Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
fez isso. E assim, vez por outra, eu vou à casa dela apanhar um livro. Nossos<br />
contatos cada vez ficam mais desagradáveis. Da última vez ela não escondeu a<br />
irritação que a dominou ao me ver. Ela usava um vestido longo e joias, como se<br />
fosse a algum lugar; demorou a convidar-me para entrar e logo vi por quê. Um<br />
sujeito estava sentado na sala, rosto rechonchudo pálido azulado pela barba,<br />
apesar de bem-escanhoado; vestia-se na moda, camisa de voile francês aberta<br />
no peito, um cordão de ouro grosso com um moedão em volta do pescoço, e<br />
estava perfumado. Chamava-se Fernando, suas unhas e suas maneiras eram<br />
polidas, perguntou se eu estava escrevendo alguma coisa. Essa é uma pergunta<br />
que vivem nos fazendo, a nós escritores, como se não parássemos nunca de<br />
escrever; nós paramos, e às vezes damos um tiro na cabeça por causa disso.<br />
Respondi-lhe que o tema do livro que eu estava escrevendo era pedofilia. Eu ia<br />
dizer, na ordem em que pensei: que era um livro sobre a devastação da<br />
Amazônia; que era sobre um curandeiro que enganava as pessoas pela televisão;<br />
sobre uma família de migrantes miseráveis vagando sem pouso no Rio de<br />
Janeiro; sobre briga de galos. Mas saiu pedofilia. Maria Augusta, percebendo que<br />
Fernando desconhecia o significado da palavra, explicou com rispidez que<br />
tratava-se de atração erótica por crianças, uma palavra composta grega que<br />
originalmente não tinha conotações perversas. A ignorância de Fernando me fez<br />
sorrir e isso deixou Maria Augusta irritada. O que aconteceu com você, ela<br />
perguntou sarcástica, está mais calvo e grisalho, com um jeito de velho, algum<br />
problema de saúde? Olhamo-nos, hostis e impiedo sos, à maneira daqueles que<br />
deixaram de se amar. Deve ser mesmo a idade, respondi, o pior de todos os<br />
venenos. Maria Augusta colocou a mão no pescoço, era ali que ela achava que o<br />
tempo depredava mais o seu corpo, e perguntou impaciente qual era o objetivo<br />
da minha visita. Apanhei os livros que queria e saí. À noite rolei na cama, sem<br />
sono, mas gostando de estar sozinho e acordado, dono absoluto dos meus<br />
pensamentos. O telefone tocou várias vezes e eu gritei: vá para o inferno!, e ele,<br />
ou ela, permaneceu em silêncio do outro lado. Alectrionon agones,<br />
alectriomachia. Eu e Regina fazíamos amor no sofá nos dias em que ela tinha<br />
pressa de voltar para casa. Após contemplarmos certas coisas, ou uma<br />
determinada coisa, há que mudar de vida. Eu pensava em Sofia e não me saía da<br />
cabeça a pulseirinha de ouro no tornozelo dela, que coisa mais diabólica. Quando<br />
nos encontramos no hall, o rosto dela ficou muito pálido, como estaria também o<br />
meu, certamente. Senti-me como se minha alma, se é que tenho uma alma, se<br />
desprendesse e subisse para o céu como uma labareda alucinante. Como vai o<br />
colégio?, perguntei. Ah, meu Deus, se é que Deus existe, não era uma urna<br />
grega, era o próprio ser humano, ao invés de uma das suas criações. Ela<br />
perguntou, mantendo a porta do elevador aberta, se eu ia descer. Não, não, eu<br />
não ia descer. Uma pulseirinha de ouro no tornozelo. Quem era mesmo que aos<br />
cinquenta anos achava que sua criatividade havia se esgotado, que estava velho e