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Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS

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<strong>Andréa</strong> <strong>Máris</strong> <strong>Campos</strong> <strong>Guerra</strong><br />

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA<br />

BORROMEANA: criação e suplência<br />

IP/UFRJ<br />

Abril de 2007


<strong>Andréa</strong> <strong>Máris</strong> <strong>Campos</strong> <strong>Guerra</strong><br />

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA<br />

BORROMEANA: criação e suplência<br />

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-<br />

Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos<br />

necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria<br />

Psicanalítica.<br />

Área de concentração: Psicanálise<br />

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo<br />

Rio de Janeiro<br />

Abril/2007


Ficha catalográfica


A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:<br />

Autora: <strong>Andréa</strong> <strong>Máris</strong> <strong>Campos</strong> <strong>Guerra</strong><br />

criação e suplência<br />

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo<br />

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,<br />

Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte<br />

dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.<br />

Aprovada por:<br />

____________________________________________________<br />

Presidente, Prof. Ana Cristina Costa de Figueiredo - Orientadora<br />

____________________________________________________<br />

Prof. Angélica Bastos Grimberg<br />

____________________________________________________<br />

Prof. Jeferson Machado Pinto<br />

_____________________________________________________<br />

Prof. Marcus André Vieira<br />

_____________________________________________________<br />

Prof. Nelisa de Araujo Guimarães<br />

Rio de Janeiro<br />

Abril/2007<br />

iii


iv<br />

Para Gustavo e Noa


AGRADECIMENTOS<br />

À Ana Cristina Figueiredo pela acolhida generosa, pelo apoio constante, pelo vivo<br />

entusiasmo, pelas entradas exatas na escrita da tese e pelo bom encontro na vida;<br />

A Gustavo, pelo amor e pela parceria, sempre estimulantes e renovadores, e pela<br />

lembrança constante de que posso sempre dar mais um passo;<br />

Ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica por criar a condição dessa tese,<br />

em especial às professoras Angélica Bastos Grimberg e Ana Beatriz Freire que<br />

acompanharam de perto e pari passu sua construção;<br />

Aos ex-alunos que seguiram comigo nas questões da tese ao longo dos últimos anos de<br />

pesquisa, em especial Pollyana Vieira e Souza e Luciana Luiz Borçato;<br />

Ao diálogo profícuo generosamente oferecido pelo prof. François Sauvagnat, que me<br />

acolheu durante o ano de estudos aprofundados em Paris VII e Paris VIII;<br />

A Sérgio Laia e Elisa Alvarenga pela aposta numa possibilidade de ir além;<br />

Aos amigos do Collège Franco-Brésilien (Paris) pelo encontro, pela acolhida e pela<br />

discussão com as idéias da tese, em especial Ligia Gorini, Ester Cristelli-Mailard e<br />

Marie-Claude Sureau;<br />

A M. Pierre Skriabine e colegas de cartel, em especial Michèle Berdah, pelo avanço<br />

junto à empreitada custosa a que a topologia nos conduziu;<br />

A M. Alain Vaisserman, que abriu com entusiasmo as portas de seu secteur para que eu<br />

pudesse me aproximar da psicose e de seu tratamento na rede pública francesa;<br />

Aos amigos da PUC que mudaram o rumo de minha história com suas amizades e<br />

calorosos debates de boas idéias, em especial Jacqueline, Roberta e Vânia;<br />

À minha família que dialoga na distância ou na curiosidade próxima com meu trabalho,<br />

sempre me estimulando;<br />

Aos amigos e companheiros que enriqueceram, cada qual na sua particularidade, a<br />

trajetória dessa tese: Andréia Stenner, Cláudio Felício, Fernanda Otoni, Célio Garcia,<br />

Vassiliki Gregoropoulou, Nicole Chardier, Marilsa Basso, Marcela Lima e Assia<br />

Gouasmi;<br />

À CAPES.<br />

v


RESUMO<br />

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:<br />

Nome do Autor: <strong>Andréa</strong> <strong>Máris</strong> <strong>Campos</strong> <strong>Guerra</strong><br />

Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo<br />

criação e suplência<br />

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria<br />

Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como<br />

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.<br />

Investigamos a hipótese sobre a estabilização psicótica, via criação artística ou artesanal,<br />

prescindir da escrita. Revisamos em Freud e em Lacan as estratégias de solução para as psicoses<br />

e também precisamos as noções de escrita e de letra, a fim de articular o que se escreve numa<br />

obra. Em Freud, percorremos sua discussão sobre a Verwerfung, bem como sobre a assertiva do<br />

delírio como tentativa de cura. Em Lacan, identificamos ao menos três estratégias quanto à<br />

estabilização na psicose: o ato, a metáfora delirante e a obra. A partir desta última, Lacan<br />

empreende uma revisão da estrutura da linguagem para pensar o inconsciente face ao gozo<br />

através, sobretudo, das noções de letra e de lalíngua. Com isso, chega à mostração do real<br />

através da topologia borromeana, ampliando a discussão das estabilizações na psicose a partir<br />

do conceito de suplência. Nessa perspectiva, a estabilização implica, enquanto suplência, a<br />

maneira como o sujeito, psicótico ou não, se escreve como nó, usando a letra, enquanto litoral<br />

entre simbólico e real, e fundando o campo pronto a acolher gozo. Letra e nó escrevem o<br />

savoir-y-faire do sujeito. É o que mostramos com a aplicação da topologia borromeana<br />

enquanto método de análise a dois casos de psicose. Deles extraímos que a criação, artística ou<br />

artesanal, poderá (mas nem sempre) operar enquanto letra que escreve um sujeito, permitindo o<br />

enlaçamento dos três registros. Mais do que a criação em si, é seu efeito de escrita que pode<br />

funcionar como elemento na suplência psicótica. Nesse sentido, a criação seria também uma<br />

forma de escrita.<br />

Palavras-chave: estabilização psicótica; criação; suplência; topologia borromeana; letra.<br />

Rio de Janeiro<br />

Abril de 2007<br />

vi


ABSTRACT<br />

PSYCHOTIC STABILIZATION CONSIDERED FROM THE BORROMEAN VIEW:<br />

Nome do Autor: <strong>Andréa</strong> <strong>Máris</strong> <strong>Campos</strong> <strong>Guerra</strong><br />

Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo<br />

creative process and supplementation<br />

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,<br />

Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos<br />

necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.<br />

The aim of this thesis is to work on the hypothesis of psychotic stabilization being achieved through<br />

artistic or handcraft creation, prescinding from written language. We have taken the work of Freud<br />

and Lacan related to this subject in order to identify the strategies proposed by them for psychotic<br />

stabilization, and also to settle a delimitation of the notion of written language and letter. In Freud,<br />

we considered the discussion about the Verwerfung and the proposal that delusion could be an<br />

attempt to accomplish cure. In Lacan we could identify at least three strategies for psychotic<br />

stabilization: the act, the delusional metaphor and the written. When discussing the work produced in<br />

the 70s decade, Lacan makes a full revision on the placement of language structure in it, this being<br />

done it order to consider the unconscious facing joy, mainly through the notions of letter and<br />

lalangue. By "reaching" the Real through Borromean topology, Lacan widens the discussion about<br />

stabilization in psychosis deriving from the notion of supplementation. Cutting adrift from the<br />

defective proposition of psychosis, he proposes the task of tying the three registers by means of<br />

supplementing them. According to such view, stabilization, being achieved by means of<br />

supplementation, implies how the subject writes himself as a Borromean knot; in this writing, the<br />

letter becomes the central element, once it sets the receptive field to receive joy. Letter and knot<br />

write the savoir-y-faire of the subject. This is what we intended to show when applying Borromean<br />

topology, as an analysis method, to two cases of psychosis. We have concluded that both artist and<br />

handcraft creation work as a means of "writing" the subject, and may allow the three registers to be<br />

tied. The effect caused by "writing" the subject, more than the one produced by the creative process,<br />

is the one which can work as an element in supplementation. The creative process itself is also<br />

written language, and may be able to lead to tying effects on the three registers, being it through the<br />

Borromean via or not.<br />

Keywords: psychotic stabilization; creative process; Borromean topology; letter.<br />

Rio de Janeiro<br />

Abril de 2007<br />

vii


LISTA DE FIGURAS<br />

01 – Nó olímpico ........................................................................................................... 91<br />

02 – Nó borromeano de três elementos .............................................................................. 91<br />

03 – Triske com objeto a ............................................................................................... 91<br />

04 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan ................................................................. 98<br />

05 – Nó borromeano detalhado ................................................................................................ 100<br />

06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco ........................................... 101<br />

07 – Nó de trevo aberto ............................................................................................................ 108<br />

08 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) ............................... 110<br />

09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) ................................. 131<br />

10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano ....................................................... 131<br />

11 – Duas modalidades da clínica diferencial .......................................................................... 132<br />

12 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo ...................................... 143<br />

13 – Nó trivial (matemático) e nó do senso comum ................................................................. 148<br />

14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial ................................................................... 150<br />

15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos .......................................................... 150<br />

16 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo ....................................................... 150<br />

17 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas ............................... 151<br />

18 – Os três movimentos dos nós............................................................................................ 152<br />

19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz ..................... 153<br />

20 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 ........ 154<br />

21 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, com erro no ponto de cruz 2 ........ 155<br />

22 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf ............................................................................... 156<br />

23 – Apresentação parcial da tabela dos nós ........................................................................... 157<br />

24 – Esquema R ........................................................................................................................ 161<br />

25 – Plano da perspectiva clássica ............................................................................................ 162<br />

26 – Plano de projeção da perspectiva ..................................................................................... 162<br />

27 – Planos projetivos inseridos na esfera ............................................................................... 162<br />

28 – Esquema I ......................................................................................................................... 164<br />

29 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I ...................................................................... 166<br />

30 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana ................................ 174<br />

31 – Cadeia borromeana e nó de trevo ..................................................................................... 175<br />

32 – Erro e suplência em James Joyce no nó de trevo ............................................................. 176<br />

33 – Suplência borromeana pelo Édipo e suplência joyceana pelo ego ................................... 179<br />

34 – Nó borromeano a quatro, com a costura do sinthoma com o real .....................................185<br />

35 – Erro do nó do Profeta Gentileza ....................................................................................... 217<br />

36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza .............................................................................. 218<br />

37 – Erro do nó de A.? .............................................................................................................. 239<br />

38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 259<br />

39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 260<br />

40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza............................................................... 267<br />

41 – Pintura 01 de A. ................................................................................................................ 268<br />

42 – Pintura 02 de A. ................................................................................................................ 269<br />

viii


SUMÁRIO<br />

Introdução.................................................................................................................................... 12<br />

Capítulo 1 Estabilizações psicóticas: uma visitação preliminar ao tema ................................. 23<br />

1.1 Introdução às psicoses e às estabilizações: Freud e Lacan ............................................. 24<br />

1.2 A abordagem freudiana da psicose ................................................................................. 26<br />

1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo ..................................... 26<br />

1.2.2 A topologia da negativa na psicose: Die Verwerfung ........................................... 30<br />

1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora ....................................................... 38<br />

1.3 A abordagem lacaniana das soluções nas psicoses ........................................................... 39<br />

1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências ............................................. 40<br />

1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan ................................................... 47<br />

Capítulo 2 Quando a estrutura da linguagem aponta seu mais-além .......................................... 64<br />

2.1 Discussão dos conceitos preliminares à compreensão da revisão lacaniana .................... 65<br />

2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos .................................................................. 65<br />

2.1.2 As condições de possibilidade dos novos conceitos lacanianos ........................... 68<br />

2.2 Lacan, a linguagem e a psicose ......................................................................................... 72<br />

2.2.1 Linguagem e lalíngua ........................................................................................... 75<br />

2.2.2 Letra e escrita ..................................................................................................... 79<br />

2.2.3 Escrita e psicose ................................................................................................. 83<br />

2.3 Gozo: da satisfação à topologia ...................................................................................... 92<br />

2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan ...................................................... 93<br />

2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente ........................ 97<br />

2.4 Suplência e pai .............................................................................................................. 111<br />

2.4.1 O pai e die Verwerfung .................................................................................... 113<br />

2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia ....................... 119<br />

2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose .................. 121<br />

2.5 Enfim ............................................................................................................................. 126<br />

Capítulo 3 De nós e lapsos também se escreve um sujeito: a topologia dos nós e seus<br />

desdobramentos clínicos ........................................................................................................... 136<br />

3.1 Lacan e o nó borromeano .............................................................................................. 137<br />

3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático ................................................ 143<br />

3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais ................................... 147<br />

ix


3.2 Topologia e psicose ................................................................................................ 159<br />

3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50 ............. 159<br />

3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60 .. 167<br />

3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70 ......................... 169<br />

3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós ....................... 181<br />

Capítulo 4 Aplicação da topologia borromeana à leitura das estabilizações na clínica das<br />

psicoses ..................................................................................................................................... 187<br />

4.1 Discussão metodológica .................................................................................................. 188<br />

4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise ................................................ 188<br />

4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos ................................................ 191<br />

4.2 Uma primeira solução singular: a escrita do Profeta Gentileza ....................................... 198<br />

4.2.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 198<br />

4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 208<br />

4.2.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 216<br />

4.3 O segundo caso: A., de flagelo de Deus à “sedi di shacina”, e daí em diante ................ 218<br />

4.3.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 218<br />

4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 222<br />

4.3.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 239<br />

4.4 Os dois casos, nossa hipótese e sua escrita ...................................................................... 240<br />

Conclusão ................................................................................................................................. 243<br />

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 247<br />

Anexos ...................................................................................................................................... 258<br />

x


“Quando se escreve podemos muito bem tocar o real,<br />

mas não o verdadeiro.” (Jacques Lacan, 1975)<br />

xi


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

INTRODUÇÃO<br />

12


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“Não pense que pessoa tem tanta força assim a ponto<br />

de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma.<br />

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso -<br />

nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso<br />

edifício inteiro.” (Clarice Lispector, 1977)<br />

“A morte, o destino, tudo, estavam fora do lugar. Eu<br />

vivo para consertar.” (Geraldo Vandré/ Théo de<br />

Barros)<br />

A loucura sempre provocou inquietação, curiosidade, temor. De alguma forma, essa<br />

alteridade que se revela como o outro de nós mesmos, instiga em nós aquilo que<br />

desconhecemos (FOUCAULT, 1995). E muitas vezes nos coloca a trabalho. Se o<br />

analista não deve ceder a essa ‘sedução’ subjetiva na clínica, também não deve recuar<br />

diante da estranheza por ela provocada.<br />

Foi no ato de coragem que caracterizou esse enfrentamento que J. Lacan, apoiado em<br />

premissas freudianas, inaugurou a clínica da psicose com decisão no meio psicanalítico.<br />

Psiquiatra de formação, encontrou na psicose um guia para suas questões clínicas<br />

provocando um reviramento no interior de sua própria teoria a propósito dela. S. Freud<br />

já havia surpreendido o mundo ocidental, inicialmente europeu, com a teoria da<br />

sexualidade infantil e marcou narcisicamente o homem moderno ao dizer a ele que não<br />

era senhor em sua própria morada, dada a existência da determinação inconsciente<br />

(FREUD, 1917/1976). Ele tomava a neurose como normalidade, rompendo com a longa<br />

tradição que discutia o normal e o patológico em termos de média, anomalia ou desvio.<br />

Lacan, contemporâneo do rompimento com a modernidade, alimentava-se das teorias<br />

que marcavam essa cisão, cada vez mais explicitada. Embebedou-se do estruturalismo,<br />

dialogou com a lingüística e com a antropologia que lhe deram origem, com a filosofia<br />

e com as matemáticas, enfim, aplicou à leitura e à clínica psicanalíticas elementos<br />

vizinhos para nutri-la de maior precisão e rigor. Não morreu, porém, sem enxergar as<br />

aporias de sua própria teorização.<br />

Fazendo a crítica de si mesmo, Lacan vai cada vez mais se aproximar de uma redução<br />

minimal que lhe permitia transmitir o mais integralmente possível o acontecimento<br />

freudiano da descoberta do inconsciente (LACAN, 1972-73/1982). Nesse ponto, em<br />

torno da década de 70, encetou a discussão da psicose com a proposta do nó borromeu e<br />

a tomou como uma referência de normalidade. A qualquer sujeito é impossível tudo<br />

13


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

representar, tudo dizer. Esse elemento, foracluído 1 para todos, exige, de cada um, uma<br />

solução única para atar os três registros, Real, Simbólico e Imaginário conformando sua<br />

realidade para se escrever como singularidade radical.<br />

Nesse sentido, o que antes aparecia, seja em Freud, seja em Lacan, como defeito, como<br />

déficit em relação ao que podia ser tomado como normalidade, qual seja, a referência a<br />

um ordenador simbólico da subjetividade (o Nome-do-Pai), que garantia a entrada do<br />

sujeito na linguagem e sua subordinação à Lei (LACAN, 1955-56/1992), vai aparecer,<br />

então, como invenção. Nem mesmo o Nome-do-Pai garante a possibilidade de tudo<br />

significar. Ao contrário, já em sua proposição ele é índice da falta do Outro e do destino<br />

que a ela cada sujeito confere. Ele resguarda ao sujeito uma via de acesso à linguagem,<br />

uma solução ao embaraço colocado pelo desejo caprichoso do agente materno. Mas nem<br />

ele próprio, porém, tem a resposta para o seu enigma. O encontro com o Outro é sempre<br />

faltoso e, para isso, não há remédio. Ao contrário, é desse encontro que nasce a<br />

possibilidade de construção de uma resposta pelo sujeito.<br />

Como essa resposta se articula? Quais as relações que o sujeito pode estabelecer com o<br />

campo do Outro? O que a singulariza? Haveria alguma diferença entre a construção de<br />

solução na psicose e na neurose? Debatendo-se com essas questões, Lacan abriu um<br />

novo campo de investigação ao trazer a topologia dos nós para o interior da teoria<br />

psicanalítica. Ainda que essa teoria no seu campo de origem (o matemático) estivesse<br />

em sua pré-história naquele período, ao equivaler a amarração real do nó borromeu ao<br />

sujeito do inconsciente, Lacan apresentou aos psicanalistas do futuro uma nova e<br />

profícua ferramenta teórico-clínica, ou uma realidade operatória, como ele mesmo a<br />

designa.<br />

Na verdade, toda a discussão topológica de cortes, suturas, emendas e grampos, era<br />

proposta por Lacan como o real da clínica. Diferentemente do uso que fez da topologia<br />

da superfície com a Banda de Moebius, a garrafa de Klein ou com o cross-cap, com os<br />

nós, especialmente com os nós borromeanos, Lacan afirmava mostrar o real. A<br />

topologia borromeana não aparece como modelo, como explicação ou como analogia,<br />

não aparece nem mesmo como suporte para se pensar a clínica. “Minha topologia não é<br />

de uma substância que situe além do real aquilo que motiva uma prática. Não é teoria.”<br />

(LACAN, 1972/2003, p. 479).<br />

1 É possível, portanto, pensarmos em uma teoria restringida do sintoma, pertinente à neurose, e uma teoria<br />

generalizada, que vale tanto para a neurose quanto para a psicose.<br />

14


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

E, não por acaso, é através de um caso de psicose que ele pensa clinicamente esse uso<br />

no Séminaire XXIII, Le sinthome, após desenvolver suas bases, no Séminaire XXII, RSI.<br />

O que se destaca nesse estudo e que nos interessa é a recorrência à psicose para se<br />

pensar a clínica psicanalítica. O insondável da loucura, ou o foracluído da psicose,<br />

ganha novo nome à medida que a idéia de Nome-do-Pai vai perdendo seu vigor ou sua<br />

potência simbólica ordenadora para ceder lugar à pluralidade de soluções que recorrem<br />

a diferentes artifícios. Na época em que a mulher é sintoma do homem, quando este,<br />

para se dizer homem, faz dela objeto causa de seu desejo; na época em que a relação<br />

sexual não existe, quando se aponta para o irredutível de um processo analítico; na<br />

época em que lalíngua funda uma outra ordem caótica anterior à Linguagem articulada<br />

simbolicamente pelo significante; na época em que a letra, corolário do significante,<br />

escreve o veio pelo qual escorre o sujeito; a psicose funciona antes como paradigma que<br />

como déficit. Se, por um lado, Lacan não abandona a idéia de estrutura clínica<br />

(LACAN, 1966/2003), por outro ele retoma o axioma mais fundamental da clínica<br />

psicanalítica 2 e pergunta pelo que há de mais singular em cada sujeito que recebe, na<br />

medida em que a experiência com um sujeito de um mesmo tipo clínico não se<br />

transmite sequer à experiência com outro de mesmo tipo.<br />

Essa mesma experiência clínica, quando acontece com a psicose, revela a radicalidade<br />

do que não se generaliza a partir do que se tornou generalizável para todos. Ilógico?<br />

Absolutamente. A partir da constatação de que o Nome-do-Pai é um dentre os diferentes<br />

modos de amarração possíveis para um sujeito, para todos os sujeitos se colocará a<br />

exigência de buscar uma solução, ainda que cada um vá tecê-la com seus recursos e<br />

com a singularidade que sua estrutura dispõe. Em outras palavras, é universal a<br />

foraclusão (MILLER, 1998a) e singular sua solução. E é a escrita do nó, escrita com a<br />

letra a, do objeto causa de desejo, que amarra, no real da clínica, essa solução.<br />

Na experiência da clínica com a psicose que realizamos nos serviços substitutivos ao<br />

hospital psiquiátrico, verificamos diferentes estratégias de estabilização empreendidas<br />

pelos sujeitos que ali se tratavam. Especialmente quanto à criação artística ou artesanal,<br />

deparamo-nos com diferentes usos dela estabelecidos pelos psicóticos. Fosse articulado<br />

ao delírio, fomentando-o, fosse como elemento que fazia barra à atividade alucinatória,<br />

fosse como estratégia de pacificação, talvez mesmo como suplência, encontramos, na<br />

2 Segundo este axioma, a cada novo caso, uma nova psicanálise se inaugura e devemos tomar cada caso<br />

que recebemos como se fosse o primeiro, como inaugural.<br />

15


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

clínica da Saúde Mental, uma interrogação sobre a articulação criação-psicose no que<br />

tange à estabilização.<br />

O encontro entre a discussão empreendida por Lacan na década de 70 e a clínica<br />

cotidiana da Saúde Mental exigia uma revisão da clínica com as psicoses, que não podia<br />

mais se sustentar na aposta da metáfora delirante. A partir da elaboração de conceitos<br />

como lalíngua e letra e da discussão do paradigmático caso de Joyce, a escrita do nó<br />

como resposta exigia-nos avançar. Se Joyce se escreveu em sua obra, qual o estatuto da<br />

escrita aí? Uma suplência sempre recorrerá a alguma forma de escrita? “Escrever, não<br />

está absolutamente estabelecido que com a psicanálise chegaremos a isso. Isso supõe<br />

uma investigação propriamente falando do que isso significa, escrever” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 146).<br />

Foi a partir dessa constatação que iniciamos esta investigação articulando a escrita com<br />

a criação. Em Joyce, é patente que a obra se escreve e nela é forjado um ego para o<br />

autor. Mas essa articulação é sempre necessária? Ou foi a contingência do estilo<br />

joyceano que o conduziu a criar esse artifício? Outros sujeitos poderiam prescindir da<br />

escrita ao se valerem da obra, da criação, para operar efeitos de estabilização? Aí<br />

encontramo-nos com um segundo convite lacaniano, sob a forma de uma interrogação<br />

feita sobre a arte, para seu seminário sobre Joyce: “em que o artifício pode enfocar<br />

expressamente o que se apresenta primeiro como sintoma. Em que a arte, o artesanato,<br />

pode burlar, se podemos dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade”<br />

(LACAN, 1975-76/2005, p. 22).<br />

Tomamos criação artística aqui no sentido mais genérico de produção artesanal 3 , que<br />

implica na intervenção do sujeito sobre uma matéria bruta, cujo resultado, esteticamente<br />

tomado como arte ou não, aparece, numa perspectiva, sob transformação da matéria<br />

pelo sujeito e, noutra perspectiva, como transformação do sujeito pela matéria.<br />

Definitivamente, em cada experiência alguns são mais afetados que outros, tanto<br />

matéria quanto sujeito, podendo-se encontrar obras belíssimas e, por vezes, sujeitos que<br />

encontram nesse processo uma via de estabilização. Os dois casos são raros, entretanto.<br />

No cotidiano com a clínica da psicose nesses serviços complexos a regra são os<br />

obstáculos encontrados, o embaraço, a surpresa, as dificuldades institucionais, as<br />

3 Apoiamo-nos no argumento cartesiano, utilizado por Lacan (1974-75), de que se deve começar a prática<br />

das artes mais complexas pelas mais simples, como o trabalho de trançar das mulheres artesãs ou dos<br />

artesãos que fazem tapetes. Lacan evoca Descartes (1701/1953) exatamente ao introduzir os nós e as<br />

tranças que lhes correspondem.<br />

16


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

dificuldades de fazer um uso do espaço comum, público, as dificuldades de trato com o<br />

corpo, as dificuldades com a convivência familiar, enfim, as dificuldades de toda<br />

ordem.<br />

Diante delas, nos perguntávamos, originalmente, como a criação artística poderia ser<br />

útil no tratamento do psicótico, nos ensaios de estabilização que testemunhávamos.<br />

Dessa maneira, colocamos como objetivo principal, quando da proposição do projeto de<br />

pesquisa para esta tese, o de investigar a possibilidade de a obra na psicose apresentar-<br />

se como solução nessa estrutura clínica a partir de um trabalho sobre o campo do real<br />

que produza uma condensação de gozo realizada a partir da criação artística sobre<br />

uma superfície material.<br />

A obra, a entendíamos apenas no sentido do produto de uma criação artística, no sentido<br />

genérico acima explicitado. E solução, à época, implicava, para nossos estudos, o<br />

conjunto das diferentes possibilidades e estratégias de estabilização. Tínhamos em<br />

mente o paradigma joyceano que exigiu a escrita como articuladora de sua solução. E<br />

nos perguntávamos, então, se uma solução poderia prescindir dessa escrita. Para isso,<br />

um dos desdobramentos necessários à elaboração da pesquisa e da escrita desta tese foi<br />

o da discussão do conceito de letra em Lacan e suas conseqüências sobre a escrita<br />

colocada em xeque por Joyce. Por outro lado, já tínhamos assentada a noção de objeto a<br />

que, a nosso ver, seria o elemento possivelmente extraído no real da obra como<br />

responsável pela condensação ou localização de um gozo fora do corpo do psicótico.<br />

Restava verificar teórica e clinicamente, portanto, essa hipótese que extraímos do<br />

trabalho com os usuários das oficinas em Saúde Mental.<br />

“Nessas esculturas 4 coloco os monstros da minha infância. São as fotografias que<br />

ficaram congeladas na minha mente” (relato de usuário). O., cujo corpo encontrava<br />

amparo na mãe e na filha para se sustentar, possuía com a criação artística uma missão,<br />

a de se oferecer como objeto para a pesquisa dos estudiosos dos problemas da mente.<br />

Continuava objeto, portanto, da escrita científica. Sua militância política e seu ânimo<br />

cederam diante do afastamento da filha, do adoecimento da mãe e da ausência das<br />

oficinas de cerâmica (desativadas por um intervalo de tempo por falta de verba<br />

municipal...). Era uma produção submetida a um esteio mais forte, o do corpo<br />

4 Cf. no Anexo 1 fotos de algumas das trezentas obras que esse sujeito fez para mostrar aos estudiosos da<br />

mente humana seus problemas através de seu testemunho. Como se verá, cada obra tem ao menos três<br />

faces, o que faz de cem, trezentas peças.<br />

17


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

sustentado entre duas mulheres, como suas obras testemunham. Suas esculturas<br />

representam sempre três ou mais figuras que se transformam umas nas outras,<br />

mescladas, em continuidade, sem ruptura. O horror aparece nos furos e buracos que<br />

atravessam a argila e revelam uma atividade delirante que caminha silenciosa. Ensaiam<br />

furar e extrair no real um quantum de gozo que lhe permita viver com menos<br />

sofrimento. O que ele escreve em suas obras? Ou o que não escreve? De que forma suas<br />

esculturas podem se articular ao trabalho de estabilização por ele ensaiado? Antes com<br />

uma postura altiva e entusiasmada, O. hoje se apresenta taciturno, tímido, retraído.<br />

Em nossa prática nas oficinas, verificamos a pluralidade de usos que o sujeito podia<br />

fazer da criação, e que O., em sua peculiaridade, o atestava. Outros sujeitos que faziam<br />

uso da criação artística não se estabilizavam, não se tornavam “artistas” ou nem mesmo<br />

eram tocados por essa produção. Outras vezes, transformavam-se num espaço rico para<br />

enfrentamento da psicose. Em nossa dissertação de mestrado, esta dimensão foi<br />

ressaltada. De alguma maneira, as oficinas voltadas às atividades de criação artística<br />

e/ou artesanal evidenciavam ser um espaço que favorecia o trabalho de estabilização<br />

através dessa criação.<br />

“Então a oficina também faz parte desse suporte, mas também por essa literalidade de você<br />

... lá no fim tem uma coisa que foi feita. E que vão coisas até mais elaboradas, como eu<br />

acho que isso é [aponta trabalhos de argila], pelo menos alguns, até coisas mais simples<br />

como a oficina de bijouterias, né? E então eu acho que isso, assim, pra alguns pacientes tem<br />

um efeito muito interessante. Que esse efeito interessante tem a ver com essa literalidade<br />

dessa produção também não duvido, que ele tem a literalidade, no sentido de literalidade<br />

assim, é uma coisa […]. Não é igual você fazer ... sentar pra fazer uma discussão de grupo<br />

com eles, entendeu. O efeito não é o mesmo. (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p.<br />

221-222).<br />

“A gente pensou que teria uma materialidade diferente mesmo a palavra escrita, uma<br />

densidade simbólica. A gente chamou assim de uma certa densidade simbólica<br />

diferenciada (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221).<br />

“O que se disponibiliza basicamente para ele [paciente] é… uma… vamos dizer assim, uma<br />

substancialidade diferente.[…] Faz sentido principalmente pro psicótico essa oferta dessa<br />

possibilidade de uma substância de trabalho […] Porque a palavra escrita, ela tem uma<br />

substância diferente da palavra falada e… Eu acho que nem faz muita diferença da palavra<br />

escrita e com aqueles tipos de objeto que eles constroem muitas vezes […] Mas eles se<br />

incluem num outro tipo de registro pra esse sujeito. […] Eu acredito que isso possa ser um<br />

recurso é… precioso de trabalho com a psicose, esses recursos materiais assim, né?”<br />

(Relato de oficineiro) (GUERRA, 2000, p. 221).<br />

Literalidade, substancialidade, materialidade... Nas conclusões das pesquisas do<br />

mestrado (GUERRA, 2000), consideramos que a materialidade do produto provocava,<br />

18


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

em si mesma, algum tipo de efeito para o psicótico. Destacou-se em nossos achados o<br />

trabalho do psicótico sobre uma materialidade concreta como servindo de suporte para<br />

uma escrita outra também localizadora de gozo 5 , e não apenas produtora de<br />

significações. O produto sendo Real e, ao mesmo tempo, recebendo um contorno<br />

simbólico pela Linguagem e uma inscrição social (Imaginária) pela Cultura, se<br />

inscreveria, de um lado, incluído no campo das trocas sócio-simbólicas, circulando<br />

como um produto socialmente reconhecido. E, por outro lado, trabalhando o ponto de<br />

real que o simbólico pode tocar, o produto operaria sobre a subjetividade do<br />

participante, quando uma contingência permitisse essa operação. Nesse caso, ele<br />

poderia funcionar como elemento na estabilização psicótica.<br />

Ora, a idéia de materialidade e de substância em Lacan nasce de uma inspiração<br />

cartesiana acerca do dualismo entre res cogitans e res extensa, entre substância e<br />

matéria 6 , do qual Lacan faz um uso clínico. Ele associa a materialidade ao significante,<br />

enquanto a substância aparece sempre ao lado do gozo. Se o significante é matéria que<br />

faz existir o inconsciente estruturado como linguagem, o gozo, a substância gozosa, por<br />

seu turno, desvela o que determina o sujeito para além da linguagem, sua forma de<br />

satisfação e de dor, o ponto a que sua repetição o conduz, ou o impossível de dizer,<br />

conforme se busque as referências lacanianas ao gozo no início de sua obra (anos 50),<br />

ou no seu final (anos 70).<br />

Assim, o encontro com a abordagem do final do ensino lacaniano favoreceu a<br />

investigação da criação artística como possibilidade de solução na psicose, trazendo<br />

para primeiro plano a dimensão da escrita e da letra e, com isso, permitindo um<br />

refinamento em sua argumentação. Essas noções, bem como a mostração do real pelo<br />

nó e sua aplicação ao estudo de um caso (James Joyce), tornaram possível detalhar<br />

nossa hipótese e discuti-la com mais precisão. Se, ao iniciarmos nossa investigação,<br />

5 A título de introdução podemos dizer que o gozo implica, diferentemente do prazer, nas diferentes<br />

relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante – portanto, atravessado pela incompletude<br />

que a linguagem instala – pode esperar e experimentar no uso de um objeto desejado (CHEMAMA, 1995,<br />

p. 90).<br />

6 R. Descartes afirma a existência de duas substâncias separadas, a alma, pensamento ativo e sem<br />

extensão, e o corpo, extensão não pensante e passiva. Para ele, a mente é uma substância ou entidade,<br />

caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa, que percebe,<br />

que sente (res cogitans). A realidade externa é material, e a matéria tem como característica básica o fato<br />

de ser extensa (res extensa). Consciência e extensão são coisas claramente distintas, podendo cada uma<br />

delas ser clara e distintamente concebida sem referência à outra. Os vários estados de consciência<br />

(pensamento, sensação, sentimento) são totalmente distintos dos vários modos de determinação da<br />

matéria. Por isso, nenhum estado de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa<br />

física. A mente, e tudo que ela possui, pode existir sem qualquer substância material.<br />

19


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

esperávamos encontrar uma espécie de “categorização” do uso da criação artística no<br />

trabalho de estabilização psicótica, foi o encontro com o final da obra lacaniana que<br />

operou como um acontecimento, refazendo o destino da investigação ao tocar seu<br />

problema central.<br />

A problemática da estabilização psicótica apoiada na criação artística, ainda que<br />

marcada pelo irredutível à generalização nos casos que estudamos, pôde ganhar forma e<br />

verificar que: mais do que a criação em si mesma, é sua escrita como letra que permite<br />

que uma suplência aconteça. Aqui não falamos mais de estabilização genericamente,<br />

mas de suplência, que implica num passo a mais, como veremos ao longo deste<br />

trabalho. Também falamos que não é a criação em si mesma que forja a invenção de<br />

uma solução, mas claramente o que dela pode se fazer letra. Articulando a idéia<br />

lacaniana de uma “escrita com o objeto a” em Joyce à noção de letra, pudemos avançar<br />

até o ponto em que localizamos a raiz do que abre a possibilidade de uma suplência<br />

estabilizadora.<br />

Esse é o ponto em torno do qual toda a argumentação desta investigação se articulou.<br />

Seja pela via dos novos elementos conceituais que aparecem em Lacan na década de 70,<br />

seja pela via da discussão da topologia borromeana, seja pela mostração dos estudos<br />

clínicos, essas três vias nos conduziram, cada qual à sua maneira, ao ponto de<br />

convergência deste trabalho. É, sim, do que o sujeito escreve que podemos falar em<br />

suplência. Portanto, a rigor, após os anos de dedicação à pesquisa deste tema, tudo<br />

indica que nossa hipótese não se verifica clinicamente. Supúnhamos que a escrita não<br />

era necessária ao trabalho de estabilização, sendo-lhe contingente. Ao longo da<br />

discussão teórica e dos estudos clínicos, pudemos ver que, quando a estabilização<br />

acontece, e mais especificamente quando ela faz suplência, há sempre a escrita do nó<br />

em jogo. Como se vê, restava-nos saber qual o estatuto dessa escrita para pensarmos sua<br />

função no território das estabilizações psicóticas.<br />

Para chegarmos a este ponto da discussão, foi preciso empreender uma revisão acerca<br />

da noção de estabilização (explicitada como tal ou não) em Freud e em Lacan. Assim,<br />

no primeiro capítulo, de Freud, extraímos a noção de Verwerfung, destacando suas<br />

conseqüências quanto ao desencadeamento, à reconstrução possível do mundo e a<br />

topologia da realidade. Dessa maneira, escavamos em Freud as condições conceituais de<br />

possibilidade da discussão das suplências em Lacan, como forma de pensar as<br />

20


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

estabilizações nas psicoses. Com ele, retomamos a idéia da Verwerfung como<br />

foraclusão de um significante estrutural até a liquefação dessa perspectiva pela noção de<br />

escrita no estudo de Joyce. Localizamos os três paradigmas lacanianos quanto às<br />

soluções na psicose, a saber, o ato, a metáfora delirante e a obra, a fim de extrair as<br />

conseqüências desse percurso da obra lacaniana para a discussão das estabilizações na<br />

psicose.<br />

No segundo capítulo, centramo-nos na discussão dos aportes teóricos trazidos com o<br />

final do ensino lacaniano quanto à linguagem e à estrutura, a fim de traçar o percurso<br />

que o conduziu a pensar as soluções subjetivas a partir da topologia borromeana dos<br />

nós. Para isso, estruturamos uma argumentação que seguiu três eixos: a linguagem (letra<br />

e lalíngua), o gozo e o lugar do pai (de signficante à suplência). Com isso, pudemos<br />

trilhar a lógica que provocou em Lacan, no encontro com o nó borromeu, a proposição<br />

de uma nova consistência para pensar a localização do sujeito na estrutura. Dessa<br />

maneira, a idéia de um suplemento aparece deslocalizada da psicose, mas pertinente a<br />

qualquer estrutura clínica a partir do encontro com o real da linguagem.<br />

Sobre este ponto, então, Lacan passa a desenvolver toda uma teoria clínica sustentada<br />

na lógica borromeana. Acompanhamos essa discussão, no terceiro capítulo, dissecando<br />

no campo da Matemática os elementos essenciais dos quais Lacan se apropriou em sua<br />

construção. De posse dessas informações essenciais, retomamos as topologias possíveis<br />

da psicose que podemos encontrar em Lacan, de forma a pensar a suplência em sua<br />

relação com a clínica e a estabilização psicóticas.<br />

Enfim, demonstramos e mostramos no último capítulo, através do estudo de dois casos,<br />

nossa hipótese reformulada de que a letra é o que faz escrita do nó, e, portanto,<br />

suplência quando ela acontece na psicose. Após uma explicação metodológica do<br />

percurso da investigação que guiou os casos, evidenciamos, no primeiro deles, uma<br />

situação em que o sujeito, na psicose, escreveu-se como suplência através de sua<br />

criação. E, no segundo caso, deparamos-nos com um sujeito em que, apesar de sua farta<br />

produção artística e artesanal, não há uma escrita do nó, ficando, conseqüentemente, o<br />

sujeito numa zona de infinitização da criação que não se faz letra que fixa o gozo.<br />

Assim, convidamos nosso leitor a nos seguir na aventura clínico-conceitual deste<br />

trabalho, no qual os caminhos conhecidos se revestem de particularidades a cada virada,<br />

como num labirinto em que os sinais reencontrados vão se conformando em elementos<br />

21


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

diferenciais do percurso, essenciais ao deciframento que conduz à sua saída, cifrando-a,<br />

enfim. Acompanhemo-los.<br />

22


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

CAPÍTULO 1<br />

ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS:<br />

Uma Visitação Preliminar ao Tema<br />

23


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

1.1 Introdução às Psicoses e às Estabilizações: Freud e Lacan<br />

Apesar de, para Freud, a clínica com a psicose ter sido entendida como contra-indicada,<br />

ele mesmo abre a possibilidade, caso se modifique o método psicanalítico (FREUD,<br />

1940[1938]/1976), de que seu tratamento se torne possível 7 . A dificuldade encontrada<br />

por Freud não se situava exatamente do lado do psicótico, mas do lado da transferência.<br />

Sabemos que ele realizou extenso estudo sobre a psicose em 1911 a partir dos escritos<br />

autobiográficos do Presidente Schreber do qual extraiu os principais aportes teóricos<br />

sobre o assunto, tendo formulado aí o aforismo do delírio como a tentativa de cura, ou<br />

de solução, na psicose. Ou seja, há um movimento do psicótico em direção à<br />

estabilização. Entretanto, a especificidade da transferência nessas “neuroses narcísicas”<br />

(como ele tomava a psicose em oposição às neuroses transferenciais: histeria e neurose<br />

obsessiva) inviabilizaria seu tratamento analítico.<br />

“... aqui as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de<br />

narcisismo de ausência de objeto. A incapacidade de transferência desses pacientes (até<br />

onde o processo patológico se estende), sua conseqüente inacessibilidade aos esforços<br />

terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma<br />

hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia – todas essas<br />

características clínicas parecem concordar plenamente com a suposição de que suas<br />

catexias objetais foram abandonadas” (FREUD, 1915a/1976, p. 224-225).<br />

Sabemos que essa indicação freudiana não escapará a Lacan, que se dedicará a extrair a<br />

particularidade da transferência na psicose pela via da erotomania. Ao mesmo tempo em<br />

que avança teoricamente, não cede clinicamente da possibilidade de seu tratamento.<br />

Freud, por seu turno, se dedicou a pensar a psicose (paranóia) enquanto uma das defesas<br />

à castração, ao lado da histeria e da neurose obsessiva, já em seus primeiros escritos e<br />

rascunhos, como no “Rascunho H” (1895/1976) ou “Rascunho K” (1896a/1976), em<br />

“As neuropsicoses de defesa” (1894/1976) e “Observações adicionais sobre as<br />

neuropsicoses de defesa” (1896c/1976). Não trabalhou nesse período as soluções<br />

encontradas na psicose, mas antes seu mecanismo estruturante e fundador.<br />

Somente nos estudos clínicos do Presidente Schreber é que Freud traçou a diferença<br />

entre a enfermidade e as elaborações mediante as quais o sujeito responde aos<br />

fenômenos dos quais padece. Após 1911, com o texto “Sobre o narcisismo: uma<br />

7 “Assim, descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os<br />

psicóticos – renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos<br />

encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.” (FREUD, 1940[1938]), p. 200)<br />

24


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

introdução” (1914a/1976), avança na formulação do mecanismo de defesa na psicose,<br />

permitindo a posteriori uma releitura do caso Schreber. Segue-se, então, o período de<br />

produção sobre a metapsicologia, no qual encontramos referências teóricas importantes<br />

sobre a representação da coisa e da palavra na esquizofrenia e sobre o recalque primevo,<br />

além de considerações relevantes sobre o supereu e a melancolia. A partir de então, os<br />

escritos nos quais mais se dedica ao tema das psicoses são os textos sobre “Neurose e<br />

psicose” (1924[1923]/1976) e “A perda da realidade na neurose e na psicose”<br />

(1924/1976), apontando o caminho de reconstrução da realidade nas duas estruturas<br />

clínicas.<br />

Foi somente com Lacan, psiquiatra de formação, que a clínica com a psicose avançou,<br />

tendo ele vislumbrado e teorizado pelo menos três possibilidades diferentes de saída na<br />

psicose: a passagem ao ato, a metáfora delirante e a escrita (obra). Apesar de essas<br />

soluções aparecerem em experiências singulares, delas é possível extrair princípios<br />

universais que podem facilitar, caso a caso, a leitura e a condução dessas soluções<br />

encontradas na prática clínica e institucional com a psicose. Também sabemos que<br />

muitas vezes esses caminhos traçados pelos psicóticos em suas saídas prescindem da<br />

presença de um analista ou de um dispositivo institucional de cuidados, além de<br />

envolverem diferentes mecanismos e trabalho psíquicos. Podem, entretanto, ser<br />

elencados a título de sistematização teórica a partir da obra lacaniana.<br />

Lacan dedicou-se ao tema em três momentos principais, a saber, em sua tese de<br />

doutoramento em 1932; no Seminário, As psicoses, de 1955-1956, e no escrito daí<br />

decorrente “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” (1957-<br />

58/1998); e, finalmente, no seminário sobre Joyce, le sinthome, de 1975-1976.<br />

Na verdade, essa divisão é essencialmente didática na medida em que, tal qual Freud, o<br />

avanço da teorização de Lacan se desdobra ao longo de seu ensino a partir de<br />

circunvoluções em torno dos conceitos freudianos fundamentais da psicanálise, os quais<br />

ele enriquece. Ainda que didática, entretanto, essa divisão nos interessa, pois permite<br />

sistematizar as três soluções propostas por Lacan para as psicoses, essenciais ao nosso<br />

estudo.<br />

Especificamente nessa última discussão, Lacan aponta a escrita como aquilo que<br />

permitiu a Joyce sustentar com seu ego “uma função inteiramente outra que sua função<br />

simples” (LACAN, 1975-76/2005, p. 147). A função, através de sua escritura, de situar-<br />

25


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

se ali onde o Imaginário não fazia laço com o Real e o Simbólico, atados estes um ao<br />

outro. Na construção da solução joyceana, Lacan retoma a função do Pai, enquanto<br />

Ideal (amor) e enquanto Lei, destacando que em Joyce ela não opera, sendo-lhe<br />

necessário construir uma nova versão do Pai como sinthoma com sua escrita. É através<br />

desta que Joyce metaforiza sua relação com o corpo e sua imagem, formulando uma<br />

inaugural maneira de se enodar à realidade. “Por este artifício de escrita se restitui, eu<br />

diria, o nó borromeano” (LACAN, 1975-76/2005, p. 152).<br />

Assim, diante das possibilidades apontadas no texto freudiano e no lacaniano,<br />

buscaremos precisar as diferentes estratégias de estabilização psicóticas estudadas por<br />

esses autores neste capítulo. Percorreremos inicialmente as primeiras elaborações<br />

freudianas sobre a psicose como forma de defesa estrutural a um conflito psíquico<br />

insuportável. Vamos fazê-lo de forma a discutir posteriormente a construção delirante<br />

de uma ficção que conduz o sujeito a um ponto de estabilização como a solução que<br />

Freud aprende com o Presidente Schreber. Em seguida, nos deteremos no texto de<br />

Lacan e seus comentadores acerca das soluções psicóticas apresentadas nos três tempos<br />

de seu ensino.<br />

Construiremos dessa forma o percurso que alimenta a discussão mais específica sobre<br />

escrita, suplência e topologia borromeana no segundo capítulo, o que permitirá delimitar<br />

com maior precisão teórica o que da escrita joyceana reflete no trabalho de estabilização<br />

enquanto criação.<br />

1.2 A Abordagem Freudiana da Psicose<br />

1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo<br />

Sabemos que Freud não delimitou, com a clareza estrutural de Lacan, os modos de<br />

defesa do aparelho psíquico (ou as estratégias do sujeito, na terminologia lacaniana) nos<br />

termos que hoje os utilizamos. Neurose, psicose e perversão foram finamente sendo<br />

isoladas como formas particulares de resposta do sujeito diante do impasse colocado<br />

pela castração, entretanto, já desde Freud, encontramos o traçado fundamental das<br />

fissuras que as determinam.<br />

Já em seu “Rascunho H” (1895/1976, p. 291), discutindo a paranóia, Freud a toma<br />

como “um modo patológico de defesa”, apresentando publicamente a proposta da<br />

psicose como resultante de um mecanismo de defesa inconsciente no texto “As<br />

26


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

neuropsicoses de defesa” (1894/1976). Nele, essa hipótese central calcada na defesa<br />

ganha dois contornos. De um lado, diante de uma representação incompatível com o<br />

aparelho psíquico, este responde com uma defesa que opera retirando dessa<br />

representação seu afeto, tornando-a fraca e, com isso, destituindo-a da catexia que a<br />

tornava ameaçadora. Essa representação descatexizada é recalcada no inconsciente,<br />

seguindo seu afeto correspondente caminhos diversos, conforme a defesa ocorra na<br />

histeria, na neurose obsessiva ou na fobia. De outro lado, a representação e seu afeto<br />

podem ser rejeitados conjuntamente, não restando um traço inscrito da experiência<br />

hipercatexizada. Este é o caso das psicoses. Assim, apesar de ainda manter atreladas<br />

neurose e psicose como se ambas resultassem do “recalque” 8 , Freud já introduz uma<br />

diferença fundamental na operação estrutural da qual resulta a psicose.<br />

Observe:<br />

“Em ambos os casos até aqui considerados [neurose histérica e neurose obsessiva], a defesa<br />

contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação<br />

em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma<br />

espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação<br />

incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe<br />

tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa<br />

psicose [...]” (FREUD, 1894/1976, p. 63-64 – grifos nossos).<br />

Aqui Freud já anuncia seu trabalho sobre a diferença entre neurose e psicose da década<br />

de 20, localizando não na perda da realidade, mas no caminho para restaurá-la a<br />

diferença entre as duas estruturas clínicas. A rejeição atinge a própria situação real, que<br />

nunca precisou se tornar consciente. Trata-se de uma defesa tão eficaz, que nega a<br />

realidade mesma da percepção ligada à representação incompatível. Há uma negação da<br />

experiência traumática vinculada à castração, uma ausência de sua inscrição. Melhor<br />

dizendo, a questão da castração sequer é colocada. Há a ausência de seu<br />

8 É importante considerar que, nesses trabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1894/1976 e<br />

1896c/1976), Freud trata indistintamente os termos “defesa” e “recalque”, conferindo-lhes o sentido<br />

genérico de defesa estrutural. Ao longo de sua obra, entretanto, especificamente em “Inibições, sintomas<br />

e ansiedade” (1926[1925]/1976), ele propõe que o termo “defesa” seja utilizado nessa acepção genérica,<br />

designando todas as técnicas empregadas pelo Ego em conflitos que possam levar a uma estrutura<br />

específica: neurose, psicose e perversão. E quanto ao termo recalque (traduzido erroneamente em<br />

português por repressão), propõe que seu uso seja restrito ao mecanismo particular de separação entre<br />

idéia e afeto, característico da estrutura neurótica. Cumpre também ressaltar que usaremos a partir daqui,<br />

ao invés do termo “repressão”, que consta na tradução brasileira da obra, o de “recalque”. Isto porque<br />

repressão se apresenta geralmente associada aos mecanismos defensivos e conscientes do ego. Já o<br />

recalque é a terminologia utilizada para expor a operação inconsciente, responsável por desalojar<br />

representações incompatíveis com o aparelho psíquico, destituindo-as de sua catexia, fundando o aparelho<br />

psíquico dividido em Pcs-Cs e Ics e constituindo-se na defesa neurótica a qual fizemos referência. Para a<br />

operação estrutural que funda a psicose, utilizaremos sempre o termo rejeição, acompanhando a<br />

referência freudiana.<br />

27


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

reconhecimento, de sua representação psíquica.<br />

Dois anos mais tarde, Freud retoma a importância central da defesa na constituição do<br />

sujeito: “Minhas observações sobre os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a<br />

tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das<br />

neuroses em questão” (FREUD, 1896c/1976, p. 154). Entretanto, ao tentar sistematizar<br />

a operação de “recalque” [rejeição] peculiar à psicose 9 irá encontrar uma hiância que só<br />

avançaria, modificada, no estudo sobre Schreber. Aqui ainda afirma que a característica<br />

da defesa na psicose é o “recalque” por projeção e que, a fim de ser aceita sem<br />

contradição, a representação delirante exige uma atividade de pensamento do Ego que<br />

termina por alterá-lo. Como essas idéias não são passíveis de alteração, é o Ego que a<br />

elas precisa se adaptar, modificando-se.<br />

No estudo sobre Schreber, de 1911, ele revê essa posição, localizando a projeção num<br />

momento secundário ao “recalque” na psicose que ganha nesse texto sua formulação<br />

final. Discute também, para além da etiologia da paranóia, sua possibilidade de cura,<br />

como ele diz, ou de estabilização, como hoje podemos dizer. A originalidade de suas<br />

propostas nesse texto provoca uma reversão inaugural e fundamental à leitura posterior<br />

da psicose, lançando definitivamente princípios que orientam, até os dias de hoje, a<br />

investigação psicanalítica acerca da psicose, principalmente após sua releitura 10 com o<br />

texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1976, p. 102-103). Dois<br />

grandes enunciados se estabeleceram com esse texto:<br />

(a) em relação ao mecanismo estrutural da psicose, Freud afirma que “aquilo que foi<br />

internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95),<br />

permitindo a Lacan décadas depois afirmar que, na base da psicose, seu mecanismo<br />

não se resume a “um recalque por projeção”, mas antes a uma operação muito mais<br />

radical que ele denomina foraclusão, como veremos;<br />

(b) e, em oposição a uma interpretação fenomenológica da psicose, Freud subverte sua<br />

leitura apontando que “a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento”<br />

9 “A paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar” (FREUD,<br />

1896c/1976, p. 164).<br />

10 “A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parece-me estar na<br />

circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na<br />

fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico<br />

dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é<br />

encontrada nas neuroses de transferência” (FREUD, 1914a/1976, p. 102). Aqui Freud formula nova<br />

hipótese sobre a megalomania de Schreber que não nasceria da homossexualidade, mas de uma<br />

complexificação introduzida pelo narcisismo no aparelho psíquico.<br />

28


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

(FREUD, 1912[1911]/1976, p. 94), e não a enfermidade propriamente dita, como<br />

era interpretada até então. Donde Lacan afirmar textualmente que não é de déficit<br />

que se trata na psicose, mas de produção de resposta. “A liberdade que Freud se deu<br />

aí foi simplesmente aquela [...] de introduzir o sujeito como tal, o que significa não<br />

avaliar o louco em termos de déficit...” (LACAN, 1966/2003, p. 220).<br />

Apesar de reafirmar que a projeção está na base da defesa psicótica 11 , Freud faz uma<br />

correção em relação ao que escrevera nos Rascunhos e primeiras publicações de 1894 a<br />

1896 já comentadas. Lá, a projeção aparecia na etiologia da paranóia como provocando<br />

uma projeção dos sentimentos de auto-acusação do paciente para fora, retornando sob a<br />

forma de acusações exteriores. Aqui, Freud altera substancialmente a descrição do<br />

processo aí ocorrido, o que permitiu a Lacan recolocar os termos do trabalho delirante.<br />

“Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o<br />

exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi<br />

internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95). Assim, se<br />

nas primeiras formulações freudianas, a projeção era confundida com o próprio<br />

mecanismo constitutivo da psicose, na segunda formulação, ela é, no máximo, um<br />

momento secundário desse mecanismo.<br />

Cabe ainda ressaltar que o mecanismo de retirada da catexia libidinal do mundo externo<br />

coincide com o delírio do fim do mundo, como se vê em Schreber. A posterior<br />

construção de seu mundo interno realizada através do trabalho delirante, “que<br />

presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de<br />

restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1912[1911], p. 94-95) -<br />

nunca é completamente bem-sucedida. E esta, diferentemente do processo de<br />

adoecimento, de retirada da catexia libidinal das pessoas e coisas, que acontece<br />

silenciosamente, é ruidosa no momento de reinvestimento libidinal.<br />

Daí Lacan (1957-58/1998) extrai que, mesmo para Freud, a projeção já era insuficiente<br />

para explicar o “recalque” na psicose. Quando Freud aponta que é desde fora que<br />

retorna aquilo que foi internamente abolido, ele mesmo percebe que não se trata de um<br />

mecanismo projetivo. Como projetar, lançar de dentro para fora, aquilo que não existe<br />

dentro? Se o conteúdo foi internamente abolido, nós estamos falando de uma<br />

11 “A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome<br />

de projeção. Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de<br />

deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa” (FREUD, 1912[1911]/1976, p.<br />

89).<br />

29


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

representação primordial sobre o ser do sujeito psicótico que não encontra meios de<br />

significar-se, representar-se. Essa significação não vem de parte alguma e não remete a<br />

nada, posto não ter sido simbolizada. Será no caso do Homem dos Lobos, relatado em<br />

“História de uma neurose infantil” (1918[1914]/1976), que Freud utilizará o termo<br />

Verwerfung num fragmento clínico que o evidencia para nomear essa não inscrição de<br />

uma representação fundamental, diferente da operação do recalque para a neurose. É<br />

importante entendermos o que se opera como defesa nesse nível para que possamos<br />

adiante discutir as diferentes maneiras que o sujeito pode inventar para tratar dos efeitos<br />

particulares dessa operação constitutiva.<br />

1.2.2 A topologia da negativa na psicose: die Verwerfung<br />

No texto “A negativa” (1925/1976), Freud diz que a negação ou denegação 12 constitui<br />

um modo de tomar conhecimento do que está recalcado. Trata-se de uma suspensão do<br />

recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, evidenciando que a função<br />

intelectual está separada do processo afetivo. Para ele, negar ou afirmar o conteúdo de<br />

pensamentos é tarefa da função do julgamento. Assim, um juízo negativo seria o<br />

substituto intelectual do recalque, “o seu ‘não’ é a marca distintiva da repressão<br />

[recalque], um certificado de origem – tal como, digamos, ‘Made in Germany’” (p.<br />

297). A criação do símbolo da negativa possibilitaria um primeiro grau de<br />

independência dos resultados do recalque.<br />

Nesse texto, Freud estaria, segundo Hyppolite (1954/1998), apontando a origem da<br />

inteligência. A partir do conceito de Aufhebung, familiar ao vocabulário hegeliano com<br />

o qual o filósofo possuía grande intimidade, ele realiza a leitura do processo da<br />

denegação. Ele situa neste conceito, que não é ainda uma aceitação do recalcado, o<br />

nascimento do pensamento, afetado, primariamente, pela denegação. Além disso,<br />

retoma a dialética do senhor e do escravo para destacar, nesse nascimento mítico, a ação<br />

da pulsão de destruição. No entanto, a denegação realizaria sua função, não como<br />

12 Segundo a intervenção de J. Hyppolite (1954/1998), filósofo francês hegeliano, sobre o texto freudiano<br />

no seminário de Lacan sobre “Os escritos técnicos de Freud” (1953-54/1986), a tradução francesa mais<br />

adequada ao termo alemão Verneinung seria denegação, sendo primordial para a compreensão do texto a<br />

distinção entre a negação interna ao juízo e a atitude de negação. Vidal (1988, p. 16-17), em discussão do<br />

mesmo texto, aponta que denegação, na língua portuguesa, seria um vocábulo pertinente ao campo<br />

jurídico implicando num indeferimento, numa recusa a uma demanda, no sentido de não aceitar. Assim,<br />

ele prefere adotar o termo negação, no sentido de ‘dizer não’, que não é estritamente um conceito, mas<br />

uma operação que age sempre sobre a frase, incluindo nesse registro lógico a negação de uma proposição<br />

e também a negação gramatical.<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

tendência à destruição, nem como negação interna a um juízo, mas como atitude<br />

fundamental da simbolicidade explicitada. Acompanhemos a construção freudiana.<br />

Freud avança pela gênese da função do pensamento ao distinguir suas operações<br />

fundamentais. A função do julgamento estaria relacionada com duas espécies de<br />

decisões. “Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo particular, e<br />

assevera ou discute que uma representação tenha uma existência na realidade”<br />

(FREUD, 1925/1976, p. 297). Enquanto a primeira dessas funções opera pelo princípio<br />

do prazer, a segunda já é guiada pela prova (ou teste) de realidade.<br />

O juízo de atribuição, o primeiro apresentado por Freud, implica em introjetar o que é<br />

bom e ejetar o que é mau, instituindo um dentro e um fora, a partir dos respectivos<br />

atributos, é bom, quero comê-lo, é mau, quero cuspi-lo. A segunda função do juízo, a do<br />

juízo de existência, não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva ou não<br />

ser acolhido no eu, mas se refere ao fato de que algo existente no eu como representação<br />

possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real, apenas<br />

representado, subjetivo, está só dentro, enquanto o outro, real, também existe no fora.<br />

Neste ponto, foi deixada de lado a consideração pelo princípio do prazer, donde a<br />

antecedência lógica do juízo de atribuição em relação à denegação. Freud lembra que as<br />

representações provêm de percepções, são repetições destas. A oposição entre subjetivo<br />

e objetivo não existe desde o início. O objetivo primeiro da prova de realidade, assim,<br />

não seria encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas<br />

reencontrar tal objeto, desde sempre perdido. É nesse intervalo, entre o objeto da<br />

percepção, desde sempre perdido, e a representação, que o inconsciente se institui como<br />

diferença.<br />

A importância da função do julgar reside no fato de que ela é uma ação intelectual que<br />

decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à protelação do pensamento. Ela<br />

conduz do pensar ao agir. Além disso, oferece material para pensarmos o surgimento da<br />

função intelectual a partir das moções pulsionais primárias, o que revela uma relação<br />

entre significante e gozo. O julgar é uma continuação do processo original através do<br />

qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio do prazer.<br />

“Enquanto a afirmação [Behajung] – como um substituto da união – pertence a Eros; a<br />

negativa [Verneinung] – o sucessor da expulsão [Ausstosung] – pertence ao instinto [à<br />

pulsão] de destruição” (FREUD, 1925/1976, p. 300). Trata-se de uma única função do<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

juízo que se realiza em dois tempos.<br />

“Atribuição e existência, em sentido estrito, correspondem às duas decisões do mesmo<br />

juízo, cuja topologia seria um oito interior” (VIDAL, 1988, p. 24). Aqui se destaca uma<br />

topologia do sujeito que já rompe com a idéia de dentro e fora, ao mesmo tempo em que<br />

a institui. O equivalente ao sujeito interior, sujeito da psicologia, diferente do mundo<br />

externo, seria a esfera, superfície bilátera que divide o espaço em um interior e um<br />

exterior. Há, entretanto, na apresentação freudiana a referência a uma topologia que<br />

inclui o inconsciente. Negar implica em ‘liberar’ do recalque alguns significantes que<br />

podem retornar à cadeia. Não há ali dentro ou fora. Podemos dizer, com Lacan, que<br />

Freud nos apresenta o inconsciente como estrutura moebiana 13 . Numa única borda o<br />

significante precipita o laço social, seja como articulação, em cujo intervalo se situa o<br />

sujeito, seja como materialidade significante e como barra, o que instaura uma<br />

disjunção entre significante e significado. “A Verneinung é da ordem do discurso, e<br />

concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada” (LACAN,<br />

1955-56/1992, p. 101).<br />

Na discussão do texto freudiano que empreende em seu seminário, Lacan reafirma a<br />

dimensão fundadora da ordem simbólica na Bejahung. Para que um sujeito não queira<br />

saber de algo no sentido do recalque, é preciso que esse algo tenha vindo à luz pela<br />

simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,<br />

algo é expulso e resta fora. É aí que se constitui o real, “na medida em que ele é o<br />

domínio do que subsiste fora da simbolização” (LACAN, 1954/1998, p. 390). A<br />

Behajung, correlacionada a uma inclusão significante, não é outra coisa senão a<br />

condição primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser.<br />

Comporta, portanto, uma Ausstosung, uma expulsão do eu, constitutiva do Real. Eis a<br />

função primordial do juízo de atribuição.<br />

“A segunda decisão, a da existência real de uma coisa representada, se funda sobre essa<br />

partição entre simbólico e real. Como sucessão da Ausstosung primeira, se determina o real<br />

como fora da simbolização. A negação – die Verneinung – sucessão da Ausstosung, se<br />

estende no domínio do princípio da realidade” (VIDAL, 1988, p. 26).<br />

São operações, ao mesmo tempo que sucessivas, necessárias umas às outras e, portanto,<br />

13 “A fita de Moebius pode ser ilustrada por uma tira que se fechou, depois de ter-lhe sido aplicada uma<br />

semitorção. Essa curiosa superfície apresenta a propriedade de ter apenas um único lado e uma única<br />

borda. Essa fita, na qual o lado direito se prende ao lado do avesso, representa a relação do<br />

inconsciente com o discurso consciente. Isso significa que o inconsciente está do avesso, mas pode surgir<br />

no consciente em qualquer ponto do discurso” (CHEMAMA, 1995, p. 212).<br />

32


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

indissociáveis entre si. Podemos aventurar a hipótese de que seja nesse ponto que a<br />

letra, enquanto fronteira entre Real e Simbólico como discutiremos mais à frente, se<br />

escreva com a queda do significante primordial que identifica o ser do sujeito.<br />

Enfim, a negação se estabelece sobre a possibilidade da Behajung, ou seja, sobre uma<br />

frase afirmada que pode ser riscada. A elisão significante está, pois, na matriz da<br />

Verneinung, e determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante, no lugar em<br />

que uma coisa pode deixar de existir.<br />

Qual a importância de toda essa discussão para a questão da suplência nas psicoses?<br />

Ora, sabemos que Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação<br />

significante no primeiro tempo de seu ensino. Para ele, distinguir as relações do sujeito<br />

com a estrutura, enquanto estrutura significante, implicou em ressignificar essa noção<br />

de defesa. Em Freud, essa noção implicava num processo mais amplo que o do<br />

recalque, como vimos, incluindo outras operações psíquicas que determinavam a<br />

posição do sujeito em relação ao Édipo. Para Lacan, o efeito da defesa modifica o<br />

sujeito. “O modo original de elisão significante que aqui tentamos conceber como a<br />

matriz da Verneinung afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em<br />

que ele encontra seu lugar” (LACAN, 1960/1998, p. 672). É exatamente a estrutura<br />

desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação, impondo ao pensamento<br />

psicanalítico ser criacionista, não se contentando com nenhuma referência<br />

evolucionista.<br />

Mas o que ocorre na psicose já que não estamos a falar de recalque quando nos<br />

referimos a ela? De que forma essa operação constitutiva se escreveria nessa estrutura<br />

clínica? Como Freud e Lacan estabelecem essa discussão e o que dela podemos<br />

depreender para pensar as soluções na psicose?<br />

Freud diferencia a negação do negativismo de alguns psicóticos. “O desejo geral de<br />

negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser<br />

encarado como sinal de uma desfusão de instintos [pulsões]...” (FREUD, 1925/1976, p.<br />

300). A função do julgamento só se torna possível a partir da criação do símbolo da<br />

negativa, que dota o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências do<br />

recalque e, com isso, da compulsão do princípio de prazer.<br />

Há, portanto, na psicose, previamente a qualquer simbolização – anterioridade lógica –,<br />

uma etapa em que uma parte da simbolização não se faz. É essa a hipótese de Lacan<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

(1955-56/1992, p. 97) no seminário sobre as psicoses. Se na neurose se trata de uma<br />

palavra que se articula, na medida em que o recalcado e o retorno do recalcado são a<br />

mesma coisa, pode acontecer na psicose que alguma coisa de primordial quanto ao ser<br />

do sujeito não entre na simbolização, mas seja rejeitado, foracluído. Na relação do<br />

sujeito com o símbolo há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva. Algo que não<br />

foi simbolizado vai se manifestar no Real.<br />

Para Lacan, no interior da Behajung podem acontecer todas as espécies de acidente. Ele,<br />

então, propõe que na psicose, ao nível da Behajung primitiva, estabelece-se uma<br />

primeira dicotomia: “o que teria sido submetido à Behajung, à simbolização primitiva,<br />

terá diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro.<br />

[...] Há portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung”<br />

(LACAN, 1955-56/1992, p. 98). Em outras palavras, a Verwerfung se articula à<br />

inoperância da Behajung, ou juízo de atribuição, precedente necessário a qualquer<br />

aplicação possível da Verneinung, articulada por Freud ao juízo de existência e por<br />

Lacan à confissão do próprio significante que ela anula (LACAN, 1957-58/1998, p.<br />

564).<br />

É também ao significante que se refere a Behajung primordial. Lacan lembra que ele é<br />

expressamente isolado como termo de uma percepção original, sob o nome de signo,<br />

Zeichen, na Carta 52 14 que Freud escreve a Fliess. Articulada, pois, ao significante, a<br />

Verwerfung será tida por Lacan, “como foraclusão do significante. No ponto em que,<br />

veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um<br />

puro e simples furo” (LACAN, 1956-57/1998, p. 564). Trata-se de uma inscrição que<br />

não se faz, ao contrário da Behajung, que implicaria exatamente na inscrição desse<br />

significante primordial.<br />

Lacan irá retomar a discussão do termo Verwerfung em seu primeiro seminário público<br />

(LACAN, 1953-54/1986). Ali ele irá definir a Verwerfung como supressão<br />

[retranchement], cujo efeito seria uma abolição simbólica, como Freud relata no caso do<br />

Homem dos Lobos. Dois seminários depois, ao tratar das psicoses, acabamos de ver que<br />

14 Nessa carta (FREUD, 1896b/1976, p. 325), grande figura da metapsicologia psicanalítica, é possível<br />

localizar as negações constitutivas do sujeito evidenciadas por Freud, que culminam na passagem da<br />

percepção à representação inconsciente e desta à consciência, como atesta o gráfico abaixo:<br />

W - Wz - Ub - Vb - Bews<br />

Wahrnehmungen Wahrnehmungszeichen Unbewusstsein Vorbewusstsein Bewusstsein<br />

(percepções) (registro da percepção) (traços do inconsciente) (pré-consciência) (consciência)<br />

primeiro registro segundo registro terceiro registro<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Lacan atrela a Verwerfung à não inscrição do significante do Nome-do-Pai, tomando<br />

agora sua tradução francesa pelo termo jurídico foraclusão. No universo jurídico<br />

francês, a foraclusão implica na perda do prazo para interpor uma ação, cujo interesse<br />

existe de fato, porém não mais de direito. No Brasil, o termo mais exato seria preclusão.<br />

Entretanto, o que está em jogo aqui é a versão apresentada, por Lacan, para o termo.<br />

Uma operação não se inscreveu em tempo hábil, tornando caduca sua função. Os efeitos<br />

dessa carência significante retornam como gozo no real.<br />

Lacan (1953-54/1986) também realiza extensa discussão sobre essa operação a partir do<br />

caso do Homem dos Lobos. Nesse caso, Freud (1918[1914]/1976, p. 109) fala em<br />

Verwerfung no tocante à castração, rejeição que instiga a alucinação do dedo ferido.<br />

“Podemos presumir, portanto, que essa alucinação pertence ao período no qual [o<br />

homem dos lobos] foi levado a reconhecer a realidade da castração e deve, talvez, ser<br />

considerada como o acontecimento que marca verdadeiramente esse passo” (FREUD,<br />

1918[1914]/1976, p. 108). Como Lacan (1953-54/1986, p. 55) assinala, o sujeito<br />

recusou, rejeitou – a palavra alemã é verwirft. E continuando nos equívocos da tradução<br />

francesa do texto freudiano, ele se pergunta por que a frase Eine Verdrängung ist etwas<br />

anderes als eine Verwerfung não foi simplesmente traduzida, como em português, por<br />

uma repressão [um recalque] é algo muito diferente de uma rejeição (FREUD,<br />

1918[1914]/1976, p. 102), por exemplo. Mas não, ele se questiona, a frase na versão<br />

francesa surge como um recalque é outra coisa que um julgamento que rejeita e<br />

escolhe. A tradução conduz o pensamento lacaniano à conclusão de que, na origem,<br />

para que o recalque seja possível, é preciso que exista um para-além dele próprio, um<br />

primeiro núcleo do recalcado. E nisso ele é absolutamente freudiano. “A repressão<br />

[recalque] não é um mecanismo defensivo que esteja presente desde o início; que ela só<br />

pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental<br />

consciente e a inconsciente” (FREUD, 1915c/1976, p. 170). Com Freud, Lacan localiza<br />

esse núcleo como “a experiência original do trauma [...], o núcleo primitivo é de um<br />

nível diferente dos avatares do recalque. É o fundo e o suporte deles” (LACAN, 1953-<br />

54/1986, p. 56). Não estaria ele articulando Behajung aqui?<br />

A partir dela e da leitura da denegação, podemos pensar, com Lacan, que a foraclusão<br />

ou a Verwerfung, ao implicar numa não-representação de uma marca perceptiva<br />

inaugural, a modificaria estruturalmente, tornando-a real. Isso ocorre na medida em que<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

esse dentro inaugural é expulso, ou seja, na medida em que, apesar de a percepção<br />

receber uma primeira indicação, um primeiro registro de percepção, ela não pode se<br />

transformar em “lembranças conceituais” (FREUD, 1896b/1976, p. 325) por falta da<br />

inscrição que amarraria a função da exceção do Pai, o traço unário inconsciente. Daí<br />

termos como resultado um estado de percepção que não passa ao estado de<br />

representado. “O próprio significante sofre profundos remanejamentos” (LACAN,<br />

1955-56/1992, p. 104).<br />

A Verwerfung atingiria o próprio ponto em que uma marca deveria apagar-se para<br />

tornar-se significante, constituindo o sujeito psicótico pela exclusão de um dentro<br />

primitivo. Na ausência da passagem do desejo para o significante que uma amarra<br />

tornaria possível, os traços mnêmicos do percebido pré-histórico (visto, ouvido, sentido)<br />

permanecem em estado de percebido real, pura percepção sem nenhum traço que a<br />

represente. No sistema percepção-consciência, podem apenas ser experimentados, mas<br />

não inscritos. Entre a inscrição das percepções e o pronunciamento das palavras<br />

conscientes, habitaria uma vazio criado pela abolição das inscrições mnésicas no<br />

inconsciente (RABINOVITCH, 2001). Ou seja, a operação alteraria a própria maneira<br />

como as marcas se inscrevem, tornando-as reais e fazendo coincidir o real com o<br />

inconsciente. Daí o psicótico recorrer a palavras em vez de coisas 15 , pois são elas que,<br />

ainda que esvaziadas de sentido, encontram-se a sua disposição, como, por exemplo, na<br />

construção delirante em que se dá a tentativa de lhes conferir uma significação<br />

inventada e originalmente ausente.<br />

Essa significação essencial ausente diz respeito ao sujeito na medida em que é o ponto<br />

no qual o significante Nome-do-Pai, não tendo se inscrito, mas antes estando foracluído<br />

no lugar do Outro, não permite ao sujeito nomear-se (LACAN, 1955-56/1992). O não<br />

ausente do inconsciente é o não outrora significado pelo Pai como interdição. O Nome-<br />

do-Pai seria o nó que enlaçaria as duas pulsões que se encontram desagalmadas na<br />

psicose, como disse Freud.<br />

15 Freud decompõe a representação consciente do objeto em representação da coisa hipercatexizada<br />

através da ligação com a representação da palavra que lhe corresponde, articulando que no Inconsciente<br />

permanece apenas a representação da coisa do objeto – ponto foracluído na psicose. Daí extrai que a<br />

catexia das representações de palavra é retida na psicose já que ela não faz parte da operação de rejeição.<br />

Ela representa, na verdade, a primeira das tentativas de restabelecimento, dirigidas à recuperação do<br />

objeto perdido. “E, pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz<br />

ao objeto através de sua parte verbal, contentando-se com palavras em vez de coisas” (FREUD,<br />

1915a/1976, p. 232).<br />

36


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Nesse ponto faltoso, ponto de apresentação de uma questão impossível de o psicótico<br />

formular sobre seu ser – quem sou eu? –, articula-se uma resposta que provém do real,<br />

“de fora”. É de resposta, portanto, e não de projeção, que se trata na psicose. A irrupção<br />

da psicose, ou o desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente<br />

surge uma questão sobre o seu ser, ou seja, quando o Nome-do-Pai foracluído, isto é,<br />

jamais advindo no lugar do Outro, é ali invocado em oposição simbólica ao sujeito,<br />

numa posição terceira em uma relação que tenha por base a relação imaginária, dual e<br />

especular (a-a’) (LACAN, 1956-57/1998). Para o Lacan da década de 50, o psicótico<br />

estaria desprovido da possibilidade de fazer funcionar uma negação em relação ao<br />

fenômeno que se desencadeia no real, “incapaz de fazer dar certo a Verneinung com<br />

relação ao acontecimento” (LACAN, 1955-56/1992, p. 104). O que se produz, então, é<br />

uma reação em cadeia ao nível do imaginário, uma cascata de remanejamentos<br />

imaginários. Já no final da década de 60, como vimos, Lacan (1966/2003) irá apresentar<br />

o livro de Schreber avaliando que Freud ali se deu a liberdade de introduzir o sujeito,<br />

não avaliando o louco em termos de déficit ou de dissociação de funções.<br />

Além disso, Lacan não reconhece como simples delírio o trabalho de estabilização, mas<br />

antes como um processo que constitui o delírio como uma metáfora que faz às vezes da<br />

metáfora paterna, que adiante discutiremos. Essa subversão freudiana, de localizar no<br />

delírio a tentativa “ruidosa” de cura e não uma manifestação psicopatológica, permitiu a<br />

Lacan formalizar, a partir da discussão sobre a operação simbólica da metáfora paterna,<br />

uma das soluções psicóticas.<br />

Assim, vemos que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da<br />

rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem. Essa modulação<br />

do retorno implica, para cada sujeito, uma maneira particular de lidar com o real,<br />

exigindo do analista ou técnico de Saúde Mental a sustentação de uma posição de<br />

aprendiz diante da psicose (LACAN, 1957-58/1998; QUINET, 1997; RABINOVITCH,<br />

2001; LAURENT, 1995b; ZENONI, 2000) como orientação ao seu tratamento possível.<br />

O que se passa nesse nível determina, portanto, as estratégias que o sujeito irá<br />

desenvolver para lidar com sua psicose.<br />

1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora<br />

Ora, Freud não altera teoricamente essa posição desenvolvida em 1911, apesar de em<br />

37


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“O inconsciente” (1915a/1976) avançar na discussão já esboçada em seus primeiros<br />

escritos pela perspectiva da representação de objeto como sendo resultado da<br />

representação da coisa hipercatexizada pela representação da palavra, como vimos. Já<br />

com “A perda da realidade na neurose e na psicose” (FREUD, 1924/1976) dá-se uma<br />

interessante e original elaboração, complementar ao comentário sobre o<br />

restabelecimento de Schreber. O problema da psicose não seria o da perda da realidade,<br />

mas o expediente daquilo que vem a substituí-la (LACAN, 1957-58/1998, p. 549). Na<br />

psicose, haveria uma particularidade na relação com a realidade, estabelecida a partir da<br />

estrutura da relação com o Outro, na qual o psicótico não encontra um lugar para alojar-<br />

se. Na verdade, para Freud (1924/1976, p. 231), tanto na neurose quanto na psicose, há<br />

perda da realidade, devido a “uma rebelião por parte do id contra o mundo externo, de<br />

sua indisposição – ou, caso preferirem, sua incapacidade – a adaptar-se às exigências<br />

da realidade”. Num primeiro momento, haveria um recalque das exigências pulsionais,<br />

na neurose, enquanto na psicose ocorreria uma rejeição do fato desagradável da<br />

realidade. Em qualquer dos casos, porém, haveria perda na relação com a realidade<br />

externa.<br />

A diferença entre essas estruturas diz respeito à maneira como cada uma delas irá, num<br />

segundo momento, recompor essa relação. Na neurose, um fragmento da realidade é<br />

evitado por uma espécie de fuga, mas o neurótico não repudia a realidade, apenas<br />

ignora-a, recalcando o conteúdo aflitivo. Já na psicose, a realidade é remodelada, o<br />

psicótico a repudia e tenta substituí-la, transformando-a a partir de precipitados<br />

psíquicos de antigas relações com ela. Assim, na psicose o substituto tenta colocar-se no<br />

lugar da realidade, enquanto na neurose liga-se a um fragmento dela, conferindo-lhe<br />

uma importância especial e um significado secreto, simbólico porque substitutivo,<br />

sintomático.<br />

Enquanto Freud situa na psicose um remodelamento da realidade, veremos Lacan<br />

apontar um ‘remodelamento’ de toda sua teoria a partir da psicose na década de 70.<br />

Alguns anos antes de enveredar na discussão dos nós, ele introduz o conceito de objeto<br />

a, que já forja uma topologia singular de vizinhanças, continuidades e fronteiras que<br />

rompem com a idéia de dentro e fora, articulando o eu e o mundo a partir da queda<br />

desse objeto-causa do desejo ou de sua ausência. No comentário ao Esquema I no<br />

segundo capítulo, teremos a oportunidade de vislumbrar a radicalidade da proposição<br />

38


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

freudiana, bem como seus efeitos topológicos.<br />

Podemos, enfim, quanto ao campo das estabilizações psicóticas, concluir que Freud<br />

apresenta a solução psicótica pela via do trabalho delirante. Além disso, mesmo não<br />

tendo desenvolvido um comentário acerca da criação na psicose, despertou um olhar<br />

novo sobre questões relacionadas à arte stricto sensu. Tal é o caso da relação entre o<br />

sentido e a obra, quando, por exemplo, se pergunta em “O Moisés de Michelângelo”<br />

(FREUD, 1914b/1976, p. 254) “por que a intenção do artista não poderia ser<br />

comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental?”.<br />

Ele já esboça que há um insondável, um impossível de dizer, uma cifra, enfim, na<br />

produção artística que a orienta por outra via que não a estritamente simbólica. Algo<br />

escapa à produção artística que não pode ser toda-dita em palavras. E é desse real que<br />

Lacan irá tratar ao estudar Joyce, como veremos, oferecendo-nos subsídios para pensar<br />

a criação e a estabilização na psicose. Será, portanto, com Lacan que veremos surgir<br />

novas proposições acerca das soluções construídas pelos psicóticos e sua relação com a<br />

criação artística. Vamos a elas.<br />

1.3 A Abordagem Lacaniana das Soluções na Psicose<br />

Partindo inicialmente das proposições freudianas, Lacan passa a articular, contando com<br />

os três registros – real, simbólico e imaginário –, o delírio como uma resposta à invasão<br />

do real que, desarticulado do simbólico, provoca os fenômenos de remanejamento<br />

imaginário na psicose. As tentativas de reconstrução delirante para Lacan ganham,<br />

assim, o estatuto de um trabalho do simbólico. Mas, antes de se deter na análise do<br />

delírio e sua função na psicose, trata, ainda em seu trabalho de doutoramento de 1932,<br />

do ato como possibilidade de cura nos casos de paranóia de autopunição.<br />

Ao definir o trabalho na psicose como o trabalho sobre o retorno no real daquilo que foi<br />

foracluído no simbólico, Soler (1990) propõe, apoiada em Lacan, o ato, a obra e a<br />

metáfora delirante como as diferentes saídas encontradas pelo psicótico. Ela também<br />

inclui nesse rol a identificação imaginária (não como trabalho, mas como fenômeno que<br />

pode favorecer uma forma precária de estabilização) e a sublimação criadora, que se<br />

aproxima da estrutura da metáfora delirante, mas diferentemente dela faz pacto, laço,<br />

sentido para o campo social, como no caso de Rousseau com sua obra filosófica.<br />

Interessante destacar que, ao tratar da obra, Soler aproxima a escrita de Joyce das<br />

39


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

pinturas de Van Gogh, por exemplo, tomadas como trabalho do real sobre o real através<br />

da produção de uma obra inaugural, inédita. Abre, pois, um precedente para se pensar a<br />

criação artística sobre uma superfície material como uma saída na psicose, aproximando<br />

seus efeitos daqueles produzidos pela escrita, como em Joyce. Antes, porém, de<br />

determo-nos na discussão das soluções (ato, metáfora delirante e obra) e da relação<br />

específica entre criação e estabilização, é interessante discutirmos como Lacan<br />

apresenta as noções de desencadeamento e a de enigma em sua obra. Elas nos serão<br />

úteis para articular o campo das estabilizações na psicanálise.<br />

1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências<br />

A. O desencadeamento<br />

Ainda que Lacan fale de comportamento desencadeado em seu estudo sobre o Homem<br />

dos Lobos, em 1951-52, quando ainda ministrava seus seminários em sua própria casa,<br />

o termo será elevado a conceito somente em meados da década de 50 no estudo que<br />

empreende, então, sobre a psicose, a partir do estudo freudiano do caso Schreber. Ao<br />

discutir a relação entre o moi e o instinto sexual, Lacan relembra, em relação ao Homem<br />

dos Lobos, que ele possui uma vida sexual realizada. E sobre ela diz tratar-se de um<br />

ciclo de comportamento que, uma vez desencadeado, vai até o fim, estando entre<br />

parênteses em relação ao conjunto da personalidade do sujeito. Como se vê, o<br />

desencadeamento aqui ainda não ganha ares de conceitualização, funcionando<br />

simplesmente como adjetivo.<br />

Diferente tratamento é dado ao termo no Seminário 3 (LACAN, 1955-56/1992) e no<br />

texto “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Nesses textos, Lacan<br />

reúne as condições clínicas do desencadeamento, assentado na teoria estruturalista e no<br />

registro da fala e da linguagem. Sobre a primeira condição, a estrutura psicótica em si<br />

mesma, ele considera que<br />

“é num acidente desse registro [da linguagem] e do que nele se realiza, a saber, a foraclusão<br />

do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a<br />

falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da<br />

neurose” (LACAN, 1957-78/1998, p. 582).<br />

A primeira condição para a ocorrência do desencadeamento no final dos anos cinqüenta<br />

é a própria condição estrutural da foraclusão do Nome-do-Pai na psicose. Essa condição<br />

Lacan a explicita ao dizer que é preciso admitir que o Nome-do-Pai reduplica no lugar<br />

40


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

do Outro, o próprio significante do ternário simbólico, na medida em que ele constitui a<br />

lei do significante.<br />

Além disso, “seja qual for a identificação pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe,<br />

ela desencadeia, por ser abalada, a dissolução do tripé imaginário” (LACAN, 1957-<br />

58/1998, p. 572). Detalhe não menos importante na medida em que o desencadeamento<br />

exigirá uma segunda condição que podemos aqui nomear de quebra da identificação.<br />

Mas não se trata de uma identificação qualquer. É preciso que seja tocada exatamente<br />

aquela através da qual o psicótico assumiu o desejo da mãe. Quando a via que determina<br />

essa identificação na constituição subjetiva do sujeito psicótico é abalada, uma das<br />

condições do desencadeamento se realiza.<br />

A terceira condição implica na convocação do Nome-do-Pai foracluído em oposição<br />

simbólica ao sujeito, como vimos. Mais uma vez é no detalhe que reside a sutileza dessa<br />

terceira condição. A casualidade dos acontecimentos na vida do psicótico só conduz a<br />

um desencadeamento se toca o ponto no qual falta<br />

“... nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Umpai.<br />

É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo<br />

antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por<br />

base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade” (LACAN, 1957-58/1998, p.<br />

584).<br />

O encontro contingente dos fatos da vida com a determinação subjetiva da foraclusão,<br />

somado ao conseqüente desarranjo identificatório, caracteriza a “conjuntura dramática”<br />

que Lacan localiza no momento do desencadeamento. Podemos, assim, destacar,<br />

respectivamente, as três condições para o desencadeamento na psicose:<br />

(a) condição estrutural;<br />

(b) quebra da identificação imaginária;<br />

(c) condição específica.<br />

B. O enigma na psicose<br />

Há ao menos duas possibilidades de se pensar o enigma em Lacan 16 (LAURENT, 1993;<br />

SOLER, 1993; NAVEAU, 2004a): indo em direção à significação e ao sentido ou<br />

aparecendo como gozo enigmático.<br />

16 Ainda que Laurent (1993) sustente a tese de três possibilidades: o enigma e o sentido, o enigma e a<br />

significação e o enigma e o gozo, entendemos que sentido e significação encontram-se imersos no mesmo<br />

universo teórico-clínico de supremacia do simbólico que organizava o pensamento de Lacan no início de<br />

seu ensino. Em função disso, adotamos o critério de duas possibilidades.<br />

41


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

No primeiro caso, as principais contribuições lacanianas encontram-se desde o texto<br />

“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998) até O<br />

Seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-56/1992). Enquanto significação, o<br />

enigma aparece sobretudo referido aos estudos freudianos do Presidente Schreber.<br />

Como vimos, o desligamento libidinal do mundo é um processo silencioso que, em<br />

Schreber, é lido nos seguintes termos:<br />

“O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia<br />

libidinal que até então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se indiferente e<br />

irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como<br />

‘miraculado, apressadamente improvisado’ ” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 93).<br />

Freud acrescenta que será pela via da formação delirante que o paranóico ensaiará uma<br />

tentativa de restabelecimento, um processo de construção. Há, já em Freud, a noção de<br />

uma solução positivada na psicose. Esta experiência de destacamento em silêncio, Freud<br />

coloca na série de fenômenos elementares: confusão, perplexidade, perda do<br />

pensamento, e outros. É lá que se situa, para o paranóico, a experiência de um enigma,<br />

já que, para ele, o mundo inteiro torna-se um mundo de coisas obscuras, agenciadas de<br />

uma forma que se perdeu, que vai precisar reconstruir para que elas designem enfim<br />

alguma coisa (LAURENT, 1993).<br />

Sabemos que, para Freud (1912[1911]/1976 e 1924/1976), a experiência da perda da<br />

realidade e a da reconstrução de um substituto para ela são indissociáveis. Considera<br />

ambas as experiências compreendidas no que ele chama a distribuição da libido, que<br />

descreve inteiramente como sendo um fenômeno de sentido. Para Lacan, o sentido é<br />

efeito da operação da linguagem. A Lei primordial, que ao reger a aliança e o<br />

parentesco pela interdição do incesto superpõe o reino da cultura ao reino da natureza,<br />

“faz-se conhecer suficientemente como idêntica a uma ordem de linguagem” (LACAN,<br />

1953/1998, p. 279). A noção de função simbólica, introduzida no texto “Função e<br />

campo...”, é o suporte da estrutura da linguagem. E, por sua vez, “é no nome do pai que<br />

se deve reconhecer o suporte da função simbólica” (LACAN, 1953/1998, p. 279). Há,<br />

portanto, nesta articulação uma referência central ao nome do pai.<br />

Nesse mesmo texto, Lacan reconhece na loucura, “de um lado, a liberdade negativa de<br />

uma fala que renunciou a se fazer reconhecer [...] e, de outro, a formação singular de<br />

um delírio que [...] objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética” (LACAN,<br />

1953/1998, p. 281). Ele avança sobre o que seria essa linguagem sem dialética ao tratar<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

dos fenômenos de código e dos fenômenos de linguagem no texto “De uma questão<br />

preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Ali Schreber ensina a Lacan de que é composto<br />

o significante novo que vem ao mundo para reconstruí-lo. Ao tratar dos fenômenos de<br />

código, a saber, as vozes que proferem sobre a língua de fundo e que Schreber atribui<br />

aos raios, Lacan faz, então, uma correção.<br />

“...estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados de intuitivos, pelo fato<br />

de o efeito de significação antecipar-se, neles, ao desenvolvimento desta. Trata-se, na<br />

verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau:<br />

significação da significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se<br />

apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (LACAN, 1957-58/1998, p. 544-<br />

545).<br />

A experiência enigmática encontra-se situada no nível de uma experiência de efeitos de<br />

significação, enquanto converte uma negatividade em positividade. Acompanhemos: na<br />

ausência de uma significação, surge o vazio enigmático, ao qual o psicótico responde<br />

com a certeza delirante, significação da significação. Trata-se de um efeito significante<br />

na medida em que é regido por suas leis, por operar uma substituição à ausência da<br />

significação.<br />

SIGNIFICAÇÃO DA SIGNIFICAÇÃO<br />

. VAZIO ENIGMÁTICO .<br />

SIGNIFICAÇÃO<br />

Primeiro elisão e vazio, depois a certeza que curto-circuita toda avaliação de convicção<br />

do sujeito.<br />

“Ela [a certeza] não exclui o sentimento de perplexidade, longe disto, posto que a<br />

significação da significação não designa nada mais que uma significação presente mas<br />

indeterminada, o que é a definição mesma do enigma que os sujeitos psicóticos encontram<br />

e... carregam. [...] o que nós poderíamos traduzir assim: menos isso significa e mais isso<br />

significa” (SOLER, 1993, p. 55).<br />

Ao mesmo tempo em que diz respeito a uma certeza de significação (no segundo grau),<br />

revela uma experiência de não sentido (no primeiro grau).<br />

O delírio se apresentará como ensaio de deciframento, como esforço de réplica que o<br />

sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-58/1998), ele não<br />

é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui exatamente a mesma estrutura<br />

dos fenômenos elementares, que, em contrapartida, já revelariam a estrutura do delírio.<br />

No que tange à segunda possibilidade, que articula o enigma ao gozo, localizamos suas<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

considerações sobretudo no Seminário XXIII: Joyce, le sinthome. Ao retomar a noção<br />

de enigma neste seminário, Lacan (1975-76/2005, p. 67) assim o define: “um enigma é<br />

uma enunciação tal que dela não se encontra o enunciado”. Se o enigma tende à<br />

significação num primeiro tempo, nesse ponto ele se articula a um gozo excedente ao<br />

sentido. Lacan o escreve como Ee. É uma arte que ele chama de entre as linhas, fazendo<br />

alusão à corda do nó borromeu. Essa arte, artifício da escrita, incide sobre o impossível,<br />

que Lacan trata como o Outro do Outro real, porquanto ele é um fazer que nos escapa e<br />

que transborda o gozo que nós possamos ter dele. É o “gozo de Deus” enquanto alguma<br />

coisa da qual não podemos gozar.<br />

Já em Freud atestamos a experiência enigmática do gozo do Outro sobre o ser<br />

apassivado de Schreber, pela via do suporte que ele lhe confere. E, dos estudos sobre a<br />

psicose, Lacan decantará as modalidades de incidência desse gozo na esquizofrenia e na<br />

paranóia. Partindo da polaridade sujeito do gozo e sujeito do significante, Lacan<br />

(1966/2003), ao escrever a introdução à versão francesa do livro de Schreber, define a<br />

paranóia identificando nela o gozo no lugar do Outro como tal. Já o gozo na<br />

esquizofrenia, Lacan o abordará somente alguns anos mais tarde, em “O aturdido”<br />

(1972/2003). Dialogando e retificando O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (1972), trata<br />

do gozo do esquizofrênico com o órgão em contraposição ao corpo sem órgãos com que<br />

esses pensadores acreditaram encontrar mais liberdade em relação ao significante. “O<br />

que para seu corpo cria um órgão [...] é justamente por isso que ele [esquizofrênico]<br />

fica reduzido a descobrir que seu corpo não é sem outros órgãos, e que a função de<br />

cada um deles lhe cria problemas” (LACAN, 1972/2003, p. 475).<br />

Lacan, então, redefine a noção de enigma, referindo-se de outra forma ao sentido. Ele<br />

passa a fazer uma parceria diferente da significante-significado nesse período,<br />

substituindo-a pelo par signo-sentido. Isso aparece em “Introdução à edição alemã dos<br />

Escritos” (LACAN, 1973/2003), quando ele localiza o significante como objeto da<br />

lingüística, e não da psicanálise. Como se, seguindo-a, abstraíssemos o par significante-<br />

significado para pensar os efeitos de significação, perdendo de vista a produção de gozo<br />

na linguagem. É por conta da recuperação dessa dimensão do gozo, para além do<br />

significante que, na década de 70, Lacan opera a substituição desses pares. “Lacan<br />

então restitui como primeiro uso do signo o gozo sexual e, como primeiro uso do<br />

significante, o efeito de significado” (MILLER, 2005, p. 333).<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Falar é gozar, o significante está a serviço do que faz signo para o sujeito. Agora é de<br />

não-sentido que se trata, ou melhor, de j’ouis-sens, gozar enquanto escutar sentido. É<br />

mais uma versão do gozo no nó borromeano, além do sexual e do gozo do sentido. Aqui<br />

“encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo corretamente graças<br />

a um artifício” (LACAN, 1975-76/2005, p. 73), na medida em que a clínica passa a se<br />

fazer de cortes e religamentos. Com isso, muda o estatuto do sentido, pois ele porta uma<br />

dimensão de gozo inapreensível. “O sentido do sentido, em minha prática, se capta<br />

(Begriff) por escapar” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Por conta desse escape que<br />

funciona como gozo, Lacan pôde dizer, então, que o cúmulo do sentido seria o enigma,<br />

o que escapa à significação.<br />

Naveau (2004a) destaca exatamente esse não-sentido no enigma de Joyce trabalhado<br />

por Lacan no Seminário XXIII. Stephen Dedalus assim o apresenta no texto:<br />

The cock crew<br />

The sky was blue<br />

The bells in heaven<br />

Were striking eleven<br />

T’is time for this poor soul<br />

To go to heaven 17<br />

Ainda que seja clara a referência a um enterro, é surpreendente a resposta do enigma:<br />

“The fox burrying/His grandmother/under the bush” ou é a raposa enterrando sua avó<br />

debaixo da moita. A entrada da raposa aponta o non-sense. Não é o sentido que conta<br />

aqui, mas a enunciação. “O que surpreende, é o que é dito, mas em relação a quem diz<br />

[...] O acento colocado, não sobre o enunciado, mas sobre a enunciação” (NAVEAU,<br />

2004a, p. 28-29). A inversão operada por Lacan consiste em colocar o acento não mais<br />

sobre o sentido, mas sobre a causa. Assim, o enigma a ser decifrado decorre da própria<br />

relação de Joyce com a linguagem, estabelecida em termos dessa tensão entre enunciado<br />

e enunciação (MANDIL, 2003, p. 183).<br />

Podemos nos perguntar se, ao reapresentar aqui a noção de enigma, articulado ao gozo,<br />

Lacan não responde a si mesmo no texto “Função e campo...” quando estabelecia<br />

símbolo e linguagem como limites do campo psicanalítico. Quando na Páscoa de 60 o<br />

17 “O galo gritou/O céu estava azul/Os sinos no céu/Badalavam onze/É tempo para essa pobre alma/Ir<br />

para o céu”.<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

objeto a é apresentado formalmente no texto “Observação sobre o relatório de Daniel<br />

Lagache” (LACAN, 1960/1998), uma reinterpretação da produção lacaniana é então<br />

exigida numa leitura a posteriori. Seus desdobramentos são recolhidos especialmente<br />

nos anos imediatamente posteriores, como nos seminários sobre a angústia e sobre os<br />

quatro conceitos fundamentais da psicanálise, datando o período de novas e férteis<br />

questões, tais que: qual a relação entre significante e gozo, já que não se trata mais de<br />

uma exclusão; como o gozo condiciona o significante (e aqui uma reversão da<br />

causalidade entre os termos já se encontra esboçada); que tratamento conferir ao que<br />

escapa ao simbólico enquanto estrutura da linguagem; como o sentido produz gozo se a<br />

palavra mata a coisa? São questões que surgem paralelamente ao rompimento de Lacan<br />

com sua escola, fundando também em seu ensino um novo período, como veremos.<br />

A clínica passa a ser orientada pelo tratamento desse “resíduo irredutível” (LACAN,<br />

1966/2003, p. 222) que queda da divisão que estrutura o sujeito. A ele, a noção de letra<br />

enquanto auto-referente, enquanto escritura que funciona como referente fundamental,<br />

idêntica a si mesma, se acrescentará mais tarde. O sintoma pode então ser concebido no<br />

registro da escritura como a forma com a qual cada um goza do inconsciente na medida<br />

em que o inconsciente o determina, seja na neurose, seja na psicose. Nesse contexto, o<br />

enigma e uma possível resposta delirante (significação da significação) a ele ganham<br />

nova consistência.<br />

A introdução da letra, enquanto o que abole a referência ao símbolo, é o que Lacan<br />

destaca de sua releitura ao caso de Schreber em 1966. A experiência enigmática central<br />

de Schreber seria a de constatar que todo não-sentido se anula. É o não-sentido que<br />

pode vir a se abolir na experiência de seu delírio. Construção que deve mais à escritura<br />

e à letra que à fala e à linguagem e que se esforça em ser para si mesma sua própria<br />

referência.<br />

“O trabalho delirante se conceberia assim: construir a letra com a ajuda da letra até que ela<br />

possa abolir o símbolo, e assim realmente elevá-lo a uma potência segunda. É isso que<br />

tornará sua coexistência compatível com a ausência de suporte, não de um discurso<br />

estabelecido, mas de nenhum Nome-do-Pai estabelecido” (LAURENT, 1993, p. 50).<br />

1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan<br />

A. O ato<br />

Lacan, ao trabalhar o ato como solução psicótica (LACAN, 1932/1987), o associa ao<br />

mecanismo de autopunição, característico da paranóia que estuda. Apesar de ser<br />

46


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

considerada a última grande obra nosológica da psiquiatria de nossos tempos<br />

(BERCHERIE, 1989), Lacan insiste que o caso estudado, Aimée, é apenas um protótipo<br />

que permite classificar outros quadros análogos em termos de fenômenos elementares,<br />

evolução e prognóstico. A paciente estudada, por motivação delirante, desfecha um<br />

golpe de faca contra uma famosa atriz parisiense que, defendendo-se, tem apenas dois<br />

tendões seccionados. A posição de Aimée em relação à certeza do ato permanece a<br />

mesma por vinte dias depois de presa, quando, então, cessa o delírio. Segundo Lacan<br />

(1932/1987, p. 251), essa reação acontece somente após Aimée ser abandonada e<br />

reprovada pelos seus e confundida com os delinqüentes com os quais esteve confinada,<br />

enfim, quando realiza ela mesma em si seu castigo. Com o ato, atinge a si própria<br />

paradoxalmente, sentindo alívio afetivo (choro) e a queda brusca do delírio.<br />

“Pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando<br />

ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se<br />

desvanece. A natureza da cura demonstra, quer nos parecer, a natureza da doença”<br />

(LACAN, 1932/1987, p. 254).<br />

Nesse período, Lacan não havia estabelecido as diferentes vertentes do ato – passagem<br />

ao ato, acting-out e ato analítico –, e ainda ingressava na psicanálise. Sabemos que, em<br />

Freud, essa distinção sequer é levantada. Para este, que trata apenas do acting-out na<br />

neurose, seu aparecimento é a marca da emergência do recalcado, manifestando-se,<br />

quando em análise, em relação à transferência e, mais especificamente, com a colocação<br />

em ato daquilo que o sujeito não recorda do que recalcou (FREUD, 1914c/1976, p.<br />

196).<br />

Lacan, independentemente de considerações diagnósticas, vai estruturando ao longo de<br />

seu ensino coordenadas lógicas que permitem diferenciar o acting-out da passagem ao<br />

ato. É possível escandir em três tempos o desenvolvimento ulterior proposto por Lacan<br />

para o tema: 1. no texto “A direção da cura e os princípios de seu poder” (1958/1998),<br />

cujo traço central é a análise do acting-out como relativo à intervenção do analista, a<br />

partir do caso paradigmático de Kris; 2. no seminário A angústia (1962-63/2004) em<br />

que, apoiado no caso freudiano da jovem homossexual, estabelece uma clínica<br />

diferencial entre acting-out e passagem ao ato, articulando-os com a angústia e o objeto;<br />

3. e, quando, relacionado ao ato analítico, a distinção entre os dois é definitivamente<br />

estabelecida.<br />

No seminário sobre a angústia, Lacan concebe a dimensão do agir, independentemente<br />

47


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

da estrutura clínica, em duas grandes vias, a do significante (ou do Outro), concernente<br />

ao acting-out, e a do objeto, referida à passagem ao ato. Esta última, a que interessa à<br />

nossa investigação diretamente, consistiria em separar a vida de sua tradução, de sua<br />

transposição no Outro, momento em que não se faz possível nenhuma mediação, mas<br />

que traz um caráter resolutivo. Apesar de haver uma causa posta em jogo, ela não pode<br />

ser interpretada pois não se inscreve no campo do Outro. Sua causa conjuga-se com o<br />

objeto, inassimilável pelo significante, concernente ao gozo e localizado no Outro em<br />

exterioridade. Diz respeito ao objeto a. O sujeito sai de cena no momento do ato.<br />

Na psicose, não se dá a extração do objeto a e, por conseguinte, a castração não opera<br />

seus efeitos de organização simbólica a partir do significante primordial – o significante<br />

do Nome-do-Pai –, nem traz a significação do falo – significante da ausência – como<br />

testemunha da inscrição da castração, a partir da qual se constituiria a tela da fantasia.<br />

A cena montada na fantasia não pode ser referida ao psicótico, posto que esta diz<br />

respeito, na neurose, justamente à tela que o sujeito constrói diante do horror do objeto<br />

que cai como o impossível de significar no complexo de castração. Tela que enquadra a<br />

realidade, desdobrando-se na relação simbólica com o significante; véu sobre o qual<br />

pinta-se a ausência. “A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente<br />

por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência” (LACAN, 1956-<br />

57/1995, p. 157).<br />

É o Nome do Pai que limita e esvazia o gozo do Outro, separando o gozo do corpo e<br />

fundando o sujeito capaz de desejar. O psicótico, que foraclui o Nome do Pai, terá<br />

sempre o Outro presentificado, invadindo suas relações. “Na psicose, como efeito da<br />

não inclusão da castração no Outro, tem-se o fato de ele falar, de estar aí do lado de<br />

fora, presentificando-se nas alucinações” (QUINET, 1997, p. 108).<br />

Sabemos que a castração implica no recorte de gozo que, localizado, separa o sujeito do<br />

campo do Outro. Por conta da não extração do objeto a na psicose, o gozo, não<br />

significantizado e contido, retorna como real em excesso. Assim, o psicótico permanece<br />

identificado à posição de gozo do Outro, oferecendo-se ele próprio como objeto no<br />

lugar da falta que não se inscreveu pela castração.<br />

Podemos supor que é desse objeto que – duplicado na relação imaginária com o outro e<br />

estando como que em excesso – o sujeito tenta se desvencilhar na passagem ao ato na<br />

psicose. “Realizam em ato, a título quase de suplência, o efeito capital do simbólico,<br />

48


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

isto é, seu efeito de negativização do ser vivente [...] A mutilação real emerge em<br />

proporção à falta de eficácia da castração” (SOLER, 1990, p. 19). Quando o objeto<br />

não é chamado a complementar a falta fálica, corolário imaginário da inscrição<br />

simbólica do Nome-do-Pai, quando é unicamente o duplo especular do sujeito, torna-se<br />

sinônimo de morte. Segundo Bechelany, como hipótese demonstrada em sua dissertação<br />

de mestrado,<br />

“A passagem ao ato na psicose pode ser vista como essa tentativa de realizar a castração<br />

simbólica, à qual ele [psicótico] não teve acesso, pela via do real. Trata-se de obter a<br />

extração desse objeto, desse ponto de gozo que invade e submete e, ao mesmo tempo, a<br />

separação radical do Outro. Extrair esse objeto, que é ele mesmo, do campo do Outro,<br />

representa para o psicótico a possibilidade de libertação do Outro, conjugado com uma<br />

certeza que só poderia ser arrancada do próprio ato em si” (BECHELANY, 1999, p. 17).<br />

Solução que longe de favorecer o laço social desfaz suas possibilidades, posto que auto<br />

ou heteromutilador, o ato redunda em agressividade, violência e, algumas vezes, em<br />

crime. Estratégia de estabilização, portanto, que não se deve encorajar na clínica com a<br />

psicose. Podemos, no máximo, aprender com o ato na psicose o que, de sua essência,<br />

pode nos auxiliar a pensar o campo das estabilizações. Há um excesso a ser subtraído na<br />

economia psíquica do psicótico. Esse excesso que não caiu sob a forma de objeto a,<br />

invade e exige a construção de uma barreira, sua extração real ou simbólica, ou ao<br />

menos sua localização. Fiquemos por enquanto com essas indicações.<br />

B. A metáfora delirante<br />

Antes de terminar a formulação da noção de objeto a, Lacan trabalha o delírio como<br />

solução psicótica enquanto metáfora delirante que funciona como suplência ao Nome-<br />

do-Pai foracluído. A idéia da metáfora delirante é correlativa à operação da metáfora<br />

paterna. A década de 50, período da formulação da metáfora paterna e da metáfora<br />

delirante, é caracterizada no ensino de Lacan pela primazia do simbólico, do poder do<br />

significante, sendo a estrutura da linguagem a base para sua formulação, ainda que já se<br />

evidencie o impossível de escrever como real em jogo em qualquer estrutura clínica.<br />

Para Lacan, quando de seu nascimento, a criança é confrontada com o desejo do Outro<br />

(materno) que significa suas experiências primárias. Ao grito da necessidade responde o<br />

desejo desse Outro nomeando, para o infans, sua demanda (LACAN, 1956-57/1995).<br />

Esse trabalho de simbolização primordial, que Freud (1920/1976) estabelece a partir do<br />

automatismo da repetição da brincadeira do fort-da, implica na presença-ausência<br />

49


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

materna que, aparecendo como Dom, permite à criança simbolizar, a partir de seu<br />

desejo, a falta. Esta aparece na significação fálica, representação da ausência,<br />

introduzida pela operação da metáfora paterna. Essa operação diz respeito à introdução<br />

de uma Lei interditora fundamental que impede ao filho ser reintegrado à completude<br />

com a mãe e à mãe fazer do filho seu falo. Sendo ser de linguagem, dividido, também a<br />

mãe é submetida a essa lei, que transmite inconscientemente para o filho sob a forma da<br />

interdição paterna. Assim o Nome-do-Pai elide o desejo da mãe, permitindo à criança<br />

nomear-se a partir do enigma que funda sobre seu ser. Trata-se, como se vê, de uma<br />

operação metafórica ao nível significante, “que coloca esse Nome em substituição ao<br />

lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe” (LACAN, 1957-<br />

58/1998, p. 563). O Nome-do-Pai reduplica-se no lugar do Outro na medida em que ele<br />

constitui também a lei do significante.<br />

Nome-do-Pai __ . _____Desejo da Mãe __ -> Nome-do-Pai A<br />

Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo<br />

Vimos que, quando ao apelo do Nome-do-Pai corresponde a carência do próprio<br />

significante recalcado no campo do Outro, ocorre a foraclusão. O significante do Nome-<br />

do-Pai é rejeitado simbolicamente e em seu lugar responde no Outro um simples furo<br />

que, pela carência do efeito metafórico de recobrimento da falta instalada pelo desejo<br />

materno, provoca um furo absoluto correspondente no lugar da significação fálica.<br />

Ora, é justamente aí que o objeto aparece de maneira diferenciada na psicose, exigindo<br />

trabalho pulsional. O sujeito advém, na psicose, no lugar do objeto para fazer sutura ao<br />

real, ele próprio, como forma de se sustentar na vida, de estruturar sua realidade. Na<br />

psicose, portanto, é o psicótico, com seu próprio corpo como aparato, que se localiza no<br />

lugar da abertura que seria obtida pela extração do objeto a. Nesse sentido, torna-se<br />

possível afirmar que “não existe uma possibilidade de estar fora da estrutura discursiva<br />

a não ser pela psicose” (PINTO, 1992, p. 314), ponto precípuo de sua segregação no<br />

laço social. O que não equivale a dizer que o psicótico está fora da linguagem, mas que<br />

se relaciona com ela de maneira particular pois ela lhe é exterior (GUERRA, 2000, p.<br />

239). A saída, nessa elaboração lacaniana de 1957-58, constituída a partir do caso<br />

paradigmático de Schreber, é a metáfora delirante, que se constrói numa tentativa de<br />

suplenciar a metáfora inoperante do Nome-do-Pai. Trabalho que, segundo MALEVAL<br />

50


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

(1996), baseando-se no ensino de Lacan desse período, pode ser pensado em quatro<br />

tempos.<br />

Lacan fala de um horror inicial de Schreber à idéia de ser mulher, o qual acaba<br />

aceitando quando esta se torna um compromisso razoável (LACAN, 1957-58/1998, p.<br />

570). Ao final assume o estatuto de uma decisão irreversível de uma assintótica –<br />

porque sempre apontada para o futuro – cópula com Deus para que uma nova<br />

humanidade fosse criada. As quatro lógicas que permitem essa elaboração seriam:<br />

1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante quando se dá o<br />

desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma<br />

autonomia do significante (automatismo mental, segundo Clérambault). A<br />

perplexidade advém justamente do fato de o sujeito não se sentir autor de seus<br />

próprios enunciados. A conseqüência dessa experiência de autonomia do<br />

significante no real é a deslocalização do gozo, provocando fenômenos diversos<br />

sobre o corpo do psicótico, sejam agradáveis ou penosos, voluptuosos ou<br />

agonizantes, ou mesmo hipocondríacos. No caso Schreber, vemos sua manifestação<br />

em sua primeira crise em 1893 ao apresentar um esgotamento nervoso, no qual<br />

surgem queixas hipocondríacas. Somente em 1894 surgirá uma significação<br />

enigmática em torno da idéia, aparecida em 1893, de que seria belo ser uma mulher<br />

no momento da cópula.<br />

2. A significação do gozo deslocalizado implica num trabalho de mobilização do<br />

significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os fenômenos que o<br />

invadem. Em Schreber, essa primeira explicação aparece na acusação que formula<br />

de um complô que estaria sendo tramado por seu médico, Dr. Flechsig. Essa<br />

explicação não apazigua Schreber, ao contrário, deixa-o à mercê de um Outro todo-<br />

poderoso. Daí a busca de uma nova explicação, encontrada no fato de que fora o<br />

próprio Deus que assumira o papel de cúmplice, e mesmo de instigador, na<br />

conspiração em que sua alma deveria ser assassinada e seu corpo usado como o de<br />

uma rameira. Aí surge um compromisso razoável, característica marcante dessa<br />

segunda fase. É o sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998)<br />

como renúncia fálica, marcando a reversão da posição de indignação de Schreber,<br />

que passa a aceitar a eviração porque servidora dos desígnios de Deus. E não, como<br />

articula Freud (1912[1911]/1976), tratar-se-ia do complexo paterno que transfere de<br />

51


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Flechsig para Deus a figura do pai de Schreber, com a qual ele se apaziguaria.<br />

3. Identificação do gozo do Outro assentado num significante, “mulher de Deus”, o<br />

gozo do Outro, a partir de então, se encontra identificado. Porém, a aceitação da<br />

feminilização progressiva de Schreber não implicou no desaparecimento do<br />

sentimento de que uma violência estava sendo-lhe infligida. A diferença é que<br />

agora, no delírio, os perseguidores se encontrariam identificados.<br />

4. Consentimento ao gozo do Outro, que implica no consentimento com a nova<br />

realidade construída a partir da certeza de que um saber fundamental foi adquirido.<br />

Em Schreber, esse saber aparece como advindo do Todo-Poderoso e é acompanhado<br />

de construções fantásticas e temas megalomaníacos. Maleval (1996) localiza essa<br />

última fase do delírio de Schreber em 1897 quando o drama do sujeito se torna o<br />

motivo futuro de uma redenção interessante do universo e sua feminilização culmina<br />

na eviração, seguida pela fecundação por meios divinos, com o objetivo de gerar<br />

novos homens, de uma raça superior, feitos do espírito de Schreber. A convicção<br />

desse tema fantástico aumenta na medida em que diminui o sentimento persecutório.<br />

Assim, podemos dizer que são condições de possibilidade da metáfora delirante:<br />

(a) a presença da atividade delirante;<br />

(b) o trabalho de localização delirante do gozo do Outro, através de uma operação<br />

de redução significante;<br />

(c) o consentimento com a experiência de gozo aí nomeada.<br />

Maleval (1996) também destaca que muito raramente se atinge esse nível de elaboração<br />

delirante em termos de metáfora, acontecendo, no mais das vezes, uma tentativa<br />

desordenada de construção delirante ou mesmo apenas uma defesa paranóide. Além<br />

disso, como nos lembra Zenoni (2000), a conclusão de uma metáfora delirante, como<br />

qualquer trabalho de elaboração simbólica, deixa um resto inassimilável que pode<br />

aparecer sob a forma de um gozo suplementar. Com isso, instala-se o risco de uma<br />

passagem ao ato ou de uma nova desestabilização. Dessa maneira, o cálculo clínico<br />

quanto ao delírio na direção de um tratamento deve considerar esse risco. Muitas vezes,<br />

também o delírio dificulta e faz obstáculo à construção de enlaçamentos sociais na<br />

psicose.<br />

Com tudo isso, podemos dizer, no tocante às estabilizações psicóticas, que a metáfora<br />

delirante nos evidencia a possibilidade de um trabalho de simbolização, de trabalho<br />

52


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

sobre o significante que, adquirindo valor de inscrição primária, funda uma referência<br />

em torno da qual o sujeito se localiza no discurso do Outro. Com a metáfora falamos de<br />

uma operação de linguagem, e não de uma extração real como no ato. O aspecto<br />

criacionista aqui aparece na invenção de uma nova significação onde um uso comum<br />

instalava antes o significante eleito para operar a metáfora sobre o ser do sujeito. Ainda<br />

assim, fica para este período do ensino lacaniano a interrogação acerca do estatuto que<br />

esse significante adquiriria de forma a poder operar como um referente. Avancemos<br />

com essa questão.<br />

C. A escrita enquanto obra<br />

É somente quando se dedica a estudar a função da escrita para Joyce que Lacan trará a<br />

perspectiva a partir da qual pode-se formular uma hipótese que traga novidade para<br />

nossa investigação sobre a estabilização psicótica e a criação. Assim, antes de<br />

discutirmos especialmente essa estudo lacaniano, partiremos da discussão, central em<br />

nossa pesquisa, acerca do que seria essa materialidade sobre a qual repousa a<br />

possibilidade de solução que aqui discutimos. Em seguida, destacaremos a posição de<br />

autores contemporâneos acerca da mesma para, no capítulo seguinte, determo-nos na<br />

elaboração conceitual com a qual Lacan avança teoricamente sobre os aportes clínicos<br />

aqui abordados, alcançando a mostração que a topologia borromeana nos permite<br />

realizar sobre o ponto da discussão das estabilizações que nos interessa.<br />

Quando os oficineiros que trabalham diretamente com os psicóticos se referem a uma<br />

“substância” de trabalho, a uma “materialidade” ou a uma “densidade simbólica<br />

diferenciada”, identificam, sem justificar teoricamente, que há um elemento importante,<br />

ainda que não identificado por eles, no ensaio de estabilização que suas oficinas<br />

oferecem aos seus participantes. Que elemento, porém, é este? De qual densidade se<br />

trata no trabalho do psicótico quando ele faz sua criação sobre um material concreto? O<br />

que, dessa criação, se extrai como essencial a uma possível estabilização?<br />

Em Freud, a partir do texto do “Inconsciente” (1915a/1976), podemos afirmar que o<br />

objeto se esboça enquanto materialidade simbólica, representação densa, porque<br />

investida catexicamente, quantitativamente de libido, a partir da representação da coisa<br />

hipercatexizada pela representação da palavra. Assim, o objeto, ao mesmo tempo<br />

interior ao aparelho psíquico, lhe é exterior, como evidencia a estrutura topológica da<br />

53


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Banda de Moebius, causando o estabelecimento do laço do sujeito com o mundo ao<br />

provocar sua inscrição na linguagem através dos deslizamentos na cadeia significante.<br />

Assim, ele se inscreve como desejante pela via da palavra.<br />

Ora, essa operação não se faz na psicose. Daí Freud falar que os psicóticos se contentam<br />

com palavras em vez de coisas, como vimos. É pela representação da palavra que ele<br />

tenta aceder a uma representação do objeto já que a representação da coisa não está<br />

inscrita no inconsciente. Essa inscrição inconsciente ausente nos remete à idéia<br />

lacaniana de um objeto-resto que não queda da linguagem. Com a ressalva de que esse<br />

objeto não equivale à representação do objeto freudiano acima descrita, mas antes ao<br />

objeto desde sempre perdido dessa teoria. Se não queda o objeto, se falta a falta, o gozo<br />

se impõe como experiência incontornável e invasiva para o psicótico. Não é dessa<br />

materialidade que nos parece tratar os oficineiros.<br />

Como vimos na introdução desta tese, Lacan irá inicialmente atribuir a idéia de matéria<br />

ao significante e a de substância ao gozo, a partir de uma referência cartesiana. Ora,<br />

vimos na fala dos entrevistados que eles usam indistintamente as duas expressões, sem<br />

levantar sequer uma distinção entre elas. E também sem associar os efeitos que<br />

recolhem a uma ou outra via ou às duas. Por vezes, fica mesmo difícil localizar se eles<br />

falam em materialidade referente à matéria bruta de suas oficinas ou referente a algo<br />

além que faria operar ou favorecer a estabilização no processo criativo que os usuários<br />

realizam ou no produto decorrente dessa criação.<br />

Tornou-se consenso entre os psicanalistas que atuam na interface com a Saúde Mental<br />

ler a criação artesanal como possibilidade de extração real do objeto do campo do Outro<br />

– não realizada pela castração –, com a conseqüente localização do gozo no produto ali<br />

extraído. Assim, o psicótico localizaria o gozo fora do corpo, no caso da esquizofrenia,<br />

ou fora do campo do Outro, no caso da paranóia. Nos dois casos, teríamos uma extração<br />

e um produto que se endereçariam ao outro, favorecendo, pois, o laço social.<br />

Pensando a questão a partir da proposta de Lacan na década de 70, podemos dizer, de<br />

outra maneira, que a noção de densidade para a psicanálise ganha sentido entre o real e<br />

o simbólico, ou melhor dizendo, naquilo que o simbólico tem de real, ponto limite de<br />

inscrição da pulsão. Se a década de 50 trouxe a primazia do simbólico a partir da<br />

articulação significante da metáfora delirante enquanto solução na psicose, já deixa<br />

entrever um excesso incontido como real, que Lacan desenvolverá na década de 60<br />

54


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

enquanto objeto a. Esse desenvolvimento será essencial para o estabelecimento da idéia<br />

de um gozo suplementar e da noção de letra.<br />

Comecemos pelo objeto a. Vemos que o fato de a cadeia significante ser o que dá<br />

consistência à existência do sujeito, não implica em que essa consistência seja concreta.<br />

Ao contrário, ela é lógica e sustentada no campo do Outro pelo objeto a. “Situar a<br />

consistência lógica no campo do Outro é o fundamento de todo discurso, o princípio<br />

mesmo do laço social” (MILLER, 1996d, p. 197). Sendo lógica, essa consistência se<br />

extrai do objeto a, que toma consistência quando se fala à medida que se o aniquila.<br />

Portanto, é também um resto, no sentido de resto por dizer. É por isso que<br />

“o objeto a como semblante tem seu lugar entre o simbólico e o real. É uma consistência<br />

lógica que faz semblante de ser, e é o que só é encontrado quando do simbólico se vai em<br />

direção ao real. O objeto a é uma elaboração simbólica do real que, na fantasia, toma o<br />

lugar do real, mas ela é apenas um véu. Sua função específica é complementar a referência<br />

negativa do sujeito. O objeto a, como consistência lógica, está apto a encarnar o que falta<br />

ao sujeito. É o semblante de ser que a falta-a-ser subjetiva convoca. É por isso que o objeto<br />

a como consistência lógica é próprio para dar seu lugar ao gozo interdito, ao objeto<br />

perdido” (MILLER, 1996d, p. 196).<br />

Assim, a extração do objeto a é apenas um outro nome para a castração. Na psicose, a<br />

não incidência da castração seria a responsável pela consistência do objeto que se<br />

manifestaria, por exemplo, nos olhares que se alucinam ou na multiplicação de vozes<br />

que se escutam. O Outro na psicose sabe, tem existência real, e, por isso, persegue, ama,<br />

modifica o corpo do psicótico, altera sua vontade, impõe-lhe pensamentos (GUERRA,<br />

2000, p. 241).<br />

Se o neurótico trabalha a partir das palavras, extraindo um gozo a mais na produção<br />

analítica sob a consistente forma lógica do objeto a, que queda excedente ao final de<br />

uma análise, poderíamos supor, com o aporte teórico da década de 60, que na psicose<br />

seria preciso extrair do campo do Outro esse gozo excessivo que invade o psicótico.<br />

Nesse sentido, a solução, enquanto trabalho de estabilização na psicose, poderia se valer<br />

de diferentes expedientes, isolados ou conjugados, tais que ato, obra, metáfora delirante,<br />

identificação, transferência.<br />

No que toca a essa dimensão teórica, inúmeras questões surgiram daí a partir do final do<br />

ensino lacaniano, problematizando para nossa pesquisa pontos fundamentais. Lacan não<br />

está mais a falar em representação de um significante para outro significante, tendo o<br />

sujeito como resultado, como na metáfora paterna neurótica da década de 50, na qual<br />

vemos a primazia do simbólico. Ao mesmo tempo, a disjunção entre significante e<br />

55


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

gozo, sujeito e objeto, começa a ganhar nova configuração. E, além disso, elementos<br />

novos, como lalíngua, falasser e letra, surgem no contexto da “lingüística lacaniana”<br />

revirando-a do avesso.<br />

A maioria dos autores contemporâneos (LAURENT (1995b), MICHAUD (1999),<br />

QUINET (1997), RABINOVITCH (2001), SOUZA (1999)), seguindo a trilha aberta<br />

por Freud, localiza no trabalho sobre o delírio uma das soluções encontrada pelos<br />

psicóticos para trabalhar essa delimitação do gozo do Outro. Todos destacam a<br />

diferença, já explicitada, entre delírio e metáfora delirante e, em sua totalidade,<br />

perguntam pelo lugar do analista na condução de um tratamento com psicóticos, sendo<br />

ora mais otimistas ora menos, quanto ao alcance dos resultados que se pode obter nessa<br />

clínica possível. Localizam no ensino de Lacan da década de 50 – referido ao Nome-do-<br />

Pai e à norma fálica – os indicadores estruturais cujas ausências denunciariam a<br />

estrutura clínica da psicose.<br />

Em nossa investigação, entretanto, interessou-nos especialmente investigar a dimensão<br />

teórico-clínica responsável pela análise dos efeitos que a criação artística ou artesanal<br />

pode produzir em casos de psicose, para além somente da discussão em torno da<br />

metáfora delirante e do lugar do analista no tratamento possível da psicose. Nesses<br />

termos, alguns autores têm se detido nessa via de elaboração inaugurada por Lacan,<br />

apontando precedentes para nossa investigação.<br />

Soler (1990) situa em dois registros diferentes as “sublimações criadoras” na psicose.<br />

Num primeiro grupo, tomando como paradigma Rousseau (SOLER, 1998), ela situa o<br />

trabalho de psicóticos de construírem um novo simbólico, o que cumpriria uma função<br />

semelhante àquela do delírio para Schreber. E, num segundo grupo, ela apresenta uma<br />

posição mais radical de soluções que não recorrem ao simbólico, destacando que elas<br />

dizem respeito a uma operação real sobre o real do gozo não articulado pelas redes da<br />

linguagem, aproximando-as do ato como solução ou trabalho na psicose.<br />

“Assim sucede com a obra – pictórica, por exemplo – que não se serve do verbo, senão que<br />

dá a luz, ex nihilo, a um objeto novo, sem precedentes – por isso a obra está sempre fechada<br />

– na qual se deposita um gozo que deste modo se transforma até tornar-se “estético”, como<br />

se diz, enquanto o objeto produzido se impõe como real” (SOLER, 1990, p. 18).<br />

Sobre esse segundo grupo, o paradigma para ela também é a escrita joyceana. A seu ver,<br />

Joyce não retifica o Outro do sentido como Rousseau, mas antes o assassina. A<br />

foraclusão do sentido é correlativa à passagem do texto, que deveria produzir sentido,<br />

56


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

mas que aqui aparece como real. Assim, a foraclusão pode ser pensada como uma<br />

letrificação do significante mediante a qual este se transforma em átomos de gozo real.<br />

Aqui fica clara a não equivalência entre metáfora delirante e criação artística. Diferença<br />

sutil que demarca um referencial de leitura sustentado pelas proposições de Lacan na<br />

década de 70. Antonin Artaud, Van Gogh, Bispo ou mesmo Camille Claudel realizaram<br />

de diferentes formas a tentativa de se escrever através de sua obra. Mas vemos, nesses<br />

casos, outras conseqüências, que não o sinthoma 18 , se apresentarem.<br />

Zenoni (2000), apoiado na segunda clínica de Lacan, entende que, para todo ser falante,<br />

a linguagem introduz uma outra satisfação, um gozo para além do princípio do prazer e<br />

que é da ordem da pulsão. Assim, introduz uma nova clínica no sentido de que são os<br />

fenômenos da pulsão, e menos os da linguagem, ou seja, as modalidades de gozo e os<br />

diferentes estatutos da pulsão, que determinam as saídas de cada sujeito. Estaríamos<br />

diante de modalidades de retorno do gozo também no real do corpo e não somente, ou<br />

principalmente, na linguagem. Quanto às soluções encontradas pelo psicótico, elas não<br />

se resumiriam tão-somente a conseqüências negativas da falta do Nome-do-Pai, mas<br />

seriam soluções positivas, invenções por parte do sujeito para lidar com esses retornos.<br />

Nessa vertente, o significante tornado real encontra-se isolado, não reenvia a outro<br />

significante, implicando um trabalho em outro plano da linguagem, qual seja, lalíngua.<br />

Acompanhar o “autotratamento” do psicótico, seja para prolongá-lo, seja para desviá-lo,<br />

convocaria o saber psicanalítico e o reformularia. Ele recorre à leitura lacaniana de<br />

Joyce para justificar sua hipótese. “A idéia de Lacan é a de que a escrita de Joyce pode<br />

dar-nos a idéia de um tratamento possível da linguagem [...] a escrita de Joyce pode<br />

fornecer um modelo para práticas menos elaboradas que podem ser encorajadas com o<br />

sujeito psicótico” (ZENONI, 2000, p. 54).<br />

E ilustra essas possibilidades com casos atendidos em serviços de Saúde Mental. Tal é o<br />

exemplo de uma jovem melancólica que se mutilava em tentativas de suicídio com<br />

pedaços de vidro encontrados no lixo. A partir da idéia de colar esses pedaços de vidro<br />

do lixo numa superfície e fazer disso uma espécie de espelho, criação que tomava uma<br />

dimensão estética estabelecendo entre ela e o lixo uma certa distância, as passagens ao<br />

ato cessaram. São essas intervenções, chamadas por Zenoni de construções – em lugar<br />

de interpretações –, que conectam, a seu ver, o real e o simbólico.<br />

18 Cf. a discussão sobre estabilização, suplência e sinthoma na seção 3.2.3 desta tese.<br />

57


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Essa lógica reaparece em Alvarenga (1999), que também recorre a Joyce. Segundo ela,<br />

trata-se de caso paradigmático de psicose não desencadeada graças ao trabalho criativo<br />

que, nele, toma a forma de sintoma, daquilo que amarra os três registros, vindo no lugar<br />

do objeto fixador de gozo. Mas um sintoma que prima pela falta de sentido. Ela destaca<br />

o endereçamento do material produzido como crucial à estabilização, seja para onde for<br />

que ele se dirija. Para ela, é somente sobre um fundo de linguagem, onde a fala está<br />

potencialmente presente, que “mesmo que o sujeito nada tenha a dizer sobre o objeto<br />

produzido, o fato de que ele é endereçado a alguém coloca-o em pauta numa relação<br />

onde o que é criado pode ser lido” (ALVARENGA, 1999, p. 120). Interessante<br />

destacar, na posição de Alvarenga, a função do endereçamento na solução pela via da<br />

criação artística que não prescindiria da linguagem.<br />

Birman (1989), por seu turno, concebendo os objetos como objetos da pulsão, e não<br />

objetos aprisionados pelo discurso racional sugere que, por isso mesmo, ao entrarem no<br />

circuito pulsional, eles possibilitariam, através da metáfora delirante ou da arte,<br />

estabilização. Na medida em que é reconhecido pelo Outro, ele entra no circuito<br />

pulsional com os outros objetos, permitindo a estabilização na psicose.<br />

Finalmente, Quinet (1997), ao discutir o caso de Arthur Bispo do Rosário, propõe a arte<br />

como saída pela via do sintoma, implicando numa tentativa de barrar a Coisa. “O<br />

sintoma é uma modalidade criacionista de o sujeito lidar com a Coisa...” (QUINET,<br />

1997, p. 222). Para ele, tanto Bispo quanto Schreber são levados a realizar o impossível<br />

do imperativo de gozo que é, ao mesmo tempo, um imperativo de significantizar o real,<br />

coisificando a linguagem e literalizando as coisas. Em Bispo, haveria um trabalho entre<br />

real e simbólico ao modo hegeliano: ao nomear o objeto, ele aprisiona a Coisa,<br />

significantiza o real alinhavando-o ao simbólico. Esse sintoma, entretanto, não é<br />

suficiente para provocar o laço social já que é para Deus, e não para a civilização, que<br />

Bispo endereça seu trabalho.<br />

Especialmente nessa discussão, Quinet (1997, p. 220-238) pensa a arte na psicose no<br />

sentido da criação, operando pelos registros real e simbólico. Afirma haver dois tempos<br />

na constituição do delírio e da arte em Bispo. Um primeiro momento, no qual o delírio é<br />

desencadeado a partir de uma alucinação; e um segundo em que ele emerge como o<br />

criador do mundo com sua obra. Localiza também a obra de arte na psicose como<br />

estando fora do âmbito do Nome-do-Pai, servindo de sintoma na tentativa de barrar o<br />

58


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

gozo do Outro. Diz a respeito de Bispo que, apoiado em seu delírio, com sua obra ele<br />

“utiliza o simbólico a partir de seu sintoma para domesticar o gozo da Coisa e tentar<br />

cavar aí um furo onde possa vir alojar seu ser” (QUINET, 1997, p. 229), já que sua<br />

obra implicaria no tratamento da Coisa não esvaziada de gozo pela castração. Não seria,<br />

então, um trabalho muito diferente do de Joyce, já que Bispo buscava o sentido<br />

enquanto Joyce operava pelo real, alinhavando a letra sem sentido na costura de um<br />

nome próprio pela obra em si mesma? Pois se Joyce se nomeava, se dizia pela obra, ao<br />

contrário Bispo queria que sua obra pudesse dizer algo ao Outro. E se o trabalho<br />

artístico segue em par com o delírio, não seria a posição do sujeito como objeto de gozo<br />

do Outro que se afirmaria, opondo-se e não facilitando o trabalho de estabilização? Se é<br />

possível com a criação artística realizar uma escritura do gozo, fazer obra a partir de<br />

outros suportes traria quais efeitos subjetivos? Prescindiriam eles do suporte conferido<br />

pela escrita, via letra? Lacan nos fala, quanto à letra, em escrita e em suporte para o<br />

pensamento, para o significante; ponto que tocado, desloca, e cria uma nova relação.<br />

Não seria aí que se revelaria o ineditismo de algumas criações psicóticas<br />

estabilizadoras?<br />

Como se vê, parece-nos haver uma posição comum entre os autores mais<br />

contemporâneos em situar os efeitos da criação artística na dobradiça real-simbólico, na<br />

perspectiva pulsional de construção, de escrita de uma nova solução, gerando efeitos<br />

sobre a posição de gozo do psicótico. E podemos detectar também a presença do<br />

endereçamento do trabalho, seja à comunidade literária, seja a Deus, seja à sociedade,<br />

trazendo conseqüências concretas diferentes conforme o campo para onde se dirija a<br />

criação.<br />

Qual a articulação no texto lacaniano que permitiu esses desdobramentos? Ao final de<br />

sua obra, Lacan toma o caso de Joyce em estudo, afirmando que seu trabalho sobre o<br />

real do gozo não implica numa “apropriação simbólica” ou numa “construção<br />

significante” que faz borda ao impossível de dizer, como sugere a metáfora delirante.<br />

Sua escrita estaria mais próxima do ponto limite entre real e simbólico, mais próxima da<br />

noção de letra que da de significante. Na falta da queda do impossível de apreender na<br />

forma de objeto a, Joyce cria, ele próprio, um campo de ausência – como na neurose o<br />

real instalaria. “É porquanto o sinthoma faz um falso-furo com o simbólico que há uma<br />

práxis qualquer” (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). E essa práxis implica num trabalho<br />

59


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

de transformação subjetiva pela via da escrita.<br />

Esta é a novidade. Lacan não fala de complemento ao que não operou, mas de<br />

suplemento ao que, para todos, falha. Esse suplemento pode fazer suplência pelo falso<br />

furo que, enlaçando esses dois círculos (simbólico e sinthoma, aqui entendido como<br />

real), não é furo nem de um, nem de outro. Somente se atravessado por uma reta infinita<br />

ou terceiro círculo – campo do Imaginário, do qual o Falo é o organizador –, ele está<br />

verificado, ele é real. Entendendo-se que o real não é exatamente um terceiro círculo,<br />

mas o resultado de uma maneira específica de enlaçá-los, de tal forma que partindo um,<br />

todos se desentrelaçam.<br />

O real é sempre um pedaço, um caroço em torno do qual o pensamento borda, mas ele,<br />

como tal, não se liga a nada, é incorpóreo. A consistência, Lacan a localiza no corpo, a<br />

partir da incidência do objeto a e do traçado que, sobre o gozo, ele realiza. E o que faz<br />

laço com a consistência do corpo é o inconsciente. Nós não podemos atingir senão<br />

pedaços do real. Se ele, porém, é atingido, um novo simbólico se forma, uma nova e<br />

inédita forma de relacionar-se com o real se realiza, como através do sinthoma da<br />

escrita em Joyce.<br />

Ora, é justamente daí que se extrai a riqueza dessa transmissão lacaniana: quanto ao<br />

sinthoma não há nada a fazer para analisá-lo, decodificá-lo. Ele cifra o gozo, e não, ao<br />

contrário, o nomeia e desvenda. Ele condensa pelo des-sentido. Faz ponto de amarração<br />

onde um erro do nó não sustenta a articulação borromeana dos três registros – como faz<br />

o Nome-do-Pai enquanto o sinthoma neurótico por excelência. Lacan chega mesmo a<br />

falar na função da arte ou do artesanato, como vimos, abrindo o precedente que nos<br />

instigou a esta pesquisa:<br />

“Todo o problema está aqui - como uma arte pode visar de maneira divinatória a<br />

substancializar o sinthoma na sua consistência, mas também na sua ex-sistência e em seu<br />

furo? Esse quarto termo [...] essencial ao nó borromeano, como alguém pôde visar com sua<br />

arte produzi-lo como tal, a ponto de aproximá-lo de tão perto quanto possível?” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 38).<br />

Sabemos que foi, sobretudo, com o estudo de Joyce que Lacan formalizou a idéia de<br />

uma nova forma de amarração dos três registros a partir da obra que, neste caso, ganha a<br />

forma de escrita literária. O que podemos extrair dessa análise para pensarmos o<br />

sinthoma e sua função na estabilização psicótica?<br />

É sobre a lógica fundada no nó borromeano que Lacan fala de sinthoma em Joyce que<br />

60


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

realiza, pela escrita, o nome próprio, sem o apoio ao Nome-do-Pai. “[Do Nome-do-Pai]<br />

se pode também prescindir. Pode-se também prescindir dele com a condição de dele se<br />

servir” (LACAN, 1975-76/2005, p. 136). Pelo menos é o que ele nos propõe pensar em<br />

sua discussão sobre Joyce. Lá, a hipótese da escrita como sinthoma surge e ganha<br />

evidência. Fazer enigma, desejar um nome que seja lembrado, ser artífice que sabe fazer<br />

sinthoma, fizeram de Joyce - a partir de um percurso particular no caminho encontrado<br />

para lidar com a demissão paterna - paradigma de uma modalidade de solução na<br />

psicose: a obra, pelo viés da escrita.<br />

Seja a partir do nó de trevo, seja a partir do nó borromeu, iremos ver, Lacan irá propor,<br />

em qualquer dos casos, que o sinthoma se faz enquanto um elemento suplementar. No<br />

caso de Joyce, inventado por ele para se haver com a demissão paterna. Se apenas<br />

Simbólico e Real se encontram atados (e entrelaçados), é preciso um novo movimento<br />

do sujeito para que amarre o Imaginário que se encontra solto. O sinthoma é o efeito<br />

desse movimento de escrita que se faz índice, cifra. Invenção suplementar sobre um<br />

lapso do nó. E essa amarração se faz pela escrita da letra que permite uma outra<br />

escritura do nó borromeu.<br />

“Que se esteja deitado ou de pé, o efeito de cadeia [nó] que se obtém pela escrita não se<br />

pensa facilmente [...] Considero que ter enunciado sob a forma de uma escrita o real em<br />

questão, tem o valor daquilo que se chama geralmente um traumatismo. [...] Digamos que é<br />

o forçamento de um novo tipo de idéia 19 ” (LACAN, 1975-76/2005, p. 131).<br />

Forçamento de um novo tipo de idéia que não floresce unicamente pelo fato daquilo que<br />

faz sentido (imaginário), mas que, antes, suporta o sentido e a ele dá sustentação, com<br />

um alcance simbólico. Trata-se, pois, de uma invenção, de uma nova forma de o sujeito<br />

suportar a realidade sem o recurso ao Nome-do-Pai. Que seja preciso a escrita para dela<br />

extrair o objeto a muda completamente o sentido da escrita, o sentido do que está em<br />

jogo. “A letra não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita enquanto outra<br />

com, precisamente, um pequeno a. [...] A escrita em questão vem de uma outra parte<br />

que não do significante” (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Ela ganha autonomia em<br />

Joyce. Ela é um fazer que dá suporte ao pensamento. É letra que codifica gozo.<br />

O ego é o que surge como o que corrige (“corretor”) esse ponto da relação faltante do<br />

que não se enoda borromeanamente àquilo que faz nó de Real e de Inconsciente, sendo<br />

o artifício da escrita o que restitui o nó borromeu. É o texto de Joyce que se escreve<br />

19 Aqui originalmente, nos textos estenografados, lia-se ‘escrita’, e não ‘novo tipo de idéia’.<br />

61


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

borromeanamente. A consistência desse suporte diz respeito à letra, inscrita pela “outra<br />

forma” de escrita joyceana do sinthoma. Parece-nos que é a esse fenômeno que Lacan<br />

se refere ao falar de arte ou artesanato. A partir de um quarto elemento, Joyce inventa<br />

um nome assentado sobre sua obra.<br />

A partir do comentário de Jacques Aubert sobre Joyce no Seminário XXIII, Lacan<br />

(1975-76/2005) pôde nomear aquilo em que Joyce confiou, mais que em seu Pai, para<br />

se sustentar: seus sintomas. As epifanias 20 – “essas breves frases tiradas do contexto que<br />

poderia dar-lhes significação, esses fragmentos de discursos nos quais o sem sentido<br />

reluz” (SOLER, 1990, p. 18) – traduziriam esse momento em que o gozo efetivamente<br />

se adensa, passando Joyce a confiar nele. As epifanias funcionam de modo autônomo no<br />

texto joyceano, isoladas de qualquer contexto ou, em termos lacanianos, como<br />

significantes puros, isolados de toda significação, donde provém seu caráter<br />

condensador e desprovido de qualquer sentido.<br />

Pela escrita, Joyce consegue metaforizar sua relação com o corpo. Lacan destaca essa<br />

dimensão no episódio de Finnegans Wake em que, apanhando de seus colegas, Joyce<br />

sente seu corpo soltar-se como uma casca. E disso ele não extrai gozo. O interessante<br />

mesmo não são as metáforas que ele emprega, mas que algo realmente cai, solta-se de<br />

seu corpo como uma casca. “É como alguém que coloca em parênteses, que expulsa, a<br />

má lembrança” (LACAN, 1975-76/2005, p. 150), ou seja, que faz sintoma numa<br />

dimensão que está para além do símbolo. Podemos dizer que, com a análise do caso de<br />

Joyce, Lacan passa “da obra como expressão de um sintoma à obra como sintoma sem<br />

expressão, ou melhor, da obra como símbolo de um sintoma à obra como sintoma sem<br />

símbolo” (MANDIL, 2003, p. 24).<br />

Nessa terceira possibilidade de estabilização, parece-nos que Lacan dá um passo largo<br />

ao incluir a letra e o que ela traz de irredutível, bem como ao evidenciar o vazio de<br />

significação que habita a própria linguagem, exigindo do enigma que dela nasce a<br />

20 O termo epifania, como nos explica Mandil (2003, p. 124-125), foi “retirado da tradição cristã; referese<br />

a uma manifestação do Verbo no campo da percepção, em geral, e do visível, em particular”. Em<br />

Joyce há uma aproximação entre as epifanias e as claritas (radiância; alma ou essência do objeto<br />

apreendido esteticamente), terceiro elemento da estética de inspiração tomista que, de certa forma, se<br />

opõe à dimensão da aparência do objeto, correlacionada à integritas (percepção da imagem estética como<br />

um todo) e à consonantia (manifestação da simetria e do ritmo na apreensão da obra). “Coletadas em<br />

cadernos, as epifanias joyceanas são pequenos fragmentos de texto, isolados de um contexto narrativo,<br />

ocorrendo invariavelmente na terceira pessoa e transmitidas em tom impessoal, estático, o que permitirá<br />

seu enxerto posterior ao longo das obras de Joyce” (Id., ibdem). Sobre as epifanias, cf. também Joyce<br />

avec Lacan (AUBERT, 1987, p. 87-95).<br />

62


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

interposição de uma invenção como resposta. É sob essa perspectiva que o campo das<br />

estabilizações pode se valer desses desenvolvimentos lacanianos. O que faz cifra opera<br />

sobre o gozo. No próximo capítulo, desenvolveremos os aportes psicanalíticos que<br />

permitem articular essas questões, mostrando pela topologia em que o real está<br />

implicado nessa construção.<br />

63


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

CAPÍTULO 2<br />

QUANDO A ESTRUTURA DA LINGUAGEM APONTA SEU<br />

MAIS-ALÉM<br />

64


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

2.1 Discussão dos Conceitos Preliminares à Compreensão da Revisão Lacaniana<br />

2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos<br />

No Seminário RSI, Lacan (1974-75) aponta a debilidade do humano ao tentar dar conta<br />

do real pela linguagem, com a conseqüente fundação do inconsciente. Ele se esforça, no<br />

período final de seu ensino, em reduzir ao mínimo matemizável suas formulações. E vai<br />

além. O uso da topologia borromeana evidenciará a intenção de tratar o real pelo real,<br />

mostrando, na transmissão e na clínica, o uso que podemos fazer desse irredutível.<br />

Dessa forma, denotará, de um lado, um desejo de redução que garanta uma transmissão<br />

possível da psicanálise e, de outro, um efeito recolhido por ele na clínica. Ao menos é o<br />

que verificamos no empenho com que sustenta seu ensino. Os vinte e sete 21 seminários<br />

que proferiu são a prova mais viva desse desejo. Esse empenho, entretanto, atende<br />

também à exigência de se aproximar de uma transmissão o mais integral possível da<br />

psicanálise com os matemas.<br />

Ele apresenta o termo pela primeira vez em seu seminário “Ou Pior...”, na aula de<br />

04/11/1971. Ao contrário do que se poderia supor, o termo matema não tem origem na<br />

matemática, mas lhe dá origem. Parece ter sido forjado a partir do termo estruturalista<br />

de Lévi-Strauss, mitema 22 , além de fazer referência à palavra grega máthema 23 , que<br />

significa conhecimento. Sua relação com o campo da matemática é deduzida por Lacan<br />

da loucura de Cantor 24 . Se essa loucura, em essência, não é motivada por perseguições<br />

objetivas, diz ele, está relacionada com a própria incompreensão matemática, isto é,<br />

com a resistência provocada por um saber considerado incompreensível<br />

(ROUDINESCO, 1988, p. 610). Ela se relaciona com a letra, a transmissão, a herança.<br />

Veicula, assim, a questão sobre como transmitir um saber que parece não poder ser<br />

21 Aqui incluo o Dissolution (1980) e não incluo os dois seminários que proferiu em sua residência sobre<br />

o Homem dos Lobos (1951-52) e o Homem dos Ratos (1952-53), respectivamente.<br />

22 Mitemas são as unidades estruturais de análise dos mitos nas quais Lévi-Strauss se apóia para<br />

empreendê-la. Cf. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. (Cap.<br />

XI - A estrutura dos mitos, p. 237-266)<br />

23 Máthema na raiz grega significa ciência, conhecimento, aprendizagem, donde, por conseqüência,<br />

mathematikos significar apreciador do conhecimento. “Em grego, mathetés é aprendiz, aprendente,<br />

pupilo, discípulo: o que aprende... Mathetría é a mesma coisa, só que no feminino... Mathetêia ou<br />

máthema é aquilo que se aprende... (De máthema vem matemática...)”. Consultado na Internet dia<br />

10/03/2007: .<br />

24 Georg Cantor (1845-1918) foi um matemático alemão de origem russa conhecido por ter criado a<br />

moderna Teoria dos Conjuntos. Foi a partir desta teoria que chegou ao conceito de número transfinito,<br />

incluindo as classes numéricas dos cardinais e ordinais, estabelecendo a diferença entre estes dois<br />

conceitos (que colocam novos problemas quando se referem a conjuntos infinitos).<br />

65


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ensinado, seja o matemático, seja o psicanalítico. Entre 1972 e 1973, Lacan singulariza<br />

e pluraliza o termo, articula os quatro discursos com o matema e o define como a escrita<br />

do significante, do traço, da letra, ou seja, daquilo que não se diz, mas pode ser<br />

transmitido, ainda que dele um resto lhe escape permanentemente. Assim, o matema<br />

incluía o conjunto das fórmulas da álgebra lacaniana que permitiam um ensino. Lacan<br />

fala desse desejo de matematização da psicanálise ao proferir suas conferências nos<br />

EUA, em Novembro de 1975. Refere-se a uma espécie particular de simbólico, que liga<br />

o real pela escrita, afirmando que:<br />

“tudo o que foi produzido como ciência é não verbal. [...] As fórmulas científicas são<br />

sempre expressas por meio de pequenas letras. [...] A ciência é tudo aquilo que se liga na<br />

sua relação ao real graças ao uso de pequenas letras. [...] É certo que eu tento dar forma a<br />

alguma coisa que agiria como núcleo da psicanálise, do mesmo modo que essas letrinhas”<br />

(LACAN, 1975b, p. 30).<br />

O isolamento desse mínimo matematizável é marcado pela introdução da concepção de<br />

letra e sua relação ao real no ensino lacaniano, pois, para ele, “não é com palavras que<br />

nós escrevemos o real, é com pequenas letras” (LACAN, 1975b, p. 30). A letra aqui é<br />

tomada enquanto identidade de si para si, articulada ao trauma do nascimento do sujeito<br />

para a linguagem.<br />

Nessa direção, a invenção de uma resposta ao traumático conduz Lacan a uma discussão<br />

sobre o tratamento que a Linguagem realiza sobre a língua materna (ou lalíngua 25 ). O<br />

traumático é revelado pelo encontro com o sexual, com o indizível que coloca o sujeito<br />

na busca de um sentido para essa experiência que ele tenta dominar com palavras. Em<br />

função disto, o que há de mais fundamental nas relações sexuais do ser humano com a<br />

linguagem teria a ver com a língua materna (LACAN, 1975b, p. 20). A língua materna<br />

ou a lalíngua seria feita desse gozar. A referência de Lacan é ao traumatismo que,<br />

sempre significante, lalíngua e gozo produzem, o traumatismo que lalíngua produz em<br />

um sujeito. Lacan chegou a fazer dele, em seu último ensino, o núcleo do inconsciente,<br />

ou seja, esses significantes foram investidos e isso os traumatizou. Na medida em que<br />

“o que cria a estrutura é a maneira em que a linguagem emerge no início num ser<br />

humano” (LACAN, 1975b, p. 12), seria o trauma da linguagem sobre o corpo que<br />

operaria a inscrição do sujeito e, nesse sentido, seria a letra, enquanto não reenvia a<br />

25 Optamos por manter a tradução de lalíngua para lalangue, apoiados no texto de CAMPOS (1998).<br />

Segundo ele, o prefixo “a” em português tem um sentido privativo que o distancia do artigo francês<br />

feminino “la”, podendo dar um sentido oposto ao que lalangue apresenta.<br />

66


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

nada, que fixaria o que há de mais singular na posição do sujeito. Ora, essa discussão<br />

interessa-nos diretamente, pois, como nos adverte Miller (2003a, p. 12), “é<br />

precisamente o traumatismo do significante, do significante enigma, do significante<br />

gozo, que obriga a uma invenção subjetiva”. Parece-nos haver, portanto, para o campo<br />

das estabilizações psicóticas, das invenções psicóticas uma resposta que se articula no<br />

nível da letra.<br />

Ainda para Roudinesco (1994, p. 364), é “a leitura de Wittgenstein e a elaboração das<br />

duas noções de matema e de lalíngua que levam Lacan, em 1971, a adotar uma nova<br />

terminologia destinada a pensar o estatuto do discurso psicanalítico em relação a outras<br />

formas de discursividade”. Para isso, era preciso passar do dizer ao mostrar. Ao mesmo<br />

tempo, e numa segunda via, a introdução da topologia borromeana tenta responder à<br />

insistência lacaniana em evidenciar o discurso analítico. Lacan está às voltas com o que<br />

se apresenta de extremamente singular nos casos que atende. Do universal da<br />

linguagem, ele retirou o particular do uso pessoal do significante. Extraída essa<br />

particularidade, entretanto, resta, em cada caso, a singularidade de uma dimensão<br />

irredutivelmente única, não formalizável genericamente e apenas extraída por cada<br />

sujeito de sua experiência com o real.<br />

Ao mesmo tempo, entretanto, em que uma singularidade absolutamente radical se revela<br />

ao psicanalista diante de cada analisante que se dispõe a escutar, algo de um certo<br />

‘mesmo’ se atualiza em cada psicanálise, conferindo-lhe sua consistência teórica e<br />

estrutural. Freud já nos advertia da importância em tomarmos cada caso como primeiro,<br />

deixando-nos guiar por aquilo que não se soma na experiência clínica. Lacan, ainda em<br />

1954, destacava essa posição freudiana notando que Freud<br />

“preferiria renunciar ao equilíbrio inteiro de sua teoria do que desconhecer as mais ínfimas<br />

particularidades de um caso que a contestasse. O que equivale a dizer que, se a soma da<br />

experiência analítica permite destacar algumas formas gerais, uma análise só progride do<br />

particular para o particular” (LACAN, 1954/1998, p. 387).<br />

Lacan desenvolve essa questão clínica na década de 70 até o ponto em que se encontra<br />

com a topologia. Eis os termos com os quais ele coloca a questão (1973/2003, p. 554-<br />

555). A partir do fato de que existem tipos de sintoma, existe uma clínica. Mesmo que<br />

ela tenha sido anterior ao discurso analítico, com este ela se funda na vertente<br />

determinada pela existência do inconsciente, enquanto um saber que se trata de decifrar<br />

pelo trabalho significante, ao mesmo tempo em que ele próprio opera um ciframento de<br />

67


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

gozo. Que os tipos clínicos 26 decorrem da estrutura, isso é certo, como também é certo<br />

que o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido. É por<br />

isso que só existe análise do particular. O que identifica os tipos clínicos é a estrutura, e<br />

não o sentido. Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do<br />

mesmo tipo. O discurso de um obsessivo, por exemplo, pode não dar o menor sentido<br />

ao discurso de outro obsessivo. “É disso que resulta só haver comunicação na análise<br />

por uma via que transcende o sentido, aquela que provém da suposição de um sujeito<br />

no saber inconsciente, ou seja, no ciframento” (LACAN, 1973/2003, p. 555). Essa cifra<br />

que localiza o que há de particular em cada sujeito está para além de seu tipo clínico,<br />

ganha a forma do objeto a e assenta-se sobre a materialidade da letra. É onde o núcleo<br />

real de cada sujeito o singulariza.<br />

Se há, qual seria a novidade para a clínica, no que Lacan concebe na década de 70 sob a<br />

égide dos nós borromeus? Por que essa questão sobre o singular na clínica se encontra<br />

com o desenvolvimento da topologia borromeana no ensino lacaniano? O que a<br />

estrutura dos nós introduziria em relação à estrutura da linguagem? Quais suas<br />

conseqüências clínicas para a psicose? A formalização do Real, do Simbólico e do<br />

Imaginário num primeiro tempo, a invenção do objeto a noutro, e a introdução da<br />

topologia, em especial a dos nós no período referido, são, em nosso entendimento,<br />

elementos com os quais Lacan tentou responder às aporias que os avanços teóricos e sua<br />

clínica lhe exigiam. Dessa forma, nessa segunda parte da tese, buscaremos elucidar<br />

alguns termos por ele inaugurados ou retomados em torno da década de 70, buscando<br />

entender como eles podem funcionar como abertura para pensarmos as estabilizações<br />

psicóticas pelo viés da criação.<br />

2.1.2 As condições de possibilidade da construção dos novos conceitos lacanianos<br />

Para Miller (2003b), o final do ensino de Lacan estaria inacabado, apenas anunciado por<br />

traços deixados em sua transmissão. Estes não teriam ganhado nesse caso uma última<br />

versão. Esses restos escritos não existem para orientar as deduções que se podem extrair<br />

desse ensino. Ele sugere tomarmos as placas indicadas como um verdadeiro “caminho<br />

de Roma” (no sentido de caminho certo) a ser seguido, a partir da última conferência<br />

26 Entendemos que os tipos clínicos são decorrentes das três estruturas: neurose, psicose e perversão. Na<br />

primeira, teríamos a histeria e seu dialeto, a neurose obsessiva; na psicose, a esquizofrenia, a paranóia e a<br />

melancolia; enquanto na perversão, o fetichismo e os pares sadismo-masoquismo e exibicionismovoyerismo.<br />

68


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

lá pronunciada, “La troisième” (LACAN, 1975a), e trabalhado ao longo dos seminários<br />

que se seguiram ao RSI (LACAN, 1974-75).<br />

A orientação é essencialmente lacaniana. O próprio Lacan nos lembra que seu trabalho<br />

foi o de extrair da intuição e da teoria freudianas registros para formalização da<br />

psicanálise.<br />

“[...] que eu tenha começado pelo Imaginário e, em seguida, precisado um bocado mastigar<br />

essa história de Simbólico com toda essa referência linguística sobre a qual efetivamente<br />

não encontrei tudo aquilo que me teria facilitado. E depois, esse famoso Real, que acabei<br />

por lhes apresentar sob a forma mesma do nó” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).<br />

O primeiro esforço de recuperação da clínica psicanalítica em Lacan (década de 50)<br />

teria sido uma tradução de Freud, no sentido de produção de novas interpretações a<br />

partir do texto original. Haveria, nesse período, pontuações do texto freudiano. No<br />

retorno a Freud, Lacan teria traduzido rejeição por foraclusão, destacado o traço unário<br />

e a castração, retomado a noção de eu como pivô da experiência analítica e a função da<br />

fala como única operatória na prática analítica, suportada pelo campo da linguagem.<br />

Porém, com essas retomadas, ele não teria feito mais que pontuações. Elas vão até<br />

formalizações, é certo, mas não excedem o status de pontuação na tradução que<br />

efetivam de Freud. Poderíamos mesmo dizer que se trata de um trabalho metódico de<br />

crítica que tensiona as aporias freudianas, discutindo suas conseqüências. Dessa<br />

maneira, a primeira clínica seria uma celebração do acontecimento-Freud e do<br />

desenvolvimento de suas conseqüências, tomados enquanto novidade radical, corte em<br />

relação ao que antecedeu Lacan e guia obrigatório de acesso ao inconsciente e de uma<br />

direção que convém ao tratamento analítico (MILLER, 2003b, p. 08).<br />

Lacan também teria apresentado a disjunção entre sujeito do inconsciente e sujeito da<br />

consciência de si. Da autonomia da consciência, Lacan chegaria à autonomia do<br />

simbólico, operando essa passagem ancorado no estruturalismo de Lévi-Strauss. Mas,<br />

ainda assim, seriam pontuações, traduções de um sentido verdadeiro da obra freudiana,<br />

desviada principalmente pelos pós-freudianos da Psicologia do Ego norte-americana.<br />

No “Seminário sobre a carta roubada” (LACAN, 1957a/1998, p. 13-66), em especial,<br />

Lacan cria o esquema de alfa, beta, gama e delta para ilustrar o automatismo do<br />

simbólico, para conferir ao inconsciente enquanto memória o suporte simbólico. Ele<br />

começa por evidenciar que o aleatório – tal qual a cara e a coroa na lei das<br />

probabilidades – é impossível de ser previsto, organizado, calculado. Não se pode<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

prever qual será o resultado da próxima jogada, cara ou coroa, ainda que se possa<br />

deduzir, após inúmeras jogadas, que a probabilidade de cada uma delas aparecer será de<br />

50%. Nesse nível, ele trabalha com o que pode ser pensado como a matéria real, o que é<br />

da ordem do dado da experiência, o que tem valor bruto. Num segundo momento, essa<br />

casualidade pode ganhar um reagrupamento regido por reciprocidade, tal qual o<br />

funcionamento imaginário, especular, pareado. Uma lógica começa a ser esboçada. E,<br />

no terceiro nível, esses reagrupamentos por duplas ganham leis de organização,<br />

combinatórias possíveis e outras agora impossíveis, uma verdadeira sintaxe, sendo os<br />

agrupamentos do segundo nível reorganizados a partir dessas leis que já introduzem<br />

uma lógica simbólica. Há, como se pode deduzir, uma prevalência do simbólico que, a<br />

posteriori, organiza a leitura das dimensões imaginária e real. Busca-se a construção de<br />

um sentido para o real, o estabelecimento de regras para se interpretar o aleatório<br />

(BASTOS, 1998).<br />

Foi com base nessa perspectiva estruturalista que Lacan empreendeu sua releitura de<br />

Freud nesse primeiro tempo de seu ensino. Nela, o sujeito, diferentemente da<br />

abordagem fenomenológica, só conhece os dados mediatizados pela estrutura, cuja<br />

alteridade é dada pela noção de Outro. A percepção seria organizada previamente pela<br />

estrutura. O perceptível faria sistemas e o simbólico dominaria o perceptível da<br />

realidade. “A dinâmica no estruturalismo é reduzida à permutação de elementos em<br />

lugares invariáveis, quer dizer que há uma estática dos lugares explorada por Lacan”<br />

(MILLER, 2003b, p. 21).<br />

O avanço do ensino lacaniano implicará numa reinterpretação desse determinismo.<br />

Lacan questionará o real da estrutura ao discutir sua dimensão de arbitrariedade. O que<br />

a Antropologia Social estruturalista de Lévi-Strauss colocou em relevo foi o<br />

relativismo, a perspectiva de que o real poderia ser estruturado de maneiras diversas, e,<br />

só então, ganhar uma estrutura irredutível. Donde se extrai que qualquer estrutura é,<br />

antes de tudo, uma construção de leis que regem a realidade factual. Mas, para Lacan,<br />

subjaz a esse sistema de leis um real de dados imediatos que não caberia buscar decifrar.<br />

Aliás, que restaria como inacessível, indecifrável. Haveria uma espécie de matéria bruta<br />

dos fatos, sem nenhuma estrutura lógica anterior a esse sistema de ordenação estrutural.<br />

Sobre ela se construiria a elucubração do sentido, um saber. Isso teria conduzido Lacan<br />

a uma nova fenomenologia, a ordenar um real fora do sentido, prévio àquele que a<br />

70


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

estrutura confere e que, por isso mesmo, não pode ser definido.<br />

Daí poder se extrair uma duplicidade de leituras acerca do inconsciente. Ora, ele pode<br />

ser pensado como uma elucubração freudiana de saber, ora como real fora de sentido,<br />

apreendido pelo equívoco, pelo engano. “A base material do inconsciente como dados<br />

imediatos é o tropeço, o escorregão, o deslizamento de palavra à palavra. Aqui<br />

estamos no nível imediato a partir do qual se elucubra” (MILLER, 2003b, p. 23).<br />

Qualquer construção que se faça sobre esse tropeço, já seria uma tentativa de apreendê-<br />

lo, um semblante, já seria uma debilidade do mental. Debilidade que aponta para a<br />

dificuldade em se lidar com o corpo (o imaginário) e com o real. Nessa ótica, o<br />

inconsciente seria uma doença mental (LACAN, 1974-75). Ao mesmo tempo, seria o<br />

engano, o tropeço, aquilo que permitiria a produção no mental de sentidos diferentes, de<br />

novas configurações como forma de resposta ao mal-estar produzido por essa<br />

dificuldade. Interessante aqui ressaltar que a debilidade é do mental, do humano. O<br />

déficit não está mais do lado da psicose, mas do lado de qualquer ser de linguagem. A<br />

solução ao embaraço colocado pelo trauma da linguagem exige uma resposta singular<br />

de cada um. Será nessa vertente que as estabilizações psicóticas passarão a ser<br />

consideradas.<br />

Esta seria uma novidade muito presente no final do ensino de Lacan que, como se vê,<br />

põe em questão o sentido e o saber. Daí ele priorizar o saber-fazer (savoir-faire) mais<br />

que o saber. A depreciação do saber como uma elucubração é correlata à discussão da<br />

topologia do nó borromeano, na medida em que, sobre ele, Lacan se absteve de fazer<br />

demonstrações e deduções lógicas. Seu esforço foi o de mostrar, a partir dos barbantes e<br />

seu enodamento, a debilidade de toda tentativa de compreensão. O nó seria o efeito real<br />

em si mesmo, e não um modelo para sua compreensão ou elucidação.<br />

O inconsciente e o pensamento seriam tomados no nível dessa relação difícil entre o<br />

corpo e o simbólico, que Lacan nomeia de mental no último ensino. O inconsciente<br />

estaria no nível do mental, da debilidade que afeta esse mental enquanto necessidade de<br />

saber, elucubração advinda do fato de ‘não se saber fazer com’. Ele aparece mais como<br />

esse ‘não saber fazer com’, diante do qual as saídas subjetivas são sempre únicas,<br />

singulares, irredutíveis a um padrão, que como ‘o saber que não se sabe’ freudiano<br />

(FREUD, 1912a/1976). Dito de outra forma, essas saídas não seriam normativizadas<br />

pelo Nome-do-Pai como um agenciador elementar e necessário, que alimentaria a<br />

71


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

esperança de um saber complementar, mas, antes, seriam efeito de invenções, de<br />

criações suplementares do sujeito diante do impossível veiculado pelo real. Já na década<br />

de 60, Lacan começa a articular o Outro – como campo do significante – ao objeto a –<br />

como o que é próprio ao sujeito, singular, para, enfim, partir do que esse campo do<br />

Outro não recobre e alcançar o que escapa como singularidade no final de seu ensino.<br />

Na topologia dos nós, não se trata mais de falta, e sim de furo. Quando se fala de falta,<br />

há a referência a lugares, como acabamos de destacar na leitura que parte do<br />

estruturalismo. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se faltar,<br />

mas há sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coerente com a idéia<br />

de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia de significantes, de<br />

metáfora. O furo, ao contrário, comporta o desaparecimento da ordem dos lugares, da<br />

ordem da combinatória. Como no nó borromeano, o furo é posição própria ao resto, ao<br />

que resta da forma como a amarração do nó pode se escrever. Todo esse percurso<br />

evidencia um estatuto cada vez mais complexo da discussão das estruturas clínicas, da<br />

psicose e das estabilizações.<br />

2.2 Lacan, a Linguagem e a Psicose<br />

Os reviramentos e as subversões operados por Lacan em relação à estrutura da<br />

linguagem não implicam em avanços ou evoluções, mas antes em complexificações que<br />

retornam umas sobre as outras ao longo da obra, sofisticando a teoria lacaniana. Ao<br />

partir da realidade articulada pelos três registros, ele recorreu, na década de 50, à<br />

lingüística estrutural, como vimos, para estabelecer uma estratégia de domesticação do<br />

gozo, do vivo, pela linguagem, pelo significante. É a época dos aforismos do<br />

‘inconsciente estruturado como linguagem’ (LACAN, 1957b/1998) e do ‘a palavra (ou<br />

o símbolo) mata a coisa’ (LACAN, 1956-57/1995). Período em que Lacan luta contra os<br />

desvios operados na psicanálise pela psicologia do ego e, por conseqüência, período em<br />

que estabelece uma primazia do simbólico sobre o imaginário.<br />

Daí a importância da metáfora, que tenta abrir, no campo lingüístico, o espaço a um<br />

nível de experiência subjetiva para além do Imaginário. Ela seria a negação de uma<br />

construção imaginária naturalizada pelo signo lingüístico. Simbolizar por metáforas<br />

significa simbolizar por significantes puros (e não por signos) que são a negação do<br />

empírico. Eles seriam a formalização da inadequação da linguagem às coisas sensíveis,<br />

72


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

destacando o arbritário e a convenção em sua adoção (SAFATLE, 2006, p. 105-106).<br />

Lacan trabalha os desvios imaginários que, na psicologia do ego, aparecem como um<br />

desejo de adequação do sujeito à realidade, enquanto a psicanálise visaria ao desejo<br />

articulado à Lei simbólica, como sua condição. Assim, “desde que a intenção<br />

imaginária que o analista descobre ali [no manejo clínico] não seja por ele<br />

desvinculada da relação simbólica em que ela se exprime” (LACAN, 1953/1998, p.<br />

252), estamos pisando no território de uma clínica orientada pelos princípios freudianos<br />

então recuperados. Nessa perspectiva, a interpretação visaria ao sentido, produzido pelo<br />

deslizamento da cadeia significante. A clínica se orientaria pela produção significante<br />

no que ela alcança o que, do inconsciente, pode ser tratado, decifrado. “A interpretação,<br />

para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia<br />

dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução”<br />

(LACAN, 1958/1998, p. 599) do que aparece como falta do Outro. Poderíamos<br />

representá-la assim:<br />

Linguagem -> Significante<br />

Gozo<br />

Com a introdução do conceito de objeto a em 1960 (LACAN, 1960/2003)<br />

(desenvolvido nos seminários subseqüentes) veremos uma articulação mais fina sobre<br />

esse ‘resto metonímico’ se delinear. A partir de então linguagem e gozo possuem uma<br />

relação intrínseca, sem preponderância de uma dimensão sobre a outra. O que se<br />

destaca, nesse período, é antes uma relação de sobredeterminação e limite entre os<br />

termos. “Esse a se apresenta justamente, no campo da mensagem da função narcísica<br />

do desejo, como objeto indeglutível, se assim podemos dizer, que resta atravessado na<br />

garganta do significante. É nesse ponto de falta que o sujeito tem que se reconhecer”<br />

(LACAN, 1964/1998, p. 255).<br />

Lacan nesse período responde à crítica que sofre quanto ao estruturalismo lingüístico e<br />

ao racionalismo pregnantes em sua obra. Ele busca retomar os conceitos fundamentais<br />

da psicanálise, destacando a pulsão e o vivo no sujeito desejante e recolocando em<br />

novos termos a dimensão significante. O Outro é então tomado como “o lugar em que<br />

se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do<br />

sujeito” e também “o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (LACAN,<br />

73


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

1964/1998, p. 193-194). A falta do sujeito também aparece desdobrada numa dimensão<br />

significante enquanto falta-a-ser, afânise, na medida que os significantes do sujeito se<br />

encontram no campo do Outro, e falta real, referente ao fato de que o gozo é sempre<br />

parcial, ele é o que o vivo perde. Se tudo ainda surge do significnate nesse período,<br />

Lacan, porém, já aponta para a estrutura de corte que faz borda ao significante<br />

instalando uma dimensão para além dele.<br />

Nesse ponto, o sujeito, sob as operações de alienação-separação 27 , se instalará no campo<br />

do Outro enquanto falta-a-ser, condição de sua posição como sujeito desejante. Lacan<br />

destaca o irredutível na análise. E o tratamento clínico passa a visar justamente<br />

reconhecer esse irredutível e atravessar seu recobrimento fantasístico. Ainda que<br />

significante e gozo se localizem em dois pólos antinômicos, entre eles uma relação (ou<br />

‘todas as relações possíveis’) se estabelece: ∃∀.<br />

Linguagem Gozo -> objeto a<br />

Parece-nos que Lacan recorre à topologia borromeana ao se deparar com o que, do<br />

inconsciente, não se decifra, pois, para além do deciframento operado pelo significante,<br />

há o gozo e o que dele faz cifra. Para justificar o que encontra na clínica, Lacan passa a<br />

trabalhar com a idéia de que o significante é signo 28 do sujeito (LACAN, 1972-73/1982,<br />

p. 195). Diferentemente do significante que somente ao reenviar a outro significante<br />

produz uma significação, o signo representa, de maneira fechada, algo. Lacan o define,<br />

com Peirce, como o que pode substituir um outro signo. No Seminário 20, ao introduzir<br />

a noção de lalíngua na definição do ser falante, propõe uma articulação nova entre<br />

significante e signo. Na perspectiva saussuriana, o signo lingüístico compõe-se de<br />

significante mais significado. Lacan propõe a prevalência do significante sobre o<br />

significado, localizando o sujeito no intervalo entre dois significantes. Na década de 70,<br />

por seu turno, sugere que “o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir<br />

27 A alienação ao significante do Outro com o qual o sujeito se identifica, implica em seu desaparecimento<br />

como sujeito do inconsciente no campo do sentido e como sujeito desejante no campo do ser. Enquanto<br />

na alienação, surgida do recobrimento dessas duas faltas, o sujeito encontra no intervalo significante uma<br />

via para retornar da alienação enquanto sujeito desejante (LACAN, 1964/1998, p. 191-217).<br />

28 O signo, como conceito ampliado em Peirce, implica numa relação triádica. Ele é uma coisa que<br />

representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de<br />

representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Toda relação sígnica implica na relação entre o<br />

signo em si mesmo, o objeto e o interpretante (relação que o signo mantém com o objeto). A partir dessa<br />

relação introduz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro, sendo<br />

seu interpretante. Dessa maneira, o significado de um signo é sempre um outro signo.<br />

74


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

signo. [...] O significante é signo de um sujeito” (LACAN, 1972-73/1982, p. 195).<br />

Ora, o aforismo lacaniano de que ‘um significante representa o sujeito para outro<br />

significante’ implica a introdução do valor diferencial do significante. Por outro lado, o<br />

significante como signo do sujeito implica uma relação de identidade, trazendo uma<br />

série de dificuldades para integração dessa idéia na teorização lacaniana. A solução nos<br />

parece advir com o conceito retomado e ressignificado de letra, como veremos em<br />

seguida. Por outro lado, o signo só tem alcance por ter que ser decifrado (LACAN,<br />

1973/2003, p. 550). Entretanto, a dimensão da fala, ou a dit-mension, não revela a<br />

estrutura ao chegar ao término da seqüência a que conduz a decifração. A inscrição do<br />

sexual resta como o que faz cifra e aponta o único real que não pode se escrever, a<br />

relação sexual. “Falamos do valor que tem o estalão do sentido. Chegar a ele não o<br />

impede de fazer furo. Uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma. [...]<br />

O analista se define a partir dessa experiência” (LACAN, 1973/2003, p. 550).<br />

Deciframento e ciframento são operações que mantêm, portanto, seu relevo na clínica –<br />

uma ativa, outra sofrida. É no nível da lalíngua que o traumatismo deixa seu traço de<br />

inscrição do real no mundo do ser falante (interessante verificar a inversão que Lacan<br />

apresenta aqui: é o real que ao entrar faz trauma). A linguagem seria o esforço débil<br />

para tentar dar conta desse encontro. “Tudo os conduz, no entanto, à solidez do apoio<br />

que eles [falantes] encontram no signo – não fosse pelo sintoma com que têm que lidar,<br />

e que faz do signo um grande nó...” (LACAN, 1973/2003, p. 552).<br />

Aqui teríamos representada essa nova versão:<br />

. Letra .<br />

. Lalíngua . -> Real<br />

.Linguagem<br />

A linguagem aqui aparece como efeito da incidência traumática da letra em lalíngua e<br />

suas repercussões sobre a forma de organização do gozo. Implica uma concepção de<br />

escrita, antes ausente da obra de Lacan e fundamental para nossa discussão.<br />

Acompanhemos Lacan.<br />

2.2.1 Linguagem e lalíngua<br />

Lacan apresenta a invenção do termo lalíngua na aula do dia 04/11/1971 do seminário<br />

“O saber do psicanalista” (LACAN, 1971-72b). Nesse ano, ele realiza seu ensino em<br />

75


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

duas séries. Uma primeira acontece na Faculdade de Direito, no auditório da Praça do<br />

Panthéon, intitulada “Ou pior...”, e uma segunda, intitulada “O saber do psicanalista”,<br />

no Hospital Sainte-Anne. Na primeira, o locus efetivo do seminário, Lacan destaca cada<br />

vez mais o real, o pior, o impossível; enquanto em Sainte-Anne, ele se atém ao saber do<br />

psicanalista. De qualquer forma, como veremos, será no bojo desse trabalho de<br />

transmissão que ele chegará ao matema e aos nós.<br />

Lalíngua é inventada como uma brincadeira com o nome de Lalande, filósofo que<br />

escreveu um vocabulário de filosofia muito utilizado na França. Ao tratar da diferença<br />

entre saber e verdade, cuja fronteira sensível seria o discurso analítico, Lacan propõe o<br />

termo lalíngua. Ele não tem nada a ver com o dicionário, sendo antes a lógica que lhe<br />

interessa para pensá-lo. Lalíngua é extraída do jogo da matriz de Jakobson 29 . E diz<br />

respeito especialmente ao fonema, ao som e ao fora-de-sentido que ele veicula<br />

(enquanto a letra estaria referida ao grafema). “Lalíngua não tem nada a ver com o<br />

dicionário, qualquer que seja ele [o de filosofia ou o de psicanálise]. O dicionário tem<br />

haver com a dicção, quer dizer, com a poesia e com a retórica, por exemplo” (LACAN,<br />

1971-72b, aula de 04/11/1971).<br />

A linguagem é apenas o que o discurso científico elabora para dar conta de lalíngua, que<br />

serve para coisas diferentes da comunicação. Ela é a fala antes de seu ordenamento<br />

gramatical e lexicográfico. Introduz um uso da palavra, não como elemento da<br />

comunicação, mas como veículo de gozo. “O que Lacan chama de lalíngua é a palavra<br />

enquanto disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada em relação a<br />

este exercício primeiro e separado da comunicação” (MILLER, 2000, p. 101). O<br />

inconsciente é feito de lalíngua. Nesse sentido, lalíngua coloca em questão o conceito<br />

mesmo de linguagem, que se torna derivado e não mais originário. O inconsciente não<br />

deixa de ser estruturado como uma linguagem, mas sua matéria bruta é lalíngua, que já<br />

está lá como saber que vai bem além do que o ser que fala é capaz de enunciar. “Se eu<br />

disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo<br />

porque a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber<br />

concernentemente à função da lalíngua” (LACAN, 1972-73/1982, p. 189).<br />

Nesse sentido, a disjunção ou não-relação, que aí aparece, veicula o questionamento do<br />

próprio conceito de estrutura, como elemento transcendental, enquanto o que<br />

29 “Há um lingüista que tem insistido muito no fato de que o fonema, isso não faz jamais sentido. O chato<br />

é que a palavra muito menos; não faz sentido, apesar do dicionário” (LACAN, 1974/1986, p. 31).<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

condicionaria a experiência. A estrutura não está mais protegida, isolada, ela é uma<br />

resposta à desordem originária que a condiciona, sendo ela mesma um efeito, um<br />

arranjo realizado sobre essa desordem.<br />

Num primeiro tempo do ensino, Lacan estabeleceu o campo da linguagem apresentado<br />

pela função da fala, como maneira de articular o sujeito do inconsciente. Nos seus<br />

últimos escritos, ele privilegia o termo falasser, ao de sujeito, já que todo sujeito do<br />

inconsciente implica um ser que fala, sendo extraídos dessa fala os efeitos clínicos que<br />

alcançamos. À medida, porém, que a fala se torna veículo de gozo, ela não se inscreve<br />

mais sob a égide da comunicação, da busca de reconhecimento do Outro. Ela implica,<br />

antes, num gozo disjunto do Outro, num modo de satisfação específico do corpo falante,<br />

na medida em que o corpo é o lugar, por excelência, do gozo.<br />

Na terceira conferência que Lacan profere em Roma, gozo e linguagem ganham nova<br />

articulação a partir de lalíngua. “Não é porque o inconsciente é estruturado como uma<br />

linguagem, que lalíngua não tenha com o que jogar contra seu gozar, já que ela é feita<br />

desse mesmo gozar” (LACAN, 1974/1986, p. 28). Lalíngua é feita do gozar que o<br />

inconsciente veicula como o que da linguagem o excede. O que isso significa? Se a<br />

linguagem, ou mais precisamente o símbolo, veicula a morte da coisa, lalíngua, por seu<br />

turno, testemunha a vida que a linguagem rejeita.<br />

Lacan insere no lugar do fonema o objeto voz, uma das quatro roupagens do objeto a.<br />

Recoloca a voz quanto à operação significante da metonímia, deslocando-a do aparelho<br />

de fazer sentido, e tornando-a livre, “livre de ser outra coisa que substância” (LACAN,<br />

1974/1986, p. 16).<br />

Mas ele ainda pretende definir outra delineação. Lalíngua mata o signo, ou seja, aniquila<br />

a possibilidade de um sentido fechado e libera o real, o non-sense, o indizível que<br />

habitaria o intervalo entre a coisa em si, seu traço e sua representação. “A falar<br />

lalíngua, há um inconsciente, e ele está perdido [...]; é isso que chamo um saber<br />

impossível de se reajuntar para o sujeito” (LACAN, 1974/1986, p. 17). O que habita<br />

esse espaço, esse “depósito” é o gozo que poderia ser atado pela operação da linguagem.<br />

Por isso, a radicalidade e a importância clínica central de lalíngua.<br />

Tomemos como exemplo a operação primária da significação fálica. A introdução do<br />

fora-corpo do gozo fálico na imagem do corpo marca uma operação absolutamente não<br />

natural que será “codificada” por cada sujeito de uma maneira extremamente única, na<br />

77


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

medida em que sua escrita decorre da via traumática com que ele experimentará na<br />

língua mãe, lalíngua, a entrada do significante fálico. Lacan diz que isso fica retido, pois<br />

não vem de dentro da tela (imaginária do corpo), mas de fora. “Ele, o corpo, se introduz<br />

na economia do gozo [...] pela imagem do corpo” (LACAN, 1974/1986, p. 29). Ou seja,<br />

se a relação do homem com seu corpo é imaginária, como já apontado em “O estádio do<br />

espelho” (1949/1998) pelo próprio Lacan, sua razão é real: a prematuração corporal,<br />

associada à insuficiência do simbólico. Há uma trama excedente à linguagem.<br />

Qual a questão clínica daí depreendida? Se não há um ponto comum na linguagem para<br />

todos, é preciso buscar, a cada caso, a lalíngua do sujeito. Se a palavra, apesar do<br />

dicionário, ganhará uma conotação particular e um uso não transferível no discurso de<br />

cada um, mais ainda indeterminado é o fonema articulado pelo significante. Isso não faz<br />

jamais sentido. “Então se se faz dizer com qualquer palavra qualquer sentido, onde se<br />

vai parar na frase? Onde achar a unidade elemento?” (LACAN, 1974/1986, p. 31).<br />

Perguntar pela unidade elemento – essencial ao trabalho de interpretação – faz Lacan<br />

retomar a dimensão do sintoma como o que vem do real, revirando o sentido do avesso.<br />

Ele considera, então, que a interpretação deve visar o essencial que há no jogo de<br />

palavras, e não ser aquela que provê o sintoma de sentido. Assenta seu tratamento, pois,<br />

a partir do furo do saber. Eis o ponto em que ele se depara com a letra como suporte do<br />

significante, “este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da<br />

linguagem” (LACAN, 1957b/1998, p. 498) e que, sendo real, veicula o não-sentido. E a<br />

letra não existe sem lalíngua (LACAN, 1974/1986, p. 33).<br />

O que nos conduz à questão de como lalíngua pode se precipitar na letra. É exatamente<br />

pelo trabalho de interpretação que, enquanto trabalho de deciframento, é à cifra que<br />

retorna. “O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que<br />

antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir cativá-lo até o ponto onde a<br />

linguagem possa equivocar-se é ali por onde o terreno está ganho em meus pequenos<br />

desenhos” (LACAN, 1974/1986, p. 33).<br />

Essa afirmação lacaniana é muito sutil e fundamental para pensarmos o que ele trata<br />

aqui em relação à clínica. Por uma via, ao trabalhar com o deciframento, poder-se-ia<br />

supor que a interpretação psicanalítica chegaria ao sentido último pelo esgotamento das<br />

possibilidades de significação. Mas isso é um engodo. Ali onde suporíamos o<br />

esgotamento estaria aberta a fonte inesgotável que multiplica a produção de sentido,<br />

78


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

pelo gozo do blá-blá-blá, instalado entre imaginário e simbólico. É numa outra via que<br />

ele nos propõe trabalhar. Na medida em que decifra, se o sujeito desvela o que forja o<br />

sentido para ele, algo se cifra no sentido de atingir lalíngua. Esse intervalo entre coisa,<br />

traço e representação revela no falasser o modo com que acolhe o gozo. E essa operação<br />

faz cifra, redução. Convidamos o analisante a falar livremente o que lhe ocorre<br />

exatamente para colocar à prova essa liberdade de ficção de dizer qualquer coisa (o que<br />

se confirma impossível), ao mesmo tempo em que se revela um atravessamento: o ponto<br />

sintomático que o estrutura e comanda seu gozo.<br />

Por que, enfim, Lacan nos diz que está em seus pequenos desenhos o terreno que se<br />

ganha com esse equívoco da linguagem? O que aí se escreve?<br />

2.2.2 Letra e escrita<br />

Em Lituraterre (1971/1986), Lacan nos dá as indicações do que seria essa escrita. Logo<br />

de saída brinca com a etimologia do título que inventa para seu texto a ser publicado<br />

numa edição especial sobre Literatura e Psicanálise da revista Littérature. Desdobra os<br />

termos de sua invenção ao dizer que ele está antes em associação com o termo latino<br />

original Litura (em latim: risco, alteração, mancha e terra) que com Littera (referido à<br />

letra e à palavra Literatura). O que, nos parece, indica o estatuto que irá conferir à letra<br />

nesse texto. Para tratar do que faz escrita, Lacan busca avançar sobre o estatuto da letra.<br />

Na década de 50, Lacan trazia em “A instância da letra” (1957b/1998, p. 498) que<br />

“designamos por letra esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado<br />

da linguagem”, ressaltando sua materialidade em relação à linguagem, ao significante.<br />

Na verdade, Lacan utiliza o termo lettre 30 pela primeira vez em “O Seminário sobre ‘A<br />

carta roubada” (1957a/1998), associando-o à expressão “a letter, a litter”, uma<br />

carta/uma letra, um lixo. Desde já, a idéia de uma materialidade se apresenta ao lado da<br />

idéia do que faz circular o discurso. Trata-se, no conto de Edgard Allan Poe comentado<br />

por Lacan, de uma carta a ser recuperada pois colocava em risco a rainha. Ela,<br />

entretanto, é ‘disfarçada’ numa carta velha, dejeto, que os policiais investigadores<br />

pegam sem se darem conta de ser exatamente a que procuravam. Com isso, Lacan<br />

evidencia uma dimensão outra, para além da mensageira, que reside na carta. O destino<br />

30 Lettre ganha na língua francesa um jogo homofônico permitindo ser interpretada seja como carta, seja<br />

como letra. E Lacan ainda lhe acrescenta a homofonia com litter, estendendo seu sentido a lixo, dejeto,<br />

resíduo.<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

da carta extrapola sua função de levar uma mensagem. Isso aparece no conto, pois é<br />

exatamente depois de cumprir seu destino que ela circula como objeto de mão em mão,<br />

como materialidade passível de ser largada, pegada, rasgada, alterada. Mandil (2003, p.<br />

28) nos relembra que é por não corresponder à descrição de que dispunham, por não se<br />

encaixar na cadeia prévia de sentido que a carta passa despercebida em sua dimensão de<br />

lixo, litter.<br />

Daí se extrai sua dupla dimensão, qual seja, a de transmissão de uma mensagem, a<br />

letter, e também de um destino concernente à sua materialidade, a litter.“E é por isso<br />

que não podemos dizer da carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela<br />

deva estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e<br />

não estará onde estiver, onde quer que vá” (LACAN, 1957a/1998, p. 27). Enquanto<br />

símbolo de uma ausência, o significante também seria marcado por essa duplicidade,<br />

determinando as funções da letra.<br />

A materialidade acima apontada por Lacan em “A instância da letra” (1957b/1998) é<br />

discutida sob a mesma determinação significante, mas recorrendo a outra argumentação.<br />

Aqui o aspecto privilegiado será o da lettre como elemento tipográfico. Ao discutir que<br />

a estrutura significante está em ele ser articulado, reduzir-se a elementos diferenciais<br />

mínimos e comporem-se segundo leis de uma ordem fechada, recai o interesse de Lacan<br />

sobre uma certa equivalência entre letra e estrutura fonemática. Enquanto “sistema<br />

sincrônico dos pareamentos diferenciais necessários ao discernimento dos vocábulos<br />

em uma dada língua” (LACAN, 1957b/1998, p. 504), os fonemas se aproximariam dos<br />

caracteres móveis das caixas baixas utilizadas na tipografia. É o que permite distinguir,<br />

no texto lacaniano, a ação do significante e a ação do significado (MANDIL, 2003, p.<br />

30; MILLER, 1996c, p. 97). A combinação desses caracteres móveis é diferente das<br />

possíveis significações a que, combinados, eles dão origem. Assim também é a<br />

combinatória significante que produz como efeito o significado. Donde Miller (1996, p.<br />

97) propor a lettre como “o significante despojado de qualquer valor de significação e<br />

localizado na materialidade que nos é presentificada pelo caractere de imprensa”.<br />

Lacan retoma o termo na década de 70, revelando uma nova dimensão da linguagem<br />

que tenta, então, destacar a partir da experiência clínica. A letra seria litoral entre saber<br />

e gozo, posto que separa dois domínios que não têm absolutamente nada em comum,<br />

nem mesmo uma relação recíproca. Não se trata de fazer fronteira entre os dois, nos<br />

80


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

adverte ainda Lacan (1971/1986), pois a fronteira, ao separar dois territórios,<br />

simbolizaria que eles são da mesma natureza. A letra escreve a radicalidade da diferença<br />

de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que<br />

essa verdade tem de inacessível.<br />

“A borda do furo no saber, que a psicanálise designa justamente como de abordagem<br />

da letra, não seria o que ela desenha?” (LACAN, 1971/1986, p. 23). A letra seria uma<br />

espécie de franja que avança entre as duas consistências de naturezas diversas,<br />

desenhando ou escrevendo essa borda tão pouco precisa no ser falante. Lacan é<br />

cuidadoso ao avançar e diz que tudo isso não impede o que ele disse do inconsciente<br />

enquanto efeito de linguagem. A letra suporia sua estrutura como necessária e<br />

suficiente. A questão é, antes, como o inconsciente comandaria esta função de letra.<br />

Pensar, pois, a relação entre letra e inconsciente nos conduz inevitavelmente a discutir a<br />

posição da letra em face do significante. E, quanto a esse aspecto, Lacan é enfático logo<br />

de saída. A letra não se confunde com o significante. “A escritura, a letra, estão no<br />

real, o significante, no simbólico” (LACAN, 1971/1986, p. 28). Além disso, não<br />

podemos atribuir uma primariedade da letra em relação ao significante. Ela simbolizaria<br />

efeitos de significantes, mas isso não exigiria que ela estivesse presente nesses mesmos<br />

efeitos, nos quais o significante não serve senão de instrumento. Seria mais importante o<br />

exame “disto que a partir da linguagem chama do litoral ao literal” (LACAN,<br />

1971/1986, p. 23), disso que a letra, em síntese, escreve. E o que é esse literal senão a<br />

letra enquanto redução mínima do sujeito, enquanto sua escrita?<br />

Ora, escrita não é impressão. E letra não é significante ou Wahrnehmungszeichen, Wz,<br />

traço inconsciente freudiano 31 , aqui considerado o que de mais próximo ao significante<br />

poderíamos encontrar em Freud. Voando sobre a Sibéria, Lacan observa sulcamentos<br />

(de significantes), e não o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens.<br />

Exigido um desvio de rota de seu avião, ele observa o que faz sulco na paisagem. “O<br />

31 Como vimos, Wz (Wahrnehmungszeichen) são os traços mnêmicos que se associam por simultaneidade<br />

e indicam uma primeira forma de registro. Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao<br />

primeiro, referente às percepções que se associam por simultaneidade. Os traços de Ub “talvez<br />

correspondam a lembranças conceituais” (FREUD, 1896b/1976, p. 325) ainda inconscientes.<br />

Correspondem ao que Freud posteriormente irá estabelecer como Vorstellungsrepräsentanz<br />

(representante da representação). Segundo LIMA (1994), a questão do traço em Freud se apresenta a<br />

partir de três possibilidades diferentes de tradução. Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e<br />

está ligada à percepção, a Vorstellung. Zug corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a<br />

Bejahung primordial. E, por fim, ligado à memória e à permanência teríamos a Spur, que aparece como<br />

Ub.<br />

81


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

escoar é o único traço que aparece a operar” (LACAN, 1971/1986, p. 26). Toda a<br />

elaboração de mapeamentos se faz como código sobre esses sulcos. A letra seria, então,<br />

um remate daquilo que, no seminário sobre “A identificação” (1961-62), Lacan<br />

distinguiu do traço primeiro e do que o apaga.<br />

“Eu o disse a propósito do traço unário: é pelo apagamento do traço que se designa o<br />

sujeito. Ele é marcado, pois, em dois tempos; eis o que distingue aquilo que é rasura, litura,<br />

lituraterra. Rasura de nenhum traço que seja anterior, eis o que faz terra do litoral. Litura<br />

pura é o literal. Produzir essa rasura é reproduzir esta metade de que subsiste o sujeito. [...]<br />

Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há rasura que vira literal” (LACAN, 1971/1986,<br />

p. 26-27).<br />

Além da dimensão do sulco, Lacan também destaca a dimensão da rasura - rasura,<br />

porém, de nenhum traço que lhe seja anterior. A idéia de rasura nos reporta ao ato de<br />

reescrever, apagar para melhor escrever. Quando, entretanto, Lacan introduz a idéia de<br />

uma rasura sobre o que não está lá, estira ao limite a noção de linguagem. É da<br />

linguagem que o significante apanha “seja o que for” na rede de significantes e disso faz<br />

escrita no exato momento em que esse elemento é promovido à função de referente<br />

essencial. Donde podemos entender por que a letra não é primária, mas antes<br />

conseqüência do advento significante, ao contrário do que se poderia supor. A letra se<br />

destaca no exato momento em que cai como literalidade que vivifica o falasser.<br />

“É isso que modifica o estatuto dos sujeitos. É por aí que ele se apóia num céu<br />

constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN,<br />

1971/1986, p. 31). O sulco aí produzido é receptáculo sempre pronto a acolher gozo. É<br />

rota lavrada, por onde, a partir de então, o gozo escorre e pode se alojar. Enquanto fora<br />

da cadeia significante, enquanto não reenvia à série significante e não produz<br />

significação, a letra se faz referente do sistema significante de uma maneira singular<br />

para cada ser vivente, escrevendo as vias de suas possibilidades de gozo. Na metáfora<br />

naturalista de Lacan, a chuva da linguagem faz escrita de gozo, o que permite ler os<br />

riachos está ligado a algo que vai além do efeito de chuva. O real, como dejeto, é aquilo<br />

que é expulso do campo do simbólico, criando uma marca, um rastro, um sulco.<br />

Eis o tripé que articula a noção de letra: litoral, sulco e rasura (MANDIL, 2003, p. 49).<br />

Não repetível, não generalizável, a letra é um conceito que permite a Lacan sofisticar a<br />

noção de real, sua importância para a clínica e o que ela tem de inaugural para cada<br />

sujeito e para cada analista que a essa experiência se lançam. Fortalece a noção de que<br />

há uma língua particular para cada sujeito que fala, lalíngua afetada por uma<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

significação pessoal a níveis inimagináveis (MILLER, 2003c). E orienta o método<br />

psicanalítico a buscar na singularidade dos sujeitos atendidos esses sulcos por eles<br />

lavrados.<br />

E no que toca a psicose? Sobremaneira, ao que diz respeito às estabilizações psicóticas,<br />

de que forma essas suversões lacanianas interferem e determinam nossa discussão?<br />

Como criação, letra e lalíngua podem se articular e nos auxiliar a pensar os casos que<br />

atendemos?<br />

2.2.3 Escrita e psicose<br />

A escrita é correntemente considerada uma possibilidade de estabilização, um modo de<br />

suplência aos casos de psicose, ainda que seja uma solução raramente encontrada na<br />

clínica. O estudo de Lacan sobre Joyce estimulou essa associação. O que, entretanto, a<br />

clínica com a psicose na verdade testemunha é uma variedade muito grande de relações<br />

entre a escrita e as soluções psicóticas.<br />

Essa noção atravessa vicissitudes conseqüentes ao próprio avanço da teoria lacaniana<br />

em seu conjunto. Segundo Sauvagnat (1999), Lacan trabalha a questão da escrita em<br />

toda sua obra, havendo ao menos três momentos em que uma nova proposição é por ele<br />

apresentada. A primeira é elaborada na década de 30, com seus estudos sobre a<br />

“esquizografia” como escrita inspirada. A segunda proposta aparece na década de 60,<br />

com a escrita a partir do traço unário, que teria que dar conta da inscrição do Nome-do-<br />

Pai. E, por fim, na década de 70, assistiríamos à escrita que faz nó entre Real, Simbólico<br />

e Imaginário, bem como ao que resiste a se escrever, à escrita de um impossível<br />

remetido à relação sexual. Sigamos essa trajetória.<br />

A. Anos 30: A psicopatologia e o elogio da escrita<br />

Lacan, na década de 30, hesita entre uma concepção estereotipada da escrita na psicose<br />

e outra na qual a escrita é exaltada em sua potência criativa e reveladora dos conflitos<br />

típicos de sua época. No texto “Écrits inspirés: schizographie”, de 1931 32 , publicado<br />

originalmente nos Annales medico-psychologiques, tomo II, e posteriormente<br />

incorporado à edição francesa de sua tese de doutoramento, Lacan (1932) comenta as<br />

32 O texto foi originalmente escrito e apresentado em conjunto com J. Levi-Valensi e P. Migault, e se<br />

encontra acessível pela Internet em diferentes endereços eletrônicos, como no site do Groupe de Travail<br />

Lutecium . Ele não foi incluído na<br />

edição brasileira da tese de doutoramento de Lacan.<br />

83


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

práticas poéticas e epistolares de uma professora primária psicótica. Ele se inspira nos<br />

trabalhos de lingüística pós-saussuriana de Pfersdorff e Henri Delacroix 33 sobre o<br />

mesmo caso. A razão do exame desse caso é a reticência da doença da qual se supõe que<br />

os transtornos elementares se exprimiriam mais facilmente pela escrita. O termo<br />

esquizografia é forjado do termo esquizofasia, que designa a existência de uma<br />

dissociação. Nesse caso, a maioria dos escritos da paciente era absurdamente incoerente,<br />

“contrastando com o caráter absolutamente normal de sua linguagem falada e a<br />

integridade de suas funções intelectuais” (HULAK, 2006, p. 18).<br />

A pesquisa de Lacan já se apresenta muito seletiva. Ele não se pergunta simplesmente<br />

se a paciente é louca, mas sobre quais fundamentos repousa seu delírio polimorfo,<br />

acrescentando que talvez os escritos ajudarão a resolver a questão.<br />

Na discussão dos elementos psicopatológicos, Lacan destaca que a doente afirma ser-lhe<br />

imposto o que ela exprime, não de uma maneira irresistível nem mesmo rigorosa, mas<br />

sob um modo já formulado. É no sentido forte do termo uma inspiração, tanto mais<br />

presente quanto mais ela esteja só (LACAN, 1932/1975). Duas convicções<br />

contraditórias são acrescentadas. De um lado, ela é acompanhada de um estado de<br />

astenia no qual seus escritos experimentam “verdades de ordem superior”<br />

imediatamente compreensíveis pelo destinatário de suas cartas. E, de outro lado, uma<br />

convicção negativa, a de que ela experimenta, quanto a ela própria, nada compreender<br />

disto. Tudo isso acompanhado do sentimento de fazer evoluir a língua.<br />

O conjunto, avalia Lacan, é idêntico à estrutura de todo delírio. Ela associa a uma<br />

astenia passional, colorindo os estados de influência e de interpretação, uma formulação<br />

minimal, reticente, do delírio, e um fundo paranóico. O fenômeno elementar aqui<br />

valendo como resumo da personalidade e a escrita, como sua manifestação<br />

empobrecida. O fenômeno elementar da ‘inspiração’ parece se tratar de uma forma<br />

vazia, cuja expressão limite é a estereotipia, aos moldes das palavras intercambiáveis<br />

das estrofes de uma canção. Longe de motivar a melodia, é a estereotipia que as<br />

sustenta, e legitima no caso seu não-sentido (LACAN, 1932/1975). Esta vacuidade<br />

formalista aparece em primeiro plano, enquanto a astenia passional lhe confere um<br />

assentimento, diz Lacan, donde o fenômeno da ‘inspiração’ apresentar uma dimensão<br />

33 PFERSDORFF. La schizophasie, les catégories du langage. Travaux de la clinique psych. de<br />

Strasbourg, 1927. Guilhem Teulié. La schizophasie. Ann. Médic. psych., février-mars 1931;<br />

PFERSDORFF. Contribution à l'étude des catégories du langage. L'interprétation "philologique", 1929; e<br />

DELACROIX. Le langage et la pensée, Alcan.<br />

84


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

passional e outra intelectual simultaneamente.<br />

Ainda que algumas fórmulas sejam felizes, o mais freqüente são as escórias da<br />

consciência, as palavras silábicas, as sonoridades obsedantes, as “banalidades”, as<br />

assonâncias, os “automatismos” diversos, enfim, o que Lacan sintetiza em uma palavra:<br />

estereotipia. A idéia de déficit se destaca nessa leitura. “É quando um pensamento é<br />

curto e pobre que o fenômeno automático o suplencia. Ele é sentido como exterior<br />

porque suplenciando um déficit do pensamento. Ele é julgado como válido porque<br />

evocado por uma emoção astênica” (LACAN, 1932/1975, p. 375).<br />

O interessante é que, num curtíssimo espaço de tempo, Lacan (1932/1987) parece<br />

passar dessa posição deficitária para seu contrário, positivando a escrita psicótica, que<br />

nada parecerá limitar. Assim, os escritos de Aimée – estudados em seu doutoramento –<br />

não mostrariam nenhuma estereotipia. Eles também foram utilizados como meio de<br />

realização do diagnóstico, mas colocavam em evidência a riqueza afetiva da paciente.<br />

“A escrita de certos psicóticos como criação autêntica parece, então, excluir o uso<br />

bruto da repetição (estereotipia): é uma ‘nova sintaxe’ ” (SAUVAGNAT, 1999, p. 40).<br />

Sua posição parece ficar ainda mais clara no ano seguinte, ao escrever “O problema do<br />

estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” (1933/1987) 34 .<br />

Ali Lacan localiza os temas ideacionais e os atos significativos do delírio dos<br />

paranóicos, bem como suas produções plásticas e poéticas sob três rubricas.<br />

Primeiramente, destaca “a significação eminentemente humana desses símbolos”<br />

(LACAN, 1933/1987, p. 379), utilizados pelos psicóticos, que seriam análogos às<br />

criações míticas, assim como os sentimentos que os animam seriam análogos à<br />

inspiração dos artistas. Sob um segundo aspecto estaria a repetição que, longe de<br />

reenviar a uma forma vazia e deficitária, colocaria em jogo uma “identificação iterativa<br />

do objeto”, caracterizando o delírio de uma fecundidade próxima à dos processos de<br />

criação poética. Por fim, num terceiro ponto, ‘o mais notável’, destaca o valor de<br />

realidade social desses delírios, situados, “com muita freqüência, num ponto nevrálgico<br />

das tensões sociais da atualidade histórica” (LACAN, 1933/1987, p. 379). O conjunto<br />

apresenta uma contribuição à civilização humana e ao problema do estilo, que este<br />

resumiria de alguma maneira.<br />

Um retorno ao contrário se apresenta aqui articulado na passagem da repetição do<br />

34 O texto foi publicado originalmente no número 01 da revista surrealista Le Minotaure, em junho de<br />

1933.<br />

85


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

mesmo – estigmatizada como estereotipia no primeiro caso – para a amplitude criativa<br />

do processo psicótico, presente no caso Aimée. Fato é que nesse período o centro do<br />

processo de criação está situado, para Lacan, na escrita dos paranóicos. Não percamos<br />

esta assertiva de vista.<br />

B. Anos 60: A escrita do Nome-do-Pai<br />

Na década de 60, uma nova reversão se opera. É, ao contrário, o Nome-do-Pai que<br />

resume sozinho o processo de escrita. A partir de seus trabalhos sobre a instância da<br />

letra, Lacan tenta apreender o movimento do recalcamento originário. Ele coloca em<br />

discussão a hipótese de W.M. Flinders Petrie, retomada por J. Février, a propósito da<br />

escrita fenícia, pois considera que ela justifica sua, então, concepção de traço unário,<br />

cuja falha deixaria o sujeito presa do significante no real. Como podemos ver na aula de<br />

10/01/1962, do Seminário A Identificação (LACAN, 1961-62), a função da escrita aqui<br />

converge sobre a função da nominação e se deixa identificar à aplicação do Nome-do-<br />

Pai. Perguntando-se sobre o que é um nome, Lacan mostra que essa noção é mais<br />

apropriada para designar o primordial do que é um sujeito que o termo identificação.<br />

Também mostra que os nomes são heterônomos, na medida em que resultam de uma<br />

nominação pelo Outro.<br />

Ao discutir a contribuição de dois célebres pesquisadores britânicos ao tema, o filósofo<br />

B. Russell e o egiptólogo Gardiner, Lacan critica a ambos. O primeiro, por ficar muito<br />

focalizado no aspecto denotativo, e o secundo, por considerar os nomes puramente<br />

fonéticos, ainda que localizasse no nome algo de não traduzível. Lacan assenta-se sobre<br />

a teoria de Petrie e Février que demonstraram não poder o alfabeto fenício originário<br />

simplesmente derivar de uma simplificação dos hieróglifos ou de um mecanismo<br />

referencial, mas antes dever ter sido composto com a utilização de símbolos sem<br />

nenhuma significação, utilizados inicialmente para classificar os objetos. As<br />

significações seriam, então, apagadas para formar um conjunto de elementos<br />

diferenciais.<br />

Lacan considera, nessa lição, que o movimento originário da escrita consiste em impor<br />

sobre a linguagem vocalizada uma bateria de traços de origem externa. Esta seria a<br />

especificidade da escrita: a criação de um conjunto de elementos diferenciais impostos<br />

sem nenhuma significação na linguagem humana, permitindo este ato, no retorno,<br />

86


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

exprimir a estrutura fonética da linguagem. O fenômeno da escrita consistiria, nesse<br />

caso, no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de significantes – o que<br />

Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização de uma castração<br />

‘positiva’, permitindo ao sujeito adquirir uma certa identificação pelo abandono de uma<br />

relação direta com o objeto originário.<br />

Nós teríamos, então, um curioso movimento no qual um tema que estava no início<br />

ligado à subjetividade psicótica, e notadamente em alguns de seus modos de repetição,<br />

se torna uma característica da ‘castração simbólica’ do neurótico, enquanto realização<br />

pela escrita da metáfora do Nome-do-Pai.<br />

“O avanço teórico que ele provoca é o seguinte: o ‘Nome-do-Pai’ não é mais um<br />

significante ideal que estabiliza o universo para o sujeito, mas um ato, uma enunciação<br />

originária, uma “Urverdrängung” pela qual uma renúncia ao objeto alienante permite ao<br />

sujeito existir como separado, tanto que tudo o que o sujeito pode manifestar<br />

posteriormente não fará senão reenviar a esta “Urverdrängung” (SAUVAGNAT, 1999, p.<br />

41).<br />

O coração do sujeito, sua nominação primária, repousará assim sobre uma escrita que<br />

não é para ser decifrada, em uma oposição notável ao inconsciente freudiano colocado<br />

como sendo para ser decifrado. No texto “Posição do Inconsciente” (1964 [1960]/1998),<br />

Lacan coloca a metáfora do Nome-do-Pai no princípio da separação, reenviando este<br />

significante (Nome-do-Pai) ao que o promove, a saber, o objeto causa do desejo, o<br />

objeto a. Ainda que fora do campo da psicose, a escrita comparece como cifra que faz<br />

inscrição. E, mesmo que reenviando ao Nome-do-Pai, acena para o objeto a e aponta<br />

para a operação subjetiva de separação do Outro. Forja, pois, para nós, elementos<br />

cruciais à discussão da criação na psicose, no sentido daquilo que nela pode operar<br />

enquanto escrita na estabilização.<br />

C. Anos 70: A escrita como nó<br />

A terceira consideração da escrita em Lacan responde, de alguma maneira, ao que se<br />

apresenta como falha onde surgem os fenômenos elementares. É um tipo de solução<br />

inversa à que, até então, se apresenta. As diferentes versões de enodamento possíveis<br />

conduzem a considerar que nem um, o Nome-do-Pai, nem outro, o objeto causa do<br />

desejo, são indispensáveis para colocar em jogo um nó que tenha consistência suficiente<br />

para amarrar um sujeito, pois nem um nem outro dizem nada de tão sólido.<br />

A partir de 1973, Lacan não se contenta mais em examinar a questão da escrita a partir<br />

87


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

das “pequenas letras da ciência”. O próprio ideal de transmissão integral pelos matemas,<br />

cuja escrita exige a língua para sua tradução, esbarra na ex-sistência, no que não se pode<br />

dizer todo. O que é tomado como inconsistência do Outro – Σ(%) – conduz Lacan a<br />

estabelecer as relações entre Imaginário (corpo), Real (pulsão) e Simbólico<br />

(linguagem), orientadas pela discussão do que as amarra. É na aula de 15/05/73 do<br />

Seminário 20, Mais, ainda (1972-73/1982), que ele explicará o uso do nó como escrita.<br />

Ele tenta responder a uma questão colocada por Aristóteles, a de que o homem pensa<br />

com sua alma, interrogando a relação entre a articulação da linguagem e o que faz<br />

substância do pensamento, quer dizer, o gozo. A solução borromeana se assenta sobre<br />

essa resposta: “eu te peço que recuses o que te ofereço, porque não é isso”. “Não é isso<br />

quer dizer que, no desejo de todo pedido, na há senão a requerência do objeto a, do<br />

objeto que viria satisfazer o gozo” (LACAN, 1972-73/1982, p. 171). É o que mostra a<br />

dobra na roda de barbante ao evidenciar a reciprocidade entre sujeito e objeto a.<br />

Cada um dos quatro verbos em jogo na frase (já discutida desde o Seminário XIX Ou<br />

pire) relaciona-se dois a dois, comportando em seu centro o “não é isso”, equivalente ao<br />

objeto a. A frase comporta, assim, uma relação de amarração que já evidencia a<br />

estrutura borromeana, com a causa de desejo em seu ponto central. A escrita do nó<br />

formaliza e bloqueia o mais-de-gozar, e não o objeto pulsional que na gramática binária<br />

do sistema significante estava em jogo. Na passagem de dois para três, do sistema<br />

binário para o nó borromeu, a perspectiva se desloca. A voz pulsional se encontra<br />

encoberta. O nó se torna uma espécie de máscara que filtra a voz e oferece também um<br />

olhar necessário para fazer barra à consistência do Outro (DE LOGIVIÈRE, 1987).<br />

O objeto a comparece como aquilo que supõe de vazio um pedido e que só pela<br />

metonímia pode evidenciar o desejo, que nenhum ser suporta. Para o ser falante, a causa<br />

do desejo é, quanto à estrutura, estritamente equivalente à divisão do sujeito. Lacan<br />

hipotetiza que o sujeito representaria para si objetos inanimados em função da ausência<br />

da relação sexual. Seria de maneira a-sexuada que o objeto e o Outro se apresentariam<br />

para o sujeito. Seria enquanto substitutos do Outro que os objetos seriam reclamados e<br />

se fariam causa do desejo. “Um desejo sem outra substância que não a que se garante<br />

pelos próprios nós” (LACAN, 1972-73/1982, p. 171).<br />

O ponto central é o fato de a copulação ser excluída de seu espaço de representação.<br />

Essa exclusão assumida vem realmente cobrir uma ausência central concernente ao<br />

88


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Outro do gozo. O que está em jogo na escrita dos nós, para Lacan, é a tentativa de forjar<br />

um substituto a este Outro faltoso, a partir dos nós que representam todos um. “Será<br />

que isto esclarece para vocês sobre o interesse que há em se partir da rodinha de<br />

barbante? A dita rodinha é certamente a mais eminente representação do Um, no<br />

sentido em que ela encerra apenas um furo” (LACAN, 1972-73/1982, p. 172-73).<br />

O furo coloca a questão do espaço e ensaia um novo estatuto para a escrita. Se o que<br />

corta a linha é o ponto, e o ponto tem zero dimensão, a linha será definida como tendo<br />

uma. Por seu turno, a linha corta a superfície, que se define de duas dimensões. E, como<br />

a superfície corta o espaço, este terá três dimensões. Donde poderíamos extrair uma<br />

primeira diferença da escrita, já que realizada no espaço tridimensional.<br />

O espaço “lacaniano”, entretanto, rompe com o espaço euclidiano. Lacan busca as<br />

relações de vizinhança, as continuidades, numa leitura do espaço que acolha a topologia<br />

singular do sujeito do inconsciente. Ao cortar o espaço a linha faz um furo, separa um<br />

interior de um exterior. Mas, em se tratando do sujeito do inconsciente, esse corte se<br />

efetiva numa Banda de Moebius que instala uma relação de continuidade entre interior e<br />

exterior. Daí podermos dizer que a linha será tomada como um toro, e será de toros que<br />

se comporá, então, o nó, por mais simples que ele seja.<br />

Assim, a escrita, definida como aquilo que deixa de traço a linguagem, tem a ver com o<br />

nó borromeano. Lacan retoma sua definição da escrita como traço onde se lê um efeito<br />

de linguagem, apresentada em “Lituraterra”. Aqui, porém, a linha desse traço mergulha<br />

no espaço dimensionado pelo inconsciente. O que isso implica, senão que há algo que a<br />

letra sozinha não alcança?<br />

Avançando sobre as aporias internas a seu próprio discurso, Lacan se distancia cada vez<br />

mais de um modelo explicativo característico das ciências para um modelo mostrativo,<br />

típico da matemática 35 . Como ele mesmo afirma em “O aturdito” (LACAN, 1972/2003,<br />

p. 479), “Minha topologia não é de uma substância que situe além do real aquilo que<br />

motiva uma prática. Não é teoria. Mas ela deve dar conta de que haja cortes do<br />

discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente”.<br />

Lacan chega à redução topológica pela clínica e é nela que pretende aplicar sua escrita.<br />

Seja pela via do mal-estar entre os sexos, explorado no Seminário 20, seja pela via da<br />

psicose. Ao oferecer um exemplo que mostre para que serve a fileira de nós dobrados,<br />

35 Cf. discussão sobre mostração na seção 3.1. desta tese.<br />

89


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

recorre ao caso Schreber, com suas frases interrompidas. “Estas frases interrompidas,<br />

que chamei mensagens de código, deixam em suspenso não sei que substância.<br />

Percebe-se aí a exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que um de<br />

seus elos, por faltar, libera todos os outros, ou seja, lhes retira o Um” (LACAN, 1972-<br />

73/1982, p. 173). O corte de uma das rodelas, que deixaria as outras duas livres,<br />

evidenciaria o desencadeamento psicótico com seus fenômenos elementares. Não<br />

subsiste o furo central do nó. A articulação dos gozos sustentada pelo nó se desfaz e<br />

deixa o gozo inarticulado para o sujeito. A substância do gozo, aqui efeito da amarração<br />

borromeana, perde-se.<br />

Também no seminário seguinte Les non-dupes errent (1973-74), Lacan faz alusão ao nó<br />

na neurose, a partir do caso do pequeno Hans. Na sessão de 11/12/1973, ele retoma o<br />

caso, considerando-o como um precursor de suas elaborações sobre os nós na medida<br />

em que os circuitos, os trajetos geográficos, que a fobia de Hans exige, implicam<br />

diferentes tentativas de enodamento que ora privilegiam o imaginário, ora o simbólico,<br />

ora o real 36 , ainda que se tratando de um enlace dos três em cada caso. Ele opõe o nó<br />

olímpico, que não se desfaz se uma das rodelas é cortada, ao nó borromeano, cujo<br />

princípio é o de se desfazer justamente nesse caso. Ele considerava, nessa lição, que os<br />

neuróticos funcionavam no nó olímpico.<br />

Fig. 01 - Nó olímpico<br />

36 Trata-se de três trajetos: 1. os pequenos circuitos que realiza, seja de metrô, seja de carroça, com sua<br />

mãe, na dependência de seu desejo, onde aparece a problemática fálica como fora do corpo, cujo<br />

resultado é seu sintoma fóbico com os cavalos; 2. o grande circuito, que realiza com seu pai, para o<br />

zoológico ou para a casa de sua avó, e que relança o desejo de Hans, estando centrado no simbólico; 3. o<br />

circuito especial, que constitui uma escapada que religa de maneira nova o zoológico e a casa da avó.<br />

Neste o pai é convocado como pai real, transgressor da lei, aparecendo a figura do bombeiro e o convite<br />

de Hans para que seu pai despose sua própria mãe (a avó de Hans). Nesse circuito, Anna, sua irmã,<br />

comparece como portadora do gozo feminino ou do gozo do Outro, cujo retorno atípico coloca em<br />

questão a restauração da figura paterna pelo viés da identificação. Trata-se da père-version que Hans<br />

constrói ao final de seu ‘tratamento’ e que, como bom neurótico, localiza o pai como exceção, na medida<br />

em que sustenta uma mulher como causa de seu desejo, enquanto Anna estará “sempre lá”, além da mãe<br />

em si mesma, encarnando o gozo suplementar feminino (SAUVAGNAT, 1999).<br />

90


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 02 - Nó borromeano de três elementos<br />

A escrita aqui é o que deve servir para fixar o objeto causa do desejo. Trata-se de cerzir<br />

o objeto a. Na medida em que o sujeito se define em relação ao objeto, a questão que se<br />

coloca é como ele vai fixar esse objeto que, no nó, se localiza no entrecruzamento dos<br />

três registros.<br />

Figura 03 – Triske com objeto a<br />

Essa operação não somente permitirá o apagamento do objeto voz, interiorizado a partir<br />

de então, como também vai fazer existir um sujeito a partir do bloqueio, da amarração<br />

do objeto. Isso se faz a partir das três linhas (real, simbólico e imaginário) que<br />

bloqueiam o objeto no nó. O sujeito é fundamentalmente algo que existe com o objeto<br />

(mas não é o objeto total, nem permanente, é o objeto com que o sujeito vai se separar<br />

do Outro). Esse objeto sustenta a não medida comum entre os sexos. O sujeito vai<br />

existir a partir desse objeto que se separa do Outro. Aqui se trata de fabricar um objeto e<br />

lhe conferir uma consistência. É o que Lacan aponta como erro em Joyce (LACAN,<br />

1975-76/2005), e que discutiremos mais adiante. Ali, ao se entrecruzar Simbólico com<br />

Real, o Imaginário resta solto e é o ego, ou a obra, de Joyce que virá fazer suplência ao<br />

que se amarra mal no caso.<br />

É a esse convite de Lacan para operarmos com essa escrita que, da substância do gozo,<br />

91


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

faz amarração, faz nó, que respondemos com esta tese. Como pensar a escrita do nó nas<br />

psicoses? Como fazer dela um uso clínico, retornando ao que lhe deu causa? Quando<br />

Lacan apresenta o fenômeno das frases interrompidas em Schreber remetido à escrita do<br />

nó, e não mais aos fenômenos de código e de mensagem, ele localiza ali o<br />

desencadeamento provocado por uma desamarração, ou seja, pelo fato de que alguma<br />

coisa, na escrita do sujeito, não será mais capaz de suplenciar a inexistência do gozo do<br />

Outro. Quais as conseqüências que podemos extrair dessa escrita? Para avançarmos,<br />

será necessária uma breve interpolação sobre a teoria dos gozos em Lacan a fim de que<br />

possamos assinalar, nessa escrita, sua contribuição ao trabalho de estabilização<br />

psicótico.<br />

2.3 Gozo: da Satisfação à Topologia<br />

Com Valas (2001, p. 07), lembramos que Lacan (1969-70/1992), no Seminário 17, O<br />

Avesso da Psicanálise, desejava que o campo do gozo fosse chamado de campo<br />

lacaniano. Lacan utilizou o termo, nos primeiros anos de seu ensino, tal qual Freud o<br />

fazia com Lust, enquanto sinônimo de alegria, prazer, êxtase e volúpia. O caráter<br />

excessivo do prazer, conotado ao júbilo mórbido ou ao horror, era tomado por Freud<br />

pelo termo Genuss. Este não conceituou o gozo, ainda que tenha delimitado seu campo<br />

pelo mais-além do princípio do prazer, regulador do aparelho psíquico.<br />

Para Lacan, prazer e gozo se opõem. O gozo é um conceito que, com ele, ganhou<br />

diferentes vicissitudes, assim como em Freud a teoria da pulsão e a libido. Alguns<br />

autores formalizaram essa discussão no ensino lacaniano (MILLER, 2005; VALAS,<br />

2001), que ganhou recentemente uma sistematização mais objetiva com J.-A. Miller<br />

(2000). Para o autor, cujo esforço de tradução do texto lacaniano o conduz a uma<br />

análise constante de sua obra, teríamos seis paradigmas do gozo em Lacan. Esses<br />

paradigmas, longe de se sucederem cronologicamente, como numa espécie de evolução<br />

teórico-conceitual, podem conviver, não sem conflitos, nos mesmos períodos de<br />

transmissão.<br />

Aqui nos interessa menos essa discussão do conceito ao longo da obra que acentuar as<br />

relações entre topologia borromeana e gozo. Para esse fim, partiremos de uma<br />

apresentação sucinta desses paradigmas, para nos concentrarmos na seguinte questão<br />

clínica: como se apresenta, a partir da teoria borromeana, o tratamento do gozo? Lacan<br />

92


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

teria introduzido alguma via de trabalho a partir daí? Como pensar essa via na clínica<br />

com a psicose, a partir do trabalho de estabilização?<br />

2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan 37<br />

Para discutir os paradigmas, elegemos três aspectos:<br />

1. a relação do gozo com os três registros;<br />

2. a relação do gozo com a satisfação (e, portanto, com a libido e a pulsão);<br />

3. e as aporias de cada paradigma, ou seja, seus pontos de impasse.<br />

O primeiro paradigma, o da imaginarização do gozo, acentua a disjunção entre<br />

significante e gozo, localiza a satisfação na liberação do sentido e apresenta tanto a<br />

libido quanto o gozo num estatuto imaginário, não procedendo da linguagem ou da<br />

palavra. O eixo imaginário é apresentado por Lacan como fazendo barreira ao eixo<br />

simbólico, como obstáculo à elaboração simbólica de tal forma que “é quando a cadeia<br />

simbólica se rompe que, a partir do imaginário, os objetos, os produtos, os efeitos de<br />

gozo proliferam” (MILLER, 2000, p. 89). O equívoco desse paradigma é lógico, na<br />

medida em que o Imaginário é colocado ao mesmo tempo como fora e como dentro do<br />

alcance simbólico.<br />

No segundo paradigma, o da significantização do gozo, o simbólico sobrepõe-se ao<br />

imaginário. Vemos a consistência e a articulação simbólica do que é imaginário<br />

aparecer, quanto ao gozo, na identificação das pulsões estruturadas em termos de<br />

linguagem. Elas aqui são capazes de metonímia, de substituição e de combinação. O<br />

matema da pulsão permite localizar o desejo pela via da demanda do ou ao Outro (∃<br />

D), o que fortalece sua dimensão simbólica. Além disso, encontraríamos no fantasma (∃<br />

∀) o ponto em que libido e simbólico se articulariam, sendo ele o ponto de estofo<br />

entre os registros imaginário e simbólico. O falo concentraria as articulações<br />

importantes desse paradigma, demarcando que a própria libido é inscrita no significante.<br />

Lacan não responde qual seria a satisfação da pulsão, dado que ela é reduzida a uma<br />

cadeia significante, o que faz com que ela seja sempre dita em termos simbólicos. O<br />

gozo está repartido entre o desejo e o fantasma. “O significante anula o gozo e o restitui<br />

sob a forma de desejo significado” (MILLER, 2000, p. 90). Seu impasse: o gozo seria<br />

37 Nesse tópico, acompanhamos a lógica de Miller (2000) no artigo de mesmo título, recorrendo ao texto<br />

lacaniano na medida da necessidade, dado que não buscamos uma exploração do conceito, mas antes uma<br />

localização deste para alcançarmos sua proposição ao final do ensino lacaniano.<br />

93


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

todo simbólico, quando, na verdade, o próprio objeto a veicula o que está fora da<br />

possibilidade de representação.<br />

No terceiro paradigma, teríamos uma ruptura em relação aos dois antecessores, que se<br />

misturam na obra de Lacan. Seu ponto de virada teria sido o Seminário 7, A Ética da<br />

Psicanálise (LACAN, 1959-60/1991), no qual encontramos o gozo como impossível. A<br />

partir da discussão da Coisa freudiana – que não se trata de um termo simbólico, nem<br />

tão pouco de uma instância imaginária –, Lacan localizaria a satisfação pulsional, a<br />

Befriedigung, na ordem do real. Na verdade essas duas instâncias, simbólicas e<br />

imaginárias, seriam construídas contra o gozo real. Como a Coisa está situada como<br />

equivalente à anulação que constitui a castração, o gozo se encontra reduzido a um lugar<br />

vazio, podendo, assim, ser equivalido ao sujeito barrado. Ele estaria fora do sistema,<br />

sendo alcançado apenas pela transgressão. A disjunção entre significante e gozo<br />

reaparece aqui, com a diferença de que o gozo é real. A oposição prazer-gozo é central,<br />

e advém do fato de que a libido, enquanto Coisa, está fora da ordem significante-<br />

significado; de um lado, o bem e o engodo, de outro, o mal e o real. O impasse está<br />

colocado na medida em que o inconsciente não inclui esse gozo como fora da<br />

simbolização. Disso ele não pode falar. “No nível do inconsciente o sujeito mente. E<br />

essa mentira é sua maneira de dizer a verdade acerca disso” (LACAN, 1959-60/1991,<br />

p. 94). O sintoma, nessa lógica, se estabelece sobre a barreira que separa significante e<br />

gozo, desvelando a desarmonia entre gozo e sujeito. A saída desse impasse é a<br />

formulação do objeto a, na medida em que a Coisa, como gozo maciço, não permite<br />

nenhum laço com o Outro.<br />

No quarto paradigma, o do gozo normal ou do gozo fragmentado, o projeto intentado no<br />

segundo paradigma é retomado, mas se conclui de maneira diferente a partir da<br />

introdução do objeto a. Miller localiza no Seminário 11, Os Quatro Conceitos<br />

Fundamentas da Psicanálise (LACAN, 1964/1998), essa retomada do projeto<br />

‘simbólico’ para o gozo. O gozo não é mais maciço, abissal, acessado pela transgressão<br />

como no Seminário 7. Encontramos objetos pequeno a que se situam, ao contrário, em<br />

pequenas cavidades e cujo acesso, ‘normalizado’, se faz pelo mecanismo da separação<br />

(em relação à alienação) 38 . Da clivagem do significante e do gozo, vemos nascer uma<br />

38 Como vimos, alienação e separação são, para Lacan, duas operações fundamentais na constituição do<br />

sujeito a partir do campo do Outro. A alienação diz respeito à “primeira operação essencial em que se<br />

funda o sujeito [...] Ela consiste nesse vel que [...] condena o sujeito a só aparecer nessa divisão, [...] de<br />

um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise” (LACAN,<br />

94


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

aliança entre eles. O gozo, então, não é mais um suplemento, mas parte de um sistema<br />

de funcionamento significante, sendo-lhe conexo. A separação comporta um<br />

funcionamento ‘normal’ da pulsão, que responde ao vazio resultante da identificação e<br />

do recalque. A estrutura do sujeito aparece sobreposta à do gozo. A libido aqui não é<br />

mais desejo significado, nem das Ding, mas órgão, objeto perdido e matriz de todos os<br />

objetos perdidos. Eis aqui também a aporia desse paradigma: o objeto perdido é uma<br />

perda independente do significante, uma perda natural, dissociada do sujeito<br />

significante porque associada ao corpo vivo, sexuado. O gozo, portanto, é distribuído<br />

sob a figura do objeto a, ainda que articulado como parte do sistema significante. É esse<br />

o ponto no qual o segundo paradigma é retomado. A significantização do gozo é<br />

reintroduzida pelo objeto a, que substitui a noção de significante de gozo. Sobretudo no<br />

Congresso de Bonneval 39 , cujo texto foi posteriormente retomado, Lacan se esforça por<br />

manter o gozo no registro significante-significado, sobretudo com a distinção do falo<br />

em menos phi (-φ = significação) e grande phi (Ф = significante) 40 , sem deixar de<br />

apontar que o gozo falta no Outro. Essa formalização também serve a uma outra forma<br />

de escrever o que resta como gozo impossível, fora da simbolização, quando a libido é<br />

retranscrita em termos de desejo (morto). Esse resto aparece, então, sob a forma<br />

significante grande phi.<br />

No paradigma do gozo discursivo, o quinto, saber e gozo, ou significante e gozo,<br />

passam a ter uma relação primária, originária. O Seminário 17, O Avesso da<br />

Psicanálise, aparece fundando uma ruptura com o que o antecede, deslocando o<br />

fantasma em prol da repetição do gozo e estabelecendo, contra a autonomia do<br />

simbólico, uma relação de causa e efeito entre significante e gozo, este causa e resto<br />

daquele. O ser prévio ao funcionamento do sistema significante é um ser de gozo, donde<br />

Lacan localizar no gozo o ponto de inserção do aparelho significante: “nada é mais<br />

candente do que aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo. O discurso toca nisso<br />

sem cessar, posto que é dali que ele se origina” (LACAN, 1969-70/1992, p. 66). O<br />

1964/1998, p. 199). Enquanto a alienação aparece como operação de reunião entre os campos do sujeito e<br />

do Outro, a separação se funda na interseção dos campos, que surge do recobrimento de duas faltas. A<br />

primeira diz respeito ao fato de que o sujeito não pode ser inteiramente representado no Outro, e a<br />

segunda, constituído o sujeito, refere-se ao que resta implicado tanto no sujeito quanto no Outro, sendo<br />

neste ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito (LACAN, 1964/1998, p. 207).<br />

39 Trata-se do texto ”Posição do Inconsciente” (LACAN, 1960[1964]/1998), apresentado em Bonneval<br />

em 1960 e retomado por Lacan em 1964.<br />

40 Sobre essa distinção, ver também Seminário 8, A transferência, Cap. XVII, p. 233-245 (LACAN, 1960-<br />

61/1992).<br />

95


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

significante é aparelho de gozo, seja como mortificação, perda de gozo<br />

significantizada 41 (e não mais natural), seja como suplemento da perda de gozo, objeto a<br />

como mais de gozar. Aqui não há transgressão, mas repetição significante, que implica<br />

repetição de gozo, condicionada pela defasagem entre a perda e seu suplemento. O<br />

impasse se coloca em relação ao final da análise. Pensar a relação entre sujeito e gozo –<br />

orientação para o fim da análise – em termos de repetição, é diferente de pensá-la em<br />

termos de fantasia. Atravessar a tela da fantasia implica uma variação da transgressão,<br />

na direção da destituição do sujeito e da assunção do ser de gozo, esperando-se um<br />

efeito de verdade. Sob a insígnia da repetição, um dos nomes do sintoma e do gozo,<br />

temos uma constante que se prolonga, vemos o desenvolvimento de uma relação<br />

temporal do sintoma com o gozo. A questão se coloca para o fim da análse nos<br />

seguintes termos: “Trata-se de um basta na repetição ou de um novo uso dela?”<br />

(MILLER, 2000, p. 100).<br />

O gozo como mais de gozar, diferente do gozo como das Ding ou como objeto a,<br />

amplifica a lista dos objetos a. Com efeito, uma divisão cada vez mais presente entre<br />

corpo e gozo produz um corte entre libido e natureza. A relação de causa e efeito entre<br />

gozo e significante, presente no paradigma anterior, é substituída pela idéia de relação,<br />

de circularidade entre os termos nesse paradigma. O que já coloca os três registros em<br />

relação.<br />

Finalmente o sexto paradigma, localizado no Seminário 20, Mais, Ainda, leva a termo o<br />

projeto iniciado no quinto e aponta uma revolução interna ao próprio pensamento<br />

lacaniano. Trata-se de um paradigma orientado pela disjunção e, em sua radicalidade,<br />

pela não-relação. Toma o gozo como fato e lalíngua como originária em relação à<br />

linguagem. Sob a forma do gozo do blá-blá-blá, Lacan propõe uma aliança entre gozo,<br />

palavra e lalíngua, oriunda da disjunção entre termos cruciais de sua teoria: significante<br />

e significado, gozo e Outro, homem e mulher (a relação sexual não existe). O Outro, o<br />

Nome-do-Pai e o falo, antes termos primordiais, tornam-se aqui conectores. Eles<br />

passam a ter uma função de grampo de elementos disjuntos. A não-relação limita a idéia<br />

de estrutura, assentada sobre a lógica da relação entre termos e lugares. Ao apontar essa<br />

não-relação originária, até mesmo a estrutura aparece como suplemento, tentativa débil<br />

de articular o inarticulável. Quanto ao gozo, ele aparece como gozo do corpo vivo,<br />

41 O que Lacan chamou, recorrendo à termodinâmica, de entropia.<br />

96


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

disjunto do Outro, por isso, gozo Uno. Ele aparece como gozo solitário do próprio<br />

corpo, como gozo fálico e como gozo da palavra - feita para gozar e não exatamente<br />

para comunicar.<br />

Na medida em que implica um gozo disjunto do Outro, ele problematiza, pelo avesso, o<br />

gozo do Outro, se é que ele exista... Enquanto o gozo do Um é real, o gozo do Outro<br />

aparece como construção problemática, pois se trata do gozo sexual, do gozo de um<br />

Outro corpo diferentemente sexuado. Em referência ao significante, o Outro é o Outro<br />

do código, lugar do significante. Em relação ao gozo, o Outro é o Outro sexo. Se a<br />

estrutura desnaturalizava o mundo, ela mesma era naturalizada, estava fora de questão.<br />

Quando o Outro aparece como derivado, essa derivação recoloca o próprio<br />

estruturalismo, pois inclui a fabricação da estrutura como problema. Eis a aporia deste<br />

paradigma. “Seu limite aparece, aqui, no gozo sexual do Outro como ser sexuado,<br />

porque existe, aí, uma relação voltada para a contingência, o encontro, uma relação<br />

subtraída da necessidade” (MILLER, 2000, p. 104). Está, pois, aberto o lugar para a<br />

invenção, para algo de novo que, se por um lado não nega a estrutura, por outro<br />

examina as conseqüências de seus furos.<br />

2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente<br />

Sabemos que Lacan irá dar continuidade a essa discussão sobre os gozos em seus<br />

últimos seminários, avançando sobre a topologia borromeana. Posta a reviravolta<br />

operada no Seminário 20, ele cada vez mais recorrerá aos nós para evidenciar a<br />

determinação do real na clínica psicanalítica. O que teria feito com que Miller não<br />

considerasse a inserção dos gozos na topologia borromeana como mais um paradigma?<br />

Estaria esse paradigma submerso no sexto? No da não-relação? Não haveria mais<br />

nenhum rompimento colocado para a teoria do gozos a partir do Seminário 20?<br />

Nos diferentes verbetes de psicanálise (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 299-301;<br />

CHEMAMA, 1995, p. 90-94; KAUFMANN, 1996, p. 221-224), encontramos sempre o<br />

gozo discutido a partir da noção freudiana de pulsão, extraída de Freud. O trabalho de<br />

Lacan daí decorrente é sempre apresentado em dois tempos, ancorados sobretudo no<br />

Seminário 7 e no Seminário 20. Um primeiro tempo se organizaria pela via que articula<br />

o gozo à idéia de transgressão e de prazer sexual no corpo, sendo ele um componente<br />

estrutural do sujeito. E num segundo tempo, a ausência de um significante sexual,<br />

97


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

expressa na fórmula ‘não há relação sexual’, conduziria Lacan, a partir das fórmulas da<br />

sexuação, a estabelecer um gozo disjunto do Outro e a propor o gozo fálico no campo<br />

masculino e o gozo dividido em gozo suplementar (Outro gozo) e gozo fálico no campo<br />

feminino. Valas (2001), por seu turno, escreve um livro sobre as dimensões do gozo,<br />

reunindo de maneira esquemática o estado da teoria de Lacan até o Seminário 20 de<br />

maneira bastante clara, explicitando cada um de seus elementos.<br />

Figura 04 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan (VALAS, 2001, p. 36)<br />

Ele define, a partir de Lacan, o gozo do Outro como gozo originário, o que está na<br />

Coisa, apresentado como gozo do pai freudiano da horda primeva. Esse gozo só teria<br />

sentido pela ação retroativa do significante (S1) que barra seu acesso ao sujeito. O gozo<br />

fálico, por seu turno, seria o “gozo que resulta da sua codificação pelo significante e<br />

assume a sua significação fálica no Édipo” (VALAS, 2001, p. 36). O objeto a<br />

implicaria no resto de gozo que escapa ao processo de significantização, sendo por ele<br />

produzido como um excedente, mais de gozo. Por fim, o gozo feminino seria<br />

enigmático por excelência, na medida em que não seria tomado na linguagem.<br />

De qualquer maneira, esses textos apontam para a topologia, mas não desenvolvem a<br />

teoria dos gozos a partir desse referencial. Até mesmo Valas (2001) explica<br />

sucintamente a figura 05 na qual Lacan dispõe os três gozos, cujo ponto de bloqueio é o<br />

objeto a, dizendo que com ele Lacan avança na elaboração dos gozos, dando um passo<br />

novo ao falar da deriva do gozo. Aí, para Valas, Lacan nos conduz do mito da pulsão ao<br />

real do gozo. Kaufmann também “deduz que esse saber que não se sabe, que está no<br />

98


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

real, pode, no entanto, resultar desse traço escrito e através disso ter acesso a uma<br />

possibilidade de objetivação. Esse é o móbil que engaja Lacan na escrita topológica da<br />

nodalidade” (KAUFMANN, 1996, p. 224). Encontramos novamente associada a escrita<br />

do traço à topologia.<br />

Bom, de que forma Lacan dá um tratamento aos gozos pela topologia? Veremos que,<br />

dois seminários depois do Seminário Mais, Ainda, Lacan (1974-75) estabelecerá os<br />

gozos a partir de suas relações tópicas entre os registros Real, Simbólico e Imaginário.<br />

Localiza os gozos na ex-sistência de um registro em relação ao outro, no que equivaleria<br />

a uma espécie de intersecção por fora, exatamente no ponto em que a tensão entre cada<br />

dois registros provoca um mal-estar ao avançar um sobre o outro. E desenvolverá em<br />

seguida, no seminário sobre Joyce (1975-76/2005), o impasse apresentado no Seminário<br />

20: há gozo do Outro?<br />

Ora, qual o destino clínico dessa questão? O que a topologia trouxe para a teorização do<br />

gozo? Como toda essa discussão pode contribuir com a questão da estabilização na<br />

psicose pela via da criação?<br />

No Seminário XXI, Les non-dupes errent (1973-74), na aula de 12/03/74, Lacan retoma<br />

a definição do corpo como substância gozante, mas a articula ao Real que, no fim das<br />

contas, diz ele, não é senão isso, a história dos nós. Ele começa tratando os nós como<br />

nós metafóricos, diferente do que postulará no seminário seguinte ao dizer que o nó é<br />

real, e não um modelo ou uma representação. Tanto que os únicos que gozam desse real<br />

são os matemáticos, ainda que o gozo faça irrupção no real para todos. A redução real<br />

ao nó aparece como escrita e é o próprio nó borromeano que materializa esta referência<br />

à escrita, como se vê na aula de 21/05/74: “O nó borromeano não é, na ocasião, senão<br />

modo de escrita” (LACAN, 1973-74).<br />

O nó como escrita incide sobre o gozo articulando uma maneira de conectar suas<br />

diferentes manifestações no falasser. Como já falamos, elementos cruciais para se<br />

pensar as estruturas clínicas na década de 50, como o Nome-do-Pai e o falo, servirão, na<br />

década de 70, para articular soluções singulares que fogem a uma possível regra geral<br />

de domesticação do gozo. Para podermos destacar essa mudança de perspectiva, será<br />

necessário percorrer a noção de ex-sistência, discutir o estatuto topológico do gozo do<br />

Outro, e tomar com precisão a noção de escrita a fim de alcançarmos a novidade clínica<br />

quanto ao gozo introduzida por Lacan com a topologia borromeana.<br />

99


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Logo na primeira aula do Seminário RSI (1974-75, aula de 10/12/74), Lacan nos<br />

apresenta o desenho do nó borromeu com os gozos (gozo fálico, gozo do sentido e gozo<br />

do Outro), os registros (Real, Simbólico e Imaginário) e as manifestações clínicas que<br />

embaraçam os sujeitos (inibição, angústia e sintoma). Como se pode observar na figura<br />

abaixo, os gozos se situam nas “interseções externas” entre cada dois registros.<br />

Figura 05 – Nó borromeano detalhado<br />

Temos que pensar neste desenho sobre uma superfície tridimensional, pois aqui ele se<br />

apresenta aplainado. É no ponto em que um registro “fura” o outro, criando uma espécie<br />

de argola, que o gozo se inscreve. É interessante esse exercício visual, pois ele desloca a<br />

idéia de interseção para a de ex-sistência de um espaço entre dois registros. Ex-sistência<br />

seria o efeito que um registro, furando o outro, provocaria ao criar um espaço ao mesmo<br />

tempo fora e interno ao primeiro. Os gozos estariam assim localizados:<br />

(a) J.A (Jouissance de l’Autre) – Gozo do Outro – entre R e I;<br />

(b) Sentido (Sens) – Gozo do sentido – entre I e S;<br />

(c) Jφ (Jouissance phalique) – Gozo fálico – entre S e R.<br />

Lacan propõe, na aula de 17/12/74, que “a ex-sistência, como tal, define-se, suporta-se<br />

disso que em cada um dos termos R.S.I. faz furo” (LACAN, 1974-75). Ela seria o ponto<br />

exterior ao mais central. O termo, Lacan o extrai da língua latina vulgar, língua-núcleo<br />

de onde saíram por diferenciação as línguas românicas, problematizando-o a partir da<br />

filosofia aristotélica e sua proposta de universalidade. Nesse sentido, a idéia de que o<br />

que se diz de tudo pode igualmente se aplicar a qualquer um é criticada. Para Lacan, o<br />

“ex” gira em torno da consistência, faz intervalo, permitindo maneiras singulares de se<br />

atar o nó borromeano que não são generalizáveis. Com isso, a idéia de universalidade<br />

100


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

encampa apenas a distribuição teórica dos gozos, que se fará efetivamente na<br />

singularidade de cada amarração subjetiva.<br />

Figura 06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco<br />

Na figura 06 acima, vemos a consistência, o buraco ou furo e a ex-sistência na lógica<br />

topológica que nos permite compreender não se tratar de uma interseção de conjuntos<br />

com elementos em comum apenas. Essa lógica fica ainda mais clara quando Lacan<br />

associa o Imaginário à consistência, ao que dá estofo, corpo, à experiência humana; o<br />

Simbólico, ao furo, ao que faz furo pela linguagem; e o Real, à ex-sistência, ao que resta<br />

fora da apreensão simbólica ainda que mantendo com ela uma relação de quase-<br />

exclusão, como retratado na mesma figura, acima apresentada em três dimensões.<br />

“É que se a ex-sistência se define por relação a uma certa consistência, se a ex-sistência não<br />

é, no final das contas, senão esse fora que não é um não-dentro, se essa ex-sistência é, de<br />

certa maneira, esse em volta do que se evapora uma substância [...] nem por isso a noção de<br />

uma falha, a noção de um furo, mesmo em algo tão extenuado quanto a existência, deixa de<br />

manter seu sentido. Pois se eu lhes disse haver do Simbólico um recalcado, há também no<br />

Real algo que faz furo, há também no Imaginário, Freud se deu bem conta, e foi por isso<br />

que burilou tudo que há de pulsões no corpo como estando centradas em torno da passagem<br />

de um orifício a outro” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/75).<br />

A ex-sistência, esse fora que não é um não-dentro, articula os três registros da<br />

subjetividade humana pela via dos gozos. Lacan retoma, portanto, a pulsão freudiana e<br />

suas zonas erógenas, e ensaia uma topologia do gozo que inclui o corpo, mas que não<br />

perde de vista que também este se inscreve nos três registros, submetido à dialética da<br />

pulsão de vida (Eros) e de morte (Tanatos). A vida seria o furo do real, a morte, o furo<br />

do simbólico e o corpo, o furo do imaginário. Dialética aqui complexificada por não<br />

propor nenhuma síntese... Assim, as passagens de um orifício ao outro implicam os<br />

101


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

órgãos do corpo, mas também a linguagem como órgão e aquilo que não se alcança,<br />

nem por um (corpo), nem pelo outro (significante). Ponto obscuro a que Lacan retornará<br />

no seminário seguinte sobre Joyce.<br />

Nesse sentido, uma primeira questão é colocada. Será que poderíamos falar de relação<br />

entre os registros no caso da ex-sistência? Seria sobre o mesmo paradigma da não-<br />

relação, inaugurada no Seminário 20, que estaríamos a caminhar? Qual a qualidade da<br />

relação orientada pela ex-sistência?<br />

Lacan nos propõe que o que é da ex-sistência é metaforizado pelo gozo fálico. E como<br />

ele apresenta, então, o gozo fálico? Em sua proposição, o gozo fálico encontra um topos<br />

no nó, entre Simbólico e Real, naquilo em que ele está em relação com o que no Real<br />

ex-siste, ou seja, o falo. O gozo fálico implica, portanto, no furo operado pelo Simbólico<br />

no campo do Real, donde ele metaforizar a ex-sistência.<br />

Quanto ao gozo do sentido, gozo do blá-blá-blá, ele implica nesse mais além da função<br />

significante. Mais do que para comunicar, a palavra faz gozar. Quando do Imaginário e<br />

do Simbólico o cruzamento se produz, nesses dois pontos, há o sentido, diz Lacan na<br />

aula de 14/01/75. Ele distingue a falação da função de nomeação, que também é<br />

produzida pelo uso da palavra. Quando a palração se ata a algo do Real, teríamos a<br />

nomeação 42 . Nomear aqui não corresponde ao nominalismo que a filosofia platônica<br />

poderia sugerir com o eidos, terceiro termo que Platão convoca para a nomeação das<br />

coisas. Com a proposição lacaniana a idéia faz parte da consistência do real.<br />

Por fim, e sempre enigmático, o gozo do Outro aqui se situa no ponto mais intrigante<br />

que poderíamos conceber, entre Real e Imaginário. Ora, como pensar um gozo do corpo<br />

do Outro, Outro sexo, se a relação sexual não existe? Esse gozo, não atravessado pelo<br />

Simbólico, estaria completamente fora da linguagem? Mas o Outro é o simbólico por<br />

excelência! Além disso, se o Outro é uma invenção, um anteparo estrutural que o sujeito<br />

inventa para lidar com o indizível de seu mundo, gozar dele não implicaria também num<br />

gozo solitário? Essa é a aporia do sexto paradigma, seu ponto de impasse, como vimos.<br />

Os gozos são disjuntos do Outro, mas há o gozo do Outro (sexo). Entretanto, o Outro é<br />

o que criamos para garantir a própria estrutura que o põe em marcha. O Outro, a rigor,<br />

não existe, assim como não existe Outro do Outro, garantia última que somente a<br />

metalinguagem resguardaria. Assim, poderíamos dizer que o gozo do Outro não existe,<br />

42 Cf. discussão sobre a nomeação na seção 2.4.1 desta tese.<br />

102


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

senão enquanto gozo disjunto do próprio Outro... Confuso? Acompanhemos a lógica<br />

lacaniana.<br />

No Seminário RSI, Lacan, ao precisar a morte como furo do simbólico, enuncia o que<br />

ela implica, a saber, que enquanto algo é Urverdrängt do simbólico, ou seja, enquanto<br />

algo é primariamente recalcado, haverá sempre uma dimensão a que jamais daremos<br />

sentido. Lacan brinca com essa dimensão dizendo que Édipo teria laiosado, caso tivesse<br />

tido o tempo necessário para saber, ou seja, o tempo de fazer uma análise! Nesse<br />

ínterim, no qual vagou pelas estradas fugindo do destino de matar seu pai 43 , se estivesse<br />

em análise, poderia ter dado a ele uma outra versão e evitado o destino que cumpriu ao<br />

tentar dele se afastar. O indizível ou o impossível consiste nessa verdade subjetiva<br />

inacessível pela operação do recalque primordial que, na neurose, impulsiona o sujeito à<br />

repetição em torno desse vazio. A análise, longe de tentar chegar a essa suposta<br />

“verdade última”, visaria antes que o sujeito pudesse dar a ela uma nova versão,<br />

desatando uma forma de amarração dos gozos, e reatando-a de outra maneira. É por isso<br />

que Lacan brinca que Édipo, em análise, poderia laiosar, ou seja, encontrar um outro<br />

destino para si com uma nova versão do pai.<br />

Em termos topológicos, o sujeito pode fabricar, com cortes, suturas e remendos, novas<br />

articulações entre os três registros, reescrevendo sua forma de gozo. Se o nó<br />

borromeano não é senão modo de escrita, o que ele escreve é a articulação dos três<br />

registros que instala modalidades de gozo para o falasser. A ex-sistência, essa posição<br />

de fazer furo de dentro, instalando um fora, que não é não-dentro, fala das pregas que<br />

orientam a repetição. Há letra que faz escrita e vivifica o corpo. Mas todo o trabalho<br />

analítico se faz pela via da palavra, pela articulação que contempla o simbólico, no que<br />

ele tem de real. O que escapa à simbolização, e como suplemento de gozo retorna no<br />

campo do Outro, situa-se entre real e imaginário. Como escrever esse gozo? A escrita<br />

do gozo do Outro quanto ao que nela ex-siste é o ponto de embaraço.<br />

O Outro que Freud nos apresenta com o Édipo só existiria se dito. Toda essa Outra Cena<br />

à qual Édipo se encontra remetido é fabricada no interior mesmo da trama que o<br />

envolve em seu destino trágico. Ela não existe fora dele. “Mas é absolutamente<br />

43 Como se sabe, Édipo foge de Corinto, reino em que vivia como filho natural de Pôlibo e de Mérope, ao<br />

saber, no oráculo de Delfos, da profecia de que mataria seu pai e casaria com sua mãe. O que ele não<br />

sabia, entretanto, era que fora adotado pelo casal real infértil, e que seus verdadeiros pais eram Laio (que<br />

mata na estrada) e Jocasta (com quem, de fato, se casa e tem filhos). Cf. o mito de Édipo na obra original<br />

de Sófocles (2001).<br />

103


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

impossível dizer inteiramente esse Todo-Outro. Há uma Urverdrängt, um inconsciente<br />

irredutível [...] o que não só se define como impossível, como introduz a categoria do<br />

impossível”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 17/12/74. É pela linguagem que se<br />

escreve essa relação de ex-sistência? Vimos que, com a noção de lalíngua, Lacan<br />

apontou para uma dimensão real da linguagem que abre uma nova via de escrita. Será<br />

que podemos pensar na articulação do gozo do Outro por essa perspectiva?<br />

A radicalidade da inexistência do Outro do Outro é levada às últimas conseqüências por<br />

Lacan. Desde o texto “Subversão do sujeito...” (1960/1998), Lacan já assinalava o<br />

significante de uma falta no Outro pelo matema S(%), quando o Outro, enquanto<br />

tesouro dos significantes, é chamado a responder em termos de pulsão. Vejam: “a falta<br />

de que se trata é, com efeito, aquilo que já formulamos: que não há Outro do Outro”.<br />

Ele é pensado em termos significantes como “aquele para o qual todos os outros<br />

significantes representam o sujeito” (LACAN, 1960/1998, p. 833).<br />

Tanto que, cerca de quinze anos depois, ele nos relembra que, se o Simbólico se<br />

distingue do Imaginário (consistência) e do Real (ex-sistência) por ser furo, o<br />

verdadeiro furo estaria na ex-sistência topologicamente posicionada em relação ao gozo<br />

do Outro. “No lugar do Outro do Outro não há nenhuma ordem de existência”<br />

(LACAN, 1975-76/2005, p. 134).<br />

Parece-nos ser pelo que excede a linguagem que encontramos a chave para explicar o<br />

gozo do Outro enquanto Outro corpo, ‘o Outro do outro sexo’. Assim como o que dá<br />

consistência ao corpo (imaginário) é o gozo fálico que lhe ex-siste, é precisamente o<br />

fato de não haver Outro do Outro que confere consistência ao simbólico. A inexistência<br />

do Outro do Outro, evidenciada ao longo do ensino do Lacan, coloca um impasse para o<br />

campo do simbólico que Lacan responde com a introdução de lalíngua. Na figura 05,<br />

acima apresentada, Lacan não escreve o Outro do Outro na ex-sistência do simbólico,<br />

ele sabe que este não está lá para garantir esse registro. Este campo aparece vazio,<br />

revejam a reprodução da figura. Será que poderíamos, então, conceber que ali estaria o<br />

Outro do Outro? Ali onde, na figura 05, o espaço tracejado entre R e I está vazio?<br />

Ao elencar os textos aos quais Lacan havia dado um estatuto topológico, Soury (1988b,<br />

texte 100) localiza duas incompletudes que são mostradas nos quadros e desenhos do<br />

psicanalista. Uma se refere exatamente a esse campo. Qual é o terceiro termo ex-sistente<br />

ao nó, aquele que completaria o ternário dos quais os outros dois elementos são<br />

104


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“inconsciente” e “falo”? Perguntado de outra maneira: o falo é ex-sistente ao gozo<br />

fálico; o inconsciente é ex-sistente ao gozo do sentido, o que desempenha o mesmo<br />

papel em relação ao gozo do Outro? Seria o conjunto vazio que correponde ao Outro do<br />

Outro?<br />

Lacan irá avançar sobre esta questão somente um ano depois, no Seminário XXIII, sobre<br />

Joyce, num ponto extremamente complexo e importante para nossa pesquisa. Podemos<br />

talvez dizer que a radicalidade do aforismo “o Outro não existe” conduz Lacan a um<br />

impasse clínico fundamental resolvido apenas pela proposição do sinthome, pelo nó de<br />

quatro. Qual seria esse impasse?<br />

Há algo que a palavra não alcança. Ora, a palavra é, desde a origem da psicanálise, o<br />

grande instrumento de trabalho do psicanalista, o veículo de acesso ao inconsciente.<br />

Problematizar o alcance da palavra redunda, inevitavelmente, na problematização do<br />

final da análise, dos alcances a que uma psicanálise pode conduzir. Freud já havia<br />

esbarrado nesse mesmo impasse, como testemunha em 1937, também no final de sua<br />

obra. Ele se pergunta, em “Análise Terminável e Interminável”, se seria possível uma<br />

análise avançar a tal ponto que: “se o analista exerceu uma influência de tão grande<br />

conseqüência sobre o paciente, não se pode esperar que nenhuma mudança ulterior se<br />

realize neste, caso sua análise seja continuada” (FREUD, 1937/1976, p. 251). Como se<br />

fosse possível chegar a um nível de ‘normalidade psíquica absoluta’, de estabilidade,<br />

como se se alcançasse êxito em solucionar todos os recalques do paciente e em<br />

preencher todas as lacunas em sua lembrança.<br />

Ora, sabemos que Freud irá concluir exatamente pelo contrário dessa assertiva 44 ao<br />

apontar que há uma dimensão irredutível na análise, o encontro com a castração. Como<br />

ele mesmo revela, em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da<br />

sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão e da<br />

suspeita de que estivemos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos trabalhando<br />

com o sujeito o encontro com a castração. Seja “tentando persuadir a mulher a<br />

abandonar seu desejo de um pênis 45 , com fundamento de que é irrealizável, ou quando<br />

44 A resposta direta do texto freudiano ao que seria o final de análise é a de que “a missão da análise é<br />

garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do eu; com isso, ela se<br />

desincumbiu de sua tarefa” (FREUD, 1937/1976, p. 284). Ela aponta aqui para um certo ideal que<br />

desconsidera a dimensão do impossível, que retornará no próprio texto sob a perspectiva da castração<br />

colocada ao final de seu argumento.<br />

45 “O gozo peniano advém à vista do Imaginário, quer dizer do gozo do duplo, da imagem especular, do<br />

gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o<br />

corpo é o suporte imaginário. Por outro lado, o gozo fálico se situa na conjunção do Simbólico com o<br />

105


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com outros<br />

homens nem sempre significa castração” (FREUD, 1976/1937, p. 286). Ora, aquilo que<br />

ficou conhecido entre os psicanalistas como o encontro com o rochedo da castração diz<br />

respeito exatamente ao que não se escreve da relação sexual, mais do que ao gozo<br />

fálico. É da dimensão real de uma análise e de seu destino que Freud parece estar<br />

falando. Parece-nos ser exatamente esse o impasse que conduz Lacan a uma resposta<br />

topológica ao irredutível, ao real que, no Seminário 23, aparece como gozo do Outro.<br />

Seja na neurose, seja na psicose, o tratamento desse irredutível é central. Podemos<br />

pensar que na neurose, o enxugamento produzido pelo simbólico em relação ao<br />

imaginário e ao real, deixará um resto de real intocado. Esse resto é o que podemos<br />

equivaler ao que Lacan chamará de sinthoma, grafando de maneira diferente essa<br />

dimensão do sintoma que resta como osso, esqueleto do falasser. Ao sinthoma, seja pelo<br />

trabalho com o delírio, seja pela articulação com o fantasma, o sujeito deverá dar um<br />

destino, responsabilizar-se por seu uso. Lacan conferiu a essa dimensão do falasser um<br />

estatuto topológico estratégico, como veremos. É ele que amarra borromeanamente os<br />

três registros que se encontram soltos entre si, sendo ele o quarto elemento do nó<br />

borromeano de quatro. É um elemento estratégico pois não corresponde a uma ordem<br />

prévia, como o Nome-do-Pai respondia ao simbólico. Ele se inventa do que, na<br />

singularidade de cada sujeito, o constitui como radicalmente único. Poderíamos aqui<br />

pensar na letra como suporte dessa escrita do sinthoma? Se o pensamos, uma dimensão<br />

se esclarece para nossa pesquisa, qual seja, a do estatuto do que, na criação psicótica,<br />

pode escrever uma estabilização. Nem toda solução que envolva a criação na psicose<br />

conduzirá a uma estabilização, nem toda estabilização terá efeito de suplência, e nem<br />

toda suplência operará como sinthoma, salvo pelo uso da letra que o psicótico fizer<br />

escrever (ou não) um enodamento. Podemos apostar nesse desdobramento da hipótese<br />

da tese? Veremos...<br />

Freud via a permanência de um resto sintomático indecifrável pela psicanálise<br />

constituir-se em obstáculo à cura – o rochedo da castração. Lacan, por seu lado,<br />

considera o sinthoma – o sintoma em sua posição residual ao final da análise – como a<br />

marca do sujeito, seu traço próprio, sua singularidade, algo de inegociável, o que não<br />

Real.[...] Tem o poder de reunir a palavra e o que nela é um certo gozo, aquele dito do falo, que é<br />

experimentado como parasitário” (LACAN, 1975-76/2005, p. 56). Ainda sobre pênis, falo e gozo fálico,<br />

ver discussão no cap. XVII, do Seminário 8, A transferência (LACAN, 1960-61/1992), que atenta para a<br />

diferença entre o φ (falo imaginário) e o Ф (significante fálico).<br />

106


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

cessa de escrever-se. Algo em relação a que o sujeito se responsabiliza. A<br />

irredutibilidade do sinthoma diria respeito a um ponto inabalável, impermeável à<br />

interpretação, pois se situaria numa exterioridade em relação ao discurso por envolver<br />

elementos retirados do corpo; permaneceria isolado da cadeia significante, ao mesmo<br />

tempo em que estabelece com esta uma relação de exterioridade. É difícil não sustentar<br />

a aproximação entre letra e sinthoma...<br />

Na terceira lição do Séminaire Joyce, le sinthome, que ganhou o título “Do nó como<br />

suporte do sujeito”, Lacan se pergunta pelo que sustenta o sujeito, propondo a<br />

necessidade de um quarto elemento que ate o nó borromeano. É também em Freud que<br />

Lacan se depara com a incidência desse quarto elemento. Freud o inventou como<br />

‘realidade psíquica’ para explicar a relação do sujeito com a realidade. Lacan localiza<br />

ali o uso do Complexo de Édipo pelo neurótico como ponto de ancoragem, de fixação<br />

de uma forma de gozo. “Parece com efeito que o mínimo que nós podemos esperar da<br />

cadeia borromeana é esta relação de um [sinthoma] aos outros 3 [RSI]” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 51). O nó de três elementos se mostra duro, de difícil manipulação,<br />

posto que traz apenas uma possibilidade de enodamento. O nó de quatro, ao contrário,<br />

ao deixar indefinida uma correspondência ao que seria o sinthoma para cada sujeito,<br />

deixa aberta para cada um, no limite de sua história, a possibilidade de sua invenção de<br />

um lado, e de um arranjo entre os três registros de outro.<br />

Para mostrar a necessidade do quarto elemento como o que faz a costura no sujeito dos<br />

registros, Lacan apresenta uma cadeia aberta do nó de três, justamente no ponto em que<br />

o gozo do Outro incidiria. Os três suportes que Lacan chama de subjetivos tomarão<br />

apoio no quarto, o sinthoma. Entendemos que ali ele intenta evidenciar que o tratamento<br />

dado ao gozo do Outro implica na escrita do sujeito. O gozo do Outro está para todos<br />

colocado como uma questão a ser trabalhada.<br />

Figura 07 - Nó de trevo aberto<br />

107


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

O gozo do Outro, ou melhor, do Outro do Outro, se não existe, não poder ser figurado.<br />

Mesmo o gozo do Outro, ao ser representado entre real e imaginário, aponta para o que<br />

se situaria fora da conjuntura simbólica, poderíamos assim entender. Assim, a<br />

irrepresentatividade do gozo do Outro do Outro ganha uma localização problemática. E<br />

é o próprio Lacan quem nos apresenta esse impasse, felizmente sem nos deixar sem<br />

solução.<br />

“Se nós pensamos que não há Outro do Outro, ao menos gozo deste Outro do Outro, é bem<br />

preciso que façamos em qualquer parte a sutura entre este simbólico que se estende ali só e<br />

este imaginário que está aqui. É uma emenda entre imaginário e saber inconsciente. Tudo<br />

isso para obter um sentido, o que é o objeto da resposta do analista ao exposto, pelo<br />

analisante, ao longo de seu sintoma. Quando nós fazemos esta emenda, nós ali fazemos, na<br />

mesma tacada, uma outra, precisamente entre o que é simbólico e o real. Quer dizer que,<br />

por algum lado, nós ensinamos ao analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma<br />

e o real parasita do gozo. O que é característico de nossa operação torna esse gozo possível.<br />

É a mesma coisa que isto que eu escrevera j’ouïs sens 46 . É a mesma coisa que ouvir um<br />

sentido” (LACAN, 1975-76/2005, p. 73).<br />

A indicação é clara: apostar no trabalho entre real e simbólico, pois será por essa via<br />

que, por efeito de retorno, imaginário e inconsciente poderão encontrar uma forma de se<br />

enlaçarem, ficando os três registros, então, enodados pelo quarto elemento<br />

sinthomático, criando a condição de um Outro gozo possível. A análise seria a via pela<br />

qual, através de suturas e emendas, o sujeito encontraria esse j’ouïs sens (sentido-gozo),<br />

que aqui implica “saber qual é o nó e de bem o atar graças a um artifício” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 73).<br />

Se observarmos bem o nó borromeu, dois registros estão sempre superpostos um em<br />

relação ao outro, ou seja, soltos. Somente a passagem de um terceiro por cima e por<br />

baixo sucessivamente desses dois, fazendo neles furo, produz o efeito borromeano que<br />

conhecemos como: desatando-se qualquer um deles, os outros também cairão livres. O<br />

nó borromeu, para Lacan, é a melhor topologia para tratar do furo. Esta, de saída, indica<br />

como aquilo que não está atado dois a dois pode fazer nó. Este só se suporta no seu furo<br />

fundamental, constituído pelo simbólico e equivalente em Lacan à interdição do incesto<br />

enquanto elemento estrutural.<br />

“É no furo do simbólico que constitui o interdito. É preciso o simbólico para que apareça,<br />

individualizado no nó, essa coisa que eu não chamo tanto de complexo de Édipo, não é tão<br />

complexo assim, chamo isso de o Nome do Pai. O que só quer dizer o pai enquanto Nome,<br />

não quer dizer nada de início, não só o pai como nome mas o pai como nomeador”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975).<br />

Para Lacan, o sentido vai tão longe no equívoco quanto se possa desejar para o discurso<br />

46 Lacan aqui brinca com a homofonia entre “eu ouço sentido” e “gozo”, possível em francês.<br />

108


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

analítico. E esse equívoco alcança a função de sentido-gozo operada pelo Pai enquanto<br />

nomeador, permitindo ao sujeito fazer dele uma versão que oriente seu gozar. Nesse<br />

sentido, o Pai opera aqui como esse elemento suplementar que nomeia uma forma de<br />

gozo para cada sujeito, no ponto em que este faz do Pai sua versão. Quando Lacan diz o<br />

Nome do Pai, “isso quer dizer que pode haver aí, como no nó borromeano, um número<br />

indefinido. É esse o ponto vivo. É que esses números indefinidos, estando atados, tudo<br />

repousa sobre um, enquanto furo, ele comunica sua consistência a todos os outros”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Se o ponto de partida para um nó é a não-<br />

relação sexual como furo, já temos três, e não somente dois, elementos; e sendo três, seu<br />

efeito real de amarração já é um quarto. Em outras palavras, se dois a dois os registros<br />

se encontram livres no nó – basta observar a figura abaixo –, o fato de o terceiro fazer<br />

nó desses dois já é um efeito real, mais-um, sobre os elementos originários. O efeito real<br />

de amarração que se obtém é, em si mesmo, um quarto elemento. E ele é o Pai, ou a<br />

versão de Pai, na perspectiva acima exposta.<br />

Passar do nó de três para o de quatro foi apenas uma conseqüência necessária na<br />

teorização lacaniana. Ele isolou esse efeito real, traçou-o na figura de maneira<br />

borromeana como quarto elemento, e dispôs os três registros soltos e sobrepostos uns<br />

em relação aos outros, evidenciando a função de amarração que o Pai pode ter enquanto<br />

sinthoma. Observe a passagem realizada comparando as duas figuras abaixo.<br />

Figura 02 – Nó borromeano de três elementos<br />

Aqui os aros estão entrecruzados dois a dois, ficando soltos dois a dois. Esse efeito real<br />

de amarração, Lacan isola como quarto elemento abaixo, deixando todos os aros livres<br />

uns em relação aos outros.<br />

109


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 08 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) (LACAN, 1975-76/2005,<br />

p. 20)<br />

No nó de três, dois dos registros não ultrapassam o furo e não formam cadeia. Da<br />

mesma forma, com dois entrecruzados, o furo está entre os dois, não sendo também<br />

ultrapassado por eles. E Lacan avança, não é só o simbólico que tem o privilégio desses<br />

Nomes-do-Pai, não está obrigatoriamente conjunta a nomeação no furo do Simbólico.<br />

Afinal, no nó de quatro, o que faz o furo aparecer é o sinthoma...<br />

Sinthoma, Nome do Pai, Pai enquanto nomeação, suplemento, quarto elemento, estamos<br />

diante de toda uma teorização de Lacan que exige nos aproximarmos mais da topologia.<br />

E, para entrar nesse universo complexo, o Pai, ou os Nomes-do-Pai, nos parece uma<br />

porta essencial de ser atravessada. Qual o deslocamento operado no ensino e assinalado<br />

por Lacan entre o pai como nome e o pai como nomeador? Se são vários os Nomes-do-<br />

Pai, como fica a questão das soluções subjetivas que a ele recorrem, como na metáfora<br />

paterna dos anos 50? Se aqui o pai é elemento mais-um, suplementar à amarração do nó,<br />

ela poderia prescindir dele? De que forma pai e suplência, ou pai e estabilização,<br />

aparecem no ensino lacaniano? Questões, enfim, que exigem seu atravessamento antes<br />

de adentrarmos o real da topologia e sua incidência nas estabilizações psicóticas.<br />

2.4 Suplência e Pai<br />

Aqui entramos numa discussão fundamental desta pesquisa: o conceito de suplência.<br />

Sabemos que Freud não o utiliza enquanto conceito que remete às soluções subjetivas,<br />

como Lacan o faz. Ele estuda os modos de defesa ao impasse colocado pela castração na<br />

neurose, a partir da operação do recalque e seu retorno, do qual o sujeito se defende com<br />

a conversão, na histeria, ou com o deslocamento, na neurose obsessiva; na perversão, a<br />

defesa implica em desmentir a castração materna, substituindo a ausência fálica pelo<br />

objeto fetiche; e, na psicose, como vimos, a defesa é tão radical que exclui a própria<br />

110


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

representação simbólica, como se a experiência jamais tivesse existido, o que torna o<br />

significante real. Estas seriam as soluções freudianas. E as estabilizações, após<br />

desencadeada uma psicose? Parece-nos que elas viriam suplenciar o que rateia nas<br />

soluções subjetivas.<br />

Na discussão do caso Schreber, Lacan aponta, com Freud, uma reparação metafórica<br />

através do delírio na psicose, que faria às vezes da metáfora paterna que não se realizou,<br />

favorecendo a construção de uma solução assintótica sob a insígnia do “ser a mulher de<br />

Deus”, como vimos. Esta seria uma primeira versão de uma operação de reparação,<br />

ainda que Lacan não a tenha tratado, em momento algum, como suplência. Ele fala de<br />

uma operação que faria às vezes do processo metafórico operado pelo pai. A rigor, não<br />

se trata de um complemento, nem de um suplemento, mas de um processo metafórico<br />

substitutivo que sutura o que era, à época, tomado como déficit na psicose, a saber, a<br />

foraclusão do Nome-do-Pai.<br />

Lacan introduzirá a noção de suplência no campo da leitura das soluções subjetivas ao<br />

se colocar como questão para o Seminário RSI, na aula de 11/02/1975, se, quanto ao<br />

atamento do Imaginário, do Simbólico e do Real, seria preciso uma ação suplementar,<br />

de um toro a mais, “aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai”<br />

(LACAN, 1974-75). Donde a suplência não poder ser pensada senão articulada a esse<br />

outro operador, o pai. Acabamos de ver que ele se pergunta se a conjunção dos três<br />

registros só se manteria pelos Nomes do Pai. E também se a dissociação dos três<br />

registros seria tal que só o Nome-do-Pai faria o nó borromeano e manteria tudo atado<br />

pelo simbólico. A função do Pai e a suplência são, portanto, associadas de maneira<br />

íntima na topologia borromeana, na medida em que dizem da invenção de um quarto<br />

termo que dá estabilidade e operacionaliza a relação com a realidade, o sinthoma. “É<br />

difícil não guardar um laço minimal entre sinthoma e Nome-do-Pai mas à condição de<br />

destacar o Nome-do-Pai da função paterna para resguardar a ela somente a única<br />

função de nomeação” (DEFFIEUX, 2005, p. 35).<br />

Para Lacan, a invenção freudiana responsável pelo que sustenta a relação do sujeito com<br />

a realidade é o complexo de Édipo ou aquilo que dele fala da realidade psíquica. Ora, o<br />

complexo de Édipo em Freud, muitas vezes debatido por sua desatualização e<br />

inadequação cultural, fala de uma estrutura que articula a subjetividade a partir do<br />

inconsciente, fala de um dos nomes que se pode dar à defesa e à criação subjetivas na<br />

111


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

neurose, enfim, fala da solução que alguns sujeitos criam a partir do encontro com o<br />

traumático da linguagem. Estando remetido ao complexo de castração, diz de uma<br />

defesa ao que do significante, do simbólico, não recobre o real, e também ao que de<br />

gozo resta como excedente dessa experiência. Como resultado, conforma a fantasia que<br />

enquadra a realidade, articulando o sujeito ao indizível que cai como objeto a e<br />

instalando uma forma de gozo, de funcionamento subjetivo, na ficção que ali se escreve.<br />

Trata-se, pois, de uma resposta que estrutura para o sujeito sua realidade. A realidade<br />

psíquica seria esse quarto termo, suplementar aos três registros, que sustentaria a<br />

amarração borromeana da realidade para Freud. “O que ele chama de realidade<br />

psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama complexo de Édipo. Sem o<br />

complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém à corda do Simbólico, do<br />

Imaginário e do Real se sustenta” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).<br />

Se o Édipo é um dos nomes da solução subjetiva, específico da neurose, seu<br />

atravessamento não é universal, mas antes singular à vivência de cada um. É o que<br />

revela Lacan ao discutir a fobia do pequeno Hans, em seu quarto seminário público. Ali<br />

ele fala em suplência pela primeira vez. Ela aparece associada ao pai, ainda que<br />

remetida a uma espécie de compensação à carência paterna, do pai incapaz de<br />

operacionalizar a castração. Indica uma operação que vem no lugar de algo que não se<br />

realiza da forma como deveria. Há um certo ideal em torno da operacionalidade (ou<br />

falha) do pai.<br />

A suplência no sentido de algo a mais, de quarto termo a atar os registros, de invenção,<br />

Lacan só falará cerca de vinte anos depois no caso Joyce. Ali Lacan testemunha a<br />

invenção de um nome próprio que revela a demissão paterna. O suplemento que Joyce<br />

efetiva à demissão paterna forja um ego e faz sinthoma. Antes de entendermos essa<br />

diferença, é preciso retomar a noção de Verwerfung freudiana que, a partir de 1975,<br />

também com o caso de Joyce, ganha um desdobramento.<br />

2.4.1 O Pai e die Verwerfung<br />

Por que retomar a Verwerfung aqui? Ora, a noção de suplência não se faz de maneira<br />

unívoca no ensino lacaniano e implica uma forma de resposta, no que toca à psicose, à<br />

Verwerfung. Nesse sentido, poderia implicar em promover um elemento no lugar de<br />

outro, como na operação metafórica ou, por outro lado, num acréscimo, num<br />

112


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

suplemento. Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir,<br />

fazer as vezes de, preencher a falta de. E aqui, sabemos, estamos referidos ao Nome-do-<br />

Pai, que pode ou não operar, exigindo, nesse último caso, uma operação de reparação.<br />

Suplência, porém, quando remetida a suplemento, implica no que se adiciona, no que,<br />

somado, amplia o conjunto.<br />

A Verwerfung, no primeiro tempo do ensino lacaniano, equivale à foraclusão do<br />

significante do Nome-do-Pai, como vimos. No ponto em que é chamado o Nome-do-<br />

Pai, “pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do<br />

efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica”<br />

(LACAN, 1957-58/1998, p. 564). Seria, pois, no acidente de registro em que se<br />

constitui a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e no fracasso da metáfora<br />

paterna que residiria a condição essencial da psicose nesse tempo do ensino de Lacan. É<br />

em relação ao Nome-do-Pai como elemento inevitável de uma referência simbólica e<br />

normativizadora que a psicose é pensada enquanto falta, enquanto falha no simbólico.<br />

Quando o Nome-do-Pai é chamado em posição terceira em alguma relação que tenha<br />

por base o par imaginário a-a´, ou seja, quando o sujeito é chamado a responder em<br />

oposição simbólica ao Nome-do-Pai e este não comparece, dá-se o desencadeamento<br />

psicótico.<br />

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, “pelo furo que abre no significado, dá início<br />

à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do<br />

imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se<br />

estabilizam na metáfora delirante” (LACAN, 1957-58/1998, p. 584). Em 1955-56, a<br />

foraclusão demarca um território subjetivo, uma estrutura clínica – psicose –, uma<br />

forma de composição do sujeito que carece do Nome-do-Pai como agente de<br />

organização simbólica e de articulação dos três registros. Aqui o Nome-do-Pai tem<br />

efeito significante e metafórico; e a foraclusão é a operação que delimita o campo das<br />

psicoses. Lacan não fala em suplência.<br />

Enquanto significante, o Nome-do-Pai não significa nada, salvo se remetido à cadeia<br />

significante que, pelo valor diferencial do significante, produzirá uma significação. Ele<br />

é o que sustenta o enquadre subjetivo, o que surge no ponto em que o traço unário,<br />

primário de identificação, se apaga no inconsciente. Tem, portanto, um valor fundante e<br />

estrutural, radicado na função de linguagem que veicula.<br />

113


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Miller avança nessa questão. Se, em relação à castração freudiana, para qualquer sujeito<br />

falta um significante último que nomeie o sexual (S(%)), se para todos há sempre um<br />

significante que não se inscreve na cadeia a partir do encontro com o traumático, a<br />

foraclusão poderia ser pensada como pertinente a todas as estruturas, e não apenas como<br />

referida a uma falta em relação ao Nome-do-Pai nas psicoses (MILLER, 1998). Tratar-<br />

se-ia, antes, de um furo (trans)estrutural que de uma falta contingencial à psicose. A<br />

resposta ou a solução a esse furo traçaria o que, de singular, cada sujeito constrói para<br />

sobreviver ao encontro traumático com o real que faz inscrição no corpo.<br />

Essa passagem aponta para uma instabilidade da noção de estrutura para a psicanálise,<br />

tocando inevitavelmente em seu cerne, qual seja, na concepção de Pai. Exatamente, e<br />

não por acaso, ao discutir a psicose, no que nela Lacan pressupõe a ausência do Nome-<br />

do-Pai, que ele nos revelará a dimensão desse significante operatório. É enquanto pai<br />

morto que Lacan trata do pai em “Subversão do sujeito...” (1960/1998, p. 827),<br />

ratificando essa posição em “De uma questão preliminar...”.<br />

“Com efeito, como não haveria Freud de reconhecê-la, quando a necessidade de sua<br />

reflexão o levara a ligar o aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte,<br />

ou até mesmo ao assassinato do Pai? – assim mostrando que, se esse assassinato é o<br />

momento fecundo da dívida através da qual o sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico,<br />

como aquele que significa essa Lei, é realmente o Pai morto” (LACAN, 1957-58/1998, p.<br />

563).<br />

A foraclusão apontaria não para a ausência do pai real, mas antes para a carência do<br />

próprio significante no lugar onde o pai, enquanto tal, deveria operar. O pai é, ao<br />

mesmo tempo, a lei do significante e um dos significantes que, no ternário simbólico,<br />

representa o Outro. É esse que não comparece na psicose. É da importância que a mãe<br />

dá à autoridade do pai, “do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei”<br />

(Idem, p. 585), do pai em seu lugar ideal, que ele se escreve. É a falência do Nome-do-<br />

Pai que, declarada, culmina no processo pelo qual o significante desatrela-se no real. O<br />

pai real, Um-pai, que é chamado no momento do desencadeamento, não se encontra<br />

reduplicado no lugar do Outro enquanto significante, dando início ao trabalho de<br />

remanejamento significante. Donde podemos conceber o Nome-do-Pai, nesse período<br />

do ensinamento lacaniano como “o significante que, no Outro como lugar do<br />

significante, é o significante do Outro como lugar da lei” (Idem, p. 590).<br />

Há, como se pode observar, uma função estrutural depreendida da incidência do Nome-<br />

do-Pai na linguagem ou no campo do Outro. Ele funda a condição de existência da<br />

114


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

linguagem para um sujeito ao se instalar no lugar da lei no campo do Outro. O Nome-<br />

do-Pai, apresentado no singular, tem aqui uma função estrutural de garantir a própria<br />

estrutura.<br />

Na clássica apresentação do pai, no Seminário 4, As Relações de Objeto, Lacan (1956-<br />

57/1995, p. 362-380), ao se interrogar sobre o que é o pai, coloca a questão como<br />

eternamente não resolvida para os analistas 47 . Ainda assim, nos convida a buscar nos<br />

textos religiosos suas pistas, apresentando ele próprio uma proposição que articula o pai<br />

nos três registros em relação ao complexo de Édipo. O pai simbólico é o Nome-do-Pai,<br />

o elemento mediador essencial do mundo simbólico e de sua estruturação. Em última<br />

instância, é o pai morto, como acabamos de ver. É através dele que a criança deixa a<br />

onipotência materna e se introduz na articulação da linguagem humana.<br />

O pai real, por seu turno, não se confunde com o da fecundidade. É preciso que ele<br />

assuma verdadeiramente sua função de pai castrador, a função de pai sob sua forma<br />

concreta, empírica, quase degenerada, como a do pai mítico da horda primeva freudiana,<br />

para que o complexo de castração se instale e a função sexual viril tome seu destino.<br />

E, finalmente, quanto ao pai imaginário,<br />

“é na medida em que o pai, tal como existe, preenche sua função imaginária naquilo que<br />

esta tem de empiricamente intolerável, e mesmo de revoltante quando ele faz sentir sua<br />

incidência como castradora, e unicamente sob esse ângulo – que o complexo de castração é<br />

vivido” (LACAN, 1956-57/1995, p. 374).<br />

Há, pois, uma disjunção entre o pai real, que opera a castração, e o pai simbólico, o<br />

Nome-do-Pai, que simbolicamente opera a entrada do sujeito na linguagem. Assim,<br />

podemos dizer que é à medida que o pai real é investido como pai simbólico, pela<br />

mediação do pai imaginário, que sua função opera seus efeitos de subjetivação na<br />

metáfora paterna.<br />

Com o avanço da teorização lacaniana e, sobretudo, com a construção da noção de que<br />

algo escapa a esse enquadre significante, na figura do objeto a, Lacan vai pluralizar os<br />

Nomes-do-Pai 48 . O seminário no qual trataria dos Nomes-do-Pai (LACAN, 1963/2005)<br />

foi interrompido em função da perda de sua função de didata e de sua ex-comunhão da<br />

47 Sobre o pai na Psicanálise, cf. Jöel Dor, O pai e sua função em Psicanálise, 1991; Revista da Letra<br />

Freudiana, Do Pai: o limite em Psicanálise, nº. 21, 1997; Erik Porge, Os nomes do pai em Jacques<br />

Lacan, 1998; e recentemente, em 2006, reuniu-se em congresso internacional a Associação Mundial de<br />

Psicanálise para discussão sobre “Le nom du père: s’en passer, s’en servir”, que deu origem a várias<br />

compilações de textos sobre o tema, dentre as quais a Scilicet dos Nomes do Pai, 2006, e um CD-Rom.<br />

48 Cf. MILLER, Jacques-Alain, Comentario del seminario inexistente, Buenos Aires, Manantial, 1992.<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Sociedade Francesa de Psicanálise. Essa pluralização acompanha a discussão sobre as<br />

foraclusões que também ganham novas incidências 49 . Além da foraclusão clássica, do<br />

significante, Lacan, em resposta a uma pergunta no seminário sobre Joyce, fala de<br />

foraclusão do sentido pelo Real, apontando que também ela pode ser plurívoca. Além<br />

disso, como veremos logo abaixo, fala de uma diferença crucial entre a Verwerfung de<br />

fato em Joyce e a Verwerfung do Nome-do-Pai em Schreber que determina o estilo de<br />

resposta que o sujeito construirá como suplência a elas e, por conseqüência, o estilo da<br />

estabilização construída pelo sujeito.<br />

Lacan nunca mais retomará o tema da pluralização dos Nomes-do-Pai, recusando-se<br />

mesmo a publicar a única lição desse seminário. Pela ironia, brinca com a idéia no título<br />

de seu Séminaire XXI, Les non-dupes errent (1973-74), cuja homofonia aproxima o<br />

título literal ‘os não tolos erram’ de ‘os nomes-do-pai’. Esse é o seminário que sucede o<br />

corte operado pelo Seminário 20 com as fórmulas da sexuação e antecede o Seminário<br />

RSI, no qual se dedica à topologia borromeana, afirmando que os verdadeiros nomes do<br />

pai são o real, o simbólico e o imaginário, até transformá-lo em utensílio no Séminaire<br />

XXIII, Joyce le sinthome.<br />

A passagem que nos interessa localizar incide no Nome-do-Pai como significante da Lei<br />

para as versões do pai como o que nomeia, na década de 70. Ela acompanha em Lacan o<br />

aparecimento de lalíngua que, anterior à linguagem, é feita de gozo, estando disjunta da<br />

articulação débil que a linguagem opera sobre o falasser. E, também a retomada da<br />

noção de letra como litoral entre simbólico e real, marcando na carne o traumático<br />

encontro com o real que a linguagem ensaia, sem sucesso, simbolizar. Essa passagem<br />

corresponde a um deslocamento do simbólico para o que, de real, determina o sujeito, e<br />

também uma passagem da estrutura enquanto ordem causal do sujeito para a estrutura<br />

enquanto conjuntural ao que, do tratamento do real do gozo, resta como aparato,<br />

ornamento, sempre precário, de linguagem.<br />

Posta essa transição podemos nos perguntar: qual é a versão lacaniana do pai na década<br />

de 70? O que aí se modifica, acrescenta ou cai, na medida em que a teoria avança?<br />

Lacan introduz a questão do pai no bojo da discussão do sintoma como função de x:<br />

f(x). Ele parte da premissa de que a ex-sistência do inconsciente é o suporte do sintoma.<br />

49 Cf. esquema de Harari (2002, p. 270) acerca das seis foraclusões que teriam sido propostas por Lacan<br />

ao longo de seu ensino: 1. da Linguagem; 2. do ser do sujeito do inconsciente pela ciência; 3. não<br />

inscrição da relação sexual; 4. % Mulher (não existe A); 5. do sentido pelo Real; 6. do sim (no “mas não<br />

isso” sinthômico).<br />

116


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Isso é visível na sua apresentação do nó borromeu na figura 05, na medida em que o<br />

inconsciente se encontra no ponto oposto e externo ao que do simbólico avança sobre o<br />

Real, compondo neste pólo oposto o avanço que localiza o sintoma, como vimos.<br />

E o que seria esse x? “É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra na<br />

medida em que, apenas na letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer<br />

qualidade”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 21/01/75. O que não cessa de se<br />

escrever do sintoma vem daí. Em outras palavras, a repetição implicada no sintoma é<br />

essa escrita de gozo.<br />

E onde entra o pai nessa história? Um pai entra no circuito pela função de exceção que<br />

opera. É preciso que qualquer um possa ser exceção para que a função da exceção se<br />

torne modelo. Em outras palavras, é preciso que qualquer pai possa funcionar como<br />

exceção para que a exceção de um pai seja a regra. Um pai só opera por sua père-<br />

version 50 . É preciso que o pai esteja père-vertidamente orientado que, portanto, tenha<br />

feito de uma mulher objeto pequeno a que causa seu desejo, ainda que ela se ocupe de<br />

outros objetos pequeno a, seus filhos, junto a quem o pai, então, intervém.<br />

“No bom caso, para manter na repressão [...] a versão que lhe é própria de sua pai-versão.<br />

Única garantia de sua função de pai; que é a função de sintoma [...]. Para isso, basta aí que<br />

ele seja um modelo da função. Aí está o que deve ser um pai, na medida em que só pode ser<br />

exceção. Ele só pode ser modelo da função realizando o tipo” (LACAN, 1974-75, aula de<br />

21/01/75).<br />

Donde podemos concluir que, para operar como o quarto elemento que sustenta toda a<br />

amarração borromeana, é preciso que o pai opere pai(père)-vertidamente orientado.<br />

Enquanto no primeiro tempo do ensino lacaniano, o pai real era o operador da castração<br />

abrindo a possibilidade da experiência edípica escrita simbolicamente com o Nome-do-<br />

Pai na metáfora paterna, aqui o pai é a exceção que funda, para cada sujeito, uma forma<br />

de gozo. “Como o mais-gozar provém da pai-versão, a versão ap(ai)-eritiva do gozar”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O pai será tomado, então, pelo estatuto de<br />

sintoma e se apresentará como o quarto elemento que sustenta a amarração dos três<br />

registros. Nessa dimensão, o pai são as versões do pai que os sujeitos estabelecem para<br />

escrever sua forma de gozo.<br />

Como no Seminário RSI o sintoma se situa como função da letra – a qual se define pela<br />

identidade de si a si –, será a psicose que dará o modelo do núcleo real de todo sintoma.<br />

50 Pére-version faz homofonia com perversion, na língua francesa, criando uma aproximação fonética<br />

entre ‘versão do pai’ e ‘perversão’ do pai, o que aponta para o uso singular que o sujeito pode fazer desse<br />

elemento conector.<br />

117


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

A inovação ali será fazer do sintoma uma função da letra, fixando o gozo, sem o Outro.<br />

“É mais a construção de uma teoria generalizada do sintoma. [...] Ela é válida para a<br />

neurose e para a psicose, mas inclui a teoria da metáfora neurótica a título de teoria restrita,<br />

mediante a associação daquilo que vale para um axioma suplementar, a saber, a função do<br />

Nome-do-Pai. Esta, pensada antes como defeito na psicose, é de agora em diante situada<br />

como um acréscimo, um suplemento na neurose” (SOLER, 1993, p. 52).<br />

Trata-se do fato de que uma amarração sistemática pode prender-se sem o apoio do<br />

Nome-do-Pai, valorizando a equivalência entre o sinthoma e o Nome-do-Pai: Σ = NP.<br />

Esta fórmula é um princípio cardeal da clínica borromeana. Um sinthoma pode assumir<br />

a função de Nome-do-Pai. Assim é que se obtém este esquema bem simples, segundo o<br />

qual o ponto de capitonné, tem duas formas principais, o Nome-do-Pai e o sinthoma,<br />

ficando entendido que o Nome-do-Pai, o próprio, não vale mais do que um sinthoma e é<br />

um caso distinto do sinthoma (MILLER, 1999) 51 .<br />

Essa discussão nos parece central para discutir a clínica lacaniana, pois o Nome-do-Pai<br />

é o ponto de partida de Lacan para discutir a diferença estrutural entre<br />

neurose/perversão e psicose na primeira clínica. Na segunda, com a idéia de capiton, de<br />

pontos de amarração, o significante do Nome-do-Pai deixa de ter esse lugar central na<br />

construção do diagnóstico. Miller (1999), entretanto, vai falar que isso não justifica a<br />

idéia de continuísmo entre as estruturas, mas somente dentro da psicose. Daí a<br />

importância em se avançar na pesquisa sobre o lugar que o pai passa a ter na topologia<br />

borromeana e suas conseqüências sobre o diagnóstico e a clínica.<br />

Posta essa nova versão do pai, vejamos suas conseqüências clínicas nos dois casos em<br />

que Lacan articula o pai à suplência ao longo de seu ensino. A carência do pai é termo<br />

51 Em seu Seminário de 2001, em Paris VIII, Miller retoma essa discussão realizada durante a<br />

conversação de Arcachon (1999) acerca do último ensino de Lacan. Fazer do Nome-do-Pai mais um<br />

sintoma é operar uma subversão em relação à formalização das estruturas clínicas, que vem sendo<br />

chamada de clínica continuísta em oposição à clínica referida ao Nome-do-Pai. Nessa clínica continuísta,<br />

as estruturas são pensadas em relação ao furo - que, se não nomeado, permanece invisível. E é dessa<br />

maneira que podemos falar em real como ex-sistindo ao sentido. O manejo clínico, então, opera-se caso a<br />

caso concretamente, como concretamente se manuseiam as argolas de barbante do nó borromeu,<br />

extraindo dessa experiência soluções singulares a partir do savoir-y-faire do sujeito.<br />

A primeira clínica seria regida por um ponto central, simbólico, organizador da cadeia significante e da<br />

lógica do pensamento, inclusive do inconsciente. Esse ponto de capitonné, o Nome-do-Pai, seria utilizado<br />

como balizador na formalização lacaniana das estruturas clínicas, numa topologia linear, de setas e traços,<br />

funcionando como ponto de basta, como ponto final, como ponto de corte. Ele faria a amarração dos três<br />

registros, regido por um fortalecimento do simbólico. Portanto, o Nome-do-Pai, no primeiro ensino de<br />

Lacan, é o significante por excelência que produz um efeito de sentido real. É o nome do significante que<br />

dá um sentido ao gozado. Sem o Nome-do-Pai não há lei, não há o corpo e o fora do corpo, operados pelo<br />

falo e pela condensação de gozo que ele produz. Donde se percebe claramente a dominância do<br />

simbólico. O enigma trazido pelo último ensino de Lacan trata da suspensão do Nome-do-Pai e suas<br />

conseqüências para se pensar o real. O sentido aparece desenlaçado do real. E dessa abordagem se<br />

extrairia a possibilidade de uma nova clínica.<br />

118


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

comum tanto à discussão clínica do caso do pequeno Hans quanto à do caso de Joyce,<br />

ainda que eles tenham posições, estruturas diferentes, denotando, de saída, uma<br />

transversalidade entre os dois tempos do ensino lacaniano. Mas será que Lacan concebe<br />

essa carência da mesma maneira?<br />

Veremos também que o sintoma, em ambos os casos, aparece como o que repara um<br />

erro. Sabemos, porém, que a concepção de sinthoma, introduzida no Séminaire XXIII,<br />

altera radicalmente a noção de sintoma presente, até então, no texto lacaniano. Quais<br />

seriam, assim, as aproximações e os distanciamentos que esses dois casos nos permitem<br />

extrair quanto à noção de suplência?<br />

2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia<br />

Todo o ‘tratamento’ 52 de Hans acontece em torno da figura paterna e sua insuficiência<br />

em operar a castração. Hans solicita o pai exatamente nesse ponto e ele não comparece.<br />

Lacan pinça a carência paterna em Hans e no-la apresenta.<br />

“Digamos que, naquele momento [fantasia com desaparafusamento], o pequeno Hans<br />

explique a seu pai: - Enfie isso nela, de uma vez, ali onde é preciso. É isso mesmo que está<br />

em questão na relação do pequeno Hans com seu pai. Temos, o tempo todo, a noção dessa<br />

carência e do esforço feito pelo pequeno Hans para restituir, não digo uma situação normal<br />

[...] – mas uma situação estruturada” (LACAN, 1956-57/1995, p. 371).<br />

Qual a carência do pai aqui? O pai de Hans, enquanto pai imaginário, enquanto<br />

revestido de horror, afasta a possibilidade da castração ao invés de fazê-la operar. Ele<br />

quer parecer bom para o filho. Esse é o ponto que irá exigir da parte do menino uma<br />

solução. Interessante notar que o pai simbólico, o Nome-do-Pai, opera na figura do<br />

professor Freud que, como o bom Deus, tudo sabe. “Isso lhe é muito útil, mas sem<br />

suprir, de modo algum, a carência do pai imaginário, do pai realmente castrador. Todo<br />

o problema reside aí. Trata-se de que o pequeno Hans encontre uma suplência para<br />

este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1956-57/1995, p. 375).<br />

O que se coloca como questão é como o pequeno Hans poderá suportar seu pênis real,<br />

na medida em que este não é ameaçado. Este é o fundamento de sua angústia fóbica. O<br />

desejo de que o pai seja ferido evoca uma circuncisão mítica, colocando em xeque a<br />

confrontação do pai como homem com sua mãe, e também veicula a indagação sobre o<br />

52 O pequeno Hans era filho de um adepto da teoria freudiana que levava suas anotações para o professor<br />

Freud. Este, então, explicava o que se passava com Hans e seu pai fazia intervenções com o menino a<br />

partir dessas explicações. Mas tudo se passava no nível da educação doméstica, mais do que num<br />

contexto clínico.<br />

119


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

próprio pai ter passado por essa iniciação com uma ferida (evocação da castração do<br />

pai).<br />

O que Hans busca é o encontro com esse pai castrador. Se, do lado da mãe, a fantasia de<br />

ser engolido e devorado (que aparece na figura da mordida e da devoração do cavalo)<br />

acena para castração materna, sabemos que daí o sujeito não sai, senão com a<br />

substituição pela castração paterna. Esta é suscetível de desenvolvimento dialético,<br />

enquanto a primeira não. “Uma rivalidade com o pai é possível, um assassinato do pai<br />

é possível, uma eviração do pai é possível. Por este lado, o complexo de castração é<br />

fecundo no Édipo, no lugar em que não o é pelo lado da mãe” (LACAN, 1956-57/1995,<br />

p. 377).<br />

Uma vez que é impossível emascular a mãe, uma impossibilidade se coloca no<br />

horizonte da solução ao impasse colocado por sua castração. É a castração paterna que<br />

vem em seu auxílio. Como ela não se apresenta para Hans, exigirá dele um trabalho a<br />

mais que a suplencie. Como Hans resolve o impasse? Como suplencia a pura ameaça de<br />

devoração total pela mãe?<br />

O começo da articulação se dá com a fantasia da banheira e da furadeira. Será assim que<br />

a mãe será demolida e o pai convocado a desempenhar o papel de furador, substituído<br />

pelas figuras do Schlosser, que começou a desaparafusar a banheira, e depois pelo<br />

instalador que viria para trocar o traseiro de Hans. Diferentemente da suposição<br />

freudiana de que, com isso, Hans ganharia outro pênis no traseiro, Lacan aponta que era<br />

preciso que algo fosse desmontado e se modificasse em Hans no nível da estrutura e,<br />

portanto, da estrutura da linguagem em seus efeitos sobre o corpo. Esse seria o esquema<br />

fundamental do complexo de castração. A mordida materna, elemento instrumental e<br />

substituto da intervenção castradora, deriva quanto a sua direção aparecendo deslocada<br />

nessas fantasias. Isso é suficiente para uma primeira redução da fobia. Há uma<br />

modificação em Hans.<br />

Neste ponto, Anna, sua irmã caçula, entra em jogo como um elemento cuja queda é<br />

possível e desejada, articulando o segundo aspecto da fobia de Hans, a queda do cavalo.<br />

Como podemos lembrar, a fobia se instala sobre a figura do cavalo em relação ao temor<br />

de sua mordida e de sua queda. Anna é, portanto, associada ao termo inassimilável da<br />

situação, ao que pode cair. E aqui Lacan aponta a construção de uma solução imaginária<br />

diante da dimensão real intolerável introduzida por ela. De um lado, Hans a faz montar<br />

120


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

o cavalo de sua angústia fóbica, ponto a partir do qual poderá ele próprio depois,<br />

dominando a situação, também montá-lo.<br />

Por outro lado, Anna é reintroduzida de maneira fantasística, como objeto que sempre<br />

esteve lá. E, mesmo que Lacan não o diga textualmente – posto que sua teoria ainda não<br />

havia avançado até esse ponto –, o circuito da escapada de Hans do zoológico à casa da<br />

avó coloca Anna como resposta no nível do gozo feminino 53 , na medida em que no nível<br />

paterno e fálico Hans não encontrou uma saída (SAUVAGNAT, 1999). Ela aponta para<br />

esse gozo suplementar, sendo incluída na construção da pai-versão de Hans enquanto<br />

acena para a dimensão do gozo do Outro. É assim que, enquanto exceção, o pai opera.<br />

A cada caso, a ele será dada uma versão que inclui um dimensionamento do gozo<br />

conforme os recursos e instrumentos que o sujeito encontra à sua disposição.<br />

2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose<br />

Lacan também fala de pai carente em relação a Joyce, mas lhe acrescenta o adjetivo<br />

indigno, não por acaso.<br />

“É a seu pai que ele endereça esta oração 54 , seu pai que justamente se distingue por ser –<br />

bofe! – o que nós podemos chamar de um pai indigno, um pai carente, aquele que, em todo<br />

o Ulisses, ele se colocará a procurar sob todos os tipos nos quais ele não o encontra em<br />

nenhum nível” (LACAN, 1975-76/2005, p. 69).<br />

Há, evidentemente, acrescenta Lacan, um pai em alguma parte, Bloom, que procura por<br />

um filho. Mas a ele Joyce opõe um é muito pouco para mim. Com o pai que teve, ele se<br />

diz escaldado, nada de pai. Como se vê, além da demissão paterna, o sujeito tem sua<br />

parte na foraclusão, ainda que isso não nos conduza direta e ingenuamente à idéia de<br />

que o sujeito escolhe a estrutura. Na realidade, como também lembra Lacan, salvo ter<br />

enviado o filho aos Jesuítas, o pai de Joyce se demissiona de sua função.<br />

Pierre Naveau (2004b, p. 208-209) localiza o ponto em que Joyce nos fala desse<br />

episódio na narrativa de Um retrato do artista quando jovem (JOYCE, 1914/1992). Ele<br />

tem seis anos quando entra no colégio. E, aos onze, seus pais são obrigados a se mudar<br />

de Dublin, pois seu pai está arruinado financeiramente. Ele descreve cenas de Stephen,<br />

seu personagem autobiográfico, acompanhando o monólogo entrecortado de suspiros<br />

que o pai enceta sobre sua infância e sua vida na cidade natal. Mas Stephen não<br />

53 Rever discussão na nota de rodapé 36 desta pesquisa.<br />

54 Lacan se refere à frase do fim do livro “Um retrato do artista quando jovem”, de Joyce (1914/1992),<br />

“Old father, old artificer, stand me now and ever in good stead”.<br />

121


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

experimentava pelo pai nenhuma compaixão. Ele sabia que seus bens haviam sido<br />

vendidos em leilão e que o pai estava implicado nessa ruína.<br />

“Stephen seguia seu caminho ao lado de seu pai. Escutando histórias já ouvidas... Ele ouvia<br />

a voz de seu pai: ‘Eu te falo como amigo, Stephen. Fazer gênero de pais rígidos, não é<br />

comigo. Eu não creio que um filho deva temer seu pai. Não, eu te trato como teu avô me<br />

tratava quando eu era menino. Nós éramos dois irmãos, mais que pai e filho. Eu não me<br />

esquecerei jamais a primeira vez em que ele me surpreendeu fumando. Ele não disse uma<br />

palavra...’” (JOYCE, 1914/1992, p. 141 – grifo nosso).<br />

O pai de Stephen não faz caso da autoridade da palavra do pai. Ele, de fato, se<br />

demissiona de sua função. Nesta referência, testemunhamos aquilo que Lacan chamará<br />

de uma Verwerfung de fato, diferente da Verwerfung de direito que se realiza no caso de<br />

Schreber. Enquanto a Verwerfung de direito estaria correlacionada à escrita do<br />

significante do Nome-do-Pai no campo do Outro, a Verwerfung de fato diria respeito a<br />

uma fala, a um ato do pai no qual este se ausenta de sua função. O pai falta<br />

efetivamente, no sentido de que diz textualmente em um dado momento: eu me<br />

demissiono, como atesta a passagem acima.<br />

Ora, não há pai real se um filho não teme seu pai. Entretanto, veja a fala de Bloom, o<br />

pai, na narrativa: ‘Eu não creio que um filho deva temer seu pai’. Porém, no que se diz<br />

também se aciona o que opera como significante, o que está em questão no Nome-do-<br />

Pai, como ele se transmite ou não. E Bloom nessa passagem também é claro, o pai não<br />

diz uma palavra sobre a interdição. Finalmente, pai e filho devem se relacionar como<br />

irmãos...<br />

Em Joyce, há uma quebra entre o pai e o Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai, no caso de<br />

Joyce, mostra a Verwerfung de fato no dito do pai. Será sobre esse ponto que Joyce<br />

desejará fazer-se um nome, é sobre esse ponto que a suplência será construída. O estilo<br />

da estabilização, como já dissemos, atesta sempre o estilo da foraclusão, sendo-lhe<br />

decorrente.<br />

“O nome que lhe é próprio, é aquele que Joyce valoriza a expensas/à custa do pai. É a este<br />

nome que ele quis que fosse rendida a homenagem que ele mesmo recusou a quem quer que<br />

fosse. É nisto que podemos dizer que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer<br />

mais que S1” (LACAN, 1975-76/2005, p. 89).<br />

Ele privilegia o nome em detrimento do pai. E nesse ponto há sinthoma. “Joyce tem um<br />

sintoma que parte disso que seu pai era carente, radicalmente carente – ele só fala disso.<br />

[...] que é de se desejar fazer um nome que Joyce fez a compensação da carência<br />

paterna” (LACAN, 1975-76/2005, p. 94).<br />

122


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Se em Hans essa operação de suplência aparece de maneira pejorativa, em Joyce, ela<br />

acena para uma invenção inédita: repercussões da mudança de estatuto do pai na teoria<br />

lacaniana. É assim que, em Hans, Lacan vai nos dizer que “se a solução é apenas<br />

suplência, é porque ele [Hans] é, de certa forma, impotente para fazer amadurecer [...]<br />

o desenvolvimento dialético da situação” (LACAN, 1956-57/1995, p. 378 – grifo<br />

nosso). Joyce, ao contrário, funda uma nova língua, subverte a literatura e se inventa um<br />

nome. Um, não, dois! “Que haja dois nomes que sejam próprios ao sujeito, está claro<br />

que isto foi uma invenção” (LACAN, 1975-76/2005, p. 89). Joyce se inventa um nome,<br />

dois nomes, seja James, seja Joyce; seja Joyce, seja Dedalus. Seu desejo de ser escritor<br />

responde, segundo Lacan, à demissão do pai. Não é somente do mesmo significante que<br />

Joyce e o pai são feitos, mas da mesma matéria, testemunha Lacan na leitura de Ulisses,<br />

no qual Stephen, à procura do pai, Bloom, culmina em um Blephen (e Stoom). Para<br />

Lacan, Ulisses é o testemunho daquilo através do qual Joyce fica enraizado em seu pai,<br />

ainda que o renegando. É isso seu sintoma, é essa sua pai-versão.<br />

Lacan toma essa escrita do real como sua própria invenção. Ele trata essa invenção<br />

como sua resposta sintomática à descoberta freudiana do inconsciente. Ao inconsciente<br />

freudiano Lacan propõe o sinthoma como invenção subjetiva, como o que se escreve<br />

como real, sob a forma do nó borromeano. Enunciar o real sob a forma dessa escrita<br />

borromeana tem valor de traumatismo. Criamos uma língua a cada instante que lhe<br />

damos um sentido, é a essa invenção que o sinthoma nos reporta. “C’est le forçage<br />

d’une nouvelle écriture” (LACAN, 1975-76/2005, p. 131). E se o real não é a realidade,<br />

ele é o órgão que enoda simbólico e imaginário. O real traz o elemento que pode mantê-<br />

los juntos, a saber, o sinthoma.<br />

Miller (2003a, p. 6) propõe ao termo invenção uma oposição em relação ao termo<br />

criação, na medida em que nesta se enfatiza a criação ex nihilo, a partir do nada. A<br />

invenção, por seu turno, é a criação a partir de materiais existentes. E as duas se opõem<br />

à descoberta, na medida em que o que se descobre já está lá, não precisa ser inventado.<br />

Há, pois, em Joyce invenção de um nome, cuja matéria são os elementos dos quais<br />

dispõe: um pai indigno de sê-lo, a referência jesuítica, o conhecimento profundo da<br />

língua inglesa e sua história.<br />

Inventar um nome conduz-nos a uma sutileza na análise da proposição lacaniana. Ter<br />

um sintoma é diferente de ser um sinthoma. Quando Lacan fala de Joyce como<br />

123


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

sinthoma, quando fala que Joyce é sinthoma, sua referência se modifica. Enquanto trata<br />

do desejo de Joyce de ser um artista que ocuparia todo o mundo, o maior número de<br />

pessoas possível em todo caso, fala da compensação do fato de ter um pai que jamais foi<br />

para ele um pai (LACAN, 1975-76/2005, p. 88). Lacan se debruça exaustivamente<br />

sobre essa discussão ao longo de seu seminário sobre Joyce.<br />

Entretanto, numa apresentação que faz no V Simpósio Internacional James Joyce, em<br />

Paris, antes de iniciar o seminário, que se tornou um texto intitulado Joyce o Sintoma<br />

(LACAN, 1975/2005), ele diz em que Joyce é um sintoma. “Se eu digo Joyce o<br />

Sintoma, é que o sintoma, o símbolo, ele o aboliu, se eu posso continuar nessa veia.<br />

Não é somente Joyce o Sintoma, é Joyce enquanto que, se eu posso dizer, desabonado 55<br />

do inconsciente” (LACAN, 1975/2005, p. 164). A arte de Joyce é, para Lacan, algo de<br />

tão particular, que o termo sinthoma, com “th”, é o que melhor lhe convém. Trata-se de<br />

situar o que ela tem a ver com o real do inconsciente. Joyce não sabia que ele fazia o<br />

sinthoma. Isso era inconsciente. E, por isso, ele era um artífice, um homem de savoir-<br />

faire, um artista (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). O sinthoma fala de algo que<br />

responde à realidade mesma do inconsciente (Id. Ibdem, p. 139). É enquanto<br />

desabonado do inconsciente, enquanto não subscrito ao inconsciente, que Lacan fala<br />

sobre Joyce ser, e não ter, um sinthoma.<br />

Trata-se aqui de um sintoma desabonado, não tributário do aparato semântico que é o<br />

inconsciente, e esta é a maneira mais singular que tem o falasser de fazer com o real. Se<br />

o abonnement compromete o sujeito a um pagamento adiantado pela recepção de um<br />

bem (pelo qual aposta que vai obter – de modo regular, periódico e recorrente – uma<br />

recuperação do gozo), o desabono ou a não-subscrição, por outro lado, marca uma<br />

ruptura com tal aposta. Trata-se do sintoma em seu puro valor de uso, um uso que vai<br />

mais além de seu valor significante e de verdade, quer dizer, um uso desprendido do<br />

55 Segundo Laia (2001), psicanalista responsável pela versão brasileira do Seminário XXIII, o termo em<br />

francês desabonné, que consta no texto original de Lacan, não corresponde, de fato, ao termo em<br />

português desabonado, apesar de ele adotá-lo na versão oficial em via de edição no país. Ele estaria antes<br />

referido à condição daquele que deixou de ser assinante, por exemplo, de uma revista – e, no caso de<br />

Joyce, do inconsciente, enquanto, em português, o termo desabonado se aproximaria de desacreditado,<br />

depreciado. Ainda que estejamos num campo semântico diferente do francês, para ele, “esse outro campo<br />

não deturpa o que Lacan visa com o termo desabonné e ainda nos permite aceder a um sentido<br />

diretamente associado à loucura. Porque tanto Joyce em sua obra quanto os loucos em seus delírios<br />

mantêm, de um modo muito evidente, uma posição de descrença, de descrédito, e mesmo de depreciação,<br />

com relação à estabilidade de um sistema organizador do mundo da palavra e da realidade das coisas”<br />

(LAIA, 2001, p. 162). Assim, ele justifica a adoção do termo desabonado para a língua portuguesa, que<br />

também adotaremos feita essa ressalva quanto à sua tradução.<br />

124


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

fantasma, desprendido do gozo extraído da ficção que o sujeito construiu para fazer<br />

existir um Outro do gozo fabricado à sua medida.<br />

Joyce trabalha diretamente no real da letra. Extrai seu gozo de uma experiência que não<br />

é abonada pelo (ou subscrita ao) inconsciente. Em outras palavras, deixa de gozar de seu<br />

inconsciente, desamarrando-se, por meio da pulsão de morte, de uma montagem<br />

significante que, através do S1, poderia tê-lo mantido subsumido a uma representação<br />

que o representava. Deixa, assim, reinar a pura produção de um gozo no ciframento,<br />

sendo impossível restituir-lhe o sujeito como efeito de articulação. “Em outras<br />

palavras, o sujeito é dividido pela linguagem, como em toda parte, mas um de seus<br />

registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala” (LACAN,<br />

1971/1986, p. 24).<br />

O neurótico faz amor com seu inconsciente, ou seja, é atraído por aquilo que pode lhe<br />

revelar algo acerca de seu próprio inconsciente. Nada no texto final de Joyce é capaz<br />

disso, e é isso que torna essa escrita tão ilegível para os neuróticos. A escrita é, para ele,<br />

o seu sinthoma, isto é, sua forma privilegiada de gozo, de um gozo para além de<br />

qualquer demanda ao Outro, um gozo da letra que se exercita não por meio de uma<br />

recusa à não-existência da relação sexual, mas, ao contrário, por meio de seu<br />

reconhecimento. Sua tarefa é a de bordejar este ponto de impossível, fazendo com isto<br />

subsistir a falta, o furo real. Há algo que se joga a cada palavra no texto joyceano, ele<br />

faz o texto falar 56 .<br />

Donde podermos extrair o quadro abaixo:<br />

Joyce tem um sintoma Carência do pai<br />

Joyce é um sinthoma Desabonado do inconsciente<br />

2.5 Enfim...<br />

Toda essa reviravolta no ensino lacaniano irá abrir uma série de possibilidades para se<br />

pensar as suplências. O desdobramento mais direto é o deslocamento da discussão das<br />

suplências de uma perspectiva na qual o objeto ou recurso que suplencia é o elemento<br />

definidor do estilo de suplência, para outra na qual é o processo em jogo na foraclusão<br />

que acarretará, por conseqüência, uma forma de amarração dos três registros, seja ela<br />

borromeana ou não. Neste segundo caso, a suplência se infere do trabalho psíquico a ela<br />

vinculado.<br />

56 Cf. IORIO, A. L. (2007) Quando Eusebius e Florestan se desencontraram para sempre. Uma reflexão<br />

sobre música e psicopatologia, disponível em .<br />

125


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Nesse sentido, a discussão emprendida por Rollier (2005) ilustraria a primeira dessas<br />

duas abordagens das suplências. Ele retoma a discussão de Lacan na década de 50 e a<br />

contrapõe à construção proposta na década de 70. Assim, no primeiro tempo de seu<br />

ensino, Lacan isola a necessidade do sujeito psicótico de compensar, suplenciar a<br />

foraclusão do Nome-do-Pai por suplências que são construções significantes, contando<br />

com o Imaginário ou com o Simbólico, seja por identificações, seja pelo esforço de<br />

significantização. Rollier observa também que Lacan estende desde já o conceito de<br />

suplência à neurose, na discussão do caso Hans, referindo-o a uma simples carência da<br />

função paterna.<br />

Em seu segundo ensino, marcado pelo abandono da primazia da função simbólica, o<br />

conceito de suplência ganha outro valor. A partir do Seminário 20, Mais, Ainda...<br />

(1972-73/1982), qualquer que seja a estrutura, Lacan evidencia que entre os sexos dos<br />

sujeitos falantes a relação não se faz. Para além da ordem do simbólico, é o que faz<br />

sentido na lalíngua que vai suplenciar o fato de que não há com o parceiro sexual<br />

nenhuma relação. Daí a proposição de um elemento suplementar, o sinthoma,<br />

permitindo ao nó se atar. Lacan, então, não falaria mais de suplência, mas de sinthoma,<br />

como o que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real se atarem uns aos outros, ou<br />

dito de outra forma, “na medida em que há sinthoma, não há equivalência sexual, quer<br />

dizer, há relação” (LACAN, 1975-76/2005, p. 101).<br />

Com isso, Lacan postularia menos uma falta inerente ao simbólico em si mesmo que<br />

uma falta estrutural. Essa seria uma outra maneira de dizer que não há relação sexual.<br />

Essa falta corresponde ao que Miller (1998a) vai chamar de foraclusão generalizada, ao<br />

afirmar que há para o sujeito, não somente na psicose mas em todos os casos, um<br />

indizível. Daí a foraclusão do Nome-do-Pai passar a ser conhecida como a ruptura de<br />

um nó, não mais a rejeição de um significante primordial.<br />

A cadeia significante da primeira clínica seria substituída pela proposta dos três<br />

registros enlaçados borromeanamente. Se o Outro é falível, não existindo nem como<br />

garantia, é preciso um quarto elemento para que Real, Simbólico e Imaginário se<br />

mantenham atados. Rollier (2005) também acredita que, de certa forma, no Seminário 3,<br />

Lacan nos teria preparado para essa idéia com a metáfora do tamborete de quatro pernas<br />

(LACAN, 1955-56/1992, p. 228).<br />

Apesar dessa argumentação, ele nos apresenta quatro modalidades de suplência,<br />

126


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

localizando no recurso do qual o sujeito se vale o índice para qualificar cada uma delas.<br />

Assim, seriam modalidades clínicas de suplência para ele:<br />

1. A suplência por um delírio – Ele retoma em Freud (1915a) a idéia de que o<br />

investimento da representação da palavra representa a primeira das tentativas de<br />

restituição ou de cura. Nesse sentido, se o delírio realiza uma metáfora delirante, que<br />

pode ser discreta, pode fazer nó. Como exemplo ele traz uma contrução delirante<br />

que se apóia sobre um ponto de identificação com o salvador, o que permite<br />

restaurar o laço social.<br />

2. A suplência por um uso do significante que permite um modo de estabilização<br />

com “capitonagem” sobre um significante singular – Como exemplo, ele relata o<br />

caso de um paciente que se reapropria do significante “associal”, introduzindo uma<br />

ligeira defasagem através da invenção de um neologismo que o localiza como<br />

fabricante de um fracasso pela palavra. Ele não seria “associal”, ele teria<br />

“falabracado”. Trata-se de uma significação personalíssima dada ao significante<br />

pelo uso da ironia.<br />

3. A estabilização por um modo de gozo – Ela aconteceria, seja por uma prática<br />

perversa, seja pela inscrição corporal de um fenômeno psicossomático, no lugar<br />

daquilo que faria um sintoma, ou pela toxicomania ou pelo alcoolismo. Interessante<br />

que aqui Rollier fala em estabilização e não em suplência. Ele estaria a demarcar um<br />

processo diferenciado pelo uso dos dois termos?<br />

4. A suplência pela escrita – O gozo do Outro que persegue o psicótico, o real que o<br />

invade, equivale a haver qualquer coisa já escrita por ele, contra ele, mas não para<br />

ele. A função da escrita em um psicótico seria justamente a de dominar o gozo pela<br />

letra. O sintoma psicótico como Nome-do-Pai seria o que restitui o gozo<br />

contabilizável, quer dizer, controlado, e seu exemplo seria o caso Joyce.<br />

Ora, aqui estamos diante de uma leitura das suplências que se orienta pela perspectiva<br />

de que há um elemento material do qual o sujeito pode se valer para cumprir uma<br />

função de estabilização. Rollier (2005) dispõe todos os recursos, os quais apresenta no<br />

mesmo nível, conferindo-lhes ao mesmo tempo um tratamento pela primeira e pela<br />

segunda clínica. Com isso, a idéia de tratamento do gozo ou de construção do sinthoma<br />

se apresenta par a par com a idéia de significantização ou de identificação imaginária,<br />

127


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

tornando difícil localizar qual seria o elemento suplementar em cada situação e qual<br />

seria sua função em relação à amarração dos três registros.<br />

Numa outra perspectiva, esta radicalidade do final do ensino lacaniano é evidenciada<br />

por Skriabine (2006), que postulará uma clínica diferencial a partir da topologia dos<br />

nós, diferente da clínica diferencial, apresentada no Seminário 3, As Psicoses. Partindo<br />

da perspectiva de que a experiência humana se estrutura em referência às três categorias<br />

isoladas por Lacan como Real, Simbólico e Imaginário, o sujeito teria que encontrar<br />

uma maneira de manter esses três registros atados, conferindo-lhes uma medida comum.<br />

O sujeito faria assim consistir uma “realidade” que não teria nenhuma existência<br />

intrínseca, pois ela não seria senão um véu tecido do Imaginário e do Simbólico que<br />

serve para recobrir a dimensão insuportável do Real.<br />

Essa proteção, que permite a um discurso se desenvolver e fazer laço, implica em<br />

contrapartida numa limitação de gozo, procedente da função do pai, operadora da<br />

castração sobre o Outro materno. O Nome-do-Pai realiza assim, enquanto Bejahung, a<br />

realidade da castração, o acesso do ser falante ao universo dos discursos e à proteção do<br />

Real que permite a instauração do laço social. Assim, a função do Nome-do-Pai é de<br />

manter juntos, para cada sujeito, um por um, Real, Simbólico e Imaginário, fazendo<br />

consistir uma realidade sem existência, mas capaz de desenvolver o laço social no<br />

campo dos discursos.<br />

O Outro, por seu turno, é sempre falho. Não há uma referência última e absoluta que o<br />

sustente, pois o significante é diferencial, só se realiza a partir de outro significante.<br />

Assim, o significante que garantiria o Outro falta ao Outro. Não há Nome-do-Pai senão<br />

sob a condição de que cada sujeito o coloque em jogo, o faça operar por ser sujeito<br />

faltoso.<br />

Donde Skriabine (2006, p. 58) concluir que:<br />

1. Há estruturalmente foraclusão do Nome-do-Pai no sentido de uma medida<br />

comum “inata”, “normalidade” mítica, que ataria Real, Simbólico e Imaginário<br />

reunidos graças a um nó borromeano bem sucedido. Nada os ligaria a priori. Todos<br />

seriam débeis, dirá Lacan, para além da referência asseguradora do mito freudiano,<br />

do pai inventado para dissimular a dissociação dos três registros.<br />

2. A estrutura da experiência humana é para ser pensada fora de uma referência ao<br />

Outro, ela é para ser pensada a partir das três únicas categorias da experiência, o<br />

128


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Real, o Simbólico e o Imaginário. Lacan avança em seu ensino para mostrar que<br />

essa estrutura se funda sobre uma falta original que é topológica. Ela seria a<br />

estrutura mesma dos nós para além de uma metáfora. O real dessa estrutura é o real<br />

topológico dos nós.<br />

O Nome-do-Pai, para Lacan na década de 70, é o efeito real advindo da amarração<br />

borromeana do nó de três. Como já explicitamos, no nó de três há sempre dois registros<br />

disjuntos e sobrepostos, soltos um em relação ao outro. O terceiro ao enlaçá-los provoca<br />

o efeito de amarração de tal sorte que, soltando-se um, todos os três se desatam. Esse<br />

efeito a mais é real, equivale ao Nome-do-Pai ou ao sinthoma. Nesse sentido, o nó de<br />

três, solução perfeita, figura a falta, figura o que não há. E isso seria o Nome-do-Pai, se<br />

ele existisse.<br />

“Há foraclusão do nó borromeano como Nome-do-Pai. É por isso que ele nos interessa. É<br />

preciso três elementos, R, S e I, dois a dois disjuntos, topologicamente equivalentes, para<br />

fazer o nó borromeano. Portanto, eles são quatro, porque há o nó borromeano ele próprio.<br />

Cada um dos três, R, S ou I, enoda os dois outros e faz consistir o nó: cada um, como<br />

quarto implícito, porta a eficiência do nó borromeano. A ruptura de qualquer um desata o<br />

conjunto” (SKRIABINE, 2006, p. 59).<br />

Há várias maneiras do nó falhar, assim como há várias maneiras de suplenciar essa falha<br />

para manter o conjunto atado. Há, portanto, vários nomes do pai. Para Skriabine (2006),<br />

Lacan demonstra com a topologia a necessária pluralização do Nome-do-Pai, pois se o<br />

Nome-do-Pai falha sempre, os nomes do pai para suplenciá-lo são numerosos. Aqui a<br />

disjunção entre o significante do Nome-do-Pai e os nomes do pai como versões,<br />

suplências, fica evidente.<br />

No Seminário RSI, Lacan dispõe três suplências ao nó borromeano de quatro que seriam<br />

os verdadeiros nomes do pai. Ele apresenta o sintoma como uma das modalidades desse<br />

quarto elemento, neste caso acrescentado ao simbólico. O simbólico é então substituído<br />

por um binário, desdobrado em (simbólico + sintoma), que Lacan designará no<br />

seminário sobre Joyce como (inconsciente + sinthoma).<br />

Revendo a figura 09, podemos nela localizar a cadeia significante no Simbólico,<br />

enquanto inconsciente interpretável ou o que do sintoma se analisa, e o sinthoma<br />

figurado como Σ, enquanto o inconsciente inanalisável, gozo opaco. Valendo-se desse<br />

recurso, Skriabine (2006, p. 59) faz uma aproximação entre a função que a metáfora<br />

delirante realizaria para o psicótico e o Nome-do-Pai para o neurótico – redutível ao<br />

final do trabalho analítico a esse resto inanalisável, puro nome, lugar no qual se refugia<br />

129


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

o gozo que escapa ao significante. A metáfora na psicose condensaria o gozo para o<br />

qual o Simbólico não faria mais barreira. Nesse sentido, a metáfora delirante seria um<br />

Nome-do-Pai que, diferente da metáfora paterna, não é socialmente partilhada. Aqui o<br />

quarto elemento aparece como simbólico em sua função primeira de nomeação.<br />

À nomeação simbólica como sintoma se acrescenta a nomeação do imaginário como<br />

inibição e a suplência do real como angústia. Eis finalmente os três nomes do pai<br />

dispostos por Lacan no Seminário RSI. Lembrando que, na primeira lição deste<br />

seminário, Lacan figura a suplência ao Real por sua nomeação, o Édipo.<br />

Figura 09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) (SKRIABINE, 2006, p. 60)<br />

No seminário sobre Joyce, Lacan (1975-76/2005) apresenta uma forma de erro e de<br />

reparação do nó de quatro totalmente diferente, que nos permite realizar uma<br />

aproximação do nó à clínica na experiência analítica. Ele nos mostra como o sinthoma<br />

vem reparar um erro, um lapso do nó entre Real, Simbólico e Imaginário, no ponto<br />

mesmo em que ele se produz. Lacan parte do relato de Joyce acerca de um episódio no<br />

qual ele é surrado pelos colegas e tem o sentimento de que seu corpo se solta como uma<br />

casca, sem ter experimentado nenhum sentimento de raiva ou revolta em relação ao<br />

acontecido. Nesse deixar-se cair, Lacan nos convida a reconhecer um deslizamento do<br />

Imaginário que não se ata devido a um erro no nó. Nesse ponto em que o erro se produz,<br />

Lacan aponta o ego como sinthoma, como “raboutage correcteur”.<br />

130


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano (LACAN, 1975-76/2005) 57<br />

Lacan identifica nas epifanias o efeito de uma escrita que sustenta o ego, o sinthoma<br />

joyceano, o resto, o resíduo dessa operação de reparação (tal qual o sinthoma resta ao<br />

final de uma análise na neurose). Assim o ego, a escrita, a obra de Joyce são o nome do<br />

pai do qual ele se sustenta para existir e se fazer um nome.<br />

“O ego designa aqui o que se constitui do artifício, da arte de Joyce, que produziu uma<br />

escrita enigmática que desfaz a língua. Constituída a partir da pura materialidade do<br />

significante enquanto ela porta e veicula um gozo inefável, o ego joyceano, sintoma puro,<br />

fora de sentido, puro gozo, se revela como puro sinthoma” (SKRIABINE, 2006, p. 60-61).<br />

Com base nessa argumentação, Skriabine nos propõe, a partir dessa revisão do Nome-<br />

do-Pai no ensino de Lacan, uma nova clínica diferencial.<br />

57 Cf. erro e reparação de James Joyce no CD-ROM.<br />

131


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 11 – Duas modalidades da clínica diferencial (SKRIABINE, 2006, p. 61)<br />

Como se vê na comparação dos dois desenhos, a Verwerfung, no primeiro caso, é o<br />

divisor de águas para se pensar as estruturas clínicas e seu diagnóstico diferencial entre<br />

neurose, psicose e perversão. Partindo dessa perspectiva, a idéia de suplência se assenta<br />

sobre a presença ou ausência do significante do Nome-do-Pai, que agenciaria a entrada<br />

do sujeito na linguagem, dividido como desejante. Nessa ótica, podemos pensar que o<br />

psicótico se valerá de diferentes recursos para realizar uma mesma operação de<br />

reparação, qual seja, a reparação da ausência do Nome-do-Pai.<br />

Na segunda perspectiva, é a forma de amarração do nó que instala o campo diferencial<br />

das suplências e, conseqüentemente, do diagnóstico e da estabilização. A falta estrutural<br />

para todos do significante-índice no campo do Outro traz como efeito a pluralização dos<br />

nomes do pai como estilos de suplência, de reparação, de solução. Nessa abordagem, o<br />

recurso material utilizado pelo sujeito na construção de uma solução a essa falta<br />

estrutural é secundário em relação à operação que a realiza. Interessa menos distinguir<br />

ser a arte ou o delírio o recurso do qual o sujeito se vale nesse trabalho, que<br />

precisarmos, na direção do tratamento, a via e o estilo de operação que inclui esses<br />

recursos na construção de sua suplência.<br />

Dessa maneira, nossa hipótese inicial ganha uma sobreposição, talvez mesmo um<br />

deslocamento. Partimos da hipótese de que a obra na psicose poderia apresentar-se<br />

como solução a partir de um trabalho sobre o campo do real que produzisse uma<br />

condensação de gozo, realizada a partir da criação artística sobre uma superfície<br />

132


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

material. Nosso foco era a materialidade dessa superfície da criação artística ou<br />

artesanal que poderia oferecer-se como apoio para a construção de uma solução.<br />

Perguntávamos, nessa hipótese, se o sujeito poderia prescindir da escrita para forjar um<br />

sinthoma, dado que o caso paradigma era, então, a escrita joyceana.<br />

A discussão empreendida até então neste capítulo nos conduz a um refinamento<br />

necessário dessa discussão, a partir de dois aspectos ao menos. Primeiramente, com a<br />

introdução das noções de letra e de lalíngua na década de 70, a escrita ganha, para a<br />

psicanálise, uma nova materialidade, um novo suporte. Se antes o sujeito se escrevia<br />

sobre um traço apagado, a partir da incidência do significante do Nome-do-Pai, com a<br />

entrada da letra enquanto suporte do significante e litoral entre simbólico e real, a<br />

escrita se faz sobre a ausência de um traço anterior, ela é inaugural em si mesma. A<br />

letra, ao mesmo tempo em que escreve, faz resvalar um gozo a mais, disjunto do campo<br />

do Outro, suplementar, que carece de tratamento.<br />

Dessa forma, a superfície material de nossa hipótese não pode mais ser tomada somente<br />

como a argila ou uma tela, mas antes como letra, que pode ou não se escrever. A base<br />

dessa escrita é, ao mesmo tempo, material e substancial. E, suponhamos por hora, que<br />

essa escrita, se não se faz, não há amarração entre os registros. Na discussão dos casos,<br />

poderemos avançar sobre a caligrafia e as conseqüências da letra quanto à suplência,<br />

que se faz necessariamente a partir de uma escrita...<br />

E, como segundo aspecto, deveremos operar um deslocamento de perspectiva, de<br />

abordagem de nosso questionamento. A questão sobre a obra, sobre a criação<br />

permanece. Entretanto, ela passa a exigir uma outra maneira de ser enfocada. Não é o<br />

recurso “criação artística ou artesanal” que, presente ou ausente, realizará uma<br />

suplência. Trata-se mais do uso, da operação, que o sujeito realiza através, sobre ou a<br />

partir da criação do que dela em si mesma. A questão é, antes, a de localizar no estilo de<br />

resposta que o sujeito constrói a forma de amarração que ele realiza e nesta, então,<br />

pensar como a criação comparece. O que interessa à clínica é mais a habilidade no uso<br />

operatório dessa “arte” de saber-fazer do que a arte como recurso em si mesma.<br />

“É lá que se revela a arte, a habilidade de Joyce, e especialmente em Ulisses: capturar o<br />

deslizamento incessante do pensamento à deriva, mobilizado no endereçamento ao outro,<br />

retornando ao seu autismo; cerrar o não-sentido desse pensamento, revelar a<br />

moterialidade 58 , como dirá Lacan, na qual se fixa o não-sentido destes pensamentos que se<br />

emboscam e se captam nos significantes” (SKRIABINE, 2006, p. 61).<br />

58 Lacan brinca com a idéia de que a palavra (mot) articula uma materialidade nela mesma, pela via da<br />

letra. Daí falar em “moterialité” como sendo o que realiza a pega do inconsciente.<br />

133


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Os significantes passam a jogar sozinhos, fora do significado; sintaxe e léxica se<br />

desfazem com Joyce. No Seminário XXIII, Lacan (1974-75/2005) desenvolve um pouco<br />

mais esta questão. Ao examinar a obra de Joyce e o uso que fazia da linguagem na<br />

literatura, observa que sua obra, apesar de fazer uso da linguagem, representava um<br />

sintoma impermeável à decifração. Joyce escrevia decompondo lalíngua e chegando até<br />

aos fonemas, fazendo jogos lingüísticos em que articulava a escrita com a função de<br />

fonação, levando o leitor ao ato de emitir a voz como suporte da palavra. Nesse sentido,<br />

Joyce eleva lalíngua à potência da linguagem, de S2 a S1, apresentando-a carente de<br />

todo sentido, opaca, puro gozo. De Paolli 59 coloca que, se a Lingüística busca um saber<br />

acerca do significante a partir de lalíngua, “Joyce, a partir desta, extrai um significante<br />

que não é lingüístico – é translingüístico, na medida em que é uma mescla de línguas –<br />

e desdobra a linguagem até sua própria destruição”. Essa potência de linguagem é o<br />

que supre sua carência de potência fálica. Lacan articula ironicamente que o ph de<br />

phonation, Joyce o utiliza com valor do ph de phallus, em alusão ao gozo fálico que o<br />

significante envolveria.<br />

É pela via dessa operação real sobre lalíngua que começaremos, então, a tratar dos nós,<br />

buscando, ao final do próximo capítulo, extrair a aplicação clínica desses nós para a<br />

psicanálise e, especialmente, para pensar as estabilizações psicóticas. Comecemos,<br />

porém, por situá-los no campo psicanalítico, retornando às suas características<br />

matemáticas originais, para finalmente tomá-los como “objetos lacanianos” no uso<br />

adotado por Lacan em relação a eles.<br />

59 Cf. Cynthia de Paolli, “Tu és teu sinthome”, na revista virtual da SPID, disponível em<br />

.<br />

134


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

CAPÍTULO 3<br />

DE NÓS E LAPSOS TAMBÉM SE ESCREVE UM SUJEITO:<br />

A Topologia dos Nós e seus Desdobramentos Clínicos<br />

135


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

3.1 Lacan e o Nó Borromeano<br />

Lacan fala pela primeira vez do nó borromeano na aula de 09/02/1972, no seminário Ou<br />

pire..., a partir da frase “eu te peço que me recuses o que te ofereço, porque não é isso”,<br />

retomada depois para explicar o nó como escrita no Seminário 20. Ele já se refere aos<br />

seminários do matemático M. Guilbaud. Em RSI (LACAN, 1974-75), diz que tomou<br />

conhecimento dos brasões da família borromeu nas anotações de uma pessoa que<br />

freqüentava o seminário do matemático e com quem ele se encontrava vez ou outra.<br />

Tratava-se da jovem matemática Valérie Marchand.<br />

“Os brasões dessa dinastia milanesa eram constituídos de três círculos em forma de trevo,<br />

simbolizando uma tríplice aliança. Se um dos anéis for retirado, os outros dois ficam livres,<br />

e cada anel refere-se à potência de um dos três ramos da família. Carlos Borromeu, um de<br />

seus mais ilustres representantes, foi um herói da Contra-Reforma. Sobrinho de Pio IV, ele<br />

reformou, no século XVI, os costumes do clero no sentido de uma maior disciplina.<br />

Durante a epidemia de peste de 1576, destacou-se por sua caridade e, ao morrer, o<br />

protestantismo fora em parte afastado do Norte da Itália. Quanto às famosas ilhas<br />

Borromeanas, situadas no lago Maggiore, foram conquistadas um século depois por um<br />

conde Borromeu que lhes deu seu nome e fez delas uma das paisagens mais barrocas da<br />

Itália” (ROUDINESCO, 1994, p. 364).<br />

O nó representa, portanto, a indissolubilidade da relação entre os três ramos da família,<br />

de tal sorte que, um deles se afastando desse laço, ele próprio se decompõe.<br />

O encontro de Lacan com o nó borromeu se deu paralelo ao seu encontro com jovens<br />

matemáticos de extrema esquerda. Foi com Pierre Soury, em particular, que Lacan<br />

travou seu mais longo diálogo matemático nesses últimos anos. Físico de formação e<br />

matemático, ele foi designado à direção de estudos de Bernard Jaulin e iniciou a<br />

condução, no ano de 1973-1974 na Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais<br />

(EHESS) em Paris, de um seminário que tinha por objetivo “construir um modelo<br />

matemático que permitisse estudar as preocupações lógicas e topológicas de Lacan”<br />

(ROUDINESCO, 1994, p. 367). O grupo de cerca de vinte pessoas reunidas em Paris<br />

VII-Jussieu dialogava com Lacan e levava seus avanços até o seminário de Lacan no<br />

Panthéon. Foram várias as entradas de Soury neste e em outros seminários, em geral<br />

respondendo a alguma questão formulada por Lacan. Além disso, farta correspondência<br />

(cerca de 200 cartas) e três volumes de uma edição francesa da obra de Soury 60 (feita<br />

por Thomé e Léger, seus companheiros mais próximos de residência, método e idéias)<br />

60 Cf. Pierre Soury, Chaines et Noeuds, edité par Michel Thomé et Christian Léger, Paris, 1988 (Premier,<br />

Deuxième et Troisième Parties).<br />

136


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

testemunham esse encontro 61 .<br />

Ocupado cada vez mais em decifrar a presença ex-sistente do Real, Lacan encontra num<br />

recurso matemático, mais uma vez, uma veia fértil de trabalho. Seu esforço de<br />

transmissão da experiência analítica, enquanto operação real de redução do gozo (ou de<br />

estreitamento, se falamos do nó), tem na topologia dos nós uma descoberta essencial e<br />

diferente do uso que fazia do matema.<br />

“... quando soube desses negócios, do nó borromeano [...] Uma coisa é certa, foi que eu tive<br />

a certeza de ser aquilo algo precioso, precioso para mim, para o que tinha a explicar,<br />

imediatamente relacionei esse nó borromeano com o que, desde então, se mostrava a mim<br />

como rodelas de barbante, algo provido de uma consistência particular, que faltava ainda<br />

ser sustentada, mas que era para mim reconhecível no que eu enunciara desde o início de<br />

meu ensino” (LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975 – grifo nosso).<br />

Enquanto os matemas escrevem o irredutível de um saber que pode ser transmissível,<br />

ainda que não-todo, o nó mostra, no silêncio de seu desenho, o real que está lá 62 . Ele<br />

associa as três rodelas do nó aos três registros com os quais trabalha desde suas<br />

primeiras produções, Real, Simbólico e Imaginário. E, como já dissemos, a relação<br />

entre eles aqui ganha uma topologia singular 63 . Eles são tomados como equivalentes,<br />

sendo o nó, enquanto resultado de uma amarração, o real em si mesmo. Daí a idéia de<br />

que, mesmo num nó de três elementos, eles já seriam quatro, o que mostra a presença<br />

ex-sistente do real.<br />

Os matemáticos que se associaram ao empreendimento lacaniano muitas vezes<br />

auxiliaram o mestre a construir sua teoria. Eles foram interlocutores importantes não só<br />

por se colocarem intensamente a trabalho a partir das proposições lacanianas, mas<br />

também pelo fato de que, sendo matemáticos, introduziram um olhar e um diálogo<br />

diferenciados com Lacan. Em diferentes ocasiões, eles desenharam e conseguiram<br />

construir os “objetos lacanianos” 64 ou ensaiaram confirmar (ou refutar)<br />

matematicamente as afirmações lacanianas. Soury chega mesmo a dedicar os últimos<br />

61 Recentemente – Junho de 2006 – Michel Vappereau levou a leilão em Paris parte dos papéis com as<br />

anotações que Lacan lhe dera referente à topologia dos nós e à matemática.<br />

62 Mais ao final de seu ensino, Lacan (1981) irá dizer, num seminário realizado em Caracas, que o nó não<br />

diz tudo (“mon noeud ne dit pas tout ”), pois que não existe “pas tout” seguramente no real que ele<br />

aborda em sua prática.<br />

63 Charraud (1992) identifica em Lacan ao menos três topologias: (1) topologia geral (as vizinhanças); (2)<br />

topologia dita algébrica (as superfícies); (3) topologia do significante (a partir da significação do falo e<br />

aludida, mas não desenvolvida, em relação à metáfora e à metonímia). Com a topologia dos nós, no item<br />

(1), Lacan estaria deslocando a questão de como surgiu o sentido, apontada em “A instância da letra”<br />

(1957b/1998), para a de como, de um nó de sentido, surgiu o objeto a.<br />

64 Soury (1998b, texte 102, page 1) nomeava algumas figuras matemáticas, como o toro ou o nó<br />

borromeano, de objetos lacanianos.<br />

137


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

anos de seus seminários no Centre national de la recherche scientifique (CNRS) ao<br />

estudo da “topologia lacaniana”.<br />

Um dos interessantes diálogos que evidencia a natureza dessa relação acontece em<br />

1975. Durante seu seminário Joyce, Le Sinthome (1975-76/2005), Lacan retoma a idéia,<br />

já bastante desenvolvida no RSI (1974-75), de que o nó borromeano não é um modelo.<br />

Se o fosse seria da ordem do Imaginário, na medida em que todo modelo situa-se a<br />

partir da substância suposta por este registro (LACAN, 1974-75, aula de 17/12/1974).<br />

Diante desse fato, Lacan espera fazer, do aparente modelo que é o nó borromeano, uma<br />

exceção. E o que significa isso?<br />

Ele é claro: o que faz nó borromeano não é o Imaginário, nem a representação; ao<br />

contrário, é o que escapa a uma representação. “O nó não é o modelo, é o suporte. Ele<br />

não é a realidade, é o Real. O que quer dizer que, se há distinção entre o Real e a<br />

realidade, é o nó, não como modelo” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Para<br />

Lacan, o nó borromeano é uma escrita que suporta o Real, ele é o suporte. “O nó é<br />

subjacente à linha. Não há consistência que não se suporte do nó. É nisto que, do nó, a<br />

própria idéia do Real se impõe. O Real é caracterizado por se atar, mas é preciso fazer<br />

esse nó” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/75).<br />

A fim de demonstrar sua assertiva, Lacan, no seminário do ano seguinte, propõe a<br />

hipótese de que não seria possível produzir um nó borromeano de quatro nós de trevo.<br />

Provar sua não-existência – e não sua ex-sistência – permitiria que um Real fosse<br />

assegurado. Trataria-se do Real constituído por isso: que não há nó borromeano que se<br />

constitua de quatro nós a três. Demonstrá-lo seria tocar um Real, uma dimensão não-<br />

representável no campo dos nós (LACAN, 1975-76/2005, p. 43). Antes de conhecermos<br />

a resposta dada a Lacan por seus parceiros matemáticos, avancemos um pouco sobre o<br />

que é a demonstração e a mostração para a Matemática.<br />

Em uma demonstração (SOURY, 1988b), o que se discute são as configurações parciais<br />

e as configurações impossíveis, especialmente as configurações parciais impossíveis. (É<br />

o que Lacan pretende aqui. Ele quer demonstrar uma parcialidade impossível para a<br />

teoria dos nós, ou seja, um nó que não pode ser realizado.) Desenhar, ao contrário do<br />

demonstrar, seria mostrar as configurações completas e possíveis. Demonstrar é<br />

principalmente demonstrar as impossibilidades, enquanto mostrar é principalmente<br />

mostrar as possibilidades.<br />

138


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Os desenhos são suspeitos de falsear as demonstrações. E, num outro sentido, as<br />

demonstrações induzem a desenhos ruins e a desenhos sem interesse. Uma vez que um<br />

desenho ganha uma configuração completa, tornam-se problemáticas certas existências<br />

e certas construções. Donde a demonstração operar pelas configurações parciais.<br />

A preocupação com a generalidade conduz a mostrar somente contra-exemplos. Ela<br />

produz desenhos especialmente desagradáveis: são desenhos que querem indicar uma<br />

generalidade de desenhos possíveis. Ora, um desenho, uma apresentação de objeto, não<br />

mostra senão uma coisa. E, para desenhar um caso particular, é preciso estar-se<br />

sustentado pela existência de casos exemplares. Há efeitos ruins das demonstrações e<br />

das generalidades sobre os desenhos.<br />

Estas são modalidades de dificuldades diferentes daquelas próprias ao desenho, à<br />

apresentação, à designação, como as dificuldades ligadas à apresentação plana, em duas<br />

dimensões, de objetos do espaço tridimensional. Um exemplo dessa dificuldade é o<br />

problema clássico de perspectiva em geometria. Os problemas de apresentação ou de<br />

designação são fontes de desenhos errados e obscuros, o que é atestado por Lacan ao<br />

longo de seus seminários topológicos ao errar inúmeras vezes o desenho de seus nós no<br />

quadro negro.<br />

Daí uma apresentação de objeto, sua representação, ser muito menos ambiciosa que uma<br />

definição geral de um gênero de objeto. De saída porque uma apresentação é particular<br />

enquanto uma definição é geral. Em seguida porque designar um objeto de três<br />

dimensões por algo em duas dimensões é menos ambicioso que designar e definir um<br />

objeto espacial pela linguagem somente.<br />

Donde decorre uma outra dificuldade da apresentação, qual seja, a de produzir uma<br />

simplificação pelo desenho particular que gera desconhecimento sobre as dificuldades<br />

da definição geral do objeto. As dificuldades e problemas de designação (ou<br />

apresentação) têm uma fecundidade muito diferente e são quase mesmo constitutivas<br />

em topologia. Soury (1988b, texte 102, page 3) chega a dizer que a relação entre<br />

demonstração e mostração pode induzir a proposições falsas e/ou a figurações incorretas<br />

de objetos topológicos.<br />

Apesar de os matemáticos trabalharem principalmente com a abstração da demonstração<br />

e da definição, ou seja, do lado da demonstração, um enunciado exato tem<br />

freqüentemente duas metades: uma demonstrativa e outra mostrativa. Demonstrar as<br />

139


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

impossibilidades somente fica claro por referência a mostrar as possibilidades. Isto quer<br />

dizer que uma demonstração não caminha sem uma mostração e que uma definição não<br />

caminha sem uma designação. Podemos mesmo construir uma tabela na qual dispomos<br />

a diferença, o objetivo e o alcance da demonstração e da mostração, nessa relação de<br />

complementaridade que podem (e mesmo devem) adquirir.<br />

DEMONSTRAÇÃO MOSTRAÇÃO<br />

Definição Apresentação (ou designação)<br />

Gênero de objeto Objeto<br />

Generalidade Particularidade<br />

Impossibilidade Possibilidade<br />

Contra-exemplo Caso exemplar<br />

Configuração parcial Configuração completa<br />

Lacan mostra o nó para falar do discurso analítico enquanto operação sobre o real do<br />

gozo. “Se fui levado à mostração desse nó, enquanto o que buscava era uma<br />

demonstração de um fazer, o fazer do discurso analítico, isso é bastante, diria eu,<br />

mostrativo ou demonstrativo” (LACAN, 1974-75, aula de 11/03/75).<br />

E seu exercício avança na discussão do Seminário XXIII sobre haver uma<br />

impossibilidade em se fazer um nó borromeu de quatro nós de trevo. Com isso, ele<br />

mostraria uma impossibilidade, afirmando sua assertiva original de que o nó é o Real.<br />

Ele busca uma demonstração do Real pela apresentação de um contra-exemplo: a<br />

impossibilidade da existência de um nó borromeano de quatro nós de trevo.<br />

A dedicação dos matemáticos com quem dialoga aparece aqui no desenho trazido por<br />

Thomé que apresenta exatamente o desenho desse nó... Apesar de Lacan dizer ter<br />

passado os dois meses de férias quebrando a cabeça para desenhá-lo, como ele mesmo<br />

nos diz, isso não foi suficiente para provar que essa apresentação não existisse. De fato,<br />

na aula seguinte a que Lacan se coloca essa questão, Thomé e Soury trazem o desenho,<br />

que se encontra no Seminário XXIII (LACAN, 2005/1975-76, p. 47). São três nós de<br />

trevo livres uns em relação aos outros, amarrados borromeanamente por um quarto.<br />

Como o próprio Lacan argumenta em seguida, isso simplesmente teria permitido<br />

sustentar o que ele pretendia introduzir, a saber, a equivalência dos três registros, posta<br />

desde o Seminário RSI. Ali, ele define as três consistências por sua equivalência e<br />

também por seu estatuto no nó.<br />

“Eles são constituídos por alguma coisa que se reproduz nos três. [...] é o resultado de uma<br />

certa concentração, que seja no Imaginário que eu coloque o suporte do que é da<br />

140


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

consistência, que, do mesmo modo, seja do furo que eu faça o essencial do que é do<br />

Simbólico, e que eu suporte especialmente do Real o que eu chamo de ex-sistência”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975).<br />

É do fato de que dois sejam livres um do outro que se suporta a ex-sistência do terceiro,<br />

especificamente a do Real em relação à liberdade do Simbólico e do Imaginário. A<br />

partir do momento em que o Real é enodado borromeanamente aos dois, eles lhe<br />

resistem. Isso quer dizer que o Real só tem ex-sistência na medida em que encontra no<br />

Simbólico e no Imaginário sua parada, seu limite. Daí Lacan afirmar e reafirmar<br />

continuamente que o Real não é apenas uma rodela do nó borromeu, mas o efeito da<br />

maneira como ele se amarra. O que nos importa aqui é essa operação real que, como<br />

veremos, desloca e fixa o gozo. Trabalho permitido por uma renomeação do sujeito a<br />

partir da versão do pai que estabelece.<br />

Nesse diálogo, portanto, com a matemática e com os matemáticos, Lacan não faz nada<br />

mais que, como sempre, orientar a clínica e reconduzi-la a sua radicalidade. Podemos<br />

dizer que ele estabelece com a Matemática uma relação muito próxima da que<br />

estabelece com a Filosofia 65 . Apesar de serem saberes disjuntos, Lacan coloca a<br />

Matemática a serviço de seu trabalho teórico. Ele não a utiliza apenas como ilustração<br />

lateral, mas dela extrai aportes que lhe permitem forjar seus conceitos clínicos.<br />

Alguns anos após o suicídio de Soury em 1981 – três meses antes da morte de Lacan –,<br />

Thomé edita seu curso numa trilogia de cerca de seiscentas páginas 66 nas quais se<br />

encontram desenvolvimentos teóricos, lógicos, geométricos e aritméticos da topologia<br />

matemática, desenhos topológicos, rascunhos de idéias de sua aplicação à psicanálise,<br />

diálogos com Lacan, e dados da história pessoal de Soury. Deles podemos extrair a<br />

experiência viva da parceria dessa dupla de matemáticos com Lacan perscrutando os<br />

arredores e as veias principais dos três livros. Em comunicação pessoal com Thomé, ele<br />

diz que, com a edição do livro, tratava-se de fazer viver a genialidade de seu parceiro e<br />

dar a ele o lugar destacado que merecia na posteridade.<br />

3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático<br />

A importância desse diálogo para a psicanálise reside, em nosso entender, na mostração<br />

do Real, realizada através da presença da Matemática na elaboração lacaniana da clínica<br />

65 Apoiamo-nos na proposta de BAAS (1992) acerca da relação Psicanálise-Filosofia para pensar a<br />

relação Matemática-Filosofia.<br />

66 SOURY, Pierre. Chaines e Noeuds. Paris, 1998. (Première, Deuxième et Troisième Parties).<br />

141


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

psicanalítica. Algumas proposições de Lacan, como veremos, são inaceitáveis no campo<br />

matemático. Ele subverte os conceitos matemáticos, como já o fizera com os da<br />

Lingüística e com os da Filosofia. Tal é a situação da representação plana de um nó<br />

borromeu de três rodelas, desenhado com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-<br />

76/2005, p. 112). Lacan tenta assim evitar todo Imaginário do círculo que aprisiona,<br />

fecha.<br />

Figura 12 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-76/2005, p.<br />

32)<br />

Essa forma de apresentação é simplesmente inconcebível para um matemático. Isso pela<br />

simples razão de que as retas infinitas podem se cruzar de qualquer maneira no espaço,<br />

e não somente daquela que resultará num nó borromeano. Donde a exigência, para<br />

designação do nó, de que ele seja representado por três círculos.<br />

Lacan remonta a equivalência do círculo com a reta infinita à perspectiva de<br />

Desargues 67 , que teria percebido que toda reta infinita fecha, faz anel num ponto<br />

infinito. Assim, para Lacan (1974-75, aula de 08/04/1975), está dada a equivalência da<br />

reta ao círculo pelo fato de que os dois fazem nó. Sendo equivalentes na eficiência do<br />

nó, entre eles não haverá diferença, salvo pela passagem de um a outro... E nesse<br />

percurso, Lacan observa que o círculo está centrado no furo, enquanto a reta parte no<br />

67 A geometria projetiva surge com as dificuldades dos artistas do Renascimento para dar aos quadros que<br />

pintavam a forma real dos objetos inspirados, de modo que as pessoas ao olharem o identificassem sem<br />

dificuldades. Isso levou os artistas a estudarem profundamente as leis que determinavam a construção<br />

dessas projeções. Com esses estudos eles chegaram à teoria fundamental da perspectiva geométrica, que<br />

se expandiu por um pequeno grupo de matemáticos franceses motivado por Gerard Desargues. Desargues<br />

publicou um tratado original sobre sanções cônicas, aproveitando idéias de projeção. Esse trabalho,<br />

porém, foi ignorado e esquecido pelos matemáticos da época e todas as suas publicações desapareceram.<br />

O que os levou a essa falta de interesse sobre o trabalho foi a geometria analítica (introduzida dois anos<br />

antes por René Descartes) e a termologia excêntrica adotada por Desargues. Mas o geômetra Michel<br />

Chasles conseguiu ressuscitar o trabalho de Desargues ao escrever sobre a história da geometria, pois<br />

encontrou uma cópia manuscrita de seu estudo feita por um de seus seguidores. Assim, o trabalho de<br />

Desargues foi reconhecido como um dos clássicos no desenvolvimento da geometria projetiva, sendo hoje<br />

referencial no campo. Disponível em Wikipedia .<br />

142


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

errar até encontrar a consistência, ou seja, ex-siste, tem o furo em volta dela toda. O erro<br />

central do nó, dado pela marca do recalcamento primário irredutível ao Simbólico,<br />

instala um campo de falta e exige um suplemento a esta falta que cria. Esse erro,<br />

portanto, é a chance de fixar o nó (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). Dessa<br />

maneira, o nó borromeano constituído pela esfera e pela cruz torna-se, assim, necessário<br />

para a proposição lacaniana de suplência, ao mesmo tempo em que se torna um<br />

equívoco ou um desvio para a Matemática.<br />

A subversão que acompanha a “topologia lacaniana” se apresenta num esforço<br />

constante de Lacan em afirmar a incapacidade do plano de três dimensões em dar conta<br />

do sujeito do inconsciente. “Lacan definiu um projeto que poderíamos denominar<br />

‘inversão da topologia algébrica’, quer dizer, de fundar o espaço a partir dos nós e não<br />

os nós a partir do espaço” (SOURY, 1988b, texte 104, page 2). A introdução do toro ou<br />

da garrafa de Klein no plano projetivo já sugeria esse projeto. No Seminário RSI, Lacan<br />

recorre às noções de vizinhança e de ponto de acumulação 68 para evidenciar quanto a<br />

topologia “encara o espaço de outra forma [...] Vê-se muito bem qual é a vertente, na<br />

descontinuidade como tal, enquanto manifestamente há aí uma resistência a que a<br />

continuidade seja a vertente natural da imaginação” (LACAN, 1974-75, aula de<br />

08/04/1975).<br />

Como passar do centro para o em torno continuamente implica em tentar responder<br />

topologicamente ao fato de a linguagem se apresentar no texto inconsciente pelo<br />

significante e manifestamente no ato da fala pela palavra, tal qual a Banda de Moebius o<br />

explicita. Ou, tomada sob outra perspectiva, letra e significante dispõem-se com<br />

estatutos topológicos diferentes mas, ao mesmo tempo, intrinsecamente articulados. É<br />

nesse sentido que Lacan critica a geometria euclidiana como insuficiente com suas três<br />

dimensões (ponto = dimensão zero, reta = dimensão dois, espaço ou volume = dimensão<br />

três) para dar conta da experiência do inconsciente. É preciso um plano projetivo que<br />

permita operações psicanalíticas, impossíveis para a geometria clássica.<br />

E quanto à topologia dos nós? Na mesma direção, Lacan associa o uso do nó<br />

borromeano a uma tentativa de evidenciar o discurso analítico que, por incluir o objeto<br />

68 Esses são conceitos que surgem na Matemática dos números e dos planos complexos, acrescentando<br />

aos números reais e ao plano cartesiano a possibilidade de continuidade antes inexistente. Podemos dizer<br />

que foi através do uso e da compreensão dos números complexos que certos “defeitos” existentes no<br />

conjunto dos números reais foram “consertados”, ampliando o campo do raciocínio matemático ao inserir<br />

nele as continuidades. É sobre a analogia com o descontínuo e o contínuo que se apóia a perspectiva de<br />

uma continuidade intrapsicose ou o esquema da clínica diferencial apoiada na topologia dos nós.<br />

143


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

a, aponta para uma dimensão de escape da linguagem. “...se fui uma vez tomado pelo nó<br />

borromeano, foi por esse tipo de acontecimento, ou de advento 69 , como quiserem, que<br />

se chama discurso analítico...” (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O que ele<br />

buscava ao encontrar nos nós esse acontecimento? É ele mesmo quem nos responde.<br />

De um lado, e principalmente, tratava-se de pensar um deslocamento da Lingüística em<br />

relação ao nó, ou da prevalência do Simbólico em relação à prevalência do Real. “É<br />

preciso que o Real sobreponha, se posso assim dizer, o Simbólico para que o nó<br />

borromeano seja simbolizado [...] é muito precisamente do que se trata na análise”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975). Isso nada tem a ver com um sobrepor-se no<br />

sentido imaginário de uma dominação, e sim que Real e Simbólico se atam de outra<br />

forma. Essa outra forma é o que faz o essencial do complexo de Édipo e é no que opera<br />

uma análise.<br />

Ora, no mesmo seminário, RSI (1974-75), Lacan reforça a idéia de que “a linguagem é<br />

só ornamento”, enquanto “o importante é a referência à escrita”, como vimos. Ainda<br />

que ele não perca de vista que é pela linguagem que somos afetados, também não perde<br />

de vista a diferença entre língua e fala, e entre fala e nó. A fala, apoiada na língua,<br />

produz cadeia pela associação significante. Entre os três registros do nó, entretanto, não<br />

há reciprocidade da passagem de uma das consistências no furo que o(a) outro(a) lhe<br />

oferece. As consistências não se atam uma à outra, quer dizer, não formam cadeia. E é<br />

nisso que se especificam as relações entre Real, Simbólico e Imaginário. Supunha-se<br />

que eram as palavras que carregavam o efeito de sentido. Lacan coloca a questão de<br />

saber se o efeito de sentido no seu Real se agüenta bem com o uso das palavras. E<br />

avança dizendo que devemos nos fiar no fato de que o dizer faz nó, diferente da palavra<br />

que desliza, pois há o inconsciente por detrás do blá-blá-blá do sujeito. Há uma cifra de<br />

gozo que o nó engancha.<br />

Deciframento no campo do Simbólico, ciframento no campo do Real é outro aforismo<br />

conseqüente dessa discussão que evidencia o que Lacan buscava encontrar ao se deparar<br />

com o nó. Há, no que se diz, o que é afetado pela palavra, o que se goza com ela. “A<br />

interpretação implica totalmente numa báscula na envergadura desse efeito de sentido”<br />

(LACAN, 1974-75, aula de 11/02/1975). Ela carrega, afeta, de uma maneira que vai<br />

bem mais longe que a palavra. Há um ponto de gozo que a linguagem realiza e que lhe<br />

69 Aqui Lacan joga com as palavras “évènement” (acontecimento) e “avènement” (advento, aparecimento)<br />

para tratar do encontro com a figura do nó borromeu.<br />

144


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

escapa. Quando Lacan nos convida a entrar na fineza dos campos de ex-sistência, pois é<br />

aí que uma análise opera, e localiza na ex-sistência a incidência do gozo em relação aos<br />

dois registros que se lhe opõem, convida-nos por conseqüência ao estudo da topologia.<br />

Apresenta-nos, nessa faceta, o que mais se encontra ao se deparar com os nós. Para ele,<br />

o nó borromeu é a melhor topologia para tratar do furo, pois a ex-sistência permite<br />

exatamente conceber o limite, a não-relação.<br />

E, enfim, na mesma via aberta pela relação à lingüística e pela relação ao tratamento do<br />

gozo, Lacan (1974-75, aula de 15/04/1975) nos fala do encontro, através da descoberta<br />

do nó, com uma realidade operatória. A realidade psíquica, a estrutura do mundo,<br />

consiste em se conseguir palavras, enquanto a realidade operatória trata disso que<br />

foge 70 , do Real. O inconsciente apenas permite que se veja haver um saber não no Real,<br />

mas suportado pelo Simbólico, concebível pelo limite, pelo furo. O Simbólico gira em<br />

falso e consiste apenas no furo que faz. Foi preciso que se fosse ao Real, suposto, para<br />

se ter um pressentimento do inconsciente no sentido do que dá corpo ao instinto.<br />

Trata-se, como se vê, de uma questão clínica por princípio a do encontro de Lacan com<br />

o nó borromeano. O deslocamento de perspectiva operada por Lacan nesse período de<br />

seu ensino encontra na teoria matemática dos nós uma sustentação real, hors de la<br />

langage, mas por ela amparada, que interessa à clínica de maneira geral, e à clínica da<br />

psicose, em particular.<br />

“A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? Porque só ela é<br />

matema, quer dizer, capaz de transmitir integralmente” (LACAN, 1972-73/1982, p.<br />

161). Mas se a formalização matemática é a escrita dessas pequenas letras em relação<br />

umas às outras, ela só subsiste à condição de que seja lida, falada, e, com isso, algo já<br />

está de saída perdido. Daí o matema apresentar-se, antes de tudo, como ideal<br />

metalingüístico. E donde, por conseqüência, Lacan ir além e fazer consistir um saber na<br />

medida em que ele se suporta na ex-sistência mostrada nos nós.<br />

Podemos, enfim, dizer que a recorrência de Lacan aos nós se deveu ao seu desejo de<br />

fazer valer uma clínica sustentada pelo Real no sentido de fazer operar o inconsciente<br />

como savoir y faire do sujeito. Tratava-se, à época, de mostrar as condições de<br />

possibilidade do discurso analítico, enquanto redução semântica, mas também redução<br />

70 “E é inclusive no que o mundo é mais fútil (futile), quero dizer, que foge (fuit)” (LACAN, 1974-1975,<br />

aula de 15/04/1975). Lacan ironiza de novo com a homofonia para tratar do que, “fútil”, foge ao<br />

simbólico e se apresenta, ao contrário, como determinação real.<br />

145


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

do gozo a sua parte que resta como vivificadora, elemento pulsante que permite ao<br />

desejo construir seus nomes e seus percursos. Caminhemos, então, pelos nós da<br />

topologia...<br />

3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais<br />

Os principais estudos de Lacan acerca dos nós datam da década de 70. Nesse período,<br />

os matemáticos que se dedicavam ao tema ainda não tinham realizado o avanço que data<br />

da década de 80. A teoria dos nós nasce no final do século passado, sendo<br />

contemporânea da invenção da psicanálise. Mas mesmo os egípcios já utilizavam os nós<br />

para marcação de medidas dos campos após as cheias do Nilo. Trata-se da cadeia do<br />

agrimensor que se encontra na origem da matemática egípcia (GRANON-LAFONT,<br />

1996). Foi somente no final do século XX, entretanto, com o desenvolvimento da<br />

informática e com o uso do computador para resolver as fórmulas teóricas do nó, que<br />

um avanço mais consistente se deu. É com Vaughan Jones, inventor do “polinômio de<br />

Jones” em 1984, que invariantes sofisticados para abordar os nós começam a ser<br />

desenvolvidos (SOSSINSKY, 1995). A essa época, Lacan já havia morrido...<br />

Dessa forma, acompanhando a discussão lacaniana, buscaremos, apoiados na topologia<br />

dos nós, destrinchar sua teoria de base, no que ela concerne e serve ao saber e à clínica<br />

da psicanálise. Como vimos, na medida em que Lacan avança em suas discussões<br />

acerca de um certo impossível de apreender, mais ele se vale desse recurso para falar do<br />

que se escreve como Real. Pensamos que o uso da topologia, nesse sentido, a<br />

necessidade de pegar e fazer os nós com fios ou cordas concretamente, é imprescindível<br />

e autentica uma forma de pensar a clínica como operação que parte do Real. Para além<br />

de teorizar ou conceituar as questões do inconsciente e do sujeito ou, em outras<br />

palavras, para além de produzir sentido, de operar com a elucubração do saber advindo<br />

da debilidade do inconsciente, Lacan nos convida a operar com o Real em jogo em<br />

qualquer forma de saber.<br />

Já desde as fórmulas da sexuação, mas principalmente com Joyce, Lacan parece<br />

desacreditar do poder do significante, da eficácia simbólica da palavra. A aridez<br />

hermenêutica dos nós é consubstancial a este período do ensino lacaniano, demarcando<br />

uma orientação para o analista que acirra os efeitos e o manejo do real do gozo. Discutir<br />

as diferentes formas de amarração borromeanas, e mesmo não borromeanas, os erros ou<br />

146


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

lapsos dos nós, suas costuras ou suplências, deixa assim de ser um mero exercício<br />

acadêmico para se conformar numa árdua tarefa clínica. É pelo menos dessa maneira<br />

que, entendemos, a teoria dos nós precisa ser enfrentada.<br />

Afinal de contas, o que é um nó? Enquanto no uso comum, os nós podem ser amarrados<br />

numa corda e suas pontas podem se encontrar livres, a teoria matemática dos nós<br />

denomina um objeto deste tipo antes como uma trança que como um nó. Para um<br />

matemático, um objeto é um nó somente se suas extremidades livres são unidas de<br />

alguma maneira de modo a que a estrutura resultante consista em um único fio enlaçado<br />

(looped strand) 71 .<br />

Assim, “os nós são curvas unidimensionais situadas no espaço tridimensional<br />

ordinário, que começam e terminam num mesmo ponto” (NEUWIRTH, 1979, p. 52<br />

apud MAZZUCA et al, 2000, p. 30). Há uma relação de menos dois na composição de<br />

um nó, ou seja, menos duas dimensões do espaço unidimensional em relação ao<br />

tridimensional. O nó também pode ser abordado a partir somente da dimensão<br />

tridimensional, como faz Lacan ao elaborar o toro com uma corda. Na psicanálise<br />

lacaniana, trabalhamos sempre com o exemplo material do objeto matemático abstrato,<br />

na medida em que utilizamos a mostração através dos fios ou das cordas em suas três<br />

dimensões. O nó é, portanto, uma curva fechada, uma curva com os extremos unidos.<br />

Inclusive o nó trivial, que é o nó mais simples, aos olhos do leigo não o seria, como o é<br />

aos olhos do matemático.<br />

Figura 13 - Nó trivial (matemático) à esquerda e nó do senso comum à direita<br />

A propriedade de enodamento não é intrínseca ao nó, como curva de uma só dimensão,<br />

como se pode ver. Mas responde ao fato de que está e como está submergido no espaço<br />

tridimensional. Por exemplo, se uma formiga segue pela circunferência, ela não percebe<br />

o nó (NEUWIRTH 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 32).<br />

A fim de precisar com maior rigor a conceituação dos nós, agruparemos suas principais<br />

71 Disponível em .<br />

147


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

características que, se não compreendidas, geram conclusões equivocadas e<br />

deformações conceituais. Podemos dizer, de saída, que os problemas cruciais dos nós<br />

são três:<br />

(a) saber quando dois nós são equivalentes e quando não o são;<br />

(b) determinar se um nó está realmente enodado;<br />

(c) realizar uma classificação de todos os nós possíveis.<br />

A discussão teórica que se segue nasce na tentativa de responder a essas três questões<br />

centrais.<br />

A. Equivalência entre os nós<br />

Pela matemática, “dois nós são equivalentes quando o modelo correspondente a um<br />

deles pode deformar-se – estirando-o, contraindo-o ou retorcendo-o – até alcançar a<br />

forma do outro, sem romper o tubo nem fazê-lo passar através de si mesmo”<br />

(NEUWIRTH, 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 33). O tubo a que se refere a<br />

citação pode ser compreendido como o toro pelo qual passa a curva unidimensional que<br />

é o nó. Ele pode ser representado visualmente ou pensado, para fins de compreensão,<br />

como um fio ou uma corda. Portanto, se você não corta as cordas ou fios (ou rompe o<br />

tubo) ao deformar um nó e ele chega ao formato do outro, daí são equivalentes. Por<br />

conseguinte, somente se se mexer nos fios dos nós, sem alterar seu enlaçamento, é que<br />

eles serão equivalentes.<br />

Assim, ainda que dois nós se apresentem visualmente de uma maneira diferente, eles<br />

podem apresentar as mesmas propriedades e serem equivalentes. Nesse caso, dizemos<br />

que são apresentações distintas do mesmo nó, já que uma apresentação pode deformar-<br />

se na outra, sem romper a corda. Veja o exemplo abaixo:<br />

=<br />

Figura 14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial ()<br />

E, ao contrário, dois nós podem se apresentar desenhados da mesma forma e não serem<br />

equivalentes. Observe:<br />

148


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos (verdadeiro e falso nó de trevo)<br />

No primeiro desenho da figura 15, temos um nó de trevo que pode ser definido como<br />

uma linha que corta por cima, por baixo e por cima de novo a si mesma, fechando-se ao<br />

final no ponto inicial de partida. É, pois, um nó, sendo classificado como o segundo nó<br />

mais simples dentre os existentes e conhecidos. No segundo desenho da figura 15, há<br />

um falso nó de trevo pois ele passa, em todos seus três cruzamentos, por cima. Com<br />

isso, basta torcê-lo uma vez para que se o transforme no nó trivial.<br />

Figura 16 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo<br />

Dessa maneira, podemos dizer que o primeiro e o segundo nó da figura 15 não são<br />

equivalentes 72 , apesar de possuírem uma apresentação semelhante. Enquanto os nós da<br />

figura 17 abaixo são, esses sim, equivalentes, apesar de terem apresentações distintas.<br />

Neles há três pontos de cruz (a corda passa por cima, por baixo e depois por cima de<br />

novo). Ambos são nós de trevo, com três pontos de cruz.<br />

Figura 17 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas<br />

72 Cf. movimento no CD-ROM.<br />

149


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

As diferenças de apresentação nos auxiliam a pensar, no campo da psicanálise, a<br />

questão diagnóstica. Ainda que, enquanto forma ou conteúdo, um fenômeno ou um<br />

sintoma apresente-se de maneira semelhante em dois sujeitos de estruturas clínicas<br />

diferentes, ele só se tornará índice para diagnóstico se reduzido a sua forma mínima,<br />

qual seja, a partir de sua escrita no nó. Por exemplo, mesmo que dois fenômenos<br />

aparentemente alucinatórios se assemelhem quanto à forma de sua apresentação, eles só<br />

poderão ser tomados como fenômenos elementares de uma psicose, conforme sua<br />

incidência na amarração da linguagem e do gozo configurada pelo nó. Assim, sua<br />

apresentação pode ser semelhante numa psicose e numa histeria e, no entanto, tratar-se<br />

de sintomas de ordens diferentes, não equivalentes.<br />

B. Movimentos dos nós<br />

A fim de se passar de uma apresentação a outra de um nó, existem apenas três<br />

movimentos básicos, denominados “movimentos de Reidemeister”, que constituem suas<br />

manobras de mudança (MAZZUCA et al, 2000, p.34). Qualquer deformação que se faça<br />

em um nó, necessariamente passará por um desses três movimentos, uma ou mais vezes,<br />

ou pela combinação entre eles. Eles são nomeados pelo movimento que sugerem. Estão<br />

enumerados e demonstrados abaixo.<br />

1º - Torção-Desfazimento da torção 2º. Superposição-Retirada 3º. Deslizamento<br />

Figura 18 – Os três movimentos dos nós (MAZZUCA et al, 2000, p. 34) 73<br />

Com os movimentos de Reidemeister, evidencia-se a isotopia dos nós. Não podemos<br />

afirmar que os nós sejam exatamente iguais entre si (A=B), mas, a partir desses<br />

movimentos, podemos estabelecer sua homotopia, sua semelhança topológica 74 .<br />

73 Cf. movimentos no CD-ROM.<br />

74 Há um quarto movimento típico dos nós próprios. Além desses três movimentos clássicos que<br />

acontecem em três dimensões, há um quarto movimento que atinge os nós próprios de apenas uma rodela.<br />

Trata-se do movimento que provoca uma inversão no nó tal qual a inversão produzida a partir da imagem<br />

especular do nó. Trata-se de um movimento que passa à quarta dimensão. É como se se atravessasse o<br />

espelho e se visse o nó através dele. Pode-se atravessá-lo dessa forma e ele ainda é o mesmo nó. Mesmo<br />

150


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Para a clínica psicanalítica, indicam movimentos de redução no discurso, necessários ao<br />

enxugamento do Imaginário pelo Simbólico. Afastam o uso dos semblantes, recaindo<br />

sobre o real da castração em jogo na amarração a que o sujeito acedeu.<br />

C. Número de cruzamentos<br />

Existem várias e sofisticadas invariantes na teoria dos nós. Como dissemos, elas se<br />

sofisticaram, sobretudo, após a invenção em 1984, do “polinômio de Jones”. Aqui nos<br />

deteremos em apresentar três, necessárias à compreensão básica da teoria dos nós no<br />

que toca a sua apreensão pela psicanálise. A primeira delas diz respeito ao número de<br />

pontos de cruz que um nó apresenta. Uma das maneiras de se caracterizar os nós é<br />

examinar o número de pontos de cruz ou cruzamento que eles possuem. O ponto de<br />

cruzamento “é o ponto da cadeia – ou do nó – no qual se produz o encontro de duas<br />

cordas, em que uma passa por cima e a outra por baixo” (MAZZUCA et al, 2000,<br />

p.39).<br />

O número de cruzamentos, porém, é uma das invariantes mais simples da teoria dos nós.<br />

Assim duas (ou mais) representações distintas de um nó podem corresponder ao mesmo<br />

nó e, ainda assim, terem número de cruzamentos diferentes. O número de cruzamentos<br />

não é, portanto, o que diferencia os nós, não é uma invariante muito poderosa para<br />

distinguir nós. Para traçar uma equivalência entre os nós, a partir dos pontos de cruz, é<br />

preciso reduzi-los ao número mínimo.<br />

Tomemos como exemplo o nó mais simples, o nó trivial. Ele pode se apresentar com<br />

três pontos de cruz, com um ponto de cruz ou com zero ponto (ver Figura 16). O nó<br />

trivial é assim considerado por não possuir nenhum ponto de cruz, quando reduzida ao<br />

mínimo a possibilidade de sua existência. O número de pontos de cruz permite<br />

afirmarmos que não há nó com menos de três pontos de cruz, a exceção do nó trivial.<br />

Esse princípio também se aplica às cadeias, que estudaremos logo a seguir. Assim, por<br />

exemplo, a cadeia borromeana na forma tradicional de apresentação tem seis pontos de<br />

cruz e na forma estirada tem oito:<br />

que não pareça sê-lo, ele o é.<br />

151


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz<br />

Interessante destacar aqui para a clinica psicanalítica, a necessidade de muitos ou<br />

poucos cruzamentos para garantir uma amarração. Mesmo em um sujeito neurótico,<br />

para o qual o NP aparecerá no Édipo como o quarto elemento na suplência, pode haver<br />

a necessidade de reforços de cruzamentos diferenciados e particularizados para fixação<br />

do gozo.<br />

D. Número de desanodamentos (unknoting number)<br />

Podemos entender o número de desanodamentos como “o menor número de trocas nos<br />

pontos de cruz do nó que é necessário efetuar para que o nó se desfaça [desanude],<br />

quer dizer, para que se torne nó trivial” (MAZZUCA et al, 2000, p. 45). Podemos<br />

imaginar e realizar essa experiência com o nó de trevo. Com uma só troca, ele se torna<br />

trivial.<br />

Também com o nó 5, subíndice dois, desenhado abaixo, basta uma troca no cruzamento<br />

inferior do nó para que ele se torne trivial. Seu unknoting number é 1. Acompanhe o<br />

movimento abaixo.<br />

152


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 20 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 (MAZZUCA et al,<br />

2000, p. 46)<br />

O desanodamento ocorre no cruzamento médio central do nó, identificado como quatro.<br />

É interessante notar que se o desanodamento ocorresse em qualquer dos outros pontos<br />

de cruz desse nó, seria necessário mais de uma troca para desfazer o nó. Assim, faz toda<br />

a diferença localizar o ponto do cruzamento a ser desfeito para que o número mínimo de<br />

trocas seja realizado até se chegar ao nó trivial. Dessa maneira, o nó poderá ser<br />

classificado e diferenciado dos demais, apesar de sua forma poder ser semelhante à de<br />

outro nó.<br />

Introduzimos, portanto, artificialmente um erro no nó original. Interessante observar<br />

que, conforme a incidência do ponto de erro no nó, o efeito provocado é diferente.<br />

Pode-se obter um outro nó.<br />

Figura 21 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2 com erro no ponto de cruz 2 (MAZZUCA et<br />

al, 2000, p. 46)<br />

A importância dessa invariante para a psicanálise se associa exatamente com as<br />

153


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

discussões lacanianas acerca do lapso ou erro do nó e, conseqüentemente, de sua<br />

reparação ou suplência. Como se pode deduzir, o ponto no qual o erro incide aponta<br />

para o modo de reparação que lhe corresponderá. O modo de reparação não é, pois,<br />

aleatório.<br />

E. Grupo nodal<br />

A noção de grupo nodal tem origem na tentativa de reduzir as questões topológicas a<br />

questões de álgebra abstrata, associando aos espaços topológicos invariantes algébricos.<br />

Neuwirth (1979, p. 54 apud MAZZUCA et al., 2000, p. 47) a define da seguinte forma:<br />

“Falando em termos gerais, o grupo nodal descreve as distintas formas nas quais é<br />

possível cruzar o espaço tridimensional sem tropeçar-se com um nó imerso nele”.<br />

Trata-se de uma forma de pensar o nó a partir de seu complemento, ou seja, a partir de<br />

todo o espaço que resta além do nó, o espaço no qual ele está imerso. Sua fórmula é:<br />

C = R3 – k. C é o complemento do nó, o grupo nodal.<br />

R3 é o espaço restante menos o nó (k).<br />

k é o nó.<br />

Assim, o grupo nodal consiste em associar ao espaço em que está imerso o nó, a seu<br />

complemento, um grupo algébrico. Ele é composto de todos os trajetos possíveis que<br />

podem ser feitos em tono do nó no espaço associado a ele. As fórmulas algébricas<br />

decorrem desses trajetos. Daí podermos afirmar que dois nós serão equivalentes se seus<br />

grupos nodais também o forem.<br />

O grupo nodal se constitui em noção importante para a psicanálise na medida em que se<br />

associa à idéia de furo do nó, central na teorização da clínica lacaniana. Podemos tomar<br />

o k como objeto resto, objeto a, que cai do real inscrevendo o sujeito desejante. O<br />

sujeito, como C, implicará, então, numa perda num espaço real.<br />

F. Nós e cadeias borromeanos<br />

Define-se uma cadeia como sendo a que possui mais de um nó, mais de um<br />

componente. Trata-se sempre de dois ou mais nós enlaçados ou encadeados. Na<br />

verdade, a cadeia diz respeito a mais de um elemento, não necessariamente encadeados.<br />

As mesmas propriedades vistas até agora e aplicadas aos nós também o serão em<br />

154


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

relação às cadeias. Por exemplo, em termos de equivalência ocorre o mesmo, seja com<br />

os nós, seja com as cadeias, isto é, duas cadeias são equivalentes quando podemos<br />

deformar uma na outra sem cortá-las.<br />

Por exemplo, a cadeia mais simples, a trivial, está assim disposta com os aros lado a<br />

lado. Se os aros se interpenetram, teremos a seguinte, mais complexa. A segunda cadeia<br />

é denominada de Cadeia de Hopf, sendo caracterizada pela interpenetração de seus<br />

elementos.<br />

Figura 22 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf<br />

Lacan se vale desse artifício das cadeias, no Seminário RSI, nas aulas de 15/04/75 e<br />

13/05/75, para tratar do aforismo “a relação sexual não existe”. Se a relação sexual não<br />

existe, não há interpenetração possível entre os dois aros, homem e mulher, sendo<br />

necessário um terceiro elemento que permita alguma relação entre eles. Daí o nó<br />

borromeano. O nó borromeano, portanto, é uma cadeia, uma cadenó – como Lacan às<br />

vezes a aborda a partir deste seminário – em que não há interpenetração entre seus<br />

elementos, assim como não há relação sexual. Por isso, como vimos, é preciso três, por<br />

isso não há equivalência entre homem e mulher. Há encadeamento sem interpenetração:<br />

se enodam de não se enodarem.<br />

G. Classificação dos nós<br />

Vimos até agora as invariantes que permitem diferenciar e classificar os nós: os pontos<br />

de cruz e sua redução minimal, o número de desanodamento e o grupo nodal. Além<br />

deste, as outras invariantes também recebem um tratamento algébrico. Assim, o número<br />

de cruzamentos mínimos (crossing number) de um determinado nó (knot) em sua<br />

apresentação mais simples se escreve sob a fórmula: c(k).<br />

Quanto ao número de desanodamento (unknotting number), vimos que este se refere à<br />

troca de cruzamentos (ou cruzes), que pode ser entendida como fazer passar a corda que<br />

155


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

estava acima para baixo e vice-versa, em determinado ponto de cruz. Sua fórmula se<br />

apresenta como: u(k).<br />

Enfim, a fórmula C = R3 – k permite o cálculo algébrico do grupo nodal. Elemento<br />

fundamental, como acabamos de ver, para diferenciação dos nós.<br />

Estas invariantes permitem definir os tipos de nó existentes que são dispostos em uma<br />

tabela com a apresentação, na forma mais simples, de todos os nós existentes.<br />

Figura 23 – Apresentação parcial da tabela dos nós ()<br />

Para cada um destes nós foi criada uma representação matemática. Para esse fim, um nó<br />

é nomeado da seguinte forma:<br />

- um número de base, que representa a quantidade de cruzamentos mínima que<br />

possui;<br />

- um subíndice numérico, que indica a quantidade de nós existentes com esse<br />

número de cruzamentos. O subíndice se representa num tamanho menor e vem<br />

localizado abaixo à direita.<br />

Tomemos como exemplo o nó trivial, o nó de trevo e a cadeia borromeana clássica da<br />

qual Lacan se vale. O nó trivial se escreve: 0 seguido do número 1 abaixo à sua direita.<br />

Indica que é zero o número de cruzamentos (c(k) = 0) e o número um indica que há<br />

somente um nó trivial: 01.<br />

O nó de trevo se escreve: 31. Significa que há três pontos de cruz e somente um nó de<br />

trevo, ou seja, com três cruzamentos. Qualquer que seja a maneira como um nó de três<br />

cruzamentos seja apresentado, deformando-o ele sempre será um de trevo. Somente a<br />

partir de cinco cruzamentos é que os nós se tornam diferentes. Não que tenham<br />

apresentações diferentes – isso qualquer nó pode ter, mesmo o trivial –, são nós<br />

diferentes.<br />

156


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Na medida em que se aumenta o número de cruzes, o número de nós multiplica-se,<br />

havendo, por exemplo, quarenta e nove tipos de nó com nove cruzamentos. E os nós<br />

com treze cruzes são em número de 9988. Morwen Thistlethwaite foi o inglês<br />

responsável pela elaboração de um programa de computador que, em 1981, estabeleceu<br />

2176 nós de doze cruzamentos e, em 1982, o número dos de treze pontos de cruz. A<br />

partir de catorze pontos de cruz, os matemáticos supõem que o número de nós crescerá<br />

tanto que será incalculável – se é que ainda não se chegou a essa cifra suposta através da<br />

evolução da informática...<br />

As cadeias, por seu turno, se escrevem com três números, e não apenas dois: o da base,<br />

um pequeno acima à direita (superíndice) e outro pequeno abaixo deste, mais à direita<br />

também (subíndice). O número de base representa o número de pontos de cruz. O<br />

superíndice indica o número de componentes da cadeia (o número de aros). E o<br />

subíndice indica a qual versão essa cadeia corresponde – não o número de suas<br />

apresentações possíveis.<br />

Por exemplo, a cadeia borromeana tal qual Lacan utiliza escreve-se: 6, seguido do<br />

número 3 no superíndice (acima) e do número 2 no subíndice (abaixo). Isso indica que é<br />

uma cadeia com seis pontos de cruz, três componentes ou três aros, sendo o segundo<br />

tipo de cadeia de seis cruzamentos – no caso, existem três versões. Com esse nó, vimos<br />

que Lacan consegue mostrar o real de sua proposta teórica acerca dos registros, abrindo<br />

a possibilidade de pensarmos que são inúmeras as formas de arranjo subjetivo para cada<br />

um.<br />

3.2 Topologia e Psicose<br />

Na década de 50, Lacan não falava ainda de nós para operar a clínica possível das<br />

psicoses, mas já ensaiava uma certa topologia da estabilização ao propor o Esquema I.<br />

Nesse período, era à hipérbole que ele se referia para pensar como a não operação da<br />

metáfora paterna poderia ser suturada pela metáfora delirante. Já se tratava de uma certa<br />

amarração, poderíamos nos arriscar a dizer, mas não ainda de um nó.<br />

Apesar disso, juntamente com Benveniste e com Lévi-Strauss, começou a reunir-se<br />

ainda em 1951 com o matemático Georges-Th. Guilbaud para trabalhar sobre as<br />

estruturas e estabelecer pontes entre as ciências humanas e as matemáticas. Sua relação<br />

com Guilbaud foi diferente de sua relação com Soury. Lacan manteve com Guilbaud<br />

157


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

uma amizade de trinta anos, apesar de nunca ter ido a um seminário dele. Mesmo sem o<br />

amigo, Lacan se lançava diariamente a exercícios matemáticos, recorrendo a ele para<br />

discutir os obstáculos com os quais se deparava. “Durante vinte anos, porém, a<br />

topologia permanece como um elemento ilustrativo do ensino lacaniano, sem<br />

desembocar numa reformulação fecunda da teoria” (ROUDINESCO, 1988, p. 608).<br />

Na verdade, foi preciso que o conceito de pai atravessasse diferentes formulações para<br />

que a idéia de suplência e de pluralização dos nomes do pai pudesse ser retomada na<br />

década de 70, tornando-se operatória a partir de então na clínica, inclusive das psicoses,<br />

com a teoria dos nós borromeus. O pai como metáfora, depois como função, faz ponto<br />

de capiton, enquanto o Nome-do-Pai como suplência faz nó.<br />

Assim, a fim de pensar a topologia borromeana aplicada à discussão da estabilização na<br />

psicose e sua operacionabilidade clínica, começaremos por apresentar um ensaio sobre a<br />

topologia da psicose no período da metáfora paterna, quando Lacan ainda falava de<br />

hipérbole ao apresentar o Esquema I. Em seguida, entenderemos um pouco mais sobre<br />

os nós, sua topologia e a suplência psicótica sob essa abordagem.<br />

3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50<br />

A primeira grande ruptura que Lacan empreende quanto à psicose diz respeito a sua<br />

própria formação. Jovem psiquiatra, ele busca, em diferentes modelos epistemológicos e<br />

estéticos de sua época, um diálogo acerca de seu saber e de sua prática com as psicoses.<br />

Se sua tese de doutoramento, com o caso Aimée, denotava uma transição entre um<br />

modelo psiquiátrico de personalidade e sua crítica, ainda não se sustentava pela<br />

psicanálise. Ele não desconhecia o texto de Freud, mas a retomada dos princípios<br />

psicanalíticos freudianos será empreendida anos depois, quando do início de seu ensino.<br />

Seus dois primeiros seminários, não publicados, aconteceram em sua casa e foram<br />

dedicados a dois dos cinco casos freudianos, a saber, o Homem dos Lobos e o Homem<br />

dos Ratos. Mas foi sobretudo na década de 50, quando ele já oferecia seus seminários de<br />

formação junto à Sociètè Française de Psychanalyse, não mais ligada à IPA<br />

(Associação Internacional de Psicanálise), que sua interpretação estruturalista da<br />

psicanálise se firmou.<br />

“O Lacan barroco da maturidade lê com paixão o Curso de Lingüística Geral de Ferdinand<br />

de Saussure, os textos filosóficos de Martin Heidegger e as Estruturas Elementares de<br />

Parentesco, de Claude Lévi-Strauss. Começa a interrogar os textos freudianos a partir de<br />

um sistema da língua, concebida como uma estrutura e composta de signos, estes definidos<br />

158


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

segundo seu valor, através da relação simbólica de um significado com um significante. [...]<br />

O Relatório de Roma e a conferência que o antecede [O simbólico, o imaginário e o real]<br />

constituem um primeiro passo para a elaboração de uma teoria do tratamento, sua direção,<br />

sua temporalidade e suas pontuações” (ROUDINESCO, 1988, p. 274).<br />

A influência estruturalista também aparece no estudo das psicoses que Lacan<br />

empreende em 1956: “para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de<br />

linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção que lhes proponho adotar<br />

provisoriamente” (LACAN, 1955-56/1992, p. 110). No escrito que decorre desse<br />

seminário sobre as psicoses ele é ainda mais incisivo: “Ao se reconhecer o drama da<br />

loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque é na relação do homem com o<br />

significante que se situa esse drama” (LACAN, 1957-58/1998, p. 581). Para ele, é<br />

fundamental a entrada de um terceiro elemento, o simbólico enquanto Nome do Pai,<br />

como elemento que organiza a estrutura da linguagem, como existência que sustenta a<br />

ordem que impede a colisão responsável pelo desencadeamento psicótico.<br />

Nesse período de meados dos anos cinqüenta, Lacan se esforça por estruturar no grafo<br />

do desejo as conexões internas do significante na medida em que estruturam o sujeito. E<br />

também se esforça em formalizar, no texto “De uma questão preliminar...” (LACAN,<br />

1957-58/1998), os aportes de sua leitura sobre a psicose e seu tratamento possível pela<br />

psicanálise. É nesse texto que ele introduz, apoiado nos Esquemas L e R (característicos<br />

da neurose), o “déficit” da psicose em relação à neurose diante da inoperância do Nome<br />

do Pai. O Esquema I, da psicose, e mais especificamente da psicose schreberiana, é a<br />

topologia na qual, então, a psicose é apresentada.<br />

“Pois há aí uma topologia totalmente distinta daquela que poderia levar a imaginar a<br />

exigência de um paralelismo imediato entre a forma dos fenômenos e suas vias de<br />

condução no neuro-eixo. Mas essa topologia, que está na linha inaugurada por Freud [...] é<br />

justamente o que melhor pode preparar as perguntas com que se há de interrogar a<br />

superfície do córtex. Pois é somente após a análise lingüística do fenômeno da linguagem<br />

que se pode legitimamente estabelecer a relação que ele constitui no sujeito” (LACAN,<br />

1957-58/1998, p. 547).<br />

É então que apresenta, nesse texto nascido do seminário sobre as psicoses, o Esquema I,<br />

caracterizando a topologia da estabilização psicótica de Schreber pela hipérbole. Antes,<br />

porém, de discutirmos esse esquema, é necessário trabalharmos o Esquema R, do qual<br />

ele é uma decorrência e uma ‘deformação’.<br />

159


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 24 – Esquema R (LACAN, 1957-58/1998, p. 559)<br />

Cabe observar que, mesmo não se tratando da topologia dos nós, o Esquema R já indica<br />

a topologia do plano projetivo (ou cross-cap). Em nota de rodapé acrescentada em<br />

1966, Lacan indica que, na representação aplainada do sujeito no esquema, uma Banda<br />

de Moebius é isolada pelos termos miMI (faixa azul clara no desenho). Tal qual o real, a<br />

Banda de Moebius se reduz ao corte, não havendo nada de mensurável a ser retido em<br />

sua estrutura. Essa dobra, representada por uma faixa no interior do esquema, fala da<br />

introdução do objeto a. Enquanto o campo da realidade barra o objeto a, a tela da<br />

fantasia, ao obturar esse campo, se torna condição de possibilidade de sua existência.<br />

Mas o que é um plano projetivo? “O plano projetivo é constituído pelo conjunto das<br />

retas do espaço passando pela origem 0, estando o conjunto dos pontos de cada reta,<br />

exceto 0, submetido a uma relação de equivalência” (DARMON, 1994, p. 111). Ele é o<br />

ponto de fuga da perspectiva clássica.<br />

Figura 25 – Plano da perspectiva clássica<br />

Todo ponto situado sobre uma dessas retas é projetado sobre um mesmo ponto na<br />

intersecção da reta e do quadro, se imaginamos um quadro antes do ponto 0. O plano<br />

projetivo é exatamente a generalização de todas as retas paralelas ao quadro que não<br />

podem interceptá-lo.<br />

160


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 26 – Plano de projeção da perspectiva (DARMON, 1994, p. 111)<br />

Essa linha imaginária é o que permite à própria superfície atravessar a si mesma sem<br />

uma verdadeira intersecção. O que fica mais fácil de se conceber se representamos o<br />

plano projetivo numa esfera, lembrando que o plano projetivo não possui avesso ou<br />

direito, nem orientação, e que as bordas da esfera devem ser pensadas como pontos<br />

infinitos.<br />

Figura 27 – Planos projetivos inseridos na esfera (DARMON, 1994, p. 112)<br />

Somente o corte revela a estrutura da superfície inteira, mostrando que o plano projetivo<br />

é composto por uma Banda de Moebius e um disco. A Banda de Moebius delimita o<br />

lugar-tenente da fantasia que articula dois elementos heterogêneos, a saber, sujeito<br />

barrado (feito de linguagem) e objeto a (extrínseco à linguagem): $∀. “O $, S<br />

barrado da banda, a ser esperada aqui onde ela efetivamente surge, isto é, recobrindo<br />

o campo R da realidade, e o a, que corresponde aos campos I e S” (LACAN, 1957-<br />

58/1998, p. 560, nota de rodapé). O sujeito barrado do desejo suporta o campo da<br />

realidade na medida em que a extração do objeto a lhe fornece seu enquadre. Donde se<br />

conclui que “o esquema R é um plano projetivo” (LACAN, 1957-58/1998, p. 559-560,<br />

nota de rodapé) e articula os três registros numa primeira abordagem.<br />

161


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

No que nos interessa depreender do Esquema R, eis aí o ponto central. É preciso a<br />

extração de um objeto, enquanto efeito da castração, para que um sujeito se constitua e<br />

sustente o campo da realidade, amparado simbolicamente em uma ponta pelo Outro (A),<br />

em cuja oposição se situa o Nome-do-Pai (P), e, na outra ponta, no campo do<br />

imaginário pelo significante fálico (φ), corolário do P que confere uma imagem<br />

unificadora ao sujeito. O sujeito, “por outro lado, entra no jogo como morto, mas é<br />

como vivo que irá jogá-lo” (LACAN, 1957-58/1998, p. 558). Ele o fará servindo-se de<br />

um set de figuras imaginárias, numericamente reduzidas já que superpostas ao ternário<br />

simbólico (MIP). O i e o m representam, assim, os dois termos imaginários da relação<br />

narcísica, ou seja, o eu e a imagem especular.<br />

A relação pela qual a imagem especular se liga como unificadora ao chamado conjunto<br />

de elementos imaginários do corpo despedaçado fornece o par homólogo à relação Mãe-<br />

Criança. É, portanto, a relação mãe-criança que dá ao corpo sua forma de imagem<br />

unificadora – imagem fálica ou terceiro termo do ternário imaginário, no qual o sujeito<br />

se identifica, em oposição, com seu ser de vivente. A prematuração do sujeito no estádio<br />

do espelho abre uma hiância no imaginário sem a qual não se poderia produzir a<br />

simbiose com o simbólico onde ele se constitui como sujeito para a morte.<br />

No vértice simbólico, temos o I como Ideal de eu, o M como o significante do objeto<br />

primordial e o P como a posição do Nome-do-Pai no Outro (A). “Podemos apreender<br />

como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o significante do<br />

falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade, delimitado pelo<br />

quadrilátero MimI” (LACAN, 1957-58/1998, p. 559). O significante fálico, como<br />

recobrimento da falta instalada na faixa de Moebius, funciona como referente na<br />

articulação da realidade. Interessante observar a necessidade de uma torção para que I e<br />

i, e para que M e m, possam encontrar sua correspondência no quadrilátero que formam,<br />

o que permite articular o P (Nome-do-Pai) ao seu corolário na metáfora paterna, o<br />

significante fálico (φ).<br />

Na faixa interna que compõe a Banda de Moebius, e que aqui corresponde ao campo do<br />

real, Lacan situa de i a M, ou seja, em a, as figuras do outro imaginário nas relações de<br />

agressão erótica em que elas se realizam; e de m a I, ou seja em a’, situa “onde o eu se<br />

identifica, desde sua Urbild especular até a identificação paterna do ideal do eu”<br />

(LACAN, 1957-58/1998, p. 559). Seja pela via do outro imaginário, seja pela via do<br />

162


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Outro simbólico, em a e em a’ podemos localizar o campo das identificações, já em sua<br />

relação ao real. Lacan irá, no Seminário RSI (1974-75, aula de 18/03/1975), articular as<br />

três formas de identificação freudianas (FREUD, 1921/1976, p. 133-139) aos três<br />

registros, nesse período já inseridos na topologia do nó borromeano.<br />

O Esquema R já não se assenta sobre uma topologia orientada pela geometria<br />

euclidiana. E, também no Esquema I, veremos as hipérboles indicarem uma torção<br />

complexa operada pela ausência dos significantes fundamentais do Nome-do-Pai e do<br />

falo, compondo uma outra geometria. Na psicose, o campo da realidade se encontra<br />

remanejado. É o que Lacan tenta demonstrar no Esquema I.<br />

Figura 28 – Esquema I (LACAN, 1957-58/1998, p. 578)<br />

A ausência do significante do Nome-do-Pai instala um sorvedouro tanto do lado do<br />

Simbólico como do lado do Imaginário, pela conseqüente ausência da significação<br />

fálica. Esses dois furos, correspondentes à P0 (ausência do NP) e à Ф0 (ausência do<br />

significante fálico), curvam as linhas mi e MI, desfazendo a Banda de Moebius e, com<br />

isso, instalando um achatamento na figura, correspondente à ausência da queda do<br />

objeto a. Além disso, as ausências do NP e do falo “reenviam para o infinito os quatro<br />

parâmetros fundamentais do sujeito m, i, M e I, sendo que este último Criado I, acorre<br />

ao lugar de P como que lançado pelo vazio” (DARMON, 1994, p. 120). Nas pontas da<br />

faixa moebiana interna ao quadrilátero do Esquema R, teríamos as articulações<br />

identificatórias no campo do imaginário e do simbólico, e o que delas restam real. Aqui<br />

163


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

elas estão hiperbolicamente abertas ao infinito, sem um ponto de basta.<br />

Nesse sentido, a torção que testemunha a queda do objeto a e conforma a Banda de<br />

Moebius não existe aqui. Temos um desdobramento ao infinito dos campos do<br />

Simbólico e do Imaginário, dado que a Banda de Moebius (que no Esquema R<br />

correspondia a um corte definido que criava apenas uma borda) foi transformada nas<br />

linhas hiperbólicas cujos limites são assintóticos. O plano projetivo se transforma dessa<br />

maneira num plano hiperbólico.<br />

Como conseqüência, o campo do Real se torna precariamente estabelecido e muito<br />

variável. O campo R representa as condições em que a realidade é restabelecida para o<br />

sujeito, o “que a torna habitável para ele, mas que também a distorce, ou seja, [os]<br />

excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do simbólico, S, a reduzem ao campo<br />

do descompasso entre ambos” (LACAN, 1957-58/1998, p. 580). Interessante que, nessa<br />

leitura da solução psicótica do caso Schreber, o que parece estar ‘desamarrado’, se<br />

pensamos borromeanamente, é o Real, descompassado em relação ao Imaginário e ao<br />

Simbólico, que apareceriam com uma amarração incomum, com um ‘erro’ no sentido<br />

que Lacan lhe atribui. Difere, portanto, do ‘erro’ de Joyce – entrecruzamento entre<br />

simbólico e real –, no qual os fenômenos corporais testemunham um descolamento do<br />

Imaginário, que resta livre no nó, exigindo um trabalho de suplência. Podemos, pois,<br />

supor e desde já hipotetizar que o estilo de solução que o sujeito encontra está<br />

intrinsecamente ligado ao que, do nó, se amarrou ou não, ou seja, à maneira como R, S<br />

e I se ataram.<br />

Continuando na leitura do Esquema I, vemos que I e M continuam ambos do mesmo<br />

lado no esquema, assim como m e i. A torção no Real 75 que articularia os registros<br />

Simbólico e Imaginário não existe. Se, onde estaria o ponto 0 do plano projetivo,<br />

localizarmos o a, basta desdobrá-lo entre a e a’ e separá-los deslizando na assíntota que<br />

orienta como reta R para o infinito o esquema, para que tenhamos o desenho do<br />

Esquema I. Uma das conseqüências desse desdobramento imaginário, a-a’, é que ele<br />

assegura uma certa densidade ao Real, funcionando como seu arrimo.<br />

75 Faixa azul claro da Figura 24.<br />

164


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 29 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I (DARMON, 1994, p. 112)<br />

Uma outra conseqüência presente no esquema, na medida em que se trata de um plano<br />

hiperbólico, e não mais projetivo, é sua orientabilidade. Sendo orientável e, portanto,<br />

reflexivo, o plano permite a apreensão do objeto a no espelho. Schreber nos atesta essa<br />

presença do objeto em suas miragens no espelho, nas quais seu corpo se feminiza nos<br />

seios femininos que crescem em seu peito, na medida da aproximação de Deus. É um<br />

exemplo da aparição do objeto a que pode comparecer em diferentes manifestações<br />

alucinatórias e fenômenos elementares na psicose. O objeto a não aparece como<br />

complemento à referência negativa do sujeito, vindo a encarnar o que lhe falta. Ele é<br />

assimilado ao sujeito, não falta. A passagem da topologia moebiana, projetiva, para uma<br />

topologia plana, hiperbólica, recria a perspectiva de duas faces, cada qual em seu lado,<br />

com o Real excluído, tal qual uma moeda. É o que testemunha a impossibilidade de se<br />

fazer metáfora na psicose, bem como a não inscrição dos significantes que retornam no<br />

Real. Na psicose, é o sujeito que se oferece como objeto que complementa o Outro.<br />

Nessa topologia hiperbólica da solução schreberiana, temos uma indicação sobre a<br />

estabilização na psicose. O eixo que articula ou sustenta minimamente os<br />

remanejamentos imaginários que vêm em socorro à desarticulação no plano do<br />

smbólico, é a assíntota R que se dirige ao infinito. Entre o deixar-se cair pelo Criador<br />

(M) e o futuro da criatura (m), se escreve o projeto de ser a mulher de Deus para criação<br />

de uma nova e superior raça de homens no texto schreberiano sobre o eixo R. Eis a<br />

versão topológica da metáfora delirante como solução na psicose.<br />

3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60<br />

165


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

No texto “Observação sobre o Relatório de Daniel Lagache”, Lacan (1960/1998) esboça<br />

a ruptura que estava sendo gestada no período e que aparecerá com a topologia do<br />

objeto a 76 . Ele inicia uma série de retificações dentre as quais a que promove a<br />

diferenciação entre estrutura e forma. “E a questão é justamente abrir o pensamento<br />

para uma topologia, exigida pela simples estrutura” (LACAN, 1960/1998, p. 655),<br />

entendida aqui enquanto estrutura de linguagem e seus efeitos combinatórios, mas já<br />

marcada pela presença do objeto a.<br />

Apoiada no esquema óptico, essa topologia inclui uma dimensão inalcançável,<br />

irrepresentável, fora do plano projetivo, que Lacan chama de a, objeto a ou objeto real.<br />

No esquema óptico, oriundo do campo da Física, Lacan localiza a projeção invertida do<br />

objeto irrepresentável fora dos planos. Se o espelho trata da imagem virtual de um<br />

objeto real, o olho, por seu turno, trata da imagem real de uma imagem virtual,<br />

desdobrando a função óptica reflexiva e excluindo o objeto real do campo de apreensão.<br />

A imagem nasce como recobrimento desse objeto inapreensível, que, por isso também,<br />

é causa do desejo 77 .<br />

O objeto a, aí apresentado, aparecerá referido à psicose na série de textos que Lacan<br />

escreve nesse período. No Seminário 11, em especial, Lacan (1964/1998) irá articular a<br />

constituição do sujeito a partir da falta instalada no campo do Outro através das<br />

operações de alienação (reunião) e separação (interseção). Essa operação permite situar<br />

a queda do objeto a com a experiência da castração e a instalação da tela da fantasia<br />

($a), como proteção ao Real que aí se revela, distinguindo dois termos heterônomos<br />

($ e objeto a) que, nela, se relacionam, como já discutimos.<br />

Nesse período, Lacan irá discutir a psicose de maneira pontual, sobretudo referida à<br />

criança. Irá, então, articular a psicose infantil à fantasia da mãe, e não mais à<br />

descontinuidade do significante. “A criança débil toma o lugar [...] desse S, em relação<br />

a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo<br />

obscuro, que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico” (LACAN,<br />

1964/1998, p. 225). Ou seja, quando a criança realiza a presença do objeto a na fantasia<br />

materna fica numa psicose. Em outro escrito do período, duas cartas escritas a Jenny<br />

76 Observem que toda a discussão acerca da Banda de Moebius e do objeto a no Esquema R e no<br />

Esquema I decorre de uma nota de rodapé acrescentada em 1966 ao texto.<br />

77 Além de utilizar o esquema óptico para tratar da topologia do objeto a, Lacan a discute, sobretudo, a<br />

partir de figuras da topologia das superfícies. Porém, visto que aqui pretendemos apenas circunscrever o<br />

surgimento do objeto a para tratar da psicose nos textos desse período, não entraremos na discussão dessa<br />

topologia.<br />

166


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Aubry 78 , Lacan registrou a possibilidade de a criança inscrever-se, não só como fantasia<br />

da mãe, mas também como sintoma da família, ampliando o arsenal de leitura das<br />

psicoses infantis.<br />

No que toca especificamente à topologia, Lacan irá se servir, sobretudo, da topologia<br />

das superfícies (Banda de Moebius, toro, cross-cap, garrafa de Klein). Nesse período, a<br />

topologia ainda aparece como um ensaio de redução teórica e, enquanto tal, como um<br />

modelo. Lacan apresenta o horizonte epistemológico de sua obra: a constituição da<br />

psicanálise como ciência, ciência do inconsciente, a começar pela noção de que o<br />

inconsciente é estruturado como uma linguagem. Esse projeto, apresentado literalmente<br />

no Seminário 11, é seguido pela dedução de “uma topologia cuja finalidade é dar conta<br />

da constituição do sujeito” (LACAN, 1964/1998, p. 193). Ele se apóia nos matemas, no<br />

uso das ‘letrinhas’ que condensam idéias. O artifício aparece aqui, mas ganhará<br />

articulação como suplência somente no caso Joyce. “Não há topologia que não<br />

demande suportar-se de algum artifício” (LACAN, 1964/1998, p. 198). A topologia<br />

ainda é tomada como uma representação que intenta alcançar o mínimo formalizável de<br />

um saber, não é ainda mostração do real.<br />

Como também atestamos, em 1966, Lacan irá articular pela primeira vez a oposição<br />

entre sujeito do significante e sujeito do gozo, instalando uma disjunção entre os dois<br />

termos essencial à clínica (LAURENT, 1995b, p. 117). De um lado, o sujeito do<br />

significante funciona como base para uma clínica orientada pela produção do sentido,<br />

pela busca de uma verdade, desde sempre perdida na experiência traumática. De outro,<br />

o sujeito do gozo veicula um modo de satisfação e um circuito de repetição que estão<br />

além da captura de sentido pelo significante. A introdução do objeto a no período marca<br />

uma posição de destituição no trabalho clínico. “A interpretação não visa tanto o<br />

sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos<br />

reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito” (LACAN, 1964/1998, p.<br />

201). Com isso, exige uma clínica em ato que aposta, não apenas na redução operada<br />

pelo trabalho significante, mas também no aprendizado de uma certa maneira de lidar<br />

com esse gozo que resta inanalisável. É com esse resto opaco que o sujeito deverá<br />

savoir y faire, como propõe Lacan na década de 70. Vimos que lá essa relação se<br />

complexifica, pois ele irá falar que o significante veicula gozo, articulando de outra<br />

78 Cf. “Nota sobre a criança” (1969/2003, p. 369-370).<br />

167


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

maneira a clínica e a psicose. Caminhemos para essa proposição.<br />

3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70<br />

A. A materialidade e a topologia<br />

O recurso ao nó é claramente adotado em Lacan como uma maneira de pensar a clínica<br />

psicanalítica, bem como de decifrar aquilo de que se trata no real. Ele sugere diferentes<br />

versões de nós para articular a idéia de inconsciente, de gozo, de sintoma, de psicose. Se<br />

os perseguirmos – esses nós e as proposições lacanianas que eles sustentam e mostram –<br />

, veremos que Lacan ensaia no final de seu ensino uma estética da clínica psicanalítica a<br />

partir do real como vetor de orientação.<br />

O que isso quer dizer? Para concebermos a dimensão do real da clínica em jogo nesse<br />

período, vale a pena seguirmos o rastro, uma pista que Lacan nos oferece na lição de 11<br />

de Janeiro de 1977. Nessa aula do Seminário XXIV, L’insu que sait de l’une bévue<br />

s’aile à mourre, ele brinca com o sentido e a homofonia – já desde o título do seminário<br />

–, nos mostrando, talvez, que o sentido desliza pela cadeia significante, mas também<br />

cifra gozo com a palavra, já que nem o fonema é lógico ou tem razões estruturais. Resta<br />

sempre algo intocável, cifrado. Reduzido o gozo, sua parte viva continua pulsante, mas<br />

o trajeto de satisfação se altera. Algo desse indizível, desse intocável ganha uma<br />

alteração real.<br />

Lacan vai, então, retomar a idéia de que o saber para a psicanálise é sempre o saber<br />

inconsciente. Mas, aqui, o inconsciente já comparece como saber com o qual o sujeito,<br />

em sua debilidade mental, não consegue operar. Para Lacan, é muito difícil extrair o<br />

sentido que o inconsciente possuía em Freud. Ainda que “Freud não tivesse, então,<br />

senão uma pequena idéia do que era o inconsciente” (LACAN, 1976-77, lição de<br />

11/01/1977), Lacan pensa poder dizer que se tratava, nesse saber, daquilo que<br />

poderíamos denominar efeitos significantes. A partir desses efeitos, esse saber seria<br />

imposto ao homem, que não sabe muito bem o que fazer disso (“de cette affaire de<br />

savoir”). Ele não fica à vontade com ele. Ele não sabe fazer com (“faire avec”) o saber.<br />

É essa sua debilidade mental. Ele não sabe “y faire”. Esse “faire avec” é o mesmo que<br />

esse “y faire”, guardada a nuance fundamental do “y” na língua francesa 79 .<br />

79 “Savoir faire” é diferente de « savoir y faire ». A introdução do “y” “quer dizer se desembaraçar, mas<br />

este ‘y faire’ indica que não pegamos verdadeiramente a coisa, em suma em conceito” (LACAN, 1976-<br />

77, lição 11/01/1977). Há algo que escapa. E é para tentar dar conta disso que escapa que o discurso vem<br />

em socorro. Tudo o que se diz a partir do inconsciente participa, portanto, do equívoco.<br />

168


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Para ilustrar essa dificuldade do pensamento, Lacan recorre a um estilo de linguagem<br />

escrita característico da Idade Média. Nele há pouca gramática e muita lógica. É um<br />

estilo que recorre a uma passagem da imagem à escrita, e também, sempre, ao equívoco<br />

e ao convite a que o leitor participe da construção do texto. Ele pode ser lido e não<br />

produzir sentido, ao mesmo tempo em que do texto se destaca um novo e outro sentido,<br />

se lido pelas entrelinhas ou pelo que não faz linha, cadeia. Trata-se, enfim, do texto<br />

“Les Bigarrures de Seigneur des Accords”, de Étienne Tabourot 80 .<br />

A questão que Lacan evoca, a partir desse texto, é a de como conseguir apreender esse<br />

tipo de delicadeza que, em última instância, é um uso do inconsciente. E mais, como<br />

precisar a maneira pela qual, nessa delicadeza, se especifica o inconsciente que é<br />

sempre individual. Se a estrutura da linguagem é a mesma para todos, o uso de lalíngua<br />

é sempre único para cada sujeito. A articulação que o inconsciente estabelece como<br />

forma de gozo é sempre singular à maneira como o sujeito se articula na língua mãe.<br />

O exemplo de fetichismo apresentado no artigo freudino de mesmo título é ilustrativo<br />

da dimensão clínica desse uso. Ao discutir as circunstâncias acidentais que contribuem<br />

para a escolha de um objeto fetiche, Freud trata da arbitrariedade do significante de um<br />

lado, mas revela, de outro, a dimensão de gozo presente em lalíngua e capturada como<br />

letra em seus efeitos sobre a linguagem e sobre o corpo. Trata-se de um jovem para<br />

quem a pré-condição fetichista residia num certo tipo de ‘brilho no nariz’. A surpresa de<br />

sua explicação reside no fato de que o paciente recorrera a sua língua mãe, o inglês, para<br />

constituir o sintoma e a forma de gozo que lhe era correlata, enquanto correntemente<br />

utilizava a língua alemã do país onde passara a viver depois de sua primeira infância.<br />

80 Apresentamos em francês um verso do livro de Étienne Tauborot, referenciado por Lacan, destacando<br />

com cores as colunas que podem ser lidas verticalmente também, além da leitura horizontal tradicional,<br />

de sorte que a falta de sentido e o sentido que escapa podem ser revelados e apreendidos.<br />

« Autrefois j’ai fait ces suivants en faveur d’une de mes idoles parlantes :<br />

Ta beauté, ta vertu, ton esprit, ton maintien<br />

Éblouit, et défait, assoupit et renflamme<br />

Par ses rais, par penser, par crainte, pour un rien<br />

Mes deux yeux, mon amour, mes desseins, et mon âme. »<br />

(Étienne Tabourot, Les Bigarrures du Seigneur des Accords, Paris, Jean Richer, 1583, chapitre XIII,<br />

«Des vers rapportés », ff.130 à 134. [Gallica, N0070346_PDF_282_290])<br />

Outros versos no livro original podem ser visualizados através do site da Bibliothèque Nationale de<br />

France (BNF) no seguinte endereço eletrônico: < http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k70346j>.<br />

Podemos identificar «um tipo de cruzamento simétrico e gramatical», «frases de construção gramatical<br />

aparentemente desarticuladas e recompostas», uma «invenção astuciosa» que «remontaria talvez ao fim<br />

da Antiguidade grega», um «procedimento» que «da Idade Média latina [...] ganham as poesias francesa,<br />

espanhola, inglesa e alemã dos séculos XVI e XVII», segundo Ernst Robert Curtius em La Littérature<br />

européenne et le Moyen Âge latin, também disponível via acesso eletrônico no seguinte endereço:<br />

.<br />

169


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“O ‘brilho do nariz’ [em alemão, ‘Glanz auf der Nase’] era na realidade um vislumbre<br />

(glance) do nariz” (FREUD, 1927/1976, p. 179), que somente o jovem experimentava<br />

como forma de satisfação sexual.<br />

A linguagem não possui três dimensões, ela é sempre aplainada em duas. Daí Lacan ter<br />

começado com a história dos nós de três rodelas, no qual o simbólico, passando por<br />

cima, depois por baixo das rodelas dos outros registros, e assim sucessivamente, teria<br />

por efeito, cortando-se um dos registros, liberar os outros dois. Há, pois, a necessidade<br />

de três, no mínimo (ainda que eles sejam quatro, como vimos, pois há o nó em si<br />

mesmo como resultado).<br />

Essa reflexão inspirou Lacan a querer identificar o real a esse terceiro elemento<br />

articulado à matéria de uma maneira muito singular, através do “l’âme-à-tiers” (o<br />

espírito à terceira). Interessante aqui ressaltar ao menos dois aspectos. Primeiramente,<br />

ao tratar da matéria do real, Lacan a nomeia alma, espírito, mente – que em francês<br />

encontram em “âme” a mesma significação. Já de saída, portanto, a matéria do real é<br />

inconsistente nela mesma.<br />

Mas há um segundo aspecto que articula o real e a linguagem – e esse é o ponto central<br />

que, entendemos, levou Lacan a teorizar os nós para explicar o real na clínica<br />

psicanalítica. Não há na linguagem uma relação binária, do tipo “X (relação) Y”.<br />

Segundo Peirce, como já dito, é preciso uma lógica ternária, signo, objeto e<br />

interpretante no estabelecimento e na utilização do signo. A exigência desse terceiro<br />

autoriza Lacan a falar em “tiers”, em terceiro termo, mesmo em se tratando de uma<br />

referência à linguagem. Trata-se de um terceiro termo determinante, diferenciado em<br />

relação aos outros dois, signo e objeto, posto que ex-sistente a eles. Se não há três<br />

dimensões na linguagem, isso não quer dizer que dois elementos lhe sejam suficientes.<br />

É preciso uma engrenagem, um terceiro elemento lógico, para que ela funcione como<br />

tal. Esse terceiro elemento está lá, sem contar, mas sendo contado, considerado, e mais,<br />

sendo essencial na estrutura do funcionamento da linguagem. Por isso, o real teria o<br />

mesmo estatuto no nó. Foi o que Lacan nos mostrou ao longo do Seminário RSI.<br />

O significante, é disso que se trata no inconsciente, em suma, que falamos, ainda que,<br />

como falasser, falemos completamente sós. Em outras palavras, o isso, dialoga, e foi<br />

isso que Lacan designou pelo nome de Grande Outro. Trata-se do fato de que há<br />

qualquer coisa de outra, o que ele denominou de “l’âme-à-tiers”, que não é somente o<br />

170


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

real, mas qualquer coisa com a qual, expressamente, não temos relação. Trata-se do ∃<br />

(%), o que quer dizer que isso não responde. É bem por isso que o eu (moi) pode se pôr<br />

a falar e mesmo a delirar. Daí, entre loucura e debilidade mental não termos escolha. É,<br />

pois, para tratar dessa materialidade intangível que os nós se colocam e nos colocam a<br />

trabalho na psicanálise.<br />

“Nós não cremos no objeto, mas nós constatamos o desejo, e desta constatação do desejo<br />

nós induzimos a causa como objetivada. O desejo de conhecer encontra obstáculos. É por<br />

encarnar este obstáculo que eu inventei o nó. E quanto ao nó é preciso ter desembaraço [se<br />

rompre]. Eu quero dizer que é o nó sozinho que é o suporte concebível de uma relação<br />

entre o que quer que seja e o que quer que seja. Se, de um lado, ele é abstrato, o nó deve,<br />

entretanto, ser pensado e concebido como concreto” (LACAN, 1975-76/2005, p. 36-37).<br />

A letra dá suporte ao que, dessa intangibilidade, pode se escrever entre real e simbólico<br />

para um sujeito. Ela vivifica o gozo na escrita que singulariza a não-relação do sujeito.<br />

Da língua mãe extrai o que orientará o texto do sujeito na repetição do contorno ao que<br />

não cessa de não se escrever, ou seja, do impossível. Daí o sintoma, como resultado<br />

necessário, insiste em se escrever sobre essa marca, atualizando-a 81 .<br />

Como se vê, a superfície material que, no início de nossa pesquisa, dizia respeito a uma<br />

materialidade do mundo empírico se modifica. Quando nos perguntávamos se era<br />

possível a invenção de uma solução pela criação artística ou artesanal, prescindindo da<br />

escrita, a materialidade à qual nos reportávamos era a argila ou a tela de um quadro, por<br />

exemplo. Essa materialidade que, em Lacan, se opunha à substância, dizia respeito na<br />

década de 50 ao significante, em oposição ao gozo. Na década de 70, entretanto, é a<br />

letra que funciona como suporte ao significante, deslocando a materialidade da imagem<br />

acústica para o campo litoral entre real e simbólico. E, finalmente, o que há de concreto,<br />

o elemento articulador, deixa de ser o significante para aparecer sob a forma do nó,<br />

como efeito real de enlaçamento. É ele agora o suporte concebível de uma relação entre<br />

o que quer que seja e o que quer que seja. Letra e nó tornam-se elementos centrais em<br />

nossa investigação dada a via de verificação da estabilização psicótica que permitem<br />

conceber.<br />

Assim, a fim de perseguir a arqueologia dessa proposta lacaniana, nos deteremos agora<br />

no uso clínico que Lacan faz da teoria dos nós quanto à estabilização psicótica. Já<br />

percorremos o modo como Lacan se apropriou desse território lógico e científico da<br />

matemática para fazer operar uma transmissão em relação ao discurso analítico. Assim,<br />

81 Lacan aqui recorre à lógica aristotélica (possível, impossível, contingente e necessário) para trabalhar o<br />

sintoma e a contingência de sua solução diante do impossível de se escrever.<br />

171


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

orientados por uma progressão não-linear, mas lógica, característica do ensino<br />

lacaniano, esperamos agora alcançar as conseqüências clínicas extraídas desse aporte<br />

teórico no que ele pode contribuir para a discussão das estabilizações.<br />

B. Reparação e suplência na clínica borromeana das psicoses<br />

Toda essa introdução se faz essencial para entendermos como Lacan se vale da teoria<br />

dos nós para discutir as diferentes soluções a que qualquer sujeito pode chegar a fim de<br />

se escrever enquanto falante. Sabemos que sua preocupação não era a de ser fiel aos<br />

princípios e conceitos das ciências e teorias das quais se utilizava para compreender as<br />

questões do sujeito para a psicanálise. De posse do conhecimento que lhe era útil,<br />

imergia-o na teoria psicanalítica para dele fazer uma versão com a qual fazia a<br />

psicanálise avançar.<br />

Não foi diferente com a teoria dos nós. Lacan, como vimos, encontra na cadeia<br />

borromeana o instrumento para discutir as relações possíveis entre R, S e I. A partir daí<br />

o nó de trevo, nó de três e o de quatro serão objeto de seu interesse, sobremaneira nos<br />

seminários RSI e Joyce, le sinthome 82 . Uma das noções que utiliza com freqüência<br />

nesses dois seminários é a de lapso ou erro do nó. Em relação a esse lapso, Lacan fala<br />

na possibilidade de uma reparação. É justamente essa reparação que vai ganhar, a partir<br />

de seus estudos sobre Joyce, o estatuto de sinthoma, invenção do sujeito que suplencia o<br />

erro apontado. As diferentes versões de erros e suplências mostrados por Lacan nos<br />

auxiliam a pensar o diagnóstico e a clínica com a psicose. Vejamos como ele os<br />

apresenta.<br />

O primeiro erro que Lacan desenha e comenta é o erro do nó borromeu inserido na<br />

esfera armilar. No desenho original da esfera, os três círculos estariam livres uns em<br />

relação aos outros, enquanto, no desenho com o erro, dois aros estão entrecruzados e<br />

apenas um resta livre. Essa será também a estrutura do erro encontrado em Joyce.<br />

82 Também no Seminário “Le moment de conclure” (1977-78), ele manipula os nós, ensaiando diferentes<br />

versões para a clínica.<br />

172


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 30 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana (LACAN, 1975-76/2005,<br />

35-36)<br />

Lacan utiliza esse recurso da mostração como método que evidencia a descrença no<br />

objeto e na possibilidade dele ser apreendido por algum órgão. O órgão seria percebido<br />

como uma ferramenta separada e, nesse sentido, seria conhecido como um objeto em si<br />

mesmo. A análise operaria pela restituição do sujeito, dividido pela operação da<br />

linguagem enquanto aparelho de gozo 83 . Enquanto ciência do real a psicanálise fez de<br />

seu objeto sujeito, sujeito que é, de si mesmo, dividido. Donde Lacan buscar outra<br />

materialidade com a topologia para pensar o falasser.<br />

Ele aponta que o princípio do nó borromeano é o par de dois toros, dobrados um sobre o<br />

outro e atravessados, no furo que se funda entre eles, por uma reta infinita. Essa reta<br />

infinita faz desse furo um verdadeiro furo; mas ela está solta. E, se essa reta se solta,<br />

uma reparação deverá ser feita para articulá-la aos outros dois toros novamente. Esse é o<br />

artifício imposto pelos nós. Trata-se de um artifício de representação, de perspectiva,<br />

pois é preciso que se faça uma suplência à continuidade aí imposta, no momento em que<br />

a reta infinita é suposta sair do furo.<br />

Acompanhando seu raciocínio, veremos Lacan chegar à formulação do nó de trevo<br />

como sendo a geometria que subsiste da relação sexual, tal qual proposto no Seminário<br />

RSI. É preciso entre dois, macho e fêmea, um terceiro para que ela seja possível. O<br />

terceiro termo ao mesmo tempo em que torna o furo real, cria a condição para atar os<br />

três registros. A única consistência aí, por conseguinte, é a da própria corda no que ela<br />

faz círculo, aplainado, consistindo numa cadeia borromeana de uma só corda, e não de<br />

três elementos, como na figura original. Essa cadenó, ou falsa cadeia borromeana,<br />

engendra o nó de trevo.<br />

83 Aqui Lacan dialoga com e critica Chomsky em sua abordagem cognitivista da linguagem. Nas<br />

conferências americanas, ele (LACAN, 1975b) já evocara o lingüista e sua teoria ao afirmar que<br />

Chomsky assimilava ao real o que era da ordem do sintoma, confundindo os dois elementos, como em<br />

sua afirmação de que a linguagem é um órgão. A questão que ele tenta responder, Laurent localiza na<br />

tentativa de fazer consistir o real no campo das pesquisas sobre inteligência artificial (2005, p. 58-61).<br />

Chomsky introduz um modelo transformacional das capacidades cognitivas da mente conhecido como<br />

tratamento de uma informação, e não como um cálculo lógico-matemático tal qual seus antecessores<br />

tentaram empreender. Para além do órgão corporal em si mesmo, ele situa um campo de múltiplas<br />

funções, novos órgãos alojados no corpo que operam como módulos de tratamento da linguagem do<br />

pensamento. Ele tenta fundar uma gramática universal, regida por regras de transformação aplicadas às<br />

gramáticas estruturais das línguas naturais. Caminha, portanto, na contramão da radical singularidade do<br />

uso de lalíngua que Lacan propõe. Enquanto, de um lado, Chomsky nos conduz a um pulular de órgãos,<br />

de outro, Lacan vai articular o corpo sem órgãos, o corpo como conjunto vazio, o corpo saco, com a<br />

consistência das cordas da linguagem que o atravessam em torno de um furo (LAURENT, 2005, p. 60).<br />

173


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 31 – Cadeia borromeana e nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 87)<br />

A materialidade do nó se situa na corda que o realiza exatamente por ser ela que<br />

sustenta o que se ata e a maneira como se ata. O nó de trevo, então, Lacan o generaliza:<br />

“por que não entender que cada uma dessas argolas continua na outra de uma maneira<br />

estritamente não distinguível? Ao mesmo tempo, não é um privilégio do estar louco”<br />

(LACAN, 1975-76/2005, p. 87). Essa amarração, intrínseca ao falasser, trava no seu<br />

miolo o objeto a, o que faz obstáculo à expansão do imaginário concêntrico e evidencia<br />

a inexistência da relação sexual ao exigir um terceiro elemento ao par disjunto de dois.<br />

Nesta discussão, ele aponta a suplência como invenção que se soma para reparar ou<br />

remediar o lapso do nó. E ele exercita o uso da topologia como ferramenta clínica na<br />

leitura do caso de Joyce. Ao se perguntar a partir de quando se é louco e, mais<br />

exatamente nesse seminário, se Joyce era louco, ele avança na noção de erro do nó e de<br />

sua operacionalidade (LACAN, 1975-76/2005, p. 81).<br />

“Se aqui vocês mudam alguma coisa na passagem por debaixo dessa asa, resulta ali<br />

imediatamente que o nó é abolido por inteiro. O que eu levanto como questão nessa<br />

tagarelice, a saber, se, sim ou não, Joyce era louco, pode aqui ser localizada” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 87).<br />

Lacan hipotetiza uma falha na amarração do nó de trevo em Joyce, que precisa suprir<br />

esse desanodamento colocando uma argola onde o erro se apresenta. Graças a ela o nó<br />

de trevo não se desmanchará. Como já tivemos oportunidade de ver, há no falso nó de<br />

trevo um falso ponto de cruz. Originalmente o ponto de cruz 1 passa por cima, o 2 por<br />

baixo e o 3 por cima. Ao criarmos artificialmente o erro no ponto de cruz 1, criamos<br />

uma condição de falso trevo, na medida em que o nó se converteu em trivial, mantendo<br />

apenas a apresentação gráfica semelhante à do de trevo. Há, pois, um lapso no ponto de<br />

cruz 1. Aí Lacan introduz a argola que corrige o erro.<br />

174


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 32 – Erro e suplência em Joyce no nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 88)<br />

Mas, para além da discussão pouco consensuada sobre ser Joyce um psicótico ou não,<br />

interessa-nos tomá-lo como paradigma do efeito sinthoma no trabalho de suplência. E se<br />

a foraclusão não é só do Nome-do-Pai na psicose, também sua reparação não será<br />

privilégio dessa estrutura clínica. Ao contrário, vemos Joyce na década de 70 ser<br />

tomado como paradigma de como se pode construir uma solução ao impasse colocado<br />

pela falta do significante no Outro. Na primeira clínica, o Nome-do-Pai imprimia à<br />

constituição do sujeito neurótico ou perverso um organizador comum e, à falta dele,<br />

encontraríamos a estrutura ‘defeituosa’ da psicose, como vimos. A proposta de tomar<br />

Joyce como paradigma da suplência de maneira não igual para não todos, mas comum a<br />

qualquer um, é clara em Lacan, na década de 70.<br />

“O que eu proponho aqui é considerar o caso de Joyce como respondendo a uma maneira<br />

de suplenciar um desanodamento do nó. [...] A isso podemos remediar colocando ali uma<br />

argola, graças à qual o nó de trevo afirmado não se fará em flocos” (LACAN, 1975-<br />

76/2005, p. 88).<br />

Lacan já havia introduzido a noção de sinthoma em Joyce em sua conferência intitulada<br />

“Joyce, o sintoma” (1975/2005). Mas aqui ele avança nessa discussão e propõe que seu<br />

desejo de ser um artista que ocuparia o maior número possível de pessoas, seria<br />

exatamente o compensatório do fato de que seu pai jamais fora para ele um pai. Não<br />

operou a transmissão, enquanto pai real, do significante do Nome-do-Pai, como vimos.<br />

A Verwerfung de fato da demissão paterna teria sido compensada pelo desejo de ser um<br />

artista que ocuparia o maior número de pessoas possível. Aqui o significante do Nome-<br />

do-Pai revela a disjunção entre a função de nomeação e a função paterna. A demissão<br />

paterna provocou um trabalho de nomeação operado pelo próprio escritor. Assim,<br />

podemos dizer que o lapso do nó em Joyce é justamente a demissão paterna de sua<br />

função de nomeação. Enquanto, por seu turno, o sinthoma joyceano – a saber, a<br />

invenção de um nome próprio e o desejo de ser artista – repara esse erro do nó,<br />

compensando uma Verwerfung de fato.<br />

175


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Na última aula do Seminário XXIII, Lacan vai tratar da escrita do ego de Joyce como<br />

reparação de um erro da cadeia borromeana a três, que recebe um elemento a mais no<br />

ponto em que o erro se insere. O quarto elemento introduzido, o sinthoma ou o ego de<br />

Joyce, repara o erro, atando os três registros. Ego, bem entendido, não como uma versão<br />

imaginária e narcísica do eu, pois, como nos disse Lacan (1975-76/2005, p. 147), “o<br />

ego cumpriu nele [Joyce] uma função da qual eu não posso dar conta senão através de<br />

meu modo de escrita. [...]. A escrita é essencial a seu ego”.<br />

Como vimos, Lacan localiza o erro num entrelaçamento entre o Simbólico (sintoma) e o<br />

Real (inconsciente), que deveriam estar apenas superpostos, enquanto o Imaginário, reta<br />

infinita, estaria solto. Se há entrelaçamento, a condição borromeana dessa amarração se<br />

perde.<br />

Lacan evidencia este estatuto do Imaginário com a declaração de Joyce sobre seu corpo<br />

soltar-se de si como uma casca, quando ele leva uma surra de seus amigos, como já<br />

discutido. Ele se pergunta por que não quer mal a esses amigos, por que não<br />

experimenta nenhum sentimento por eles. Ele metaforiza sua relação com o corpo ao<br />

tomá-lo como a casca que se solta. Desta vez, ele não gozou, mas teve uma reação de<br />

repugnância. Essa idéia do deixar-se cair em relação ao próprio corpo é o que chama a<br />

atenção de Lacan. É uma idéia de si como corpo que tem peso de ego para Joyce. Além<br />

disso, a escrita joyceana, através das epifanias, testemunha a conseqüência que resulta<br />

desse erro que ata o Inconsciente ao Real.<br />

Sua reparação se fez exatamente no ponto em que o Simbólico entrecruza o Real. Para<br />

isso, é preciso fazer a fabricação do nó. E fazê-lo se reduz a escrevê-lo. O nó é um apoio<br />

ao pensamento: apensamento, como escreve Lacan para incluir o objeto a, além do<br />

significante nessa operação 84 . É curioso que seja preciso escrever o nó para ver como ele<br />

funciona. A escrita é o fazer que dá suporte ao pensamento. Mas o nó borromeano muda<br />

o sentido da escrita, confere-lhe autonomia, mostra que o que se modula na voz não tem<br />

nada a ver com a escrita. Mostra que há algo a que se pode enganchar significantes. A<br />

escrita muda o sentido do que está em jogo. Como? Na medida em que os nós sustentam<br />

o objeto, o ossobjeto.<br />

“É bem o que caracteriza a letra com que eu acompanho esse ossobjeto, a saber, a letra<br />

84 Lacan continua no seu jogo com as homofonias. Aqui la pensée, o pensamento em protuguês, é escrito<br />

appensée, pensamento com ‘a’, objeto a, como ele explica logo em seguida (LACAN, 1975-76/2005, p.<br />

144). Optamos por traduzir por apensamento para resguardar a referência à presença do objeto a como<br />

suporte.<br />

176


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

pequeno a. Se eu reduzo este ossobjeto a esse pequeno a, é precisamente para marcar que a<br />

letra, neste caso, não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita como outra, com um<br />

pequeno a. A escrita em questão vem de outra parte que não do significante” (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 145).<br />

É aqui que a letra e o nó se aproximam. O nó é a escrita com o objeto a, é preciso<br />

escrevê-lo para saber como ele funciona, nos ensina Lacan. Escrita com objeto-letra que<br />

vem de outra parte que não do significante. Ela provém da escrita do traço unário, ao<br />

qual Lacan, com a reta infinita do nó borromeano, confere um outro suporte. Em um<br />

círculo, há um furo no meio, “a reta infinita tem por virtude ter o furo em torno dela<br />

toda. É o suporte, o mais simples, do furo” (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Sulco,<br />

rasura, a escrita é feita da sulcagem do que marca o corpo enquanto gozo, sem nenhuma<br />

anterioridade. Letra. É o vazio escavado pela escrita que, como receptáculo, está sempre<br />

pronto a acolher gozo (LACAN, 1971/1986, p. 31). É essa escrita que o conceito de<br />

letra em Lacan inaugura. É a essa escrita que Lacan, com o nó borromeu, provê um<br />

suporte.<br />

O ego preencheu em Joyce a função de suplência pela escrita, aqui elemento essencial.<br />

Como se vê, Lacan aproxima o nó à letra, no que tange à função de suporte que a escrita<br />

realiza. Onde Lacan fala que é preciso escrever o nó, lemos que é através da função da<br />

letra, entre Real e Simbólico, que uma resposta ao gozo do Outro pode ser cerzida,<br />

enlaçando o Imaginário. Essa é a escrita do ego de Joyce, essa é, portanto, a escrita de<br />

sua suplência, que, neste caso, opera como sinthoma, pois escreve uma resposta<br />

possível à falta do significante referente no campo do Outro, enodando os três registros.<br />

Sua escrita tem pelo menos quatro aspectos que a tornam reparadoras: (a) falta sentido<br />

porquanto opera pelo Real; (b) inclui o objeto a, não sendo somente significante; (c) faz<br />

função de letra e, portanto, de litoral entre real e simbólico; (d) e, enfim, é endereçada,<br />

busca fazer laço social, sendo dirigida a um vasto público. É essa escrita que Lacan<br />

equivale à escrita do nó borromeano. A ilegibilidade do texto de Joyce atesta a natureza<br />

diferenciada de seu ego, corretor da relação faltante que não enoda borromeanamente<br />

real e sintoma.<br />

177


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 33 – Suplência borromeana pelo Édipo (coluna esquerda) e suplência joyceana pelo ego (coluna<br />

direita) (SKRIABINE, 2006, p. 60)<br />

Lacan mostra matematicamente, como vimos, que o erro em outro ponto de cruz não<br />

geraria o mesmo defeito, nem requereria a mesma reparação. Além disso, uma<br />

reparação borromeana é diferente de uma reparação não borromeana. E também<br />

verificamos que nem sempre se alcança o sinthoma num trabalho de estabilização na<br />

psicose. Tudo isso é fundamental para discutirmos a questão da clínica da psicose, seu<br />

manejo com o gozo, com a nomeação e com o savoir-y-faire, no estilo das soluções<br />

singulares que orientam a direção do tratamento.<br />

Ora, Lacan insiste sobre a importância desse quarto termo em Joyce, pois a maneira<br />

como ele se escreve, o efeito real de amarração que provoca, suplanta (ou melhor<br />

suplencia) um desarranjo na articulação dos três registros. Se, por algum motivo,<br />

estrutural ou contingencial, essa amarração vacila, o quarto elemento pode suplenciar<br />

esse ponto, inventando um outro caminho para o sujeito. É daí que nossos recursos<br />

clínicos com a psicose podem ser favorecidos por este estudo.<br />

Podemos, enfim, a título de sistematização dos termos que utilizamos até então para<br />

tratar das estabilizações na psicose, buscar estabelecer um critério diferencial que, a<br />

partir deste ponto, indique com maior precisão sua utilização. No texto freudiano, nem<br />

estabilização, nem solução são termos utilizados para tratar das psicoses. Será com<br />

178


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Lacan que, enquanto termo geral que define um conjunto de operações diferenciadas e<br />

singulares, o termo solução ou estabilização indica o gênero do processo psíquico que<br />

agregaria sob seu teto diferentes modalizações. A estabilização pode, por exemplo, ser<br />

precária, como pelo viés da identificação imaginária que forja um eu para o psicótico.<br />

Ou pode incluir um trabalho de construção simbólica, como proposto pela leitura<br />

freudo-lacaniana da metáfora delirante do Presidente Schreber. Pode também ser o<br />

efeito recolhido de uma passagem ao ato, por exemplo.<br />

Entretanto, nem toda estabilização cria uma forma de amarração dos três registros,<br />

podendo ela se desfazer diante de um embate qualquer. Para podermos dizer que há<br />

suplência ao que falha em um enodamento dos três registros, supomos a invenção de<br />

uma nova forma de articulação entre eles, estejam eles em continuidade, como propõe<br />

Lacan para o nó de trevo que caracterizaria a paranóia comum, ou não, como propõe na<br />

cadeia de três para Joyce. O que poderia ser inventado aí seria uma estratégia a partir da<br />

qual uma nova forma de gozo e de articulação entre Real, Simbólico e Imaginário se<br />

produziria.<br />

Então, poderíamos nos perguntar, toda suplência é uma invenção sinthomática? Miller<br />

(2003a), ao trabalhar as invenções psicóticas, destaca na paranóia, na melancolia e na<br />

esquizofrenia diferentes operações concernentes a essas invenções, das quais nem todas<br />

forjam um sinthoma. O que caracterizaria, a nosso ver, a invenção sinthomática seria a<br />

suplência em um ponto específico, seria a invenção de uma ferramenta singular que<br />

operasse como nó borromeano, evitando o desencadeamento psicótico. Seria uma<br />

escrita do nó com a letra-objeto a no nível de lalíngua que faria a sustentação dessa<br />

nova articulação. E, nessa direção, ataria borromeanamente como quarto elemento os<br />

três registros. Poderíamos representar assim a lógica de nossa terminologia, localizando,<br />

de fora para dentro, as soluções, as suplências e, finalmente, o sinthoma.<br />

1. Soluções (ou estabilizações);<br />

179


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

2. Suplência (ou amarrações);<br />

3. Sinthoma<br />

Nós nos valemos da hipótese de que, a partir do trabalho de escrita, a saber, a partir de<br />

sua arte ou de seu artifício, Joyce pôde inventar uma maneira de constituir um nó que<br />

fixou a letra de gozo. Foi neste ponto que seu “ego” pôde se escrever.<br />

Trabalhando agora com os termos mais precisos, podemos dizer que a hipótese inicial<br />

de nossa investigação era a de que a suplência poderia se dar através da criação artística,<br />

prescindindo da escrita. Ora, o que os casos com os quais nos deparamos em nossa<br />

investigação – e que apresentaremos no próximo capítulo – nos ensinaram é que a<br />

criação sozinha não é índice suficiente para analisar a questão da estabilização. Há algo,<br />

além e aquém da obra, algo nela e através dela que pode forjar uma estabilização: trata-<br />

se da letra com a qual o sujeito se escreve como nó. Essa é verdadeiramente a arte de<br />

Joyce, escrever-se em sua obra. Se entendemos que a estabilização é o gênero, do qual a<br />

suplência é uma das espécies (com uma subespécie particular que é o sinthoma),<br />

começamos a destrinchar com mais acuidade a questão da estabilização e a operação<br />

que a efetiva.<br />

3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós<br />

Será, sobretudo, em sua terceira conferência em Roma, “A terceira”, que Lacan<br />

(1975/1986) irá tratar do que hoje está sendo conhecido como clínica borromeana. Ali<br />

ele faz um uso da topologia de nó para explicitar o que está em jogo num tratamento<br />

analítico.<br />

Figura 05 – Nó borromeano detalhado<br />

Ao retomar a localização dos gozos no nó borromeano, ele lembra que o gozo fálico<br />

180


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

está em contraposição ao corpo (imaginário), possuindo um caráter fora-corpo. E, da<br />

mesma maneira, o gozo do sentido está fora do real, enquanto o gozo do Outro, estaria<br />

fora do simbólico 85 . É assim que, “do alimentar o sintoma, o real, o sentido, não se faz<br />

outra coisa que lhe dar continuidade de substância” (LACAN, 1975/1986, p. 39). É no<br />

equívoco, e no que ele comporta de abolição do sentido, que o que concerne ao gozo,<br />

sobremaneira ao gozo fálico, pode se estreitar, restando mais destacado o objeto a.<br />

Portanto, se o sentido avança, ele dá substância ao sintoma, porém se se joga com o<br />

equívoco, as rodelas serão esticadas e haverá um estreitamento em todos os campos do<br />

gozo, restando o objeto a mais definido. Assim também, podemos acrescentar, se<br />

reduzirão o campo de avanço de um registro sobre o outro, trazendo como outra<br />

conseqüência uma redução nos campos da inibição e da angústia.<br />

A manipulação do nó evidencia, assim, as operações de redução a que Miller (1998b) se<br />

refere em O osso de uma análise. Elas seriam três:<br />

(a) a repetição (do significante);<br />

(b) a convergência (dessa repetição a uma frase que escreve o sujeito, redução<br />

gramatical do blá-blá-blá);<br />

(c) e a evitação (do que escapa à frase e se escreve como gozo).<br />

Com o nó borromeu, a articulação significante-gozo é mais direta: tocando-se em um, o<br />

outro se desloca. Essa clínica traz o morto da palavra ao vivo do corpo que goza para o<br />

mesmo plano.<br />

Ainda em “A terceira”, Lacan define o sintoma como “irrupção dessa anomalia que<br />

consiste o gozo fálico, quanto mais se exiba, se desabroche essa falta fundamental que<br />

qualifico de não-relação sexual” (LACAN, 1975/1986, p. 40). Na medida em que a<br />

interpretação incide sobre o significante, algo pode recuar do campo do sintoma. Mas o<br />

significante, a linguagem, o simbólico são sustentados por lalíngua. O inconsciente se<br />

elabora como saber inscrito de lalíngua. A operação analítica se dá, portanto, entre os<br />

dois campos, real e simbólico. Ainda que reste algo desse saber inconsciente<br />

(Urverdrängt) jamais reduzido, jamais interpretado.<br />

“O essencial que há no jogo de palavras, é aí que deve visar nossa interpretação para não<br />

ser aquela que provê o sintoma de sentido[...] O deciframento se resume ao que faz a cifra,<br />

ao que faz o sintoma, é algo que antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir<br />

cativá-lo até o ponto onde a linguagem possa equivocar-se é ali pelo qual o terreno está<br />

ganho em meus pequenos desenhos, sem que o sintoma se reduza ao gozo fálico” (LACAN,<br />

85 Basta observar o campo de interseção entre os registros, tomados dois a dois, em contraposição ao<br />

terceiro que resta.<br />

181


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

1975/1986, p. 32-33).<br />

A sutileza da abordagem clínica aqui se localiza no fato de que a via para se fisgar o<br />

Real é a letra. É a partir do momento em que se agarra o que há de mais vivo ou de mais<br />

morto na linguagem – a letra – que se tem acesso ao Real. É o que permite aceder ao<br />

gozo do Outro, pois este, estando fora da linguagem, separado da representação, não<br />

existe senão enquanto acessado pela letra. O gozo do Outro, como vimos, implica na<br />

impossibilidade de dois corpos fazerem um, e o falo é o que mascara a todo tempo essa<br />

impossibilidade. Donde Lacan tratar de um estreitamento do gozo fálico e de um acesso<br />

ao Real por mordiscadelas. Ele localiza na rodela do real a vida. Ela é esse inabordável,<br />

esse insondável que a ciência busca incessantemente decodificar e explicar. Não é<br />

porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem, que ele, na mesma medida,<br />

não dependa estreitamente de lalíngua, essa língua morta que continua em uso.<br />

Outro ponto sutil que se fortalece nessa abordagem clínica é o fato de que esse resto<br />

inanalisável, o que do inconsciente não se interpreta jamais, o sujeito tomará a seu<br />

encargo para seu uso, responsavelmente.<br />

Encontramos em Joyce uma arte de “saber fazer com” o inconsciente que nos fornece<br />

uma via para articular a clínica borromeana. Com sua escrita, ele cria uma série de<br />

solilóquios, o pensamento que flutua, que vai à deriva, que associa, que não cessa. O<br />

sujeito pensa todo o tempo, é um monólogo interior. Ele pensa para ele, de um modo<br />

solipsista, levado pelas sensações, pelas imagens, pelos sons. Ele divaga a seu bel-<br />

prazer e, de tempos em tempos, isso eclode sobre o real [ça bute sur du réel]. Essa<br />

mesma melodia se aproxima do que o analista escuta de seus pacientes, a melodia da<br />

música do inconsciente. De um modo absolutamente particular, cada um fala da mesma<br />

questão: a marca que porta do Real, do modo com o qual isso guarnece seu gozo, do<br />

inconsciente que isso faz para ele. Misturando monólogo e endereçamento ao Outro,<br />

palavra que escapa e construção laboriosa, pensamento solto e encontro com a vida<br />

(SKRIABINE, 2006). Não é senão a partir do momento em que algo se desencapa que<br />

se pode encontrar um princípio de identidade de si para si. E essa redução de sentido é<br />

algo que se produz no nível da lógica, não do Outro, diz Lacan (1975/1986, p. 41).<br />

A radicalidade desse último ensino lacaniano traz de fato uma novidade com a idéia do<br />

fora do sentido. Mas trata-se de um fora-do-sentido que produz efeitos em relação ao<br />

Simbólico, ao Imaginário e ao Real. O quarto nó que permite a amarração entre os três<br />

182


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

registros evidencia uma saída singular, uma solução inventada por cada sujeito para se<br />

haver com o impossível de enunciar. Parece-nos que, se a via dessa operação se dá na<br />

relação entre Simbólico e Real – pelo menos em Joyce –, seus efeitos se dão em relação<br />

a todos os três registros. Na verdade, em relação a sua maneira de atar-se uns aos outros,<br />

trazendo como conseqüência experiências e inscrições subjetivas distintas.<br />

No primeiro tempo do ensino, quando o nó borromeu é apresentado com três aros, os<br />

três registros são equivalentes. É somente com a introdução do quarto elemento ao nó,<br />

na década de 70, que os registros perdem essa equivalência. E, se há alguma diferença<br />

em relação ao simbólico, ela diz respeito ao fato de que ele será trançado com o quarto<br />

elemento sinthomático quatro vezes, e não somente duas como os outros dois registros<br />

(LACAN, 1975-76), conforme apresentado na Figura 9.<br />

O que Lacan subverte é a idéia de uma solução para todos, normativizada pelo Nome-<br />

do-Pai e seu corolário, o Falo. Nesse sentido, podemos compreender a pregnância do<br />

Real. Cada sujeito, a partir do real em jogo com seu gozo, irá operar uma forma de<br />

suplência ao impossível de nomear.<br />

Essa solução, em Joyce, implicou numa amarração entre simbólico e sinthoma – aqui<br />

tomado como o real – de forma a que o imaginário não se despregasse do nó. Para<br />

Lacan, as epifanias, na escrita joyceana, “estão sempre caracterizadas pela mesma<br />

coisa, que é bem precisamente a conseqüência resultante do erro no nó, a saber, que o<br />

inconsciente está atado ao real” (LACAN, 1975-76/2005, p. 154). Erro, como vimos,<br />

pois os três registros deveriam apenas se sobrepor para serem entrelaçados<br />

borromeanamente pelo quarto elemento, enquanto, em Joyce, dois registros se<br />

entrecruzam. A escrita de Joyce introduz, portanto, a solução singular de<br />

borromeanamente atar os registros, evitando a dispersão do Imaginário ao suplenciar o<br />

erro. Força, dessa maneira, o objeto a que se escreve no nó.<br />

Assim, do que já discutimos ao longo deste capítulo, podemos, quanto à clínica<br />

borromeana, articular os seguintes aspectos:<br />

(1) Não há Outro do Outro, pelo menos não há gozo desse Outro do Outro;<br />

(2) É preciso, portanto, que se faça uma sutura, uma costura, a partir do ponto em<br />

que essa ausência se escreveria no nó, ou seja, do campo de ex-sistência em<br />

relação ao Simbólico e ao Imaginário, de acordo com a Figura 7;<br />

(3) É preciso que, em algum ponto, haja um enlaçamento entre o nó do Imaginário e<br />

183


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

o do saber inconsciente (Simbólico);<br />

(4) Tudo isso para obter um sentido-gozo, que é o objeto da resposta do analista ao<br />

exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma;<br />

(5) Quando fazemos esse movimento, esse enlaçamento, ao mesmo tempo fazemos<br />

outro, entre o que é sinthoma (Σ) (rodela vermelha) e o real (rodela vermelha);<br />

Figura 34 – Nó borromeano a quatro, evidenciando a costura do sinthoma com o real (LACAN,<br />

1975-76/2005, p. 54)<br />

(6) Nesse conjunto, podemos destacar duas duplas; os registros se atariam dois a<br />

dois disjuntos, amarrados pela outra dupla que lhe é exterior, a partir do<br />

enlaçamento central entre I e S;<br />

(7) “É enquanto que o sintoma se religa ao inconsciente e que o imaginário se liga<br />

ao real que nós temos negócio com alguma coisa da qual surgiu o sinthoma”<br />

(LACAN, 1975-76/2005, p. 55).<br />

(8) O analista trabalha com o analisante como enlaçar seu sintoma e o real parasita<br />

de gozo;<br />

(9) Tornar esse gozo possível é a mesma coisa que ouvir um sentido/gozar do<br />

sentido (j’öuis-sens);<br />

(10)É, portanto, de cortes, suturas e enlaçamentos que se trata numa análise;<br />

(11)E devemos considerar os registros separadamente; Real, Simbólico e Imaginário<br />

não se confundem;<br />

(12)Encontrar um sentido implica em saber qual é o nó e em cosê-lo corretamente<br />

graças a um artifício.<br />

Parece-nos, portanto, ser possível dizer que 86 :<br />

1º) desfazer a referência unívoca ao Nome-do-Pai como elemento discriminatório<br />

entre as estruturas foi um passo dado por Lacan em seu último ensino, pluralizando<br />

86 Verificar no Anexo VI o quadro referente à discussão da clínica borromeana.<br />

184


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

os Nomes-do-Pai e sofisticando a noção de sintoma com a introdução do sinthoma;<br />

2º) é possível pressupor que não é somente pelo viés do simbólico ou de uma norma<br />

edípica universal que se podem produzir soluções ao furo constituído pela ausência<br />

do significante do gozo do Outro;<br />

3º) é importante pôr em questão a relevância das construções singulares que podem<br />

ser construídas pelos sujeitos, ainda que elas se dêem a partir das diferenças<br />

estruturais entre neurose, psicose e perversão, que não apareceram destituídas de<br />

valor ao longo do ensino lacaniano;<br />

4º) e, enfim, é fundamental avançar no campo de investigação desse efeito do real,<br />

como campo do fora-de-sentido, junto aos enodamentos que podem advir do nó<br />

borromeano nas soluções subjetivas e na direção do tratamento junto à clínica<br />

psicanalítica.<br />

Apliquemos, então, essa lógica à discussão clínica da estabilização psicótica a partir de<br />

casos em que, ora a suplência se escreve ora, apesar da escrita factual da caneta no<br />

papel, a letra não faz escrita do gozo.<br />

185


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

CAPÍTULO 4<br />

APLICAÇÃO DA TOPOLOGIA BORROMEANA À LEITURA DAS<br />

ESTABILIZAÇÕES NA CLÍNICA DAS PSICOSES<br />

186


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

4.1 Discussão Metodológica<br />

4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise<br />

Se a metodologia indica o caminho a seguir para se alcançar um objetivo, sabemos que,<br />

no campo da psicanálise em sua inter-relação com a ciência, esse caminho não é<br />

desprovido de dificuldades. Apesar do desejo freudiano de inserir a psicanálise no<br />

campo científico, ela sempre teve uma relação de exterioridade com a ciência por<br />

suportar e considerar os efeitos do real em sua elaboração e em sua clínica, a partir da<br />

dimensão do inconsciente. Lacan trata dessa dificuldade ao falar que fazemos de nosso<br />

objeto, sujeito, e sujeito dividido em si mesmo...<br />

Discutindo o polêmico texto de Freud (1933/1976), “A questão de uma<br />

Weltanschauung”, Figueiredo (2001, p. 07-10) traz apontamentos que nos orientam a<br />

pensar a pesquisa em psicanálise e, portanto, estas dificuldades. Se a psicanálise é<br />

incapaz de criar uma Weltanschauung 87 própria por um lado, por outro, “sua<br />

contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental”<br />

(FREUD, 1933/1976, p. 194). No debate em relação à ciência, à religião, à arte e à<br />

filosofia, a psicanálise aparece como uma parte da ciência e, portanto, aderida à<br />

Weltanschauung científica, precisamente por essa contribuição específica quanto ao<br />

mental.<br />

“Entenda-se o mental seja como for: da alma (como no original alemão), do psíquico, na<br />

raiz da palavra ‘psicanálise’ ou do próprio inconsciente como objeto construído. O que<br />

interessa é que o método só pode advir da pesquisa e não de outros recursos mais próprios<br />

aos demais saberes em questão [religião, arte, filosofia]” (FIGUEIREDO, 2001, p. 8-9).<br />

Se o comentário do texto extrapola aqui nossos objetivos, ao menos dele podemos<br />

extrair o que é essencial à metodologia de pesquisa em psicanálise para nossos fins. Ao<br />

modo da ciência, mas devido à incompletude de seus achados e por não pretender<br />

estendê-la muito além o valor de suas construções lógicas, é possível ler no desejo de<br />

Freud o compromisso da psicanálise com a realidade que investiga e com os conceitos<br />

que formula então.<br />

Específica, ainda que incompleta, a psicanálise parte em sua formulação do que a<br />

orienta na clínica: a castração enquanto impossibilidade real de simbolização. É<br />

exatamente nessa interseção da clínica com a ciência que a pesquisa deve caminhar. E<br />

87 Freud (1933/1976, p. 193) define a Weltanschauung como “uma construção intelectual que soluciona<br />

todos os problemas de nossa existência de modo uniforme com base em uma hipótese superior que, por<br />

sua vez, não deixa questão sem resposta, e onde tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”.<br />

187


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

nela se insere a problemática questão de tomar o sujeito do inconsciente como objeto de<br />

investigação.<br />

Como nos lembra a discussão de Lacan em “A ciência e a verdade” (1965/1998), a<br />

psicanálise aparece como uma derivação da ciência, tendo sua condição de possibilidade<br />

radicada no corte que inaugurou, com Descartes e Galileu, a ciência moderna no século<br />

XVI. Com esse corte, porém, a ciência situa e, ao mesmo tempo, exclui o sujeito. É<br />

neste ponto também – acerca do sujeito – que a psicanálise, ainda que derivada da<br />

ciência, avança para além e diversamente dela, ao incluir o sujeito em seu campo. “A<br />

psicanálise constitui um saber inteiramente derivado porém não integrante do campo<br />

científico, porquanto resulta de uma operação de ‘subversão’ desse campo pelo viés do<br />

sujeito” (ELIA, 2000, p. 21). Se o sujeito com o qual a psicanálise opera não é senão o<br />

sujeito da ciência, como afirma Lacan (1965/1998), fato é que esse sujeito é tomado em<br />

sua dimensão radical de sujeito do inconsciente, sujeito desejante e, porquanto, sujeito<br />

que inclui uma articulação que considera o real em jogo na experiência da castração.<br />

É desse saber não-todo constituído pelo inconsciente que a psicanálise parte, na clínica e<br />

na pesquisa. Donde a exigência freudiana (FREUD, 1912b/1976, p. 152) de que, na<br />

psicanálise, “em sua execução, tratamento e investigação coincidam”. Assim, toda e<br />

qualquer pesquisa em psicanálise é, em sua essência, uma pesquisa clínica ou, como diz<br />

Elia (2000, p. 23), “na psicanálise, há, isto sim, um ‘campo de pesquisa’, que é o<br />

inconsciente, e que inclui o sujeito”. A um novo objeto, desenvolve-se um novo<br />

método. É assim que a ciência caminha...<br />

Nesse sentido, a modalidade de pesquisa clínica – redundância do termo – não implica<br />

somente em constituir um saber sobre a psicanálise em seus fundamentos teóricos, mas<br />

essencialmente a partir de sua clínica (FIGUEIREDO et al., 2001, p. 12). É no<br />

exercício da clínica psicanlítica que os pressupostos teóricos que a fundamentam podem<br />

ser postos à prova, articulando a teoria com a prática e fazendo ambas avançarem.<br />

A psicanálise, porém, opera com a realidade sempre a partir de sua definição de<br />

realidade psíquica. Na medida em que parte da constituição da realidade como efeito da<br />

apreensão que o sujeito, determinado pelo inconsciente, faz dela, rompe com a<br />

dualidade externo-interno e objetivo-subjetivo. Como conseqüência, nos adverte que o<br />

acesso ao fenômeno estudado, ao fato empiricamente encontrado, se faz a partir dessa<br />

mediação simbólica, introduzindo a interpretação do sujeito no fato. Nesse sentido, não<br />

188


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

se demonstra, afirma ou refuta o fato do inconsciente em si mesmo, mas antes a<br />

construção erigida em torno dele, como já defendia Freud (1937b/1976). É sobre o<br />

necessário, o que se escreve, e não sobre o contingente, o que se encontra, que se<br />

processaria seu critério de validação.<br />

Isto não implica numa desnecessidade transcendental dos fatos, senão cairíamos num<br />

contra-senso lógico: é necessário partir da clínica, mas os fatos clínicos encontrados não<br />

são os elementos que nos interessam, são secundários... A perspectiva imposta pela<br />

proposta freudiana é a de considerar: (a) a apreensão subjetiva do fenômeno como<br />

elemento necessário à investigação (o que limita a generalização das descobertas<br />

realizadas); (b) a indissociabilidade entre o método de tratamento e de investigação,<br />

pois tanto na clínica quanto na investigação o saber emerge como efeito da colocação<br />

em ato do método; (c) a aplicação transcendental de idéias na leitura do fato empírico, e<br />

a extração das consequências do empírico sobre essa apropriação na discussão racional<br />

do fato.<br />

Como, então, proceder? Freud é claro em seu texto sobre “Os instintos 88 e suas<br />

vicissitudes” (1915b, p. 137) quanto à articulação metodológica que procede da<br />

epistemologia psicanalítica. Para ele, nenhuma ciência começa com conceitos básicos<br />

claros e bem definidos, mas antes com a descrição dos fenômenos, procedendo-se<br />

depois a seu agrupamento, classificação e correlação. Entretanto, mesmo durante essa<br />

fase empírica, não é possível evitar a aplicação de idéias abstratas, advindas da teoria,<br />

ao material encontrado.<br />

Essas idéias se tornarão os conceitos básicos da ciência. E, apesar de apresentarem no<br />

início certa indefinição – necessária –, não apresentam dúvidas quanto a seu conteúdo e<br />

a sua escolha, determinada pela relação necessária que estabelecem com o material<br />

empírico. “Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação,<br />

somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão<br />

progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes<br />

numa vasta área” (FREUD, 1915b, p. 137). Aí sim, se tornariam definições mais<br />

exatas, porém ainda passíveis de alterações em seu conteúdo, à medida que as pesquisas<br />

avançam e novas descobertas se fazem.<br />

Ora, Freud aponta como método na construção do saber psicanalítico uma posição que<br />

88 Leia-se, devido a equívoco da tradução para o português, “As pulsões e suas vicissitudes”.<br />

189


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

se radica entre o empirismo e o racionalismo, deslocando a importância central ora do<br />

fenômeno, ora das idéias, para uma relação na qual, sobre a massa de fenômenos<br />

encontrados, sobreponham-se idéias que os organizam, consolidando um campo de<br />

saber teórico a eles pertinente. Sabemos, porém, que a universalidade dos conceitos e<br />

seus efeitos de verdade, orientadores do método de clínica e pesquisa em psicanálise, só<br />

podem ser recolhidos por cada um na singularidade de sua experiência.<br />

Assim, respeitando a singularidade presente em cada caso e também a necessidade de<br />

validação da hipótese desta pesquisa, optamos por realizar procedimentos que<br />

obedecessem à lógica metodológica até aqui apresentada.<br />

4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos<br />

Contemplando essa lógica do método nascida do estudo sobre o inconsciente em<br />

psicanálise, a proposta deste trabalho se insere na perspectiva da psicanálise em<br />

extensão (ou seja, aplicação da psicanálise a outros campos que não propriamente o<br />

exercício clínico estrito e sua formação). Partindo da experiência de trabalho com<br />

psicóticos nas oficinas em Saúde Mental, constatamos, em alguns casos, um<br />

favorecimento do trabalho de estabilização através da criação artística ou artesanal.<br />

Tomando a arte de Joyce, ou sua escrita, como paradigma, buscamos identificar casos<br />

em que o trabalho realizado em oficinas artísticas, prescindindo da escrita, favorecia a<br />

estabilização. Dessa forma, pudemos colocar à prova nossa hipótese, aplicando sobre o<br />

material empírico a idéia, e extraindo dos fatos o avanço teórico possível de ser ali<br />

produzido.<br />

Sabemos que alguns casos de psicose podem apresentar um ensaio de estabilização<br />

atravessado pela criação artística, como ocorreu com Arthur Bispo do Rosário ou Van<br />

Gogh. O que operou e o que não operou nesses dois casos? Será que a obra, a criação da<br />

obra, funcionou como ponto de basta? Como nó que a letra poderia ter escrito enquanto<br />

esse Um inaugural idêntico a si mesmo e fundador de uma nova forma de enlaçamento<br />

dos registros? Qual o uso singular que sujeitos psicóticos podem fazer desse recurso? A<br />

diferença diagnóstica determina ou interfere nesse uso? Mais do que perguntar pela<br />

função da obra nesses casos, como fizemos num primeiro momento, perguntamos como<br />

o sujeito na psicose pode, através da criação ou da obra, fazer funcionar (ou não) esse<br />

artifício como letra, como escrita que pode enlaçar os registros.<br />

190


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

A fim de levar a cabo nossa investigação nos termos acima propostos, partimos dos<br />

resultados da pesquisa realizada em nossa dissertação de mestrado, na qual constatamos<br />

que as oficinas de criação podiam gerar efeitos de estabilização (mas não somente). Não<br />

foi possível, à época, estabelecer o(s) elemento(s) envolvido(s) nesses efeitos<br />

recolhidos, o que nos conduziu ao doutorado. Fomos, então, a campo buscando<br />

identificar casos em que a obra tivesse produzido um efeito de estabilização para um<br />

psicótico, a fim de discutir teoricamente em que consistia esse efeito e a função da<br />

criação ou da obra nesses casos.<br />

Ainda que Lacan tenha encontrado em Joyce o paradigma da estabilização pela obra<br />

(escrita), como vimos, no mais das vezes, nos deparamos com sujeitos psicóticos que<br />

criam obras, sem necessariamente produzir esse efeito de suplência (sinthoma) e sem,<br />

nem ao menos, fundar uma via de estabilização a partir da criação. O que ocorre nessas<br />

diferentes situações em que a criação atravessa o trabalho de estabilização foi o que<br />

buscamos investigar.<br />

O desenho de nossa pesquisa voltou-se, então, para a identificação de casos de<br />

psicóticos que, não sendo artistas, realizavam criações artísticas ou artesanais que<br />

apresentavam ou pareciam apresentar alguma contribuição em relação à estratégia de<br />

estabilização que empreendiam. Ao visar a inter-relação criação-estabilização,<br />

buscamos recolher os efeitos provocados nesse intervalo. Assim, realizamos nossa<br />

pesquisa a partir dos seguintes procedimentos.<br />

A. Circunscrição do campo da pesquisa<br />

Nossa pesquisa se realizou junto à rede de assistência aberta e substitutiva de Betim que<br />

conta com quatro CERSAM (Centro de Referência em Saúde Mental) para atendimento<br />

complexo de urgências em regime de 12 ou 24 horas; aproximadamente cinco equipes<br />

de Saúde Mental nos Postos de Saúde para acompanhamento ambulatorial prioritário de<br />

casos de psicose já estabilizados; um Centro de Convivência com vistas à inserção do<br />

psicótico através de oficinas de arte e de produção; e um serviço residencial terapêutico<br />

como parte do Programa de Desospitalização Psiquiátrica, que complementarmente<br />

oferece bolsas-desospitalização para auxílio ao retorno sóciofamiliar de pacientes<br />

internados de longa duração. A população do município é estimada em cerca de 407.000<br />

habitantes, possuindo, portanto, uma rede substitutiva bem equipada.<br />

191


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Optamos por tomar a rede do município de Betim como universo para esta pesquisa por<br />

quatro principais motivos: 1) a facilidade física de acesso aos serviços; 2) a facilidade<br />

política de acesso aos sujeitos da pesquisa dada a predisposição da coordenação<br />

municipal de Saúde Mental em realizar aí pesquisas que favoreçam o avanço da clínica<br />

da psicose e do campo da Saúde Mental; 3) a complexidade da rede que favorece a<br />

especificidade do recorte de nossa pesquisa; 4) a presença da psicanálise como um dos<br />

saberes que orientam a prática clínica nos serviços públicos de Saúde Mental.<br />

B. Recorte para o estudo dos casos<br />

Nossa pesquisa incidiu apenas sobre o Centro de Convivência dado que é nessa<br />

modalidade de serviço que ocorrem as práticas das oficinas, em especial daquelas que<br />

têm como objeto e finalidade a criação de obras artísticas e/ou objetos artesanais.<br />

Nessas oficinas, que acontecem paralelamente às de produção – onde a<br />

profissionalização e a reabilitação são o mote central do trabalho –, o tratamento do<br />

objeto como resto de uma operação subjetiva se faz mais presente. Especificamente<br />

nesta pesquisa, nos limitamos ao Centro de Convivência do município que, segundo<br />

consulta prévia feita à Prefeitura, possuía oficinas de arte e criação em seu cotidiano de<br />

trabalho.<br />

C. Desenvolvimento da pesquisa<br />

Trabalhamos com categorias de sujeito e instrumentos diferenciadas para reunir o<br />

material clínico e proceder à sua análise.<br />

1 ª . Num primeiro momento, fizemos um trabalho de levantamento de casos potenciais<br />

para estudo, tentando identificar, através de relatos colhidos junto aos oficineiros do<br />

Centro de Convivência e profissionais da rede, casos de psicóticos em que a criação<br />

poderia estar associada a algum trabalho de estabilização. Em nossa dissertação de<br />

mestrado, identificamos que esse efeito é contingente, acontece somente para alguns<br />

poucos pacientes, não sendo possível a priori promovê-lo. Assim, buscamos os casos<br />

em que, na perspectiva do oficineiro, já seria possível depreender algum efeito de<br />

estabilização que pudesse estar associado à criação. A orientação desse levantamento<br />

inicial foi a de localizar os casos e identificar o porquê de sua indicação, ou seja, o que o<br />

oficineiro tomava como efeito produzido pela criação.<br />

192


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

2 ª . Num segundo momento, abordamos os responsáveis pela condução clínica dos casos<br />

reunidos na primeira fase. Nesse ponto, colhemos relatos que contribuíram para uma<br />

análise preliminar da relação entre o sujeito psicótico, a criação e a estabilização. Dessa<br />

análise, selecionamos alguns casos para observação e acompanhamento.<br />

3 ª . Em seguida, observamos as oficinas e os sujeitos, havendo um responsável por cada<br />

sujeito para acompanhá-lo e entrevistá-lo livremente, buscando vislumbrar sua relação<br />

com o trabalho de estabilização e com a obra.<br />

4 ª . Nessa fase, localizamos alguns sujeitos que: 1) apresentavam hipótese diagnóstica de<br />

psicose; 2) possuíam como característica a criação artística como via de solução a ser<br />

investigada; 3) apresentavam ou já haviam apresentado situações delirantes, a fim de<br />

articularmos o par delírio-criação no campo da estabilização. Procuramos apreender, a<br />

partir das entrevistas clínicas com esses sujeitos, a função singular que a criação<br />

apresentava para cada um deles na sua relação com a estabilização. Para isso, partimos<br />

das categorias prévias dispostas no quadro abaixo.<br />

História de vida e clínica Relação com a obra<br />

Diagnóstico Início<br />

Desencadeamento Relação estabelecida<br />

Crises Mudanças na relação<br />

Produção delirante Efeitos subjetivos recolhidos<br />

Estratégias subjetivas (solução)<br />

Tratamento<br />

5 ª . Entrevistamos também os responsáveis clínicos pela condução dos casos seguindo o<br />

mesmo quadro, pois eles poderiam oferecer informações mais específicas e também<br />

mais abrangentes sobre a inserção do trabalho de produção artística ou artesanal,<br />

enriquecendo a posterior construção dos casos. Ao sustentarem o campo clínico e<br />

transferencial no tratamento possível desses sujeitos, apresentavam uma visão mais<br />

ampla e complexa deles, podendo situar com mais precisão a relação que<br />

investigávamos. Assim, através de seus relatos pudemos recolher os fragmentos do<br />

caso, seguir o estilo que era sugerido pela estrutura do sujeito psicótico, as estratégias<br />

por ele construídas no decorrer do tratamento, as passagens subjetivas que contavam e a<br />

conformação que as soluções por ele buscadas tomavam, em especial no que diziam<br />

respeito à sua criação.<br />

6 ª . Esperávamos encontrar dois casos para comparação: um no qual o trabalho de<br />

criação sustentasse a estabilização e outro que contradissesse essa possibilidade. Dessa<br />

193


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

maneira, poderíamos sofisticar a discussão de nossa questão através da análise do que<br />

era ou não operatório na estabilização de cada caso.<br />

7 ª . Paralela à investigação clínica corria a pesquisa teórica em torno do tema das<br />

estabilizações nas psicoses a partir do referencial psicanalítico.<br />

D. Contingências determinantes: tiquê e automaton na pesquisa em psicanálise<br />

No desenvolvimento da pesquisa teórica, tivemos acesso a inúmeros casos de psicose<br />

que estabeleceram alguma relação com a criação, em geral artística, na elaboração de<br />

sua estabilização, tais como Arthur Bispo do Rosário, Van Gogh, Camille Claudel,<br />

pacientes da Casa das Palmeiras (Rio de Janeiro). Chamou especial a atenção o caso do<br />

Profeta Gentileza. Apesar de tratar-se de um caso relatado pelo viés de uma leitura<br />

filosófica e estética, o material com o qual nos deparamos oferecia-se com uma riqueza<br />

ímpar para nossos estudos. Tratava-se de livros e CD-ROMs sobre uma figura lendária<br />

que viveu nas ruas do Rio de Janeiro, e nelas pregou a “gentileza”, pintando nos muros<br />

do Viaduto do Caju mensagens que traduziam sua missão de ensinar o perdão e mostrar<br />

o caminho da verdade e da moral aos homens. Dada sua notoriedade, a obra de<br />

Gentileza tornou-se patrimônio cultural do Rio de Janeiro.<br />

Gentileza era paradigmático para nossa investigação, pois trazia uma psicose<br />

desencadeada, a criação, uma escrita com caligrafia absolutamente singular e um<br />

trabalho de estabilização que explicitava a escrita da letra de uma forma única. Através<br />

de um trabalho sistematizado de transmitir sua mensagem, fosse através da pregação, da<br />

pintura de seus murais ou de sua própria indumentária, Gentileza criou uma saída que<br />

nos colocou a trabalho enquanto aprendizes da clínica (ZENONI, 2000). Rompeu com a<br />

repetição sistemática com que a pesquisa se desenvolvia, obedecendo à lógica<br />

metodológica que a orientava, e se interpôs em seu percurso como contingência<br />

necessária (!) a ser considerada.<br />

Por outro lado, um outro encontro, ou uma nova contingência, nos retirou de nosso<br />

caminho na vertente da pesquisa de campo. Sabendo de nossa investigação, um<br />

psiquiatra da rede municipal nos procurou em um dia de entrevistas, interrompendo-nos<br />

para dizer de um caso que não podíamos deixar de incluir neste trabalho. Tratava-se de<br />

A., flagelo de Deus, jovem homem, esquizofrênico, que pintava e escrevia<br />

incessantemente na tentativa de escrever-se um nó. Com a psicose desencadeada ainda<br />

194


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

em sua adolescência, ele sofria com alucinações constantes e ensaios delirantes que<br />

despejava no papel e nas telas de pintura.<br />

O encontro com esses casos demarcou a irrupção do real da singularidade do uso da<br />

letra – tiquê – que a repetição – automaton – dos casos levantados tentava encobrir. A<br />

exigência de rigor científico aqui se deparou com a exigência clínica de tomar cada caso<br />

como se fosse o primeiro e também com a impossibilidade de se transmitir o que é de<br />

um tipo clínico para outro caso singular, dado que o que pode funcionar para um sujeito<br />

não opera da mesma forma para outro. O traumático enquanto maneira singular que<br />

deixa como rastro a entrada da linguagem e do real no corpo do sujeito, exigiu aqui um<br />

contraponto ao exercício acadêmico de encontrar os casos, seriados, que evidenciariam<br />

o que quer que se pretendesse demonstrar. Essa série significante, “científica”, que<br />

poderia foracluir o sujeito, é interrompida e passa a obedecer ao princípio mais<br />

freudiano para qualquer forma de investigação no território da psicanálise: que ela seja<br />

clínica também, incluindo o sujeito do inconsciente e o real, como acrescenta Lacan.<br />

Fora da série, fora do sentido, esses dois sujeitos, feito letra, exigiram uma outra escrita<br />

metodológica para esta pesquisa: a escrita que inclui o real, que se suporta da letra no<br />

banho de gozo com que lalíngua inunda o saber, débil para dar conta desse real. Esses<br />

dois encontros modificaram definitivamente o desenvolvimento da pesquisa e a escrita<br />

deste trabalho, pois exigiram, como previu Lacan, a inclusão do real e do sujeito em seu<br />

texto.<br />

Além disso, a perspectiva da comparação do que é singular apresentava uma<br />

contradição lógica em si mesma. Como comparar o singular? Bom, tínhamos um ponto<br />

do universal que atravessava os dois casos. E foi a partir dele que nos orientamos. A<br />

falta é estrutural, para todos, e para ela o sujeito há que construir uma resposta, marcada<br />

pela escrita da letra, campo de sulcagem do gozo, que se espraia de lalíngua, morta pelo<br />

simbólico que ela sustenta, mas viva no uso do gozo que promove para o sujeito. Esta<br />

era a escrita que faria a baliza na análise comparativa dos casos. Há situações em que<br />

essa escrita parecia se fazer pela via da criação ou da obra, e outras em que, por mais<br />

que o sujeito inventasse, criasse, ela não acontecia. Assim, com a escolha desses dois<br />

casos exemplares, passamos a ter uma idéia tanto do que opera, como do que não opera<br />

nessa convergência sobre a estabilização e a criação na psicose.<br />

195


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

E. A construção e a análise dos casos<br />

Trabalhamos com o estudo de caso seguindo a proposta aplicada por Freud à construção<br />

dos casos que escreveu, buscando recolher no material encontrado elementos que<br />

permitissem tecer considerações sobre nosso objeto de estudo. Freud, com seus casos<br />

clássicos, nos ensinou que construir o caso é construir a teoria. E, com Lacan,<br />

aprendemos que a topologia dos nós é uma realidade operatória. Assim, entendemos a<br />

topologia como recurso e como mostração. Ela operará em nosso caso como um<br />

localizador do sujeito, um instrumento de localização do sujeito. É um modelo de<br />

construção diferente da construção do caso clínico proposto por Viganò (1999). Ela<br />

também nos orienta na construção do caso, mas a partir do real em jogo para o sujeito.<br />

Revela seu modo de escrita do gozo ou mesmo a falha ou o erro dessa escrita, indicando<br />

o que pode repará-la. Assim, como método, ela serve como estratégia de construção do<br />

caso a partir da articulação entre os três registros. A topologia é teoria e também<br />

método.<br />

A pergunta sobre o que opera numa estabilização a partir do uso da criação artística ou<br />

artesanal, como já discutimos, ganhou primeiro plano. Se Joyce, paradigma de uma<br />

psicose que fez sinthoma, atestava a estabilização pela via da escrita, perguntávamos, ao<br />

início de nossa investigação, se uma suplência dessa ordem poderia prescindir da escrita<br />

e apoiar-se sobre outra materialidade. Como se vê, eram dois vértices da mesma<br />

questão, a materialidade e a escrita no trabalho de estabilização psicótica. Dois vértices<br />

que convergiram para o mesmo ponto, qual seja, a letra que escreve o nó.<br />

Nesse sentido, a materialidade comparece como suporte, seja suporte da letra para o<br />

significante, seja suporte do nó para o pensamento. E, em ambos os casos, trata-se de<br />

uma escrita. Lacan é peremptório sobre esse aspecto. Foi a partir da genealogia da<br />

discussão dessa materialidade que chegamos à idéia de suporte, e desta retornamos à<br />

idéia de escrita, sob uma perspectiva diferente da original. Aqui a escrita é a escrita do<br />

nó, escrita com a letra a, ou seja, escrita que inclui o real no trabalho de suplência, seja<br />

ela de que ordem for. Os rasgos ou sulcos, que o avanço da investigação produziu sobre<br />

a questão original deste trabalho, escreveram o novo roteiro sobre o real que o orienta.<br />

Nossa pergunta, portanto, inclui necessariamente a escrita, mas não obrigatoriamente a<br />

escrita literária. Parece-nos que a suplência, como modalidade de estabilização que<br />

inclui um quarto elemento novo inventado para atar os três registros, exige a escrita pela<br />

196


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

letra, de forma tal que ela mesma se suporte do real do nó. Enlaçamento que um nó<br />

pode produzir entre os três registros, cernindo o gozo sob a forma do objeto a, extraído<br />

dessa operação. Esse é um dos usos clínicos e, portanto, metodológico ou investigativo<br />

que podemos fazer da topologia do nó enquanto realidade operatória.<br />

Assim, ela foi tomada aqui como vetor de mostração dos casos, paralelamente à<br />

discussão teórico-clínica destes, sem a pretensão de estabelecer um saber unívoco e<br />

acabado, mas antes aprendendo com a psicose na construção de soluções pelo viés da<br />

criação. Buscamos encontrar, em cada caso, a relação entre os três registros e a<br />

modalização de sua escrita, pois, mais do que a determinação de quais os recursos<br />

materiais que poderiam favorecer o trabalho de estabilização para um sujeito psicótico,<br />

verificamos que é o uso que ele faz desses recursos, o artifício que ele inventa no uso<br />

que estabelece com esses recursos que pode fazer operar a estabilização enquanto<br />

suplência.<br />

Em função da dimensão do singular na comparação dos casos, trabalharemos com uma<br />

estrutura de apresentação que não se prenderá a um mesmo molde de exposição para os<br />

dois casos, mas antes tratará de destacar essa escrita particularizada em cada um.<br />

Portanto, percorreremos a história de vida e história clínica de nossos sujeitos num<br />

primeiro momento, para, em seguida, empreendermos a análise teórico-clínica do caso.<br />

Finalmente, vamos nos deter na mostração topológica para extrair as conseqüências<br />

dessas análises na discussão de nossa hipótese de investigação.<br />

4.2 Uma Primeira Solução Singular: A Escrita do Profeta Gentileza<br />

4.2.1 História de vida e história clínica 89<br />

Aqui apresentamos a trajetória de vida de Gentileza, construída a partir dos pontos de<br />

movimentos subjetivos realizados por ele na construção de um novo nome e de uma<br />

nova forma de se escrever, como trabalho na estabilização psicótica. Os dados e datas<br />

abaixo ficarão mais claramente demarcados ao ganharem o contorno teórico-clínico que<br />

organiza o caso em seguida. Mantivemos, no Anexo II, uma cronologia biográfica<br />

resumida que demarca com mais concisão esses pontos de estofo no estudo do caso.<br />

Abaixo, seguem os dados construídos de maneira historicizada, destacados sobretudo o<br />

trabalho delirante e o de escrita da obra.<br />

89 Em sua essência, os dados brutos aqui reunidos foram extraídos dos livros de GUELMAN (1997 e<br />

2000) e das entrevistas realizadas com ele e com Maria Alice Datrino, filha de Gentileza, em 2003.<br />

197


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“José Datrino era empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que<br />

se viu sacudido por um acontecimento de grande força trágica: a queima de um grande<br />

circo na cidade de Niterói. Após seis dias, ele recebe um chamado divino para que deixe<br />

tudo que possuía e venha viver uma missão na Terra, assumindo uma nova identidade”<br />

(GUELMAN, 2000, p. 20).<br />

Nascido em 11 de abril de 1917, em Cafelândia, interior de São Paulo, José Datrino era<br />

o segundo filho dos onze de Paulo Datrino e Maria Pim. Viveu até os 20 anos naquela<br />

região. Trabalhava puxando carroça para vender lenha nas cidades vizinhas e também<br />

foi lavrador.<br />

Quando adolescente começou a ter um comportamento diferente, seus pais o levaram a<br />

um centro espírita, buscando fazer um trabalho com ele para que melhorasse. Desde os<br />

doze anos de idade, José já anunciava uma missão: achava que teria de “ter uma<br />

família, filhos, construir bens, mas que um dia teria de deixar tudo”. O comportamento<br />

estranho do filho levou seus pais à suspeita de que fosse acometido de loucura.<br />

Em 1937, já com 20 anos, deixa a cidade de Mirandópolis, sem avisar a família, rumo a<br />

São Paulo. Seu destino final era o Rio de Janeiro. Ao se dar conta da partida do filho,<br />

seus pais o seguiram até São Paulo, mas não conseguiram interceptá-lo. Para a família,<br />

o filho tinha sido levado por um guia espiritual.<br />

José Datrino ficou quatro anos sem dar notícia a seus familiares de Mirandópolis.<br />

Quando souberam de José, ele já estava estabelecido no Rio e pedia à mãe que lhe<br />

enviasse seus documentos. Lá, casou-se e teve cinco filhos, “três femininos e dois<br />

masculinos”. O sustento de José Datrino e sua família provinha de fretes que ele passou<br />

a fazer na cidade. Aos poucos fez crescer o negócio e, finalmente, estabeleceu-se com<br />

uma transportadora de cargas na rua Sacadura Cabral, no centro da cidade. Cumpria-se<br />

seu prenúncio de infância: José Datrino constituíra família e bens; era um empresário<br />

possuidor de “três caminhões, três terrenos e uma casa”. Faltava apenas deixar tudo<br />

isso para cumprir sua missão na Terra...<br />

Com a vida estabelecida no Rio de Janeiro, deu-se a grande mudança na vida de José.<br />

Conta sua filha mais velha, Maria Alice Datrino, que numa noite viu seu pai<br />

atormentado por uma visita de alguém que queria torna-se sócio de sua empresa. Logo<br />

depois “ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos, passando lama no<br />

corpo”. A estranheza do comportamento, entretanto, ainda não alterara seu cotidiano de<br />

maneira mais contundente.<br />

198


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

É sob o impacto de um acontecimento trágico que surge então o Profeta, no início dos<br />

anos 60. Sua missão se anuncia dias após a queima de um circo, o Grand Circus Norte-<br />

Americano, no dia 17 de dezembro de 1961, que vitimou cerca de 400 pessoas em<br />

Niterói. José Datrino inicia a fundação de um novo nome e de uma nova forma de<br />

inscrição na vida pública num “cinzeiro humano”, num espaço de desolação. Seis dias<br />

depois do incêndio, ele é tomado por uma revelação que, aqui, apesar da extensão, cabe<br />

apresentar na íntegra com suas próprias palavras:<br />

“No dia do incêndio, dia dezessete de dezembro do ano de 1961, eu tava aqui em Deodoro,<br />

aqui em Guadalupe, na rua Barata, aqui na fundação, tava com minha família, aí eu senti<br />

uma reação. Naquele dia dezessete de dezembro de 1961, depois de seis dias, eu tava<br />

trabalhando com meu caminhão, de minha propriedade em Nova Iguaçu, entregando<br />

mercadoria, de meio dia a uma hora. Foi quando eu recebi o aviso astral de Deus de que no<br />

dia seguinte - três confirmações - eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do<br />

mundo para cumprir o espiritual na Terra, que eu deveria vir com São José, representar<br />

Jesus de Nazaré na Terra, perdoar toda a humanidade, ensinar a perdoar uns aos outros, e<br />

mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento de Jesus na Terra. E foi<br />

o que eu fiz. No dia vinte e quatro de dezembro de sessenta e um, eu deixei tudo. Aí fui<br />

pregoar em Niterói. Levei meu caminhão de minha propriedade, comprei duas pipas de<br />

vinho de cem litros em Nova Iguaçu para alegorar minha chegada em Niterói, na beira da<br />

praia, ali na Rua Rio Branco, tem um terreno baldio. Aí comprei copinho de papel, duas<br />

pipas de vinho de cem litros, comprei gelo, aí fui distribuir vinho lá pegado à estação das<br />

barcas em Niterói” (GUELMAN, 2000, p. 27).<br />

Assim, no dia vinte e quatro, a partir de sua “revelação”, deixa tudo e vai pregar em<br />

Niterói, distribuindo vinho para ensinar as palavras “por gentileza” e “agradecido”, em<br />

oposição a “por favor” e “obrigado”, ganhando uma nova identidade: Jozzé Agradecido<br />

que, posteriormente, se tornará Profeta Gentileza.<br />

O neologismo, criado nas palavras gentileza e agradecido, ganha sentido na produção<br />

do próprio autor. Segundo o Profeta, “obrigado vem de obrigação, é de carrasco. Deus<br />

não quer que sejamos obrigados a nada. Deus quer a nossa liberdade, agradecido vem<br />

de graça” (apud GUELMAN,1997, p. 193). Em suas falas e nos escritos que se<br />

tornaram pilastras, Gentileza escreve: “Palavra que condena Por favor, obrigado é ser<br />

escravo do capitalismo” (Pilastra 54). Na pilastra 51, “Palavra que liber(r)ta por<br />

gentileza e por Jessuss Agradecido e o Espirito Santo que conduz” (sem grifo no<br />

original).<br />

Como se vê, o anúncio de seu nome aparece em oposição ao favor ou à troca calcada no<br />

interesse, assim como o agradecido se opõe a obrigado, na medida em que ninguém<br />

deve ser obrigado a nada, pois é a Graça de Deus que tudo provê gratuitamente. Ainda<br />

nas palavras de Gentileza, observa-se a importância central dessas duas palavras, em<br />

199


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

torno das quais se organiza sua produção escrita e artística. “Essas duas palavras, por<br />

gentileza e agradecido, não tem dinheiro nenhum que pague. É a minha vida!”<br />

(GUELMAN, 1997, p. 70).<br />

Sua construção se organiza como luta contra o “capeta-capital” que vem destruindo o<br />

mundo, colocando-se a gentileza como princípio ético, como desafio para a atualidade.<br />

“Gentileza gera gentileza” é sua máxima, e daí decorrem as outras virtudes como amor,<br />

beleza, perfeição, bondade e natureza.<br />

Sabemos, entretanto, que o campo social é pouco elástico a manifestações exóticas,<br />

como a que empreendeu Gentileza, pasteurizando toda a diferença em nome da boa<br />

norma social, regulada pela Medicina, pela Moral e pela Polícia. Não foi diferente com<br />

Gentileza. Após ter distribuído quase todo o vinho que havia levado, ele foi notado por<br />

policiais que o abordaram, conduzindo-o para um Batalhão da Polícia Militar. No<br />

transcurso, Gentileza perguntou ao policial se o Batalhão ficava ao lado do circo que se<br />

incendiara, o que foi confirmado. Após as averiguações, Gentileza instalou seu<br />

caminhão no terreno do circo, e ali passou a residir. Transformou o lugar num grande<br />

jardim circular, abriu poço, onde “corria água limpinha”, fez horta e cercou o terreno<br />

denominando-o “Paraíso Gentileza”, onde permaneceu por quatro anos.<br />

“Eu passei a morar no local do circo. Plantei flores, fiz jardim e cerquei o terreno. Na<br />

entrada coloquei dois portões, um de entrada, outro de saída, onde estava escrito: “Bemvindo<br />

ao Paraíso do Gentileza. Entre, não fume, não diga palavras obscenas. Tornou-se um<br />

campo santo” (GUELMAN, 1997, p. 160).<br />

Ali assumiu sua missão ao se fazer de consolador de todos aqueles que perderam seus<br />

entes queridos. Conta Gentileza que “no dia 24, após ter deixado tudo, a minha própria<br />

família, por não entender, me internou três vezes como ‘débil mental, como maluco’”.<br />

Numa das três internações a que foi submetido, o "médico psiquiatra" disse a sua filha<br />

que ele estava tomando choque à toa, pois não era maluco. No Hospital Psiquiátrico de<br />

Jurujuba em Niterói, os enfermos ficavam todos à sua volta, ouvindo sua pregação.<br />

Outra história que ele conta é a do médico que teria perguntado ao Profeta: "Gentileza,<br />

você veio aqui para nós te curar ou para você nos curar?". Os prontuários de José<br />

Datrino, que tentamos localizar, não foram encontrados no arquivo morto do hospital, o<br />

que impediu maiores informações clínicas sobre suas internações.<br />

Depois destas passagens, Gentileza ganhou novamente a rua. Sua figura singular passou<br />

a atrair atenção. Aos que o apontavam na rua como maluco, ele dizia: "maluco para te<br />

200


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

amar, louco pra te salvar [...] seja maluco mas seja como eu, maluco beleza, da<br />

natureza, das coisas divinas”.<br />

Numa missa campal que ocorreu no local um ano após o incêndio do circo, Gentileza<br />

conta que um jornalista o fotografou e uma senhora contou ao repórter que ele tinha<br />

perdido toda sua família no circo, por isso tinha ficado maluco, passando a residir no<br />

local do circo queimado. Mas Gentileza ia à televisão, às rádios, aos jornais, sempre<br />

desmentindo essa história.<br />

“Eu morava aqui em Deodoro, Guadalupe, bairro do Rio, né? Hoje em dia, desde 1952 até<br />

hoje minha família mora em Guadalupe. Então os jornais publicou dizendo que eu tinha<br />

perdido minha família, tudo calúnia. Colocaram em revista... . Então eu digo assim para<br />

vocês: Meus filhos, vocês nunca podem chegar numa banca de jornal e ler um artigo e<br />

afirmar que aquilo se sucedeu. O papel aceita tudo, a verdade e a mentira, e o jornalista<br />

quer saber de propaganda para vender o jornal. Por isso o que aconteceu foi calúnia”<br />

(GUELMAN,1997, p. 50-51).<br />

Guelman nos relata numa entrevista a importância e a aceitação por parte das pessoas do<br />

fato de o Profeta se estabelecer no local do circo:<br />

“Socialmente eu acho que isso foi bem aceito, por que aí tá uma grande questão: ele figurou<br />

como aquele que perdeu a família no circo, sem ter perdido a família no circo. E cumpria aí<br />

um papel fundamental, e que... Para todas as pessoas que perderam a família no circo, pai,<br />

mãe, irmão, oito pessoas, às vezes foram dez pessoas no circo, uma sobreviveu. Entendeu?<br />

Então, ele não tinha ninguém no circo, ele não estava no circo, nada, mas ele cumpre o<br />

papel daquele, daqueles que perderam toda família no circo. Então tá explicado por que<br />

aquele senhor, aquele homem que estava lá no terreno do circo, que ele foi no circo com<br />

toda família. E, por não aceitar a perda, ele passou a morar no local do circo, e a virar um<br />

profeta. E ficou louco, ficou maluco. Essa é a lenda, o mito que surgiu, inaugural, do<br />

personagem dele” (Relato de Guelman em entrevista).<br />

Como ele pregava a Gentileza e se denominava o Profeta Gentileza, dizia que “se<br />

alguém perguntar quem é o Gentileza, vocês ensinam: é o nosso Pai, Criador Celestial.<br />

Por que Deus é Gentileza? Porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza, a Natureza,<br />

nosso Pai Criador” (GUELMAN,1997, p. 45).<br />

Ele criou várias modinhas, e numa delas destaca a relação do circo com o mundo: “Diz<br />

que o mundo ia se acabar, pois o mundo se acabou, a derrota de um circo queimado é<br />

um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo é arredondado”<br />

(GUELMAN, 2000, p. 15). Guelman, em sua leitura filosófico-estética, também faz<br />

uma relação do mundo com o incêndio do circo na medida em que um circo consumido<br />

pelas chamas, derrotado em sua inocência, representa um mundo e seus valores sob<br />

ameaça de um fim.<br />

Em meados dos anos 60, Gentileza sai do local do circo e começa a deslocar-se entre<br />

201


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Rio e Niterói, ficando conhecido como o “pregador da lancha”. Adquire<br />

reconhecimento popular, cria provérbios e máximas para alcançar as pessoas, ensina a<br />

gentileza e proclama novos costumes morais. Aqui, um de seus provérbios: “Cuidado,<br />

cabecinha da humanidade! Cuidado lingüinha! Lá no cemitério tinha uma caveira...<br />

Alguém foi no cemitério e perguntou: Caveira, quem te matou caveira? A caveira<br />

respondeu: a língua ferina. É verdade!” (GUELMAN, 1997, p. 64).<br />

Com um estandarte em punho, encimado por um punhado de flores que migraram do<br />

“Paraíso Gentileza”, ele se apresenta como representante de Deus e anunciador de um<br />

novo tempo. Seu estandarte funcionava como carteira de identidade mítica, repleto de<br />

alegorias. Com as incrições do “PC” no estandarte, é convocado na década de 60 a<br />

explicar às autoridades que não se tratava de Partido Comunista, e sim de Pai Criador.<br />

No estandarte fica clara sua simbologia singular alimentada e inspirada pelo aspecto<br />

religioso. Inclusive muitas de suas produções, máximas e modinhas trazem trechos<br />

bíblicos ou passagens análogas às bíblicas em seu conteúdo, como vemos na<br />

estruturação do estandarte abaixo relacionada.<br />

(a) F/P/E/N � Filho, Pai, Espírito Santo e Nossa Senhora. Esse é o diagrama de<br />

uma síntese religiosa do mundo (universo), de modo que a parte superior representa<br />

o céu, com as estrelas, e as iniciais F/P/E, o cume do mundo espiritual. Elas ficavam<br />

dispostas em seu estandarte.<br />

(b) O primeiro elemento é DEUS-PÃE-GENTILEZA-CR(R)IADORRR-DO-<br />

UNIVVVERRSSO, primeira pessoa da Santíssima Trindade (1).<br />

(c) O segundo elemento é o FILHO-JESSUSS-PORR-GENTILEZA-SÃNTO-<br />

IRMÃO. Segunda pessoa da Santíssima Trindade, o (2) é a palavra que libe(rr)ta<br />

(por gentileza), contrariamente à palavra que condena (por favor). O (2) se completa<br />

no (3), assim como “agradecimento” completa o pedido de “gentileza”.<br />

(d) Gentileza se identifica em sua obra como terceira pessoa da Santíssima<br />

Trindade, “3 é o ESPÍRITO SANTO-JOZZE AGRADECIDO”, ele mesmo diz “eu<br />

vim como São JOZZE para representar Jesus de Nazaré na Terra”<br />

(e) A base do estandarte é o quarto termo (N), como expressão da materialidade no<br />

mundo. Aqui entra o elemento feminino. Maria é a mãe de Deus, e a primeira filha<br />

de Gentileza. Segundo o Profeta, “à mulher cabe AMORRR E HONRRA”.<br />

“Se a trindade afirma a criação do universo em F/P/E, no desígnio de Deus Pai Gentileza, a<br />

quaternidade afirma que o mundo não é só criação, mas também concreção e materialidade.<br />

202


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

O 3 se amplia no 4, o bom uso da matéria é o afastamento do mal que constantemente cerca<br />

o homem” (GUELMAN, 2000, p. 61).<br />

Qualquer semelhança com a constância da estrutura quaternária e material de Lacan não<br />

será mera coincidência...<br />

Em fins dos anos 60, Gentileza inicia uma série de viagens que o tornarão conhecido no<br />

interior do país. Retorna a Mirandopólis reapresentando-se como Profeta Gentileza. Em<br />

1970, parte para o interior do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), rumo a Campo<br />

Grande e Aquidauana, para pregar a gentileza. Na cidade, ele sofre a primeira grande<br />

adversidade como profeta: foi detido por policiais que o levaram à delegacia. Ficou<br />

detido por uma noite, teve seu cabelo cortado e seu estandarte quebrado. O delito<br />

cometido era o de estar pregando sem a Bíblia na mão. Diante disso o profeta cunhou<br />

uma frase: “Quem é mais importante, o livro ou a sabedoria?”, que mais tarde seria<br />

reproduzida numa canção de Marisa Monte 90 . Retorna para o Rio e passa a utilizar a<br />

cartola do Tio Sam, incorporando um novo visual, agora de profeta tropicalista,<br />

“Chacrinha da Calçada”.<br />

Após o incidente em Aquidauana, passa a recolher depoimentos e declarações de figuras<br />

públicas e autoridades dos lugares pelos quais passava, como “carta de referência” ou<br />

“atestado de idoneidade”, que apresentava às rádios e aos jornais locais ao chegar em<br />

cada cidade que visitava para pregar. Guelman nos relatou, em entrevista, que Gentileza<br />

fazia todo um trabalho de divulgação de sua chegada e de sua missão. “Ele chegava<br />

numa cidade, a primeira coisa que ia era... ia ser num... na redação do jornal e na<br />

rádio, para ser anunciado que ele tinha chegado. Então, quando ele andava pela<br />

cidade, as pessoas já sabiam pelo rádio ou pela TV que o Profeta Gentileza estava lá”<br />

(Relato de Guelman em entrevista).<br />

Em meados de 70, cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade. Vai a<br />

Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes, que assim<br />

“como Jesus, sofreu por seu povo”. Lá, os estudantes sugeriram o uso de uma bata.<br />

Sugestão que é aceita pelo Profeta e anexada a outras alegorias, tais como bandeiras e<br />

cata-ventos. Este último, dizia Gentileza, era para “refrescar a mente da humanidade”.<br />

Também em entrevista, Guelman relata que “a partir de um determinado momento, ele<br />

passou a ser uma figura folclórica no Rio, né? Já nos anos 70, ele já tinha construído a<br />

90 Cf. no Anexo III a música completa. “Por isso eu pergunto/ A vocês no mundo/ Se é mais inteligente/<br />

O livro ou a sabedoria” (MONTE, 2000).<br />

203


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

imagem dele como Profeta, né? Ele era moralizador, entendeu? Era a época da<br />

minissaia, então ele corria atrás das mulheres com saia curta”.<br />

Conhecido como o pregador da barca, ele fazia ensinamentos religiosos e também<br />

morais. Dizia, por exemplo, “se a saia sobe, a moral desce”. E ainda, na pilastra 39,<br />

“gentileza contra o pecado capital – não podem andarr maltrapilhos de calsas curtas<br />

com o peito da camisa aberta descamisados para com jessuss e defuntos anbulantes<br />

contaminando 95 por cento e pobres duentes cegos no pecado capital satana por<br />

jessuss gentileza”.<br />

Na década de 80, assume definitivamente a bata, a bandeira e os cata-ventos, conferindo<br />

significação especial a cada detalhe de sua indumentária. Ele se escreve nas pilastras, na<br />

bata, no seu estandarte, na sua caligrafia. O Profeta explica o que significa usar<br />

problemas e pobreza no bolso, uma vez que no escrito está explícito “NÃO-USEM-<br />

PROBLEMAS-NÃO-USEM-POBREZA-USE-AMORRR-USE-GENTILEZA”. Por que<br />

será que é exatamente sobre o bolso de sua bata que ele coloca este escrito? Bom, ele<br />

diz que o uso material do bolso, o uso financista da riqueza, é o problema e, ao mesmo<br />

tempo, a pobreza. Somente se não fizermos esse uso da riqueza, seremos conduzidos ao<br />

uso do AMORRR (não material) e da gentileza. Assim, a maior expressão da riqueza é a<br />

gratuidade que se relaciona às coisas materiais e implica diretamente a natureza, que é a<br />

maior fonte de riqueza, pois nos dá tudo de graça sem cobrar nada. “A-NATUREZA-<br />

NÃO-VENDE-TERRAS-A-NATUREZA-NÃO-COBRA-PARA-NOS-DAR-<br />

ALIMENTAÇÃO”.<br />

Realiza grandes viagens pelo Brasil, num trajeto circular, pregando as palavras de<br />

gentileza, sempre se movimentando de um município a outro. Além das viagens, há<br />

uma grande intervenção de Gentileza na paisagem do município do Rio de Janeiro.<br />

Entre a Rodoviária Novo Rio e o Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km,<br />

Gentileza realiza seus 55 escritos murais sobre as pilastras do Viaduto do Gasômetro. A<br />

obra de Gentileza demarca um espaço e uma permanência para sua mensagem. A partir<br />

de então, o Profeta não pinta mais sobre placas ou cartolinas, mas diretamente sobre a<br />

superfície de concreto. A escrita inventada com sua singular caligrafia e seus símbolos,<br />

já presente em suas placas e em seu estandarte, se registra agora no texto da própria<br />

cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos. Guelman nos relata<br />

que Gentileza não escolheu por acaso o Viaduto do Caju.<br />

204


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“É uma cartilha, né, um livro, um local que ele escolheu para escrever um livro urbano, foi<br />

aí. Por que ele escolheu aquele lugar, quer dizer, racionalmente, né? Eu acho que foi...<br />

conjugou vários fatores. Um deles é que ali é a entrada do Rio de Janeiro, é o Km Zero da<br />

Avenida do Brasil; como se fosse um portal (...) Andar no local, perceber o local como um<br />

território, né? Como que um lugar desolado, sujo, né? É... Onde as pessoas não criam<br />

vínculo com o local, porque não é um lugar acolhedor. Como aquele lugar passa a ser um<br />

local de referência para ele, entendeu? Então ele morou, quer dizer, viveu, né, ali, anos e<br />

anos da vida dele. Vamos dizer que ele foi pintando naquele local. Ao ponto dele ficar na<br />

pilastra 1 como quem estivesse na varanda de casa dando tchau para as pessoas. É porque<br />

aquele local para ele se consagrou como território, da mesma forma como o local do circo.<br />

Da mesma forma como o local do circo é um local desolado, que as pessoas recusavam, um<br />

local de perda, queimado... parará... Ali também ninguém vai querer ir. [...]. Mas um local<br />

agressivo do ponto de vista urbano, entendeu? Inóspito. Alguém querendo humanizar ou<br />

querendo transformar aquele lugar, entendeu?” (Relato de Guelman em entrevista).<br />

Sua grafia era singular 91 , desenha cada letra, cada palavra. Signos como a gaivota, usada<br />

como acento, simbolizam uma pomba divina. E se esse passarinho repousar numa<br />

palavra, no que ele pousa, ele dá um acento divino, como em “senhõr” e “Pãe”, que é<br />

pai, mãe, espírito. “Ele faz uma poética da questão da trindade, que é absolutamente<br />

maravilhosa”, diz ainda Guelman em entrevista. A estrela aparece pontuando o início do<br />

texto, como signo da iluminação do Profeta. Expressa também a força astral e cósmica<br />

em sua mística, revelando, além disso, as pessoas da trindade e da quaternidade que<br />

estabelece. O acréscimo de letras nas palavras é uma das grandes marcas da escrita de<br />

Gentileza. E expressa a figura da Trindade Cristã, manifestadas em seu verbo, como na<br />

palavra “AMORRR”, que traz o R do Pai, o R do Flho e o R do Espírito Santo.<br />

Guelman nos apresenta pontualmente uma análise dessa escrita, extraindo dela sua<br />

marca original. “Ao tornar-se portador do anúncio da gentileza, o Profeta começa a<br />

falar e a escrever por meio de uma linguagem revelada. [...] Sua escrita aparece como<br />

um verbo sagrado, formalmente distinto da escrita corrente profana” (GUELMAN,<br />

2000, p. 72). Gentileza elabora uma grafia totalmente singular, tal qual o tipógrafo que<br />

desenha a palavra letra a letra. Figura antiga evocada por Lacan, como vimos, para<br />

tratar da materialidade da letra enquanto suporte do significante. O Profeta fazia<br />

manuscritos de cartas e esboços de trabalho que ganhavam uma versão final já apoiada<br />

na sua grafia peculiar.<br />

Ainda para Guelman (2000, p. 72), uma apreensão da caligrafia (do grego kalos- belo +<br />

graphos – desenho, escrita) de Gentileza evidencia que ele conseguiu dar ao seu texto a<br />

forma de uma escritura hierática. Efeito obtido tanto pelo aspecto formal das letras e<br />

signos, como também pela estruturação que esses elementos definem.<br />

91 Cf. a caligrafia e o simbolismo da escrita de Gentileza no Anexo IV.<br />

205


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

As palavras se acomodam numa seqüência de pautas, como as notas musicais numa<br />

partitura, sendo o movimento interno do texto assegurado por setas ou pássaros/aviões,<br />

que religam as palavras, movimentando o texto internamente. Seja remetendo a leitura<br />

para a linha seguinte, seja ligando uma palavra à outra, criam uma estética<br />

absolutamente original em sua caligrafia. Interessante notar a brasilidade como aspecto<br />

cultural absorvido por sua estética. Ele alterna, nas pautas de marcação de seu texto, as<br />

cores verde e amarelo sobre um fundo branco, escrevendo suas palavras e signos em<br />

azul, e pousando a bandeira nacional ao final da primeira linha de cada escrito do<br />

Viaduto.<br />

“Na composição de sua escrita e na expressão de sua simbólica, o profeta cria arranjos de<br />

letras dentro de letras. Esse acréscimo ou ‘reforço’, como dizia, explicita ainda mais o<br />

acento divino que ele confere ao texto. Algumas palavras criam uma arquitetura caligráfica,<br />

cifrada somente para aqueles que desconhecem o teor de sua mensagem” (GUELMAN,<br />

2000, p. 74).<br />

Já se adivinha, em termos psicanalíticos, o que está em jogo: letras dentro de letras (ou<br />

significantes suportados por letras); reforço ou acréscimo (do que pode fazer suplência);<br />

arquitetura caligráfica que faz cifra (de gozo) ao decifrar o acento divino do texto...<br />

Guelman não poderia ser mais lacaniano!<br />

É, ao mesmo tempo, uma escrita que faz laço com a crise do mundo contemporâneo,<br />

com a crítica à ética capitalista, evidenciando a tensão entre um mundo em crise e a<br />

possibilidade de sua superação pela acolhida da gentileza. Possui, portanto, endereço<br />

certo.<br />

No início dos anos 90, finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, passa a se<br />

assentar numa cadeira, geralmente ao lado da Pilastra 1, acenando para todos como se<br />

estivesse na varanda de sua casa. Na ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, conclama as<br />

nações e os presidentes ao uso da gentileza. E de 1993 em diante, com a saúde<br />

fragilizada após uma queda que lhe ocasionou uma fratura na perna, é acometido<br />

também por problemas circulatórios, sentindo cada vez mais dificuldade em andar.<br />

Retorna a Mirandópolis, sua cidade natal, em 1996 e morre em 29 de março com 79<br />

anos, tendo dedicado os últimos 35 anos de sua vida à sua missão.<br />

No dia 20 de Janeiro de 1999, é oficializado o projeto “Rio com Gentileza”,<br />

recuperando a primeira das pilastras do Viaduto do Caju que, após serem pichadas,<br />

haviam sido pintadas de cinza pela Prefeitura. Em outubro do mesmo ano, é realizado<br />

206


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

no Rio de Janeiro a “Semana do Gentileza”. E em 06 de maio de 2000, depois de nove<br />

meses de trabalhos exaustivos de restaurações, entregam-se, em cerimônia oficial, com<br />

a presença de autoridades, artistas e público em geral, todas as pilastras restauradas de<br />

Gentileza. E ainda nesse ano, a Universidade Federal Fluminense encaminha, ao<br />

Departamento Geral do Patrimônio e ao Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do<br />

Município do Rio de Janeiro, um pedido de tombamento de toda a obra gráfica de<br />

Gentileza no Viaduto do Caju. Em junho do mesmo ano, é oficializada a Praça Profeta<br />

Gentileza em frente à Rodoviária Novo Rio. Em novembro, após estudos e análises dos<br />

órgãos competentes, a obra é tombada. Também em 2000, o Instituto dos Arquitetos do<br />

Brasil concedeu o Prêmio Urbanidade 2000 ao Projeto Rio com Gentileza.<br />

Muitas pessoas se interessaram pelo Profeta. Cineastas, poetas, músicos e videomakers<br />

trabalharam com a história e a obra de Gentileza, como Duda Amaral que, atualmente,<br />

finaliza uma trilogia sobre o Profeta. Além disso, Gonzaguinha o homenageia no CD<br />

“Cavaleiro Solitário”; o carnavalesco Joãozinho Trinta apresentou, no carnaval de 2001,<br />

o enredo “Gentileza X O Profeta do Fogo”; e Marisa Monte canta “Gentileza” no CD<br />

“Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”. O Profeta foi entrevistado na TV Globo<br />

por Jô Soares. E hoje há um número grande de admiradores seus via internet, em blogs<br />

e em várias comunidades no Orkut, sendo todo esse ‘sucesso’ decorrente de seu<br />

reconhecimento como profeta contemporâneo, e não como uma figura da loucura. Ele<br />

fez enlaçamento à sua maneira, no seu estilo. Tentemos conhecer esse estilo mais de<br />

perto.<br />

4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso<br />

Como articulada na discussão teórica do primeiro capítulo, a irrupção da psicose, ou o<br />

desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente surge uma questão<br />

sobre o seu ser, ou seja, o Um pai surge no real no momento em que algum personagem<br />

da figura paterna se impõe em posição terceira em relação ao par imaginário a-a’. A<br />

referência lacaniana para essa leitura é a da primazia do simbólico. E seus elementos<br />

seriam: (a) causa específica, coincidindo com a ausência do Nome-do-Pai; (b) causa<br />

acidental, concernente ao encontro com Um pai, elemento terceiro que provoca<br />

desestabilização; (c) dissolução do elemento estabilizador ou quebra da identificação<br />

imaginária.<br />

207


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Vimos também que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da<br />

rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem, sendo sua<br />

modulação, para cada sujeito, uma maneira singular que encontra para lidar com o real.<br />

O trabalho sobre esses pontos de retorno, de desligamento do sujeito se dá por<br />

diferentes vias. No caso de Gentileza, sua história nos evidencia um trabalho delirante<br />

que se escreve como letra de gozo através do reforço pelo acento divino que sua<br />

caligrafia porta. Estivéssemos orientados pelo primeiro tempo do ensino lacaniano,<br />

poderíamos mesmo arriscar a dizer que esse trabalho delirante culmina com a<br />

estabilização via metáfora através dos significantes primordiais "gentileza" e<br />

"agradecido", numa espécie de oposição binária a "favor" e "obrigado". Essa oposição<br />

destaca o caráter diferencial e o vazio de significação que o significante possui. Com a<br />

diferença de que aqui a oposição faz uma significação delirante que não desliza na<br />

produção de sentido, mas antes cerne o gozo na repetição da afirmação de um mesmo e<br />

original sentido, fundado ao tempo do incêndio do circo. Entretanto, há uma invenção<br />

em torno da “gentileza” que talvez nos indique uma letra inaugural se escrevendo.<br />

Vimos que Lacan (1955-56/1992) identifica a metáfora delirante a um processo<br />

complexo que constitui o delírio como uma metáfora, que faz às vezes da metáfora<br />

paterna no trabalho ruidoso de cura. E também que Maleval (1996) destacou com<br />

fineza, do texto freudiano e lacaniano, o desenvolvimento lógico dessa construção<br />

delirante em quatro fases. Assim, aos moldes dos anos cinqüenta, mas sem perder de<br />

vista o aporte dos anos setenta, investigaremos a solução psicótica encontrada pelo<br />

Profeta Gentileza fazendo o exercício de destrinchar o que se escreve na construção da<br />

metáfora delirante para além da articulação significante.<br />

1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante. Refere-se ao<br />

desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma<br />

autonomia do significante. Seu efeito é a perplexidade, advinda do fato do sujeito não se<br />

sentir autor de seus próprios enunciados, e experiências corporais, em diferentes<br />

manifestações. Acreditamos que no episódio da lama, quando Gentileza é convocado<br />

simbolicamente para a criação de uma sociedade civil em sua empresa de fretes, o<br />

desencadeamento se instala. Interessa aqui menos os elementos em jogo na estrutura do<br />

desencadeamento que o ponto no qual os registros sofrem uma disjunção, uma<br />

desamarração, evidenciando uma fragilidade do nó que os atava. A criação de uma<br />

208


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

sociedade nos diz de uma ficção simbólica, um nome jurídico, fazendo com que aqueles<br />

que a pretendam criar se façam representar não apenas como um corpo mas também<br />

como um nome. Vimos que a função da nomeação é disjunta da função do significante<br />

do Nome-do-Pai e pluralizada em Lacan. Se não é possível precisar com certeza o ponto<br />

em que o pai não comparece na história de Gentileza, é possível, por outro lado,<br />

recolher os efeitos de sua não-inscrição. Ao desnudar-se e libertar seus animais, parece-<br />

nos que Gentileza busca no real desse ato um reforço simbólico que não se escreveu, já<br />

evidenciando o ponto em que a amarração de seu nó exigirá reparação. O que temos<br />

como conseqüência é justamente a perplexidade do sujeito. É nesse sentido que, com<br />

Gentileza, desatada a possibilidade de uma resposta a essa convocação, ele realiza em<br />

ato o esforço débil de dar conta dessa experiência real, como nos relata sua filha, Maria<br />

Alice, em entrevista: “Ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos,<br />

passando lama no corpo”.<br />

Na história de José Datrino, habitualmente vem identificada a eclosão de sua loucura ao<br />

episódio do incêndio no circo em Niterói, momento já ruidoso que responderia pelo<br />

esboço de uma tentativa de escrita de si mesmo, realizando o início de sua "missão na<br />

terra". Entretanto, como vimos com Freud, o processo de ruptura que dá origem à<br />

experiência psicótica é silencioso. Assim, a análise do caso permite aqui reconfigurar a<br />

cena do desencadeamento a partir desse episódio da lama. Desde a adolescência, José<br />

sabia de sua missão, que aos 12 anos prenuncia, e é levado pela família para ser<br />

benzido. Entretanto, parece-nos que é diante da convocação para se tornar sócio de uma<br />

pessoa jurídica, de uma firma, que se dá o desencadeamento, provocando uma situação<br />

irreversível, um ponto subjetivo de não retorno.<br />

2. Na segunda fase, referente à significação do gozo deslocalizado, dá-se um trabalho<br />

de mobilização do significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os<br />

fenômenos que o invadem. Em Gentileza, o que encontramos como uma primeira<br />

tentativa de significação do gozo deslocalizado é a ruptura com “os afazeres materiais<br />

do mundo para cumprir o espiritual na terra”. É essa a resposta que Gentileza encontra<br />

quando da invasão alucinatória do aviso astral de Deus “de que no dia seguinte – três<br />

confirmações – eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do mundo para<br />

cumprir o espiritual na Terra [...] e foi o que eu fiz” (GUELMAN, 2000, p. 24).<br />

Aí surge um compromisso razoável, característica marcante dessa segunda fase. É o<br />

209


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998) como renúncia fálica,<br />

que possibilitaria uma negativização do gozo na psicose, “graças à qual uma nova<br />

articulação significante se tornará possível. A partir daí, o sujeito psicótico não mais<br />

terá uma atitude passiva em relação às mensagens que lhe chegam do real, podendo,<br />

então, tornar-se organizador daquilo que o invade” (CASTRO, 2001, p. 8).<br />

É nesse sentido que Gentileza atua como um mensageiro dos ensinamentos de Deus e<br />

passa a “pregoar em Niterói”, agora já não mais inquieto e perplexo diante do<br />

desencadeamento de sua psicose. Verificamos um trabalho de mobilização para explicar<br />

os fenômenos que o invadem, possuindo agora o sujeito um papel ativo de divinizar a<br />

humanidade, levando a cabo o aviso astral que Deus lhe enviara. “Ensinar a perdoar<br />

uns aos outros, e mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento<br />

de Jesus na Terra”.<br />

O episódio do circo, contemporâneo da ruptura com “os afazeres materiais do mundo”,<br />

parece surgir como um catalisador que possibilita a elaboração de uma resposta<br />

simbólica no nível de uma metáfora delirante. Esse acontecimento possibilita a<br />

Gentileza circ(o)inscrever os até então angustiantes fenômenos que lhe chegavam do<br />

real sob a forma alucinatória. É dessa forma que nasce o Profeta, no início dos anos 60,<br />

sob o impacto do acontecimento trágico da queima do circo. Uma escrita começa a se<br />

forjar então.<br />

Em torno desse episódio giraria a versão de que o Profeta Gentileza teria perdido toda<br />

sua família no circo, tal como sucedeu com muitos na tragédia. Entretanto Gentileza ou<br />

até então Jozze Datrino e seus parentes não se encontravam no local do circo, como<br />

vimos. Ao contrário, ensaiando fazer da ex-sistência desse chamado alucinatório<br />

enlaçamento, Gentileza se dirige ao local do incêndio e ali permanece durante quatro<br />

anos, reescrevendo um mundo acabado e desolado pela tristeza para poder habitar nele<br />

mais uma vez no texto do jardim “Paraíso Gentileza”. Podemos vislumbrar aqui o<br />

início de um enodamento com a produção de sentido, articulando o gozo entre<br />

Imaginário e Simbólico, como condição de tratamento do Outro gozo.<br />

3. Na terceira fase, a da identificação do gozo do Outro, Maleval com Lacan diz que<br />

este gozo se encontra identificado, quer dizer, assentado no significante, que dará ao<br />

sujeito uma certa base para que ele se faça organizador do que lhe chega. Ainda que<br />

subsista algo de um imperativo que lhe impõe o que ele deve fazer. Mas se costurarmos<br />

210


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

o texto lacaniano da década de 50 com o da década de 70, veremos que o tratamento do<br />

gozo do Outro é um dos pontos centrais de articulação da suplência como invenção de<br />

um quarto termo que estabiliza os registros no nó. A inexistência do Outro do Outro<br />

exige uma sutura entre imaginário e sintoma (simbólico) que implicaria como<br />

conseqüência o enlaçamento do real e a invenção do sinthoma. Essa sutura resulta numa<br />

escrita do nó pela letra. Donde devemos avançar em relação ao que sugere Maleval e<br />

propor que a “base” que surge da identificação do gozo do Outro se dá antes sobre a<br />

letra que sobre o significante. É com essa escrita, que força a expulsão do objeto a, que<br />

um delírio pode favorecer o nó.<br />

A diferença de Schreber para Gentileza é que este, além de acatar os avisos divinos que<br />

lhe chegam do real, nomeia o invasor, que no caso só pode ser Deus, e que nada de mal<br />

poderá lhe infligir. Ele faz uma nomeação pelo real, identificando-se à letra divina.<br />

Assim, assentado nos significantes Jozze Agradecido e depois Profeta Gentileza, fará<br />

valer sua pregação, não mais como um representante de Jesus de Nazaré, mas forjando-<br />

se, dessa forma, um nome próprio.<br />

Essa nomeação não é aleatória. Ela se utiliza do que não se escreveu primariamente<br />

como traço-letra na história de José e incide exatamente sobre o ponto em que o nó não<br />

faz amarração. No resgate de sua história da vida, percebemos a importância dada por<br />

sua família à religiosidade, marca fundamental que permeia a vida desse sujeito desde<br />

sua constituição. Não só ele é levado na infância a práticas religiosas e benzeções, como<br />

também sua saída do interior para a capital é interpretada por sua família como a<br />

anunciação de uma escolha divina por sua pessoa. Além disso, há em seu nome uma<br />

"escolha forçada" pela significação religiosa, advinda do campo do Outro. José Datrino,<br />

assim como nos indica Guelman (2000, p. 23), “certamente já sugere, em seu nome, a<br />

possibilidade de sua missão [representar Jesus de Nazaré na Terra]. Datrino significa,<br />

em italiano, de três, enviado pelo Trino (Trindade)”. Assim, quando do<br />

desencadeamento que fez vacilar a identificação imaginária com o homem de bem,<br />

possuidor de “três caminhões, três terrenos e uma casa”, Gentileza recorre à lama para<br />

fazer-se, no real, um novo homem, invocando "o direito de reesculpir-se do barro; um<br />

novo homem fazendo-se de um novo húmus” (GUELMAN, 2000, p. 23).<br />

Assim, Gentileza provoca a escrita do real através dessa nomeação. Sua construção<br />

delirante se estabiliza na metáfora sustentada pela relação binária forjada por esses dois<br />

211


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

termos: gentileza e agradecido. Sabemos que o significante só existe em relação a outro<br />

significante, produzindo sentido pelo deslizamento na cadeia. A definição lacaniana<br />

clássica de que o significante é o que representa o sujeito para outro significante implica<br />

a inclusão do sujeito como sujeito do inconsciente e, ao mesmo tempo, evidencia a<br />

estrutura de binariedade intrínseca à própria definição estrutural de significante. Para<br />

Lacan (1957b/1998, p. 501), é uma ilusão acreditar que o significante "atende à função<br />

de representar o significado". Ao contrário, tanto a coisa está ausente como um outro<br />

significante está sempre referido pelo primeiro. O que demarca o significante é sua<br />

função diferencial.<br />

Parece-nos, portanto, que Gentileza elege um significante que, tal qual o significante-<br />

mestre recalcado na neurose, o identifica a um traço. Assim, diferentemente do<br />

neurótico que se localiza entre dois significantes – posto a tradução não ser possível de<br />

se completar – Gentileza se revela e constrói no trabalho de isolamento do significante<br />

que, extraído do enxame desordenado de S1 da psicose, faz Um, escreve a letra. É essa<br />

escrita que civiliza o gozo, tornando-o suportável.<br />

Porém, com Lacan ainda, vamos mais longe. Aprendemos que a letra é o suporte<br />

material que o discurso toma emprestado da linguagem (LACAN, 1957b/1998, p. 498) e<br />

que ela se manifestará no inconsciente pela homofonia (LACAN, 1957-58/1998, p.<br />

576), pelo sulco que faz vibrar em lalíngua uma forma de gozo (LACAN, 1971/1986).<br />

Assim, com Gentileza, parece-nos haver um trabalho do sujeito no sentido de se fazer<br />

escrever por uma letra que, isolando esse par significante, pode cumprir uma função de<br />

diferenciação, ali onde reinava na psicose uma solução de continuidade indiferenciada.<br />

Nesses pares binários, gentileza-favor e agradecido-obrigado, situa-se a tentativa do<br />

sujeito de fazer uma inscrição no intervalo que não houve, a escrita de um furo que pode<br />

se tornar verdadeiro no nó suplenciado.<br />

4. Passemos à quarta fase, a do consentimento ao gozo do Outro, em que Gentileza não<br />

se vê mais obrigado a aceitar aquilo que lhe chega do Outro como gozador e consente<br />

gentilmente com esse imperativo. Maleval (1996) nos diz que ao chegar nessa última<br />

fase do delírio, o psicótico não sofrerá mais das inquietações que o atormentavam até o<br />

período precedente. O sujeito não se sentirá mais perseguido, encontrando-se de pleno<br />

acordo com a nova realidade por ele construída. Em Gentileza, o consentimento ao gozo<br />

do Outro nos parece operar através das pregações religiosas que realiza ao longo do país<br />

212


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

e, sobretudo, através da escrita de sua obra.<br />

Como vimos, sua escrita comporta uma caligrafia peculiar, que inaugura um novo uso<br />

da letra – por ele forjada num abecedário único que civiliza lalíngua – e um novo valor<br />

ao texto-nó que ela escreve, carregado ou reforçado pela dimensão real do divino. Ele<br />

faz redemoinho com os significantes, ordenados pela lógica singular que ele funda com<br />

seus signos, pautas, estruturas gramaticais singularizadas e máximas. A obra, nesse<br />

circuito, opera pela ausência de sentido, possibilitando a fixação do gozo. Gentileza dá<br />

um destino estético ao excesso de gozo, transformando em obra singular o indizível do<br />

real.<br />

A. Destino social e clínico da escrita gentil do Profeta<br />

O fato de Gentileza ser tomado como o anunciador de um novo tempo e de uma nova<br />

estética para a dimensão citadina e contemporânea da atualidade, conferiu-lhe um lugar<br />

de destaque na cultura, como atestamos. Guelman (1997; 2000), professor do<br />

Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, em sua dissertação de<br />

mestrado na Filosofia, defendeu a tese de que Gentileza seria um mito moderno, pois,<br />

anunciador de uma crise social – a da chamada pós-modernidade. Além disso, ele<br />

operaria, enquanto mito, como anunciador, fundador, de um discurso que aponta, pelo<br />

princípio ético da "gentileza", uma saída aos impasses da economia capitalista e da<br />

fragmentação moral e social pós-moderna, calcada no individualismo, no hedonismo e<br />

no consumismo. Parece-nos que sua apropriação pela cultura (músicas, carnaval,<br />

entrevistas, blogs) constituiu um campo de endereçamento que ampliou as fronteiras de<br />

suportabilidade à diferença que a psicose coloca, reconfigurando as relações com<br />

Gentileza. Ele é tomado como mito, sábio, principalmente em sua família, como<br />

atestado pela entrevista realizada com sua filha. Nela, à suposição da loucura seguiu-se<br />

uma admiração pela obra de Gentileza que permitiu a reordenação dos enlaçamentos<br />

sociofamiliares.<br />

Esta é realmente a novidade teórica a que este estudo de caso nos conduziu: a obra,<br />

operando pelo real como continente ao excesso de gozo que resta da operação da<br />

metáfora delirante, confere-lhe sustentação enquanto letra e favorece a estabilização e o<br />

endereçamento social. Não é o fato de usar ou não a escrita que explica a estabilização<br />

de Gentileza, mas o artifício que ele cria através dela, suportado por ela. Gentileza pode<br />

213


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

mesmo funcionar como paradigma para os casos com os quais nos deparamos no<br />

cotidiano da clínica e dos serviços substitutivos da Saúde Mental.<br />

Assim, José Datrino formula uma solução pela escrita de um nome, “Profeta Gentileza”,<br />

que faz as vezes do Nome-do-Pai, reduzido aqui a sua função de nomeação, a um ponto<br />

de capitonné que fisga e amarra o real. Com Zenoni (2001) podemos dizer que uma<br />

metáfora delirante acontece quando o delírio atinge a função de fazer suplência à<br />

metáfora paterna. Suplência não somente como restabelecimento da relação entre o<br />

significante e o significado, mas antes como invenção de um quarto termo que ata os<br />

três registros, gerando efeitos não apenas no campo do simbólico, mas também nos<br />

campos do real e do imaginário.<br />

Assim, do excesso que restaria intraduzível sob a forma de gozo, Gentileza pregou e<br />

transformou a paisagem urbana com uma obra de grandes proporções para a divulgação<br />

de sua mensagem, os escritos do Viaduto. Ele deu vazão a esse excesso primeiramente<br />

com a peregrinação, depois com a fixação da letra de gozo na caligrafia inventada nos<br />

escritos depositados no Viaduto. Aí observamos um deslocamento do sujeito como<br />

objeto de gozo do Outro para o lugar de autor através da obra. Aprendizado essencial a<br />

ser transposto para o campo do tratamento possível das psicoses.<br />

Seu trabalho se aproxima do de Bispo do Rosário, com a ressalva de que Gentileza<br />

consegue constituir um ponto de capitonagem, sendo a obra o resultado da escrita do<br />

enlaçamento que o localiza. E, se tomamos Joyce como paradigma de uma psicose não<br />

desencadeada graças ao artifício do sinthoma, podemos pensar que Gentileza diz<br />

respeito a uma psicose desencadeada, cujo trabalho delirante se escreveu como<br />

suplência no texto de sua obra, fixando um ponto de amarração que sustenta os três<br />

registros de seu nó. Ele recolhe os restos da operação simbólica da metáfora delirante<br />

em torno do significante “gentileza”, conferindo um contorno real ao gozo pela escrita<br />

da obra que remaneja os efeitos imaginários. Em lugar do risco da passagem ao ato no<br />

momento da conclusão de uma metáfora delirante, do qual nos adverte Zenoni (2001), o<br />

Profeta Gentileza encontra no destino estético do real da obra e, ao mesmo tempo, no<br />

endereçamento imaginário, a amarração que o estabilizou na invenção de um quarto<br />

termo em torno do real. Podemos falar em sinthoma, portanto? Em um quarto termo que<br />

vem enodar-se aos três registros, conferindo-lhes, após o desencadeamento, nova<br />

amarração?<br />

214


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

4.2.3 Uma leitura borromeana do caso<br />

‘Algo a compensar’ ou ‘solução a inventar’ seriam, resumidamente, os caminhos para<br />

se pensar o tratamento na psicose, conforme o que Lacan nos ensina, respectivamente<br />

nas décadas de 50 e de 70. No primeiro período de seu ensino, marcado, como vimos,<br />

por uma preocupação estruturalista com o simbólico, é em torno do Nome-do-Pai como<br />

significante que organiza a solução neurótica que o conceito de psicose se desenvolverá.<br />

O sintoma neurótico, enquanto formação do inconsciente, é tomado como metáfora,<br />

estruturada a partir desse significante primordial (NP). A foraclusão do NP implicaria<br />

na estrutura psicótica, enquanto os fenômenos psicóticos seriam articulados ao<br />

significante real, fora da cadeia, e produzidos pela carência do efeito metafórico. Daí a<br />

solução psicótica nesse período, apoiada no modelo neurótico, ser pensada enquanto<br />

compensação pela via da metáfora delirante que faz as vezes da metáfora paterna, na<br />

qual o Nome-do-Pai é um operador simbólico essencial a sua trama.<br />

Ao final de sua transmissão, Lacan se ocupará das diferentes e singulares maneiras de<br />

amarração dos três registros em face da falha estrutural da linguagem [S(%)], que se<br />

impõe para todos. Trata-se aqui de uma solução positiva em qualquer estrutura clínica e<br />

não mais de um déficit da psicose em relação à neurose. A diferença entre as duas<br />

estruturas clínicas consistiria no fato de que o neurótico responderia pela via da função<br />

do Nome-do-Pai, enquanto o psicótico pelo ‘não’ ao Pai.<br />

A conseqüência desse corte epistemológico é que, enquanto para a neurose pode-se<br />

fazer uma teoria restringida ao Édipo para se pensar a solução subjetiva, para a psicose é<br />

preciso verificar caso a caso como o sujeito produz sua solução modulando a relação<br />

entre os três registros. Multiplicam-se, portanto, as possibilidades de estabilização que<br />

funcionarão como direção no tratamento, devendo cada caso ser examinado em sua<br />

singularidade. Assim, como vimos na discussão da proposta de Skriabine (2006),<br />

apoiada na abertura e no convite feito por Miller (2003c), as soluções psicóticas em<br />

Lacan ganham novo estatuto com a formulação topológica do nó borromeu.<br />

É o que podemos verificar no caso do Profeta Gentileza. Pouco a pouco, ele<br />

transformou seu nome próprio forjando uma nomeação a partir do trabalho de escrever a<br />

letra como suporte de dois pares binários significantes: 1) favor-gentileza e 2) obrigado-<br />

agradecido. Acreditamos que aqui uma primeira produção de sentido, concomitante a<br />

215


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

um esboço de amarração do gozo, aconteceu. Da experiência com as palavras, José<br />

Datrino passa a assinar seu nome com a grafia neológica Jozze Agradecido. Consegue<br />

construir um ponto de estofo, de limite à significação delirante de cunho religioso,<br />

conferindo-lhe uma inscrição em torno da qual toda sua existência passará a se<br />

consolidar.<br />

Podemos equivaler essa escrita ao que suplencia o traço unário minimal inscrito em<br />

lalíngua, fazendo função de letra. Onde seu trabalho delirante se escreve como obra,<br />

uma nova forma de gozo se organiza e um novo sujeito aparece da dobra na linguagem<br />

por ele próprio inventada sob a forma de sua caligrafia. E será exatamente da<br />

significação assentada sobre esses pares binários que ele destacará e fundará um nome-<br />

próprio, escrevendo-se “Profeta Gentileza” em seu texto.<br />

O que podemos dizer do que faz nomeação nesse caso? O Profeta pode se fazer um<br />

novo nome exatamente ao identificar um elemento significante isolado, non-sense, que<br />

ganha valor de S1. Sujeito de uma missão e inventor de uma nova ética, o Profeta é<br />

forjado por letras tipográficas e símbolos que ganham uma especificidade em sua escrita<br />

inédita e em sua prosa exata. Talvez possamos dizer que o Profeta nesta invenção<br />

conseguiu circunscrever um gozo, do qual antes era parasitário.<br />

Nesse corte, faz nascer uma nova possibilidade de articulação dos três registros. Se<br />

supomos que, em seu caso, o Imaginário enlaçava o Simbólico e o Real, dependurados<br />

precariamente sem nenhum entrelaçamento entre eles, no momento do<br />

desencadeamento teria havido um corte que os teria liberado uns dos outros.<br />

Figura 35 – Erro do nó do Profeta Gentileza<br />

A identificação imaginária (missão de se casar, trabalhar e constituir família) que o<br />

sustentava se rompe a partir do convite para compor uma sociedade civil no campo dos<br />

negócios. Um novo enlaçamento se inicia quando ele recebe o aviso astral da nova<br />

missão que, dessa vez, vem amparada pela construção significante que lhe segue<br />

216


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

(imaginário e simbólico entrelaçados como erro de seu nó). Além disso, do que resta<br />

real, sem significação, o Profeta faz escrita e invenção (real que é enlaçado com o outro<br />

par – I e S – pelo quarto elemento corretor, correspondente a sua obra, e que se enlaça<br />

fortalecendo o real), amarrando um gozo pelo nome-missão que a gentileza convoca.<br />

Figura 36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza<br />

Como se vê, temos o Imaginário e o Simbólico entrelaçados, e o Real solto entre os<br />

dois. A suplência se escreve como quarto nó corrigindo o ponto em que o erro figurou.<br />

Não se trata, portanto, de um trabalho que teria se reduzido a uma metáfora delirante,<br />

nem, por outro lado, uma obra que teria produzido uma amarração que impediria um<br />

desencadeamento. Já desencadeada, a psicose encontrando-se declarada, um corte já<br />

tendo desembaraçado todos os registros, o sujeito, então, corta e os remenda num<br />

trabalho de costura de um novo modo de ser.<br />

4.3 O Segundo Caso: A., de Flagelo de Deus à “Sedi di Shacina”, e Daí em Diante...<br />

4.3.1 História de vida e história clínica 92<br />

“O menor ato de criação espontânea é um mundo mais<br />

complexo e revelador que qualquer metafísica.” (A.)<br />

Conhecemos A. quando ele estava com 41 anos, em 2005, quando realizamos a primeira<br />

entrevista com ele. Nascido em dezembro de 1964, é o caçula da família de quatro<br />

irmãos (dois homens e duas mulheres). Estudou até o segundo ano do segundo grau,<br />

quando se deu o desencadeamento de sua psicose. Sempre morou com a mãe, e tem uma<br />

92 Os dados aqui apresentados foram colhidos em entrevistas com A., sua mãe, o médico psiquiatra e a<br />

analista que acompanha o caso entre 2005 e 2006.<br />

217


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

irmã casada morando em terreno contíguo ao de sua casa atualmente. Ele praticamente<br />

não a visita. Existe o projeto de que uma irmã solteira venha morar com ele quando se<br />

aposentar daqui a alguns anos. Sobre a vida familiar pregressa, o pai se separou da mãe<br />

quando ele tinha dez anos, voltou para casa e se separou de novo quando A. estava com<br />

16/17 anos. Em 1992, perdeu o pai, contando à época 28 anos. Todos os irmãos são<br />

vivos. A mãe relata que A. se mostra cada vez menos sociável, encontrando-se numa<br />

situação de pobre contato afetivo. Praticamente não sai de casa mais sozinho, nem no<br />

bairro rural no qual mora, e depende essencialmente dela para tudo. Abaixo seguem<br />

seus dados de vida cronologicamente organizados.<br />

A. cresce num ambiente familiar católico e artístico nos bairros de Encantado e Rio<br />

Comprido na cidade do Rio de Janeiro. Com dez anos, em 1974, vivencia a primeira<br />

separação de seus pais.<br />

Aos 16 anos, inicia um curso de teatro, no qual se destaca, segundo ele, sendo o<br />

preferido do professor dada sua habilidade para as artes cênicas. Na época, ele escreve<br />

dez romances num estilo surrealista, como o “Shanura Metamórfica”, “Balaostro”,<br />

“Monomontanha” ou o “Shartaque”. Anda de moto e namora, “é genial”, segundo ele<br />

próprio. Nesse período ocorre a segunda separação de seus pais.<br />

Em torno de 1983, aos 19 anos, encenava peças de teatro, escrevia e fazia uso abusivo<br />

de droga (maconha). Com dificuldades para precisar os acontecimentos do período, fala<br />

da morte de dois amigos em diferentes acidentes, um de moto e outro ao se defender de<br />

um assalto. É nesse período também que localiza a irrupção de fenômenos elementares<br />

sob a forma de alucinações e fenômenos corporais. Ele se fecha, ficando taciturno e<br />

estranho aos olhos da família que busca auxílio psiquiátrico. São, então, orientados a<br />

levá-lo para uma vida no campo, como forma de exercitar-se na praxiterapia,<br />

modalidade corrente de terapêutica psiquiátrica na época. Ele é enviado para Japuré<br />

(RJ), na fazenda de parentes, e depois para Carangola (RJ). Mas a estratégia não gera os<br />

efeitos esperados pela psiquiatria. Ele não se apazigua.<br />

Pouco depois da irrupção desses fenômenos, é acometido por uma alucinação verbal<br />

que se torna ponto-chave para sua estratégia de estabilização. Trata-se da escuta da<br />

frase: “[não] sedi di shacina”. Ela orientará todo seu percurso de trabalho subjetivo<br />

posterior. Após o desencadeamento da psicose, A. escreve mais de 30 pequenos livros<br />

falando sobre a “[não] sedi di shacina”. Muda-se, com a mãe, para Santa Tereza no<br />

218


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Rio. Foi ali, segundo ele, que algo em torno de sua cura “se iniciou”.<br />

Desde o desencadeamento sempre esteve submetido a tratamento psiquiátrico particular<br />

e medicamentoso. Jamais foi submetido a uma internação psiquiátrica, apesar da<br />

indicação clínica de internação. Sua mãe sempre se recusou a fazê-lo, preferindo cuidar<br />

de A. em casa, sob seus próprios cuidados. Recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.<br />

Em 1984, com 20 anos, muda-se para Betim (MG), cidade na qual reside até hoje. Perde<br />

o pai em 1992, mas continua se comunicando com ele através de uma modalidade<br />

delirante de comunicação transcendental que inventa para conversar com as pessoas que<br />

não estão à sua volta, estejam elas vivas ou mortas.<br />

A partir de 1999, com cerca de 35 anos, começa a utilizar a pintura e a identificá-la<br />

como um instrumento para representar os personagens de seus livros, na tentativa de<br />

“ajudar” os outros e a si mesmo, e também como forma de “canalizar” suas energias.<br />

Ele conversa com os personagens que pinta em suas telas, pois eles saem do quadro,<br />

como nos explica. Sua pintura é compulsiva e desliza incessantemente na produção de<br />

novos quadros. Ele já pintou uma centena deles. Sua função, na modalidade de<br />

comunicação transcendental, é a de fazer o “fenômeno” acontecer. Assim, ela também<br />

opera unindo as pessoas. O fenômeno é a possibilidade de diálogo “telepático” com<br />

qualquer pessoa que tome contato com sua obra.<br />

Ele em momento algum pára definitivamente de escrever, pintar, delirar, alucinar ou<br />

recorrer ao texto de Artaud 93 e de outros autores de referência que utiliza como citação<br />

em suas conversas. Sua fala é entrecortada a todo o tempo por essas citações, sendo<br />

mesmo difícil precisar o que é dele e o que é do outro.<br />

Seu tratamento, iniciado na década de 80, foi estritamente medicamentoso nos moldes<br />

da psiquiatria clássica. Apesar de indicada a internação, sua mãe a recusou, criando,<br />

com isso, a condição de trabalho subjetivo para A..<br />

O tratamento de fato, o que gerou resultados, ocorreu fora do alcance da psiquiatria.<br />

Deu-se através da pintura e da escrita, verdadeiros objetos de contenção de gozo criados<br />

como estratégia por ele, a partir das insígnias legadas por sua história.<br />

A presença de sua mãe como mediadora e destinatária operou (e opera) como elemento<br />

93 Antonin Artaud (1896-1948), francês, foi poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês. Inventou o<br />

Teatro da Crueldade, no qual não haveria nenhuma distância entre ator e platéia; todos fariam parte do<br />

processo ao mesmo tempo. O seu trabalho ainda inclui ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura,<br />

diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro. Esteve internado<br />

em hospitais psiquiátricos por diversos períodos ao longo de sua vida, tecendo duros manifestos também<br />

contra o regime hospitalar.<br />

219


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

central e cria um impasse ao se pensar que, idosa, pode em breve não estar mais<br />

presente na vida de A.. Por outro lado, gera impasses quanto à dificuldade de conquista<br />

de autonomia por parte do filho. Ela tem uma verdadeira adoração por A.. Foi essa<br />

entrada, por vezes, intrusiva, que permitiu um mínimo de estrutura para que ele pudesse,<br />

de um lado, dispor de recursos para inventar suas soluções mas, de outro, se acomodar<br />

nessa relação de apoio.<br />

Em 2003, um acontecimento contingencial marca uma reviravolta no caso. Em uma de<br />

suas crises, é levado pela família para um CERSAM 94 . Lá é recebido por uma<br />

funcionária administrativa, B., com quem cria um vínculo banhado de real. Os olhos<br />

azuis dela operam como objeto que sustenta um enlaçamento do real, a partir do qual<br />

arrefecem suas crises. Decide, então, parar de fumar e de usar drogas. O tratamento<br />

psiquiátrico passa a ser referenciado neste serviço.<br />

O encontro com a sensibilidade clínica de seu psiquiatra, Dr. V. Tavares, orientada pela<br />

psicanálise, favoreceu o respeito ao estilo de solução que A. já começara a construir. Ele<br />

não freqüenta o serviço, sua mãe é quem vai às consultas e cuida de seu cotidiano.<br />

Após o encontro com B. e com seu médico psiquiatra, A. presenteia os dois e o serviço<br />

com seus quadros, deixando de comparecer às consultas já que estava presentificado<br />

objetivamente no serviço através de suas telas: “ir lá não é importante, meu quadro já<br />

está lá”.<br />

Mas, avisado, Dr. Tavares continua o tratamento recebendo a mãe de A. e indicando<br />

uma psicanalista para realizar visita familiar, visando constituir um espaço analítico<br />

para ele. O trabalho com ela inicia-se em março de 2006.<br />

Dessa forma, ele intervém sobre a qualidade da relação de A. com o tratamento,<br />

alterando sua medicação e sustentando um vínculo possível de trabalho, sem interferir<br />

na produção subjetiva autoconstruída por ele, que garantia sua mínima estabilização.<br />

A. deixa de lado o uso diário da maconha, cria um vínculo com o serviço sustentado à<br />

distância através da mãe como mediadora, mantém o trabalho com a pintura e com a<br />

escrita e, por hora, apresenta menos alucinações.<br />

A analista toma como direção a produção de uma escansão entre A. e seu Outro,<br />

94 O CERSAM é um dispositivo da rede de Saúde Pública e, neste caso, equivale ao CAPS 24 horas,<br />

proposto em portaria pelo Ministério da Saúde. Visa atender às urgências subjetivas e psiquiátricas,<br />

rompendo com o circuito de internação. Para isso, conta com equipe multiprofissional e diversidade de<br />

modalidades de intervenção, tais como consultas, visitas domiciliares, oficinas terapêuticas, passeios e<br />

trabalho com a família.<br />

220


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

operando, a partir da produção delirante, pequenas entradas que visam instalar uma<br />

barra nessa relação, recuperando o que há de singular e próprio nas criações de A.. É um<br />

cálculo acertado que tem gerado como efeito uma nova repartição do gozo e algumas<br />

pontuações no trabalho que deslizava sem cessar. Ela o atende quinzenalmente em sua<br />

residência, com projeto de transferir esse atendimento para o consultório. Veremos<br />

como os diferentes elementos clínicos introduzidos com sutileza nesse contexto têm<br />

permitido novos endereços para localização do gozo, pacificando A..<br />

4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso<br />

A. Primeiros recursos antes do desencadeamento<br />

Até a adolescência, não encontramos nenhuma indicação de psicose em A. no relato dos<br />

entrevistados. A relação dele com a arte nasce aos 16 anos, quando inicia um curso de<br />

teatro. Nesse período, dos 16 aos 18, 19 anos, escreve dez livros com estórias no estilo<br />

do realismo fantástico. Ele também fazia uso de drogas, como a maconha, que eram<br />

utilizadas com os amigos, com quem depois formaria o grupo dos “sete cavaleiros do<br />

apocalipse” que, delirantemente, ele lidera até hoje. Talvez a identificação com os<br />

amigos tenha sido o elemento mais importante a sustentá-lo no eixo imaginário a-a’ até<br />

o desencadeamento. A identificação com os irmãos artistas parece ser outro elemento de<br />

estabilização, mas decididamente é secundário nesse processo.<br />

A escrita e o teatro aparentam ter sido também recursos imprescindíveis nesse período,<br />

configurando-se em via de escoamento pulsional e, por isso mesmo, de contenção de<br />

um ato que comportasse maior risco. Podemos mesmo hipotetizar que, no período dos<br />

16 aos 19 anos, esses recursos funcionaram paralelamente à identificação imaginária,<br />

como via de contenção do desencadeamento. O uso da droga, já presente nesse período,<br />

sempre se associou ao sofrimento, ao que intervinha sobre o corpo e dificultava a<br />

relação com este.<br />

B. Desencadeamento e sua relação lógica com uma possível suplência<br />

A primeira “crise” de A. acontece, segundo seu relato e o da mãe, em torno dos 19 anos.<br />

A psicanalista que o atende lembra que, ainda aos 16 anos, ele vê um clarão na sala de<br />

aula que talvez fosse um prenúncio do momento do desencadeamento. Para A., tratava-<br />

se da “fagulha essencial”, que aparece associada ao encontro com o Outro sexo, na<br />

221


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

medida em que esse feixe luminoso surge próximo à jovem de quem gostava. Ele, de<br />

fato, não tem um encontro decisivo com nenhuma mulher, o que pode ter favorecido a<br />

estabilização precária que organizou nessa fase, apesar da ocorrência aparente de alguns<br />

fenômenos elementares.<br />

“Eu fiz o primeiro científico três vezes. Só na terceira vez que eu passei. E quando eu fazia<br />

o segundo científico, antes de eu repetir, eu chegava na prova e começava a escrever<br />

poesia. Aí uma vez eu tava fazendo uma prova lá, aí eu escrevi assim: ‘Isso não adianta e<br />

papapapa, isso não adianta e papapapa’. E aí o professor vem ditando: ‘Ô, A., isso não<br />

adianta’. E aí como se eu tivesse adivinhado o pensamento que ele ia pensar, um pequeno<br />

fenomenozinho ali” (Relato de A. em entrevista).<br />

O acontecimento que caracteriza o desencadeamento em si ele o nomeia como<br />

“intoxicação” e, às vezes, “enfeitiçamento”. É dessa maneira que se refere à notícia da<br />

morte de um dos seis amigos.<br />

“Eu já tinha recebido os primeiros micróbios de Deus pela macumba, quando recebi a<br />

notícia do acidente deles [de moto, com Cezinha que morreu e Germano que estava na<br />

garupa]. Foi um enfeitiçamento global [enfeitiçamento aqui tem a mesma significação que<br />

intoxicação na primeira entrevista], como no caso de Baudelaire, Edgar Allan Poe,<br />

Nietzsche e de Van Gogh” (Relato de A. em entrevista).<br />

O enfeitiçamento relaciona-se às mortes de pessoas importantes e ganha uma conotação<br />

fatalista. Nessa estratégia megalômana, os amigos se igualam a heróis que morrem para<br />

salvar o mundo.<br />

“O camarada, quando ele é um guerreiro, né, ‘Asa Cruz’... São como anjos. São superiores<br />

ao ‘Asa Cruz’. São os mais elevados. São os mais importantes que existe [sic] em matéria<br />

de cavalheiro, né? Aí, pra defender o importante eles morrem. Sempre que um importante<br />

tá em perigo, eles dão a vida. Eles pedem ao céu que seja devolvida aquela importância e<br />

não pode deixar de defender. Tem que salvar o importante. Então eles morreram e salvaram<br />

o importante. [...] Morreram, mas salvaram o importante” (Relato de A. em entrevista).<br />

O irredutível da experiência da morte não encontrou um artifício que fizesse frente ao<br />

que não se pode nomear, convocando uma resposta onde não havia uma amarração feita<br />

entre os registros que pudesse sustentá-la. O que quer que a houvesse sustentado até<br />

então cai. O vácuo de significação parece fazer surgir de lalíngua o inusitado que a<br />

ultrapassa.<br />

A. morava ao lado de um centro de candomblé. Sua mãe conta que ele ficava indignado<br />

com a morte de animais em sacrifício e gritava em revolta: “seus covardes, ‘tão<br />

matando animaizinhos!”. Após o desencadeamento, ficou taciturno e embotado. Diz a<br />

mãe que dava a impressão de que ele tinha saído dali, do corpo dele. Vejam o relato do<br />

episódio que o próprio A. demarca como corte:<br />

222


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“[Eu estava com] dezoito, dezenove, dezenove anos. E nesses centros [de candomblé] é o<br />

seguinte: a gente fumava maconha e ficava ali. Eu ia de moto pra casa assistir Dom Artaud<br />

[sic] ou ia pra piscina nadar. Isso aí. É... fumava um e saía de moto curtindo, né? Uma coisa<br />

assim. Aí, nesse centro, eu falava, eu falei uma vez assim: ‘cabrito, olha teu corpo’. Aí<br />

ficou aquela coisa, eu falei a voz do Artaud no Teatro de Sangue, né? Aí depois eu botei um<br />

cobertor azul assim no chão, deitei do lado da minha moto assim, né? Aí eu falei assim:<br />

‘mostra teto’. Aí uma voz lá de dentro, uma voz da macumba, falou assim: ‘Ah! É o<br />

bicheiro!’ Uma coisa assim, né? Um apelido que botaram ali, naqueles micróbios ali. Isso<br />

que você chama de micróbios é Deus, foi isso que aconteceu, ali entendeu?” (Relato de A.<br />

em entrevista).<br />

Tal qual discutido por Lacan em relação a uma apresentação de paciente 95 , a alucinação<br />

retorna oferecendo um atributo que designa o sujeito, onde a hiância da indeterminação<br />

significante se encontrava, onde um sentido não era possível ser produzido. “É o<br />

bicheiro” é a palavra rejeitada no Outro, que é produzida no lugar do sujeito.<br />

“É assim que o discurso vem a realizar sua intenção de rejeição na alucinação. No lugar em<br />

que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar<br />

daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito sem dele se<br />

desligar pelo travessão da réplica” (LACAN, 1957-58/1998, p. 541).<br />

Depois deste episódio, foi a intoxicação de A.<br />

“Isso que chama de micróbio, bicheira, que falou: ‘ah, bicheira!’. Aquele nome, aquela<br />

palavra que resume ou une todos aqueles processos espirituais de todas as coisas, é o<br />

micróbio. E isso que você chama de micróbios é Deus [inaudível]. E dali, então, foi que<br />

depois de tudo é que veio a intoxicação, a intoxicação...” (Relato de A. em entrevista).<br />

Intoxicação, bicheira, micróbios, Deus, o deslize significante não faz cadeia, cade-nó,<br />

mas enxame. São muitas vezes significantes do Outro que, não sendo subjetivados e<br />

apropriados, colam-se como etiquetas de identificação sobre A. no lugar daquilo que<br />

não tem nome. Revelam o que não se ata entre os três registros, a saber, o contorno que<br />

o Simbólico realizaria no recobrimento do Real. Ali resvala para os fenômenos<br />

imaginários do corpo o que a linguagem não sustenta no campo simbólico. Podemos<br />

imaginar a rodela do Real, na qual Lacan localiza a vida, avançando sobre o campo do<br />

simbólico, solto, sem um grampo. Esse prolongamento é a ex-sistência, em relação ao<br />

95 Trata-se de uma paciente que tem uma alucinação verbal “porca”, à qual responde com “venho do<br />

salsicheiro”. Trata-se de um delírio a dois entre mãe e filha, no qual esta produz a significação das<br />

injúrias que ambas estariam sofrendo de seus vizinhos. Laurent (1995, p. 121-126) aponta a importância<br />

decisiva da noção de shifter em Jakobson na releitura de Lacan deste caso. Para Jakobson, o shifter é o<br />

único elemento do código que remete obrigatoriamente à mensagem. Colocando em jogo esse novo<br />

operador, Lacan inclui o Outro no circuito a-a’, reintroduzindo-o como o próprio lugar do código, onde<br />

há um elemento que permite incluir o objeto visado na mensagem. Dessa maneira, primeiro a paciente<br />

teria alucinado a palavra “porca” e, então, respondido “venho do salsicheiro”. Como no caso de A., ele<br />

provavelmente escutou primeiro a alucinação verbal e somente depois teria elaborado a frase “mostra<br />

teto”. Ao que surge como enigma, o sujeito tenta conferir uma significação, marcada pela certeza<br />

psicótica.<br />

223


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

imaginário, que Lacan chama de falo (Ф) 96 .<br />

Se tomamos como fato de estrutura que a linguagem se articula sobre lalíngua, que há<br />

um caos originário diante do qual o sujeito se posiciona na estrutura, parece-nos que a<br />

psicose evidencia a determinação e o transbordamento dessa dimensão caótica sobre a<br />

linguagem através dos fenômenos elementares. Se na neurose a inscrição do sujeito faz<br />

escrita de letra da incidência do significante sobre o gozo, organizando um campo<br />

semântico que passa a constituir o conjunto das identificações referenciais do sujeito, na<br />

psicose nos deparamos com outra solução.<br />

É certo que a linguagem não dá conta desse excesso – chamado, de uma maneira<br />

preliminar, em Freud de pulsão e em Lacan de gozo –, veiculado por lalíngua. Mas, na<br />

neurose, a linguagem enquanto estrutura funciona como elucubração de um saber<br />

possível sobre essa verdade inacessível, causal. E na psicose? Na psicose, nos vemos<br />

face a face com o horror desse caos. Os fenômenos elementares evidenciam, de outra<br />

forma, o mesmo fracasso da linguagem como arranjo débil sobre lalíngua. O que<br />

transborda nesses fenômenos fala do que não se pode domesticar pela linguagem no<br />

humano, aponta o real como o impossível, ao mesmo tempo que indica que qualquer<br />

ensaio de significação fracassará no mesmo ponto em que a linguagem se estruturará<br />

com débil. É aí que o final do ensino de Lacan inaugura algo de novo. É da insistência<br />

daquilo que Freud dizia aparecer como irredutível no final de uma análise que Lacan,<br />

então, nos convidará a fazer dele um uso, a savoir-y-faire em relação a qualquer<br />

estrutura clínica.<br />

Nesse sentido, apostar na solução assintótica da metáfora delirante na psicose nos<br />

aproxima da crença de que a linguagem pode produzir um sentido derradeiro sobre a<br />

Coisa, uma aposta no que fracassa também na solução neurótica. Quando Lacan<br />

introduz toda a gama de novos conceitos em seu ensino na década de 70, parece estar<br />

nos advertindo desse risco clínico e nos convidando a repensar a direção de um<br />

tratamento. Reverter o circuito pulsional e aprender a fazer do sintoma um uso implica<br />

em pensar as diferentes formas de amarração que o sujeito pode inventar na articulação<br />

dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário. Nesse sentido, a invenção de uma<br />

suplência é para todos e a debilidade do ‘normal’ se torna evidente.<br />

“Oh! O meu problema foi iniciado num centro de candomblé. Um espírito de ‘prostigação’<br />

96 Cf. Fig. 05, lembrando que, neste caso, o nó não se ata borromeanamente, havendo uma disjunção,<br />

como veremos, entre os registros.<br />

224


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

[sic] mesmo. Um mau espírito... ‘prostigação’ [sic] e aí, me atingiu... mas me atingiu<br />

justamente pra... Há males que vêm pro bem, uma coisa assim, né? Aí eu... dessa macumba,<br />

foi feito um trabalho pra mim, aí depois eu... [...] fiquei perdido um tempão, perdido. Mas<br />

depois é que eu vi que... como foi importante acontecer isso porque, senão, como é que ia<br />

ser? Eu ia sair... ia ter a vida comum? Eu ia lá pro meio da Rede Globo, ser ator de novela?<br />

Que troço chato, né?” (Relato de A. em entrevista).<br />

C. O começo de tudo: o início do trabalho de estabilização<br />

Como vimos, as alucinações começaram na adolescência e a mãe de A. foi orientada a<br />

levá-lo para o interior a fim de se exercitar um pouco através da praxiterapia no campo.<br />

“Eu tava no Japuré, isolado daquele mundo, porque eu tava com medo dos automóveis<br />

e a roda que passava nas cabeças das crianças, aquela estorinha” (Relato de A. em<br />

entrevista). Retorna no real sob a forma de alucinação a experiência não simbolizada.<br />

Aquilo que do acidente de moto resta o atormenta sob a forma de visões trágicas. É<br />

quando, então, ele tem uma experiência enigmática. Numa fazenda de seu tio em<br />

Carangola (RJ), ele ouviu a frase que passou a organizar toda a sua cura.<br />

“E aí foi que surgiu essa frase. Eu tava chegando no portão com o tio Eusino, assim, aí:<br />

‘não sedi di shacina’, uma coisa assim. [Entrevistador: Não sede?] É não seja de sha... uma<br />

coisa assim. A mesma coisa não sede é não matarás, a estória dos bons, dos humildes, né?<br />

Mas habitualmente ela usa mais “sedi di shacina” pra [inaudível], pro Artaud. [...] E essa<br />

frase, então, é que iniciou a minha cura toda. Exatamente, todo um poder que havia ali, né?<br />

A preocupação de Jesus com Deus, de Artaud com Gênese, tudo isso” (Relato de A. em<br />

entrevista).<br />

Se ela tem inicialmente o estatuto de um fenômeno elementar, imediatamente ela<br />

assume para A. a função de propulsora, de conectora, ainda que não de enlaçadora,<br />

como veremos. A expressão “sedi di shacina” lança o sujeito ao trabalho delirante, mas<br />

também aos ensaios de solução que engendra através da escrita e da pintura. “Sedi di<br />

shacina estabelece o necessário para o comprimento [sic] da vida. E pede, no plano<br />

onde tudo é bondade, que o equilíbrio seja restabelecido”, escreve A. em 2006. O<br />

tratamento do real nasce da contingência dessa frase que ganha valor de enigma, de algo<br />

que parece fazer cifra. O trabalho inicial sobre a expressão acontece tão logo ela se<br />

apresenta para A..<br />

“É, mas surgiu foi como um não. Falou: ‘não seja di shacina’. Aí, que eu lutava justamente<br />

pela sede, contra a ‘sedi di shacina’, né? E hoje a ‘sedi di shacina’ minha é a favor dos que<br />

ganham pão honestamente, dos pobres, dos oprimidos, de todos eles. Não é ‘sedi di<br />

shacina’ soberbo. [...] Aí eu falei “não sedi di shacina” porque, na mesma hora que surgiu a<br />

‘sedi di shacina’, eu falei não. Pintou aquele não ali. Foi uma coisa assim, sabe? Eu não<br />

aceitei ‘sedi di shacina’, aquela coisa assim. Foi ‘não sedi di shacina’ como aquele verbo<br />

assim: não matar, não roubar, né? Amar a Deus sobre... aqueles mandamentos, né? Então<br />

ela surgiu primeiramente como um mandamento de Deus, do que não matar, né?” (Relato<br />

de A. em entrevista).<br />

225


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Ao imperativo “matarás”, “farás uma chacina”, que veicula uma forma de gozo do<br />

Outro sobre o sujeito-objeto, ele interpõe um não. Se Freud nos adverte que o símbolo<br />

da negativa é condição da estruturação da linguagem, sendo precedido por uma<br />

afirmação primordial (Bejahung) e por uma expulsão (Ausstossung) que instala um fora,<br />

A. nos testemunha, com o “não” que precisou interpor à palavra de ordem a ele imposta,<br />

uma inscrição que não se efetuou. Se A. fala e, portanto, participa de alguma maneira do<br />

dispositivo da linguagem, fato é que ele faz um uso singular das palavras. Ele também é<br />

falado no ponto em que uma letra não escreveu com o significante a condição do<br />

inconsciente, do recalque. Em outros termos, a rejeição, ou foraclusão, assenta-se sobre<br />

uma negação primordial que não se efetuou, deixando o sujeito entregue ao real e ao<br />

uso que pode dele extrair 97 . Aí o ponto a ser reparado no nó. Não estamos, portanto,<br />

diante de um desabonado do inconsciente mas, antes, diante de um sujeito que está no<br />

avesso do inconsciente, recebendo de fora (ou do real) seus significantes.<br />

A riqueza desse caso consiste exatamente no trabalho que esse sujeito faz com as<br />

palavras e com as imagens que tem à sua disposição, tanto no escrito quanto na pintura.<br />

Na busca de constituir um corpo, seu esforço incessante o conduziu a criar obras<br />

belíssimas 98 , nomeadas a partir de seus livros escritos. Além disso, no encontro com a<br />

analista algumas escansões são forjadas no seu texto infinito, bordando pontos para<br />

contenção de um gozo que entorna pelo corpo. Ele inicia uma série, relacionando os<br />

livros que escreveu a partir do número 57. Número que inicia a série na qual o zero não<br />

se escreveu sobre o nada que o precedia 99 . Mas nos parece que algo aí ainda não se<br />

escreve mesmo assim. Será que podemos dizer que todo seu trabalho é uma tentativa no<br />

sentido desse ciframento, desse enodamento? Decifrar cifrando, como diz Lacan?<br />

Com o trabalho delirante, aliado à pintura, ele evita, podemos hipotetizar, uma<br />

passagem ao ato, que cede lugar à escrita dedicada a cernir esse significante que retorna<br />

97 “O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente<br />

ser encarado como sinal de uma desfusão [desamalgamar] de pulsões efetuada através de uma retirada<br />

[subtração] dos componentes libidinais” (FREUD, 1925/1976, p. 300).<br />

98 Cf. fotos no Anexo V.<br />

99 Agora seus pequenos cadernos são escritos, entregues à analista, que os xeroca e os devolve para que<br />

ele os assine. A idéia é a de que ele dê um nome ao que escreve, introduzindo um ponto de parada onde<br />

antes havia puro deslize. Ele ia escrevendo e dando seus livros sem cessar. Agora ela tenta introduzir um<br />

ponto de basta. O efeito, interessante, é o início da escrita de cartas, com destinatário. Ele não escreve<br />

mais sob a submissão das idéias de um Outro, dirigindo seu produto para um Outro anônimo. A<br />

numeração dos cadernos segue a mesma lógica. Hoje cada caderno recebe um nome e um número. Ele<br />

marca a incerteza, mas não fica perdido nela.<br />

226


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

no real sem significação. A grafia da expressão “sedi di shacina” é por ele estabelecida<br />

já de uma maneira singular, incluindo retalhos da escrita indiana de autores que cita<br />

para bordar possíveis pontos de estofo. A expressão parece-nos, assim, organizar uma<br />

direção subjetiva em face do caos que se instalou em sua vida com o desencadeamento.<br />

O trabalho consecutivo a ela testemunha o esforço delirante em se fazer um corpo capaz<br />

de acolher o gozo que o transborda, amparado pela escrita, pela pintura e pelo teatro.<br />

Ele trabalha incessantemente sobre essa frase, tendo escrito mais de sessenta livros,<br />

pintado algo em torno de 100 quadros e articulado toda essa produção ao teatro da<br />

crueldade, de Antonin Artaud. Se, aparentemente, parece haver uma deslizante busca de<br />

sentido para a expressão, é possível depreender de seu esforço a tentativa de cifrar e<br />

estacionar essa correnteza de gozo, ainda que ele se mantenha submerso à lógica de seus<br />

Outros – figuras de seu folclore pessoal de quem extrai as máximas sobre as quais<br />

sustenta seus passos.<br />

Ao lado de Artaud, Sevananda 100 e Krishnamurti 101 são autores cujas idéias dão corpo ao<br />

discurso de A., muitas vezes pura citação deles. É de um misto de referências e citações<br />

que A. se serve para escrever seu texto. Entretanto, essas intervenções do Outro não têm<br />

o mesmo valor das epifanias no texto de Joyce.<br />

“Eis o que ele queria fazer, acrescenta, era registrar essas cenas, essas pequenas comédias<br />

realistas que dizem tanto. Temos, então, uma espécie de desdobramento da experiência<br />

(digamos para simplificar um lado realista e um lado de alguma forma poético) e uma<br />

espécie de liquidação, de censura” (AUBERT, 1976/2005, p. 181).<br />

Joyce interpõe seu texto literal na literatura que escreve. Por seu turno, A. é escrito pelo<br />

texto do Outro, cujas citações colam-se em seu discurso antes como semblante que<br />

como fragmento de real. A. parece permanecer colado no Outro, feito um apêndice, não<br />

conseguindo nele escrever seu lugar. Em outros termos, Simbólico e Imaginário<br />

100 Sri Sevananda, o Conde francês Leo de Mascheville, é autor do livro O mestre Philippe de Lyon, pai<br />

dos pobres. Morou na Argentina, no Uruguai e no Brasil, tornando-se instrutor espiritual desde 1924.<br />

Ainda em Montevidéu, fundou a "Associação Mística Ocidental", sob a direção do Mestre Philippe,<br />

escola que se tornou um centro de União de Correntes Espirituais: Essênios, Suddha Dharma Mandalam,<br />

Rito Egípcio de Osíres, Ramakrishna Ashrama, Kriya Yoga, Yoga Ashrama, Comunidade Sufi,<br />

Satyauraha Ashrama, Ordem Martinista, Maitreya Mahasangah, Ordem Cabalística Rosae Crucis,<br />

Departamento do Verbo, Zen Boddhi Dharma, e Igreja Expectante, com contatos com os representantes<br />

de quase todas essas correntes. Muda-se posteriormente para o Brasil, onde funda uma nova Ordem e<br />

morre. Mais informações sobre sua vida no site: <br />

101 Jiddu Krishnamurti, nascido em 1895, na Índia, talhado para se tornar o ' Instrutor do Mundo ', segundo<br />

os teosofistas, tornou-se chefe da Ordem Internacional da Estrela do Oriente em 1911, que abandonou em<br />

1925 para se tornar um mestre autônomo. Escreveu mais de 60 livros, deu palestras por todo o mundo,<br />

pregando o autoconhecimento, mas recusou a posição de guia espiritual. Mais informações sobre ele no<br />

site: .<br />

227


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ensaiam coser do Real algumas nesgas, mas essa costura não se faz com facilidade.<br />

Aqui temos a impressão de que a ex-sistência do inconsciente em relação à rodela do<br />

Real, avanço do Simbólico sobre o Imaginário, não se escreve.<br />

Assim, como vimos:<br />

(a) O delírio se apresentará, no caso, como ensaio de deciframento, como esforço de<br />

réplica que o sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-<br />

58/1998), o delírio não é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui<br />

exatamente a mesma estrutura dos fenômenos elementares que, por seu turno, já<br />

teriam a estrutura do delírio.<br />

(b) Além disso, “encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo<br />

corretamente graças a um artifício” (Lacan, 1975-76/2005, p. 73), na medida em<br />

que a clínica passa a se fazer de cortes e religamentos.<br />

Se o sinthoma pode ser concebido no registro da escrita como a forma com a qual cada<br />

um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina, podemos dizer<br />

que Joyce conseguiu construir a letra com a ajuda da letra até que ela pôde abolir o<br />

símbolo, deslocado de qualquer significação. Aí, nesse ponto, pôde prescindir do S1, do<br />

Nome-do-Pai estabelecido, e inventar uma suplência a seu modo e com seus recursos.<br />

Construção que deve mais à escrita e à letra que à fala, construção que se esforça em ser<br />

para si mesma sua própria referência.<br />

Gentileza realiza, por seu turno, uma outra forma de suplência. Ele se forja na caligrafia<br />

que inventa, provocando sulcos e rasuras no texto de gozo que se faz mensagem<br />

endereçada ao Outro. O Real é enlaçado pelo quarto elemento ao par Imaginário-<br />

Simbólico. Assim, há um reforço no Real, que corresponde à sua obra, corrigindo o erro<br />

do par Imaginário-Simbólico, que se encontra entrelaçado, e não superposto, amarrando<br />

um gozo pela missão que a gentileza convoca ao Profeta.<br />

E com A., o que se passa? Se sua escrita remete a um possível entrelaçamento entre<br />

Simbólico e Imaginário, gerando efeitos sobre o Real, desemaranhado da letra que não o<br />

captura fazendo escrita, por outro lado, a pregnância de fenômenos corporais,<br />

imaginários, parece indicar, ao contrário, um erro, um entrelaçamento entre simbólico e<br />

real. Essa multiplicidade de perspectivas nos conduz à sensação de que Real, Simbólico<br />

e Imaginário se apresentam para A. em continuidade, como se fossem traçados da<br />

mesma substância num nó de trevo (Fig. 15), sem escansões ou cortes. A ausência de<br />

228


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

descontinuidade neste caso ainda nos sugere uma topologia mais radical, talvez mesmo<br />

um nó trivial ou falso nó de trevo (Fig. 15), no qual os três registros formariam um<br />

círculo sem cortes ou interrupções nos quais um registro avançaria até tocar o outro na<br />

composição do nó. Busquemos mais elementos...<br />

D. Sobre a “sedi di shacina”<br />

A. não esconde o uso que faz da escrita.<br />

“Escrevo! Eu gosto muito de escrever. Escrevo bastante. Foi eu que criei essa frase, essa<br />

frase aí resultante de tudo. Minha luta, minha arte, no teatro. É ‘sedi di shacina’ que é a<br />

frase que devolveu o poder, muito poder, muitas coisas assim, sabe como é? É a solução de<br />

continuidade que antes não havia, não havia, né? Agora existe a solução” (Relato de A. em<br />

entrevista).<br />

A idéia da ‘sedi di shacina’ parece tentar criar um marco, um ponto zero, conceitual,<br />

início de laço. Com essa expressão, A. ensaia diferentes enlaçamentos. Há uma<br />

atividade delirante que o ocupa bastante e que vem acompanhada muitas vezes de<br />

alucinações. Essa atividade corre paralela a sua criação escrita e pictórica. Nem uma,<br />

nem outra, porém, ganham exatamente uma direção. É um autotratamento disperso,<br />

desorientado. Estamos falando de um sujeito que trabalha incessantemente e que possui<br />

recursos ricos, entretanto, não parece fazer deles artifício de escrita. Conseguiu<br />

contornar o encontro com o real do desencadeamento, talvez mesmo uma passagem ao<br />

ato grave, e se mantém num liame tênue entre os três registros. A expressão “sedi di<br />

shacina” parece contornar momentos de crise e no seu autotratamento tem sido um<br />

recurso importante.<br />

“Vem o A., que é eu, que dirige os assuntos da civilização no mundo, sabe como é? Como<br />

o rei do mundo, né? O que que eu faço? Já que é me dado uma importância dessa, eu faço<br />

jejum, eu faço oração e conquisto alguns poderes ali. No jejum, sabe? Quando não tem<br />

mais nada, eu tô no jejum, penso a ‘sedi di shacina’. Ela vem livremente porque o<br />

organismo, né? Não, não... tá limpo, né, não não... Como estava em jejum, aí a frase pode<br />

adquirir forças novas, como se fosse um santo, sabe como é?” (Relato de A. em entrevista).<br />

Ele recorre à expressão para fazer uma ligação artificial, quando o recurso delirante,<br />

simbólico, falha em escrever o Real. Esta expressão encontra um ponto de amarração no<br />

teatro. Vejamos. No momento do desencadeamento, A. cursava teatro e ensaiava uma<br />

peça de Artaud. A força dessa experiência reverberou no nível de lalíngua, permitindo<br />

uma captura que, por homofonia, fez do Artaud [artô] ator, sustentando uma posição<br />

ancorada num nível elementar do gozo (e, portanto, capaz de outros desdobramentos e<br />

229


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

soluções).<br />

“Mas, como fui ator, Artaud fica importante para mim. O teatro é como se fosse a gênese, a<br />

criação, ali que consegui preencher as línguas vazias, o ‘sedi di shacina’. Quando cê grava<br />

com força no seu cérebro, essa lei vivifica uma emoção arquivada, fica viva” (Relato de A.<br />

em entrevista).<br />

Lalíngua vivifica o corpo de gozo, confere à linguagem sua matéria-prima. Mas da<br />

tentativa de escrever a letra, A. parece resvalar para o semblante, para o que faz<br />

miragem fálica com o ‘ator’. “Nada é mais distinto do vazio escavado pela escritura do<br />

que o semblante” (LACAN, 1971/2003, p. 24-25). Parece ser de outro lugar do discurso<br />

que o significante captura a letra no seu caso. É aí, talvez, que a solução de A. desliza<br />

vazia de significação para significação como semblante, sustentado pelas máximas que<br />

retira de seu Outro-Artaud.<br />

O falo, como corolário do Nome-do-Pai na década de 50 e como ex-sistência na década<br />

de 70, apresenta-se em seus escritos como “pau de plástico”, inconsistente. “SEDI DI<br />

SHACINA CUJO O APOIO SÓ PODE SER UM PAU DE PLÁSTICO, ASINALA O<br />

MARAVILHOSO MÉDICO QUE SALVA VIDAS.. DIS. PHA, PHITA, ES. ET,<br />

KISROM. EL. COMO POETA.” Não há o pai ou um pai da exceção que amarre os três<br />

registros. Há uma versão de pai a ser inventada. Será preciso fundar, em torno do “sedi<br />

di shacina”, uma nova ordem? A saída pelo semblante parece não se sustentar de sua<br />

consistência. A “sedi di shacina” se ampara na inconsistência de um “pau de plástico”.<br />

O significante fálico não opera sua função de fundar num fora-corpo, pelo significante,<br />

uma via de gozo. Ele não cria a condição do gozo fálico. O pênis real, dessa maneira,<br />

não adquire sua função simbólica, restando como pedaço de corpo.<br />

Aí podemos verificar significante e gozo disjuntos num corpo que sofre os efeitos dessa<br />

maneira singular de apresentação em lalíngua. Parece não haver uma letra que fixe uma<br />

forma de gozo, ou seja, que suporte o significante, que entrelace o gozo ao corpo. A<br />

letra enquanto traço sobre o qual repousa o significante, nesse caso, não se escreve<br />

como suplência. O esforço do sujeito vaga nos destroços simbólicos originários que<br />

aqui aparecem como pedaços de real que, não sendo contornados, fisgados, amarrados,<br />

retornam enquanto alucinação do verbo sobre o corpo.<br />

A articulação da frase com o teatro possui outra vertente. Em uma das entrevistas, ao<br />

citar Artaud, A. faz o que seria um ato falho e localiza o “sedi di shacina” no lugar da<br />

“criação espontânea” do teatro da crueldade, fazendo equivaler a criação de uma nova<br />

230


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

estética teatral em Artaud com a criação do gozo-sentido extraído dessa expressão. “O<br />

menor átomo de ‘sedi di shacina’ (risos) – criação espontânea que eu queria falar<br />

(risos) – é um mundo mais complexo e revelador do que qualquer metafísica. Destruir<br />

com aplicação e maldade onde se impede o livre exercício do pensamento” (Relato de<br />

A. em entrevista).<br />

A. explica que a expressão “sedi di shacina” deve ser usada livremente, fora de toda<br />

capacidade conhecida do pensamento. Segundo ele, a “sedi di shacina” é o instrumento<br />

que Artaud nunca conseguiu fabricar. Artaud assim diz: “há trinta anos que escrevo e<br />

ainda não encontrei o instrumento que nunca deixei de forjar”. A. o encontrou, é o<br />

“sedi di shacina”. Ele, A., cumpre para Artaud a mesma função que Philippe Lyon, o<br />

primeiro santo da Igreja Católica, segundo ele, cumpriu para Cristo: ser seu instrumento<br />

na missão de propagar os princípios e a fé católica. A. o faria em relação ao teatro da<br />

crueldade, materializando o instrumento impossível do gozo de Deus-Artaud. É, no<br />

final das contas, ele mesmo quem se oferece como objeto desse gozo impossível.<br />

Importante destacar aí a prevalência do semblante sobre o significante para tentar dar<br />

corpo à letra que não se escreve como nó. A. se oferece como instrumento de Artaud e<br />

seu teatro, alienando-se em seu texto, no qual é completamente absorvido. Talvez, por<br />

isso, sua escrita não faça letra como artifício, não funcione como suporte ao<br />

significante. É o significante real e impositivo advindo do campo do Outro que parece<br />

falar nele.<br />

“E a minha mensagem é o seguinte: eu conheço o camarada [Artaud]. Envia pra ele<br />

atenção, que ele realmente proporciona algo corpóreo a quem assiste o teatro do<br />

[inaudível]. Isso me faz me sentir muito bem porque um rei precisa de outro. Praticamente,<br />

se não fosse o teatro da crueldade, como é que existia a ‘sedi di shacina’? Não ia existir,<br />

né? E o cara que criou o teatro da crueldade tá lá, criando teatro da crueldade” (Relato de<br />

A. em entrevista).<br />

Essa alienação que o delírio veicula aparece também na invenção do “departamento<br />

executivo da vontade do pai”, um nível superior no qual se encontram os grandes<br />

homens, como Artaud, Van Gogh, Glauber Rocha, Philippe de Lyon e seu próprio pai,<br />

já falecido. A. se comunica com todos. Ele associa a “vontade executiva” à “sedi di<br />

shacina”, enquanto vontade do pai. É o máximo da criação espontânea, do milagre<br />

instantâneo do pai. Foi o “departamento executivo que criou a “sedi di shacina”. É a<br />

criação máxima do milagre do pai. Ela veio depois de crucificado Jesus, mas foi por<br />

isso que ele foi crucificado”.<br />

231


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Há uma versão do pai que a “sedi di shacina” ensaia escrever como reguladora de gozo<br />

num nó. Ela, porém, não parece encontrar um ponto de amarração estável. Ao mesmo<br />

tempo em que o “departamento executivo” teria forjado a expressão “sedi di shacina”,<br />

A. se diz autor dessa “criação espontânea”, como rei que é... Ele oscila entre posições,<br />

sem a certeza paranóica de um eu imaginário, narcisicamente investido. Por<br />

conseqüência, o gozo resvala para o corpo, superfície que não o contém pois não<br />

encontra seus pontos de limite para se fazer continente e buraco (zonas erógenas).<br />

“A ‘sedi di shacina’, por exemplo, a frase que revolucionou a vida, revolucionou, né? O<br />

verbo executivo da vontade do pai, né? O departamento executivo. [...] O executivo... É o<br />

Departamento da vontade do pai. Pai, Deus, né? Aí essa ‘sedi de shacina’. [...] Por<br />

exemplo, o Philippe Lyon era um objeto de reto do Departamento do... e o... Ele uma vez<br />

furou a mandioca sem me tocar, quer dizer... E tinha o verbo. E o máximo que eu pude<br />

fazer sobre o departamento executivo foi criar essa frase que é ‘sedi de shacina’. Quer<br />

dizer mata vaca, mata porco, mata franguinho pra comer. Quer dizer, isso tudo é a ‘sedi di<br />

shacina’ em ação. Então, isso é que é, a coisa pode se renovar através dessa frase, sabe<br />

como é que é?” (Relato de A. em entrevista).<br />

Pai e falo aparecem aqui disjuntos e negativizados em relação às suas funções quanto à<br />

castração e à nomeação também. Ao pai mítico, capaz de fustigar e abusar do próprio<br />

filho, A. interpõe o “sedi di shacina”; foi o máximo que ele pôde fazer em relação ao<br />

pai. Seria essa sua père-version?<br />

E. Gozo e corpo<br />

Seu corpo, na ausência da significação fálica, da extração que lhe conferiria uma<br />

unidade narcísica e simbólica, encontra-se à mercê do gozo do Outro.<br />

“Ele dizia que tava com uma dor no peito, uma dor no peito. Até levei ele, na ocasião, ao<br />

cardiologista e tinha nada. Aí diz o psiquiatra que é psicológico. Eu não sei. Mas ele sente<br />

uma dor, ele sente mesmo. Aí ele fala que Jesus tá fincando a cruz dentro do peito dele,<br />

quer dizer que é uma dor forte, né? Que seja psicológico, mas é uma dor. Jesus tá fincando<br />

a cruz nele, ali no peito dele, que ele não gosta do pai, que ele quer acabar com o pai, que é<br />

ele. Mas tem muito tempo que ele não faz isso” (Relato da mãe de A. em entrevista).<br />

O sobrenome paterno de A. é Cruz, A. Cruz. Sem uma significação orientada pelo<br />

apagamento do traço unário ou pela escrita da letra, enquanto condição para a<br />

identificação que funda o nome próprio, este aparece como pedaço real de nome,<br />

retornando como gozo do corpo atormentado. O que não faz nó, articulando real,<br />

simbólico e imaginário, distribuindo uma maneira de gozar, retorna como pedaço de<br />

carne molestada, como cruz que se afunda na carne do corpo. Ali onde sua articulação<br />

não se estabelece, nasce todo o sofrimento do corpo, potencializado pelo uso da droga.<br />

232


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

O teatro, por seu turno, auxilia na sustentação desse corpo não escrito. “O teatro é onde<br />

a gente se entrega com alegria, cultivando no corpo sua emoção. [...] Primeiro, a<br />

pessoa tem idéia que é a droga, o coração, espantosa explosão de peste, mas o teatro é<br />

que organiza. O cérebro é o pulmão é que são atingidos pela droga, né? O coração fica<br />

intenso, barulhento, e a pessoa nem se percebe, o corpo já ficou cheio de bulbões”. Os<br />

bulbões na terra equivalem a vulcões no corpo humano. Segundo ele, sua experiência<br />

após o desencadeamento foi a de um inferno sem volta, um mergulho na dor, à medida<br />

que foi se aprofundando, foi aumentando. Depois passou. Depois da intoxicação, do<br />

encantamento, não tinha mais vida orgânica, só psíquica.<br />

Ele relata uma crise muito intensa com seu ápice em 2003, período da ida ao CERSAM,<br />

na qual houve uma dor muito forte. Depois dela e depois do encontro com B., a<br />

funcionária, tudo ficou melhor. Ele realiza o que Artaud escreve no sentido de que é<br />

preciso viver a dor mais intensa para que se possa encontrar uma saída. Artaud realizou<br />

esse sofrimento junto aos índios Tutuguri, tomando peiote entre eles.<br />

“Um teatro verdadeiro ele transtorna o repouso dos sentidos, libera o inconsciente<br />

reprimido, sabe? Leva uma espécie de revolta virtual, proporciona a quem vem assistir e à<br />

comunidade que permite, proporciona alguma coisa, assim, uma atitude heróica e difícil.<br />

Sabe como é que é? E é preciso acabar com muita facilidade, né? A gente tem que fazer as<br />

coisas difíceis, coisa fácil demais não...” (Relato de A. em entrevista).<br />

O teatro dá corpo ao que aparece no real, sem representação, sem inscrição. A. parece<br />

substantivar o gozo também no ato da interpretação teatral, assim como Artaud o fazia<br />

no ato de criação.<br />

Mas foi o encontro com os olhos azuis da funcionária B. do serviço público no qual<br />

começou a se tratar em 2003, que operou nesse sofrimento do corpo um corte. A<br />

localização do objeto olhar nos olhos da funcionária favoreceu uma condensação do<br />

gozo fora do corpo, arrefecendo as dores que o tomavam. Ele deixa de fumar e usar<br />

drogas e pacifica a relação com o corpo. Uma localização do objeto fora do corpo<br />

parece ser o que opera nesta situação como apaziguamento. Parece-nos que, nesse<br />

encontro, A. conseguiu operar o que as tentativas com o teatro, a escrita e a pintura<br />

ajudaram a construir.<br />

F. A pintura<br />

A pintura surge como estratégia em torno de 1990. “Uma tela nunca fatigou ninguém,<br />

233


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

são as forças de um louco em repouso, não transtornado”, relata A. citando Artaud. Ele<br />

começa a pintar por estímulo da família e para presentear pessoas com suas telas. Com<br />

isso, ficaria conhecido e faria o “fenômeno” acontecer. Através de suas telas, ele<br />

estabeleceria uma forma de comunicação telepática com as pessoas, podendo conversar<br />

com elas mesmo em sua ausência. Instalado o quadro na casa dos outros, produziria<br />

felicidade para eles. Não é uma missão, como a de Gentileza, mas é um objetivo que ele<br />

estabelece a partir do “sedi di shacina”. “A nossa amizade, nós não nos conhecíamos,<br />

né, cara? Agora, olha o fenômeno. [...] Olha o fenômeno, o quadro que uniu a gente.<br />

[...] A arte é que faz isso, a arte apresenta novas coisas, novas amizades, né?” (Relato<br />

de A. em entrevista). O “fenômeno” parece incidir no ponto em que a relação com o<br />

Outro se mostra consistente por demais. A. parece precisar de um recurso de mediação<br />

que talvez faça para ele a função que a linguagem faz para o neurótico.<br />

Para ele, a pintura funciona também como uma espécie de canalizadora de energia, uma<br />

via de investimento e transformação pulsional. “Eu pintei os quadros até que as coisas<br />

foram melhorando, né? Porque aí a própria ‘sedi di shacina’, como não é esse nome de<br />

sangue, passou pro pincel e virou uma imagem, sabe como é?”. Como vimos, o que<br />

ganharia talvez uma solução pela passagem ao ato, é claramente orientado em um outro<br />

sentido aqui. A pintura volatiza o impulso ao ato, articulando a pulsão de morte a um<br />

contexto de criação ou à pulsão de vida. Parece-nos que o ato de pintar realiza, por si<br />

mesmo, esse amálgama pulsional, conferindo a A. uma estratégia de amarração do gozo<br />

disperso. “A vontade de, por exemplo, canalizar as energias úteis, de ajudar uma outra<br />

pessoa, de ajudar a mim mesmo em vez de ficar inerte lá. Quando você tá inerte, sua<br />

mente funciona de um jeito, agora quando você tá trabalhando, ela funciona bem<br />

melhor” (Relato de A. em entrevista).<br />

A pintura nos parece produzir seu efeito em dois níveis pelo menos. De um lado, o<br />

produto da criação pictórica, o quadro como objeto, se apresenta na dimensão de uma<br />

tentativa de inscrição imaginária na relação com os outrinhos, na qual, feito objeto do<br />

Outro, ele se apresenta no quadro como objeto ao outro. Ele também, nesse ato, faz um<br />

endereçamento, dirige sua criação na busca de alguma forma de reconhecimento no laço<br />

social. O ato de criação, por outro lado, estabelece uma saída num nível em que articula<br />

os registros. Ela parece tentar se escrever entre os registros real e simbólico numa prega<br />

através do imaginário. Todas as suas telas, é bom lembrar, representam figuras e<br />

234


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

enredos dos dez livros escritos na adolescência. Não nos parece que ele faça essa<br />

articulação somente no nível da linguagem, do simbólico, mas principalmente no nível<br />

de lalíngua. Há uma operação cujo resultado não parece ser alcançado pelo significante,<br />

senão a posteriori.<br />

G. A escrita e a letra que (não) se escreve<br />

A escrita também caminha acompanhando o percurso de seus Outros.<br />

“Por exemplo, eu sou um Van Gogh. Mas um Van Gogh da escrita não é tão importante<br />

quanto o da pintura. A minha escrita é uma escrita que transvalora a natureza, as<br />

montanhas, as pedras, as fúrias, as almas das pessoas. Tudo, então, de repente, foi uma<br />

mãozinha ali do Van Gogh, ali na minha escrita. Aí eu me considero um Van Gogh da<br />

escrita. Pode ser a escrita mais importante que exista a minha. Nunca foi publicada, quer<br />

dizer, o mesmo processo de Van Gogh, sabe como é que é?”. (Relato de A. em entrevista).<br />

Com a escrita, A. diz pretender fazer a pessoa despertar, sua escrita “traz mais proveito<br />

a quem lê do que a quem escreveu. Então, quer dizer, alcançou o objetivo, né?”. Ele<br />

começou a escrever contos fantásticos antes do desencadeamento, dez ao total, como já<br />

dissemos. E depois passa a tratar da “sedi di shacina” e suas conexões. Atribui a seus<br />

escritos poderes sobrenaturais. “Aquele meu livro chamado ‘Shanura Metamórfica’,<br />

que é o primeiro deles, tem dado às pessoas uma... um poder místico mesmo”. A escrita<br />

participa e testemunha o delírio, tal qual sua pintura.<br />

Essa intrínseca articulação entre escrita e pintura é manifesta neste exemplo. A. deu um<br />

quadro para seu psiquiatra e para a funcionária administrativa do CERSAM, escrevendo<br />

para eles uma carta: “E gerou fenômeno. Eu olhei pra essa palavra escrita e é como se<br />

eu visse a celulose, a árvore, a formação de um novo papel pra todo mundo, né? Que<br />

gosta do amor, das coisas boas, delicadas, sutil” (Relato de A. em entrevista). Sua obra<br />

cria um novo espaço vital, na verdade não-relacional, no qual ele se inscreve. Parece<br />

fundar um laço que não opera com o outro, mas consigo mesmo auto-eroticamente<br />

através da obra.<br />

Ao mesmo tempo que os objetos criados com sua arte parecem operar como<br />

condensadores de gozo, eles obturam a via de acesso ao Outro. Não funcionam como<br />

artifício, ele parece não constituir com eles um “savoir-y-faire”. A. se satisfaz numa<br />

espécie de laço autista que inclui o parceiro, à medida que o exclui. Uma intervenção<br />

precisa de sua analista provoca um deslocamento desse uso da criação. Ela se recusa a<br />

‘conversar’ com ele através de seus quadros, convidando-o a falar com ela sempre<br />

235


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

pessoalmente. Aceita o quadro, mas se recusa a conversar telepaticamente com A. E, ao<br />

surpreendê-lo, funda uma nova possibilidade de enlaçamento pela palavra. É sobre essa<br />

escrita que estamos a tratar...<br />

Artaud é seu complemento na escrita factual, a que acontece sobre o papel. Efetiva uma<br />

relação completa, esférica, que não deixa lugar para o furo ou para a torção do trabalho<br />

inconsciente. “Não tinha como apoiar o gênio escrevendo, eu não escrevia como ele<br />

[Artaud], com essa crueldade. Escrevendo me sinto como ele, e ele se sente como eu”.<br />

Artaud é um apoio para suas idéias. “Poxa, não encontro uma palavra para dizer o que<br />

penso, aí na palavra dele você... mágica! Você encontra mais revelação do que<br />

pensou!”. Não é à toa que a “sedi di shacina” realiza a criação espontânea de Artaud e<br />

socorre A.. “Então, quer dizer, sempre que houver algum problema, você falou ‘sedi di<br />

shacina’ e a ‘sedi di shacina’, então, venceu aquilo e te mostrou alguma coisa melhor e<br />

te curou, e te melhorou, é uma coisa assim sabe?” (Relato de A. em entrevista). Como<br />

se vê, Artaud funciona como complemento especular, sendo incluído nas criações de A..<br />

A “sedi di shacina” parece poder se tornar um articulador suplementar de uma possível<br />

resposta ao real que retorna desamarrado para A.. A expressão, que ele chama de frase –<br />

ainda que sintagmática –, confere-lhe um lugar.<br />

“Como eu dirijo os assuntos, eu sou o rei do mundo e, como rei do mundo, eu já criei de<br />

início essa frase, quer dizer, é uma frase de rei mesmo. Mas, pô, é um fenômeno, sedi di<br />

shacina, como é que pode? Como é que pode? Uma porção de rei, o que aconteceu pra<br />

existir isso? Quer dizer, é como um reinado mesmo”. (Relato de A. em entrevista).<br />

Seu nome, escolhido pelo pai, será por ele adotado somente a posteriori. A. realiza todo<br />

um trabalho de nomeação em torno de seu nome próprio. O início desse trabalho parece<br />

se dar com o momento do desencadeamento. Aí ele inaugura um esboço de nomeação,<br />

de père-version: A., o rei persa, segundo seu pai que lhe cunhou o nome, aparece como<br />

“rei do mundo, anjo e protetor”. A. introduz na versão paterna elementos antes ausentes.<br />

Com isso, ele começa a forjar uma versão da versão do pai sobre seu nome.<br />

“Só que em vez de rei persa, eu sou flagelo de Deus. Eu sou um amigo de Jesus. Essa é a<br />

diferença. [...] Aquele processo de droga e motoqueiro tem tudo a ver com flagelo, né? E<br />

agora como larguei aquele mundo, né? É como se fosse a volta do filho pródigo. Como<br />

várias pessoas têm essa situação de usar drogas e parar e reingressar na vida, né?” (Relato<br />

de A. em entrevista).<br />

A idéia do flagelo, associada às mortes violentas do rei persa, ganha uma versão<br />

pacifista e pacificadora. Ele desfaz a significação corrente do conhecido rei persa, que<br />

236


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

lhe dá o nome, e recria em seu próprio nome o reinado do mundo. E, associando o<br />

flagelo de Deus ao seu antigo estilo de vida, às drogas e às motos, ele rompe com o<br />

nome forjado pelo pai, tentando recriar no delírio, na escrita e na pintura, um novo<br />

enodamento que o enlaçaria sob a égide da “sedi di shacina”. Será, porém, que essa<br />

escrita se efetiva?<br />

A. parece deslizar entre os pontos que lhe servem de estofo (“sedi di shacina”, Zé<br />

Bicheira, Artaud, Van Gogh, Philippe de Lyon, cavaleiros do apocalipse, entre outros)<br />

sem fazer deles rasura, sulco. É, porém, diferente do uso do delírio que o Profeta<br />

Gentileza fez. Naquele caso, os significantes delirantes enviaram-no a uma missão que<br />

ele traçou com uma ortografia nova. Foi nesse ponto de rompimento com o Outro que<br />

ele ganhou autonomia e enodou os três registros, constituindo um novo nome<br />

correspondente ao ‘nascimento’ de um novo sujeito.<br />

A diferença diagnóstica aqui tem seu peso e evidencia entre a paranóia (do Profeta) e a<br />

esquizofrenia (de A.), uma distância que vem marcada por uma estrutura e um uso da<br />

linguagem constituídos de maneira diferenciada. Poderíamos, comparando os dois<br />

casos, pensar que os recursos de A. são mais frágeis quanto à estabilização, ainda que<br />

tão complexos quanto os do Profeta. É nesse ponto que a singularidade do caso se<br />

destaca, evidenciando, como Lacan nos lembra, que o sentido do sintoma é único.<br />

Mesmo se se tratasse de dois casos de paranóia ou de dois casos de esquizofrenia, os<br />

recursos do sujeito e sua utilização destacariam sempre o singular e o intransmissível de<br />

cada caso.<br />

A complexidade com que A. dispõe de suas estratégias é evidentemente um esforço no<br />

sentido da estabilização. Todo esse esforço, entretanto, tem caminhado sem um ponto<br />

de amarração que possa estancar o gozo que jorra por seu corpo, ainda que ele tente<br />

forjar ali um esteio. O Profeta, cuja estabilização se assenta em duas palavras e em sua<br />

caligrafia que faz escrita de nó, parece conseguir, dada a unicidade da paranóia,<br />

construir um ponto de partida e um desfecho para o enlaçamento de seu nó.<br />

Para além de um prognóstico mais favorável à estabilização na paranóia, preferimos<br />

apostar naquilo que, seja numa neurose, seja numa psicose, se oferece como estratégia<br />

para solução. Há um possível de tratar e um impossível de contornar em qualquer que<br />

seja a estrutura, o tipo clínico ou o sujeito. Com isso, o caminho para a estabilização na<br />

psicose é sempre pertinente ao uso que o sujeito pode fazer dos recursos subjetivos que<br />

237


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

disponibiliza. É nesse sentido que a lógica dos nós nos auxilia. Há uma certa<br />

flexibilidade no manuseio dos nós que evidencia uma multiplicidade de formas de<br />

estabilização. Se a estrutura não deixa de contar e de apontar para os elementos de<br />

impossibilidade do discurso, a característica dos nós nos lembra o que desse impossível<br />

que resta pode servir para o savoir-y-faire do sujeito no enlaçamento dos três registros.<br />

É aí que no caso de A. nos parece ser importante a expressão “sedi di shacina”. É dessa<br />

invenção que ele pode extrair um guia, um fio que faça laço.<br />

4.3.3 Uma leitura borromeana do caso<br />

Podemos hipotetizar que os ensaios de se fazer obra em A. apontam para uma<br />

transmissão real para o Outro de uma inscrição atual e evanescente de si mesmo. Por<br />

isso, ele refaz o trabalho de escrita a todo tempo. Parece-nos que ele, no Real, atualiza a<br />

inscrição de uma nomeação que não se amarra borromeanamente. Como essa inscrição<br />

não faz sulco, nem rasura, o gozo não estanca, não se fixa numa letra, num ponto de<br />

amarração para além da matéria significante. Daí retornar sobre o corpo. Se não há furo,<br />

se o imaginário não faz reta infinita, enodando os outros registros, resta sobre o corpo a<br />

incidência do gozo. Daí também o deslize significante incessante que não faz cade-nó.<br />

Em seus intervalos, as palavras alucinadas e os neologismos se instalam, ensaiando a<br />

escrita de um sujeito. Entretanto, é pelo semblante oferecido pela citação do Outro que<br />

ele fala. O enxame significante faz barulho, mas não faz furo, sulco, escrita. Por isso sua<br />

criação não cessa de se escrever. Ele não faz ponto contingente de gozo. Ele não se<br />

escreve nó. Seria esse o erro do nó em A.?<br />

Figura 37 – Erro do nó de A.?<br />

Difícil afirmar com certeza. As indicações que A. nos oferece são marcadas por ensaios<br />

topológicos que seguem vias diferentes a cada tentativa, como vimos na discussão<br />

teórico-clínica do caso. O a posteriori aqui crava seu valor. Sobre a suplência em<br />

238


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Gentileza, já realizada, há o que dizer. Sobre o trabalho que ainda avança, como o de A.,<br />

há o que pensar...<br />

Entretanto, quando Lacan, no Seminário RSI (1974-75, aula de 17-12-1974), localiza a<br />

vida no furo do Real e o corpo no furo do Imaginário, fortalece nossa hipótese para o<br />

caso, na medida em que é no corpo que os efeitos de retorno do Real se manifestam<br />

para A.. Do lado da morte se encontraria a função do simbólico, capaz de fazer frente e<br />

limite, ponto de parada, ao enlaçamento entre Real e Imaginário. Mas ele resta livre,<br />

deslocando-se a cada tentativa de A. de grampeá-lo. Quando Lacan, no Seminário 3<br />

(1955-56/1992), nos fala da cascata de remanejamentos imaginários, decorrente do<br />

desastre no simbólico, generaliza uma situação que, a cada caso, será vivida de uma<br />

maneira singular.<br />

Em A., ela se apresenta como desenlaçamento dessa dimensão que faria a mortificação,<br />

pela linguagem, do Real indomado e desdobrado nos efeitos imaginários. Faria letra no<br />

encontro com o Real. Sua criação parece situar-se entre Imaginário e Real. Ele ainda se<br />

acha objetalizado no gozo do Outro. Seria um Outro gozo? Como ele poderia amarrá-lo<br />

e torná-lo possível? Borromeanamente poderíamos pensar na hipótese topológica de um<br />

gozo Outro, impossível, que não é costurado pelo simbólico de forma a fazer nó entre os<br />

três registros. Mas a solução borromeana não é regra para todos, muito pelo contrário. A<br />

topologia dos nós nos ensina, exatamente, a abrir mão do ideal fálico e paterno,<br />

normativo, universalizante, para pensar, a cada caso, a posição do sujeito e seu estilo de<br />

resposta.<br />

Fato é que, em A., a costura que não acontece entre os três registros deixa o Real sem<br />

uma amarração, uma costura, uma franja que avance sobre ele a partir do campo do<br />

Simbólico, criando a condição para a sustentação significante pela materialidade da<br />

letra. Daí ele precisar recorrer ao semblante, ao que o Imaginário lhe fornece de estofo.<br />

Como ele não escreve uma letra, não faz litoral. Nesse ponto de escape, o Real parece<br />

retornar incessantemente nos fenômenos alucinatórios que lhe invadem o corpo.<br />

4.4 Os Dois Casos, Nossa Hipótese e Sua Escrita<br />

Se A. faz um mix em seu texto com as citações de seu Outro, encarnado nas figuras que<br />

admira, ele o faz para tentar tecer minimamente uma referência de si mesmo através<br />

delas. Assim como Bispo se tecia nas obras que bordava e criava; assim como Joyce se<br />

239


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

escrevia em sua obra, nominando-se; A. parece tentar, porém sem sucesso, se escrever.<br />

Por que ele não tem sucesso nessa empreitada? Parece-nos que ele não faz de si letra,<br />

permanecendo apoiado na consistência que o Outro lhe fornece. Assim como se deixa<br />

conduzir por sua mãe no cotidiano, assim também segue apoiado no Outro para<br />

trabalhar sua estabilização.<br />

Não deixa de ser uma maneira de reinventar a linguagem, colando citações, fazendo<br />

uma bricolagem. Mas é como se ele se escrevesse com o texto do Outro de uma forma<br />

alienada a este. Não avança na invenção de uma suplência – que a “sedi di shacina”<br />

talvez poderia forjar –, não faz escrita de gozo. A loucura se apresenta nele como<br />

ausência de obra (FOUCAULT, 1964/1994), no sentido de fazer-se preenchido, não<br />

pelo vazio inaugural da criação ex nihilo, mas pelo texto do Outro que ocupa seu lugar<br />

de agente, de sujeito. Sua escrita, entretanto, garante um escoadouro de gozo, ainda que<br />

não amasse com a letra bordas para fazer desse escoadouro um espaço continente de<br />

gozo.<br />

Gentileza, por seu turno, despe-se e forja-se na caligrafia e na simbologia que inventa,<br />

um novo homem. Nasce sujeito da experiência de ser despojado de seu próprio nome.<br />

Tece com letra singular o bordado de seu texto. Rasura seu texto até chegar a um ponto<br />

inaugural. Nele, faz sulco, escreve letra no litoral urbano que o invade com sua<br />

imoralidade. Cria continência de gozo e se escreve nó, articulando os três registros<br />

através da letra forjada para seu uso. E endereça-se ao Outro, já dele descolado.<br />

Dessa maneira, vemos a nova versão de nossa hipótese avançar sobre o que, da letra<br />

fazendo escrita de nó, favorece a suplência como modalidade de estabilização na<br />

psicose. Neste caso, vemos o sujeito ensaiar outras estratégias de estabilização, que não<br />

somente a suplência, vacilando entre uma modalidade e outra, mas sem necessariamente<br />

se escrever numa obra. Joyce se escreveu; Bispo escreveu bordando uma obra para se<br />

referenciar ao Outro; Profeta Gentileza inventou uma escrita, cuja caligrafia fazia letra<br />

para advertir o Outro. E A.? A. ensaia escrever-se um nome que o afaste dos desígnios<br />

do pai, ensaia fazer uma versão do pai para dela extrair-se sujeito, ainda que permaneça<br />

encarnado no texto do Outro do qual não extrai letra-gozo...<br />

Pensar a letra, portanto, implica de fato em se pensar numa forma de escrita do nó. Ela<br />

pode se realizar através do papel, do texto, dos sons como na literatura joyceana; através<br />

das linhas e agulhas que bordavam, na arte, letras (“eu preciso dessas palavras.<br />

240


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

escrita”), como fazia Bispo; ou mesmo através da invenção de uma caligrafia original<br />

pintada nos muros da cidade e que funda intervalos, inventando signos e letras para<br />

ocupá-los, permitindo que o sujeito emerja, como com o Profeta Gentileza.<br />

Ao contrário do que concebíamos no início deste trabalho, não é essa superfície<br />

material, papel, caneta, tinta ou agulha que funciona como elemento que favorece a<br />

estabilização, mas antes o que delas pode se fazer artifício, o que delas o sujeito pode<br />

usar a seu favor, como savoir-y-faire com o gozo. “O sujeito é causado por um objeto<br />

que só é notável por uma escritura, e é assim que um passo é dado na teoria. O<br />

irredutível disto, que não é efeito da linguagem, [...] é a paixão do corpo” (LACAN,<br />

1974-75, aula de 21-01-1975).<br />

241


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

CONCLUSÃO<br />

242


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Apontado nos casos clínicos o que da criação se faz escrita de nó, podemos concluir que<br />

a estabilização psicótica, quando faz suplência, se articula no nível do artifício que o<br />

sujeito inventa para fazer dessa criação letra de gozo.<br />

Descartes nos ensina a nos exercitarmos nas coisas mais simples – como no trabalho<br />

dos artesãos que fazem tapetes, no das mulheres que bordam ou fazem renda e nas<br />

combinações de números pela aritmética –, porém com método, até chegar à sua<br />

verdade íntima. Assim, podemos deduzir de princípios evidentes várias proposições que<br />

parecem difíceis e complicadas.<br />

Essa é a indicação a que Lacan se refere ao abrir seu seminário topológio, o Seminário<br />

RSI, no qual nos introduz efetivamente na topologia dos nós, especialmente na<br />

topologia borromeana. Para ele, não foi por acaso que Descartes aproximou a<br />

aritmética, os tapetes, as tranças e os nós, ainda que ele não tenha se ocupado desses<br />

últimos. Ele toma como orientação essa relação cartesiana para dela extrair suas<br />

conseqüências clínicas.<br />

As tranças do nó borromeu implicam na escrita característica dos três registros para o<br />

falasser. A especificidade do falasser reside no fato de que os registros entre si estão<br />

soltos dois a dois, sendo atados de uma maneira borromeana pelo terceiro. A não-<br />

relação entre cada dois registros mostra a impossibilidade da relação sexual, exigindo a<br />

presença de um terceiro elemento para atá-los. Esse é o efeito real do nó: os registros se<br />

encontram sobrepostos dois a dois, sendo enodados por um terceiro de tal forma que,<br />

rompendo-se um deles, os outros dois registros quedam desatados. É assim que o nó faz<br />

existir o furo.<br />

Foi essa característica que levou Lacan a isolar em um quarto elemento, por ele<br />

denominado sinthoma, o efeito real do nó. Com isso, evidencia a impossibilidade<br />

original do ser falante de dar conta do real – foraclusão generalizada –, havendo sempre<br />

a necessidade de um quarto elemento para suplenciar a relação originalmente faltante do<br />

sujeito com o Outro. Não existe Outro do Outro que garanta a escrita do sujeito como<br />

ser de linguagem. A linguagem aparece, então, como ornamento, como elucubração do<br />

sujeito sobre o campo de gozo que a língua materna (lalíngua) contém.<br />

A entrada da linguagem no real do corpo é sempre traumática e será escrita pela letra,<br />

enquanto litoral entre real e simbólico. É sobre esse suporte que se apóia o significante<br />

243


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

para tentar debilmente dar conta do real. O significante sempre falha nesse intento e, por<br />

conseqüência lógica, o Nome-do-Pai, como significante que garantiria uma função<br />

estabilizadora central para o falasser, também rateia. Lacan, então, pluraliza os nomes<br />

do pai, enquanto função de nomeação, discutindo as diferentes possibilidades de<br />

suplência a essa falha do nó que eles poderiam reparar. A suplência ganha, então, a<br />

coloração de uma invenção subjetiva para dar conta dessa falha que é estrutural para<br />

todos, deslocando do campo das psicoses a idéia de um déficit originário a ser suprido<br />

para a exigência do falasser em construir uma resposta à falha do Outro.<br />

A pluralização dos nomes do pai aponta para a escrita possível de um suplemento a essa<br />

falha – escrita do nó como pontua com exatidão o texto lacaniano. Assim, as três formas<br />

de nomes do pai, as que nomeiam, são o imaginário, o simbólico e o real. Nesses nomes<br />

é que está o nó. O simbólico pode, então, ser substituído pelo binário<br />

(simbólico+sintoma) que o desdobra, numa amarração ou numa nomeação, operada por<br />

um reforço desse registro. Lacan tratará esses dois termos por (inconsciente+sinthoma).<br />

Esse binário se enoda borromeanamente aos outros dois registros, real e imaginário,<br />

conformando a característica essencial do ser falante.<br />

Vemos, portanto, que o quarto elemento aqui corresponde ao que suplencia a falência<br />

do Outro. À nomeação do simbólico como sintoma, acrescenta-se a nomeação do real<br />

como angústia e a do imaginário como inibição. Não foi à toa que Lacan introduziu o<br />

desenho desse quarto termo, a partir da localização do Édipo como o que amarra a<br />

realidade psíquica freudiana, como nomeação do real pela angústia da castração.<br />

Nomeação, escrita ou amarração completamente diferente dessas é a que Lacan extrai<br />

do texto de Joyce. Nele Lacan identifica um erro do nó no qual, ao invés de superpostos,<br />

os registros do real e do simbólico apresentariam um “erro” ao se entrelaçarem, restando<br />

somente o imaginário solto. Neste caso a escrita joyceana forja um ego-sinthoma que<br />

repara o erro como suplência, através de um artifício suplementar, sua obra, que<br />

prescinde do pai, foracluído de fato. O Outro do Outro real é a idéia que Lacan faz do<br />

artifício enquanto um fazer que escapa, que transborda o gozo que se pode ter dele.<br />

Joyce se escreve em sua obra com a letra a. Modifica o estatuto da escrita e faz dela<br />

ego, não em sua dimensão narcísica, mas como escrita que porta, força o objeto a. É<br />

como desabonado, não tributário do inconsciente, que ele extrai um gozo disjunto do<br />

Outro com sua obra.<br />

244


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Com essa leitura topológica de Joyce, Lacan inaugura uma possibilidade até então<br />

inédita, a de se pensar as soluções encontradas pelo falasser diferentes das soluções<br />

borromeanas. Avançaríamos para além do corte operado pela presença (neurose ou<br />

perversão) ou foraclusão (psicose) da Bejahung fundamental para um território das<br />

soluções que vão da ausência de suplência com o desanodamento do nó, passam por<br />

enodamentos não borromeanos ou borromeanos, até chegar à continuidade entre os três<br />

registros. Passa-se a contar, no campo das psicoses, com uma gama de soluções<br />

graduadas.<br />

Nesse ponto, nossa hipótese original pôde ser, então, rearticulada. A questão acerca da<br />

incidência da criação artística ou artesanal no trabalho de estabilização psicótica recai<br />

sobre a possibilidade dela provocar um enodamento, uma escrita de nó que enlace os<br />

três registros. Está em questão menos a criação concreta em si mesma do que o artifício<br />

que o sujeito pode inventar a partir dela. Nesse sentido, na clínica das psicoses,<br />

aprendemos que o estilo sugerido pelo sujeito em tratamento é o elemento indicativo<br />

para se pensar as vias de sua estratégia de estabilização. Oferecer aleatoriamente<br />

variados recursos é diferente de seguir as pistas do erro do nó e pensar, então, o ponto a<br />

partir do qual pode se escrever uma solução.<br />

Os dois casos estudados evidenciaram essa diferença na medida em que, apesar de os<br />

dois apresentarem farta criação e escrita, somente a presença destas não garantiu uma<br />

via de construção de uma forma de estabilização. Foi preciso que Gentileza fizesse de<br />

sua obra um artifício para lidar com o Outro e com o gozo através da escrita da letra em<br />

sua caligrafia, para que acedesse a uma suplência. Quanto à A., apesar de sua farta<br />

criação pictórica e escrita, permanece à mercê do Outro, imerso num gozo invasivo que<br />

recai sobre seu corpo, circunscrito apenas contingencialmente pelo encontro com o<br />

objeto olhar. São o artifício criado e seu uso, savoir-y-faire, que podem conduzir a uma<br />

solução no campo das psicoses.<br />

Sabemos, porém, que a psicanálise, ao passar por um certo número de enunciados, não<br />

leva necessariamente todos à via de escrever. Se, porém, tomamos a escrita como escrita<br />

do nó, ela sempre vai contar, pois ao nível da caligrafia do sujeito, é esta letra que faz o<br />

em-jogo da aposta, amarrando e cifrando o gozo. É o que a psicose aqui pode ensinar à<br />

psicanálise.<br />

245


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

ALBERTI, S. e ELIA, L. (org.). (2000) Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de<br />

Janeiro, Rios Ambiciosos.<br />

ALVARENGA, E. (1999) “O trabalho criativo e seus efeitos na clínica da psicose”, in<br />

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256


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXOS<br />

257


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXO I - FOTOS DE ESCULTURAS DO USUÁRIO DE UM CENTRO DE CONVIVÊNCIA<br />

Figura 38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)<br />

258


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)<br />

259


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXO II – RESUMO DA CRONOLOGIA DE VIDA DE GENTILEZA<br />

� 11 de Abril de 1917 – Nascimento de José Datrino (Cafelândia – SP). Era o segundo<br />

de 11 filhos.<br />

� ----- Trabalhava puxando carroça pra vender lenha nas cidades próximas e também<br />

na terra e amansando burros. (Mais tarde diz que se tronou: “Amansador dos burros<br />

homens da cidade, que não tinha [sic] esclarecimento”). Viveu até 20 anos em<br />

Cafelândia.<br />

� 1929 – Com 12 anos, prenunciava uma missão – “ter uma família, ter filhos,<br />

construir bens, mas que um dia teria que deixar tudo”. Seus pais acharam que<br />

poderia estar louco e o levou a curadores espíritas.<br />

� 1937 – Deixa Mirandopólis sem avisar a família, rumo a São Paulo, depois ao Rio<br />

de Janeiro. Para a família, teria sido levado por um guia espiritual. Ficou quatro<br />

anos sem dar notícia, até que pediu à mãe para lhe mandar seus documentos.<br />

� 1941 – Casa e tem cinco filhos: três “femininos” e dois “masculinos”. Começou a<br />

fazer fretes até estabelecer-se com uma empresa de três caminhões para transportar<br />

cargas. Tinha também três terrenos e uma casa.<br />

� ----- Segundo sua filha, após a visita de alguém que queria se tornar seu sócio,<br />

sucedeu o episódio da lama.<br />

� 1961 – 17/12 – Incêndio no circo. 23/12 – Recebe aviso astral de Deus: “deixar<br />

todos os bens e vir como São José, representar Jesus de Nazaré. 24/12 – Deixa tudo<br />

e vai pregar em Niterói, distribuir vinho para ensinar as palavras “por gentileza” e<br />

“agradecido” (já então falando como Jozzé Agradecido ou Gentileza). Foi levado<br />

pela polícia e se instalou no lugar do circo incendiado, transformando-o em jardim<br />

circular e denominando-o “Paraíso do Gentileza”, onde permaneceu por quatro<br />

anos.<br />

� Meados dos anos 60 – Sai do local do circo e começa a deslocar-se entre Rio e<br />

Niterói, pregando. Adquire reconhecimento popular, cria provérbios e máximas.<br />

Coloca “PC” (Pai Criador) no estandarte. Teve que explicar às autoridades que não<br />

se tratava de Partido Comunista.<br />

� Fim dos anos 60 – Inicia viagens que o tornarão conhecido no interior do país.<br />

Retorna a Mirandopólis como um Profeta.<br />

� ----- Realiza grandes viagens pelo Brasil num trajeto circular pelo país.<br />

� 1970 – Em Aquidauna, atual Mato Grosso do Sul, sofre sua primeira grande<br />

adversidade: é preso por uma noite, tem o cabelo cortado e seu estandarte quebrado.<br />

Retorna para o Rio e passa a utilizar a cartola do Tio Sam (“profeta tropicalista –<br />

260


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Chacrinha da Calçada”). Após o incidente em Aquidauna, passa a recolher<br />

depoimentos e declarações de figuras públicas e autoridades dos lugares pelos quais<br />

passava, como “carta de referência”.<br />

� Meados de 70 – Com o cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade.<br />

Vai a Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes,<br />

que, como Jesus, sofreu por seu povo. Lá em Ouro Preto, os estudantes sugerem o<br />

uso da bata.<br />

� Década de 80 – Assume a bata, a bandeira e os cataventos. Entre Rodoviária Novo<br />

Rio e Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km, Gentileza realiza seus 56<br />

escritos murais sobre pilastras do Viaduto do Gasômetro.<br />

� Início dos anos 90 – Finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, se postava<br />

geralmente ao lado da pilastra 1, sentado numa cadeira, acenando para todos como<br />

se estivesse na varanda de sua casa.<br />

� 1992 – ECO 92 – Rio de Janeiro – Conclama as nações e os presidentes ao uso da<br />

Gentileza.<br />

� 1993 em diante – Tem a saúde fragilizada após uma queda, que lhe ocasiona fratura<br />

na perna. Acometido também por problemas circulatórios, sente cada vez mais<br />

dificuldade em andar.<br />

� Início de 1996 – Retorna a Mirandopólis, São Paulo.<br />

� 29 de Março de 96 – Morte do Profeta Gentileza.<br />

� 20 de Janeiro de 1999 – É oficializado o “Projeto Rio com Gentileza”, que recupera<br />

a Pilastra de n° 1.<br />

� Outubro de 1999 – Semana do Gentileza.<br />

� 06 de Maio de 2000 – Depois de 9 meses de trabalhos exaustivos de restaurações,<br />

são entregues, em cerimônia oficial com a presença de autoridades, artistas e público<br />

em geral, as obras de Gentileza.<br />

� Cineastas, poetas, músicos e videomakers trabalham com a história e a obra de<br />

Gentileza. Gonzaguinha o homenageia no CD “Cavaleiro Solitário”.<br />

� 2000 – UFF encaminha, do Departamento Geral do Patrimônio para o Conselho<br />

Municipal de Patrimônio Cultural do Município do Rio de Janeiro, pedido de<br />

tombamento de toda a obra gráfica de Gentileza no Viaduto do Caju.<br />

� Junho de 2000 – Praça Profeta Gentileza é oficializada em frente à Rodoviária Novo<br />

Rio.<br />

� Novembro de 2000 - Após estudos e análises dos órgãos competentes, a obra é<br />

tombada.<br />

� É conferido o “Prêmio Urbanidade 2000” ao “Projeto Rio com Gentileza”.<br />

261


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

262


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXO III – MÚSICA DE MARISA MONTE SOBRE GENTILEZA<br />

GENTILEZA<br />

(Marisa Monte, 2000)<br />

Apagaram tudo<br />

Pintaram tudo de cinza<br />

A palavra no muro<br />

Ficou coberta de tinta<br />

Nós que passamos<br />

Apressados<br />

Pelas ruas da cidade<br />

Merecemos ler as letras<br />

E as palavras de Gentileza<br />

Por isso eu pergunto<br />

A vocês no mundo<br />

Se é mais inteligente<br />

O livro ou a sabedoria<br />

O mundo é uma escola<br />

A vida é um circo<br />

Amor, palavra que liberta<br />

Já dizia o Profeta.<br />

263


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXO IV - FOTOS DO PROFETA GENTILEZA<br />

264


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 41 – Pintura 01 de A.<br />

ANEXO V – PINTURAS DE A.<br />

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Figura 42 – Pintura 02 de A.<br />

269


A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

ANEXO VI – CLÍNICA BORROMEANA<br />

A título de sistematização, propomos o quadro abaixo que reúne as principais dimensões da clínica<br />

borromeana, discutidas ao longo deste trabalho. Ela se sobrepõe à clínica estruturalista, sendo mais um<br />

desdobramento do que uma oposição àquela.<br />

PRIMEIRA SEGUNDA<br />

Clínica estruturalista. Clínica borromeana.<br />

Sua essência é a distinção, a oposição, a<br />

diferença.<br />

Sua essência é que pode haver ou não<br />

enodamento e, quando há, ele pode ser ou não<br />

borromeano.<br />

Sua modalidade é a da oposição. Há diferenciações, mas não oposições no sentido<br />

estrutural de um sim ou um não.<br />

A oposição, apesar de tripartite (neurose,<br />

psicose, perversão), se funda numa bipartição:<br />

Bejahung (neurose e perversão) e foraclusão<br />

(psicose).<br />

Generalização do conceito de foraclusão.<br />

NP equivalente ao significante que opera a NP equivalente ao sinthoma, disjunta a função<br />

metáfora paterna.<br />

paterna da função de nomeação.<br />

Em relação ao pai, trata-se da aceitação A generalização do conceito de foraclusão<br />

(neurose) ou rejeição (psicose) do sigte do NP. implica no NP pluralizado. Ele é substituído pela<br />

idéia de ponto de capitonné (ponto de basta,<br />

ponto de amarração) que é particularizado.<br />

Clínica descontinuísta, categorial e que implica Clínica elástica, gradual e que não implica numa<br />

numa classificação.<br />

classificação (para as psicoses).<br />

Suplência como o que substitui a função do sigte Suplência como suplemento, invenção, referida<br />

do NP ausente na metáfora paterna. Trata-se de ao quarto termo do nó, onde e a partir do modo<br />

uma substituição significante primordial. como a foraclusão se escreve.<br />

Aqui a suplência se realiza em relação ao NP, à Aqui suplência sempre ocorre na medida em que<br />

metáfora paterna (ineficaz), como na fobia ou na falta o significante do sexual, da mulher para<br />

psicose.<br />

todos (Σ(%))<br />

1) Pluralização dos NP;<br />

2) Generalização do conceito de foraclusão;<br />

3) Equivalência entre as funções do NP e do sinthoma.<br />

Nesta clínica, trata-se de verificar os modos distintos em que se enodam os diferentes registros.<br />

Há casos em que esse ponto de capiton está dado pela presença do NP e, portanto, pela operação<br />

da metáfora paterna (neurose); e há casos em que o capitoneado se dá através de outro<br />

elemento; e casos em que não se dá. Há, pois, casos de enodamento tradicional (NP na Metáfora<br />

Paterna) num extremo, e outros em que não há enodamento, no outro extremo. Entre eles, reside<br />

uma gama de possibilidades intermediárias. Daí preferir-se falar em clínica gradualista e não<br />

descontinuísta, como evidenciou o esquema de Skriabine (2006).<br />

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