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O Cobrador - Rubem Fonseca

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seu milagre, no poder da oração, na fé. Oremos: glorioso Deus, glorioso Pai,<br />

nossos milhares e milhares de telespectadores aguardam a cura para seus<br />

horrendos sofrimentos, em nome de Jesus ordeno que saiam dos seus corpos as<br />

doenças malignas, pelo poder da misericórdia e da compaixão, ó Jesus, pai<br />

bendito, libertai este povo que tanto tem ajudado o Pronto Socorro Divino.<br />

Imagens de Jesus, do Curandeiro, música celestial, o rosto feliz dos sofredores.<br />

Havia em Eunice alguma coisa que me afligia. Ela estava sempre tensa e infeliz;<br />

era frio o suor do seu corpo nu, apenas no momento do orgasmo eu sentia que ela<br />

superava a sua aflição, mas logo em seguida seu rosto se crispava e ela<br />

começava a chorar. A iniciativa não havia sido minha; depois que eu lhe dera os<br />

autógrafos ela permanecera em pé, no meio da sala, desajeitada e eu dissera,<br />

fique à vontade e ela perguntara onde era o quarto. Eu sentia pena dela, mas<br />

também ficava enfadado com o dramalhão de alcova que ela invariavelmente<br />

encenava nas poucas vezes em que estivemos juntos, talvez porque eu não<br />

costume sofrer desses instantâneos e fugazes sentimentos de culpa. Ir para cama<br />

com Eunice, como com todas as outras, fora algo parecido com uma viagem a<br />

uma cidade desconhecida: no princípio a gente percebe tudo, alerta, ligado, mas<br />

depois de algum tempo atravessamos a rua sem nada ver, e se vemos não<br />

sentimos, como um carteiro fazendo a entrega da correspondência. Ah, o pior de<br />

todos os venenos! Tenho vontade de voltar a fita atrás e ouvir esta gravação, mas<br />

sei que se o fizer não continuarei registrando estes acontecimentos. De qualquer<br />

forma quando terminar de ditar jogarei a fita no lixo. Eu nunca seria capaz de<br />

escrever sobre acontecimentos reais da minha vida, não só porque ela, como<br />

aliás a de quase todos os escritores, nada tem de extraordinário ou interessante,<br />

mas também porque eu me sinto mal só de pensar que alguém possa conhecer a<br />

minha intimidade. É claro que eu poderia camuflar os fatos com uma aparência<br />

de ficção, passando da primeira para a terceira pessoa, acrescentando um pouco<br />

de drama e comédia inventados etc. É isso o que muitos escritores fazem e talvez<br />

seja a razão pela qual a literatura deles é tão fastidiosa. Vejamos a minha vida,<br />

nos últimos três meses. Tento escrever uma novela sobre briga de galos, ou outras<br />

duas sobre as quais falarei em seguida, e procuro comer todas as mulheres que<br />

passam perto de mim. Evidentemente isso não basta para compor uma boa peça<br />

de ficção. O papel especial em que sempre escrevo, comprado na Casa Mattos,<br />

está em cima da mesa, e a trama já está armada dentro da minha cabeça. O<br />

protagonista é um chefe poderoso do baixo mundo (jogo do bicho, narcóticos,<br />

contrabando e prostituição) e o seu galo invencível (pedigree de cem anos), no<br />

qual ele aposta verdadeiras fortunas, dando vantagens de até dez por um. O<br />

antagonista é um pobre criador de galos da Baixada e o seu galo desconhecido,<br />

mas que ele, com sua longa experiência, considera imbatível. O velho consegue<br />

convencer parentes e amigos a se associarem numa grande aposta contra o<br />

poderoso chefão. Será uma briga mortal pois os galos usarão esporões de prata, a

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