putrefacta, a que,<br />

nas palavras de Nietzsche, o põe enfermo. E encontra a sua convalescença na destruição dessa<br />

sociedade da gente baixa, pobre de espírito e sem nobreza. Por isso ataca fulgurantemente, lá desde o<br />

alto das montanhas banhadas pelo sol, com as suas garras afiadas, num tudo ou nada cheio de<br />

coragem e ardor. E a moral mesquinha da arraia-miúda não consegue conceber que esse ataque<br />

provém de uma necessidade vital de expurgação de um espírito corrompido pelas suas normas e<br />

costumes, defendendo-se com a sua mesquinhez e os seus adjetivos pejorativos: “criminoso”,<br />

5<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


“marginal”, “anarquista”, terrorista”.<br />

Para aquele que decidiu viver a vida para si e por si, para o individualista, nada é mais<br />

exasperante do que o burburinho da multidão que em uníssono aponta o dedo, atitude mentecapta<br />

dessa moral de rebanho dos indiferenciados. Onde a solidão cessa, começa a praça pública; e onde<br />

começa a praça pública, começa também o alarido dos grandes atores e o zumbido das moscas<br />

venenosas. Veneno moralista que é cuspido e que contagia todas essas cabeças amorfas, que, como<br />

marionetas, se deixam manipular pela opinião pública. “Criminoso”, “marginal”, “anarquista”,<br />

“terrorista”, repetidos vezes sem conta até a exaustão, em tom monocórdico, logo penetram nas<br />

mentes mecanizadas da massa que interioriza as palavras dos fazedores de opinião e as assume como<br />

verdade. É então que o individualista, o rebelde, decide seguir o conselho de zarathustra: Foge, meu<br />

amigo, para a tua solidão, lá para onde sopra um ar áspero e forte. O teu destino não é ser enxota<br />

moscas. E novamente repudiado, volta a subir aos cumes. Mas rejeitando tornar-se um anacoreta,<br />

rechaçando qualquer tipo de ascetismo e de conformismo, ele prepara uma nova descida, um novo<br />

ataque sem escrúpulos contra todo o tipo de moral, contra os fantasmas libertados pelo corpo social.<br />

E é na solidão das montanhas de Reggio Emilia que Abele Rizieri Ferrari escreve o seu Poema<br />

do Mal, perseguido pela plebe ávida de sangue, condenado à morte por simplesmente se ter negado a<br />

seguir o caminho traçado à juventude da sua época; caminhar pelas trincheiras lamacentas,<br />

empapadas de sangue e tripas, dos campos de morte da grande guerra, empunhando a bandeira do seu<br />

país na mão esquerda e o fuzil na direita.<br />

Morrer pra quê, se a vida era bela? Se tudo ao meu redor me sorria?<br />

Nessas poucas palavras se resume a paixão pela vida que este poeta apátrida, cantor do seu ego<br />

e da sua vontade, sente, num pulular de sentimentos extremos, tão extremos quanto foi a sua vida. Ao<br />

recordar o seu amigo Bruno Filippi, imolado pelo fogo da sua paixão, ele descreve-se também a si<br />

mesmo, poeta que arreigado aos abismos da cor procura elevar-se até ao infinito do Nada. Desejos de<br />

carnes jovens ávidas de prazer, grito do espírito desejoso de uma liberdade sem limites, de loucos<br />

vôos da alma através do inexplorado e longínquo Desconhecido; de uivos e de ferozes blasfêmias do<br />

nosso pensamento galopante e vagabundo, golpeando os muros mais misteriosos da eternidade com<br />

cantos triunfais e dionisíacos de uma Vida vislumbrada através do delírio de um sonho: um sonho<br />

composto de um Tudo, disperso e vagueando num Nada. E no Nada espera-nos a Morte. Apenas a<br />

dor nos abre janelas para o Belo, apenas a dor está prenhe de Arte, e apenas o seu parto doloroso é<br />

possível de gerar o poema do poeta ou o crime do rebelde. Duas das mais altas manifestações do<br />

sentimento agudo de estar vivo. E Abele Rizieri Ferrari tinha esse conhecimento profundo da vida:<br />

não se pode ser águia se não se é mergulhador. Não se pode pairar sobre os cumes quando se é<br />

incapaz de ir até as profundezas.<br />

Também por isso o rebelde se insurge contra a Morte inevitável, desafiando-a até ao limite. A<br />

sua sede de vida é insaciável, e para a atenuar nas nascentes mais puras e cristalinas, onde poucos<br />

homens ousam beber, ele arrisca tudo, pois só assim consegue saborear os prazenteiros e suculentos<br />

frutos da ventura que crescem nas margens das torrentes mais bravias. Só assim ele pode roubar à<br />

morte mais e mais vida, até que esta o ceife irreversivelmente. Assim foi o percurso de muitos<br />

rebeldes que jogaram a vida para sempre, sem medo que a morte estivesse à espreita, rebeldes a quem<br />

Abele Rizieri Ferrari prestou homenagem através das palavras e dos atos, até que a morte um dia foi<br />

mais astuta que ele. E é essa a sua tragédia, o destino traçado do Herói que tantas vezes enalteceu. O<br />

herói da Vida vai em direção à Morte acompanhado pela marcha tragicamente triunfal da dinamite e<br />

a cabeça cingida por flores.<br />

Mas nesse caminho ele vai-se deparando com os fantasmas gerados pela covardia e pela<br />

mesquinhez da sociedade. Eles são o Estado, a Religião, Deus e o Diabo, a Lei, a Humanidade, a<br />

Família e a Pátria, e tudo o mais que a mente humana consiga imaginar para se deixar amarrar. Mas<br />

como pode o rebelde, que não tem medo do fantasma da morte, quiçá a única assombração real, ter<br />

medo de tais ficções da idolatria humana? Ele que não quer nem se deixa submeter a nenhuma<br />

vontade que não a sua. Quando eles me viram avançar, com audácia, à conquista da minha vida,<br />

6<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


armado com toda a minha força sem escrúpulos, puseram diante do meu olhar ávido todos os seus<br />

fantasmas ridículos e insanos. E na pegada de Stirner, Abele Rizieri Ferrari aponta as suas armas, a<br />

caneta e a Browning, contra todos os fantasmas com que a sociedade o tenta amedrontar, afirmandose<br />

assassino de fantasmas.<br />

É essa a maior obra do verdadeiro indivíduo, a construção de si, sem se deixar iludir e<br />

subjugar pelos artifícios dos prestidigitadores sociais que conseguem fazer crer que tais Deus, o<br />

Estado ou a Pátria existem realmente, e não são meras construções ou ilusões da mente humana. O<br />

indivíduo que se constrói a si próprio, apesar de todo o determinismo social a que está sujeito, vai<br />

pondo sempre em questão todos os fundamentos da sua construção para assim se solidificar à medida<br />

que vai se edificando. É algo que oferece a si próprio. E é nesse sentido que ele se distingue da massa<br />

e se individualiza; ele tem uma opinião própria e atua em conformidade com o seu pensamento.<br />

O seu pensamento é único, pois a sua unicidade é a única propriedade do indivíduo que jamais<br />

poderá ser alienada. E é por isso que qualquer teoria social radical, qualquer ideologia, por mais<br />

apelativa e revolucionária que possa parecer, mesmo que enfeitada com uma série de visões<br />

fantásticas de um porvir de paz, igualdade e fraternidade, são rechaçadas pelo Único, senhor de si<br />

mesmo e de sua vontade. Ele não se deixa tentar pelo fantasma do socialismo, seja utópico ou<br />

científico, libertário ou marxista. A sua individualidade está acima de qualquer ideal, por isso não se<br />

subjuga a qualquer visão utópica de uma sociedade livre e igualitária. Sonho esse que se encontra<br />

num além, sempre num além, como o sonho milenarista dos cristãos, o reino dos céus de Cristo. E<br />

por ele jamais se sacrificará. Não! Somente por si, somente para alimentar o seu ego ele luta, nunca<br />

por uma visão abstrata de um ideal, mais um fantasma a assombrar a cabeça dos pobres lunáticos.<br />

Abele Rizieri Ferrari desiludiu-se cedo na sua vida com essa visão de um mundo harmônico<br />

sonhado pelos poetas românticos do anarquismo. Nas palavras de Georges Palante, ele tornou-se num<br />

pessimista social. A sociedade per se é opressiva para o próprio indivíduo, seja qual for a sua forma e<br />

condição. O anarquismo, enquanto forma de organização social, baseia-se num otimismo em relação<br />

ao desenvolvimento moral do ser humano que uma visão realista da própria sociedade facilmente<br />

destrói. E essa visão idílica que o anarquismo oferece é, para Alberto Rizieri Ferrari, uma falácia.<br />

Para além de sua total descrença na massa de gente em fúria, sempre à procura de novos senhores e<br />

ídolos, derrubando uns para entronar outros, e em qualquer percepção de revolução social, que segue<br />

a rota dos astros de retorno periódico ao mesmo ponto orbital, Abele Rizieri Ferrari não acredita<br />

também na anarquia como forma de realização social. A anarquia é, para mim, um meio para chegar<br />

à realização do indivíduo; não o contrário. Se assim fosse, a anarquia também seria um fantasma.<br />

Fantasma esse contra o qual se revoltaria. A anarquia nunca poderia ser uma forma a ser imposta<br />

socialmente, a sua cristalização tenderia para a construção de uma sociedade conservadora na qual<br />

iria novamente surgir o rebelde na tentativa de a destruir. A concepção da anarquia por parte de Abele<br />

Rizieri Ferrari é, assim, uma concepção ética, sua única riqueza invulnerável.<br />

Max Stirner sintetiza-o bem: a revolução exige a criação de instituições, a revolta exige que o<br />

indivíduo se eleve ou se rebele. E a ética anarquista de Abele Rizieri Ferrari incita-o à revolta contra<br />

as formas sociais que o oprimem enquanto indivíduo. Daí a sua rejeição da anarquia como forma de<br />

organização social. Se os fracos sonham a anarquia como fim social, os fortes praticam a anarquia<br />

como um meio de individuação. A anarquia como forma de relação entre indivíduos jamais poderá ser<br />

imposta, pois seria um desvirtuamento <strong>completo</strong> da sua ideia. Seria uma fraude intolerável para<br />

qualquer rebelde. Mas a própria visão de um ideal de sociedade tende a partir do todo para o<br />

individual, e ao idealizar o todo, abstração da realidade, este acaba por imperar sobre o indivíduo, que<br />

é uma realidade concreta, esmagando-o. É o indivíduo que terá que se conformar aos novos costumes<br />

e à nova moral social. E muitos anarquistas e revolucionários não conseguem compreender que ao<br />

idealizarem o porvir social estão, à partida, a magicar as suas novas grilhetas. A deixarem-se amarrar<br />

por novos fantasmas.<br />

Até hoje acreditaste que existem tiranos. Pois bem, enganas-te, não existem senão escravos:<br />

onde ninguém obedece, ninguém manda. Estas palavras de Anselme Bellegarrigue demonstram uma<br />

7<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


inversão da visão que o individualista radical tem do campo social e das suas divisões hierárquicas. É<br />

a própria ideia da servidão voluntária de Etienne la Boétie que se encontra bem patente nessas<br />

palavras. Esta inversão de visão sublinha que é a submissão que cria o tirano, não o contrário. O que<br />

todas aquelas teorias sociais revolucionárias nos dizem é que destronando o tirano deixará de haver o<br />

escravo, sejam elas marxistas ou libertárias. Mas se o destronar o tirano e a moral escrava continuar a<br />

predominar, se a vontade individual não for insubordinante, logo novos fantasmas ocuparão o lugar<br />

dos antigos fantasmas e novos tiranos sentarão no trono dos antigos tiranos. Para que o tirano deixe<br />

de existir tem de se atacar primeiro o escravo e a sua moral. E Abele Rizieri Ferrari ataca a ideia de<br />

democracia, filha do cristianismo, como expoente máximo dessa moral dos fracos, moral da renúncia<br />

de si. Com o triunfo da civilização democrática é glorificado o espírito plebeu. Triunfo esse que se<br />

dá com os ideais da revolução francesa e com a ideia dos direitos iguais do homem, renúncia de si<br />

enunciada por Rosseau na sua ideia de contrato social e de bem comum. O filósofo francês, pai dos<br />

ideais da revolução republicana, que defende que o indivíduo deve alienar a sua liberdade individual<br />

em prol de uma suposta liberdade coletiva, através de um contrato social que o proteja de qualquer<br />

ofensa por convenção, chega ao absurdo de afirmar que quem quer que recuse a obedecer à vontade<br />

geral a isso será coagido por todo o corpo, ou seja, será forçado a ser livre. Forçado pelos direitos<br />

impostos pelas autoridades judiciais que, com sua moral castradora, impõem a ideia do bem e mal, os<br />

limites para a liberdade individual, e jogam o rebelde para a marginalidade.<br />

E é por isso que o rebelde jamais poderá ser assimilado, que o verdadeiro indivíduo é inimigo<br />

da sociedade que o tenta aniquilar através da sua moral, das suas leis e da sua força bruta. E é por isso<br />

que confronta toda autoridade, especialmente aquela que, munida de armas e de livros sagrados, se<br />

tenta impor pela força e pela moral. Abele Rizieri Ferrari foi um inimigo da sociedade por amor à<br />

vida, à sua vida. Vida essa que queria potenciar ao máximo, derrubando qualquer obstáculo que<br />

pudesse aparecer-lhe pelo caminho. O seu niilismo não se baseava numa renúncia de si, tal qual o<br />

niilismo da própria moral cristã subliminada pelos ideais de igualdade da democracia e do<br />

socialismo, mas era um niilismo negador. Sou niilista apenas porque sei que niilismo significa<br />

negação! Simples negação de um espaço social opressivo, uma constante antinomia entre o indivíduo<br />

e a sociedade.<br />

O legado literário que este rebelde de língua italiana nos deixou é de extrema importância para<br />

a desmistificação das tendências anarquistas predominantes, atacando-as no seu cerne. Não querendo<br />

desdenhar a herança do pensamento de anarquistas como Kropotkin, Bakunin ou Malatesta, que<br />

deram um contributo de extrema importância para um despertar de uma consciência rebelde e<br />

emancipadora, a verdade é que as tendências mais socialistas dentro do anarquismo tiveram uma<br />

maior predominância precisamente por “prometerem” um mundo ideal diferente da sociedade<br />

industrializada da exploração capitalista. Mas o anarquismo nunca poderá ser uma construção social<br />

rígida modelada por autoridades filosóficas e morais. A anarquia, como o seu prefixo indica, é<br />

negação, e como negação parte sempre do indivíduo para o todo, nunca o contrário. A anarquia não<br />

pode ser pensada socialmente, para isso existem outros substantivos que servem para definir estados<br />

de igualdade política entre os homens. A anarquia é antes um estado de consciência individual, uma<br />

atitude de constante exame e negação, sempre em conflito com os fantasmas gerados pelo corpo<br />

social. É esse legado que Abele Rizieri Ferrari nos deixou. A anarquia é o íntimo mistério animador<br />

dos solitários incompreendidos, fortes porque se encontram sós, nobres porque têm a coragem da<br />

solidão e do amor, aristocratas porque desprezam a vulgaridade, heróicos porque estão contra<br />

todos.<br />

As suas diatribes permaneceram na obscuridade de uma modernidade já de si também obscura.<br />

Mas Abele Rizieri Ferrari ansiava pelo sol, pela luz, pelo grande meio-dia nietzschiano. E as suas<br />

palavras corrosivas, como todos os seus recursos estilísticos e as suas invectivas, são capazes de<br />

incendiar os corações dos seres mais frígidos. Abele Rizieri Ferrari não era um racionalista, tudo<br />

aquilo que escreveu é puro sentimento, é pura paixão, é puro ódio e puro amor. As suas palavras<br />

brotam como flores silvestres que crescem em direção ao sol, soltando fragrâncias pecaminosas e<br />

8<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


exaltantes com aroma a transgressão. E libertando-se dessa escuridão onde permaneceram durante<br />

anos, crescendo em solo fértil banhado pelo sol, essas palavras incendiárias crepitam mais uma vez<br />

intensamente com escárnio e desprezo, motejando e menosprezando a sociedade filha da moral cristã.<br />

Tomando as palavras do poeta José de Almada Negreiros, o ódio e o riso escarninho do rebelde<br />

anarquista continuará a ressoar pela posteridade, invectivando contra a Humanidade...<br />

Hei-de, entretanto, gastar a garganta<br />

a insultar-te, ó besta!<br />

Textos Subterrâneos<br />

5. O TEMPERAMENTO ANARQUISTA NO TURBILHÃO DA HISTÓRIA<br />

No anarquismo – nos fatos da vida experienciados de forma prática e material – existem,<br />

acima das duas concepções filosóficas distintas, comunista e individualista, que o dividem no campo<br />

teórico, dois instintos espirituais e físicos que servem para distinguir dois caracteres comuns às duas<br />

tendências teóricas e filosóficas. Apesar de serem filhos do mesmo sofrimento social, os dois são<br />

instintos diferentes que dão origem a dois tipos de sofrimentos distintos de origem hedonística.<br />

Existem aqueles que sofrem - diria Nietzsche – por excesso de vida (comunistas e<br />

individualistas) e existem aqueles que sofrem devido ao empobrecimento da vida. Pertencem, a estes<br />

últimos, aqueles comunistas e individualistas que são amantes da tranquilidade e da paz, do silêncio e<br />

da solidão. Aos primeiros, pertencem aqueles comunistas e individualistas que sentem o eu interior<br />

como um poderoso frêmito dionisíaco transbordante de energia, e a vida como uma manifestação<br />

heroica de força e de vontade. São os que têm a necessidade instintiva e irresistível de lançar a chama<br />

do seu “eu” contra os muros do mundo exterior para os derrubar e viver a tragédia. Nós somos<br />

desses.<br />

Somos anarquistas – primeiro que tudo – por instinto de origem e por paixão sentimental. As<br />

nossas ideias não são mais do que criaturas destemidas e luminosas, nascidas do amplexo primitivo<br />

monístico com a teórica razão negadora.<br />

Hoje em dia, a história da humanidade chegou a um – talvez o mais grandioso – daqueles seus<br />

vários turbilhões, onde a alma do homem é chamada a renovar-se radicalmente sobre as ruínas<br />

magnificamente horríveis do fogo e do sangue, da catástrofe e da destruição, ou a cristalizar-se<br />

covardemente no decrépito e cadavérico conceito de vida que a anacrônica sociedade burguesa ditou<br />

e impôs.<br />

Se um forte punhado de rebeldes, de superiores e de herois, souber libertar-se das duas<br />

correntes do anarquismo sofredor de exuberância vital, para agarrar a bandeira negra da revolta,<br />

ateando fogo ao coração de todas as nações da Europa, o velho mundo cairá, porque ao redor do heroi<br />

tudo deve transformar-se fatalmente em tragédia; e só na tragédia nascem os espíritos renovadores<br />

que sabem sentir, da forma mais alta e nobre, a canção festiva de sua vida livre.<br />

Se esse punhado de audazes não sair da combra para atirar à face da sociedade burguesa a luva<br />

negra de desafio e de revolta, os répteis da demagogia política, e todos os saltimbancos<br />

especuladores e devotos da dor humana, permanecerão donos do país e arremessarão sobre o trágico<br />

sol vermelho, que procura iluminar o turbilhão obscuro da sombria história que passa, o obsceno véu<br />

branco trazido para o horizonte livre do pensamento humano por aquele palhaço depravado chamado<br />

“Marx”, e tudo terminará numa torpe e grotesca comédia diante da qual todos os anarquistas se<br />

deverão suicidar por dignidade e vergonha.<br />

Para aqueles anarquistas italianos que padecem de uma exuberância vital; para aqueles<br />

anarquistas italianos – individualistas e comunistas – para os quais a luta, o perigo e a tragédia é uma<br />

necessidade de espírito e de matéria, chegou a hora!<br />

A hora de se imporem e dominarem. A verdadeira liberdade e o verdadeiro direito do homem<br />

estão somente na sua capacidade de QUERER!<br />

O direito e a liberdade são a Força!<br />

9<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


Aquilo que para os outros é sacrifício doloroso, para nós deve ser uma dádiva e um jubiloso<br />

holocausto.<br />

É necessário atirarmo-nos sobre a onda do tempo passado, andar à garupa dos séculos,<br />

ressuscitar com virilidade a História, para voltar a beber nas nascentes virgens das quais brota ainda o<br />

sangue, quente e fumegante, dos primeiros sacrifícios humanos feitos de forma livre.<br />

É necessário voltarmos a entrar, nus e descalços, entre as pedras vivas da selva legendária e<br />

alimentarmo-nos, como os nossos antepassados, de miolos de leão e de natureza selvagem.<br />

Só dessa forma – como Maria Vesta – podemos dizer ao primeiro heroi que soube oferecer,<br />

estoicamente e serenamente, as suas carnes às chamas vermelhas de uma fogueira inimiga, lúgubre e<br />

crepitante: Tal como tu, também nós podemos agora cantar durante os suplícios.<br />

A vida que a sociedade nos oferece não é uma vida plena, livre e festiva. É uma vida<br />

reprimida, mutilada e humilhante.<br />

Devemos recusá-la.<br />

Se não temos a força e a capacidade para arrebatar violentamente das suas mãos essa vida<br />

elevada e rica que fortemente sentimos, lancemos esse espectro sobre o trágico altar do sacrifício e da<br />

renúncia final.<br />

Pelo menos podemos colocar uma heroica coroa de beleza sobre o rosto ensanguentado da arte<br />

que ilumina e cria.<br />

É melhor entrar nas chamas de uma fogueira e cair com o crânio rachado sob uma rajada de<br />

tiros de um pelotão de execução do que aceitar esse espectro de vida irônica, que não é mais do que<br />

uma torpe comédia.<br />

Oh amigos, chega de covardia. Oh companheiros, chega de ter a ilusão ingênua do “ato<br />

generoso das multidões”. Chega.<br />

A multidão é palha que o socialismo deixou apodrecer no estábulo da burguesia.<br />

Errico Malatesta, Pasquale Binazzi, Dante Carnesecchi e os outros milhares de desconhecidos<br />

que apodrecem naqueles buracos miasmáticos e mortíferos que são as prisões da monarquia dos<br />

Sabóia e que levaram os medalhados do P.S.I. (Partido Socialista Italiano) a pedir à pocilga de<br />

Montecitorio os meios para construírem outras ainda maiores, deverão ser para nós como<br />

arrependimentos espectrais, caminhando de forma assustadora entre meandros incertos de nossa alma<br />

plena de dúvidas; deverão ser como labaredas de sangue a escaldar que fogem do coração para<br />

ascenderem vertiginosamente às linhas do rosto e cobrem-no de uma triste vergonha.<br />

Eu sei, nós sabemos, que uma centena de HOMENS – dignos desse nome – poderiam fazer<br />

aquilo que quinhentos mil inconscientes “organizados” não são nem nunca serão capazes de fazer.<br />

Não vêem, amigos, a sombra de Bruno Filippi que vos olha e ri?<br />

Não existem mais de uma centena de anarquistas dignos desse nome em Itália? Não existem<br />

mais de cem “EUS” capazes de caminhar com pés de fogo sobre o cume turbulento das nossas<br />

ideias? Errico Malatesta e todos os outros milhares de caídos entre as mãos do inimigo nos primeiros<br />

prelúdios desta tempestade social, aguardam com uma ansiedade nobre e febril a fulguração que<br />

destrua o edifício em colapso, que aclare a história, que realce os valores da vida, que ilumine o<br />

caminho do homem…<br />

Mas a fulguração luminosa e fatal não pode irromper do coração das massas.<br />

As massas que se pareciam aos adoradores de Malatesta, são vis e impotentes.<br />

O governo e a burguesia sabem-no… Sabem-no e riem-se.<br />

Pensam: “O P.S.I. está conosco. É a peça indispensável para o êxito sombrio do nosso jogo<br />

perverso. É o Abracadabra que ganha forma na voz abracas e Abra da nossa feitiçaria mágica e<br />

milenária. As massas covardes são os seus escravos e Errico Malatesta está velho e doente. Faremos<br />

com que morra no segredo lúgubre de uma cela úmida e depois atiraremos o cadáver à cara dos seus<br />

companheiros anarquistas...”<br />

Sim, assim pensa o governo e a burguesia no íntimo de sua alma idiota e desprezível.<br />

Queremos nós suportar este desafio ignóbil com indiferença? Queremos nós suportar este insulto<br />

10<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


sangrento e brutal em silêncio? Seremos nós tão desprezíveis?<br />

Eu espero que estes meus três pontos de interrogação gigantescos, de tal forma solenes e<br />

terríveis, encontrem nas fileiras do anarquismo uma resposta viril que diga: NÃO! Com uma<br />

repercussão terrível, ainda mais terrível.<br />

É dos cimos em chamas do apogeu luminoso que devem surgir as fulgurações libertadoras.<br />

O forte ANCIÃO espera. Heroicos companheiros: A NÓS!<br />

O cadáver de um velho agitador custa sempre mais do que a vida de um milhar de desprezíveis<br />

imbecis.<br />

Recordem-no irmãos.<br />

Façamos que não caia sobre nós a mais profunda de todas as vergonhas humanas.<br />

Il Libertario, 8 de Dezembro de 19<strong>20</strong><br />

6. FLORES SELVAGENS<br />

Premissa. Mesmo que exterminadas até se tornarem apenas deserto, as flores brotam. Flores<br />

selvagens que emanam perfumes sedutores e enfiam seus espinhos no sangue daqueles que as<br />

colhem, mas então já tiveram sua grandiosa história de satisfação, de dor e amor. Eu repito: são flores<br />

estranhas e selvagens que emergiram do nada estéril, foram fertilizadas pelo sol e depois<br />

arremessadas pela tempestade, crueldade!<br />

Estas flores são pensamento germinando na meditativa solidão, e profundeza do meu espírito<br />

enquanto miro o exterior, num mundo que não mais pertence a mim, a raiva, a loucura furiosamente<br />

aberta pelo fogo eletrificado do trovão que explode implacável.<br />

E eu, vagabundo sem culpas, que ama galopar nas alegres e assustadoras trilhas deste meu<br />

solitário Reino e deserto, me culpo por arrancar algumas dessas flores para coroar esta bandeira<br />

rebelde que já ecoou e já foi devastada com covardia e brutalidade e continuam ressoando nos alegres<br />

refrões do eterno retorno.<br />

***<br />

O anarquista é o único que depois de uma longa, ofegante e desesperada busca, recuperou seu<br />

próprio eu e colocou-o, altivo e orgulhoso "nas margens da sociedade", negando a qualquer coisa o<br />

direito para julgá-lo. Aquele que não sabe reconhecer a elevação de suas próprias ações quando julga<br />

a si mesmo, pode até ser acreditado anárquico, mas não é!<br />

A força da vontade e da potência (não confundida com o poder) do espírito de autoelevação e a<br />

individualização são os primeiros passos de uma longa e interminável escada que ele sabe que<br />

atravessará a qualquer custo.<br />

Somente aquele que sabe premiar com violência impetuosa os portões enferrujados que<br />

protegem a grande mentira onde se protegem os ladrões importantes (Deus, estado, sociedades,<br />

humanidade), para retomar de suas mãos viciosas e vorazes de sinistros predadores, adornadas com o<br />

falso ouro do amor, da piedade e da civilidade; seu maior tesouro, poder sentir-se chefe e senhor de si<br />

mesmo, e ser chamado anárquico.<br />

***<br />

O anarquista além de ser o grande rebelde também tem a virtude de ser um rei. O rei de si<br />

mesmo, veja!!<br />

Quem acredita que cristo pode ser o sinal e o símbolo que conduz o homem a alcançar a<br />

síntese libertária da vida, eles poderão ser socialistas ou cristãos negadores da anarquia.<br />

Mesmo sócrates, que desprezava tudo, não tinha dúvidas sobre a brutalidade das pessoas que o<br />

condenaram, aceitou o veneno que o obrigaram a beber, e agiu com tamanha covardia e devoção que<br />

envergonha o anarquismo.<br />

***<br />

Escapar, seja como for, daqueles entregues à ganância e à brutalidade, dos preconceitos<br />

firmados pela ignorância, ou da sádica depravação de uma sociedade putrefata que acredita ter o<br />

11<br />

RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde


direito de julgar e condenar alguém por agir de forma que a referida sociedade não entende e que é<br />

arrogante demais para jamais compreender, é um dom de extraordinária rebeldia e individualidade<br />

que apenas no anarquismo se pode encontrar suas razões e suas glórias.<br />

***<br />

Ai de mim! Mesmo a consciência tem no fim um fantasma atávico e assustador. E ele só<br />

deixará de existir quando o ser tiver o conhecimento para torná-lo a imagem e o espelho de sua<br />

própria e única vontade.<br />

***<br />

O primeiro homem que disse: “não há nenhum deus”, foi sem dúvida um atleta do pensamento<br />

humano. Mas o que se limitou a dizer: “enviado de Deus o padre não é”, enganado duas vezes e<br />

compreendendo demais, ele é também, cúmplice suspeito que já premeditaram matar seres humanos<br />

com uma nova mentira. Mantenha-se bem protegido daqueles que negam deus pela metade.<br />

Cronaca Libertaria, <strong>20</strong> de Setembro de 1917<br />

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RENZO NOVATORE – Um elogio ao rebelde

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