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<strong>PHILIP</strong><br />
Yara Grottera<br />
Ilustrações de<br />
Paulo Zilberman
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
G881<br />
Grottera, Yara<br />
Philip / Yara Grottera ; [ ilustrações de Paulo Zilberman; direção geral de<br />
Valdir Cimino; revisão de Maria Inês Sarzana ]. – São Paulo : Edições Viva e Deixe<br />
Viver, 2019.<br />
54 p.<br />
ISBN: 978-85-60129-47-8<br />
1. Literatura infanto-juvenil. I. Cimino, Valdir. II. Sarzana, Maria Inês. III.<br />
Título. IV.<br />
CDD: 028.5<br />
CDU: 82-93<br />
Ficha catalográfica elaborada por: Adriana Aparecida da Luz - CRB: 8/9360<br />
Índices para catálogo sistemático<br />
1. Literatura infantil 028.5<br />
2. Literatura infanto-juvenil 808.899282
Dedico a quem me estimulou
“Vale mais possuir um espírito ardente, sujeito a cometer<br />
erros, do que permanecer limitado e excessivamente prudente.”<br />
Trecho de uma das cartas escrita por Vincent Van Gogh<br />
ao seu irmão Theo Van Gogh
Dizem...<br />
Que os poetas são aqueles<br />
que dão às palavras o sentido que lhes<br />
convém para serem compreendidos.<br />
Pois bem,<br />
acho que não tenho nada de poeta, pois,<br />
às vezes, me engasgo no sentido das coisas.<br />
A linguagem falada não deveria ser construída<br />
por palavras, pois se não as encontro para escrever,<br />
não as terei para falar.<br />
Assim, diante de tanta importância, quantas vezes<br />
acabo transmitindo tudo num gesto de afago,<br />
num abotoar de braços ou num forte abraço?<br />
Outras vezes, recorro a imagens coloridas, quadros ou formas.<br />
O que vem a seguir é uma tentativa, frases absolutamente<br />
honestas, colocadas numa ordem quase lógica para escrever<br />
isso,que têm vontade de parecer um conto.
I<br />
Suas voltas, toda manhã, eram um hábito<br />
que Philip jamais perderia.<br />
Os caminhos variavam: entre estas<br />
e aquelas árvores, pousando<br />
neste ou naquele galho. Isso<br />
não importava, mas, sim, o<br />
respirar daquele ar úmido de<br />
orvalho, daquela membrana<br />
transparente nas penas.<br />
Não sabia se era feliz, pois só<br />
se dava conta de momentos e<br />
não conseguia organizá-los<br />
como um todo.<br />
Por isso, costumava pensar<br />
que sua vida era meio<br />
sem pé nem cabeça, já que<br />
os fatos não mereciam<br />
nunca uma sucessão lógica.<br />
O tempo vivido não<br />
podia ser medido sempre<br />
com a mesma unidade,<br />
pois sua duração variava<br />
de acordo com a satisfação<br />
proporcionada pela vivência.<br />
Assim, ele sempre se<br />
referia ao passado como ontem,<br />
mesmo que este tivesse<br />
acontecido há anos.<br />
Lembrava-se com mágoa de certas<br />
passagens e vibrava de emoção<br />
com outras lembranças.<br />
Sim, sem dúvida, Philip tinha um passado<br />
que comprometia seu estado de<br />
espírito e, sempre que se referia ao<br />
ontem, enchia o peito para exibir<br />
sua vivência.<br />
Era muito benquisto e tinha alguns<br />
companheiros que o amavam<br />
com devoção talvez pela<br />
sua forma solícita e falante,<br />
tentando parecer esclarecido<br />
e seguro.<br />
Philip não abria mão das revoadas,<br />
uma vez que era inevitável<br />
a sua procura.<br />
Suas asas se moviam compassadas,<br />
como se não dependessem<br />
mais de seus controles<br />
e, como sempre, seus pensamentos<br />
estavam voltados para<br />
a solidão, aquele buraco<br />
frio que caminhava dentro do<br />
seu corpo, ora alojando-se na<br />
ponta das asas impedindo-o<br />
de voar, ora no bico emudecendo<br />
suas lindas canções.<br />
Mas o pior, mesmo, era quando<br />
se escondia no coração.<br />
Aí, então, Philip sentia enrijecer<br />
todos os seus pensamentos e permitia<br />
que seu corpo se entregasse<br />
à morbidez daquele sentimento, tirando-lhe<br />
o brilho dos olhos e a vontade<br />
de viver.
II<br />
Especialmente naquele dia, Philip percebia estar revoando<br />
sobre um terreno totalmente novo.<br />
Mesmo os pássaros que passavam por ele eram diferentes.<br />
Alguns, demais apressados, outros com os olhos cobertos<br />
por uma neblina escura e os maiores com a feição<br />
estremecida e severa.<br />
Acho que eu me esqueci de mencionar no<br />
capítulo anterior outra característica<br />
muito importante do Philip: sua absoluta<br />
distração toda vez que estava<br />
preocupado com alguma coisa.<br />
E aquilo o preocupava - os olhares,<br />
a simpatia - coisas que não<br />
eram relevantes para outros<br />
como ele.<br />
Seu voo, quase sem<br />
perceber, tornavase<br />
mais lento, e a<br />
cada minuto ele<br />
sentia mais<br />
medo de<br />
olhar para os<br />
lados.<br />
Numa das vezes<br />
que o fez, percebeu a<br />
presença de um pássaro<br />
estranho com um semblante<br />
que parecia de cera. Para onde<br />
se voltava, “ele” o seguia sem<br />
mover a pálpebra num olhar calado.<br />
Philip nem pensou em cumprimentar<br />
ou perguntar nada, já que o tal pássaro<br />
assumia ares de quem não fazia nada<br />
mais do que a sua obrigação.<br />
Para quem seguir Philip<br />
parecia ser um ato resultante<br />
de um acordo entre<br />
cavalheiros.<br />
Sem dúvida “ele” incomodava<br />
Philip, mas... No meio<br />
de tantas coisas estranhas, com as quais aparentemente<br />
não concordava, aquela não era a de maior vulto. Parece<br />
natural o fato de nos encolhermos num quarto escuro onde só os<br />
sonhadores se sentem grandiosos.<br />
Naquele momento, Philip pensou que queria ter olhos de estrelas para enxergar<br />
no escuro, pois lá as pessoas devem deixar o rosto com a verdadeira<br />
feição dos seus sentimentos.
III<br />
Philip decidiu pousar para descansar<br />
um pouco.<br />
A sombra formada no chão denunciou<br />
que “ele” ainda estava ao seu lado.<br />
Philip estava confuso e não conseguia<br />
ser dono dos seus pensamentos. Todo o<br />
lugar era estranho: aquelas árvores sem<br />
brilho, aquela calçada movimentada, aquele<br />
barulho de multidão - como se todos os homens<br />
aprendessem a andar marchando.<br />
Naquela hora nem passava pela sua ideia voltar<br />
e ele nem percebia que a tarde renunciava<br />
frente à escuridão da noite.<br />
Queria entender o significado das coisas, mas o<br />
alcance de entendimento lhe parecia tão distante<br />
que ele começava a se conformar tomando a aparência<br />
como determinação.<br />
Tentava conversar com outros que pousavam, mas<br />
era como se não ouvissem ou compreendessem suas<br />
palavras.<br />
Todos se comportavam de forma semelhante, como se<br />
seus íntimos fossem moldados pelo mesmo artista; um<br />
artista seguro, que mantinha em todas as obras as linhas<br />
do seu gênero triste.<br />
Sentia fome e procurou algo entre o jardim que lhe saciasse<br />
o apetite.<br />
Porém foi imediatamente interrompido. Eles apareceram,<br />
amarrando suas asas.
IV<br />
Quem é você?<br />
Tinham as caras muito parecidas<br />
com aquele que o perseguia.<br />
Tanto que agora, no meio de tantos,<br />
Philip não o distinguia. Aquela mesma<br />
feição inexpressiva como se os<br />
músculos fossem<br />
feitos nas<br />
medidas<br />
certas.<br />
Suas asas<br />
paralisadas pelos laços faziam crescer<br />
um nó de angústia.<br />
O silêncio cruciava aquele momento.<br />
Os outros pássaros passavam ao largo,<br />
talvez curiosos, mais acostumados.<br />
Nenhum se aproximava para fazer<br />
nada, e Philip até começava a se<br />
achar culpado mesmo sem saber do<br />
que se tratava.<br />
O que está fazendo aqui?<br />
De onde vem?<br />
O que procura?<br />
Finalmente um se adiantou e perguntou<br />
num tom compassado:<br />
Philip fazia menção de responder,<br />
mas vinham mais perguntas:<br />
Quem mandou?<br />
Todas as perguntas poderiam ser resumidas<br />
em uma única. A propósito,<br />
é comum aos inquisidores não se preocuparem<br />
com a redundância, pois<br />
a coragem teme o poder, o poder se<br />
prende à quantidade de armas, as armas<br />
à ameaça da vida. Então, a minoria<br />
reina impondo pressão.<br />
Criam fuzis de 5 a 10 canos para que<br />
a maioria sinta-se na mira, e treinam<br />
coisas iguais a essas, como se o<br />
número de dúvidas denunciassem a<br />
grandeza das nossas falhas.<br />
O poder só tem valor porque deixa<br />
uns mais altos que os outros, e isso<br />
não valeria de nada se os pequenos<br />
percebessem que o apoio dos altos<br />
está nos pés.
V<br />
Mesmo nervoso, Philip lembrou-se de<br />
quantas vezes uma frase<br />
pode ser substituída<br />
por uma palavra.<br />
Pois bem, responda.<br />
Era de novo aquela voz intolerante.<br />
- Pensei que nunca fosse dizer isso – Philip parecia querer gaguejar.<br />
Posso apostar que suas perguntas não terminaram,<br />
mas, talvez, o que eu vou dizer economize seu tempo. Não sei<br />
onde estou, portanto, não fui mandado e não tenho objetivo.<br />
Porém, parece-me pouco digno receber estranhos presos a<br />
laço. Será que causa tanto perigo o que não se conhece?<br />
na sua inocência.<br />
Não acreditamos<br />
Por que um estranho viria até nós?<br />
- Por ser desconhecido não<br />
quer dizer que sou culpado<br />
nem, tampouco, inocente.<br />
Talvez eu possa trazer novo espírito e novas ideias, mas elas<br />
não podem ser julgadas previamente. Preciso antes apresentá-las.<br />
Não digo que suas armas não ganhem a guerra, apenas<br />
que posso trazer a solução para que a guerra termine sem luta.<br />
Não são importantes para<br />
Responda–nos quem és<br />
nós suas contestações.<br />
e só então libertaremos suas asas.<br />
Pois bem.<br />
- Está bem. Porém, confirmo meu pensamento:<br />
é preciso mais do que uma simples desconfiança para se<br />
proibir o voo de um pássaro. Já imaginou que dom devemos ter<br />
para reger o poder da liberdade?<br />
Philip procurou a resposta em cada rosto. Vendo que se mantinham<br />
impassíveis, resolveu continuar:<br />
- Vou dizer quem sou. Me chamo Philip e vivo além das montanhas.<br />
Estava fazendo meu passeio de sempre pelas manhãs e me<br />
perdi no espaço e no tempo. Agora, onde estou?<br />
Checaremos sua história.<br />
Enquanto isso estará livre.<br />
Philip sentiu desatar o forte nó de suas asas.
VI<br />
Ser um pássaro e possuir<br />
asas pareciam a ele condições<br />
suficientes para voar.<br />
Não conseguia pensar em nada<br />
que pudesse colocar em<br />
risco o poder de suas asas,<br />
porém não conseguia se fazer<br />
obedecer, por mais que<br />
estivesse convencido.<br />
Aquelas feições, olhares sem<br />
brilho, toda aquela frigidez<br />
não poderiam fazer parte da<br />
realidade.<br />
Não conseguia amenizar a<br />
dor com nada que pudesse<br />
pensar. Philip agora era isso:<br />
o dono de um par de asas congeladas<br />
pelo medo... Medo<br />
que fosse um sinal dos tempos,<br />
medo da ilusão dos que<br />
têm vida e o poder de comandá-la<br />
julgando o amor.<br />
Sobrevoava rasteiramente<br />
um jardim mal cuidado. Seu<br />
corpo, antes pequeno e ágil,<br />
agora parecia uma pedra empurrada<br />
com dificuldade pelo<br />
vento.<br />
O desencanto é quase fatal<br />
para os que guardam dentro<br />
de si a sensibilidade.<br />
VII<br />
A sombra sobre a grama lhe<br />
trazia a má notícia: “ele” estava<br />
de volta.<br />
Não podia dizer se era o mesmo.<br />
As pessoas infelizes têm<br />
sempre a mesma cara.<br />
Philip queria acordar para<br />
constatar que estava apenas<br />
sonhando.<br />
Procurou voar.<br />
Dali a pouco ia amanhecer o<br />
dia. É comum durante a noite<br />
as coisas parecerem mais<br />
tristes, mais desafiadoras.<br />
As esquinas, mais pontiagudas.<br />
Os postes ofuscarem os<br />
olhos dos pássaros que voam<br />
baixo, enquanto reúnem<br />
mosquitos em torno das<br />
lâmpadas.<br />
Talvez tudo fosse melhorar,<br />
então.<br />
De poucas coisas no mundo<br />
se pode ter certeza, mas Philip<br />
não abria mão desta: por<br />
mais que façam os homens ou<br />
os pássaros, o dia sempre será<br />
mais claro do que a noite.
VIII<br />
Quando o dia chegou, Philip sentia-se cansado como<br />
se estivesse tentando alcançar as nuvens. Nem<br />
conseguia lembrar a última vez que havia se<br />
alimentado. Ontem, talvez.<br />
Procurara se preparar para a chegada<br />
do dia como se com ele viessem<br />
todos os esclarecimentos.<br />
Porém, o que a claridade lhe trouxe foi muito<br />
diferente do que esperava: lá estava a<br />
comissão de pássaros, mas menos cerimoniosa<br />
e sem perguntas.<br />
Não se sabe direito qual deles falou,<br />
pois nem o sol interrompe<br />
a passividade mórbida dos<br />
infelizes inquisidores:<br />
Philip, você está preso.<br />
IX<br />
Era impossível calcular quantos dias estava ali.<br />
Os dias são mais longos quando não podemos gozar<br />
sua claridade, sua natural euforia.<br />
Muitas vezes tentava entender o que estava<br />
acontecendo, mas seus pensamentos caminhavam<br />
sempre pelos mesmos caminhos, não levando<br />
a nada. Queria acreditar que aqueles pássaros<br />
tinham razão para não pensar que a justiça<br />
não existia.<br />
Talvez seu erro tenha sido voar tão distante.<br />
Philip conhecia bem sua distração. Quando começava<br />
a voar com o dia lindo e uma canção no<br />
pensamento não havia distância que o intimidasse.<br />
Lembrou-se de uma vez que se apaixonou<br />
pela espiga mais linda de um milharal.<br />
Pousava sempre perto dela para sentir<br />
sua beleza e aos poucos sentir-se invadido<br />
pela paixão. Às vezes, a gente se<br />
arrisca a sofrer para experimentar o<br />
coração palpitante de amor.<br />
Aquela espiga era diferente das demais.<br />
Tinha uma elegância radiante e<br />
os fios, como cabelos loiros, espalhavam-se<br />
com o vento.<br />
Todos os dias, Philip reservava a ela o<br />
anoitecer e o amanhecer.<br />
Ah... Os pássaros ganham nova vida<br />
quando estão apaixonados.
X<br />
A paixão chegou à vida de Philip como um arco-íris depois<br />
da tempestade. Os dias eram mais belos, a noite era feita<br />
de agonia e ensaio para o momento de estar perto dela.<br />
O corpo todo estremece e o medo aflora a sensibilidade,<br />
medo de ferir, de decepcionar.<br />
Philip reservava as mais lindas canções para cantar<br />
sobre o milharal e podia jurar que sua espiga ouvia e<br />
se deliciava.<br />
Suas pétalas longas e verdes pareciam querer abrir e<br />
desfolhar deixando transparecer a mais linda espiga<br />
amarela, como o sol.<br />
Um dia conseguiu chegar tão próximo que podia ouvir<br />
sua voz. Então descobriu sua meiguice, seus encantos e<br />
desamparo.<br />
Tornou-se claro o perigo... Logo chegaria o tempo da colheita<br />
e, o pior, os homens protegem as espigas dos pássaros<br />
que ferem e destroem. A defesa não é pela integridade<br />
deles, mas em benefício da colheita.<br />
Os homens conservam coisas que não fazem diferença<br />
para o seu destino, mas são impostas pelos princípios.<br />
Muitas vezes se perguntou se os homens sabiam<br />
amar, pois eles identificam a causa pelos<br />
sintomas, e o amor traz as mais maravilhosas<br />
surpresas que com certeza não se<br />
entregam a nenhum princípio.<br />
Só os pássaros sabem que<br />
o amor tem a lógica de uma<br />
flor que nasce de uma<br />
pedra.<br />
XI<br />
Pensar no passado agora que completava um mês de sua<br />
prisão era um remédio tolo, mas compreensível.<br />
Assemelha-se à velhice que aprofunda as raízes na juventude<br />
sugando as últimas gotas de impetuosidade até que<br />
se entrega morbidamente ao passado, desistindo da vida.<br />
Seu corpo estava cansado, fraco. Não faz diferença a<br />
proximidade da morte quando não se tem a liberdade<br />
para sentir a vida e escolher o melhor caminho.<br />
Quantos caminham pela escolha de outros sem perguntar<br />
o porquê, sem saber se acreditam realmente em seu<br />
princípio. É como se a vida fosse um jogo de crianças<br />
que sorteiam com dados a evolução de seus peões<br />
e crescem à medida que sobrevivem<br />
aos castigos ou se submetem<br />
ao veredito:
XII<br />
Em situações como essas, o sentido da vida fica<br />
resumido ao rito cansado do corpo que respira;<br />
a vontade de viver abandona o corpo, a paisagem perde<br />
a claridade e adquire uma nebulosa impressão<br />
como se estivéssemos constantemente chorando.<br />
Sentir a vida indo embora assim, lentamente, não<br />
incomoda tanto quanto a dor de não entender a causa<br />
do sofrimento. O único desejo era poder conversar<br />
com alguém e livrar-se daquela imunda gaiola vazia.<br />
XIII<br />
Sentiu como se algo forte o puxasse para cima.<br />
Seu corpo era jogado de um lado para outro enquanto,<br />
pelo ritmo rápido dos passos de quem o carregava, via<br />
ganhar o chão próximo; era a velocidade da pressa.<br />
Finalmente, foi jogado dentro de um carro que<br />
por muitas horas rodou sem parar<br />
até que chegou a uma<br />
casa distante<br />
e rica, como um<br />
castelo de sonhos.<br />
Cuide deste bichinho.<br />
Deixe–o em forma para<br />
quando o pequeno Chico chegar.
XIV<br />
Era a chance de entender melhor<br />
os homens.<br />
Um senhor de cabelos grisalhos<br />
trocou a água da gaiola<br />
com tranquilidade, como se<br />
percebesse a importância de<br />
Philip.<br />
O que seria deixá-lo em forma?<br />
A preocupação manteve os<br />
olhos de Philip abertos como<br />
na esperança de saber-se vivo.<br />
O alimento estava bem próximo<br />
dele a ponto de trazê-lo à<br />
boca com gestos lentos, como<br />
quem não está totalmente convencido<br />
de que vale continuar.<br />
Feita a obrigação, o velho pendurou-o<br />
num pedestal de gaiola<br />
que lá estava há anos, pela<br />
sua aparência.<br />
Quando ouviu o bater da porta<br />
denunciando sua solidão, Philip<br />
conseguiu formar seu pensamento:<br />
- Maneira estranha que os homens<br />
têm de cuidar: fazem um<br />
curativo e não tratam a ferida.<br />
XV<br />
A limpeza de sua gaiola era<br />
frequente, assim como a troca<br />
de alimentação.<br />
Philip já estava de pé e às vezes<br />
saltitava na gaiola com vontade<br />
de sentir-se vivo.<br />
Hoje, porém, estava num lugar<br />
diferente; do seu lado direito<br />
havia uma janela de onde<br />
se avistava o céu; de todos<br />
os outros lados ele estava cercado<br />
por uma enorme bagunça<br />
de bolas e brinquedos e uma<br />
cama desordenada. Aquele cenário<br />
era extremamente novo.<br />
Como eram complicados os homens,<br />
quantas coisas nas casas.<br />
Seria mesmo necessária<br />
tanta coisa para se viver?<br />
Será que se limitavam àquele<br />
cômodo por livre vontade?<br />
Ou seriam obrigados como<br />
Philip?<br />
Obrigado... Por que estava ali?<br />
Quanto tempo se passou?<br />
Onde se escondiam os outros<br />
pássaros?<br />
Como nos fazem sofrer as perguntas<br />
sem respostas, quando<br />
estamos sós.
XVI<br />
A tarde lhe trouxe o cansaço.<br />
O cansaço, o sono.<br />
De manhã, a luz do sol sobre a<br />
persiana desenhava um xadrez<br />
na sua gaiola. Seria bonito?<br />
Alguém estava deitado na cama<br />
e de onde estava Philip só podia<br />
ver um chumaço de cabelos loiros<br />
cobertos por um amontoado<br />
de cobertores desarrumados.<br />
Aquilo mais uma vez trouxe à<br />
lembrança sua espiga.<br />
O velho entrou no quarto e levantou<br />
a persiana. O sol explodiu e<br />
as cobertas se moveram tentando<br />
se proteger de seu brilho.<br />
- Fran, há uma surpresa para você.<br />
Acorde logo.<br />
- Você está mentindo, velho chato.<br />
Faz isso todos os dias para me<br />
tirar da cama.<br />
- Acredite se quiser, Chico.<br />
Está bem aí do lado, pendurado<br />
próximo à janela. Por que<br />
não tenta olhar?<br />
E completou: - seu pai está esperando<br />
para o café e para te levar<br />
para a escola.<br />
Philip pôde finalmente compreender<br />
o que se passava. Ele era a<br />
surpresa e aquele era Chico que<br />
agora se aproximava, deixando<br />
seu rostinho grudado na gaiola,<br />
tomando todo o lado.<br />
Pela primeira vez na história de<br />
sua vida enxergou um rosto humano<br />
tão de perto.<br />
XVII<br />
Que coisa linda...<br />
Como você é lindo...<br />
Sua voz alta de exclamação chegava<br />
a balançar as penas de Philip,<br />
que reunia um estado de<br />
medo e espanto. Os olhos azuis<br />
continuavam a persegui-lo como<br />
faróis.<br />
Você é tão claro, tão amarelinho...<br />
Nem imagino como devo chamá-lo.<br />
Mas... Você está doente?<br />
Está tão magrinho!<br />
Philip lembrou-se de seus inquisidores.<br />
Parece que naquele lugar<br />
era comum às pessoas perguntarem<br />
e não se importarem<br />
em ouvir as respostas.<br />
Quem sabe fosse melhor assim,<br />
já que ele nunca havia falado com<br />
homens e não sabia o que isso poderá<br />
trazer de consequências.<br />
Resolveu manter-se em silêncio.<br />
Será que você está triste por ter vindo morar aqui?<br />
Aqueles lindos olhos azuis pareciam<br />
ter diminuído de intensidade.<br />
Como é duro manter-se em silêncio<br />
por perceber que a compreensão<br />
está tão distante.
XVIII<br />
Philip sentiu que durante todo<br />
tempo aquele menino loiro se trocava<br />
com a atenção presa nele.<br />
Não entendia como, mas percebia<br />
que o havia magoado não por<br />
nada que tivesse feito, mas pelo<br />
que não fizera.<br />
Parecia inacreditável, mas era<br />
verdade: não sabia a que atribuir,<br />
talvez à inocência. Será que<br />
Chico queria sentir a felicidade<br />
em Philip? Mesmo estando ali...<br />
Preso naquela gaiola? Estava<br />
magoado por não sentir correspondida<br />
sua eufórica paixão?<br />
Percebeu que nem passava pela<br />
cabeça do menino o fato de ele estar<br />
ali, limitado àquele centímetro<br />
quadrado.<br />
Enquanto pensava em tudo isso,<br />
o menino já estava pronto: uma<br />
camisa impecavelmente branca,<br />
acompanhada de uma calça curta<br />
azul-marinho. Um tênis sujo<br />
finalizou a cerimônia; só faltava<br />
jogar alguns livros naquela pasta<br />
surrada.<br />
Aproximou-se mais uma vez antes<br />
de sair. Já não ofuscava tanto<br />
o brilho dos seus olhos e Philip<br />
conseguiu encará-lo.<br />
Tchau, Amarelo.<br />
O velho vem cuidar de você.<br />
XIX<br />
O sol já esquentava metade do<br />
quarto. A casa permanecia num<br />
silêncio mórbido e Philip não tinha<br />
vontade de cantar. Pensava<br />
com muita atenção em tudo o que<br />
havia acontecido e sua lembrança<br />
ficava tomada pelos grandes<br />
olhos azuis.<br />
Ontem, quando sobrevoava as<br />
colinas verdes, quando passeava<br />
pelas manhãs, tudo era diferente.<br />
Sim, ele não era tão rude e<br />
amargo.<br />
Talvez aquela criança não tivesse<br />
culpa. Mas... Quem tinha? Já<br />
estava ele de novo deparando<br />
com a culpa sem saber a quem<br />
atribuir.<br />
Deu um pulinho dentro da gaiola,<br />
de um degrau para o outro. O silêncio<br />
o incomodava.<br />
Chico podia voltar logo.
XX<br />
O barulho começou<br />
de baixo e quando<br />
invadiu a porta<br />
parecia um terremoto.<br />
Aquele nem parecia<br />
o mesmo menino:<br />
a roupa toda<br />
suja, o cabelo desordenado<br />
e na cara, perto<br />
do olho, um grande vergão<br />
vermelho.<br />
Jogou a malinha na cama<br />
distribuindo os livros pelo<br />
chão e correu para junto da<br />
gaiola.<br />
Amarelo, você devia estar<br />
Philip teve vontade de conversar,<br />
queria entender o que estava<br />
havendo, quando foi interrompido<br />
pelo homem com<br />
passo de pressa:<br />
Mais uma vez não deram tempo<br />
para alguém responder<br />
uma pergunta.<br />
comigo para ver o que aconteceu.<br />
Sua voz era de orgulho, como<br />
quem clama uma homenagem<br />
para um herói.<br />
Finalmente acertei as contas<br />
com o maricas do Pedrinho.<br />
A professora mandou<br />
um bilhete para o meu pai,<br />
mas valeu a pena.<br />
Ele nunca mais<br />
se mete a besta comigo.<br />
E você, como passou a manhã?<br />
- Mas, pai, eu tenho jogo hoje!<br />
A porta se fechou, deixando<br />
uma gaiola dentro da outra.
XXI<br />
Já fazia um bom tempo que ele estava<br />
assim: jogado na cama, soluçando.<br />
Philip estava tão próximo pela compreensão,<br />
que queria transmitir tudo<br />
para o menino, até a liberdade<br />
que nem ele tinha.<br />
Ch<br />
ico?<br />
Chico olhou para porta para saber<br />
quem estava falando,<br />
mas não viu ninguém.<br />
Chico não podia acreditar. Correu até<br />
a gaiola olhando firme para Philip.<br />
Chico, sou eu, aqu<br />
Escute, uma pergunta de cada vez.<br />
la.<br />
i na gaio<br />
Sinto muito por você e sei muito bem<br />
Tenha calma e vamos conversar,<br />
vamos entender as coisas..<br />
Pra começar, meu nome é Phil<br />
A cara do menino era de assombro,<br />
mas... Um susto de quem vê algo tão<br />
bonito quanto inacreditável.<br />
Porque não falou antes?<br />
Ch<br />
ico?<br />
como você está se sentindo.<br />
ip.<br />
Como você sabe falar?<br />
Porque seu nome é Philip?<br />
– Sei falar como todos os pássaros e<br />
só não falamos antes porque não sabemos<br />
como os homens reagiriam...<br />
Temos que tomar muito cuidado com<br />
os homens, pois eles temem e destroem<br />
o que não compreendem.<br />
.<br />
É... Seu pai age como os inquis<br />
idores.<br />
– Quanto ao meu nome, ele é muito<br />
comum na ordem de pássaros como<br />
eu por causa do nosso canto.<br />
Chico não podia conter os raios<br />
molhados de seus olhos. Eles se espalhavam<br />
pelo quarto, como o sol.<br />
Agora “mais” de perto, Philip<br />
percebia que seu rosto era colorido<br />
de pintinhas e a mancha no<br />
olho aumentava como uma bola.<br />
Quer dizer que só eu sei que vocês falam?<br />
Ah... eu estou de castigo, pois como estava<br />
Ele me provocou, mas meu pai nem quis me ouvir.<br />
te contando “acertei” o Pedrinho.<br />
O quê?<br />
Onde te pegaram?<br />
- Sim, acho que sim. É que eu fiquei<br />
muito triste ao vê-lo chorar e queria<br />
compreender porque te prenderam<br />
aqui.<br />
- Nada Chico. Eu também não sei<br />
por que estou preso aqui. Eu era<br />
muito mais feliz quando voava livre<br />
sobre as colinas.<br />
- Não sei... Acho que era uma praça<br />
feia e cinza, com um jardim<br />
muito mal cuidado e...<br />
A conversa estava apenas começando<br />
e Philip sentia-se à vontade<br />
para contar tudo.
XXII<br />
XXIII<br />
- Philip eu gostaria de ter conhecido<br />
você antes do que te<br />
aconteceu.<br />
Philip se emocionava com a<br />
preocupação do pequeno Chico<br />
em omitir a palavra prisão.<br />
Tentava evitar a palavra como<br />
quem procura não falar a<br />
palavra “morte” para órfãos.<br />
A noite estava chegando e<br />
havia duas luzes no quarto.<br />
Era como a claridade de um<br />
dia falso.<br />
- Mas seria impossível. Como<br />
você me veria do céu? Eu não<br />
sei voar!<br />
- Chico, acho que a gente<br />
nunca se conheceria. Eu seria<br />
mais um pássaro e, você,<br />
mais um menino.<br />
- Quer dizer que era necessário<br />
te prenderem?<br />
- Não sei. De certo era preciso<br />
alguma limitação de nossas<br />
aspirações para que pudéssemos<br />
ter um ponto de<br />
encontro. É como contar um<br />
sonho: ninguém pode fazê-<br />
-lo esperando que o outro<br />
sinta o mesmo clima, o mesmo<br />
calor. Temos que conduzir<br />
as pessoas partindo do<br />
ambiente onde elas se encontram<br />
até chegar ao nosso<br />
sonho. Era preciso que eu<br />
viesse até aqui para te ensinar<br />
a voar.<br />
Mas Philip, você sabe que eu não tenho asas.<br />
Philip percebeu que era preciso<br />
conduzi-lo até a verdade.<br />
Você sabe que meninos não voam, não é?<br />
Quando o velho abriu a porta,<br />
encontrou Chico sorrindo<br />
para a gaiola. Ele carregava<br />
uma bandeja<br />
enorme, com muitos<br />
pratos e um<br />
grande pudim<br />
de sobremesa.<br />
- Chico, seu pai<br />
mandou que<br />
comesse tudo<br />
para que ele<br />
não perca a<br />
paciência.<br />
Não era preciso<br />
pedir aquilo. Todas<br />
aquelas novidades<br />
pareciam ter<br />
aberto com violência<br />
o apetite de Chico, que logo<br />
se acomodou junto ao jantar,<br />
dispensando o velho.<br />
Philip, o que<br />
você gostaria<br />
de comer?<br />
Philip não pode conter uma<br />
risada. Depois de tanto<br />
tempo.<br />
Querido Chico<br />
m<br />
,<br />
inha comida<br />
é sempre essa.<br />
- Mas Philip, esta é uma ocasião especial.<br />
Nós podíamos fazer um<br />
grande jantar e dividiríamos<br />
também o pudim de chocolate.<br />
Seria uma forma de<br />
comemorar. Por favor,<br />
escolha alguma coisa.<br />
Philip fazia força para<br />
escolher algo. Parecia<br />
ser importante<br />
agradar àquele<br />
menino peralta capaz<br />
de saber que<br />
os pássaros falam e<br />
apenas considerar a<br />
importância disso na<br />
medida de novos conhecimentos.<br />
- Está bem... Vamos ver... Eu<br />
fico com um pouco de verde.<br />
- Verde?<br />
- Sim, Chico, como você chama essa<br />
folha verde?<br />
- Chamo de alface. Quando a gente<br />
mistura com outras verduras<br />
aí, então, chamamos de salada.<br />
Está bem.<br />
Quero a alface.<br />
Chico lotou sua gaiola de alface.<br />
Toda que ele tinha e insistiu<br />
muito para que Philip experimentasse<br />
o pudim de chocolate,<br />
transferindo o ensinamento de<br />
sua mãe de que ninguém podia<br />
desgostar de algo que desconhecia.<br />
Que coisa ridícula: um pássaro<br />
com o bico sujo de chocolate.
XXIV<br />
Quando o dia amanheceu<br />
Philip ainda não pregara os<br />
olhos.<br />
Parecia ter envelhecido muito<br />
nessa noite. Logo, as listas<br />
da persiana apareceram no<br />
teto e, tão depressa quanto<br />
o sol tomou conta do quarto,<br />
o homem de sempre entrou<br />
despertando Chico.<br />
- Está na hora da escola,<br />
Francisco. Seu pai te espera<br />
para o café.<br />
Chico remexeu-se na cama<br />
várias vezes, desalinhando<br />
ainda mais os lençóis. O velho<br />
arrumou alguns brinquedos<br />
que estavam jogados e deixou<br />
atrás de si a claridade.<br />
Bom dia, Philip!<br />
Seus olhos pareciam mais<br />
azuis do que nunca.<br />
Bom d<br />
ia, Chico<br />
- Philip, que bom que você está<br />
conversando comigo... Tudo<br />
parecia um sonho.<br />
- E talvez o seja realmente,<br />
Chico. Vê? Só você me escuta.<br />
Será suficiente pra te fazer<br />
feliz?<br />
Chico não respondeu.<br />
!<br />
XXV<br />
Durante a longa manhã Philip<br />
tentou ordenar seus sentimentos<br />
domando primeiramente<br />
o vendaval que<br />
misturava seus sonhos à realidade.<br />
Assim não sabia para<br />
onde tinha sido atirado seu<br />
passado. As paisagens de suas<br />
antigas caminhadas (sabe<br />
lá há quanto tempo) pousavam<br />
como quadros pendurados<br />
sobre a parede escura dos<br />
seus olhos fechados.<br />
Por todo tempo ficou naquele<br />
mesmo poleiro, o pensamento<br />
preso em Chico impulsionando<br />
seu interior para fora, contornado<br />
fortemente pela pele.<br />
Philip queria saber o que era<br />
aquela emoção. Já sentia vontade<br />
de olhar de novo aqueles<br />
lindos olhos azuis, provocar<br />
aquele sorriso.<br />
Nessa vontade tão clara um<br />
sentimento de alegria:<br />
Phi<br />
lip<br />
, Phi<br />
...<br />
lip<br />
Você está amando!
XXVI<br />
Philip, como você passou sua manhã?<br />
Chico acabara de trocar seu uniforme<br />
por uma roupa mais parecida com ele.<br />
Pensando apenas, Chico<br />
Ah... Que pena.<br />
Eu brinquei, pulei e bati no meu amigo.<br />
- Mas... Não foi por isso<br />
que você ficou de castigo<br />
ontem?<br />
- Claro. E hoje bati<br />
nele porque ele não<br />
devia ter me dedado.<br />
- O que quer dizer<br />
“dedado”?<br />
- Quer dizer delatar.<br />
- Então, Chico, para se<br />
constatar um fato é preciso<br />
que alguém o delate?<br />
- De certa forma, sim.<br />
- Não compreendo. Sempre acreditei<br />
na possibilidade de guardar<br />
para mim certas coisas. Quero dizer...<br />
Ter segredos.<br />
Chico continuava amarrando o tênis<br />
como se não estivesse ouvindo a<br />
contestação de Philip.<br />
- Você está me ouvindo, Chico?<br />
- Claro que sim, Philip. (seu rosto<br />
quase grudado na gaiola) – mas os<br />
seus segredos são realidades que<br />
só existem para você. Se você não<br />
tivesse falado comigo, eu simplesmente<br />
continuaria achando que os<br />
pássaros não falam e essa seria a<br />
minha realidade, ou não?<br />
.<br />
Chico, você está dizendo<br />
Philip estava confuso.<br />
que eu me dedurei?<br />
Chico ria a ponto de se curvar.<br />
Aquelas palavras ditas por um<br />
pássaro tão conservador...<br />
- Claro... A gente procura<br />
delatar aquilo que queremos<br />
que os outros<br />
saibam. Raramente<br />
corremos o risco de<br />
esperar que as pessoas<br />
percebam. Assim<br />
delatamos com<br />
olhar, gestos, palavras,<br />
de mil jeitos<br />
diferentes.<br />
- É possível você<br />
descobrir o que não<br />
quero dizer?<br />
- Sim, porque escapa<br />
pelo seu olhar.<br />
- Então de todo jeito<br />
vou me delatar.<br />
- Se o que você sente é<br />
tão grande que não cabe<br />
só dentro de você, escapará<br />
de alguma forma<br />
e caberá a mim perceber.<br />
- Seria um assalto...<br />
- Não, Philip. Ninguém rouba<br />
se beber a água que transborda<br />
da jarra.<br />
- Prefiro deixar intacta minha<br />
preservação. Prefiro<br />
confessar de livre e espontânea<br />
verdade:<br />
eu amo você, Chico.
XXVII<br />
Philip, por que você tem asas?<br />
Não sei, pequeno.<br />
Por quê?<br />
Nunca pensei nisso.<br />
Creio que sei por que não tenho.<br />
Porque sou homem.<br />
E só isso basta?<br />
Sim.<br />
Deus é muito sábio<br />
para dar a um mesmo ser<br />
o direito de voar<br />
e o dever de criar.<br />
Tenho sim.<br />
Tem saudade de sua vida antiga?<br />
Claro que sim<br />
Você não tem vontade<br />
de sair dessa gaiola?<br />
.<br />
XXVIII<br />
- Você espera que eu solte você?<br />
Quero dizer, como sei que você<br />
pode ser mais feliz longe dessa<br />
gaiola, seria a maior prova de<br />
amor libertá-lo, não é?<br />
- Não sei, Chico.<br />
- Você voltaria? Todos os dias? Quero<br />
dizer... É certeza que quando eu voltar<br />
da escola te encontrarei aqui?<br />
- Tenho medo, Philip.<br />
- Chico, você é feliz comigo?<br />
É feliz porque me conhece e me ama?<br />
- Claro que sim. E, por isso, tenho<br />
tanto medo.<br />
- Eu também nunca sei se você volta<br />
porque estou aqui ou porque aqui<br />
você mora.<br />
- Mas... Philip...<br />
- Querido, quando a gente ama alguém<br />
e quer viver com essa pessoa,<br />
só será feliz quando tiver a certeza<br />
de que se está junto por amor. Você<br />
nunca conhecerá a felicidade<br />
de me encontrar, se não me permitir<br />
partir quando quiser.<br />
- É preciso muita coragem. Já<br />
que é um risco, e a felicidade é<br />
sempre produto de um risco.<br />
Você já pensou como seriam<br />
todas as vezes que me encontrasse<br />
aqui na janela? Teria<br />
certeza de ser amado e isso é<br />
tão importante quanto a certeza<br />
de amar.<br />
Os olhos do Chico estavam<br />
repletos de lágrimas.
XIX<br />
Na manhã seguinte,<br />
quando Philip acordou,<br />
a cama estava vazia.<br />
Quem havia mudado<br />
os costumes?<br />
Philip se encostou à<br />
gaiola para procurar melhor<br />
e descobriu que sua<br />
porta estava aberta.<br />
Não pôde medir direito<br />
o que sentiu, mas de uma<br />
coisa teve certeza:<br />
Ninguém no mundo podia<br />
amar tanto aquele menino<br />
quanto ele.<br />
XXX<br />
Na beira da janela suas asas pareciam<br />
pesar quilos.<br />
Finalmente se encorajou... Jogou o corpo<br />
no ar, vacilou e, finalmente, ganhou<br />
a imensidão.<br />
Ah... Aquele sentimento há tanto tempo<br />
perdido tinha a grandeza do brilho do<br />
sol. O coração era grande em um peito<br />
pequeno. O vento escorregava as lágrimas<br />
nos olhos: era clara a emoção.<br />
O céu de novo tão próximo. A cidade pequena,<br />
os homens lá embaixo.<br />
Ah... Pousar e dominar o ar é tudo o que<br />
precisamos para sermos felizes.
XXXI<br />
Na escola, Chico não<br />
conseguia ser feliz.<br />
Ficava imaginando o<br />
que teria acontecido.<br />
Onde andava Philip?<br />
Estaria em casa?<br />
A angústia tinha tomado<br />
conta do seu sorriso.<br />
Quando deu meio dia, saiu<br />
mais depressa que todos e<br />
mal podia esperar para encontrar<br />
o carro que o levaria<br />
para casa.<br />
A escada parecia mais longa<br />
e no quarto uma gaiola vazia.<br />
XXXII<br />
Em breves segundos<br />
Chico conheceu o<br />
que era tristeza.<br />
Sentia-se mais<br />
amadurecido.<br />
“Ter a certeza de ser amado<br />
é tão importante quanto a certeza de amar.<br />
Encostou-se à cama soluçando<br />
até o sono chegar.<br />
Encolhido na roupa... Uma espiga<br />
de milho.
XXXIII<br />
Quando acordou, o sol aquecia o quarto.<br />
Acostumado, olhou pra gaiola e lá estava<br />
Philip, amarelo e lindo como nunca em cima<br />
da gaiola.<br />
Boa tarde, querido Chico.<br />
Te vi adormecer e quase<br />
Philip... Você veio!<br />
Os pássaros não usam relógio, só o coração.<br />
Você devia conf<br />
não pude conter a saudade<br />
iar ma<br />
Mas...<br />
Por que não estava aqui quando voltei?<br />
Se você não conf<br />
ia nele<br />
justo você<br />
que sente o seu calor,<br />
quem mais confiará?<br />
is no amor<br />
.<br />
,<br />
.<br />
Quando confiar no amor<br />
aprenderá a liberdade<br />
Será como voar.<br />
e então...
XXXIV<br />
Philip, eu te amo!