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Apostila - PIBID pdf.

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Apostila – PIBID

Capítulo 2 – O Antissemitismo Nazista

Introdução

Por certo, quando falamos da experiência

histórica do Nazismo, lembramos, a princípio,

dos horrores do holocausto. O termo

holocausto refere-se, neste sentido, ao

assassinato em massa de cerca de seis milhões

de judeus por parte dos nazistas durante a

Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).

Tratava-se de um programa sistemático de

extermínio das populações judias organizado

pelo Estado alemão, que objetivava, mediante

a ação, alcançar um ideal de “raça pura” para

o país. Os judeus eram entendidos, assim, como elementos indesejados, dotados de um

“sangue impuro”, e deveriam ser, portanto, exterminados. À vista disso, convém

questionar: o que levava o Estado Nazista a avançar com essa política genocida? Por

que vários grupos sociais foram duramente perseguidos pelo regime de Hitler? Em

particular, quais as raízes do ódio dos nazistas em relação aos Judeus, grupo religioso

que mais sofreu com tais perseguições? No decurso deste capítulo, tentaremos esboçar

respostas para essas questões. Contudo, antes de adentrar na temática do antissemitismo

propriamente dito, faz-se necessário recuar um pouco, a fim de que possamos perceber

as principais características do pensamento nazista.

Figura 1. Crianças sobreviventes em Auschwitz .Fonte:

https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2021/01/27/dia-em-memoria-das-vitimasdo-holocausto-comunidade-judaica-do-df-realizahomenagem-nesta-quarta.ghtml.

Aspectos gerais da ideologia nazista

Com efeito, no passado e no presente, os indivíduos, reunidos em grupos, expressaram

visões de mundo e opiniões acerca do ordenamento social, da vida econômica, das

questões religiosas etc. Tais elementos, por seu turno, configuram o que chamamos de

ideologia. Assim, ao falarmos dos aspectos gerais da ideologia nazista propomos uma

reflexão acerca dos principais componentes que caracterizaram o pensamento desse


movimento político. Como se sabe, a ideologia nazista é extremamente complexa e tem

sido alvo de distintas interpretações historiográficas ao longo do tempo. Dessa forma,

não iremos adentrar nos detalhes e nas discussões mais aprofundadas a respeito do

tema. Apresentaremos, contudo, os pontos indispensáveis ao seu entendimento.

Comecemos, portanto, analisando o seguinte esquema gráfico, que expõe, em linhas

bastante gerais, os mais relevantes tópicos da ideologia nazista:

Como se observa, um primeiro elemento fundamental do pensamento nazista é o

ultranacionalismo. Mas o que isso significa? Em resumo, podemos definir o

ultranacionalismo como a expressão extremada do sentimento nacionalista, isto é, como

a valorização excessiva da nação. Nesta perspectiva, a nação é alçada a uma condição

de superioridade em relação às demais instituições sociais, tais como a família, a

religião, o estado e a escola. Assim, o movimento nazista partia do pressuposto de que a

nação alemã deveria se afigurar como uma identidade suprema, capaz de se sobrepor

aos interesses individuais e coletivos. Nesta lógica, quaisquer pretensões subjetivas,

familiares ou religiosas que entrassem em conflito com os interesses nacionais deveriam

ser abolidas, a fim de que os objetivos da nação pudessem se concretizar. É importante

notar, dessa forma, que, a partir do ultranacionalismo, outras posturas ideológicas

nazistas se delinearam, como, por exemplo, a antidemocracia. Por esse ângulo, o

Nazismo se apresentava como um movimento eminentemente antidemocrático, haja

vista que entendia a democracia – modelo que propicia a pluralidade de ações políticas

– como algo prejudicial à nação, que deveria permanecer unida sob um governo


ditatorial. Ademais, outro aspecto da ideologia nazista que decorreu do

ultranacionalismo foi o anticomunismo. Nesta acepção, os nazistas se opuseram

radicalmente aos postulados marxistas, uma vez que os interpretavam como

profundamente danosos à coesão nacional. Isso porque, na visão do marxismo clássico,

o universo social se dividia em diferentes classes, definidas a partir da posição que

ocupavam em relação a um determinado modo de produção. Tais classes, por sua vez,

esboçavam uma tônica histórica de lutas constantes, propiciadas pelas contradições

inerentes às estruturas econômicas de um dado momento. Como já mencionado, a

ideologia nazista pressupunha a submissão dos interesses coletivos aos intentos

nacionais, de modo que, para ela, era inaceitável uma concepção de nação divida em

classes sociais, fator central de seu anticomunismo.

Por outro lado, o ultranacionalismo nazista era impulsionado pela utopia de uma nação

ideal que deveria ser construída. Assim, o discurso nazista fundamentava-se na premissa

de que a Alemanha se encontrava, naquela altura, em uma situação de degeneração

moral, que precisava ser revertida com urgência. Para os nazistas, uma das principais

causas de tal degeneração era a presença, em solo alemão, de um povo considerado

inferior: os judeus. Neste sentido, a constituição de uma nação ideal no futuro passava,

necessariamente, por um processo de “purificação da raça” no presente. Percebe-se,

dessa forma, que o ultranacionalismo nazista lançou as bases ideológicas para a

perseguição de milhões de judeus ao longo de um período relativamente curto de tempo.

É lícito demarcar, no entanto, que os judeus não foram os únicos perseguidos pelo

movimento nazista. Ao lado das populações judias, outros grupos eram também

considerados “indesejados” e “inimigos do estado”, tais como os homossexuais, os

ciganos, os comunistas, as Testemunhas de Jeová e as pessoas com deficiência. Para

uma reflexão mais completa sobre os grupos que foram atingidos pelas ações nazistas,

recomendamos uma visita ao site Enciclopédia do Holocausto, disponível no link:

https://encyclopedia.ushmm.org/pt-br.

Como quer que seja, é indubitável que as populações judias sofreram de modo

imensurável sob o domínio nazista. Nesta orientação, apesar de revelar-se indispensável

para a compreensão do antijudaísmo nazista, o ultranacionalismo não é, todavia,

suficiente para tanto. Isso porque, longe de configurar-se como uma construção do

Nazismo, o sentimento de hostilidade aos judeus já estava presente na Europa desde os

tempos medievais, fator que torna imprescindível uma análise do fenômeno em longa


duração. À vista disso, traçaremos, a seguir, os processos que foram responsáveis pelo

desenvolvimento de uma lógica antijudáica no âmbito da civilização ocidental, o que

nos permitirá visualizar, posteriormente, os pontos de ruptura e de continuidade entre o

antijudaísmo histórico e o antijudaísmo nazista propriamente dito.

Compreendendo o antijudaísmo

Feitas as considerações gerais acerca da ideologia nazista, comecemos a análise do

antijudaísmo com a leitura do seguinte trecho:

“[...] os judeus jamais deixarão deste orgulho e da glória de sua estirpe nobre. São

obstinados. Os cristãos devem precaver-se para que não sejam seduzidos por este

povo maldito e obstinado. [...] Nunca o sol iluminou um povo tão sanguinário e

vingativo, e ainda se julga o povo eleito de Deus! [...]. Em histórias muitas vezes são

acusados de envenenar poços, de roubar crianças e torturá-las [...] Eles habitam entre

nós, sob nossa proteção, usam nossa terra, nossas ruas, nossas feira e nossos becos. E,

muitas de nossas nobres autoridades, roncam impassíveis, de boca aberta, deixando os

judeus esvaziarem seus cofres [...] Como não trabalham, a nada têm direito, muito

menos que os paguemos com nosso dinheiro. No entanto, eles têm nosso dinheiro e

nossos bens e, apesar de estrangeiros, são donos em nossa terra.” (LUTHER, 1993,

p.10 – 17)

Figura 2. Martinho Lutero. Fonte:

https://brasilescola.uol.com.br/historiag/

martinho-lutero.htm.

Por certo, uma leitura rápida poderia facilmente inferir

que o texto em questão foi escrito por algum nazista

enfurecido. As expressões de ódio e o evidente

sentimento de hostilidade em relação aos judeus

oferecem margem para tal interpretação. Trata-se,

todavia, de um texto produzido em meados do século

XVI, ou seja, cerca de 400 anos antes da ascensão

nazista na Alemanha. Seu autor é bastante conhecido:

Martinho Lutero (figura 2), o propagador da Reforma

Protestante. O trecho apresentado acima faz parte de uma obra mais ampla, intitulada

Sobre os Judeus e Suas Mentiras, escrita pelo reformador em 1543. No tratado, Lutero

exalou injúrias e difamações a respeito das populações judaicas que viviam no Sacro

Império Romano-Germânico (atual Alemanha), defendendo a perseguição dessas

populações e a destruição de seus bens.


A exposição desse texto antijudáico do século XVI objetiva chamar a atenção para um

fato anteriormente mencionado: o antijudaísmo não foi uma invenção do movimento

nazista. Este, ao contrário, se apropriou de uma realidade vigente no mundo ocidental há

bastante tempo, concedendo-lhe novos contornos. Assim, cerca de quatro séculos antes

da Segunda Guerra Mundial, o monge agostiniano Martinho Lutero proferia, nos

confins da Europa, palavras de ódio em relação aos judeus. Antes mesmo de Lutero,

milhares de judeus foram perseguidos e expulsos de diversas regiões da Europa,

ocorrências que apontam, em última instância, para a necessidade de se compreender o

antijudaísmo em longa duração. Quando falamos em longa duração referimo-nos a

processos históricos que se desdobraram em um longo período de tempo e que foram

responsáveis por forjar realidades históricas mais permanentes. Em outros termos, dizer

que precisamos pensar o antijudaísmo em longa duração significa dizer que devemos

recuar no tempo e perceber, ao longo dos séculos, como essa lógica excludente se

manifestou em diferentes espaços. Voltemos, portanto, à Idade Média, e vejamos como

se deu o surgimento de um antijudaísmo generalizado no ocidente.

O surgimento de um antijudaísmo generalizado no ocidente: o papel das cruzadas

Ao que tudo indica, no Império Romano e nos reinos romano-germânicos da Alta Idade

Média (476 – 1000 d.C), judeus e cristãos conviviam de forma relativamente pacífica.

Como nos informa o historiador britânico Jeffrey Richards (1993, p.95), não há

nenhuma evidência de hostilidade popular generalizada contra os judeus no Império

Romano, embora haja casos episódicos de violências cometidas contra essas

populações. De igual forma, nos reinos romano-germânicos, que se estabeleceram em

diversas regiões da Europa após a queda de Roma, os judeus não foram

sistematicamente molestados, antes, chegaram a prosperar na Itália Ostrogótica e

Lombarda e na Gália Carolíngia (atual França), sendo, em geral, valorizados como

mercadores, diplomatas e soldados. É preciso compreender, todavia, que os judeus

representavam uma minoria entre os cristãos da Alta Idade Média. Eram, ademais,

populações com costumes, crenças e práticas distintas dos cristãos, o que os tornava um

objeto de perseguição em potencial. O trecho a seguir, escrito por Jeffrey Richards,

oferece uma boa síntese dessa situação. Segundo o autor:


“Ainda que no início da Idade Média os judeus vivessem livremente entre os cristãos,

vestissem as mesmas roupas e falassem a mesma língua que os seus vizinhos cristãos,

eles eram potencialmente vulneráveis à perseguição e à busca de bodes expiatórios.

Pois continuavam a ser uma minoria racial e religiosa distinta que se alimentava com

uma comida diferente, obedeciam a leis diferentes, praticavam serviços religiosos

distintos e educavam suas crianças separadamente [...].” (RICHARDS, 1993, p.95)

Com efeito, o ponto de ruptura com a situação

de relativa tranquilidade que demarcou as

relações entre judeus e cristãos no decorrer da

Alta Idade Média se processou em finais do

século XI, com o início das Cruzadas. Assim,

outrora integrados às dinâmicas sociais dos

reinos europeus, os judeus passaram a ser

brutalmente perseguidos em várias regiões da

Europa. Isso se explica pelo fato de que as

Cruzadas foram responsáveis por alterar a

Figura 3. Cruzados medievais. Disponível em:

https://www.mapsofworld.com/on-this-day/july-

15-1099-ce-the-first-crusade-ends-at-the-church-of-

visão da cristandade em relação àqueles que

the-holy-sepulchre/

dela não faziam parte, isto é, os chamados “infiéis”. Basta lembrar, a esse respeito, que

as Cruzadas, iniciadas por volta do ano de 1095, consistiram em uma série de

empreendimentos militares de inspiração cristã que objetivaram, sobretudo, conquistar a

Terra Santa, retirando Jerusalém do domínio mulçumano. Nesta lógica, milhares de

cavaleiros cristãos (figura 3), sob convocação papal, marcharam em direção ao oriente

para lutar contra os “inimigos da fé”. Observa-se, por esse ângulo, que as Cruzadas

atuaram no sentido de tornar os cristãos mais intolerantes em relação às demais crenças

religiosas. Desse modo, se era necessário combater os “infiéis” que estavam além das

fronteiras da Europa, como os mulçumanos, tornava-se ainda mais urgente combater os

que estavam no seio da própria cristandade, ou seja, os judeus. Por conseguinte, na

esteira do ideal de cruzada, desenvolveu-se uma campanha maciça contra as populações

judaicas que habitavam as distintas regiões do continente europeu.

A perseguição aos judeus na Baixa Idade Média


O historiador francês Jean Delumeau (2009, p.436) enfatiza que duas queixas

fundamentais se projetaram sobre os judeus a partir do início das Cruzadas. De um lado,

os cristãos os acusavam do crime de deicídio. Nesta orientação, os judeus eram tidos

como os responsáveis pela crucificação de Jesus, que, para a tradição cristã, era detentor

de uma natureza divina. Por outro lado, incidiam sobre as populações judaicas as

acusações de assassinatos rituais e cerimônias satânicas de profanação das hóstias

consagradas nos cultos católicos. Assim, ao longo da Baixa Idade Média (1000 – 1500

d.C), aos judeus foram injustamente imputados crimes como os de homicídio e

sacrilégio. Delumeau (2009, p.436 – 441) focaliza, nesta perspectiva, várias ocorrências

que evidenciam o desenvolvimento de um profundo sentimento de hostilidade em

relação às populações judaicas. O esquema a seguir apresenta alguns dos principais

marcos desse processo:

Movidos por uma mentalidade expansionista e intolerante, os cristãos de outrora

buscaram, então, mecanismos de combate ao judaísmo. Uma primeira ação consistiu em

forçar os judeus a se converterem à fé cristã. Nesta orientação, por toda a Europa,

multidões frenéticas de cristãos conduziram as populações judias às fontes batismais,

crendo, dessa forma, que água sagrada do batismo expulsaria o demônio de suas almas

(DELUMEAU, 2009, p.442). Ademais, a partir de finais do século XIII, pregadores


cristãos, invadindo bairros de maioria judaica, obrigavam essas populações a ouvirem

seus sermões. Tratava-se do esforço de levar os judeus a uma conversão genuína, que se

relevava, na maioria das vezes, ineficaz. Sobre esse aspecto, os dados elencados no

esquema a seguir nos ajudam a compreender a evolução dessa prática no bojo do

antijudaísmo medieval:

Figura 4. O Judeu, Pintura de Vasco

Fernandes.Fonte:https://www.reddit.

com/r/portugal/comments/8ht9ww/o

_judeu_pintura_de_vasco_fernandes

_mais_conhecido/

Para além dos esforços de conversão forçada das

populações judaicas, os cristãos medievais empenharam-se,

entre fins do século XII e início do século XIII, no

estabelecimento de uma série de medidas segregacionistas

que visavam, acima de tudo, isolar os judeus do restante da

cristandade. Assim, os III e IV Concílios de Latrão,

reunidos, respectivamente, em 1179 e 1215, definiram que

os judeus não mais poderiam ocupar cargos públicos nas

cidades, sendo obrigados, além disso, a usar trajes

diferentes dos cristãos. Na França, os judeus passaram a


vestir uma espécie de túnica com um círculo amarelo costurado no centro, enquanto

que, na Alemanha, passaram a portar um chapéu cônico sobre a cabeça. No desenrolar

do século XIII, os estatutos sinodais franceses confirmaram as decisões dos concílios,

proibindo os cristãos de empregar judeus como criados, de partilhar com eles refeições e

de encontrá-los em banhos públicos (DELUMEAU, 1993, p.444).

Nesta mesma linha, em 1412, um estatuto municipal publicado em Valladolid (atual

Espanha) impôs aos judeus, para além das medidas já em curso, a obrigação de morar

em um bairro fechado. Tratava-se da criação do primeiro gueto judaico da Europa. De

fato, os judeus detinham, há algum tempo, o costume de se agregar em bairros

específicos, que eram então reconhecidos como “judiarias”. Os guetos criados a partir

do século XV, no entanto, aproximavam-se mais de prisões que de agrupamentos

espontâneos. Jean Delumeau oferece-nos algumas informações a respeito desses guetos.

Vejamos o trecho a seguir:

“O bairro era fechado por muros e só comunicava com o exterior por uma

única porta trancada a cadeado todas as noites. A chave era entregue ao

corregedor ao cair do dia. Havia muito tempo os judeus tinham o hábito de

viver agrupados no interior de uma cidade. Mas pela primeira vez um bairro

israelita ganha fisionomia de prisão. Tais confinamentos são em seguida

decididos no Piemonte – em Vercelli e Nóvero – em 1448, depois em 1516

em Veneza, de onde parece ter vindo o termo ghetto.” (DELUMEAU, 2009,

p.446).

Ainda segundo o historiador francês, desde o estatuto de Valladolid, incentivados por

pregadores e bispos, guetos judaicos nasceram por toda parte nas regiões italianas.

Todavia, quando os guetos não se mostravam suficientes para extirpar os judeus do seio

da cristandade, recorria-se às expulsões. Assim, a partir de finais do século XIII, os

judeus foram expulsos de diferentes lugares da Europa. Este fenômeno ocorreu na

Inglaterra em 1290, na França em 1394, na Saxônia em 1424, na Espanha em 1492 e em

Portugal no ano de 1497.

O problema dos “cristãos-novos”


Frente a tal repressão, não raro os judeus encontraram na conversão um caminho para

permanecerem inseridos nas dinâmicas sociais da Europa cristã. Assim, no bojo do

processo de combate à fé judaica, milhares de judeus recorreram às autoridades

eclesiásticas a fim de aderirem ao cristianismo. Estes recém conversos, por sua vez,

passaram a ser reconhecidos como “cristãos-novos”, categoria que desempenhou um

papel essencial na definição das hierarquias sociais no início da modernidade. Contudo,

a despeito terem aparentado uma genuína conversão, muitos desses judeus logo

voltaram a praticar seus antigos ritos religiosos. Recusaram-se, por exemplo, a comer

determinados elementos tidos por impuros, mantendo, desse modo, suas tradições

ancestrais. Para os cristãos, tais ocorrências foram interpretadas como uma prova de que

nem mesmo as águas sacramentais do batismo eram suficientes para extirpar a fé

judaica da Europa, uma vez que o judeu parecia conservar a herança dos “pecados de

Israel”. Nesta lógica, o antijudaísmo cristão, sem deixar de ser teológico, tornou-se

também racial, e o judeu passou a ser visto não apenas como o responsável pela

crucificação de Jesus, mas também como o detentor de um sangue impuro

(DELUMEAU, 2009, p.452).

Em meio às tramas multifacetadas dos processos simbólico-culturais que permearam o

entardecer do medievo no ocidente europeu, observa-se, assim, a emergência de uma

categoria de exclusão social que se manteve por toda a modernidade, sendo resignificada

pela ideologia nazista na primeira metade do século XX. Nesta perspectiva,

os judeus e, consequentemente, os cristãos-novos, foram colocados em um plano de

inferioridade sanguínea em relação aos demais cristãos, realidade que, somando-se às

questões religiosas, produziu novos ordenamentos sociais. Sintomático desse processo

foi o estatuto municipal publicado na cidade de Toledo em 1449. Pela primeira vez na

Espanha, um corpo legal, baseando-se nos princípios do direito canônico e do direito

civil, enumerou uma série de heresias e crimes cometidos pelos cristãos-novos, que

foram então considerados indignos de ocupar cargos privados e públicos na cidade em

função de seu “sangue impuro” (DELUMEAU, 2009, p.453).

Por seu turno, a criação desses estatutos restritivos se espalhou por toda Europa a partir

de finais do século XV. Nas sociedades ibéricas do Antigo Regime, a política de

“pureza de sangue” se expressou em uma série editos, decretos, regimentos e

ordenações que proibiam os detentores de um “sangue impuro” de ingressar em ordens

militares, confrarias, cargos públicos e eclesiásticos etc. É importante demarcar, a esse


respeito, que, no caso do mundo ibérico, a categoria de portadores de “sangue

maculado” se estendeu também aos mouros, aos ciganos, aos negros escravizados e às

populações indígenas.

As transformações do antijudaísmo no século XIX

Como se verifica, os judeus, por constituírem uma minoria distinta em meio a uma

Europa cristã, figuraram-se como um objeto de perseguição em potencial, realidade que

se concretizou com as Cruzadas medievais. Desde então, um antijudaísmo cada vez

mais consistente e generalizado se espalhou pela cristandade, engendrando mecanismos

de segregação social e políticas preconceituosas em relação às populações judaicas. Tais

políticas, no que lhes concerne, se perpetuaram ao longo da Era Moderna, e os judeus

permaneceram socialmente estigmatizados. Em finais do século XVIII, no entanto,

percebe-se um movimento de alteração desse cenário. Influenciados pelos ideais

iluministas que rapidamente se propagaram pelo continente europeu, diversos estados

aboliram suas leis discriminatórias em relação aos judeus, reconhecendo-os como

cidadãos. Isso não significou, todavia, o fim do antijudaísmo na Europa. Ao contrário,

frente a um processo de tímida ascensão social das populações judaicas ao longo da

primeira metade do século XIX, o sentimento antissemita se mesclou aos nacionalismos

emergentes, e os judeus foram vistos, em particular entre os representantes de uma

média burguesia urbana, como usurpadores das riquezas das nações. Este fenômeno é

bastante evidente no caso alemão. Isso porque a Alemanha, tal como a conhecemos

atualmente, se constituiu por intermédio de várias guerras de unificação levadas à diante

pelo Reino da Prússia na segunda metade do século XIX. Assim, nas três últimas

décadas desse século, o recém fundado estado alemão sofreu com os efeitos econômicos

negativos das guerras, que limitavam as oportunidades de promoção para determinados

estratos sociais. Neste contexto de crise, os judeus foram novamente tomados como

“bodes expiatórios”, e o antijudaísmo recebeu novos contornos.


Figura 5. Arthur Gobineau (1816-

1882).Fonte:https://pt.wikipedia.o

rg/wiki/Arthur_de_Gobineau

Nesta acepção, é possível identificar, a partir da década de

1870, a produção de diversos escritos antijudaicos na

Alemanha. Estes escritos, para além da questão econômica,

enfatizaram, sobretudo, o fator racial ao tratar das populações

judaicas, uma vez que foram notoriamente influenciados

pelas teorias racistas em desenvolvimento desde meados do

século XIX. Assim, entre os principais autores referenciados

pelos antissemitas alemães da virada do século XIX para o

XX, encontramos o diplomata, escritor e filósofo Arthur Gobineau (figura 4), um dos

maiores teóricos do “racismo científico”. Em 1853, Gobineau escreveu um ensaio no

qual dividia a espécie humana em diferentes raças, defendendo a tese de que nenhuma

verdadeira civilização surgiu sem a iniciativa de pessoas da raça branca. Os pensadores

antijudaicos alemães, por outro lado, se apropriaram dessas premissas racistas para

demarcar a superioridade da raça ariana sobre as demais raças humanas, considerando

os germânicos como a mais evoluída linhagem dos seres humanos.

Observa-se, assim, que a ascensão do movimento nazista na Alemanha da década de

1920 se deu em um quadro histórico carregado de hostilidades e visões preconceituosas,

particularmente em relação às populações judaicas. Neste sentido, o discurso propagado

pelo Nazismo e, em especial, por seu principal representante, Adolf Hitler, insere-se em

uma realidade histórica de longa duração, o que nos ajuda a compreender, em alguma

medida, a potencialidade de suas ações políticas. Em suma, o Nazismo foi responsável

por amplificar um antissemitismo já enraizado no âmbito da civilização ocidental,

concedendo-lhe novas dimensões ao custo de milhões de vidas humanas.

Considerações finais do capítulo

Objetivando sintetizar a análise proposta neste capítulo, o esquema gráfico apresentado

abaixo retrata os elementos fundamentais do antijudaísmo medieval e moderno e do

antijudaísmo nazista propriamente dito. Nota-se, desse modo, que ambas as

experiências históricas encontram-se profundamente entrecruzadas, esboçando, assim,

rupturas e continuidades no tempo e no espaço.



Capítulo 3 – O Antissemitismo Nazista e a Saga Literária de Harry Potter

Introdução

Uma produção cultural, seja ela literária, fílmica, teatral, musical etc., sempre estabelece

diálogos com seu próprio tempo e com o passado. Isso porque, enquanto parte da

experiência humana, não apenas reflete os dilemas que assolam seu presente como

também faz transluzir diferentes níveis de consciência histórica, ressignificando

momentos históricos na produção de novos sentidos. É o que encontramos, com efeito,

na saga literária de Harry Potter, da escritora britânica J.K. Rowling. Ao narrar a vida

do jovem Harry, que descobriu ser um bruxo em seu aniversário de 11 anos, a série de

sete romances fantásticos se apropriou de um aspecto indispensável da ideologia nazista

para a construção de um dos eixos centrais da saga: a luta de Voldemort, o antagonista,

contra Harry. Por esse ângulo, propomos, neste capítulo, analisar como J.K. Rowling

mobilizou a experiência histórica do antissemitismo nazista na estruturação dos

discursos político-ficcionais que permearam o universo mágico de Harry Potter. Para

tanto, procederemos com uma descrição geral da narrativa, o que nos permitirá

identificar os elos entre a história e a ficção.

O universo mágico de Harry Potter

A chegada do bebê Harry

Toda a saga teve início quando Harry, ainda bebê, foi

abandonado na porta da casa de seus tios Válter e

Petúnia após seus pais terem sido assassinados. Válter,

um homem ranzinzo e mal-humorado, trabalhava em

uma empresa de perfurações chamada Grunnings,

enquanto Petúnia ficava em casa cuidando de seu filho

Duda. Este, por sua vez, era um garoto extremamente

mimado, e recebia tudo o que desejava dos seus pais.

Foi neste ambiente, portanto, que Harry passou a maior

parte da sua infância, que, dada a situação da família,

foi bastante complicada. Isso porque Harry nunca foi

Figura 6. “The arrival of baby Harry”. Fonte:

https://br.pinterest.com/pin/797629783982378

092/

bem tratado pelo casal, ao contrário, vivia abandonado dentro de sua própria casa,


permanecendo recluso, na maior parte do tempo, em um pequeno cômodo localizado

abaixo da escada principal. Harry era, assim, um menino magro de cabelos escuros.

Suas roupas estavam sempre em más condições, haja vista que eram as roupas usadas de

Duda. No rosto, Harry portava um óculos remendado por fitas, uma vez que seu primo

mimado o quebrara diversas vezes. Contudo, o que diferenciava Harry de Duda e dos

demais garotos de sua idade era uma cicatriz em forma de raio em sua testa. Válter e

Petúnia disseram ao garoto que a cicatriz fora adquirida por ele no acidente de carro que

matara seus pais, o que, no entanto, não passava de uma grande mentira. Com efeito,

Válter e Petúnia, apesar de conhecerem a real história de Harry, recusavam-se a falar do

assunto, negando a Harry o conhecimento de si mesmo e de seus pais.

“Harry, você é um bruxo!”

Figura 7. As cartas de Hogwarts. Fonte:

https://www.spiritfanfiction.com/historia/sote-peco-uma-chance--harry-potter-e-a-pedrafilosofal-13979481/capitulo8

Toda essa situação dramática, entretanto, se

transformou nas vésperas do aniversário de 11 anos

de Harry. Na ocasião, o garoto começou a receber

diversas cartas da Escola de Magia e Bruxaria de

Hogwarts, um centro de formação para jovens

bruxos. Seus tios, não obstante, o impediram de ler

essas cartas, tendo em vista que temiam o mundo

dos bruxos. As circunstâncias, contudo, se tornaram

insustentáveis. Isso porque as cartas simplesmente

não paravam de chegar à casa dos Dursley. A cada

dia, as cartas dobravam em número, aparecendo nos

lugares mais improváveis, como embaixo da porta,

nas arestas das janelas e em meio a alguns ovos. Por fim, dezenas de cartas emergiram

da lareira e inundaram a casa. Furioso, Válter reuniu a família a fim de fugirem do

lugar. Entraram no carro e viajaram por quilômetros em direção a uma pequena cabana

localizada em uma ilha distante. Já era noite quando chegaram ao local, e, diante da

tempestade que assolava o exterior, resolveram dormir.

Foi então que Hagrid, o guardião das chaves de Hogwarts, apareceu pessoalmente na

cabana para levar Harry à escola de bruxaria, revelando ao garoto sua condição de

bruxo. O trecho a seguir, retirado do primeiro livro da saga, retrata esse momento:


Harry olhou para o gigante. Quis dizer obrigado, mas as palavras se

perderam a caminho da boca, e em lugar disso o que disse foi: - Quem é

você? O gigante deu uma risada abafada. – É verdade, não me apresentei.

Rúbeo Hagrid, Guardião das Chaves e das Terras de Hogwarts. [...]

Tio Válter de repente encontrou a voz: - Pare! – ordenou – Pare agora

mesmo! Eu o proíbo de contar qualquer coisa ao menino! [...] Tia Petúnia

deixou escapar um grito sufocado de horror. [...]

- Ah, vão tomar banho, vocês dois – disse Hagrid

- Harry, você é um bruxo.

(ROWLING, 2000, p.33 – 34)

Hogwarts e o universo que se apresenta

Sob orientação do gigante guardião, Harry chegou

a Hogwarts (figura 8) após uma longa viagem de

trem. Na escola, os novos alunos foram recebidos

na porta de entrada pela Proa. Minerva

MacGonagall, que os conduziu para o salão

principal a fim de que fossem selecionados para

uma das quatro casas da Escola. Isso porque, em

Hogwarts, os alunos eram divididos em quatro

equipes, divisão esta feita com base nas

características emocionais e intelectuais dos novos

estudantes. Assim, a primeira casa, chamada

Sonserina, recebia as crianças que tinham por

principal característica a ambição, enquanto que a

segunda casa, chamada Grifinória, contemplava os

mais corajosos. A casa de Lufa-Lufa, por outro lado, admitia os alunos que prezavam

pela gentileza, e a casa de Corvinal, por fim, recrutava os mais sábios. A seleção era

feita por um chapéu mágico que, colocado sobre a cabeça dos recém chegados,

discernia suas personalidades. Harry, no que lhe concerne, foi indicado para a casa de

Grifinória, à qual se juntou com seus novos amigos.

Figura 8. Hogwarts. Fonte:

https://br.pinterest.com/pin/701576448192193373/


O menino que sobreviveu

Figura 9. Lord Voldemort. Fonte:

https://harrypotter.fandom.com/ptbr/wiki/Tom_Riddle

É interessante notar, neste sentido, que Harry não era, a esta

altura, um herói completo. Ao contrário, Harry foi se

constituindo enquanto herói no decorrer de suas próprias

vivências no mundo bruxo, que também lhe concederam a

possibilidade de se autoconhecer. Assim, logo nos

primeiros meses que permaneceu em Hogwarts, Harry

percebeu que, a despeito de sua terrível infância na casa de

seus tios, ele era, na verdade, um garoto famoso, sendo

conhecido no universo mágico como “o menino que

sobreviveu”. Isso porque, quando ainda bebê, Harry havia

sobrevivido ao ataque de um dos mais poderosos bruxos da época: Lord Voldemort

(figura 9).

Voldemort, com efeito, era um bruxo extremamente ambicioso e, assim como Harry,

teve uma infância bastante complicada, uma vez que, após a morte de sua mãe no

momento do parto e o abandono por parte de seu pai, foi encaminhado para um

orfanato, onde cresceu sem amigos. Por ser um bruxo, recebeu uma carta da Escola de

Magia e Bruxaria de Hogwarts em seu aniversário de 11 anos. Na Escola, engrossou as

fileiras da casa de Sonserina, envolvendo-se em diversas ações reprováveis. Por certo,

um dos maiores feitos de Voldemort ao longo de sua trajetória como bruxo foi a

confecção de Horcruxes, objetos especiais que, por meio de um complexo feitiço,

guardavam um pedaço da alma de quem as criava. Ao produzir essas Horcruxes,

Voldemort objetivava alcançar a imortalidade, haja vista que, para ele, nada era mais

angustiante que a morte.

E foi esse incontrolável medo da morte que levou Voldemort a atentar contra a vida de

Harry quando este ainda era um recém-nascido. Isso se deu em função de uma profecia

que apregoava que um garoto nascido em julho de 1980 poderia, no futuro, derrotar o

Lord das Trevas. Ora, Harry nascera exatamente nessa época, o que levou Voldmort a

planejar seu assassinato. Todavia, os fatos não saíram em consonância com os intentos

de Voldemort, que, apesar de ter conseguido matar os pais de Harry, não foi capaz de

eliminar o garoto. Este, ao contrário, sobreviveu.


Assim, toda a saga de Harry Potter orienta-se a partir desse conflito essencial. De um

lado, o Lord das Trevas, bruxo maligno que pretende executar um projeto político

abominável. De outro, Harry, o menino que, por ter sobrevivido, pode derrotá-lo e

salvar o mundo dos bruxos. Nas tramas dessa dicotomia elementar, encontramos os

elementos que representam uma re-significação da ideologia nazista em um mundo

mágico idealizadado.

As categorias “raciais” do universo de Harry Potter e o projeto racista de Voldemort

O universo mágico de Harry Potter caracterizou-se, entre

vários outros pontos, pela existência de divisões raciais

entre os bruxos. Em primeiro plano, os bruxos eram

compreendidos como sujeitos diferentes da maioria dos

indivíduos comuns, que, por não possuírem poderes

especiais, eram chamados de “trouxas”. Tratava-se, assim,

de uma demarcação “racial” basilar, por meio da qual se

operava uma divisão entre os que dominavam as artes

mágicas – os bruxos – e os demais seres humanos, que não

conheciam as forças ocultas do universo. Os bruxos,

todavia, não eram vistos de forma homogênea, uma vez que sobre eles pairava três

grandes categorias de distinção “racial”. A primeira referia-se, assim, aos considerados

“puros-sangues”, isto é, os bruxos que nasceram de pai e mãe também bruxos. Em

outros termos, essa categoria contemplava aqueles cuja ascendência familiar era bruxa

por nascimento. A segunda categoria, por sua vez, englobava os bruxos designados

como “mestiços”, ou seja, aqueles que nasceram de um pai bruxo e de uma mãe trouxa

ou vice versa. Por fim, na terceira categoria estavam todos os que, apesar de terem

nascido de pais puros-sangues, não detinham poderes mágicos, sendo chamados, então,

de “abortos”.

Figura 10. Salazar Sonserina. Fonte:

https://harrypotter.fandom.com/ptbr/wiki/Salazar_Sonserina

É preciso entender, neste sentido, que Lord Voldemort não possuía apenas um projeto

pessoal, calcado no inabalável desejo de alcançar a imortalidade. Antes, seu projeto era,

acima de tudo, coletivo, e consistia na aspiração por fazer valer os ideais propagados

por Salazar Sonserina (figura 10), o criador da casa de Sonserina e um dos fundadores

de Hogwarts. Faz-se necessário notar, nesta perspectiva, que Hogwarts foi fundada por


quatro grandes bruxos em um passado bastante remoto. No princípio, cada um deles

trabalhou com empenho e afinidade. Passado algum tempo, contudo, Salazar Sonserina

distanciou-se dos demais bruxos após apresentar um projeto que desagradou a todos.

Para Sonserina, apenas os alunos que fossem sangue-puro deveriam ser admitidos em

Hogwarts, tendo em vista que, na sua concepção, os mestiços eram inferiores e indignos

de receberem os ensinamentos mágicos. O trecho a seguir, referente à fala do professor

de história da magia da escola de Hogwarts, explica de forma bastante clara essa

situação:

“Os senhores todos sabem, é claro, que Hogwarts foi fundada há mais de mil

anos... a data exata é incerta... pelos quatro maiores bruxos e bruxas da época. As

quatro casas da escola foram batizadas em homenagem a eles: Godrico

Gryffindor, Helga Hufflepuff, Rowena Ravenclaw e Salazar Slytherin [...].

– Durante alguns anos, os fundadores trabalharam juntos, em harmonia,

procurando jovens que revelassem sinais de talento em magia e trazendo-os para

serem educados no castelo. Mas então surgiram os desentendimentos. Ocorreu

uma cisão entre Slytherin e os outros. Slytherin queria ser mais seletivo com

relação aos estudantes admitidos. Ele acreditava que o aprendizado de magia

devia ser mantido no âmbito das famílias inteiramente mágicas. Desagradava-lhe

admitir alunos de pais trouxas, pois os achava pouco dignos de confiança.

Passado algum tempo, houve uma séria discussão sobre o assunto entre Slytherin

e Gryffindor, e Slytherin abandonou a escola.”

(ROWLING, 2000, p.90)

Apesar de não terem se concretizado, as propostas de Salazar Sonserina foram

responsáveis por engendrar uma visão preconceituosa no mundo bruxo em relação

àqueles que não detinham um sangue puro. Nesta lógica, muitos membros da casa de

Sonserina passaram a chamar os mestiços de “sangue ruim”, e, no cotidiano da escola,

os viam como indivíduos inferiores aos que possuíam um sangue verdadeiramente

“digno”. O trecho apresentado abaixo expressa como essa noção preconceituosa se

processava no dia a dia dos alunos de Hogwarts. Trata-se do episódio em que Draco

Malfoy, aluno sangue-puro da casa de Sonserina, chamou Hermione, uma bruxa


mestiça, de “sangue ruim”. O amigo da garota, Rony, explicou a ela o que isso

significava efetivamente. Conforme se segue:

– É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer – ofegou Rony,

voltando. – Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe,

que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy,

que se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas

chamam de sangue puro. – Ele deu um pequeno arroto, e uma única lesma caiu

em sua mão estendida. Ele a atirou à bacia e continuou: – Quero dizer, nós

sabemos que isso não faz a menor diferença. Olha só o Neville Longbottom, ele

tem sangue puro e sequer consegue pôr um caldeirão em pé do lado certo [...].

– E é uma coisa revoltante chamar alguém de... – começou Rony, enxugando a

testa suada com a mão trêmula – ... sangue sujo, sabe. Sangue comum. É

ridículo. A maioria dos bruxos hoje em dia é mestiça. Se não tivéssemos casado

com trouxas teríamos desaparecido da terra.

(ROWLING, 2000, p.71)

Desse modo, ao longo dos séculos, uma lógica preconceituosa e excludente foi se

enraizando em determinados setores do mundo bruxo, fator que propiciou a ascensão de

discursos e práticas discriminatórias. De fato, foi o que ocorreu com Lord Voldemort.

Este, um membro fiel da casa de Sonserina, odiava os bruxos mestiços e os trouxas,

embora ele mesmo não fosse um “sangue-puro”. Sendo assim, ao lado de suas

pretensões individuais, Voldemort criou uma rede de seguidores dispostos a lutar pela

implantação do projeto de Sonserina, isto é, pela “purificação” da raça bruxa, que

passava, necessariamente, pela eliminação daqueles que eram considerados inferiores.

Direcionada aos seus seguidores, a fala de Voldemort exposta abaixo evidencia

claramente o potencial destrutivo desse projeto:

“[...] – E, tal como fazem na família, façam no mundo também... vamos

extirpar o câncer que nos infecta até restarem apenas os que têm o

sangue verdadeiramente puro.”

(ROWLING, 2007, p.13)


Um projeto político: entre a história e a ficção

Observa-se, pelo exposto, a proximidade

entre a história e a ficção. No mundo mágico

de Harry Potter, a existência de diferentes

categorias “raciais” ensejou discursos

discriminatórios e ações preconceituosas que

foram se desenvolvendo ao longo do tempo.

Neste sentido, Lord Voldemort, ao propor a

“purificação” da raça bruxa mediante a

extinção dos bruxos mestiços, se apropriava

de uma lógica racista já enraizada naquele

universo, concedendo-lhe novas dimensões.

Podemos, com efeito, estabelecer uma relação

entre o antagonista da saga literária de Harry

Potter e o líder do movimento nazista Adolf

Hitler, haja vista que, notoriamente, J.K.

Rowling construiu a figura de Voldemort a

partir desse referencial histórico. Por esse

ângulo, tal como ocorre na ficção, Hitler, ao

Figura 11. Voldemort. Fonte:

https://tr.pinterest.com/pin/743656957197152779/

defender a purificação da raça ariana por meio

da eliminação daqueles que eram considerados

Figura 12. Adolf Hitler. Fonte:

https://fax.al/news/16044548/vdekja-e-adolf-hitleritserish-ne-pikepyetje

indesejados, em relação aos quais se enfatizava os judeus, se apropriava de concepções

e práticas historicamente construídas em processos de longa duração, como analisamos

no caso do antijudaísmo. Ademais, assim como o movimento liderado por Voldemort

na saga de Harry Potter, o movimento nazista inseriu-se em um mundo fortemente

marcado pelas divisões raciais forjadas no decorrer do século XIX, divisões estas que,

somando-se à ideologia nazista, concedeu ao antijudaísmo contornos particulares. Nesta

orientação, verifica-se, tanto na história quanto na literatura, a existência de rupturas e

continuidades nos processos históricos. Quer isso dizer que nenhum acontecimento

carrega, em si mesmo, o potencial de transformação completa da realidade, antes,

vinculando-se ao seu passado, apresenta elementos de permanência. Em termos mais

simples, no plano das vivências sociais, econômicas, políticas e culturais dos seres

humanos, nada muda de uma hora para outra e nenhuma alteração é total. De igual


maneira, em Harry Potter e na experiência histórica concreta, percebe-se que os fatos

constituem apenas a “ponta do iceberg” da história, importando mais para a

compreensão dos fenômenos humanos a análise dos processos. Em suma, todos esses

apontamentos nos ajudam a entender que pensar historicamente implica, sobretudo,

perceber as tramas que, atuando em longa duração, garantem uma relação dinâmica e

complexa entre o passado e o presente, relação esta caracterizada, fundamentalmente,

por rupturas e continuidades.

Considerações finais

Nosso objetivo com esta apostila foi, em primeiro lugar, apresentar o desenvolvimento

histórico do movimento nazista na Alemanha do século XX, enfatizando, em especial,

os efeitos negativos da Primeira Guerra Mundial e os principais marcos da ascensão do

Nazismo na Europa. Posteriormente, a fim de que pudéssemos compreender um eixo

central da ideologia nazista, procuramos mapear o processo de evolução de uma lógica

antijudaica no âmbito da civilização ocidental desde os séculos medievais, atentando

também para as rupturas que se processaram no século XIX. Finalmente, buscamos

estabelecer um diálogo entre a história e a literatura, com o intento de demonstrar que o

conhecimento histórico encontra-se presente em diversas dimensões das nossas

vivências individuais e sociais. Esperamos, assim, que uma compreensão mais clara a

respeito da dramática experiência histórica do nazismo tenha se concretizado, e que a

exposição dos elos entre a história e a saga literária de Harry Potter tenha contribuído

para despertar novos olhares em relação ao conhecimento histórico.


Referências bibliográficas

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009.

RICHARDS, J. H. Sexo, desvio e danação. Zahar, 1993.

ROWLING, J.K. Harry Potter e a pedra filosofal. Tradução de Lia Wyler. Rio de

Janeiro: Rocco, 2000.

______.Harry Potter e a câmara secreta. Tradução de Lia Wyler. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000.

______. Harry Potter e as relíquias da morte. Tradução de Lia Wyler. Rio de

Janeiro: Rocco, 2007

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