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Pandemia e Neoliberalismo

Como pensar a experiência da morte na pandemia e suas consequências? Precisamos refletir a importância dos trabalhos de luto e melancolia como estratégias contra esse projeto que reduz a morte a uma mera expropriação da vida do outro e repensar a vida em comum. Em um cenário no qual o desejo de morte é política de poder, situar as consequências subjetivas e sociais para a experiência da morte apenas no campo da depressão reforça as condições de expansão da precarização do laço social. Ao mesmo tempo que o neoliberalismo promove a matança como um desejo, ele retira da morte a possibilidade de ser uma experiência de socialização. Este trabalho traz uma análise de como o neoliberalismo empobrece as condições de trabalho de luto em relação às perdas por morte e como isso se atualiza na pandemia do novo coronavírus. Este empobrecimento, longe de ser uma contingência, é um dispositivo importante para manter o sujeito sempre produtivo e, assim, continuar sustentando os princípios do neoliberalismo sem interrogação sobre seus pilares: a desregulamentação dos mercados; a concorrência; o isolamento dos sujeitos em relação ao laço social comunitário; o endividamento e a culpa concomitante que ele gera. A análise aqui é apresentada a partir das declarações do presidente do Brasil — mas não somente dele — sobre o enfrentamento da pandemia, quando esse empobrecimento da experiência da perda por morte é constantemente afirmado em nome de uma retomada da economia, pouco importando se as pessoas podem morrer ou não. Em contraponto a isso, afirma-se a necessidade de retomada do que Freud chama de trabalho de luto e do trabalho melancólico — inspirado em Enzo Traverso, são trabalhos coletivos e políticos e não individuais. Este duplo trabalho seria importante para colocarmos um tempo de suspensão e pensarmos sobre o desejo de morte que permeia o neoliberalismo e se atualiza dramaticamente durante a pandemia.

Como pensar a experiência da morte na pandemia e suas consequências? Precisamos refletir a importância dos trabalhos de luto e melancolia como estratégias contra esse projeto que reduz a morte a uma mera expropriação da vida do outro e repensar a vida em comum. Em um cenário no qual o desejo de morte é política de poder, situar as consequências subjetivas e sociais para a experiência da morte apenas no campo da depressão reforça as condições de expansão da precarização do laço social. Ao mesmo tempo que o neoliberalismo promove a matança como um desejo, ele retira da morte a possibilidade de ser uma experiência de socialização.

Este trabalho traz uma análise de como o neoliberalismo empobrece as condições de trabalho de luto em relação às perdas por morte e como isso se atualiza na pandemia do novo coronavírus. Este empobrecimento, longe de ser uma contingência, é um dispositivo importante para manter o sujeito sempre produtivo e, assim, continuar sustentando os princípios do neoliberalismo sem interrogação sobre seus pilares: a desregulamentação dos mercados; a concorrência; o isolamento dos sujeitos em relação ao laço social comunitário; o endividamento e a culpa concomitante que ele gera.

A análise aqui é apresentada a partir das declarações do presidente do Brasil — mas não somente dele — sobre o enfrentamento da pandemia, quando esse empobrecimento da experiência da perda por morte é constantemente afirmado em nome de uma retomada da economia, pouco importando se as pessoas podem morrer ou não. Em contraponto a isso, afirma-se a necessidade de retomada do que Freud chama de trabalho de luto e do trabalho melancólico — inspirado em Enzo Traverso, são trabalhos coletivos e políticos e não individuais. Este duplo trabalho seria importante para colocarmos um tempo de suspensão e pensarmos sobre o desejo de morte que permeia o neoliberalismo e se atualiza dramaticamente durante a pandemia.

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A pergunta freudiana também é pertinente diante dos arautos de uma

nova normalidade ao final de uma pandemia: de que normalidade, então,

devemos fazer o luto? Afirmar e admitir um novo normal, tal como ouvimos

cotidianamente, não parece nos eximir de ter que responder à pergunta

freudiana, já que de uma forma ou de outra seremos convocados a lidar

com o efeito de saber ou não saber o que perdemos naquilo que perdemos.

Essas perguntas, ou a falta delas, se aplicam não somente aos efeitos virológicos,

mas principalmente ao que podemos chamar de desejo de morte que

sustenta o laço social contemporâneo. Ou, dito de outra maneira: será que

não podemos afirmar que a pandemia atualizou um discurso como laço social

que se sustenta em um desejo de extermínio da alteridade? Não seria, então,

o momento adequado para fazermos o questionamento sobre o que se perde

ao se perder o normal? Que novo normal é esse que já se anuncia com tanta

naturalidade e que, ao que parece, é muito parecido com o velho normal, em

que as vidas precarizadas podem ser perdidas se não embarcarem em uma

normalidade sustentada pelo discurso do capitalista em sua face neoliberal? Por

que esse discurso em momento algum é questionado? E isso, como veremos,

retornará na forma de assombrações do passado de uma sociedade que não

consegue se haver com suas vítimas. Como diz Avery Gordon: “O fantasma

não é simplesmente uma pessoa morta ou desaparecida, mas uma figura

social, e sua investigação pode conduzir àquele denso local onde história e

subjetividade produzem vida social” (Gordon, 1997, p. 8). 2

Como demonstramos em um texto anterior 3 , o futuro ainda depende

de um ato e, se não examinarmos as estruturas simbólicas precárias deste

discurso que se atualiza na pandemia, os tratamentos propostos pela ONU

podem ser apenas dispositivos para que os sujeitos permaneçam presos a

esse discurso. É justamente disso que trataremos aqui ao nos perguntarmos

do que faremos o luto, já que não há outro normal.

2

Ao que Stephen Frosh comenta: “eles existem de fato, porque o que nos assombra é a realidade

negada das vidas oprimidas, vidas desmoralizadas ou abreviadas, vidas marginalizadas

e apagadas da história, vidas precárias tratadas como dispensáveis, mas impossíveis de serem

totalmente esquecidas, precisamente porque seus efeitos perduram” (2018, p. 58). Em parte,

Freud e a psicanálise se dedicam inicialmente a um tipo de vida que é desmoralizada: a dos

loucos em geral. Mas rapidamente passam a pensar no mal-estar na civilização que promove

uma série de imposições de desigualdades.

3

Disponível em: https://n-1edicoes.org/054. Acesso em: 06 ago. 2020

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