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Editorial
Nos tempos de conturbação, o homem volve os olhos
para o céu em busca de resposta. Não é a questão do seu lugar
na ordem do cosmos, mas o apelo angustiado por socorro.
Essencialmente, a Quaresma é o deserto – e eis que nesse
tempo ele veio impor-se a nós. Ruas e praças do mundo sem
vozes; nações paradas sob o medo de um mal não visto. Toda
a terra presa em casa, confinada sem previsão de termo. Com
maior ou menor atenção, sentimos os estranhos rumos a que
temos caminhado, e é no deserto que convém sobre eles meditar,
pois os momentos de conforto não acendem o desejo de viver.
À sombra das maiorias e governos silenciosos, no eco
da vagueza insuportável dos discursos, reiteradas concessões
da nossa parte têm cedido aos caprichos compulsivos de alguns
bandos que, com crescente estridência, exigem de nós uma série
de renúncias, sob o lema de suposta liberdade. Quanto mais se
põem suspensas as balizas da consciência, quanto mais se nega
a essência das coisas, mais intensificam-se as farras e os festins.
Vãs querelas vêm trincando as nossas mesas, onde vêm
se insinuar com discussões obrigatórias, às quais todos são
chamados a prestar contas de convicções, dos seus valores, daquilo
a que mais amam. E, em respeito às lembranças mais
amadas, tende-se a esconder a autêntica medida de valor em
detrimento de um convívio tolerante, que julgamos salutar.
Que estrada é essa, esse tão decorado declive, que nos
vai distraindo com brilhos e galhofa, enquanto a bulha barulhenta
transforma absurdos em refrães irrefletidos? Onde
estão a nascente e a foz desse fluxo elaborado de preocupações,
que surge do nada para assumir o centro da vida nesses
tempos? De que modo alguns assuntos vêm ter paradeiro
em nossos dias, adentrando nossos lares sem convite?
De cima dos cadafalsos, alguma coisa sopra a dúvida no
tímpano dos homens.
A pretexto de noticiar os fatos, sofistas e tagarelas
empenham-se em moldar a convicção das multidões até onde
chegam suas palavras: formulações sem autor e sem sentido,
que avançam sob o plácido sono do juízo. É o ocaso
do discernimento, o desarme de toda reação ante a ameaça.
Ao mesmo tempo, não há como contestar haver entre nós
algo que destoa de tudo o que nos trouxe até aqui e nos ergueu.
Algo que sitia, infiltra-se e divide os fiéis no mundo inteiro; algo
que vagueia e escurece com ocas expressões os desígnios sagrados.
Vimos o abandono, a apostasia, da Fé cristiana.
Vimos a evasão de muitos batizados; o desolador descaso
pela Eucaristia – trocada por exibições de eficácia emotiva.
Há quem diga que ali se é mais feliz. Como se pudesse a oratória
superar o Mistério.
De dentro da Fé, o homem católico percebe que há gentes
na Igreja que não são Igreja. Do lado de fora, vai tendo
o peito acabrunhado pelos ditos sarcásticos de um mundo
insolente, mascarado de equilíbrio e isenção, enquanto
temos caminhado na senda maldita da repulsa pelo Nome
divino. Um espectro assumiu as nossas instituições: é ele que
tem aberto as alas para o retorno de um mundo neopagão.
Procurai, irmãos, saber o que passou: os inimigos que
acossaram os fiéis ao longo da sua história, sem escolha a não
ser dar-lhes batalha. Aqueles que os infiltraram e até lideraram,
desviando a sua missão. Procurai saber também o que se
passa agora; pois um fiel desinformado é uma carcaça à deriva.
Quem nos terá dito das capelas e catedrais que vêm sendo
transformadas em lugares noturnos? Algum de nós imaginou que
os seus altares e vitrais agora servem de ornamento a bebedeiras,
a danças e ao pecado? Houve igrejas transformadas em bordéis
– e acaso isto virou notícia? Alguém empreendeu-lhes obstáculo?
Os alarmes vêm soando, no meio dos tumultos: o dia já declinou.
E as algazarras dessa noite escondem grandes perigos. Nos
momentos de lúcido receio – no interior profundo desse círculo de
ferro onde Deus não é bem-vindo –, as massas vão-se entregando,
entusiasmadas, ao culto de forças proibidas. É a busca esperançada
de um propósito, o paladar fingido de um veneno adocicado.
Mas quem é como Deus?
Quem se atreverá a comparar-se com Aquele que
lançou as leis da terra e também do firmamento – Aquele
a cuja voz dão escuta as tempestades? Qual criatura quererá
medir-se com o Homem – autêntico e definitivo – do qual
somos imagem e semelhança? Falo Daquele que dá ordens à
manhã e diz à aurora onde clarear; que quebra o braço do
rebelde e purifica as águas para dar-nos de beber; Aquele
a quem os raios obedecem, quando os cântaros do céu
se entornam e vêm regar a terra, de onde vem o nosso pão.
Há muitas gerações, Sua voz trovejou aos mensageiros:
mandou-lhes escrever as Suas normas. Isso é o Seu Testamento;
e a quem se destina um registro senão àqueles que estão por vir?