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Shotguns and Sorcery - Justiça em VIlagoblin

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Licenciado para Vítor Nascimento. vitordrades@gmail.com


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Full Moon Enterprises

Beloit, WI, USA

www.forbeck.com

Pensamento Coletivo Editora

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

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Shotguns & Sorcery, a Cidade do Dragão e todos os personagens, locais e organizações aqui contidas

são marcas registradas de Full Moon Enterprises, Inc., e são usados sob licença.

Forbeck, Matt

Sword & Sorcery: Justiça em Vilagoblin / Matt Forbeck; [tradutor Raphael Bonelli]. - [Edição

brasileira.] Rio de Janeiro: Pensamento Coletivo Editora, 2015.

19p.

Créditos da Edição Brasileira:

Tradução: Raphael Bonelli

Revisão e diagramação: Filipe G. Cunha

versão eletrônica: v1.0

©2012 por Matt Forbeck.

Todos os Direitos Reservados

Este é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, locais e incidentes são produtos da imaginação do

autor e usados ficcionalmente.


JUSTIÇA EM VILAGOBLIN

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EU HAVIA ACABADO DE SAIR cambaleante da Pena quando ouvi o grito. O dia havia sido

complicado e eu o encerrara com uma noite difícil, naquele momento não estava preparado para lidar

com qualquer coisa mais exigente que encontrar o caminho até minha morada acima do

Cavalgabarris. Mas aquele barulho enterrou um prego nos meus planos.

Normalmente, eu simplesmente ignoraria os gritos. A Cidade do Dragão é um lugar grande e vil, e se

eu perseguisse cada som perturbante, nunca pararia de correr. Isto se eu conseguisse vencer o instinto

natural de autopreservação que tem me impedido de enfiar a varinha onde não devo. Além disto, não

é meu trabalho. É para isto que o Dragão Imperial paga a guarda, certo?

Mas este grito – mais parecido com um lamento – estava próximo o suficiente para me fazer hesitar.

Eu saquei minha varinha da bainha de ombro e apontei-a fixamente para o beco pelo qual estava

passando.

Tudo o que eu conseguia ver era a escuridão profunda. A lua cavalgava baixa no céu noturno

projetando longas sombras pela cidade e os globos de luz perto da Pena foram quebrados tantas

vezes que o Império, há alguns anos, desistira de substitui-los.

Alguém no beco soluçou, um som tão patético quanto o grito fora cortante. Eu baixei um pouco minha

varinha e espiei na escuridão, com todos os sentidos em alerta e os pelos dos braços arrepiados.

Nada aconteceu. Nenhum banshee veio gritando até mim. Nenhuma bala atingiu meu peito.

Considerei a possibilidade de simplesmente me virar, correr para casa e ignorar o que quer que

estivesse acontecendo. Afinal, aquilo não tinha nada a ver comigo e eu não precisava de mais aflição

em minha vida.

Mas quem eu estava enganando? Minha curiosidade estava alta. Se eu fugisse, nunca saberia o que

estava acontecendo naquela escuridão e carregaria aquela dúvida pelo resto da minha vida.

Obviamente, as chances da minha vida ser mais duradoura seriam maiores se eu aprendesse a ignorar

algumas coisas, então era algo a se considerar. Mas isto nunca havia me impedido antes.

Eu murmurei as palavras de um encantamento simples e um feixe de luz lançou-se de minha varinha

para a escuridão do beco. A luz atingiu um orc esguio ajoelhado sobre uma mulher, ambos cobertos

em sangue. Com base na palidez da pele da mulher, suspeitei que era dela aquele vermelho todo

espalhado pelo lugar.

Meu fôlego prendeu-se em meu peito quando visualizei o uniforme vermelho e preto da Guarda

Auxiliar que a mulher vestia. A situação passou do trágico para o problemático. A guarda do Dragão

Imperial – os verdadeiros defensores dos desejos do lagartão – pode não patrulhar as partes mais vis

da cidade pessoalmente, mas eles tomam o assassinato de um dos seus parceiros mortais como um

insulto pessoal – um insulto que deveria ser pago em sangue.


O orc se virou para mim com suas pupilas fendidas espremidas como se protegessem seus olhos

faiscantes da luz. Ele chiou para mim como um animal acuado, e eu dei um passo para traz enquanto

me perguntava se ele iria atacar ou fugir.

Antes que ele pudesse se mover, percebi que o conhecia. “Sig?”, eu disse.

A adrenalina se esvaiu do meu corpo, levada por uma torrente crescente de temor.

Sig encarou a luz, piscando, sem reconhecer minha voz. O fato de eu conhecê-lo enraizou seus pés.

Eu baixei a luz e caminhei na direção dele como se me aproximasse de um animal assustado, como se

não estivesse certo de que ele não iria me morder.

“Gibson?” Sig disse. “Max, é você?”

“Pelas bolas do Dragão”, eu disse para ele. “O que você fez?”

Sig se levantou como se eu tivesse açoitado suas partes íntimas com um relho.

“Nada,” ele disse, com o pânico crescendo em seu rosto e sua voz. Ele segurou-me pelo braço.

“Verdade, Max, você precisa acreditar em mim. Eu encontrei Ames assim.”

“Ames?” Eu direcionei minha luz para o corpo da guarda. Sua blusa estava rasgada por um corte,

assim como a confusão sangrenta de carne sob ela. O vapor subia do sangue, ainda quente, empoçado

em torno dela.

O rosto experiente da mulher carregava as cicatrizes antigas das batalhas às quais ela havia

sobrevivido. Seus cabelos curtos começavam a ficar grisalhos nas têmporas. Com a morte

enrijecendo seu rosto, seus lábios já não portavam mais o escárnio que ela apresentara em todos os

momentos durante os quais a conheci. Ela parecia estar mais em paz do que eu jamais havia

presenciado durante sua vida.

“Quem fez isto?” eu disse.

Sig inclinou sua cabeça trêmula, com os ombros sacolejando enquanto enterrava seu rosto entre as

mãos. Por entre os dedos, escutei-o começar a soluçar.

Segurei ele pela camisa imunda e empurrei-o contra a parede que estava logo atrás, fazendo chover

partículas da antiga argamassa.

“Quem fez isto?” eu disse.

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Seus olhos se recusavam a encarar os meus. “Eu não sei!” Sua voz soou ferida e entrecortada. “Não

fui eu. Eu juro!”

“Você acha que a Guarda do Dragão irá confiar na sua palavra?”

Eu obtive minha resposta, mas não do Sig. Uma voz surgiu da entrada do beco, falando com um


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sotaque nobre, e disse “Sem chance”. Eu reconheci imediatamente o dono dela. No mesmo instante,

uma luz surgiu atingindo eu e Sig em um feixe atordoante.

Congelei. Parte de mim queria dar a volta e encarar aqueles caras de frente, mas a parte mais

inteligente já sabia quem estava na entrada do beco nos esperando. Esta parte tinha uma forte

ressalva contra ser desintegrado por oficiais excessivamente zelosos na execução de suas

devidamente merecidas funções.

Sig estremeceu sob a luz e finalmente olhou diretamente dentro dos meus olhos.

Ele se assemelhava muito pouco com um assassino. Ao invés disto, parecia uma criança de pele

verde, aterrorizada e com dentes tortos. Ele ficou tenso e eu senti que perderia a cabeça. Eu balancei

sutilmente a cabeça, apenas o suficiente para que ele visse, mas não o bastante para que os elfos

sanguinolentos por trás da luz pudessem utilizar como desculpa para poupar o Império das

perturbações de um julgamento.

“Qual seria o problema, Capitão Yabair?” Falei em minha voz mais inocente.

“Afaste-se deste orc imundo, Gibson,” disse Yabair. “E fique com as mãos para cima.”

Eu larguei a camisa do Sig e fiz o que foi pedido. Enquanto isto, deixei minha varinha cair pela

manga. Se Yabair e seus amigos viram, foram polidos demais para mencionar.

Encarei Sig nos olhos e depois me voltei para o outro extremo do beco, torcendo para que ele tivesse

entendido a dica. Havia limites quanto ao que eu poderia fazer por ele naquele momento. Ele

precisaria dar conta do resto.

Eu me virei na direção da luz brilhante e protegi meus olhos com a mão enquanto tentava enxergar

além dela. “Sei que isto parece ruim”, eu disse enquanto caminhava lentamente na direção dos

guardas, tentando acalmá-los.

Eu não havia sequer terminado a frase quando Sig girou sobre os calcanhares e disparou na outra

direção. Seus pés marcavam um ritmo de pânico nas pedras do calçamento atrás de mim. Dei o

melhor de mim para ignorá-lo e continuar seguindo em frente, esperando bloquear a visão dos

guardas.

“Parem ele!” bradou Yabair.

Eu joguei as mãos para cima e parei. “Ei, não vou a lugar algum. Estou bem aqui.”

A luz saiu de cima de mim e foi atrás de Sig. Eu me desloquei, tentando manter meu corpo dentro do

feixe enquanto um par de elfos vestidos no elegante carmesim da Guarda do Dragão Imperial

partiram em carga atrás de Sig. Eu cambaleei e estiquei meu pé na tentativa de tropeçar os guardas,

mas não atingi o objetivo. Mais rápidos e leves do que jamais serei, eles se esquivaram de mim

como o vento e dispararam atrás do orc em fuga.

Eu me virei para olhar para os guardas e balancei a cabeça em pena por Sig. Ele precisaria de um

milagre para fugir deles e levando em consideração como eu havia o encontrado parado sobre o


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corpo de uma guarda morta, apostaria que o destino não estava brilhando muito para Sig naquele dia.

Eu fiz o que podia por ele, embora não tivesse certeza de por que havia feito. Sig e eu nunca

havíamos sido muito íntimos. Ainda assim, você vê alguém em necessidade e dá uma mão –

principalmente se ele for inocente. Sig não era um santo, eu sabia, mas conhecia Ames, assim como

eu. Nos tempos anteriores à Guarda, ele havia trabalhado com ela em mais de uma ocasião. Eu estava

bastante certo de que ele não teria matado Ames. Não daquele jeito.

Uma mão longa e perfeita desceu sobre meu ombro. “Você é um tolo,” disse Yabair. “Eu espero isto

da sua raça, mas achava que você, talvez, fosse uma exceção”.

“Apenas me prenda ou deixe-me ir”. Eu me esforcei para parecer despreocupado. Até este ponto, eu

estava mais preocupado com Sig do que comigo mesmo. Isto acabara de mudar, mas eu não deixaria

transparecer. “Vamos logo. O suspense está me matando.”

Yabair grunhiu. “O suspense, é mesmo?” ele disse. “Achei que seria eu.”

Eu senti o impacto de uma varinha em minhas costas e tudo se apagou.


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O REGULAMENTO da Guarda do Dragão Imperial insiste que os guardas utilizem encantos nãoletais

sempre que possível. Esta é uma das poucas concessões que os mortais garantiram como parte

do Pacto da Cidade do Dragão, o acordo sobre o qual nossa solitária metrópole fora fundada. Na

prática, os guardas podem abusar de nós o quanto quiserem, mas a morte de alguém gera uma

quantidade enorme de papelada e investigações obrigatórias suficientes para dar, até mesmo para o

mais velho e exigente elfo, motivos para pensar bem.

Acordei em uma das celas escuras e imundas que recheiam as fundações da delegacia local. Eu já

havia sido jogado lá tantas vezes no passado que a reconheci, pelo fedor, antes mesmo de abrir os

olhos – um buquê hediondo formado pela mistura inconfundível de vômito velho, urina e sangue

derramado. Minha cabeça latejava e minha boca parecia seca como uma caverna no deserto, o efeito

ressaca do encantamento que me arremessou diretamente para uma terra dos sonhos, onde fui

assombrado por demônios do meu passado, tanto figurativamente quanto literalmente.

Eu rolei sobre a imitação barata de colchão e coloquei meus pés no chão. O mundo girou ao meu

redor e eu encarei o chão até que ele parasse de se mover. Um par de algemas encantadas estava

pendurado em meus pulsos com a corrente brilhando suavemente, ameaçando me eletrocutar caso eu

cometesse a estupidez de tentar conjurar um encantamento. Eu sequer me dei ao trabalho de verificar

se estava com minha varinha.

Quando o mundo finalmente parou, ergui minha cabeça e enxerguei Sig esparramado inconsciente

sobre uma cama ensanguentada na minha frente. Estávamos em um aposento de pedra, sem janelas, ao

invés do alojamento geral de detentos. Era uma benção e uma maldição. Isto afastou da cabeça o

perigo de alguém nos sacaneando enquanto estivéssemos inconscientes, mas também significava que

não haveriam testemunhas caso alguém decidisse nos submeter a um interrogatório mais vigoroso.

Através da porta fechada da cela, escutei alguém grunhindo em uma combinação de angústia e dor.

Um globo de luz solitário colocado na parede oposta à porta projetava sombras nítidas em nossa cela

escura. Embora a luz suave não tivesse sido colocada como um favor para nós, minha enxaqueca a

considerava uma gentileza.

Eu coloquei-me sobre meus pés e caminhei até Sig. Ele nunca fora bonito, mas seu rosto havia sido

espancado até ficar mais feio que nunca. A maior parte do sangue no colchão parecia ser dele, mas

ao menos havia parado de correr dos cortes – ao menos daqueles que eu conseguia ver.

Yabair apareceu na porta. Eu não havia escutado seus passos no piso de pedra, nunca escutaria. “Isto

está ficando cansativo, Gibson,” ele disse. “Você já não passou tempo demais sob minha custódia

nesta sua vida dolorosamente curta?”

Eu estremeci enquanto me virava para encarar o elfo de nariz pontudo. “Ouvi falar que se

conseguisse dez marcas em meu cartão, poderia me livrar da minha próxima surra de graça.”

“Quantos cartões você já completou?”

“Perdi a conta.” Eu ergui meus pulsos algemados. “Já chamou meu fiador para pagar a fiança?”

Yabair balançou a cabeça. “Não vai adiantar. Não hoje.”


Eu senti como se ele tivesse me socado no estômago. “Qual é? É o Nit. Você sabe que ele me ajuda.”

“Uma mulher foi assassinada, Gibson.”

“Uma guarda, você quer dizer. Você não se importaria se uma humana tivesse sido assassinada. Já vi

você passar caminhando entre corpos na sarjeta outras vezes.”

“E daí?”

“Não importa. Eu não tive nada a ver com aquilo.”

“Encontramos você ao lado do corpo, junto a um orc coberto com o sangue dela.”

“Eu irei jurar por minha inocência. Envie um dos seus detectores da verdade para verificar.”

“Temo que isto não servirá perante a corte.”

Aquela palavra – corte – me fez gelar. Eu tive mais ocorrências com a Guarda do Dragão Imperial do

que consigo enumerar, mas raramente precisei me preocupar com as ameaças de ser arrastado diante

de um juiz. A justiça do gueto é rápida e cruel, servida principalmente pelos guardas nas ruas. As

cortes eram reservadas para as pessoas com quem os abastados se importam, seja para casos

envolvendo-as diretamente ou casos que as assustem demais.

Eu espremi os olhos. "O que você quer dizer com "corte"?"

“Você mesmo disse. Ela era um guarda. Protegemos nossos pares.” Meu queixo caiu. “Ela era parte

da Auxiliar.”

Yabair piscou, algo que eu nunca havia visto ele fazer antes. “Não foi a primeira.”

“Quantos?” eu disse, só agora me dando conta do tamanho do problema no qual havia me metido.

“Muitos outros? Além de Ames?” Yabair abriu a boca, e então a fechou.

“Vamos lá,” eu disse. “Se você realmente achasse que tenho algo com isto, eu estaria no necrotério e

não aqui.”

“No Rio Cinerário. O necrotério seria bom demais para você.”

Eu ignorei a ideia. “Então?”

Yabair hesitou por um momento. “Três.”

“Todos guardas?”

Yabair confirmou. “O Dragão não está contente.”

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Meus olhos ficaram arregalados. A maioria das pessoas na Cidade do Dragão passa suas vidas sem

sequer chegar perto de algo que atraia o olhar do Imperador Dragão, é assim que gostamos das


coisas. Um pouco de atenção do Dragão já pode ser fatal.

“Quem?”

“Walt Danson, Andrew Conners e Paolo Cartucci, nesta ordem. Cada um deles uma semana após o

outro.”

Eu havia conhecido cada um deles em algum momento. Por maior que a Cidade do Dragão fosse, o

círculo de guardas que eu conhecia parecia pequeno o suficiente para estrangular meu pescoço.

Danson e Conners não eram caras ruins – para guardas. Claro que eram corruptos, mas ao menos não

eram desnecessariamente cruéis.

“Não havia ouvido falar do elfo,” eu disse. Com um nome como Cartucci, tinha de ser um dos

longevos orelhas-pontudas.

“Não é o tipo de coisa que a Guarda gosta de tornar pública,” disse Yabair. “Os outros dois foram

mortos há duas e três semanas. Mas foi apenas quando Cartucci fora assassinado, semana passada,

que a investigação foi incumbida a mim.”

“Claro,” eu respondi. “Uma coisa é ter um humano morto, mas quando alguém sai por aí matando

guardas e chega em um elfo, a coisa fica séria.”

Yabair fez uma careta para mim. Ao menos teve a elegância de se mostrar ofendido quando o chamei

de racista. Para muitos outros guardas, a ofensa teria passado desapercebida. “Os outros

investigadores não foram capazes de encontrar pistas suficientes”, ele disse.

“E você?” perguntei. O elfo me tinha preso na cela, mas eu sabia que perguntas o fariam se contorcer.

Dadas as circunstâncias, eu precisava me entreter com o que fosse possível.

“Eu –” Yabair fechou a boca tão rapidamente quanto a abrira. Ele passou um longo tempo

considerando o que iria dizer antes de voltar a falar. “Um pouco de ajuda com isto me seria útil.”

Eu encarei ele. “O que eu posso fazer por você que a Guarda não poderia?”

Yabair se inclinou para frente. “Foi-me dito que nosso assassino poderia ser mais próximo da

Guarda do que poderíamos esperar”.

“O que isto quer dizer?” Eu não havia pensado em minhas palavras antes de abrir minha boca. No

momento em que partiram de meus lábios, me dei conta do que ele tinha em mente. “Você acha que

um guarda está envolvido.”

Yabair colocou um dedo sobre os lábios, implorando por discrição. “Eu não tenho provas, mas as

evidências circunstanciais sugerem que esta é a solução mais provável para este enigma específico.”

Eu cocei meu queixo, tentando ter uma perspectiva dos fatos, mas então percebi que não sabia nada

sobre o que Yabair estava falando.

“Que evidências?”

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“A eficiência dos assassinatos, por exemplo. Há também o fato de que todas as vítimas foram mortas

em serviço e exatamente da mesma forma.”

“Como assim?”

“O coração delas fora arrancado.”

Eu estremeci sob esta imagem. Remover um coração não era fácil, com todas aquelas costelas no

caminho.

“Ames?” Eu não estava certo de que queria ouvir a resposta.

Yabair confirmou.

Eu coloquei a mão sobre meus olhos e tentei afastar o pensamento. Fiquei assim até ouvir a fechadura

da porta da cela ser aberta.

Yabair deslizou a porta para o vão na parede, deu um passo para trás e gesticulou para que eu saísse.

“Estou livre?” Eu sabia que não seria simples assim. Nunca era.

“Encontre o assassino de Ames. Seja rápido.”

Olhei de volta para Sig, que ainda jazia ali, serrando madeira. Eu o conhecia desde meus tempos de

aventura. Matamos coisas. Pessoas também. Muitas delas mereceram, mas tenho certeza que Ames

não.

“E quanto a ele?”

Com uma expressão de desgosto, Yabair falou. “Há muitas evidências contra ele.” “Mas ele é

inocente e você sabe disto,” eu queria dizer, mas sabia que não era uma boa ideia. Isto não

importava, nem um pouquinho.

“Encontre o assassino e a inocência do seu amigo será óbvia,”

Disse Yabair.

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Eu grunhi enquanto passei por ele e saí da cela. “Isto não significa que ele será libertado.”

Yabair olhou para baixo, na direção de seu nariz longo e esguio, enquanto veio até mim e removeu

minhas algemas. No momento em que elas foram removidas, o brilho se esvaiu. “Verdade”.

“E se eu provar que ele não poderia ter matado os outros?” Eu disse.

Yabair guiou-me por um corredor longo e escuro em direção a uma saída que brilhava com

encantamentos. “Isto não soluciona meu problema.”

“É um começo. Do contrário, sua investigação termina aqui.”


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Yabair considerou isto enquanto desfazia as magias na porta, magias que me matariam se eu as

tocasse. Uma vez terminado, ele puxou a porta, gemendo em suas dobradiças, e a segurou aberta para

mim. Com a outra mão, puxou minha varinha de um bolso em seu casaco e a entregou para mim.

“É um começo,” ele disse.


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O SOL NASCIA sobre a Cidade do Dragão no momento em que eu saia da delegacia. Eu não queria

nada além de voltar para casa e dormir um pouco, mas sabia que as horas de Sig estavam contadas. A

guarda não tem muitos cuidados com suspeitos de matarem seus pares, e ele terá sorte se passar por

sua primeira sessão de interrogatório com todas as funções do seu cérebro intactas.

Fiz sinal para um tapete voador que sobrevoava e, quando ele desceu ao nível do chão, saltei sobre

ele. “Para onde?” perguntou o condutor.

“Gato Esfolado,” eu disse.

Ele girou o pescoço para trás e me olhou. “Onde fica isto?” “Vilagoblin.”

Novamente, ele desceu o tapete até o chão. “Esquece. Eu não levo meu transporte até lá.”

Eu entendia sua relutância. Vilagoblin era o local mais perigoso de toda a Cidade do Dragão. Por

ficar espremida contra a parede externa da cidade, não havia um lugar em Vilagoblin no qual você

não ouvisse os lamentos famintos e o arranhar incessante da horda de zumbis empilhada no outro

lado daquela enorme cortina de pedra. Algumas pessoas creem que é isto que torna todos os

habitantes de Vilagoblin tão vis. Eu acredito que seja isto e também o fato daquelas pessoas estarem

sentadas no ponto mais baixo da cidade, tanto literal quanto figurativamente. Toda a merda da cidade

corre ladeira a baixo.

“Estamos em plena luz do dia,” eu disse. “Que tipo de covarde é você?” “O tipo que não irá para

Vilagoblin,” disse ele. “Cai fora.” Eu pesquei uma moeda de ouro do meu bolso e apresentei o lado

com a cabeça do Dragão estampada. “E se o Imperador pedir com jeitinho?”

O homem fez uma carranca, como se soubesse que seria melhor deixar de lado o dinheiro, mas ainda

assim estendeu sua mão. Eu deitei a moeda sobre ela.

“Certo,” disse ele, apressando o tapete de volta ao céu. “Mas não vou ficar esperando por você.

Você não tem dinheiro suficiente. Ninguém teria.”

Uma vez no ar, nos movendo rapidamente sobre os telhados da cidade, guiei o condutor em direção

ao nosso destino. Lá de cima, sob os raios quentes do sol, eu conseguia enxergar desde o cume

nevado da montanha até os pântanos devastados além das muralhas da cidade. Na medida em que

percorríamos nosso trajeto até a parte baixa, os telhados se tornavam mais pobres e rotos e as

estradas, mais estreitas e escuras. No momento em que chegamos ao Gato Esfolado, perdemos

novamente os raios de sol para o peso da montanha.

Eu apontei para uma praça e o condutou levou-me até lá. Ele mal desacelerou enquanto eu saltava do

tapete e rumou instantaneamente de volta ao céu. Enquanto ele se afastava, perguntei-me como

voltaria para casa sem ele.

O Gato Esfolado ficava no outro lado da praça, uma pocilga desmantelada e antiga que parecia nunca

ter visto dias melhores. Alguém a construíra com pedaços de lenha, telhas quebradas e sobras de

estuque muito antes de eu nascer e de algum modo ela permaneceu de pé todos estes anos, apesar de

parecer tão velha quanto realmente era. Dizem os rumores que um xamã orc abençoou o lugar no


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momento da sua morte – depois que o barman se recusou a cobrá-lo por sua última dose – e que a

força do espírito dele era a única coisa que impedia que aquela enorme imitação de construção

desabe.

Caminhei até o Gato, ignorando o fato de que todos os olhares na praça estavam voltados na minha

direção. Uma turma de kobolds emolduravam a porta, as mão nos cabos de suas adagas. Um olhar

duro da minha parte manteve suas lâminas nas bainhas e eu segui empurrando as criaturinhas com

minhas coxas.

Eu já havia estado no Gato Esfolado antes, mas sempre com um orc ao meu lado, geralmente Sig ou

seu primo Kai. As bebidas eram baratas e a cozinha, a melhor do estilo, o que significa que fedia

como se tivesse saído do lado mais fresco de um lixão. Eu passava a maioria das minhas noites na

Pena, que era frequentada por um público mais diversificado, ao invés de vir até aqui, onde eu me

destacava como um ovo de dragão em um galinheiro.

Mesmo neste horário da manhã, o salão principal do Gato estava lotado e inundado em conversas. O

tom era belicoso o suficiente para que eu percebesse que vinha de pessoas que não haviam ido para

casa desde a noite passada. Tudo se silenciou no momento em que entrei no ambiente e todas as

cabeças se voltaram a mim com um olhar mal-encarado.

Nas outras vezes em que estive aqui, eu sabia que os clientes haviam tolerado a minha presença

apenas por causa dos amigos com quem eu estava. Sem ninguém ao meu lado, senti todo o impacto do

ódio assassino que eu lhes inspirava. Em outras circunstâncias, eu teria sido mais humilde, mas eu

não havia chegado lá como algum tipo de turista perdido. Eu tinha um trabalho a fazer.

Minha mão tremia com a ânsia de pegar minha varinha e sair disparando para todos os lados. Se

fizesse isto, entretanto, eu sabia que nunca sairia vivo daquele aposento. Dando a mim mesmo um

generoso benefício da dúvida, eu poderia conseguir derrubar duas ou três pessoas da sala – presas,

dentes e tudo mais – mas não teria chance com tantos oponentes furiosos ao mesmo tempo.

Ao invés disto, caminhei diretamente até o balcão e disse, “Dê-me um Fogo de Dragão.”

O Dragão podia ter proibido aquela coisa, mas isto não impediu que qualquer bar digno de seu nome

tivesse um pouco da bebida mágicamente aprimorada sempre à mão. Eu achei que se tudo desse

errado, eu precisaria do pequeno empurrão que a bebida me daria. Caso contrário, ao menos teria

bebericado alguma coisa.

O barman – um enorme hobgoblin desprovido de uma presa e um olho no lado mutilado do seu rosto

– encarou-me de cima para baixo com seu olho bom. Ele parecia tão amistoso que imaginei que

esmagaria minha cabeça com a caneca em sua mão. Ao invés disto, ele finalmente desviou aquele

olhar férreo do meu e partiu para servir minha bebida.

Todos na sala giraram e retornaram ao que quer que estivessem fazendo antes de eu surgir. Um grupo

à minha esquerda, todos com tocos no lugar de alguns dedos, jogavam o jogo da faca com a faca mais

enferrujada que eu já havia visto. Outro grupo desmembrava um pequeno mamífero não-identificado

que o cozinheiro havia empalado com um espeto e assado como churrasco. De modo geral, eles me


ignoravam, o que eu sabia que era o melhor que poderia esperar.

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Quando voltei ao barman, ele segurava um copo transbordante de Fogo de Dragão. Quando fui pegálo,

ele jogou a bebida em mim e ela derramou-se sobre meu peito.

“Para que isto?” reclamei. Então, enxerguei o fósforo aceso na outra mão dele. Ergui minhas mãos

para tentar bloquear, mas ele arremessou o fósforo entre elas. Acertou-me em cheio no centro da

minha camisa, que explodiu em chamas.

Gritando em pânico enquanto as chamas se espalhavam, tentei apagar o fogo com minhas mãos. Isto

durou até um par de orcs de dedos curtos colidir comigo, girar meu corpo e me jogar com a cara no

chão.

O impacto com o piso imundo extinguiu as chamas. Normalmente, eu consideraria isto uma benção,

mas eu atingi o chão com força suficiente para arrancar o ar dos meus pulmões. Antes que

conseguisse recuperar meu fôlego, os dois orcs me colocaram de pé e me ergueram sobre o balcão.

Um deles colocou uma faca contra minha garganta, enquanto o outro me segurava. Eu lutei contra

eles, mas uma dúzia de outras mãos me agarravam e me prendiam. Eu não podia escapar.

“Você não é bem-vindo aqui,” disse o barman, rosnando em minha cara. O seu hálito era quente e

rançoso, escapando através dos buracos apodrecidos onde ficavam seus dentes perdidos. “Achei que

você deveria saber.”

“Não vim aqui beber sua bebida aguada,” eu disse. “Estou tentando ajudar o Sig.”

O barman riu enquanto sacava uma navalha. Com sua outra mão, puxou uma bacia, e eu sabia muito

bem para que serviria aquilo tudo. “Uma pena ele não estar aqui pra ajudar você, né?”

“Você não está entendendo.” Lutei contra as mãos que me seguravam, mesmo sabendo que era inútil.

“A Guarda o jogou na prisão. Estou tentando tirá-lo de lá antes que o matem.”

“O Sig tá na prisão?” O barman esticou a língua e lambeu a lateral da lâmina. Isto produziu um

pequeno ferimento na ponta da língua dele, fazendo surgir um rastro de sangue. Ele cuspiu. “Bom.”

“Pegaram ele por assassinato,” eu disse. “Eles acham que ele está matando guardas.”

O barman congelou no meio do movimento que levava a lâmina até minha garganta. Em seguida,

jogou a cabeça para trás e gargalhou. “Sig? Eles acham que o Sig fez aquilo?”

Os outros se uniram ao barman. Entretanto, no momento em que ousei testá-los, as mãos voltaram

rapidamente para cima de mim. A piada havia acabado, o hobgoblin caolho colocou a lâmina de

volta em meu pescoço e decidi colocar tudo o que eu tinha em uma última tentativa desesperada de

me libertar. Mágica, balas ou pura sorte: o que fosse necessário, eu tentaria usar.

Mas nada aconteceu. As mãos brutas me apertaram ainda mais forte e alguém socou minha

mandíbula, fazendo com que eu visse estrelas. A navalha cintilou sob a iluminação do globo de luz

sujo atrás do balcão e eu percebi, com um certo desapontamento, que aquela seria minha última


visão.

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Então, o globo de luz explodiu.

A lâmina voou longe, acompanhada pelas mãos que me seguravam, enquanto todos que estavam me

atacando se abaixavam em busca de cobertura. Cuspindo sangue, rolei sobre o balcão e fiquei de pé.

Um orc, alguém que eu conhecia bem, estava parado na porta do bar com uma espingarda de dois

canos em suas mãos, incrustrada de runas e fumegante. Era o primo de Sig, Kai.

“Afastem-se!” Kai bradou, apontando a arma para qualquer um que ousasse olhar para ele. “O idiota

diz que está aqui por causa do meu primo, eu quero ouvir o que ele tem a dizer.”

Eu fiz um sinal de gratidão para ele. Kai e eu nem sempre nos demos bem. Na verdade, com as coisas

que sei sobre ele e como ele tem contrabandeado essência de dragão pela cidade, provavelmente ele

estaria melhor assistindo eu ser assassinado enquanto bebe uma cerveja morna num. Mas ele nunca

foi muito inteligente.

“Alguém está matando guardas,” eu disse. “Eles vão culpar o Sig.”

“Quem?” disse Kai. “Quando?”

Eu olhei ao redor para as criaturas nos encarando. “Talvez devêssemos conversar em um lugar mais

reservado.”

Kai balançou a cabeça e revelou um sorriso assustador. “Eu interrompi sua dancinha para ouvir o que

você tem a dizer sobre o Sig. Eu não gosto da sua música, vou deixar a festa recomeçar.”

O barman deu um risinho ao ouvir isto, e os orcs e goblins espalhados pelo local se uniram a ele. Eu

ouvi os kobolds gargalhando perto da porta.

“Walt Danson, Andrew Conners e Paolo Cartucci,” eu disse. “Uma, duas e três semanas atrás. Na

noite passada, Ames Kearns foi a quarta.”

“Não poderia ter sido o Sig,” disse Kai, balançando a cabeça. “Exceto por noite passada, ele tem me

ajudado todas as noites desde o mês passado. A noite passada foi a primeira noite de folga em sabe

lá quanto tempo.”

“Alguém além de você pode confirmar isto?” Eu olhei ao redor do aposento.

“O que, minha palavra não é suficiente?”

“Para mim, claro que é,” eu disse, resistindo à ânsia de soltar uma risada amarga. “Para Yabair?

Nem tanto.”

Kai grunhiu em frustração e coçou a cabeça. “Nós estávamos, bem, fazendo segurança para Henrik

Bricht,” disse ele. “Você acha que a palavra dele pode valer?”

“Ele é parte da família Bricht?” perguntei. Kai confirmou e eu suspirei aliviado.


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Os Brichts conquistaram seu dinheiro extraindo pedras para os muros da cidade. Existiam todos os

tipos de Bricht nos arredores do distrito Dwarfheim da Cidade do Dragão, e eles tinham influência

mais que suficiente, como um grupo, para se colocar diante da Guarda do Dragão Imperial. Eu não

participava muito destes círculos da alta sociedade, todavia, e seria impossível saber quem estava no

topo ou não entre os anciões da família sem um cartão de anotações. Ainda assim, era um passo na

direção certa.

Eu fiz um gesto na direção da porta. “Vamos ver Yabair, então, e informá-lo.”

“Achei que você havia dito que ele não acreditaria em mim.”

Eu encolhi os ombros. “Ele não acreditará, mas mandará alguém confirmar com seu amigo Henrik.”

Kai hesitou. “Talvez eu deva falar com Henrik primeiro.”

“Sig pode estar morto até você conseguir isto.”

Os ombros de Kai caíram em resignação. “Certo.”

“Hey”, disse o barman, espanando os cacos do globo de luz quebrado de seu pelo. Sua navalha

brilhou na outra mão enquanto ele apontava-a para mim. “Como vamos saber que isto não é algum

truque para fazê-lo sair daqui?”

“Você não saberá,” disse Kai, colocando sua espingarda sobre o ombro enquanto caminhava na

direção da porta, que os kobolds correram em confusão para segurar. “Mas se tentar nos impedir, terá

mais bagunça para limpar. De todo modo, não acho que o Max aqui volte a este lugar.” Ele olhou

para mim. “Certo?”

“Certo.” Eu o segui, certo de que alguém tomaria alguma atitude contra mim, mas ninguém o fez.

Quando cheguei na porta, falei sobre o ombro. “O atendimento é péssimo.”


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NÃO CONSEGUIMOS outra carona até chegarmos a uma parte da cidade com menos pele verde.

Mesmo assim, pedi para Kai se esconder nas sombras até eu conseguir um tapete para nós. Quando

chamei Kai, o condutor tremeu com a visão de um orc bem armado, mas teve o mérito de nos levar

para a parte alta, de qualquer maneira. Talvez estivesse assustado demais para nos dispensar.

Quando chegamos na delegacia, um guarda nos conduziu até uma sala de espera, onde Yabair nos

manteve esperando por uma eternidade. Reclamei algumas vezes com o sargento administrativo

gorducho destacado para nos vigiar.

“O Capitão Yabair não trabalha aqui,” ele disse. “Mandamos chama-lo e fui informado de que ele

está a caminho, mas não posso controlar quanto tempo ele decide levar até aqui.”

“Podemos ao menos visitar o prisioneiro?”

O homem balançou tanto a cabeça que sua papada sacudiu. “Temo que não seja possível.”

“Certo,” eu disse em uma entonação que deixava claro que nada estava certo.

No canto do aposento, Kai amaldiçoava e esbravejava. Eu controlei a vontade de mandá-lo se calar.

Ele tinha todo o direito de estar tão furioso quanto eu por esperar naquela sala, mas se arrumássemos

alguma briga, acabaríamos na mesma posição do Sig.

Por alguns momentos, considerei a opção de ignorar meu próprio conselho – começando uma briga e

esperando para a Guarda nos prender – na esperança de pelo menos acabarmos na mesma cela que

Sig, mas isto seria esperar demais da sorte. Kai continuava me olhando, entretanto, e eu sabia que ele

estava pensando na mesma coisa.

No momento em que tive certeza de que a paciência de Kai havia acabado e ele iria pular sobre mim

para fazer o sargento reagir, Yabair entrou caminhando pelo aposento. “Bom dia,” ele disse enquanto

arqueava uma sobrancelha para Kai. “Disseram-me que você tinha algo para mim.”

“Sig não pode ter matado aqueles outros guardas.” Apontei o polegar na direção de Kai. “Ele estava

trabalhando com seu primo em todas as noites do mês passado.”

Um sorriso estreito correu os lábios de Yabair. “E você acredita que possamos encontrar um juiz que

liberte seu amigo com base na palavra do primo dele?”

“Estávamos trabalhando para Henrik Bricht,” disse Kai, invadindo a conversa. “Ele irá confirmar.”

Yabair se virou para Kai como se só naquele momento tivesse se dado conta de sua presença. “Você

está certo disto?”

“Com certeza,” disse Kai, com a voz titubeando levemente. “Por que ele não o faria?”

Yabair deu de ombros de uma forma que fazia parecer que ele estava entretendo uma criança chata.

“Claro. Por que ele não o faria?”

Ele chamou o sargento administrativo ao seu lado e os dois trocaram sussurros que pareciam ficar


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mais acalorados a cada momento. Em certo ponto, Yabair olhou para nós, então pegou o sargento

pelo seu braço carnudo e o arrastou até o canto mais afastado da sala. A conversa cresceu de

sussurros para xingamentos velados, e Yabair guiou o sargento até a porta nos fundos da sala, abriu-a

e o empurrou através dela.

Depois de fechar a porta atrás do sargento, Yabair se voltou para nós e a expressão no seu rosto me

deixou horrorizado. Eu raramente havia a visto em um elfo antes. Ele estava tão embaraçado que

realmente ficara ruborizado.

“Eu temo ter –” Ele se interrompeu e começou novamente, desta vez olhando diretamente nos olhos

de Kai. “Seu primo está morto.”

O queixo de Kai despencou, mas nenhuma palavra saiu da sua boca.

“Havia uma faca com ele que a Guarda Auxiliar não havia percebido. Ele esfaqueou o próprio

pescoço com ela.”

“Isto é ridículo,” eu gritei. “Você sabe muito bem que não foi isto que aconteceu.”

Yabair se virou para mim, carrancudo. “Você está me chamando de mentiroso?”

“Se você acredita nesta história, estou o chamando de idiota,” eu disse, chegando muito perto do seu

rosto. “Ele estava preso em uma cela, sozinho, sem qualquer testemunha, acusado de matar guardas, e

você quer me fazer acreditar que ele se suicidou com uma faca que seria impossível estar com ele?”

Yabair podia estar envergonhado com o que aconteceu, mas não iria aceitar minhas ofensas. “Por

respeito à sua perda, darei a você a chance de se afastar de mim.”

“Ou o que?” eu disse, chocando meu peito contra o dele. “Você irá encontrar uma faca em mim e me

fará cair sobre ela? Quantas vezes será necessário fazer isto?”

A mão de Yabair serpenteou mais rápido do que eu podia acompanhá-la, mesmo sabendo que ela

estava vindo. Seus dedos envolveram meu pescoço e começaram a espremer. Tentei me afastar, mas

ele me puxou para perto com toda a sua força, então utilizei o movimento para tomar impulso e dar

uma cabeçada no nariz dele.

O sangue esguichou do rosto do elfo enquanto ele me soltava e caia sentado no chão. Livre de sua

garra, saquei minha varinha e apontei-a para ele antes mesmo de tomar fôlego. As palavras de um

encantamento terrível estavam na ponta da minha língua.

Yabair colocou as mãos sobre o nariz arruinado, sangue correndo entre os dedos. Foi impossível

deixar de perceber que seu sangue era da mesma cor que o meu. Ele olhou para mim e gorgolejou

uma risada condescendente.

“Vou relevar esta, Gibson,” ele disse. “Autodefesa. Eu estava estrangulando-o. Com certeza.”

Os olhos dele se concentraram na ponta da minha varinha. Eu parei de recitar o encantamento em sua

última sílaba, segurando-a em minha língua, enquanto ela queimava como carvão quente e implorava


para ser libertada para servir, finalmente, à seu propósito.

“Não faça isto, Gibson”, disse Yabair. “Para o seu bem, interrompa este encantamento e guarde a sua

varinha.”

Naquele momento, eu não queria nada além de liberar minha varinha e explodir Yabair em pedaços

tão pequenos e carbonizados que seria impossível encontrar todos eles. Eu teria feito isto. Cheguei

muito perto de fazê-lo.

Mas Kai colocou uma mão no meu ombro. “Esqueça, Max,” ele disse. “O elfo está certo. Sig está

morto. Matando Yabair aqui, na delegacia, você acabará da mesma maneira.”

Tentei dizer a mim mesmo que não importava, que eu precisava fazê-lo. Meu senso de justiça exigia.

Mas olhei para Yabair e sabia que estava errado.

Ele não matou Sig. A Cidade do Dragão o matou, e todos nós tivemos nossa parte nisto.

Eu baixei minha varinha e cuspi aquela sílaba final no chão.

Kai estendeu uma mão para Yabair, mas o elfo a ignorou e levantou-se por sua própria conta.

“Isto está terminado,” Yabair afirmou enquanto limpava o sangue das mãos em seu uniforme

carmesim. “Parta agora e isto fica entre nós.”

“Você não quer saber quem matou seus guardas?” disse Kai.

Yabair enrugou o nariz e estremeceu-se com a dor. Ele puxou um lenço do bolso e limpou o rosto.

“Mais do que qualquer outra coisa,” ele disse. “Mas no que compete à Guarda do Dragão neste

momento, encontramos nosso assassino e ele foi à justiça por suas próprias mãos.”

Eu pensei em socar Yabair no nariz novamente, mas Kai segurou-me pelo braço e me puxou para fora

da sala. Yabair não nos disse adeus.

Na rua, Kai saiu em passadas largas, desafiando-me a acompanhá-lo.

“Que diabos foi aquilo lá trás?” eu disse, perseguindo-o. “Desde quando é você que me segura, e não

o contrário?”

Ele deu de ombros e continuou caminhando. “Você entendeu errado, Max. Acabou.”

“O que você quer dizer?”

Ele não falou nada. Eu segurei-o pelo ombro e o puxei até um beco imundo, fora do caminho do

tráfego na rua.

“Eu disse, ‘o que você quer dizer?’”

“Deixa quieto, Max.”

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“Você me conhece.”

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Kai cedeu seu corpo contra a parede. “Ele precisava de um bode expiatório. Conseguiu um.

Acabou.”

“Ele não precisava de um bode expiatório,” eu disse, apontando de volta para a estação. “Ele

precisava que alguém parasse de assassinar guardas.”

“Não estou falando do elfo.”

Kai fechou a boca e esperou para que eu sacasse o que ele dizia. Fiquei olhando para ele.

“Você está falando do anão.”

Ele confirmou. “Bricht teve alguns problemas com a Guarda.”

“Problemas que resolveu com as próprias mãos.” Eu queria socar a cabeça de alguém, mas estava

com medo de escolher a mim mesmo. Ocorreu-me a ideia de que Yabair, afinal, talvez tenha pego o

culpado certo. “Então você matou aqueles guardas?”

Kai balançou a cabeça. “Na primeira vez que aconteceu, ficamos tão surpresos quanto qualquer

outro. Bricht foi a uma reunião com este guarda e então voltou com sanque até a barba. Ele fez Sig e

eu jurarmos segredo e nos deu um gordo saco de moedas para selar o acordo.”

“E quanto às outras vezes?”

Kai fez uma careta. “Na segunda vez, estava se reunindo com o chefe do primeiro guarda que ele

matou. Eles eram corruptos, ele disse, e ele estava pagando-os. Mas eles foram gananciosos e

pediram demais.”

“E Cartucci era o chefe do chefe.”

“Sim, mas matar um elfo foi longe demais. Foi quando a Guarda começou a se importar. Nós

precisávamos fazer algo para limpar a barra.”

Eu olhei para o orc. “Você fez?”

Kai colocou as mãos a frente, com as palmas para fora. “Ei, não. Ames e eu nunca nos demos muito

bem, principalmente depois que ela se uniu à Guarda, mas ela sempre me tratou decentemente. Bricht

não queria estar nem perto desta vez. Ele precisava de um álibi, então contratou alguém para fazer

por ele. Nós ficamos sabendo e Sig correu para avisá-la.” Ele grunhiu. “Imagino que tenha chego

tarde demais.”

Eu segurei as costas de Kai e o guiei para fora do beco e na direção da Pena. Depois disto, achei que

nós dois precisávamos de uma bebida forte. Talvez quatro.

“Você irá atrás de Bricht?” Eu disse, enquanto nos espremíamos pelas ruas iluminadas pelo sol. “Irá

se vingar?”


Kai mordeu o lábio superior. “Sig e eu não éramos tão próximos.”

“Sério?”

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“Não próximos o suficiente para que eu enfrente alguém como Henrik Bricht.” Ele me olhou de lado.

“E você?”

Para ser honesto, considerei esta opção. Caras como Bricht são exatamente o que há de errado nesta

cidade. No fim, entretanto, desde que vivo aqui, a cidade pertenceu ao Dragon, e não a mim.

“Depois de tudo que Sig fez, talvez devamos considerar o que aconteceu com ele como justiça, de

certo modo.”

Os lábios de Kai se curvaram em um sorriso retorcido. “Nós não fizemos pior?”

“Talvez,” eu disse enquanto abria a porta da Pena. “Mas a justiça precisará nos encontrar por conta

própria.”

FIM

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