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PHILIP

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<strong>PHILIP</strong><br />

Yara Grottera<br />

Ilustrações de<br />

Paulo Zilberman


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

G881<br />

Grottera, Yara<br />

Philip / Yara Grottera ; [ ilustrações de Paulo Zilberman; direção geral de<br />

Valdir Cimino; revisão de ]. – São Paulo : Edições Viva e Deixe<br />

Viver, 2019.<br />

54 p.<br />

Dedico a quem me estimulou<br />

ISBN: 978-85-60129-47-8<br />

1. Literatura infanto-juvenil. I. Cimino, Valdir. II. Sarzana, Maria Inês. III.<br />

Título. IV.<br />

CDD: 028.5<br />

CDU: 82-93<br />

Ficha catalográfica elaborada por: Adriana Aparecida da Luz - CRB: 8/9360<br />

Índices para catálogo sistemático<br />

1. Literatura infantil 028.5<br />

2. Literatura infanto-juvenil 808.899282


“Levar o sorriso de hoje por mais hojes que pudermos”<br />

Por Valdir Cimino<br />

Conheci a Yara Grottera em uma das agencias de comunicação,<br />

a Morbin & Abujamra que compõe meu currículo,<br />

na construção de minha carreira tive grandes professores<br />

e profissionais das áreas de publicidade propaganda<br />

e relações públicas. Trabalhar com Yara foi uma grande<br />

aprendizagem.<br />

Certo dia do ano de 1982 chegou ao escritório muito feliz,<br />

Yara pediu favor, que eu lesse um livro intitulado Philip,<br />

tinha acabado de escrever, era uma cópia datilografada<br />

com uma capa azul e espiral preto. Lembro que o conteúdo<br />

me fez refletir e gerou algumas conversas sobre diversidade,<br />

bullying, acolhimento, humanização do ser, e<br />

sobre as ideias voluntárias e que com constância e perseverança<br />

teremos momentos felizes nesta vida.<br />

“... diante de tanta importância, quantas vezes<br />

acabo transmitindo tudo num gesto de afago,<br />

num abotoar de braços ou num forte abraço?”<br />

Artista Plástica era o outro lado da moeda de minha amiga.<br />

Inquieta e criativa sempre compactuou com a importância<br />

da educação para entender o valor da promoção<br />

de nossa cultura. Educação não acontece somente na escola,<br />

mas em qualquer âmbito, os efeitos são milagrosos.<br />

Quando comecei as atividades da Viva e Deixe Viver, Yara<br />

foi uma das primeiras a ajudar na criação da missão, visão<br />

e valores, quando éramos 36 voluntários. Em um de<br />

nossos encontros de trabalho, alertou:<br />

“No exercício de cidadania em hospitais, onde<br />

a leitura e o brincar se misturam com dor,<br />

sofrimento e alegria, “há de se manter a<br />

criatividade e a imaginação de uma criança de<br />

5 anos. É na primeira infância que devemos<br />

depositar nossas esperanças”.<br />

Não preciso dizer que nossa amizade atravessou anos<br />

e Yara, passou a ser uma grande amiga que além de me<br />

ajudar no mundo das comunicações, também ajudou na<br />

gestão e na missão da Viva e Deixe Viver, criando o posicionamento<br />

de ação dos voluntários contadores de histórias,<br />

“Levar o sorriso de hoje por mais hojes que pudermos”.<br />

Patricia Raymundo, Keila Tamaki e eu, fizemos uma visita<br />

para Yara, levamos várias histórias, mas ela se encantou<br />

com a do Dragão e o Amor. Muitas outras foram<br />

lembradas saudando o passado tão rico de amizade e<br />

compaixão.<br />

“Sei falar como todos os pássaros e só não<br />

falamos antes porque não sabemos como os<br />

homens reagiriam... Temos que tomar muito<br />

cuidado com os homens, pois eles temem e<br />

destro¬em o que não compreendem.”<br />

Em uma fração de segundos lembrei-me do Livro Philip<br />

e comentei, a memória fantástica da Yara fez com que a<br />

Silvia ajudasse a procurar. No fundo de uma caixa guardada<br />

no alto de um armário. Estava lá do jeito que eu havia<br />

lido há quase 40 anos. Datilografado!<br />

Livro lido, digitado e organizado, outro amigo Paulo Zilberman<br />

foi envolvido no projeto. Generosamente as ilustrações<br />

deram a forma certa ao texto. Neste trabalho as<br />

ilustrações são uma exposição de arte e beleza.<br />

A obra de Yara continua mais atual do que nunca, a busca<br />

do homem pela felicidade e a liberdade de expressão do<br />

corpo e da alma contra qualquer tipo de preconceito – como<br />

o voo de um pássaro.<br />

“De poucas coisas no mundo se pode ter<br />

certeza, mas Philip não abria mão desta: por<br />

mais que façam os homens ou os pássaros, o dia<br />

sempre será mais claro do que a noite.”<br />

Tenho certeza que o leitor que está em poder deste livro<br />

terá bons momentos de reflexão da vida e morte, sofrimento,<br />

liberdade e amor.<br />

A Melhor história é aquela que se aprende contando.


“Vale mais possuir um espírito ardente, sujeito a cometer<br />

erros, do que permanecer limitado e excessivamente prudente.”<br />

Trecho de uma das cartas escritas por Vincent Van Gogh<br />

ao seu irmão Theo.


Dizem...<br />

Que os poetas são aqueles<br />

que dão às palavras o sentido que lhes<br />

convém para serem compreendidos.<br />

Pois bem,<br />

acho que não tenho nada de poeta, pois,<br />

às vezes, me engasgo no sentido das coisas.<br />

A linguagem falada não deveria ser construída<br />

por palavras, pois se não as encontro para escrever,<br />

não as terei para falar.<br />

Assim, diante de tanta importância, quantas vezes<br />

acabo transmitindo tudo num gesto de afago,<br />

num abotoar de braços ou num forte abraço?<br />

Outras vezes, recorro a imagens coloridas, quadros ou formas.<br />

O que vem a seguir é uma tentativa, frases absolutamente<br />

honestas, colocadas numa ordem quase lógica para escrever<br />

isso, que têm vontade de parecer um conto.


I<br />

Suas voltas, toda manhã, eram um hábito<br />

que Philip jamais perderia.<br />

Os caminhos variavam: entre<br />

estas e aquelas árvores, pousando<br />

neste ou naquele galho.<br />

Isso não importava, mas, sim,<br />

o respirar daquele ar úmido<br />

de orvalho, daquela membrana<br />

transparente nas penas.<br />

Não sabia se era feliz, pois só<br />

se dava conta de momentos e<br />

não conseguia organizá-los<br />

como um todo.<br />

Por isso, costumava pensar<br />

que sua vida era meio<br />

sem pé nem cabeça, já que<br />

os fatos não mereciam<br />

nunca uma sucessão lógica.<br />

O tempo vivido não<br />

podia ser medido sempre<br />

com a mesma unidade,<br />

pois sua duração variava<br />

de acordo com a satisfação<br />

proporcionada pela vivência.<br />

Assim, ele sempre se<br />

referia ao passado como ontem,<br />

mesmo que este tivesse<br />

acontecido há anos.<br />

Lembrava-se com mágoa de certas<br />

passagens e vibrava de emoção<br />

com outras lembranças.<br />

Sim, sem dúvida, Philip tinha um passado<br />

que comprometia seu estado de<br />

espírito e, sempre que se referia ao<br />

ontem, enchia o peito para exibir<br />

sua vivência.<br />

Era muito benquisto e tinha alguns<br />

companheiros que o amavam<br />

com devoção talvez pela<br />

sua forma solícita e falante,<br />

tentando parecer esclarecido<br />

e seguro.<br />

Philip não abria mão das revoadas,<br />

uma vez que era inevitável<br />

a sua procura.<br />

Suas asas se moviam compassadas,<br />

como se não dependessem<br />

mais de seus controles<br />

e, como sempre, seus pensamentos<br />

estavam voltados para<br />

a solidão, aquele buraco<br />

frio que caminhava dentro do<br />

seu corpo, ora alojando-se na<br />

ponta das asas impedindo-o<br />

de voar, ora no bico emudecendo<br />

suas lindas canções.<br />

Mas o pior, mesmo, era quando<br />

se escondia no coração.<br />

Aí, então, Philip sentia enrijecer<br />

todos os seus pensamentos e permitia<br />

que seu corpo se entregasse<br />

à morbidez daquele sentimento, tirando-lhe<br />

o brilho dos olhos e a vontade<br />

de viver.


II<br />

Especialmente naquele dia, Philip percebia estar revoando<br />

sobre um terreno totalmente novo.<br />

Mesmo os pássaros que passavam por ele eram diferentes.<br />

Alguns, demais apressados, outros com os olhos cobertos<br />

por uma neblina escura e os maiores com a feição<br />

estremecida e severa.<br />

Acho que eu me esqueci de mencionar no<br />

capítulo anterior outra característica<br />

muito importante do Philip: sua absoluta<br />

distração toda vez que estava<br />

preocupado com alguma coisa.<br />

E aquilo o preocupava - os olhares,<br />

a simpatia - coisas que não<br />

eram relevantes para outros<br />

como ele.<br />

Seu voo, quase sem<br />

perceber, tornavase<br />

mais lento, e a<br />

cada minuto ele<br />

sentia mais<br />

medo de olhar<br />

para os lados.<br />

Numa das vezes<br />

que o fez, percebeu<br />

a presença de um<br />

pássaro estranho com um<br />

semblante que parecia de<br />

cera. Para onde se voltava, “ele”<br />

o seguia sem mover a pálpebra<br />

num olhar calado.<br />

Philip nem pensou em cumprimentar<br />

ou perguntar nada, já que o tal pássaro<br />

assumia ares de quem não fazia nada<br />

mais do que a sua obrigação.<br />

Para quem seguir Philip<br />

parecia ser um ato resultante<br />

de um acordo entre<br />

cavalheiros.<br />

Sem dúvida “ele” incomodava<br />

Philip, mas... No meio<br />

de tantas coisas estranhas, com as quais aparentemente<br />

não concordava, aquela não era a de maior vulto. Parece<br />

natural o fato de nos encolhermos num quarto escuro onde só os<br />

sonhadores se sentem grandiosos.<br />

Naquele momento, Philip pensou que queria ter olhos de estrelas para enxergar<br />

no escuro, pois lá as pessoas devem deixar o rosto com a verdadeira<br />

feição dos seus sentimentos.


III<br />

Philip decidiu pousar para descansar<br />

um pouco.<br />

A sombra formada no chão denunciou<br />

que “ele” ainda estava ao seu lado.<br />

Philip estava confuso e não conseguia<br />

ser dono dos seus pensamentos. Todo o<br />

lugar era estranho: aquelas árvores sem<br />

brilho, aquela calçada movimentada, aquele<br />

barulho de multidão - como se todos os homens<br />

aprendessem a andar marchando.<br />

Naquela hora nem passava pela sua ideia voltar<br />

e ele nem percebia que a tarde renunciava<br />

frente à escuridão da noite.<br />

Queria entender o significado das coisas, mas o<br />

alcance de entendimento lhe parecia tão distante<br />

que ele começava a se conformar tomando a aparência<br />

como determinação.<br />

Tentava conversar com outros que pousavam, mas<br />

era como se não ouvissem ou compreendessem suas<br />

palavras.<br />

Todos se comportavam de forma semelhante, como se<br />

seus íntimos fossem moldados pelo mesmo artista; um<br />

artista seguro, que mantinha em todas as obras as linhas<br />

do seu gênero triste.<br />

Sentia fome e procurou algo entre o jardim que lhe saciasse<br />

o apetite.<br />

Porém foi imediatamente interrompido. Eles apareceram,<br />

amarrando suas asas.


IV<br />

Tinham as caras muito parecidas<br />

com aquele que o perseguia.<br />

Tanto que agora, no meio de tantos,<br />

Philip não o distinguia. Aquela mesma<br />

feição inexpressiva como se os<br />

músculos fossem feitos nas medidas<br />

certas.<br />

Suas asas<br />

paralisadas<br />

pelos laços<br />

faziam crescer<br />

um nó de angústia.<br />

O silêncio cruciava aquele momento.<br />

Os outros pássaros passavam ao largo,<br />

talvez curiosos, mais acostumados.<br />

Nenhum se aproximava para fazer<br />

nada, e Philip até começava a se<br />

achar culpado mesmo sem saber do<br />

que se tratava.<br />

Finalmente um se adiantou<br />

e perguntou num tom<br />

compassado:<br />

Philip fazia menção de responder,<br />

mas vinham mais perguntas:<br />

Todas as perguntas poderiam ser resumidas<br />

em uma única. A propósito,<br />

é comum aos inquisidores não se preocuparem<br />

com a redundância, pois<br />

a coragem teme o poder, o poder se<br />

prende à quantidade de armas, as armas<br />

à ameaça da vida. Então, a minoria<br />

reina impondo pressão.<br />

Criam fuzis de 5 a 10 canos para que<br />

a maioria sinta-se na mira, e treinam<br />

coisas iguais a essas, como se o<br />

número de dúvidas denunciassem a<br />

grandeza das nossas falhas.<br />

O poder só tem valor porque deixa<br />

uns mais altos que os outros, e isso<br />

não valeria de nada se os pequenos<br />

percebessem que o apoio dos altos<br />

está nos pés.


V<br />

Mesmo nervoso, Philip lembrou-se de<br />

quantas vezes uma frase<br />

pode ser substituída<br />

por uma palavra.<br />

Era de novo aquela voz intolerante.<br />

- Pensei que nunca fosse dizer isso – Philip parecia querer gaguejar.<br />

Posso apostar que suas perguntas não terminaram,<br />

mas, talvez, o que eu vou dizer economize seu tempo. Não sei<br />

onde estou, portanto, não fui mandado e não tenho objetivo.<br />

Porém, parece-me pouco digno receber estranhos presos a<br />

laço. Será que causa tanto perigo o que não se conhece?<br />

- Por ser desconhecido não<br />

quer dizer que sou culpado<br />

nem, tampouco, inocente.<br />

Talvez eu possa trazer novo espírito e novas ideias, mas elas<br />

não podem ser julgadas previamente. Preciso antes apresentá-las.<br />

Não digo que suas armas não ganhem a guerra, apenas<br />

que posso trazer a solução para que a guerra termine sem luta.<br />

- Está bem. Porém, confirmo meu pensamento:<br />

é preciso mais do que uma simples desconfiança para se<br />

proibir o voo de um pássaro. Já imaginou que dom devemos ter<br />

para reger o poder da liberdade?<br />

Philip procurou a resposta em cada rosto. Vendo que se mantinham<br />

impassíveis, resolveu continuar:<br />

- Vou dizer quem sou. Me chamo Philip e vivo além das montanhas.<br />

Estava fazendo meu passeio de sempre pelas manhãs e me<br />

perdi no espaço e no tempo. Agora, onde estou?<br />

Philip sentiu desatar o forte nó de suas asas.


VI<br />

Ser um pássaro e possuir asas pareciam<br />

a ele condições suficientes para voar. Não<br />

conseguia pensar em nada que pudesse<br />

colocar em risco o poder de suas asas, porém<br />

não conseguia se fazer obedecer, por<br />

mais que estivesse convencido.<br />

Aquelas feições, olhares sem brilho, toda<br />

aquela frigidez não poderiam fazer parte<br />

da realidade.<br />

Não conseguia amenizar a dor com nada<br />

que pudesse pensar. Philip agora era isso:<br />

o dono de um par de asas congeladas<br />

pelo medo... Medo que fosse um sinal dos<br />

tempos, medo da ilusão dos que têm vida<br />

e o poder de comandá-la julgando o amor.<br />

Sobrevoava rasteiramente um jardim<br />

mal cuidado. Seu corpo, antes pequeno e<br />

ágil, agora parecia uma pedra empurrada<br />

com dificuldade pelo vento.<br />

O desencanto é quase fatal para os que<br />

guardam dentro de si a sensibilidade.<br />

VII<br />

A sombra sobre a grama lhe trazia a má<br />

notícia: “ele” estava de volta.<br />

Não podia dizer se era o mesmo. As pessoas<br />

infelizes têm sempre a mesma cara.<br />

Philip queria acordar para constatar que<br />

estava apenas sonhando.<br />

Procurou voar.<br />

Dali a pouco ia amanhecer o dia. É comum<br />

durante a noite as coisas parecerem<br />

mais tristes, mais desafiadoras. As<br />

esquinas, mais pontiagudas. Os postes<br />

ofuscarem os olhos dos pássaros que<br />

voam baixo, enquanto reúnem mosquitos<br />

em torno das lâmpadas.<br />

Talvez tudo fosse melhorar, então.<br />

De poucas coisas no mundo se pode ter<br />

certeza, mas Philip não abria mão desta:<br />

por mais que façam os homens ou os pássaros,<br />

o dia sempre será mais claro do que<br />

a noite.


VIII<br />

Quando o dia chegou, Philip sentia-se cansado como<br />

se estivesse tentando alcançar as nuvens. Nem<br />

conseguia lembrar a última vez que havia se<br />

alimentado. Ontem, talvez.<br />

Procurara se preparar para a chegada do dia<br />

como se com ele viessem todos os esclarecimentos.<br />

Porém, o que a claridade lhe trouxe<br />

foi muito diferente do que esperava: lá estava<br />

a comissão de pássaros, mas menos<br />

cerimoniosa e sem perguntas.<br />

Não se sabe direito qual deles falou,<br />

pois nem o sol interrompe a passividade<br />

mórbida dos infelizes<br />

inquisidores:<br />

IX<br />

Era impossível calcular quantos dias estava ali.<br />

Os dias são mais longos quando não podemos gozar<br />

sua claridade, sua natural euforia.<br />

Muitas vezes tentava entender o que estava<br />

acontecendo, mas seus pensamentos caminhavam<br />

sempre pelos mesmos caminhos, não levando<br />

a nada. Queria acreditar que aqueles pássaros<br />

tinham razão para não pensar que a justiça<br />

não existia.<br />

Talvez seu erro tenha sido voar tão distante. Philip<br />

conhecia bem sua distração. Quando começava<br />

a voar com o dia lindo e uma canção no pensamento<br />

não havia distância que o intimidasse.<br />

Lembrou-se de uma vez que se apaixonou<br />

pela espiga mais linda de um milharal.<br />

Pousava sempre perto dela para sentir<br />

sua beleza e aos poucos sentir-se invadido<br />

pela paixão. Às vezes, a gente se<br />

arrisca a sofrer para experimentar o<br />

coração palpitante de amor.<br />

Aquela espiga era diferente das demais.<br />

Tinha uma elegância radiante e<br />

os fios, como cabelos loiros, espalhavam-se<br />

com o vento.<br />

Todos os dias, Philip reservava a ela o<br />

anoitecer e o amanhecer.<br />

Ah... Os pássaros ganham nova vida<br />

quando estão apaixonados.


X<br />

A paixão chegou à vida de Philip como um arco-íris depois<br />

da tempestade. Os dias eram mais belos, a noite era feita<br />

de agonia e ensaio para o momento de estar perto dela.<br />

O corpo todo estremece e o medo aflora a sensibilidade,<br />

medo de ferir, de decepcionar.<br />

Philip reservava as mais lindas canções para cantar<br />

sobre o milharal e podia jurar que sua espiga ouvia e<br />

se deliciava.<br />

Suas pétalas longas e verdes pareciam querer abrir e<br />

desfolhar deixando transparecer a mais linda espiga<br />

amarela, como o sol.<br />

Um dia conseguiu chegar tão próximo que podia ouvir<br />

sua voz. Então descobriu sua meiguice, seus encantos e<br />

desamparo.<br />

Tornou-se claro o perigo... Logo chegaria o tempo da colheita<br />

e, o pior, os homens protegem as espigas dos pássaros<br />

que ferem e destroem. A defesa não é pela integridade<br />

deles, mas em benefício da colheita.<br />

Os homens conservam coisas que não fazem diferença<br />

para o seu destino, mas são impostas pelos princípios.<br />

Muitas vezes se perguntou se os homens sabiam<br />

amar, pois eles identificam a causa pelos<br />

sintomas, e o amor traz as mais maravilhosas<br />

surpresas que com certeza não se<br />

entregam a nenhum princípio.<br />

Só os pássaros sabem que<br />

o amor tem a lógica de uma<br />

flor que nasce de uma<br />

pedra.<br />

XI<br />

Pensar no passado agora que completava um mês de sua<br />

prisão era um remédio tolo, mas compreensível.<br />

Assemelha-se à velhice que aprofunda as raízes na juventude<br />

sugando as últimas gotas de impetuosidade até que<br />

se entrega morbidamente ao passado, desistindo da vida.<br />

Seu corpo estava cansado, fraco. Não faz diferença a<br />

proximidade da morte quando não se tem a liberdade<br />

para sentir a vida e escolher o melhor caminho.<br />

Quantos caminham pela escolha de outros sem perguntar<br />

o porquê, sem saber se acreditam realmente em seu<br />

princípio. É como se a vida fosse um jogo de crianças<br />

que sorteiam com dados a evolução de seus peões<br />

e crescem à medida que sobrevivem<br />

aos castigos ou se submetem<br />

ao veredito:


XII<br />

Em situações como essas, o sentido da vida fica<br />

resumido ao rito cansado do corpo que respira;<br />

a vontade de viver abandona o corpo, a paisagem perde<br />

a claridade e adquire uma nebulosa impressão<br />

como se estivéssemos constantemente chorando.<br />

Sentir a vida indo embora assim, lentamente, não<br />

incomoda tanto quanto a dor de não entender a causa<br />

do sofrimento. O único desejo era poder conversar<br />

com alguém e livrar-se daquela imunda gaiola vazia.<br />

XIII<br />

Sentiu como se algo forte o puxasse para cima.<br />

Seu corpo era jogado de um lado para outro enquanto,<br />

pelo ritmo rápido dos passos de quem o carregava, via<br />

ganhar o chão próximo; era a velocidade da pressa.<br />

Finalmente, foi jogado dentro de um carro que por<br />

muitas horas rodou sem parar até que<br />

chegou a uma casa distante<br />

e rica, como um<br />

castelo de sonhos.


XIV<br />

Era a chance de entender melhor<br />

os homens.<br />

Um senhor de cabelos grisalhos<br />

trocou a água da gaiola<br />

com tranquilidade, como se<br />

percebesse a importância de<br />

Philip.<br />

O que seria deixá-lo em forma?<br />

A preocupação manteve os<br />

olhos de Philip abertos como<br />

na esperança de saber-se vivo.<br />

O alimento estava bem próximo<br />

dele a ponto de trazê-lo à<br />

boca com gestos lentos, como<br />

quem não está totalmente convencido<br />

de que vale continuar.<br />

Feita a obrigação, o velho pendurou-o<br />

num pedestal de gaiola<br />

que lá estava há anos, pela<br />

sua aparência.<br />

Quando ouviu o bater da porta<br />

denunciando sua solidão, Philip<br />

conseguiu formar seu pensamento:<br />

- Maneira estranha que os homens<br />

têm de cuidar: fazem um<br />

curativo e não tratam a ferida.<br />

XV<br />

A limpeza de sua gaiola era<br />

frequente, assim como a troca<br />

de alimentação.<br />

Philip já estava de pé e às vezes<br />

saltitava na gaiola com vontade<br />

de sentir-se vivo.<br />

Hoje, porém, estava num lugar<br />

diferente; do seu lado direito<br />

havia uma janela de onde<br />

se avistava o céu; de todos<br />

os outros lados ele estava cercado<br />

por uma enorme bagunça<br />

de bolas e brinquedos e uma<br />

cama desordenada. Aquele cenário<br />

era extremamente novo.<br />

Como eram complicados os homens,<br />

quantas coisas nas casas.<br />

Seria mesmo necessária<br />

tanta coisa para se viver?<br />

Será que se limitavam àquele<br />

cômodo por livre vontade?<br />

Ou seriam obrigados como<br />

Philip?<br />

Obrigado... Por que estava ali?<br />

Quanto tempo se passou?<br />

Onde se escondiam os outros<br />

pássaros?<br />

Como nos fazem sofrer as perguntas<br />

sem respostas, quando<br />

estamos sós.


XVI<br />

A tarde lhe trouxe o cansaço.<br />

O cansaço, o sono.<br />

De manhã, a luz do sol sobre a<br />

persiana desenhava um xadrez<br />

na sua gaiola. Seria bonito?<br />

Alguém estava deitado na cama<br />

e de onde estava Philip só podia<br />

ver um chumaço de cabelos loiros<br />

cobertos por um amontoado<br />

de cobertores desarrumados.<br />

Aquilo mais uma vez trouxe à<br />

lembrança sua espiga.<br />

O velho entrou no quarto e levantou<br />

a persiana. O sol explodiu e<br />

as cobertas se moveram tentando<br />

se proteger de seu brilho.<br />

- Fran, há uma surpresa para você.<br />

Acorde logo.<br />

- Você está mentindo, velho chato.<br />

Faz isso todos os dias para me<br />

tirar da cama.<br />

- Acredite se quiser, Chico.<br />

Está bem aí do lado, pendurado<br />

próximo à janela. Por que<br />

não tenta olhar?<br />

E completou: - seu pai está esperando<br />

para o café e para te levar<br />

para a escola.<br />

Philip pôde finalmente compreender<br />

o que se passava. Ele era a<br />

surpresa e aquele era Chico que<br />

agora se aproximava, deixando<br />

seu rostinho grudado na gaiola,<br />

tomando todo o lado.<br />

Pela primeira vez na história de<br />

sua vida enxergou um rosto humano<br />

tão de perto.<br />

XVII<br />

Que coisa linda...<br />

Você é tão claro, tão amarelinho...<br />

Como você é lindo...<br />

Sua voz alta de exclamação chegava<br />

a balançar as penas de Philip,<br />

que reunia um estado de<br />

medo e espanto. Os olhos azuis<br />

continuavam a persegui-lo como<br />

faróis.<br />

Nem imagino como devo chamá-lo.<br />

Mas... Você está doente?<br />

Está tão magrinho!<br />

Philip lembrou-se de seus inquisidores.<br />

Parece que naquele lugar<br />

era comum às pessoas perguntarem<br />

e não se importarem<br />

em ouvir as respostas.<br />

Quem sabe fosse melhor assim,<br />

já que ele nunca havia falado com<br />

homens e não sabia o que isso poderá<br />

trazer de consequências.<br />

Resolveu manter-se em silêncio.<br />

Será que você está triste por ter vindo morar aqui?<br />

Aqueles lindos olhos azuis pareciam<br />

ter diminuído de intensidade.<br />

Como é duro manter-se em silêncio<br />

por perceber que a compreensão<br />

está tão distante.


XVIII<br />

Philip sentiu que durante todo<br />

tempo aquele menino loiro se trocava<br />

com a atenção presa nele.<br />

Não entendia como, mas percebia<br />

que o havia magoado não por<br />

nada que tivesse feito, mas pelo<br />

que não fizera.<br />

Parecia inacreditável, mas era<br />

verdade: não sabia a que atribuir,<br />

talvez à inocência. Será que<br />

Chico queria sentir a felicidade<br />

em Philip? Mesmo estando ali...<br />

Preso naquela gaiola? Estava<br />

magoado por não sentir correspondida<br />

sua eufórica paixão?<br />

Percebeu que nem passava pela<br />

cabeça do menino o fato de ele estar<br />

ali, limitado àquele centímetro<br />

quadrado.<br />

Enquanto pensava em tudo isso,<br />

o menino já estava pronto: uma<br />

camisa impecavelmente branca,<br />

acompanhada de uma calça curta<br />

azul-marinho. Um tênis sujo<br />

finalizou a cerimônia; só faltava<br />

jogar alguns livros naquela pasta<br />

surrada.<br />

Aproximou-se mais uma vez antes<br />

de sair. Já não ofuscava tanto<br />

o brilho dos seus olhos e Philip<br />

conseguiu encará-lo.<br />

Tchau, Amarelo.<br />

O velho vem cuidar de você.<br />

XIX<br />

O sol já esquentava metade do<br />

quarto. A casa permanecia num<br />

silêncio mórbido e Philip não tinha<br />

vontade de cantar. Pensava<br />

com muita atenção em tudo o que<br />

havia acontecido e sua lembrança<br />

ficava tomada pelos grandes<br />

olhos azuis.<br />

Ontem, quando sobrevoava as<br />

colinas verdes, quando passeava<br />

pelas manhãs, tudo era diferente.<br />

Sim, ele não era tão rude e<br />

amargo.<br />

Talvez aquela criança não tivesse<br />

culpa. Mas... Quem tinha? Já<br />

estava ele de novo deparando<br />

com a culpa sem saber a quem<br />

atribuir.<br />

Deu um pulinho dentro da gaiola,<br />

de um degrau para o outro. O silêncio<br />

o incomodava.<br />

Chico podia voltar logo.


XX<br />

O barulho começou<br />

de baixo e quando<br />

invadiu a porta<br />

parecia um terremoto.<br />

Aquele nem parecia<br />

o mesmo menino:<br />

a roupa toda<br />

suja, o cabelo desordenado<br />

e na cara, perto<br />

do olho, um grande vergão<br />

vermelho.<br />

Jogou a malinha na cama<br />

distribuindo os livros pelo<br />

chão e correu para junto da<br />

gaiola.<br />

Amarelo, você devia estar<br />

comigo para ver o que aconteceu.<br />

Sua voz era de orgulho, como<br />

quem clama uma homenagem<br />

para um herói.<br />

Finalmente acertei as contas<br />

com o maricas do Pedrinho.<br />

A professora mandou<br />

um bilhete para o meu pai,<br />

mas valeu a pena.<br />

Ele nunca mais<br />

se mete a besta comigo.<br />

E você, como passou a manhã?<br />

Chico, o que aconteceu na escola?<br />

A professora acabou<br />

Philip teve vontade de conversar,<br />

queria entender o que estava<br />

havendo, quando foi interrompido<br />

pelo homem com<br />

passo de pressa:<br />

de telefonar.<br />

Mais uma vez não deram tempo<br />

para alguém responder<br />

uma pergunta.<br />

Você não vai sair desse<br />

quarto até amanhã,<br />

ouviu bem?<br />

Você tem que aprender<br />

de algum jeito.<br />

- Mas, pai, eu tenho jogo hoje!<br />

Da próxima vez você<br />

pensa nisso antes.<br />

A porta se fechou, deixando<br />

uma gaiola dentro da outra.


XXI<br />

Já fazia um bom tempo que ele estava<br />

assim: jogado na cama, soluçando.<br />

Philip estava tão próximo pela compreensão,<br />

que queria transmitir tudo<br />

para o menino, até a liberdade<br />

que nem ele tinha.<br />

Ch<br />

ico?<br />

Chico olhou para porta para saber<br />

quem estava falando,<br />

mas não viu ninguém.<br />

Chico não podia acreditar. Correu até<br />

a gaiola olhando firme para Philip.<br />

Chico, sou eu, aqui na ga<br />

vamos entender as coisas<br />

Pra começar, meu nome é Phil<br />

ip.<br />

Escute, uma pergunta de cada vez.<br />

.<br />

iola<br />

Sinto muito por você e sei muito bem<br />

como você está se sent<br />

Tenha calma e vamos conversar,<br />

A cara do menino era de assombro,<br />

mas... Um susto de quem vê algo tão<br />

bonito quanto inacreditável.<br />

Porque não falou antes?<br />

Ch<br />

ico?<br />

Como você sabe falar?<br />

Porque seu nome é Philip?<br />

– Sei falar como todos os pássaros e<br />

só não falamos antes porque não sabemos<br />

como os homens reagiriam...<br />

Temos que tomar muito cuidado com<br />

os homens, pois eles temem e destroem<br />

o que não compreendem.<br />

.<br />

.<br />

indo.<br />

É... Seu pa<br />

– Quanto ao meu nome, ele é muito<br />

comum na ordem de pássaros como<br />

eu por causa do nosso canto.<br />

Chico não podia conter os raios<br />

molhados de seus olhos. Eles se espalhavam<br />

pelo quarto, como o sol.<br />

Agora “mais” de perto, Philip<br />

percebia que seu rosto era colorido<br />

de pintinhas e a mancha no<br />

olho aumentava como uma bola.<br />

Quer dizer que só eu sei que vocês falam?<br />

Ah... eu estou de castigo, pois como estava<br />

Ele me provocou, mas meu pai nem quis me ouvir.<br />

te contando “acertei” o Pedrinho.<br />

i age como os inquisidores.<br />

Onde te pegaram?<br />

- Sim, acho que sim. É que eu fiquei<br />

muito triste ao vê-lo chorar e queria<br />

compreender porque te prenderam<br />

aqui.<br />

O quê?<br />

- Nada Chico. Eu também não sei<br />

por que estou preso aqui. Eu era<br />

muito mais feliz quando voava livre<br />

sobre as colinas.<br />

- Não sei... Acho que era uma praça<br />

feia e cinza, com um jardim<br />

muito mal cuidado e...<br />

A conversa estava apenas começando<br />

e Philip sentia-se à vontade<br />

para contar tudo.


XXII<br />

XXIII<br />

- Philip eu gostaria de ter conhecido<br />

você antes do que te<br />

aconteceu.<br />

Philip se emocionava com a<br />

preocupação do pequeno Chico<br />

em omitir a palavra prisão.<br />

Tentava evitar a palavra como<br />

quem procura não falar a<br />

palavra “morte” para órfãos.<br />

A noite estava chegando e<br />

havia duas luzes no quarto.<br />

Era como a claridade de um<br />

dia falso.<br />

- Mas seria impossível. Como<br />

você me veria do céu? Eu não<br />

sei voar!<br />

- Chico, acho que a gente<br />

nunca se conheceria. Eu seria<br />

mais um pássaro e, você,<br />

mais um menino.<br />

- Quer dizer que era necessário<br />

te prenderem?<br />

- Não sei. De certo era preciso<br />

alguma limitação de nossas<br />

aspirações para que pudéssemos<br />

ter um ponto de<br />

encontro. É como contar um<br />

sonho: ninguém pode fazê-<br />

-lo esperando que o outro<br />

sinta o mesmo clima, o mesmo<br />

calor. Temos que conduzir<br />

as pessoas partindo do<br />

ambiente onde elas se encontram<br />

até chegar ao nosso<br />

sonho. Era preciso que eu<br />

viesse até aqui para te ensinar<br />

a voar.<br />

Mas Philip, você sabe que eu não tenho asas.<br />

Philip percebeu que era preciso<br />

conduzi-lo até a verdade.<br />

Você sabe que meninos não voam, não é?<br />

Quando o velho abriu a porta,<br />

encontrou Chico sorrindo para<br />

a gaiola. Ele carregava<br />

uma bandeja enorme,<br />

com muitos pratos e<br />

um grande pudim<br />

de sobremesa.<br />

- Chico, seu pai<br />

mandou que comesse<br />

tudo para<br />

que ele não<br />

perca a paciência.<br />

Não era preciso<br />

pedir aquilo. Todas<br />

aquelas novidades<br />

pareciam<br />

ter aberto com violência<br />

o apetite de<br />

Chico, que logo se acomodou<br />

junto ao jantar, dispensando<br />

o velho.<br />

Philip, o que<br />

você gostaria<br />

de comer?<br />

Philip não pode conter uma<br />

risada. Depois de tanto<br />

tempo.<br />

Querido Chico<br />

m<br />

,<br />

inha comida<br />

é sempre essa.<br />

- Mas Philip, esta é uma ocasião<br />

especial. Nós podíamos fazer um<br />

grande jantar e dividiríamos<br />

também o pudim de chocolate.<br />

Seria uma forma de comemorar.<br />

Por favor, escolha<br />

alguma coisa.<br />

Philip fazia força para<br />

escolher algo. Parecia<br />

ser importante<br />

agradar àquele menino<br />

peralta capaz<br />

de saber que os pássaros<br />

falam e apenas<br />

considerar a importância<br />

disso na medida<br />

de novos conhecimentos.<br />

- Está bem... Vamos ver... Eu<br />

fico com um pouco de verde.<br />

- Verde?<br />

- Sim, Chico, como você chama essa<br />

folha verde?<br />

- Chamo de alface. Quando a gente<br />

mistura com outras verduras<br />

aí, então, chamamos de salada.<br />

Está bem.<br />

Quero a alface.<br />

Chico lotou sua gaiola de alface.<br />

Toda que ele tinha e insistiu<br />

muito para que Philip experimentasse<br />

o pudim de chocolate, transferindo<br />

o ensinamento de sua mãe<br />

de que ninguém podia desgostar de<br />

algo que desconhecia.<br />

Que coisa ridícula: um pássaro<br />

com o bico sujo de chocolate.


XXIV<br />

Quando o dia amanheceu<br />

Philip ainda não pregara os<br />

olhos.<br />

Parecia ter envelhecido muito<br />

nessa noite. Logo, as listas<br />

da persiana apareceram no<br />

teto e, tão depressa quanto<br />

o sol tomou conta do quarto,<br />

o homem de sempre entrou<br />

despertando Chico.<br />

- Está na hora da escola,<br />

Francisco. Seu pai te espera<br />

para o café.<br />

Chico remexeu-se na cama<br />

várias vezes, desalinhando<br />

ainda mais os lençóis. O velho<br />

arrumou alguns brinquedos<br />

que estavam jogados e deixou<br />

atrás de si a claridade.<br />

Bom dia, Philip!<br />

Seus olhos pareciam mais<br />

azuis do que nunca.<br />

Bom d<br />

ia, Chico<br />

- Philip, que bom que você<br />

está conversando comigo...<br />

Tudo parecia um sonho.<br />

- E talvez o seja realmente,<br />

Chico. Vê? Só você me escuta.<br />

Será suficiente pra te<br />

fazer feliz?<br />

Chico não respondeu.<br />

!<br />

XXV<br />

Durante a longa manhã Philip<br />

tentou ordenar seus sentimentos<br />

domando primeiramente<br />

o vendaval que<br />

misturava seus sonhos à realidade.<br />

Assim não sabia para<br />

onde tinha sido atirado seu<br />

passado. As paisagens de suas<br />

antigas caminhadas (sabe<br />

lá há quanto tempo) pousavam<br />

como quadros pendurados<br />

sobre a parede escura dos<br />

seus olhos fechados.<br />

Por todo tempo ficou naquele<br />

mesmo poleiro, o pensamento<br />

preso em Chico impulsionando<br />

seu interior para fora, contornado<br />

fortemente pela pele.<br />

Philip queria saber o que era<br />

aquela emoção. Já sentia vontade<br />

de olhar de novo aqueles<br />

lindos olhos azuis, provocar<br />

aquele sorriso.<br />

Nessa vontade tão clara um<br />

sentimento de alegria:<br />

Phi<br />

lip<br />

, Phi<br />

...<br />

lip<br />

Você está amando!


XXVI<br />

Philip, como você passou sua manhã?<br />

Chico acabara de trocar seu<br />

uniforme por uma roupa mais<br />

parecida com ele.<br />

Pensando apenas, Chico.<br />

Ah... Que pena.<br />

Eu brinquei, pulei e bati no meu amigo.<br />

- Mas... Não foi por isso<br />

que você ficou de<br />

castigo ontem?<br />

- Claro. E hoje bati nele<br />

porque ele não devia<br />

ter me dedado.<br />

- O que quer dizer<br />

“dedado”?<br />

- Quer dizer delatar.<br />

- Então, Chico, para se constatar<br />

um fato é preciso que alguém<br />

o delate?<br />

- De certa forma, sim.<br />

- Não compreendo. Sempre acreditei<br />

na possibilidade de guardar<br />

para mim certas coisas. Quero dizer...<br />

Ter segredos.<br />

Chico continuava amarrando o tênis<br />

como se não estivesse ouvindo a contestação<br />

de Philip.<br />

- Você está me ouvindo, Chico?<br />

- Claro que sim, Philip. (seu rosto quase<br />

grudado na gaiola) – mas os seus segredos<br />

são realidades que só existem para você.<br />

Se você não tivesse falado comigo, eu<br />

simplesmente continuaria achando que os<br />

pássaros não falam e essa seria a minha realidade,<br />

ou não?<br />

Chico<br />

, você está dizendo<br />

Philip estava confuso.<br />

que eu me dedurei?<br />

Chico ria a ponto de se curvar.<br />

Aquelas palavras ditas por um<br />

pássaro tão conservador...<br />

- Claro... A gente procura<br />

delatar aquilo que queremos<br />

que os outros<br />

saibam. Raramente<br />

corremos o risco de<br />

esperar que as pessoas<br />

percebam. Assim<br />

delatamos com<br />

olhar, gestos, palavras,<br />

de mil jeitos<br />

diferentes.<br />

- É possível você<br />

descobrir o que não<br />

quero dizer?<br />

- Sim, porque escapa<br />

pelo seu olhar.<br />

- Então de todo jeito<br />

vou me delatar.<br />

- Se o que você sente é<br />

tão grande que não cabe<br />

só dentro de você, escapará<br />

de alguma forma<br />

e caberá a mim perceber.<br />

- Seria um assalto...<br />

- Não, Philip. Ninguém rouba<br />

se beber a água que transborda<br />

da jarra.<br />

- Prefiro deixar intacta minha<br />

preservação. Prefiro<br />

confessar de livre e espontânea<br />

verdade:<br />

eu amo você, Chico.


XXVII<br />

Não sei, pequeno.<br />

E só<br />

Philip, por que você tem asas?<br />

Por quê?<br />

Nunca pensei nisso.<br />

Creio que sei por que não tenho.<br />

Porque sou homem.<br />

isso basta?<br />

Sim.<br />

Deus é muito sábio<br />

para dar a um mesmo ser<br />

o direito de voar<br />

e o dever de criar.<br />

Tenho sim.<br />

Tem saudade de sua vida antiga?<br />

Claro que sim<br />

Você não tem vontade<br />

de sair dessa gaiola?<br />

.<br />

XXVIII<br />

- Você espera que eu solte você?<br />

Quero dizer, como sei que você<br />

pode ser mais feliz longe dessa<br />

gaiola, seria a maior prova de<br />

amor libertá-lo, não é?<br />

- Não sei, Chico.<br />

- Você voltaria? Todos os dias? Quero<br />

dizer... É certeza que quando eu voltar<br />

da escola te encontrarei aqui?<br />

- Tenho medo, Philip.<br />

- Chico, você é feliz comigo?<br />

É feliz porque me conhece e me ama?<br />

- Claro que sim. E, por isso, tenho<br />

tanto medo.<br />

- Eu também nunca sei se você volta<br />

porque estou aqui ou porque aqui<br />

você mora.<br />

- Mas... Philip...<br />

- Querido, quando a gente ama alguém<br />

e quer viver com essa pessoa,<br />

só será feliz quando tiver a certeza<br />

de que se está junto por amor. Você<br />

nunca conhecerá a felicidade<br />

de me encontrar, se não me permitir<br />

partir quando quiser.<br />

- É preciso muita coragem. Já<br />

que é um risco, e a felicidade é<br />

sempre produto de um risco.<br />

Você já pensou como seriam<br />

todas as vezes que me encontrasse<br />

aqui na janela? Teria<br />

certeza de ser amado e isso é<br />

tão importante quanto a certeza<br />

de amar.<br />

Os olhos do Chico estavam<br />

repletos de lágrimas.


XXIX<br />

Na manhã seguinte,<br />

quando Philip acordou,<br />

a cama estava vazia.<br />

Quem havia mudado<br />

os costumes?<br />

Philip se encostou à<br />

gaiola para procurar melhor<br />

e descobriu que sua<br />

porta estava aberta.<br />

Não pôde medir direito<br />

o que sentiu, mas de uma<br />

coisa teve certeza:<br />

Ninguém no mundo podia<br />

amar tanto aquele menino<br />

quanto ele.<br />

XXX<br />

Na beira da janela suas asas pareciam<br />

pesar quilos.<br />

Finalmente se encorajou... Jogou o corpo<br />

no ar, vacilou e, finalmente, ganhou<br />

a imensidão.<br />

Ah... Aquele sentimento há tanto tempo<br />

perdido tinha a grandeza do brilho do<br />

sol. O coração era grande em um peito<br />

pequeno. O vento escorregava as lágrimas<br />

nos olhos: era clara a emoção.<br />

O céu de novo tão próximo. A cidade pequena,<br />

os homens lá embaixo.<br />

Ah... Pousar e dominar o ar é tudo o que<br />

precisamos para sermos felizes.


XXXI<br />

Na escola, Chico não<br />

conseguia ser feliz.<br />

Ficava imaginando o<br />

que teria acontecido.<br />

Onde andava Philip?<br />

Estaria em casa?<br />

A angústia tinha tomado<br />

conta do seu sorriso.<br />

Quando deu meio dia, saiu<br />

mais depressa que todos e<br />

mal podia esperar para encontrar<br />

o carro que o levaria<br />

para casa.<br />

A escada parecia mais longa<br />

e no quarto uma gaiola vazia.<br />

XXXII<br />

Em breves segundos<br />

Chico conheceu o<br />

que era tristeza.<br />

Sentia-se mais<br />

amadurecido.<br />

“Ter a certeza de ser amado<br />

é tão importante quanto a certeza de amar.”<br />

Encostou-se à cama soluçando<br />

até o sono chegar.<br />

Encolhido na roupa... Uma espiga<br />

de milho.


XXXIII<br />

Quando acordou, o sol aquecia o quarto.<br />

Acostumado, olhou pra gaiola e lá estava<br />

Philip, amarelo e lindo como nunca em cima<br />

da gaiola.<br />

Te vi adormecer e quase não pude conter a saudade.<br />

Boa tarde, querido Ch<br />

Philip... Você veio!<br />

Mas...<br />

ico.<br />

Por que não estava aqui quando voltei?<br />

Os pássaros não usam relógio, só o coração.<br />

Você dev<br />

ia confiar ma<br />

Se você não confia nele,<br />

justo você<br />

is no amor.<br />

que sente o seu calor,<br />

quem mais confiará?<br />

Quando confiar no amor<br />

aprenderá a liberdade<br />

e então...<br />

Será como voar.


XXXIV<br />

Philip, eu te amo!

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