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Cultura Material e Patrimônio da Ciência e Tecnologia - Museu de ...

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CULTURA MATERIAL E PATRIMÔNIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIASUMÁRIOAPRESENTAÇÃO...............................................................................................................................................01<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio CientíficoPedro Paulo Funari e Aline Vieira <strong>de</strong> Carvalho....................................................................................................03Estudos <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Coleções Museológicas: Avanços Retrocessos e DesafiosMaria Cristina Oliveira Bruno...............................................................................................................................14<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> História: Formação <strong>de</strong> Coleções, Memória e ExclusãoCecília helena <strong>de</strong> Salles Oliveira...........................................................................................................................26Arqueologia, <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio. Sambaquis e CachimbosMaria Dulce Gaspar...............................................................................................................................................39Patrimônio <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> Técnica nas Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s Portuguesas: Breve Panorama no Contexto EuropeuMarta C. Lourenço................................................................................................................................................53Uma Aproximación al Patrimônio Cientifico em EspanaPedro Ruiz-Castell.................................................................................................................................................64<strong>Tecnologia</strong> no Brasil: Objetos <strong>de</strong> C&TMarcus Granato.....................................................................................................................................................78Arquivos <strong>de</strong> Laboratório: o Cientista e a Preservação <strong>de</strong> DocumentosMaria Celina Soares <strong>de</strong> Mello e Silva.................................................................................................................104Panorama Sobre el Patrimônio <strong>de</strong> los Observatórios <strong>da</strong> ArgentinaSixto Ramón Gimenez Benítez...........................................................................................................................120Objetos, Coleções e Biografia: A História do Laboratório <strong>de</strong> Química do Imperial Observatório do Rio<strong>de</strong> JaneiroJanaína Lacer<strong>da</strong> Furtado.....................................................................................................................................154


Estudo Sobre os Objetos <strong>de</strong> C&T do Observatório do ValongoMaria Alice Ciocca <strong>de</strong> Oliveira e Marcus Granato............................................................................................175Reflexões Sobre Reconhecimento e Usos do Patrimônio IndustrialMaria Letícia Mazzucchi Ferreira......................................................................................................................189Dê-lhes um Curso D´água e Eles Colocarão o Mundo a se Mover. <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e <strong>Tecnologia</strong>Tradicional: Apontamentos Para um Possível Estudo <strong>de</strong> CasoJosé Neves Bittencourt........................................................................................................................................213Uma Memória Social Operária Forte Diante <strong>de</strong> Possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s Difíceis <strong>de</strong> Patrimonialização IndustrialJosé Sergio Leite Lopes e Rosilene Alvim..........................................................................................................232O Patrimônio Aeronáutico: Delimitação e reflexões em torno do temaFelipe Koeller Rodrigues Vieira e Marcus Granato............................................................................................257A Construção <strong>de</strong> um Patrimônio Científico: A Coleção Costa LimaMárcio Rangel....................................................................................................................................................284As Coleções Microbiológicas e sua Importância como patrimônio Cientifico: o Caso <strong>da</strong>s Coleções <strong>da</strong>FIOCRUZRoberta Nobre <strong>da</strong> Câmara, Marcus Granato e Magali Romero Sá.....................................................................303Coleções Botânicas: Objetos e Dados para CiênciaAriane Luna Peixoto, Maria Regina Vasconcelos Barbosa, Dora Ann Lange Canhos e Leonor Costa Maia...315A <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e a Divulgação CientíficaGuaracira Gouvêa...............................................................................................................................................327Socialização do Patrimônio e <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>José Mauro Matheus Loureiro............................................................................................................................345Notas Sobre o Papel <strong>da</strong>s Coleções Museológicas na Divulgação <strong>da</strong> CiênciaMaria Lucia Niemeyer Matheus Loureiro..........................................................................................................351Patrimônio <strong>Cultura</strong> Intangível, Discurso e PreservaçãoLuís Carlos Borges..............................................................................................................................................357


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAPRESENTAÇÃOAativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana é pródiga na produção <strong>de</strong> testemunhos materiais quefazem ligações entre a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mental, criativa e executória do Homem.Os estudos com base na cultura material tentam perceber até que pontoesses objetos, artefatos ou utensílios po<strong>de</strong>m ser instrumentos <strong>de</strong>preservação, diferenciação e afirmação sócio-cultural. Nesse contexto, é importante<strong>de</strong>stacar a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que estes elementos têm <strong>de</strong> vencer as barreiras do espaço e dotempo. Permitem, assim, perceber que essas duas dimensões se interligam, seconfun<strong>de</strong>m; ultrapassam as barreiras dimensionais: vencem o tempo, porque perdurampara além <strong>da</strong> sua época e vencem os espaços, porque muitas vezes ultrapassam asfronteiras <strong>de</strong> seus locais <strong>de</strong> origem.Os objetos têm funcionado ao longo dos anos e em muitas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s comoelementos <strong>de</strong> diferenciação social e/ou <strong>de</strong> socialização dos indivíduos. Há uma cargasimbólica atribuí<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, que estabelece uma outra categoria, a cultural. Poroutro lado, quando pensamos em ciência e tecnologia, a primeira imagem que vem àmente é <strong>de</strong> inovação, <strong>de</strong> futuro.A prática dos centros <strong>de</strong> pesquisa e universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, normalmente, é pauta<strong>da</strong> pelautilização <strong>de</strong> equipamentos e procedimentos ca<strong>da</strong> vez mais mo<strong>de</strong>rnos, buscando o<strong>de</strong>senvolvimento científico e a inovação tecnológica. Enquanto isso, equipamentos eobjetos outrora revolucionários ficam para trás, sendo consi<strong>de</strong>rados obsoletos numintervalo <strong>de</strong> tempo ca<strong>da</strong> vez menor, com alto risco <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>scartados. Per<strong>de</strong>m,assim, seu valor, seu significado para o grupo que os utilizou, mas po<strong>de</strong>m assumir outrosvalores, po<strong>de</strong>m ser re-significados, ou seja, transformados em bens culturais.Atento a essas questões, o Grupo <strong>de</strong> Pesquisa em Preservação <strong>de</strong> Bens<strong>Cultura</strong>is- GPBC, sediado no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins - MAST, vem<strong>de</strong>senvolvendo uma série <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em torno do tema, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pesquisas queanalisam e problematizam os conceitos <strong>de</strong> instrumento científico, aparato técnico,equipamento ou montagem, até a discussão <strong>da</strong> utilização dos objetos <strong>de</strong> Ciência e1


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tanálises pontuais liga<strong>da</strong>s, por exemplo, à medição dos objetos e à i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong>função dos artefatos, ou direciona<strong>da</strong>s para a organização <strong>de</strong> tipologias, ou ain<strong>da</strong>,esmaga<strong>da</strong>s pela ênfase na proposição <strong>de</strong> hierarquias entre os conjuntos artefatuais.Pelas mesmas razões, transformamos paisagens em artefatos que po<strong>de</strong>m ser percebidose percorridos, nos apropriamos <strong>de</strong> espécimes <strong>da</strong> natureza e materializamos estasexperiências atribuindo distintos valores simbólicos e diferentes funções utilitárias, como<strong>de</strong>stacamos os significados <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> arte, privilegiando estes objetos em relação aoutros que acompanham o nosso cotidiano. Da mesma forma e <strong>de</strong> maneira reitera<strong>da</strong>, aolongo dos séculos, produzimos o conhecimento científico sobre as coleções e utilizandoos objetos - instrumentos <strong>de</strong> pesquisa - que são, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, os objetos que o<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico tem legado para a história <strong>da</strong> ciência.É porque as coisas não têm paz que <strong>de</strong>svelamos e refinamos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> osprimórdios do processo <strong>de</strong> hominização, as nossas capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> observá-las, coletálas,tratá-las e, ao guardá-las e protegê-las, <strong>da</strong>rmos consistência às idéias e práticas docolecionismo e, ao mesmo tempo, alavancar estas coleções para o embrião dos <strong>de</strong>batessobre cultura, ciência, po<strong>de</strong>r, hegemonia, colonização, espoliação, tecnologia,biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, produção científica e artística, o fazer popular, entre muitos outros temasque mobilizam há muito tempo as gerações e facções <strong>de</strong> intelectuais que se <strong>de</strong>bruçamsobre estas questões e a partir <strong>de</strong>las organizam programas <strong>de</strong> pesquisa e ensino e,ain<strong>da</strong>, constituem instituições.Esses <strong>de</strong>bates, por sua vez, inspirados em diversas correntes teóricas e apoiadosem múltiplas metodologias, relativas às distintas práticas inerentes aos aspectosmateriais <strong>da</strong> elaboração e produção culturais, têm alimentado e atualizado aconsoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s rotas que ligam os objetos úteis aos semióforos (Pomian, 1984). Comesses <strong>de</strong>bates avançamos em reflexões sobre fruição, documentação, conservação,preservação e, mais recentemente, percebemos a importância <strong>da</strong> comunicação e <strong>da</strong>educação a partir dos objetos e <strong>da</strong>s coleções, para a circulação <strong>de</strong> idéias que valorizem aimportância dos estudos <strong>de</strong> cultura material. Essas reflexões, sobretudo, têmimpulsionado a concepção <strong>de</strong> princípios teórico-metodológicos e o estabelecimento <strong>de</strong>paradigmas interpretativos.A partir <strong>da</strong>s breves constatações acima indica<strong>da</strong>s, este texto tem a intenção <strong>de</strong>argumentar sobre a inserção dos estudos <strong>da</strong> cultura material na organização <strong>da</strong>Museologia, como campo <strong>de</strong> conhecimento e suas respectivas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s emrelação à preservação dos acervos, suas evi<strong>de</strong>ntes reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>s com os conceitos e as15


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpráticas curatoriais e seu explícito comprometimento com a construção <strong>da</strong>s noções <strong>de</strong>patrimônio e herança cultural. Entretanto, trata-se apenas <strong>de</strong> um ensaio argumentativo,apoiado especialmente na minha experiência docente, transitando entre os problemasantropológicos e históricos, mais precisamente entre questões etnológicas earqueológicas e suas implicações no universo <strong>da</strong>s análises museológicas, principalmentena valorização dos estudos <strong>de</strong> cultura material.Para tanto, o ensaio está organizado em torno <strong>de</strong> dois argumentos. Em umprimeiro momento, serão apresentados alguns pontos que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar comoavanços, obtidos ao longo dos séculos, permitindo que a valorização dos artefatos e <strong>da</strong>scoleções propiciasse às instituições museológicas a longevi<strong>da</strong><strong>de</strong> que testemunhamos eas respectivas e sucessivas quebras <strong>de</strong> paradigmas no que tange aos estudos <strong>de</strong> culturamaterial. Em segui<strong>da</strong>, serão indicados alguns problemas que envolvem a saturação dosmuseus e apontam para retrocessos no que se refere à pertinência contemporânea dosestudos <strong>de</strong> cultura material. Ao final, a argumentação recairá na proposição <strong>de</strong> alguns<strong>de</strong>safios.A intenção central <strong>de</strong>ste ensaio é, portanto, problematizar o papel que os estudos<strong>de</strong> cultura material <strong>de</strong>sempenham no contexto <strong>da</strong>s instituições museológicas e nasreflexões que têm procurado orientar o <strong>de</strong>lineamento <strong>da</strong> Museologia como campo <strong>de</strong>conhecimento, consi<strong>de</strong>rando que neste universo é <strong>de</strong>cidido o <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>s coisas.ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL: Os avanços que importam à MuseologiaA longa história dos museus, que po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> como a trajetória que associe<strong>da</strong><strong>de</strong>s têm percorrido na expectativa <strong>de</strong> encontrar nestas instituições as suasreferências culturais, os seus ancoradouros para os indicadores <strong>de</strong> suas memórias e,sobretudo, o cenário que ampara e contextualiza os seus valores, apresenta as suasmanifestações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e divulga suas conquistas e dramas culturais.Essa história tem sido analisa<strong>da</strong> por diferentes campos <strong>de</strong> conhecimento e abibliografia referencial já <strong>de</strong>snudou as múltiplas facetas <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo institucional que,ao mesmo tempo em que tem a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r tem a obrigação <strong>de</strong>comunicar; que abriga estudos transversais <strong>de</strong> impacto global com a mesma ênfase comque evi<strong>de</strong>ncia a importância <strong>da</strong>s análises verticaliza<strong>da</strong>s e microscópicas; que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> aética <strong>da</strong> preservação, mas preserva também os resultados <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> saques,espoliações e roubos; que valoriza a memória, mas o seu alto grau seletivo impõe a16


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Temergência do esquecimento; que é responsável por complexos e consagrados projetosarquitetônicos, sinalizando e impondo às ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s a convivência com ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros íconesurbanos; que reúne em suas entranhas incomensuráveis acervos com os mais dísparesgraus <strong>de</strong> organização e representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas.Trata-se, portanto, <strong>de</strong> uma bibliografia que acentua as contradições, evi<strong>de</strong>ncia osproblemas, mas contempla os aspectos <strong>de</strong>scritivos e monográficos sobre o perfil erelevância <strong>da</strong>s instituições e não diverge em apontar a importância <strong>da</strong>s coleções parato<strong>da</strong> a lógica que qualifica a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos museus e <strong>de</strong>senha as suas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>sem relação às funções científicas, educativas e sociais.No caso brasileiro, os primeiros estudos sobre os nossos museus <strong>de</strong>stacam umespecial protagonismo às instituições cria<strong>da</strong>s no Rio <strong>de</strong> Janeiro, mas nas últimasdéca<strong>da</strong>s têm crescido o número <strong>de</strong> trabalhos acadêmicos e publicações que fazememergir a formação e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> instituições museológicas em diversasregiões do país. Entretanto, os perfis institucionais correspon<strong>de</strong>m ao mo<strong>de</strong>lo europeu, ouseja, há uma expressiva centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos acervos e nos seus respectivos estudos.Nesse contexto, as coleções e os estudos <strong>de</strong> cultura material inerentes aosacervos arqueológicos e etnográficos <strong>de</strong>spontam <strong>de</strong> forma plural e dispersos em todoterritório. São estudos que tratam, <strong>de</strong> maneira assemelha<strong>da</strong> às instituições estrangeiras,<strong>da</strong>s raízes culturais <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ocuparam e transformaram este território,esgarçando a temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s nossas tradições, indicando os impactos <strong>da</strong> conquistaeuropéia, problematizando a convivência inter-étnica, procurando enten<strong>de</strong>r os focos <strong>de</strong>resistência e o perfil <strong>da</strong>s rupturas, entre muitos outros aspectos que contribuem com aelaboração <strong>de</strong> análises, buscam compreen<strong>de</strong>r os diferentes graus <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> que sãosconstitutivos <strong>da</strong>s nossas características i<strong>de</strong>ntitárias, como também, apontam para acomplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> história cultural brasileira, permea<strong>da</strong> por paradoxos e como pon<strong>de</strong>rouOtávio Ianni (1992), a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira está sempre se repensando, se <strong>de</strong>bruçandosobre si mesma, <strong>de</strong> forma curiosa, inquieta e muitas vezes atônita. Assim, são sempreformula<strong>da</strong>s novas interpretações ou são repensa<strong>da</strong>s as antigas idéias sobre o país.Apesar <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> instituições museológicas, no Brasil, remontar a quaseduzentos anos, a centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acervos arqueológicos e etnográficos no contexto dosestudos <strong>de</strong> cultura material já foi alvo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s avanços e recuos reiterados.Entretanto, esses estudos continuam apresentando interpretações e contribuindo para aconstrução <strong>da</strong> historici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos percursos e as instituições museológicas ain<strong>da</strong><strong>de</strong>sempenham um papel social, não só preservando as expressões materiais, mas17


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tproduzindo e disseminando o conhecimento, participando dos processos educacionais e,especialmente, interagindo com os diferentes contextos socioculturais mediante avalorização <strong>da</strong>s noções e ações liga<strong>da</strong>s ao <strong>de</strong>spertar <strong>da</strong>s sensações <strong>de</strong> pertencimento, aexplicitação <strong>da</strong> importância do respeito à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a indicação sobre os vetores quenos levam a compreen<strong>de</strong>r a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural.A história dos museus, <strong>de</strong> uma forma geral ou pelo menos como a bibliografiareferencial tem evi<strong>de</strong>nciado, po<strong>de</strong> ser reconheci<strong>da</strong> como a sequência <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong>mu<strong>da</strong>nça e/ou rupturas em relação, por um lado, à superação <strong>de</strong> paradigmas referentesaos estudos <strong>de</strong> cultural material e, por outro, à i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>inserção social <strong>da</strong>s ações museológicas. Nessa perspectiva é possível consi<strong>de</strong>rar que osmuseus, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII, <strong>de</strong>ram início ao estabelecimento <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>loinstitucional hegemônico, organizado a partir do entrelaçamento e <strong>de</strong>pendência entre umedifício, as ações técnicas e científicas <strong>de</strong> pesquisa (diferentes campos <strong>de</strong>conhecimento), salvaguar<strong>da</strong> (conservação, documentação e armazenamento) ecomunicação (exposição, ação educativo-cultural) e o potencial do público. Essesvetores, até hoje presentes na sustentação <strong>da</strong>s instituições museológicas, têm ampliadoe <strong>de</strong>sdobrado os horizontes <strong>de</strong> atuação dos museus com vistas a propiciar melhor<strong>de</strong>finição e enquadramento em relação aos compromissos preservacionistas eeducacionais.Este mo<strong>de</strong>lo, por sua vez, contempla a articulação entre a Museologia, como ocorpo teórico e <strong>da</strong>s idéias, e a Museografia, como o conjunto <strong>da</strong>s técnicas e <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s práticas. Naturalmente, essa articulação entre Museologia e Museografia, aolongo dos séculos, e no que se refere aos estudos <strong>da</strong>s coleções, encontrou eco ereciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>s em ações interdisciplinares com os mais variados campos <strong>de</strong>conhecimento, constituídos e <strong>de</strong>senvolvidos a partir dos <strong>de</strong>safios <strong>da</strong>s pesquisas sobre asexpressões materiais <strong>da</strong> cultura. De uma certa forma, a preocupação em valorizar,<strong>de</strong>codificar e preservar os artefatos e as coleções e a partir <strong>de</strong>les <strong>da</strong>r a conhecer asformas <strong>de</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como a razão especial para que ain<strong>da</strong> hojenovas instituições sejam cria<strong>da</strong>s em função dos mais diferenciados enfoques temáticos eargumentos culturais.Segundo Luis Alonso Fernandéz:En el principio fue el <strong>de</strong>seo y la voluntad <strong>de</strong> todos los pueblos em to<strong>da</strong>slas culturas y civilizaciones por conservar hacia el futuro su patrimônio.Imediatamente <strong>de</strong>spúes fue la museografía, antes incluso que el museopropriamente dicho. Logicamente, la reali<strong>da</strong>d patrimonial y museable há18


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tprecedido em el tiempo y em la práctica museografica a la própiajustificación y existência <strong>de</strong> uma ciência museológica.Así lo confirma el primer tratado conocido sobre esta matéria, que noaparece, sin embargo, hasta princípios <strong>de</strong>l siglo XVIII. Re<strong>da</strong>cta<strong>da</strong> emlatín – com lo que entonces se aseguraba su difusión internacional – ypublica<strong>da</strong> em 1727 por el marchan<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hamburgo Caspar FriedrichNeickel, la Museographia neickliana es uma obra expresiva <strong>de</strong>l afánclasificador y enciclopedista <strong>de</strong> la Ilustración. Titula<strong>da</strong> ... Museographiau orientatión para el a<strong>de</strong>quado concepto y conveniente colocación <strong>de</strong>los museos o cámaras <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, su autor obsequió em ella a losaficcionados amantes <strong>de</strong>l colecionismo com um diseño <strong>de</strong>l museo i<strong>de</strong>alque preconizaba el cientificismo y el di<strong>da</strong>ctismo públicos <strong>de</strong> su tiempo,a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> ofrecer uma série <strong>de</strong> consejos muy prácticos sobre laelección <strong>de</strong> los lugares más a<strong>de</strong>cuados para acoger objetos y la mejormanera <strong>de</strong> clasificarlos y conservarlos, tanto los provenientes <strong>de</strong> lanaturaleza como los producidos por las ciências y las artes (2001, p.17).A partir <strong>de</strong>sse período e <strong>de</strong> forma sistemática, os estudos <strong>de</strong> cultura material e ascoleções museológicas estabeleceram laços <strong>de</strong> cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que têmsido visíveis por intermédio <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s análises e <strong>da</strong> produção científicacorrespon<strong>de</strong>nte, do surgimento <strong>de</strong> diversos ramos profissionais e <strong>da</strong> criação <strong>de</strong>instituições vocaciona<strong>da</strong>s para o estudo e tratamento <strong>de</strong> coleções e que, ain<strong>da</strong> hoje,<strong>de</strong>sempenham importantes papéis nas diferentes socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> estão inseri<strong>da</strong>s,atuando, inclusive, em ciclos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico e cultural. Esteprocesso secular já muito analisado pela bibliografia especializa<strong>da</strong>, via <strong>de</strong> regra, resultouna configuração do museu como o local a<strong>de</strong>quado para os estudos <strong>de</strong> cultura material epara o tratamento e preservação <strong>da</strong>s coleções, alvo central <strong>de</strong>stas pesquisas. Nesseâmbito, surge e se <strong>de</strong>senvolve o conceito <strong>de</strong> curadoria, que po<strong>de</strong> ser compreendidocomo o resultado <strong>da</strong>s interlocuções entre os estudos <strong>de</strong> cultura material, a partir dos maisvariados campos <strong>de</strong> conhecimento, e as premissas e parâmetros museológicos.Em outras palavras,É possível constatar que o conceito <strong>de</strong> curadoria surgiu influenciadopela importância <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s evidências materiais <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong>cultura, mas também pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tratá-las no que correspon<strong>de</strong>à manutenção <strong>de</strong> sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, à sua potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> enquantosuportes <strong>de</strong> informação e à exigência <strong>de</strong> estabelecer critérios <strong>de</strong>organização e salvaguar<strong>da</strong>. Em suas raízes mais profun<strong>da</strong>s articulamseas intenções e os procedimentos <strong>de</strong> coleta, estudo, organização epreservação, e têm origem as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> especializações, <strong>de</strong>abor<strong>da</strong>gens pormenoriza<strong>da</strong>s e do tratamento curatorial direcionado apartir <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> conhecimento. (Bruno, 2008 p.17).Assim, nas últimas déca<strong>da</strong>s, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> curadoria tem sidopermea<strong>da</strong> pelas noções <strong>de</strong> domínio sobre o conhecimento <strong>de</strong> um temareferen<strong>da</strong>do por coleções e acervos que por sua vez permite a luci<strong>de</strong>zdo exercício do olhar, capaz <strong>de</strong> selecionar, compor, articular e elaborardiscursos expositivos, possibilitando a reversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> pública <strong>da</strong>quilo19


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque foi visto e percebido, mas consi<strong>de</strong>rando que as ações <strong>de</strong> coleta,conservação e documentação já foram realiza<strong>da</strong>s. Para alguns, aimplementação <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s curatoriais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> especialmente <strong>de</strong>uma ca<strong>de</strong>ia operatória <strong>de</strong> procedimentos técnicos e científicos, e odomínio sobre o conhecimento que subsidia o olhar acima referido, é naver<strong>da</strong><strong>de</strong> a síntese <strong>de</strong> um trabalho coletivo, interdisciplinar emultiprofissional. Para outros, o emprego <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> curadoria sótem sentido se for circunscrito a uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que reflita um olharautoral, isolado e sem influências conjunturais que prejudiquem aexposição <strong>de</strong> acervos e coleções, conforme os critérios estabelecidosem função do domínio sobre o tema (Bruno, 2008, p.20).A passagem entre os séculos XIX e XX é interpreta<strong>da</strong> por esta mesma bibliografiacomo o período importante para quebras <strong>de</strong> paradigmas, para o surgimento <strong>de</strong> novosmo<strong>de</strong>los institucionais e especialmente para um profundo e crescente questionamentosobre a potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> cultura material e respectivamente <strong>da</strong>s coleções como vetorespatrimoniais <strong>de</strong> uma herança cultural, coletiva e plural. Entre essas interpretações sobreo referido período, po<strong>de</strong>mos inferir que os vínculos entre os estudos <strong>de</strong> cultura material eas coleções museológicas começaram se fixar em torno <strong>da</strong>s ações curatoriais,subsidia<strong>da</strong>s pelas indicações acima referi<strong>da</strong>s.O refinamento <strong>da</strong>s relações entre as pesquisas sobre as evidências materiais <strong>da</strong>cultura e o <strong>de</strong>senvolvimento necessário e a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> ações museológicas ficou, em umcerto sentido, atrelado à compreensão sobre os princípios, a ética e o domínio técnicodos processos curatoriais. Mais do que a valorização <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> um curador noâmago <strong>de</strong>sta questão, o que se coloca e se enten<strong>de</strong> como um avanço nessas relações é,na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o exercício curatorial processual, entendido como o conjunto solidário einter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa, preservação e extroversão dos benspatrimoniais, relativos às coleções museológicas.Desse processo turbulento que alcançou os dias atuais surgiram novasabor<strong>da</strong>gens, novos campos <strong>de</strong> conhecimento, muitas especializações dos ramos dosaber e, em especial, a emergência <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong>s expressões imateriais <strong>da</strong> cultura.Com a mesma intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, esses questionamentos impuseram novas metodologias <strong>de</strong>trabalho, com conotações participativas, trouxeram a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s instituiçõesmuseológicas respeitarem códigos <strong>de</strong> ética profissional e as múltiplas legislaçõespreservacionistas, aproximaram os objetos do cotidiano <strong>da</strong>s coleções “excepcionais” e<strong>de</strong>svelaram a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre o público, que passou a fazer parte integrante <strong>da</strong>s açõescuratoriais.20


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEntre tantas contradições, as instituições museológicas atuam nacontemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> em todos os continentes, nas megalópoles e nas pequenascomuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ampara<strong>da</strong>s pelos po<strong>de</strong>res públicos e pela iniciativa priva<strong>da</strong>, apresentandoas conquistas e os valores <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e os dramas e atroci<strong>da</strong><strong>de</strong>s vivenciados pelasmais diferentes socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e culturas. Em todos esses contextos, apenas para citaralguns, as evidências materiais <strong>da</strong> cultura persistem no centro <strong>da</strong>s atenções e atraemdiferentes estudos, que têm estruturado e consoli<strong>da</strong>do distintos campos <strong>de</strong>conhecimento.Os avanços não cessam <strong>de</strong> surgir, mas ao mesmo tempo, as instituiçõesmuseológicas não abandonam o compromisso <strong>de</strong> procurar respon<strong>de</strong>r à antiga questão: oque é a condição humana (Postman,1989). A busca incessante <strong>de</strong> respostas a essapergunta tem levado os profissionais <strong>de</strong> museus a estabelecerem novos paradigmas emsuas ações e reflexões. Nesse contexto e muito influenciado pelo já clássico MINOM -Movimento pela Nova Museologia, surge nos últimos anos a <strong>de</strong>fesa por umaSociomuseologia, ou seja, uma ação museológica mais centra<strong>da</strong> nas expectativas <strong>da</strong>ssocie<strong>da</strong><strong>de</strong>s em relação aos acervos e menos nos compromissos vinculados apenas àdivulgação dos resultados dos estudos <strong>da</strong>s coleções e a respectiva preservação <strong>de</strong>stesbens patrimoniais.Estes novos <strong>de</strong>safios que importam à Museologia nos colocam, entre muitasoutras questões, que chegou o momento <strong>da</strong>s instituições museológicas abrirem mão <strong>da</strong>exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a <strong>de</strong>cisão em relação ao <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>s coisas.ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL: Retrocessos e <strong>de</strong>safiosApesar <strong>da</strong> resistência dos museus no enfrentamento <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>safios, épossível verificar na contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> que os seus principais problemas e, em muitoscasos, os seus retrocessos, correspon<strong>de</strong>m exatamente ao acúmulo - muitas vezes<strong>de</strong>smedido - <strong>de</strong> artefatos, coleções e acervos. Entretanto, hoje os museus sãoreconhecidos como,Instituições humanizadoras, inventando tradições como dizem os historiadores,explorando noções <strong>de</strong> pertencimento como afirmam os arqueólogos eantropólogos, <strong>de</strong>svelando as características sócio-culturais como esperam ossociólogos, possibilitando a disponibilização <strong>de</strong> mais um espaço para a inclusãosocial como profetizam os educadores, entre centenas <strong>de</strong> outras expectativasque recaem sobre os museus.Neste contexto, a expectativa dos museólogos está dirigi<strong>da</strong> à consoli<strong>da</strong>ção dosprocessos institucionais que permitam o equilíbrio entre salvaguar<strong>da</strong> e21


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcomunicação dos acervos em constante diálogo com seus públicos,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> tipologia dos acervos, <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> instituição ou perfildo público. Para a Museologia, o que interessa é a implementação <strong>de</strong> umaca<strong>de</strong>ia operatória <strong>de</strong> ações que permita o gerenciamento <strong>da</strong> informação, amanutenção dos acervos, as múltiplas ressignificações inseri<strong>da</strong>s nos discursosexpográficos e a apropriação patrimonial pelos distintos segmentos <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (Bruno, 2008a, p. 146).Essa expectativa <strong>da</strong> Museologia no que se refere à compreensão sobre asengrenagens dos processos curatoriais tem encontrado muitos entraves para a <strong>de</strong>sejávelrealização <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia operatória. Os entraves têm diferentes origens ecaracterísticas, mas <strong>de</strong> certa forma em um aspecto coinci<strong>de</strong>m: prejudicam o <strong>de</strong>sempenho<strong>da</strong>s funções básicas dos museus e os afastam <strong>da</strong>s <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s contemporâneas no quese refere ao impacto que <strong>de</strong>vem propiciar nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os mantêm.Os problemas são diversos, mas gostaria <strong>de</strong> pontuar alguns que correspon<strong>de</strong>mmais diretamente à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Em um primeiro momento, verificamos que oabandono dos cursos <strong>de</strong> formação profissional, como por exemplo, em Antropologia,Arqueologia, História, Sociologia, entre outros, em relação à importância dos estudos <strong>de</strong>cultura material e, especialmente, no que tange aos princípios e práticas inerentes aoprocesso curatorial, tem legado novas gerações <strong>de</strong>scomprometi<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>sprepara<strong>da</strong>spara o exercício e consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias operatórias <strong>de</strong> procedimentos técnicos ecientíficos relativos à salvaguar<strong>da</strong> e comunicação <strong>da</strong>s coleções museológicas,fragilizando a atuação <strong>da</strong>s instituições. Da mesma forma, a <strong>de</strong>scontextualização dosprogramas <strong>de</strong> formação em Museologia no que correspon<strong>de</strong>, por exemplo, aosconteúdos arqueológicos e etnológicos relativos à história cultural brasileira permite queos profissionais egressos <strong>de</strong>sta formação encontrem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s no trato museográfico<strong>da</strong>s coleções <strong>de</strong>stas tipologias. Como consequência imediata do problema oriundo <strong>da</strong>sformações profissionais, verificamos as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetosinterdisciplinares, fun<strong>da</strong>mentais para a implementação <strong>de</strong> processos curatoriais.Em um segundo momento <strong>de</strong>ssas constatações sobre os problemas que estamostratando neste ensaio, po<strong>de</strong>mos indicar a falta <strong>de</strong> atualização dos planos <strong>de</strong> gestão <strong>da</strong>sinstituições museológicas no que se refere à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> contemporânea em relação aosmuseus, pois sabemos que ca<strong>da</strong> vez mais a relação entre estas instituições e asocie<strong>da</strong><strong>de</strong> vem sendo altera<strong>da</strong>, com a ampliação <strong>da</strong> participação popular nas <strong>de</strong>cisõesmuseológicas, com maior flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos museus ao abrirem seus espaços paraintervenções sociais, pelos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestão menos hierarquizados e, em especial,pelo surgimento <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los museológicos como os museus comunitários, museus22


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong> território, ecomuseus, museus <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que, <strong>de</strong> alguma forma, têm se afastadodo mo<strong>de</strong>lo hegemônico que pelas diásporas colonizadoras dos séculos pretéritos seespalharam por todos os continentes.No caso brasileiro, essa falta <strong>de</strong> atualização po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> pelo fato <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> coleções museológicas estarem sob a tutela <strong>de</strong> instituiçõesuniversitárias, pois é evi<strong>de</strong>nte que a lógica administrativa <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não privilegia<strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> a dinâmica dos processos curatoriais. Nesses casos, é comum avalorização <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> coleta, estudo e ensino em relação às expressões materiais <strong>da</strong>cultura em <strong>de</strong>trimento dos procedimentos <strong>de</strong> salvaguar<strong>da</strong> e comunicação museológicas.A mais clara evidência <strong>de</strong>sse problema é a situação – muitas vezes dramática – em quese encontram as reservas técnicas dos acervos institucionais.A equação entre problemas na formação profissional, <strong>de</strong>sconhecimento sobre aengrenagem dos processos curatoriais e a falta <strong>de</strong> atualização dos planos <strong>de</strong> gestão,permite a aferição <strong>de</strong> resultados pouco satisfatórios no que se refere às relações entreestudos <strong>de</strong> cultura material e coleções museológicas. Po<strong>de</strong>mos, inclusive, i<strong>de</strong>ntificarretrocessos, se refletirmos sobre a importância que os museus têm alcançado emdiversos setores, como o educacional, o econômico e o político.Direcionando, ain<strong>da</strong> mais, as reflexões <strong>de</strong>ste ensaio para as questões brasileiras,verificamos que o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> licenciamentos ambientais em todo o território,reflexo do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s, tem ampliadoconsi<strong>de</strong>ravelmente a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisas <strong>de</strong> salvamento que, por sua vez, temgerado cifras impressionantes <strong>de</strong> acervos, <strong>de</strong>slocamentos regionais dos benspatrimoniais e, em alguns casos, até novas instituições para administrá-los.Essa questão, que envolve empresas <strong>de</strong> infra-estrutura, instituições públicas nosdiferentes níveis, órgãos <strong>de</strong> preservação, empresas especializa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> profissionais doscorrespon<strong>de</strong>ntes campos <strong>de</strong> conhecimento, universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, associações <strong>de</strong> classe, entreoutros, começa a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e <strong>de</strong>bati<strong>da</strong> pelos diferentes agentes envolvidos etransformou-se em um problema referencial no que tange à dinâmica entre os estudos <strong>de</strong>cultura material e as coleções museológicas e, mais ain<strong>da</strong>, entre este binômio e arespectiva relevância <strong>de</strong>stes estudos para as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s atingi<strong>da</strong>s pelos respectivosimpactos ambientais, como também, para a própria produção <strong>de</strong> conhecimentoacadêmico.Se, por um lado, a convivência direta com os <strong>de</strong>safios do <strong>de</strong>senvolvimento tempermitido maior visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação às pesquisas arqueológicas e etnológicas, por23


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Toutro, tem abalado as tradicionais formas <strong>de</strong> produção acadêmica e tem comprometido aperspectiva preservacionista referente a estas coleções museológicas.Com a indicação <strong>de</strong>sses pontos, que <strong>de</strong> alguma forma têm prejudicado o avanço<strong>da</strong> dinâmica e <strong>da</strong> projeção social dos processos curatoriais inerentes aos estudos <strong>de</strong>cultura material, po<strong>de</strong>mos constatar que os <strong>de</strong>safios são muitos, pois reiteramos aimportância <strong>da</strong>s análises e <strong>da</strong> preservação <strong>da</strong>s evidências materiais <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Assim, indicaremos apenas alguns pontos que enten<strong>de</strong>mos como centrais:• a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s revisões curriculares dos diferentes cursos <strong>de</strong>formação, especialização e pós-graduação <strong>da</strong>s áreas responsáveis por coleta,análise, salvaguar<strong>da</strong> e comunicação <strong>da</strong>s expressões materiais <strong>da</strong> cultura, a partir<strong>da</strong> inserção dos princípios teóricos e <strong>da</strong>s metodologias aplica<strong>da</strong>s relativos aosprocessos curatoriais, ações interdisciplinares e códigos <strong>de</strong> ética;• a importância do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> pesquisa, apoiados poragências <strong>de</strong> fomento, voltados para estudos <strong>de</strong> tipologias, nomenclaturas,thesaurus e outras formas <strong>de</strong> produção acadêmica orienta<strong>da</strong>s para asistematização dos estudos <strong>da</strong> cultura material;• a urgência <strong>da</strong> ampliação <strong>da</strong> legislação patrimonial no que se referes aosbens arqueológicos e etnográficos, com vistas a proteger as ações curatoriais emseu conjunto e instrumentalizar e fiscalizar as instituições museológicas;• a aproximação, <strong>de</strong> forma mais sistemática, entre os profissionais que seinteressam pelos estudos <strong>de</strong> cultura material, <strong>da</strong>queles que estão maisenvolvidos com as expressões imateriais <strong>da</strong> cultura, com o propósito <strong>de</strong> ajustaros códigos <strong>de</strong> pesquisa e discutir os caminhos articulados em relação àpreservação patrimonial;• a valorização dos trabalhos em re<strong>de</strong> e em sistemas, com vistas ao avançosolidário em relação à superação dos problemas que constrangem o<strong>de</strong>senvolvimento dos processos curatoriais.Entre avanços e retrocessos, com problemas que são universais e outros queassumem contornos específicos no caso brasileiro, é possível consi<strong>de</strong>rar que os estudos<strong>de</strong> cultura material têm um papel referencial para as coleções museológicas, poisgarantem em gran<strong>de</strong> parte a perspectiva <strong>de</strong> constantes interpretações e ressignificaçõesque, por sua vez, colaboram com a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s premissas básicas dos museus no24


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque se refere à produção <strong>de</strong> conhecimento novo, à educação a partir <strong>da</strong>s expressõesmateriais <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e à preservação dos indicadores <strong>da</strong> herança patrimonial.Sobretudo, os estudos <strong>de</strong> cultura material nos aju<strong>da</strong>m a valorizar a importância“do olhar especialmente apto a <strong>de</strong>scobrir a reentrância <strong>da</strong> cicatriz, do relevo na inscrição,aquilo que singulariza e i<strong>de</strong>ntifica” (Bauche, 2001) 1 e, <strong>de</strong>sta forma, colaboram com aeducação dos sentidos, com o aprimoramento do olhar, <strong>da</strong> percepção e <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong>luci<strong>de</strong>z reflexiva.A relação <strong>de</strong> cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os estudos <strong>de</strong> cultura material e as coleçõesmuseológicas permite, ain<strong>da</strong> hoje, que os museus <strong>de</strong>sempenhem uma função social com<strong>de</strong>sdobramentos educacionais, científicos, econômicos e culturais e reivindiquem umcerto protagonismo sobre o <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>s coisas.REFERÊNCIASANTUNES, Arnaldo. As Coisas. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Definição <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> – os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão <strong>da</strong> herança patriminial. In: BITTENCOURT, José Neves (org.);JULIÃO, Letícia (coord.). Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Diretrizes Museológicas 2: mediação em museus:curadorias, exposições, ação educativa. Belo Horizonte: Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong><strong>de</strong> Minas Gerais, Superintendência <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s, p.14 - 23, 2008._________________________. <strong>Museu</strong>s, i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s e patrimônio cultural. Revista do<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Arqueologia e Etnologia. Suplemento 7, p.145 – 151, 2008a.FERNÁNDEZ, Luiz Alonso. Museologia y museografia. Col. <strong>Cultura</strong> Artística dirigi<strong>da</strong> porJoan Sure<strong>da</strong> i Pons. Barcelona: Ediciones <strong>de</strong>l Serbal, 2001.IANNI, Otavio. A Idéia do Brasil Mo<strong>de</strong>rno. São Paulo: Brasiliense, 1992.POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. Memória – História. Lisboa:Imprensa Nacional – Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, v. 1, p. 51-86, 1984.POSTMAN, Neil. <strong>Museu</strong>s e Geradores <strong>de</strong> cultura: palestra. In: Conference Générale etAssemblée Générale du Conseil International <strong>de</strong>s Musées. Haia : ICOM, 1989 [ tradução<strong>de</strong> texto impresso].1 Esta frase é atribuí<strong>da</strong> a Pina Bauche e foi extraí<strong>da</strong> do folheto <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong> um espetáculo <strong>de</strong> <strong>da</strong>nça,realizado em São Paulo em 2001, com coreografia <strong>de</strong> sua autoria.25


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TMUSEUS DE HISTÓRIA:Formação <strong>de</strong> coleções, memória e exclusãoCecília Helena <strong>de</strong> Salles Oliveira *Depuis longtemps, sinon la nuit <strong>de</strong>s temps, l´histoire n´est-elle pas une« évi<strong>de</strong>nce » ? on en raconte,on en écrit, on en fait. L´histoire, ici et lá,hier comme aujourd´hui, va <strong>de</strong> soi. Portant, dire l´ « évi<strong>de</strong>nce <strong>de</strong>l´histoire », n´ést-ce pas <strong>de</strong>já ouvrir un doute, laisser place à un pointd´interrogation : est-ce si évi<strong>de</strong>nt, après tout ? Et puis, <strong>de</strong> quelle histoireparle-t-on ? (HARTOG, 2005, p. 11) 1Os <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> História enfrentam atualmente tensões e contradições. Porum lado, como tem observado Dominique Poulot (2003), os vínculos entreas representações do passado expostas nessas instituições e o <strong>de</strong>batehistoriográfico contemporâneo são tênues e contraditórios, pois é notório o<strong>de</strong>scompasso entre imagens ali projeta<strong>da</strong>s e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> pesquisa nos várioscampos <strong>de</strong> conhecimento histórico. Por outro lado, as dissonâncias se apresentam,também, entre aquilo que os museus oferecem em termos <strong>da</strong> “presentificação <strong>da</strong>história”, para usar uma expressão <strong>de</strong> Stephan Bann (1994), e as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s do públicovisitante que muitas vezes espera encontrar em seu espaço a “história que realmenteaconteceu”.* - <strong>Museu</strong> Paulista, USP, Parque <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência, s/n, Ipiranga, 04218-970 - Sâo Paulo, SP – Brasil.dirmp@usp.br. Possui graduação em História pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (1973), mestrado (1979) edoutorado em História Social pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (1986). Atualmente é professora titular no<strong>Museu</strong> Paulista <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e professora do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em HistóriaSocial <strong>da</strong> USP.1Des<strong>de</strong> muito tempo, senão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite dos tempos, a história não é uma “evidência”? Ela é narra<strong>da</strong>,escrita e feita. A história, aqui e acolá, ontem como hoje, caminha por si só. Por outro lado, falar sobre a“evidência <strong>da</strong> história” não significa já abrir uma dúvi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>r lugar a um ponto <strong>de</strong> interrogação: é ela tãoevi<strong>de</strong>nte, afinal?Além disso, <strong>de</strong> qual história se fala? (tradução nossa)26


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNesse sentido, minha proposta é problematizar alguns dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>srepresentações do passado inscritas em museus <strong>de</strong> História, explorando particularmenteo <strong>Museu</strong> Paulista <strong>da</strong> USP, o conhecido <strong>Museu</strong> do Ipiranga, instituição centenária,marca<strong>da</strong> em sua trajetória por profun<strong>da</strong> ligação com a celebração <strong>da</strong> história nacional.Que princípios e práticas sustentam as “visões do passado” ali expostas? Em que medi<strong>da</strong>essas visões, ancora<strong>da</strong>s em recor<strong>da</strong>ções, esquecimentos e exclusões, interferiram nãosó na seleção dos acervos a serem preservados como no <strong>de</strong>lineamento <strong>de</strong> uma escritasobre a História do Brasil? Refiro-me, em especial, à primeira meta<strong>de</strong> do século XX,quando ain<strong>da</strong> os museus <strong>de</strong> História, em paralelo aos Institutos Históricos, eram centrosprivilegiados <strong>da</strong> produção e divulgação <strong>de</strong> conhecimentos históricos, o que se evi<strong>de</strong>ncia,entre outras circunstâncias, na emblemática trajetória <strong>de</strong> Affonso Taunay que, comodiretor <strong>da</strong> instituição, fez-se historiador e intelectual influente na época. Data <strong>de</strong>sseperíodo parcela consi<strong>de</strong>rável <strong>da</strong>s coleções do <strong>Museu</strong> Paulista, particularmente coleçõestextuais, bibliográficas e iconográficas.MUSEU PAULISTA: PONTUANDO UMA TRAJETÓRIAIncorporado à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo em 1963, o <strong>Museu</strong> Paulista é instituiçãovolta<strong>da</strong> para o campo <strong>de</strong> conhecimentos <strong>da</strong> História, em particular a História <strong>da</strong> <strong>Cultura</strong><strong>Material</strong> no Brasil, com ênfase especial na história <strong>de</strong> São Paulo.Trata-se <strong>de</strong> instituição científica e cultural centenária, cuja trajetória iniciou-se em1893. Naquela ocasião, e simultaneamente à organização do regime republicano, oedifício-monumento, erguido pelo governo imperial na capital paulista nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>sdo riacho do Ipiranga, para celebrar a In<strong>de</strong>pendência e a fun<strong>da</strong>ção do Império, foiapropriado pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s do novo regime para abrigar coleções <strong>de</strong> história natural,<strong>da</strong>ndo origem ao primeiro museu público <strong>de</strong> São Paulo, o <strong>Museu</strong> Paulista, oficialmenteinaugurado a 7 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1895. O fato <strong>de</strong> estar situado no palácio-monumento doIpiranga fez com que, entre outras razões, o <strong>Museu</strong> se tornasse popularmente conhecidocomo <strong>Museu</strong> do Ipiranga.Ao longo dos anos, o caráter <strong>de</strong> museu <strong>de</strong> ciências naturais foi sendo modificadocom o crescimento <strong>de</strong> coleções <strong>de</strong> documentos textuais, objetos e iconografia. Alémdisso, em função <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> ornamentação interna do prédio, o acervo passou aincorporar também essas alegorias. As obras <strong>de</strong> <strong>de</strong>coração interna foram inicialmentei<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong>s para as comemorações do Centenário <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência, em 1922, mas suarealização prolongou-se por mais <strong>de</strong> uma déca<strong>da</strong>. Em 1937, a parcela maior <strong>da</strong>27


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>coração estava pronta, mas os últimos nichos na pare<strong>de</strong> do edifício foram preenchidosapenas no início dos anos <strong>de</strong> 1960.A <strong>de</strong>coração ocupou os espaços previamente <strong>de</strong>finidos do palácio-monumentopara a montagem <strong>de</strong> um panteão nacional. Em linhas gerais, projetou um panorama dopercurso <strong>da</strong> história do Brasil do século XVI até o século XX, do qual a grandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<strong>Museu</strong> era uma <strong>da</strong>s expressões. A isso se somaram as <strong>de</strong>mais salas <strong>de</strong> exposiçãocompostas à época, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a expor aspectos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira e paulista, emespecial. Da colonização, representa<strong>da</strong> pelos retratos <strong>de</strong> Martim Afonso <strong>de</strong> Souza, <strong>de</strong>Tibiriçá, <strong>de</strong> D. João III e <strong>de</strong> João Ramalho alocados no saguão, envere<strong>da</strong>-se pelo períodoem que teria ocorrido a configuração do território, simboliza<strong>da</strong> na figura <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irantese nas ânforas <strong>de</strong> cristal contendo águas <strong>de</strong> rios brasileiros, ornamentos <strong>da</strong> esca<strong>da</strong>ria emmármore que leva ao piso superior <strong>da</strong> edificação. Ali, a<strong>de</strong>ntra-se, então, ao momento <strong>da</strong>in<strong>de</strong>pendência e soberania, evocado por meio <strong>da</strong> escultura monumental <strong>de</strong> D. Pedro I epor retratos e registros nominais em bronze <strong>da</strong>quelas personagens consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s, nasdéca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1920 e 1930, como os fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> nação, aos quais foram integra<strong>da</strong>s asfiguras <strong>de</strong> Da. Leopoldina, Maria Quitéria e Sóror Angélica 2 . Essa construçãohistoriográfica e visual po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como complemento e confirmação do painel“In<strong>de</strong>pendência ou Morte”, confeccionado por Pedro Américo, entre 1886 e 1888.I<strong>de</strong>alizado especialmente para <strong>de</strong>corar o salão <strong>de</strong> honra do edifício-monumento ain<strong>da</strong>durante sua construção, ao longo do século XX, veio a se tornar a representaçãoemblemática do episódio do “grito do Ipiranga” 3 .Esse direcionamento para o campo <strong>da</strong> História se verificou no período <strong>da</strong> gestão<strong>de</strong> Afonso d´ Escragnolle Taunay, entre 1917 e 1945, sendo reforçado com atransformação do <strong>Museu</strong> em Instituto complementar à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, já em1934 4 .Especialmente a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, as áreas <strong>de</strong> atuação do <strong>Museu</strong>Paulista foram re<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s, buscando-se uma maior integração institucional àUniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, bem como sua projeção científica como ponto <strong>de</strong> referência no campo <strong>da</strong><strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong>. Procurou-se evitar, entretanto, que o <strong>Museu</strong> ficasse circunscrito anúcleo <strong>de</strong> pesquisas, sem compromissos com o enorme público não especializado que o2 Descrição <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> <strong>da</strong> ornamentação interna do edifício po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> em: TAUNAY, 1937.3 Sobre o painel concebido por Pedro Américo e suas implicações historiográficas e artísticas, consultar:OLIVEIRA, 1999.4 Sobre a trajetória do <strong>Museu</strong> Paulista, consultar, entre outros, os seguintes estudos: ELIAS, 1996; BREFE,2005; ALVES, 2001; Anais do <strong>Museu</strong> Paulista. História e <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong>. Nova Série, v. 10/11, 2002/2003;WITTER, 1997; OLIVEIRA, 1999.28


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tvisita; ou que se tornasse um centro cultural e pe<strong>da</strong>gógico, sem ligação com pesquisasinovadoras; ou, finalmente, que se restringisse ao papel <strong>de</strong> agente conservador <strong>de</strong>patrimônio histórico (MENESES, 1994). Foi precisamente esse <strong>de</strong>sejado entrelaçamentoentre preservação <strong>de</strong> bens culturais, produção e socialização <strong>de</strong> conhecimentos queprovocou a problematização <strong>da</strong>s tradições historiográficas e <strong>da</strong>s representações dopassado inscritas naquele espaço.MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO, HISTÓRIANuma primeira aproximação, seria possível consi<strong>de</strong>rar o <strong>Museu</strong> Paulista como“lugar <strong>de</strong> memória” (NORA, 1984), em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s injunções do edifício e <strong>de</strong> parcela <strong>de</strong>suas coleções com o <strong>de</strong>lineamento <strong>da</strong> memória nacional. “Lugar <strong>de</strong> memória”, expressãoque se tornou tão banaliza<strong>da</strong> entre nós, foi noção cria<strong>da</strong> por Pierre Nora, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>1980, em meio ao <strong>de</strong>bate que cercou o bicentenário <strong>da</strong> Revolução Francesa e encontraseliga<strong>da</strong> à reflexão sobre <strong>de</strong>lineamento <strong>da</strong> nação na França e aos modos pelos quaispo<strong>de</strong>r-se-ia escrever uma história nacional no momento <strong>da</strong>quelas comemorações.Ao utilizá-la procuro, entretanto, seguir as críticas feitas por François Hartog aPierre Nora. Hartog apontou os vínculos entre o conceito, a obra Les Lieux <strong>de</strong> Mémoirese aquilo que <strong>de</strong>nominou “presentismo”, uma relação específica com o tempo e opassado. O “presentismo” seria um regime <strong>de</strong> historici<strong>da</strong><strong>de</strong> 5assinalado por uma“progressiva invasão do horizonte por um presente mais e mais ampliado [e]hipertrofiado”, o que teria se tornado visível a partir dos anos <strong>de</strong> 1970/80. Para ohistoriador:a força motriz foi o crescimento rápido e as exigências sempremaiores <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>scobertascientíficas, as inovações técnicas e a busca <strong>de</strong> ganhos tornam ascoisas e os homens ca<strong>da</strong> vez mais obsoletos. A mídia, cujoextraordinário <strong>de</strong>senvolvimento acompanhou esse movimentoque é sua razão <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong>riva do mesmo: produzindo,consumindo e reciclando ca<strong>da</strong> vez mais rapi<strong>da</strong>mente maispalavras e imagens. (HARTOG, 1996, p.132)5 A expressão “regime <strong>de</strong> historici<strong>da</strong><strong>de</strong>” remete às reflexões <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por François Hartog acerca dotempo e <strong>da</strong>s diferentes maneiras pelas quais foi apropriado, compreendido e exercido no âmbito <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong>História. Trata-se, simultaneamente, <strong>de</strong> instrumento heurístico e <strong>de</strong> categoria histórica <strong>de</strong> pensamento quepermite interrogar, segundo o autor, os modos pelos quais, ao longo do tempo, configuraram-se articulaçõesespecíficas entre passado, presente e futuro. Combatendo qualquer simplificação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m linear ouevolutiva, o que Hartog investiga são os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> atual relação com o tempo, o que <strong>de</strong>nominou“presentismo”, e seu entrelaçamento com a escrita <strong>da</strong> História. Ver: HARTOG, François. Regimesd´historicité. Presentisme et expériences du temps. Paris, Éditions du Seuil, 2003. Cabe lembrar que asreflexões <strong>de</strong> Hartog estão inscritas em amplo <strong>de</strong>bate do qual fazem parte, entre outras, as contribuiçõesessenciais <strong>de</strong>: FEBVRE, 1965; KOSELLECK, 2006; CERTEAU, 2006.29


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEssas circunstâncias se expressariam, também, por intermédio <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong>memória (voluntária, provoca<strong>da</strong>, reconstruí<strong>da</strong>), do patrimônio e <strong>da</strong>s comemorações.Nesse sentido, conforme Hartog, a noção “lugar <strong>de</strong> memória” não po<strong>de</strong>ria ser li<strong>da</strong> apenas<strong>de</strong> forma literal, mostrando-se mais como instrumento <strong>de</strong> investigação e interpretaçãoque remete a preocupações específicas <strong>de</strong> como escrever uma história <strong>da</strong> naçãofrancesa na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Penso, entretanto, que em razão disso mesmo é que se torna pertinente suarelação com o <strong>Museu</strong> Paulista.Afora o fato <strong>de</strong> que atualmente, através <strong>de</strong> váriasiniciativas <strong>de</strong> pesquisa, núcleos <strong>de</strong> historiadores procuram caminhos historiográficos paraescrever uma nova história <strong>da</strong> nação no Brasil 6 ,a expressão refere-se a lugares <strong>de</strong>natureza material, funcional e simbólica nos quais o passado se encontra recuperado nopresente. Designa manifestações <strong>da</strong> tradição nacional, feixes <strong>de</strong> representações eredutos <strong>da</strong> história-memória autentica<strong>da</strong> pela política e por produções historiográficas doséculo XIX. O lugar não é simplesmente <strong>da</strong>do. Como observa Hartog, é construído ereconstruído sem cessar, po<strong>de</strong>ndo ser interpretado como encruzilha<strong>da</strong> on<strong>de</strong> seencontram ou <strong>de</strong>ságuam diferentes caminhos <strong>de</strong> memória. Tanto Nora quanto Hartogpon<strong>de</strong>ram, porém, que um lugar <strong>de</strong> memória po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r sua <strong>de</strong>stinação ereconheceram que, atualmente, os elos com esses lugares tornaram-se tênues,apontando para duas situações: primeiro, a clivagem entre a história ensina<strong>da</strong> nasescolas e as expectativas <strong>de</strong> crianças e jovens motivados pelas experiências <strong>de</strong>aceleração do tempo que a cultura virtual po<strong>de</strong> proporcionar; e segundo osquestionamentos acadêmicos em torno <strong>da</strong> maneira pela qual as histórias nacionais foramescritas, orientando ao mesmo tempo a seleção e preservação <strong>de</strong> fontes.Quanto a esse ponto é importante lembrar algumas <strong>da</strong>s observações <strong>de</strong>Dominique Poulot, para quem na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e contrariamente às aparências “os trabalhos<strong>de</strong> confirmação entre museus <strong>de</strong> História e historiografia ou ensino <strong>da</strong> História sãobastante fracos”....O museu <strong>de</strong> história trabalha com o repertório <strong>da</strong>s fontes dohistoriador, sanciona a emergência <strong>de</strong> novas curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, tem seupróprio peso nas vicissitu<strong>de</strong>s dos interesses sábios, enquanto vulgarizamais ou menos bem os conhecimentos eruditos junto aosvisitantes...Passa por momentos <strong>de</strong> maior intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>de</strong> fervor,quando o sentimento nacional o exige....No entanto, o museu situa-se à6 Refiro-me, em particular, ao grupo <strong>de</strong> pesquisadores <strong>de</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s fluminenses, li<strong>de</strong>rado por JoséMurilo <strong>de</strong> Carvalho e Gladys Ribeiro, que compõe o Centro <strong>de</strong> Estudos do Oitocentos e o Projeto Temático“Nação e Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia no Brasil”, bem como aos pesquisadores que formam o Projeto Temático “A fun<strong>da</strong>ção doEstado e <strong>da</strong> nação brasileiros,1750/1850”, coor<strong>de</strong>nado por István Jancsó e sediado na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> SãoPaulo.30


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmargem <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história, ao lado <strong>da</strong> compilação e <strong>da</strong> preservação<strong>de</strong> indícios do passado. Isolado <strong>da</strong> invenção intelectual dos escritos edos reescritos, o museu também não constituiu uma matriz cultural,como a escola....O espetáculo do museu ilustra ...a discrepância entre aescrita <strong>da</strong> história e uma representação do passado capaz <strong>de</strong> evocar,<strong>de</strong> outro modo que o <strong>da</strong> memória, o reconhecimento do passado comotendo sido, embora já não mais seja... (POULOT, Ob. cit., p.43-44).Mas, os problemas apontados relacionados aos nexos entre história e memória,bem como as implicações <strong>de</strong>correntes do <strong>de</strong>scolamento entre as representações dopassado projeta<strong>da</strong>s em espaços museológicos e o <strong>de</strong>bate em torno <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> História<strong>de</strong>senvolvido contemporaneamente, não esgotam a fisionomia matiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> instituiçõescomo essas.Em concomitância às mediações entre história e memória, reflexões <strong>de</strong> PaulRicouer e Fernando Catroga 7 sugerem que museus po<strong>de</strong>m ser vistos, também, comolocais para articulações entre memória e imaginação. Ambas evocam um “objetoausente” (ou uma presença ausente). Mas se o “objeto ausente” po<strong>de</strong> ser ficcional para aimaginação, para a memória ele já não existe embora tenha existido anteriormente. Nocaso dos museus <strong>de</strong> história nacional, e especialmente no percurso do <strong>Museu</strong> Paulista,esse aspecto adquire relevância, pois pinturas, esculturas, imagens e objetos reescrevema história, evocam acontecimentos e personagens, representando o passado eensejando sua “visualização”, como observou Stefan Bann (Ob.cit., 1994). Ou seja,tornam-se espaços <strong>de</strong> e para a imaginação do diversificado público que o freqüenta eque necessariamente não compartilha as mesmas preocupações dos historiadores,tampouco observa o museu pela mediação do lugar social, <strong>da</strong> prática investigativa e <strong>da</strong>escrita que caracterizam, segundo Michel <strong>de</strong> Certeau, a operação historiográfica (Ob.cit,2006).Assim, não se trata tão somente <strong>de</strong> indicar que o <strong>Museu</strong> abriga um imaginário nosentido mais literal do termo, como conjunto <strong>de</strong> imagens visíveis e simbólicas. Trata-se<strong>de</strong> refletir sobre a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um ambiente que, ao mesmo tempo, mediatiza econfere tangibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao universo contraditório e multifacetado <strong>da</strong>s representações pormeio <strong>da</strong>s quais os sujeitos históricos constroem sua vi<strong>da</strong>, estabelecem relações com otempo, projetam interpretações sobre seu próprio percurso e sobre a trajetória <strong>da</strong> nação àqual pertencem. Essa complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> manifestava-se, por outro lado, no fato dos museusserem locais particularmente voltados para a conservação e estudo <strong>de</strong> coleções quereferenciam diferentes dimensões <strong>da</strong> História. Mediatizam a seleção <strong>de</strong> vestígios,7 Ver: CATROGA, 1999.31


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEstas citações remetem à noção <strong>da</strong> História como “visão-pensamento do queaconteceu”, inspira<strong>da</strong> nos antigos e atualiza<strong>da</strong>, acompanhando no século XIX o<strong>de</strong>lineamento do campo <strong>de</strong> saber <strong>da</strong> História. Des<strong>de</strong> pelo menos o início do século XXesta noção vem sendo interroga<strong>da</strong> por diferentes vertentes teóricas, a exemplo <strong>de</strong> LucienFebvre e Walter Benjamin 12 . Entretanto, ain<strong>da</strong> persistem <strong>de</strong> modo geral no tocante aopapel <strong>de</strong>sempenhado por um museu <strong>de</strong> História. O que implica recor<strong>da</strong>r observações <strong>de</strong>Sarlo sobre a produção concomitante <strong>de</strong> diferentes visões <strong>de</strong> passado nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>scontemporâneas, bem como inferências feitas por Poulot sobre a <strong>de</strong>fasagem entremuseus <strong>de</strong> História e o atual <strong>de</strong>bate sobre escrita <strong>da</strong> História.A famosa <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Cícero, segundo a qual a história é “testemunha dosséculos, luz <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> memória, mestra <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mensageira do passado”(HARTOG, 2001, p.145), encontra franca acolhi<strong>da</strong> em parcela importante dosfreqüentadores <strong>de</strong>sses museus, a exemplo do <strong>Museu</strong> Paulista, lembrando-se que oorador nesse caso não é um autor propriamente, mas uma instituição centenária,reconheci<strong>da</strong> e autoriza<strong>da</strong>. A isso se alia o apelo ain<strong>da</strong> exercido pelos “gran<strong>de</strong>s homens”ali representados em sua glória ou em painéis e esculturas que registram-nos em ação,como no caso dos ban<strong>de</strong>irantes e <strong>de</strong> D. Pedro I. Mas, a admiração ou curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> quesuscitam encontra-se mediatiza<strong>da</strong> pela certeza <strong>de</strong> que seus traços e gestos foramrefinados e ampliados, pois afinal não po<strong>de</strong>riam aparecer <strong>de</strong> outra forma em um museu.Isso, no entanto, não compromete sua influência tampouco altera os fatos que po<strong>de</strong>m seror<strong>de</strong>nados e apresentados <strong>de</strong> modos diferentes, mas que não po<strong>de</strong>m ser estabelecidos,uma vez que são compreendidos como <strong>da</strong>dos pré-existentes às interpretações quetornaram possível sua imortali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Importa consi<strong>de</strong>rar que é a imediatez <strong>da</strong> experiência do presente e as motivaçõesmais voláteis <strong>da</strong> visita ao <strong>Museu</strong> que conferem sentido à “visão do passado” ali procura<strong>da</strong>e concebi<strong>da</strong>. Mas a isso se <strong>de</strong>ve acrescentar a certeza <strong>de</strong> que aquele passado, tornadovisível e autenticado particularmente pela ornamentação interna, efetivamente existiu e éimutável, ain<strong>da</strong> que possam ser ampliados ou modificados os conhecimentos sobre ele.Assim, contradições e distanciamentos apontados por Poulot entre a escrita <strong>da</strong>História atual e os museus <strong>de</strong> História apresentam várias dimensões, não se restringindoao campo dos especialistas. Abrangem, também, os modos pelos quais os diferentessegmentos <strong>de</strong> público do <strong>Museu</strong> interpretam o passado e o presente <strong>da</strong> instituição,tornando complexas as mediações entre <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s diferentes <strong>de</strong> História.12 Ver a obra <strong>de</strong> Lucien Febvre já cita<strong>da</strong> e BENJAMIN, Walter. Teses sobre filosofia <strong>da</strong> História. In: KOTHE,1985.35


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo entanto, po<strong>de</strong>r-se-ia in<strong>da</strong>gar se o interesse e a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>spertados ain<strong>da</strong>pelo <strong>Museu</strong> Paulista não estariam ancorados na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> instituição oferecerreleituras <strong>de</strong> experiências visuais e sensoriais do passado, promovendo uma singularconcomitância entre novi<strong>da</strong><strong>de</strong> e permanência. A instituição seria um contraponto àvivência do tempo premente, marcado pela rapi<strong>de</strong>z, pela sucessão veloz <strong>de</strong> eventos esituações e pela representação <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> durabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> referências. Essapercepção também atinge os historiadores e os que militam nos museus, ganhandocontornos específicos nos dias atuais, particularmente nas práticas relativas às <strong>de</strong>cisõesquanto ao que guar<strong>da</strong>r, ao que <strong>de</strong>nominar patrimônio, ao que ver e ao que excluir.A <strong>de</strong>speito do entrelaçamento <strong>da</strong> tradição dos séculos XVIII e XIX com nossomodo <strong>de</strong> pensar, um dos traços que nos distinguem do regime <strong>de</strong> historici<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rno,é colocar em discussão a maneira pelo qual o conhecimento histórico foi e é produzido.Isso representa questionar o estatuto dos documentos, as concepções e práticas <strong>de</strong>saber que fun<strong>da</strong>mentaram a seleção e sobrevivência <strong>da</strong>s fontes, e principalmente o lugarocupado pelo historiador na “teia” que envolve o movimento <strong>da</strong> história e a construção <strong>da</strong>memória, bem como as mediações entre acontecimentos, sua narração e suasinterpretações posteriores 13 .Se esses po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados procedimentos próprios ao ofício do historiadorhoje, como essas práticas po<strong>de</strong>m ser exerci<strong>da</strong>s e explicita<strong>da</strong>s em um museu <strong>de</strong> História?Mesmo reconhecendo-se que nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas há exigências porsaberes e visões do passado que não se circunscrevem ao campo acadêmico, osmuseus <strong>de</strong> História po<strong>de</strong>riam harmonizar distintas narrativas? Como encaminhar as<strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>de</strong> diferentes públicos e ao mesmo tempo as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>de</strong> historiadores eespecialistas que pensam os museus, suas coleções e suas exposições por meio <strong>da</strong>slentes diferencia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> historiografia atual e vertigem gera<strong>da</strong> pela aceleração do tempo erápi<strong>da</strong> obsolescência <strong>da</strong>s coisas?Como observou Dominique Poulot, o museu <strong>de</strong> História hoje <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser olegislador do tempo, o lugar <strong>de</strong> partilha entre passado e futuro, po<strong>de</strong>ndo tornar-se espaçopara um diálogo entre tipos <strong>de</strong> saber histórico fun<strong>da</strong>dos no conhecimento sobre osobjetos. Seria, então, o momento <strong>de</strong> se pensar na construção <strong>de</strong> narrativas que não sóexteriorizassem seus fun<strong>da</strong>mentos e as tradições com as quais se articulam, masexplicitassem os procedimentos <strong>de</strong> coleta e conservação bem como as práticas pelasquais a História po<strong>de</strong> ser trabalha<strong>da</strong> em um museu13 A esse respeito consultar: VESENTINI, 1997; MURARI, 1999.36


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TARQUEOLOGIA, CULTURA MATERIAL EPATRIMÔNIO. SAMBAQUIS E CACHIMBOS *Maria Dulce Gaspar **Sambaquis e cachimbos são dois artefatos bons para refletir, pois aju<strong>da</strong>m apensar sobre arqueologia, cultura material e patrimônio. Sambaqui foipercebido, durante um longo período <strong>da</strong> arqueologia brasileira, apenas comoalgo que continha elementos que interessavam à pesquisa e só recentementefoi tomado, ele mesmo, como artefato e, <strong>de</strong>ssa forma, como os <strong>de</strong>mais produtosculturais, como algo construído segundo regras pertinentes à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sambaquieirapara cumprir um conjunto <strong>de</strong> funções, entre elas a <strong>de</strong> ser um marco na paisagem, repleto<strong>de</strong> informações para os que o construíram, observaram e ain<strong>da</strong> observam. Cachimbossão excelentes exemplos <strong>de</strong> exploração <strong>da</strong> plastici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> argila e uma vez assegura<strong>da</strong>sas exigências técnicas para carburação, há espaço para ampla ornamentação. Esculturaem barro com elementos <strong>de</strong>corativos e marcas significativas para seus fabricantes e/ouusuários, os cachimbos informam sobre a presença <strong>de</strong> africanos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntestransplantados para o Brasil durante o regime escravocrata.Sambaquis e cachimbos são artefatos que estão referidos a contextos culturais emque só é possível captar a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> que os cerca a partir do estudo <strong>da</strong> culturamaterial. No que se refere aos construtores <strong>de</strong> sambaquis, não há informações orais ouescritas sobre eles, já que o projeto <strong>de</strong> construção dos mounds no litoral brasileiro entrouem colapso antes <strong>da</strong> invasão dos europeus. Já em relação aos africanos e seus<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, os relatos existentes sobre os seus hábitos e costumes no Brasil foram* Programa <strong>de</strong> Resgate do Patrimônio Arqueologia do COMPERJ.**Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>Museu</strong> Nacional, Departamento <strong>de</strong> Antropologia.Quinta <strong>da</strong> Boa Vista, s n o ., São Cristóvão, 20.940-040 - Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ – Brasil.madugaspar@terra.com.br. Possui graduação em Ciências Sociais pela UFF (1976), mestrado emAntropologia Social pela UFRJ (1984), doutorado em Arqueologia pela USP (1991) e pósdoutoradopela University of Arizona (1998). Professora do <strong>Museu</strong> Nacional, UFRJ, pesquisadora 1B doCNPq.39


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tescritos pelo “outro”, pelo grupo dominante, pelos donos <strong>da</strong> história, que registraram assuas próprias versões dos acontecimentos. Nos dois casos, o estudo <strong>da</strong> cultura materialpo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r informações importantes sobre o modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos sambaquieiros equilombolas. Portanto, cabe esclarecer as especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> cultura material para que sepossa <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong><strong>de</strong> às nossas reflexões.<strong>Cultura</strong>, segundo proposição <strong>de</strong> Clifford Geertz, é um conjunto <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong>controle – planos, receitas, regras, instruções – que governa o comportamento. Dessaforma, a cultura é um contexto e é através do fluxo do comportamento – <strong>da</strong> ação social –que as formas culturais encontram articulação. Esta articulação se dá, também, através<strong>de</strong> várias espécies <strong>de</strong> artefatos (GEERTZ, 1978, p.56, 24, 27).A arqueologia é a ciência que estu<strong>da</strong> as culturas a partir do seu aspecto material,construindo suas interpretações através <strong>da</strong> análise dos artefatos, seus arranjos espaciaise sua implantação na paisagem. <strong>Cultura</strong> material é aqui entendi<strong>da</strong> <strong>da</strong> maneira propostapor Ulpiano Bezerra <strong>de</strong> Meneses (1983, p.112), como o segmento do meio físico que ésocialmente apropriado. Apropriação esta que não é aleatória, casual ou individual, masque segue padrões sociais. Assim, o conceito po<strong>de</strong> abranger artefatos, modificações <strong>da</strong>paisagem e o próprio corpo, na medi<strong>da</strong> em que ele é passível <strong>de</strong> manipulação.A cultura material é o suporte material, físico, concreto <strong>da</strong> produção e reprodução<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social. Nesse sentido, os artefatos são consi<strong>de</strong>rados sob duplo aspecto: comoprodutos e como vetores <strong>da</strong>s relações sociais. De um lado, eles são o resultado <strong>de</strong> certasformas específicas e historicamente <strong>de</strong>termináveis <strong>de</strong> organização dos homens emsocie<strong>da</strong><strong>de</strong>. De outro lado, eles canalizam e dão condições a que se produzam eefetivem, em certas direções, as relações sociais (BEZERRA DE MENESES, 1983,p.113).Ian Hod<strong>de</strong>r, (1982) em trabalho seminal para a arqueologia mo<strong>de</strong>rna, propõe aconcepção <strong>de</strong> cultura material como um sistema <strong>de</strong> representação. Assim, po<strong>de</strong>-seconsi<strong>de</strong>rar que a arqueologia é o estudo <strong>da</strong> cultura material como manifestação <strong>de</strong>práticas simbólicas significativas, constituí<strong>da</strong>s e situa<strong>da</strong>s em relação ao social. Ain<strong>da</strong>segundo Hod<strong>de</strong>r (1999), a cultura material é uma construção e um meio <strong>de</strong> comunicaçãoenvolvi<strong>da</strong> em prática social. Po<strong>de</strong> ser utiliza<strong>da</strong> para transformar, estocar ou preservarinformação social. Também é meio simbólico <strong>da</strong> prática social, atuando dialeticamenteem relação à prática. Ela po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como um tipo <strong>de</strong> texto, uma forma40


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsilenciosa <strong>de</strong> escrita e discurso, quase, literalmente, um canal <strong>de</strong> expressão reificado eobjetificado.A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social associa<strong>da</strong> à especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos objetos materiais criapotencial para transformar, através <strong>da</strong> prática, as convenções sociais. A dinâmica socialopera tanto para a manutenção como para a transformação <strong>da</strong> cultura.Como o significado dos objetos se dá na relação dialética entre estrutura e prática,estes têm múltiplos significados locais. Dessa forma, e retomando as idéias <strong>de</strong>Franchetto e Leite (2004) sobre a linguagem, se por um lado nunca se diz a mesmacoisa do mesmo modo, por outro uma mesma coisa po<strong>de</strong> ter distintos significados.A cultura material é polissêmica e leituras múltiplas convivem no mesmo espaço e tempo.Vejamos o caso dos sambaquis ao longo <strong>da</strong> própria história <strong>da</strong> arqueologiabrasileira. Esse tipo <strong>de</strong> sítio arqueológico é tema <strong>de</strong> interesse científico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segun<strong>da</strong>meta<strong>de</strong> do século XIX. Sambaqui é uma palavra <strong>de</strong> etimologia Tupi, língua fala<strong>da</strong> peloshorticultores e ceramistas que ocupavam parte significativa <strong>da</strong> América do Sul e estavamna costa brasileira quando os europeus iniciaram a colonização. Tamba significa conchase ki amontoado, que são as características mais marcantes <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> sítio. Trata-se<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominação amplamente utiliza<strong>da</strong> pelos pesquisadores e que <strong>de</strong>nota a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> observação e síntese dos falantes Tupi.Os sambaquis são caracterizados basicamente por serem uma elevação <strong>de</strong> formaarredon<strong>da</strong><strong>da</strong> que, em algumas regiões do Brasil, chega a ter mais <strong>de</strong> 60 metros <strong>de</strong> alturae é composto basicamente <strong>de</strong> material faunístico como conchas, ossos <strong>de</strong> peixe emamíferos. Ocorrem também frutos e sementes, sendo que é recorrente a presença <strong>de</strong>esqueletos <strong>de</strong> homens, mulheres e crianças <strong>de</strong> diferentes i<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Contam igualmentecom inúmeros artefatos <strong>de</strong> pedra e <strong>de</strong> osso, marcas <strong>de</strong> estacas e manchas <strong>de</strong> fogueira,que compõem uma intrinca<strong>da</strong> estratigrafia. Os restos que mais sobressaem nacomposição dos sambaquis são as conchas <strong>de</strong> Anomalocardia brasiliana (GMELIN,1971), diferentes espécies <strong>de</strong> ostras, a Lucina pectinata (GMELIN, 1971) e os mariscos(Figuras 1,2 e 3).41


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 1 – Sambaqui Figueirinha 1.Figura 2 – Esqueleto – Jabuticabeira II, Santa Catarina.42


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 3 – Área escava<strong>da</strong> com sepultamentos – Jabuticabeira II, Santa Catarina.Segundo (PROUS, 1991), a questão que orientava o estudo dos sambaquis eraestabelecer se os sítios eram <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> fenômenos naturais ou artificiais. A primeiratendência, <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> <strong>de</strong> “naturalista”, consi<strong>de</strong>rava que os sambaquis eram resultadosdo recuo do mar e <strong>da</strong> ação do vento exerci<strong>da</strong> sobre as conchas lança<strong>da</strong>s à praia. Apresença <strong>de</strong> inegáveis vestígios humanos, como esqueletos, era explica<strong>da</strong> comoresultado <strong>de</strong> naufrágios. Já os “artificialistas” sustentavam que eram resultado <strong>da</strong> açãohumana e propunham diversas explicações sobre o acúmulo <strong>de</strong> restos faunísticos. Aindolência atribuí<strong>da</strong> aos indígenas foi aciona<strong>da</strong> para explicar o comportamento dospescadores e coletores: a preguiça teria sido a conduta que os levou a acumular restos<strong>de</strong> comi<strong>da</strong>. Alguns pesquisadores atentos à presença <strong>de</strong> ossos humanos referiram-seaos sambaquis como cemitérios e, até mesmo, como mastabas (DUARTE, 1968).Com a realização <strong>de</strong> pesquisas em vários sítios e a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> muitos indícios<strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, a corrente “naturalista” per<strong>de</strong>u totalmente a sua força. Porém, até adéca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, alguns pesquisadores ain<strong>da</strong> discutiam a origem dos sambaquis. Como<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> achados niti<strong>da</strong>mente relacionados à ação humana, surge a corrente43


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T“mista”, que percebe os sambaquis como uma combinação <strong>de</strong> elementos naturais ehumanos.Um <strong>de</strong>sdobramento <strong>da</strong> corrente “naturalista” resultou em importantescontribuições para o entendimento dos sambaquis. A idéia inicial <strong>de</strong> que os sambaquiseram resultado <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> forças naturais foi substituí<strong>da</strong> pela noção <strong>de</strong> que os sítios<strong>de</strong>marcavam processos naturais, ou seja, são indicadores <strong>da</strong> variação do nível do mardurante os últimos 10 mil anos (SUGUIO et al, 1992). As forças <strong>da</strong> natureza tambémforam convoca<strong>da</strong>s para construir interpretações sobre mu<strong>da</strong>nça social, bem à mo<strong>da</strong> <strong>da</strong>ecologia cultural que impregnou a arqueologia brasileira <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1960 até 90. Asdiferenças observa<strong>da</strong>s nos artefatos e na composição faunística <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s queintegram os sambaquis foram consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s evidências <strong>de</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> culturalassocia<strong>da</strong>s às cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ocupação. A evolução costeira dita<strong>da</strong> pela oscilação do níveldo mar forneceu a amarração ambiental para a elaboração dos esquemas interpretativos,em um momento no qual ain<strong>da</strong> não estavam disponíveis estudos regionais sistemáticossobre as mu<strong>da</strong>nças que ocorreram na costa brasileira (DIAS JUNIOR, 1969).A corrente “artificialista”, que acabou por predominar, reúne duas maneirasdistintas <strong>de</strong> perceber os sambaquis, e elas até hoje norteiam as pesquisas. A primeiraconsi<strong>de</strong>ra que os sambaquis, <strong>de</strong>vido à gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> restos faunísticos que oscompõem, são o resultado <strong>da</strong> acumulação casual <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> cozinha. A outra, em<strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> muitos sepultamentos, supõe que são monumentosfunerários. As distintas maneiras <strong>de</strong> perceber os sítios apontam para funçõesdiferencia<strong>da</strong>s dos assentamentos: a idéia que está por trás <strong>da</strong> primeira vertente é que osambaqui era local <strong>de</strong> moradia e, <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, que era cemitério.Pesquisas inicia<strong>da</strong>s no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990 colocaram mais uma vez em focoos esqueletos e acabaram por constatar que os gran<strong>de</strong>s sambaquis do sul <strong>de</strong> SantaCatarina apresentam indícios <strong>de</strong> terem sido exclusivamente cemitério: a ausência <strong>de</strong>evidências <strong>de</strong> locais <strong>de</strong> moradia, <strong>de</strong> lixo, <strong>de</strong> etapas <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> artefatos,associados ao fato <strong>de</strong> que todos os objetos estão espacialmente relacionados com osesqueletos, como também estão as estruturas i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s e a própria construção dossambaquis (FISH et al, 2000).O cerne <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sambaquieira parece ter sido garantir a preservação doscorpos, já que para os mortos foram criados locais especiais que se <strong>de</strong>stacam napaisagem e se distinguem <strong>de</strong> todos os outros. Os sambaquieiros escolheram, paraconstruir os cemitérios, material que assegurasse a preservação dos seus mortos. Com o44


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tacúmulo <strong>de</strong> conchas, criaram uma interferência no ambiente que neutralizou a aci<strong>de</strong>ztípica do solo brasileiro e há indícios <strong>de</strong> que eles controlavam os processos após a morte.Covas eram revisita<strong>da</strong>s, ossos eram manipulados, retirados <strong>de</strong> outros locais para integrarum novo ritual funerário, e eram também marcados e pintados. Esse mesmo cui<strong>da</strong>do comos corpos levou à construção <strong>de</strong> cercas no entorno <strong>da</strong>s covas, sendo a profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e aespessura <strong>da</strong>s estacas um impedimento à ação <strong>de</strong> animais carniceiros, resultando napreservação <strong>de</strong> esqueletos em posição anatômica (GASPAR, 2004). Segundo Fish ecolaboradores (2000), a repetição do ritual funerário acabou por criar um elementoobstrutivo <strong>da</strong> paisagem que, em virtu<strong>de</strong> do seu tamanho e configuração, perpetua amensagem que os seus construtores queriam transmitir. Os sucessivos eventos,diretamente relacionados com o processo <strong>de</strong> crescimento do sítio, informam para osfreqüentadores <strong>da</strong> costa brasileira que aquele é o domínio dos sambaquieiros e que láestavam os corpos dos pescadores-coletores. Dessa forma, e no momento, consi<strong>de</strong>ra-seque o sambaqui é o resultado <strong>de</strong> um intenso trabalho social que resultou na construção<strong>de</strong> uma paisagem domestica<strong>da</strong>, marca<strong>da</strong> por referências sentimentais.Assim, a maneira ou as maneiras como o sambaqui foi percebido ao longo <strong>da</strong>história <strong>da</strong> arqueologia brasileira norteou as interpretações e as técnicas <strong>de</strong> pesquisaaplica<strong>da</strong>s e, por último, construiu uma interpretação não só sobre o sítio, mas tambémsobre o modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos sambaquieiros.Vamos aos cachimbos. Objetos que <strong>de</strong>notam o gosto e o hábito dos africanos eseus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fumar. Artefatos <strong>de</strong> cerâmica, geralmente <strong>de</strong> coloração marromescuro com farta <strong>de</strong>coração. Frágeis e <strong>de</strong> produção local, portanto <strong>de</strong> fácil reposição.Cachimbos são tomados aqui como um indicador <strong>de</strong> espaços ocupados por escravos equilombolas, muito embora o seu uso tenha se difundido para além dos grupos africanostransplantados para cá. Na literatura sobre os escravos já era conheci<strong>da</strong> a existência <strong>de</strong>espaços <strong>de</strong> quilombolas no Recôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong> Guanabara. Gomes (1995, p.25),retomando uma figura <strong>da</strong> mitologia usa<strong>da</strong> pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, refere-se a “hidra norecôncavo <strong>da</strong> Guanabara” cujas “cabeças” <strong>de</strong>ssa terrível criatura eram as diversascomuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> fugitivos que surgiram pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1800 e estiveram ativas até ofinal do século e atormentavam moradores e autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s policiais. Dessa maneira, sabesesobre a existência <strong>de</strong> locais ocupados por africanos que conseguiram se <strong>de</strong>svencilhardos senhores <strong>de</strong> escravos certamente existiram. Cabe ressaltar que não se imagina umquilombo como o dos Palmares, pois é pouco provável a existência <strong>de</strong> um assentamento<strong>de</strong>ssa natureza tão próximo do centro político do Brasil.45


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA pesquisa arqueológica realiza<strong>da</strong> recentemente no recôncavo <strong>da</strong> baia <strong>de</strong>Guanabara localizou 42 sítios arqueológicos, entre sambaquis, al<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> ceramistas etestemunhos do Brasil Colônia. No que se refere aos assentamentos coloniais, foirecorrente a <strong>de</strong>scoberta, entre materiais <strong>de</strong> origem européia, <strong>de</strong> cachimbos <strong>de</strong> fabricaçãocom motivos que permitem estabelecer conexões com o mundo africano. No estudo <strong>da</strong>distribuição <strong>de</strong>ste artefato chama a atenção a sua ocorrência em espaços característicos<strong>de</strong> europeus, on<strong>de</strong> as construções eram quadrangulares, tendo pedras, tijolos e lajotascomo material construtivo e farta presença <strong>de</strong> louças, faianças, estribos, tramelas, óculos,moe<strong>da</strong>s e broches que compõem a tralha doméstica dos assentamentos coloniais.Nesses espaços, eventualmente associado a áreas <strong>de</strong> combustão, aparecem oscachimbos e/ou seus fragmentos. A sua presença reforça a idéia <strong>de</strong> que africanostambém ocupavam essas residências e que li<strong>da</strong>vam com a preparação <strong>da</strong> comi<strong>da</strong>(Figuras 4, 5 e 6).Figura 4 – Cachimbos do Recôncavo <strong>da</strong> Bahia <strong>de</strong> Guanabara.46


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 5 – Sítio Morro do Sol – Recôncavo <strong>da</strong> Bahia <strong>de</strong> GuanabaraFigura 6 – Sítio Morro do Sol – Recôncavo <strong>da</strong> Bahia <strong>de</strong> Guanabara47


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPorém, no estudo do conjunto <strong>de</strong> sítios, dois espaços se <strong>de</strong>stacam: os sítiosMacacu IV e Macacu II. Neles a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cachimbos e/ou fragmentos é muitasvezes superior à encontra<strong>da</strong> em outros sítios (Figura 7). Os estudos ain<strong>da</strong> estão eman<strong>da</strong>mento, mas trabalha-se com a hipótese <strong>de</strong> que Macacu II tenha sido uma bo<strong>de</strong>ga.Inúmeros vasilhames para conter líquidos, tigelas para comer, além <strong>de</strong> uma estrutura queparece ter sido construí<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r suporte a um tonel sugere tratar-se <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong>encontro on<strong>de</strong> europeus, africanos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes comiam e bebiam. A própriaimplantação às margens do Caceribu, facilmente acessível por embarcação, reforça essahipótese.Figura 7 – Gráfico <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> cachimbos por sítio.Já o Macacu IV apresenta outras características que mais interessam para atemática do patrimônio. Composto por uma construção tipicamente européia, tem a 70 mno sentido SW, uma área com sedimento escuro on<strong>de</strong> foram encontrados 90, ou seja 37% <strong>de</strong> todos os cachimbos e fragmentos. Ao lado <strong>de</strong> louças e faianças, alguns fragmentos<strong>de</strong> cerâmica e, especialmente, um vasilhame com alça <strong>de</strong>cora<strong>da</strong> com motivo <strong>de</strong> colméiae que parece ter sido intencionalmente assentado, reforça a idéia <strong>de</strong> que é um espaço <strong>de</strong>48


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tafricanos e/ou seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Embora exista a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> umasenzala e, <strong>de</strong>ssa forma, ter sido um espaço diretamente associado à construção emmol<strong>de</strong>s europeus, a relativa distância que dificultaria o controle dos escravos e aor<strong>de</strong>nação do espaço <strong>de</strong> maneira distinta dos mol<strong>de</strong>s europeus não corroboram estahipótese. Dessa forma, consi<strong>de</strong>ra-se, também, a hipótese <strong>de</strong> que Macacu IV tenha sidoum local <strong>de</strong> confluência <strong>de</strong> quilombolas, provavelmente um ponto estratégico na trama <strong>de</strong>fuga <strong>da</strong> escravidão (Figura 8).Figura 8 – Área E1/E2 correspon<strong>de</strong> a parte do Sítio Macacu IV que apresenta material africano.Foi a gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> cachimbos que chamou a atenção para esteespaço, que foi indubitavelmente ocupado por africanos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. A análisepreliminar realiza<strong>da</strong> por Camilla Agostini, ain<strong>da</strong> durante o período <strong>de</strong> trabalhos <strong>de</strong> campo,indicou a presença <strong>de</strong> pastas, maneiras <strong>de</strong> confecção e <strong>de</strong>coração varia<strong>da</strong>s, sugerindoque Macacu IV era um local <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> escravos oriundos <strong>de</strong> distintas locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do tipo relação que existia com os senhores europeus –subordinação total ou relativa in<strong>de</strong>pendência – trata-se <strong>de</strong> um espaço com característicaspeculiares e ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> arqueologia que se volta para o estudo doRecôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong> Guanabara – o celeiro <strong>da</strong> corte.49


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TComo a porção africana do Macacu IV não apresenta estruturas <strong>de</strong> pedra e calcomo as moradias do período colonial, ou mesmo características marcantes <strong>de</strong> algunssítios pré-coloniais como o amontoado <strong>de</strong> conchas dos sambaquis ou as al<strong>de</strong>iasTupinambá com urnas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dimensões e <strong>de</strong>coração particular, os sítiosarqueológicos dos quilombolas do Recôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong> Guanabara têm baixavisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> arqueológica e, por isso mesmo, e até então, não existiam enquanto umespaço na cartografia histórica. Não tinham a imprescindível materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> para torná-lossítios arqueológicos. Solo escurecido, marcas <strong>de</strong> estacas que compunham o que pareceter sido uma tapera e pequenos objetos como os cachimbos não são facilmentei<strong>de</strong>ntificados nas investigações do terreno. Este tipo <strong>de</strong> sítio arqueológico po<strong>de</strong> terpassado <strong>de</strong>spercebido durante as prospecções arqueológicas.As prospecções arqueológicas voltados para o estudo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s áreasdificilmente adotam estratégias <strong>de</strong> investigação do sub-solo que criam condições paralocalização <strong>de</strong> sítios arqueológicos discretos que, na maioria <strong>da</strong>s vezes, só sãoi<strong>de</strong>ntificados em estudos <strong>de</strong>talhados em que a malha <strong>de</strong> investigação é bem fecha<strong>da</strong>. Osedimento escuro que compõe o Macacu-4 tem baixa visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e é uma área do sítioarqueológico que está liberando importantes informações sobre a ocupação africana noRecôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong> Guanabara. Taperas eram construções leves, amarra<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ma<strong>de</strong>iras com coberturas <strong>de</strong> folhas e, por isso mesmo, com baixa visibili<strong>da</strong><strong>de</strong>arqueológica.Dessa forma, se não forem refina<strong>da</strong>s as estratégias <strong>de</strong> investigação arqueológica,muitas <strong>de</strong>ssas “taperas” e mesmo outros tipos <strong>de</strong> assentamentos relacionados com osafricanos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes não terão existência, não virão à luz e, <strong>de</strong>ssa forma, nãose terá idéia <strong>da</strong>s estratégias até hoje “invisíveis” adota<strong>da</strong>s por europeus, africanos e<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes nas fímbrias <strong>da</strong> corte. São sítios arqueológicos <strong>de</strong> baixa visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e,refletindo sobre esta característica, volto aos sambaquis e vou para o litoral sul <strong>de</strong> SantaCatarina, on<strong>de</strong> os estudos sobre a ocupação dos pescadores e coletores estão maisavança<strong>da</strong>s no momento. Se os monumentais sambaquis são cemitérios, on<strong>de</strong> viviam ossambaquieiros? Os gran<strong>de</strong>s sambaquis funcionaram, até então, como um forte ímã.Atraíram, quase exclusivamente, a atenção dos estudiosos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> pesquisaarqueológica no Brasil e até o final do século passado. Pesquisas recentes começam ainvestigar outros pequenos mounds, alguns com apenas 20 cm <strong>de</strong> espessura <strong>de</strong> cama<strong>da</strong>arqueológica. Investiga-se, também, e ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> maneira tími<strong>da</strong>, o espaço contido poressas pequenas estruturas, que apresentam surpreen<strong>de</strong>ntemente favoráveis condições<strong>de</strong> moradia (PEIXOTO, 2008). São sítios arqueológicos <strong>de</strong> baixa visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e se não50


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tforem adota<strong>da</strong>s estratégias a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s, também não virão à tona e serão tragados pelouso do solo característico <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, tempos que máquinas potentes aram,semeiam, colhem, mu<strong>da</strong>m o curso <strong>de</strong> rios e transformam totalmente a paisagem.Chegamos ao patrimônio, que para existir precisa ser conhecido, quer seja elematerial ou imaterial. No caso <strong>da</strong>s taperas dos quilombolas do Recôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong>Guanabara ou do local <strong>de</strong> moradia dos sambaquieiros é preciso valer-se doconhecimento já existente – quer seja a informação forneci<strong>da</strong> pelos historiadores queindicam que havia inúmeros assentamentos <strong>de</strong> quilombolas no Recôncavo <strong>da</strong> Baía <strong>de</strong>Guanabara ou os estudos <strong>de</strong> arqueólogos que não i<strong>de</strong>ntificaram traços característicos <strong>de</strong>moradia nos gran<strong>de</strong>s sambaquis do sul <strong>de</strong> Santa Catarina – e construir uma agen<strong>da</strong> <strong>de</strong>pesquisa que contemple técnicas <strong>de</strong> pesquisa especialmente a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s para localizartais assentamentos.Com essas reflexões, quis mostrar como as noções <strong>de</strong> arqueologia, culturamaterial e patrimônio estão profun<strong>da</strong>mente associa<strong>da</strong>s, sendo que a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las causa <strong>de</strong>sdobramentos no entendimento <strong>da</strong>s outras. A arqueologiaampliou suas fronteiras quando incorporou <strong>de</strong>finitivamente o estudo do período históricoe até mesmo do contemporâneo. <strong>Cultura</strong> material, que era muitas vezes toma<strong>da</strong> apenascomo sinônimo <strong>de</strong> artefatos, refere-se ao próprio corpo humano, no sentido que eletambém é mol<strong>da</strong>do através <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> cultura, aos arranjos espaciais e à própria paisagemapropria<strong>da</strong> por um <strong>de</strong>terminado segmento social, aqui incluindo a representaçãosimbólica <strong>da</strong> mesma. Patrimônio, por sua vez, toma sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong> ao incorporar a noção<strong>de</strong> patrimônio imaterial, e <strong>de</strong>ssa maneira abarca os elementos do mundo social quecongrega informações e/ou emoções que se quer manter presente na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.REFERÊNCIASBEZERRA DE MENESES, Ulpiano. A cultura material no estudo <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s antigas.Revista <strong>de</strong> História, 115 (Nova Série), p.103-117, 1983.DUARTE, Paulo. O Sambaqui visto através <strong>de</strong> alguns Sambaquis. São Paulo: Instituto <strong>de</strong>Pré-História <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1968FISH, Suzanne K.; DEBLASIS, Paulo; GASPAR, Maria Dulce; FISH, Paul R.. Eventosincrementais na construção <strong>de</strong> sambaquis, litoral sul do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina.Revista do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Arqueologia e Etnologia, n 10, p.69-87, 2000.FRANCHETTO, Bruna; LEITE, Yonne. Origens <strong>da</strong> linguagem. Coleção Ciências Sociais,Passo-a-passo, 41. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.GASPAR, Maria Dulce. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Coleção Descobrindoo Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.51


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T____________________. <strong>Cultura</strong>: comunicação, arte, orali<strong>da</strong><strong>de</strong> na pré-história do Brasil.Rev. do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Arqueologia e Etnologia, n.14, p.153-168, 2004.GEERTZ, Clifford A. A Interpretação <strong>da</strong>s culturas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar Editores, 1978.GUIDON, Nie<strong>de</strong>. Arqueologia <strong>da</strong> região do Parque Nacional Serra <strong>da</strong> Capivara. Antes –Histórias <strong>da</strong> Pré-história. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Centro <strong>Cultura</strong>l Banco do Brasil, p.132-141,2004HODDER, Ian. Theoretical archaeology: a reactionary view. In: HODDER, Ian (Ed.)Symbolic and Structural Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 69-79,1982.____________. Interpreting <strong>Material</strong> Culture. In: The Archaeological Process: anintroduction. Oxford: Blackwell Publishers Lt<strong>da</strong>., p.66-78, 1999.PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora UNB, 1991.DIAS JÚNIOR, On<strong>de</strong>mar F.. A fase Itaipu, sítios sobre dunas no Estado do Rio <strong>de</strong>Janeiro. In: Simpósio <strong>de</strong> Arqueologia <strong>da</strong> Área do Prata, III. São Leopoldo, Anais, n.20,p.5-12, 1969.SUGUIO, Kenitiro, MARTIN, Louis; FLEXOR, Jean-Marie. Paleoshorelines and thesambaquis of Brazil. In: JOHNSON, Lucille L. (Ed.) Paleoshorelines and prehistory: nainvestigation of method. Boca Raton: CRC Press, p.83-99, 1992.GOMES, Flavio dos Santos. História <strong>de</strong> Quilombolas, Mocambos e comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senzalas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2006.52


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPATRIMÔNIO DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA NASUNIVERSIDADES PORTUGUESAS:Breve panorama no contexto europeuMarta C. Lourenço *As coleções e os museus <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> ensino superior sofrem <strong>de</strong>problemas genéricos, pelo fato <strong>de</strong> serem tutelados por instituições <strong>de</strong>ensino superior, e sofrem <strong>de</strong> problemas específicos associados àspróprias disciplinas <strong>de</strong> base (Lourenço 2005, Lourenço & Carneiro 2006).Nesta breve nota vou sobretudo abor<strong>da</strong>r os segundos (e apenas no que se refere àsciências ditas exatas e engenharias), no entanto gostaria <strong>de</strong> fazer dois brevescomentários relativamente aos primeiros.Existe claramente um problema <strong>de</strong> financiamento que afeta to<strong>da</strong>s as coleçõesuniversitárias. As universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não sabem como financiar os seus museus (para facilitar,estou a utilizar a <strong>de</strong>signação universi<strong>da</strong><strong>de</strong> como sinônimo <strong>de</strong> ‘instituição <strong>de</strong> ensinosuperior’). Para além do sub-financiamento crônico que afeta to<strong>da</strong>s as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>seuropéias, e que em Portugal se sente com particular severi<strong>da</strong><strong>de</strong> nos últimos três anos, omo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> financiamento, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, sobretudo, do número <strong>de</strong> alunos, não secompa<strong>de</strong>ce com museus e coleções. Enquanto este problema não se resolver eenquanto aquilo que é diferente for tratado <strong>de</strong> forma igual, os museus e coleções serãovulneráveis e o patrimônio estará em risco.* Rua dos Prazeres 91-2, 1200-354 Lisboa, Portugal, mclourenco@museus.ul.pt. Licencia<strong>da</strong> e bacharelem Física pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (1992), Mestre em Museologia pelaFacul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Humanas e Sociais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa (2000), Ph.D. peloConservatoire National <strong>de</strong>s Arts et Métiers (Paris). Atualmente é pesquisadora do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong>Ciências <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (MCUL). Seus temas <strong>de</strong> pesquisa são Museologia, Históriados <strong>Museu</strong>s, História <strong>da</strong>s coleções, História e Epistemologia <strong>da</strong> Museologia.53


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TQue eu tenha conhecimento, o único país europeu que resolveu este problema foia Grã-Bretanha. Após um levantamento sistemático <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coleções, universi<strong>da</strong><strong>de</strong> auniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>partamento a <strong>de</strong>partamento, ocorrido entre 1984 e 2002 e que seencontra publicado (BASS, 1984a; BASS, 1984b; DRYSDALE, 1990; ARNOLD-FOSTER,1989, 1993, 1999; ARNOLD-FOSTER, WEEKS, 1999, 2000, 2001; COUNCIL OFMUSEUMS IN WALES, 2002; NORTHERN IRELAND MUSEUMS COUNCIL, 2002), ogoverno <strong>de</strong>u-se conta, não sem alguma surpresa, que uma enorme parte do patrimônionacional britânico se encontrava nas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, abandonado e muito abaixo dospadrões <strong>de</strong> preservação e acessibili<strong>da</strong><strong>de</strong> minimamente aceitáveis. Nessa altura, asuniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em conjunto, no seio <strong>da</strong> Universities UK (o Conselho <strong>de</strong> Reitores <strong>da</strong>suniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s inglesas) e com o apoio indispensável dos diretores dos museus nacionais,negociaram e conseguiram do governo britânico o financiamento direto do patrimônioartístico, científico e cultural <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Hoje os museus universitários britânicosforam profun<strong>da</strong>mente renovados e são os mais estáveis <strong>da</strong> Europa. Encontram-seabertos ao público, com um corpo <strong>de</strong> pessoal próprio, padrões <strong>de</strong> segurança econservação semelhantes aos outros gran<strong>de</strong>s museus britânicos e as coleçõesacessíveis online.Um segundo problema genérico dos museus universitários, talvez mais profundo,tem a ver com a sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo que o problema do financiamento sejaresolvido, não é para mim evi<strong>de</strong>nte que os museus e coleções universitárias sejamsustentáveis no contexto do panorama museológico europeu e português em particular.O mundo dos museus sofreu nas últimas quatro déca<strong>da</strong>s uma expansão muitoconsi<strong>de</strong>rável em quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e em quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>. A expectativa e exigência do públicoaumentaram consi<strong>de</strong>ravelmente. Os museus universitários sobreviverão com dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>sneste universo se a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do patrimônio universitário não for respeita<strong>da</strong> evaloriza<strong>da</strong> e se o seu papel na universi<strong>da</strong><strong>de</strong> e na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea não forclaramente compreendido e estabelecido. Neste momento não é, embora existam algunssinais positivos.Posto este preâmbulo <strong>de</strong> natureza mais geral vou entrar no tema <strong>da</strong>s coleções <strong>de</strong>ciência e tecnologia <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> ensino superior. Começarei por abor<strong>da</strong>r as suasorigens e constituição e num segundo momento, <strong>de</strong>bruçar-me-ei sobre a sua importância.54


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TORIGENS HISTÓRICAS DAS COLEÇÕES DE C&T NAS UNIVERSIDADESSe <strong>de</strong>ixarmos <strong>de</strong> lado as coleções <strong>de</strong> memorabilia associa<strong>da</strong>s à históriainstitucional (cetros, selos, trajes acadêmicos) e as coleções meramente <strong>de</strong>corativas (porexemplo jardins <strong>de</strong> esculturas, obras <strong>de</strong> arte que ornamentam corredores, salões nobrese gabinetes), costumo agrupar as coleções universitárias em duas gran<strong>de</strong>s categoriasconsoante os processos <strong>de</strong> constituição. Existem coleções cuja constituição é <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>e diretamente associa<strong>da</strong> à produção e transmissão <strong>de</strong> conhecimento científico e existemcoleções cuja constituição resulta <strong>de</strong> uma acumulação fortuita e <strong>de</strong>sorganiza<strong>da</strong>. Noprimeiro grupo, que existe nas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XVI(possivelmente até antes) estão as coleções <strong>de</strong> história natural, <strong>de</strong> arqueologia,antropologia, alguma medicina, os jardins botânicos, os herbários. Nestas coleções, aacumulação sistemática <strong>de</strong> espécimes e artefatos é epistemologicamente constitutiva <strong>da</strong>sciências representa<strong>da</strong>s. No segundo grupo estão as coleções <strong>de</strong> ciência e tecnologia, eadoto aqui a <strong>de</strong>finição do Conselho Internacional <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s (ICOM) como sendo aquelasque se encontram diretamente associa<strong>da</strong>s às ciências ditas exatas, tecnologias eengenharias. Nas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, elas têm origem nos gabinetes <strong>de</strong> ensino <strong>da</strong> filosofianatural dos séculos XVII e XVIII, embora apenas se constituam como coleções e museusno sentido corrente do termo no século XX (Lourenço 2004, Ferriot & Lourenço 2004).Entre os primeiros gabinetes terão estado, por exemplo, os Gabinetes <strong>de</strong> FilosofiaNatural <strong>de</strong> Lei<strong>de</strong>n (1675) e Utrecht (1706). Já em pleno século XVIII, o Gabinete <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pádua (1739), o Gabinete do Colégio dos Nobres (1761, transferido paraCoimbra em 1772 on<strong>de</strong> continuou a ser utilizado por Dalla Bella para o ensino) e oGabinete <strong>de</strong> Volta na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pavia (1778) são três importantes exemplos <strong>de</strong>gabinetes setecentistas que sobreviveram até aos nossos dias, pelo menos em parte.Este tipo <strong>de</strong> gabinetes <strong>de</strong> ensino prosseguiu pelo século XIX, muitas vezes tomandocomo mo<strong>de</strong>lo os museus nacionais que entretanto foram sendo criados em Paris,Londres, Praga, Lei<strong>de</strong>n (não esquecer que o Conservatoire National <strong>de</strong>s Arts et Métiersfoi criado em 1794 e no século XIX existe o movimento <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s exposições,associado à divulgação <strong>da</strong>s então recentes glórias <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> técnica dos estados esuas colônias, ao progresso industrial e ao positivismo).Nestes gabinetes <strong>de</strong> física do séc. XIX gosto particularmente <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar ogabinete <strong>de</strong> física do Istituto Tecnico Toscano <strong>de</strong> Florença, uma <strong>da</strong>s coleções <strong>de</strong>referência para a ciência e técnica oitocentista atualmente existentes na Europa e queabriu recentemente ao público, totalmente restaura<strong>da</strong>. É também neste contexto que são55


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tintegral acessibili<strong>da</strong><strong>de</strong> a médio e longo prazo. A Figura 1 apresenta uma imagem <strong>de</strong> uminstrumento do acervo do MCUL.Figura 1 - Superfícies regra<strong>da</strong>s para ensino <strong>da</strong> geometria (MCUL1117, Fabre <strong>de</strong> Lagrange, Paris,1871) (foto: V. Teixeira, Arquivo do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa).São to<strong>da</strong>s coleções muito importantes, testemunhos incontornáveis para acompreensão <strong>da</strong> história <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> técnica em Portugal. Se a isto juntarmos oprivilégio, único na Europa, <strong>de</strong> possuirmos um exemplar edificado <strong>de</strong> um laboratórioquímico do século XVIII (Coimbra), um outro do século XIX (Lisboa) e um outro do iníciodo século XX (Porto) – que é <strong>da</strong> maior importância preservar – ficamos com uma idéiamais clara do conjunto. Se ain<strong>da</strong> a isto juntarmos o patrimônio edificado <strong>da</strong> astronomia –nomea<strong>da</strong>mente dois observatórios astronômicos oitocentistas, um <strong>de</strong> ensino e outro <strong>de</strong>investigação, ambos na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa – compreen<strong>de</strong>-se que o patrimôniocientífico português tem uma importância que transcen<strong>de</strong> as nossas fronteiras, que estásub-valorizado e que tem absolutamente <strong>de</strong> ser preservado e tornado integralmenteacessível ao público e à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica nacional e internacional. A existência <strong>de</strong>um patrimônio científico tão significativo em Portugal <strong>de</strong>ve-se a um conjunto <strong>de</strong> razões57


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque não tenho oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r aqui mas que se pren<strong>de</strong>m com a falta <strong>de</strong>recursos, a situação geográfica periférica e o isolacionismo político e social do paísdurante gran<strong>de</strong> parte do século XX. A Figura 2 apresenta uma imagem do ObservatórioAstronômico <strong>da</strong> Escola Politécnica, hoje integrado no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> Lisboa.Figura 2 - Observatório Astronómico <strong>da</strong> Escola Politécnica, hoje integrado no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (foto M. Heller, Ministère <strong>de</strong> la Recherche, Paris).Dado que o <strong>Museu</strong> Nacional <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> Técnica, her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> uma históriainfelizmente muito atribula<strong>da</strong> e que se encontra atualmente sob tutela direta do Ministro<strong>da</strong> Ciência, <strong>Tecnologia</strong> e Ensino Superior, se encontra em fase <strong>de</strong> extinção silenciosa,quase secreta, e sendo o futuro do seu acervo <strong>de</strong>sconhecido neste momento, a fatia maisimportante do patrimônio científico português encontra-se hoje sob tutela exclusiva <strong>da</strong>sinstituições <strong>de</strong> ensino superior. Este fato reveste-se <strong>de</strong> uma enorme responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> etraz-nos <strong>de</strong> volta ao problema <strong>da</strong>s coleções universitárias. A Figura 3 apresenta uma58


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Timagem do Anfiteatro <strong>de</strong> Chimica, séc. XIX, integrado no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa e recentemente restaurado.Figura 3 - Anfiteatro <strong>de</strong> Chimica, séc. XIX, integrado no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Lisboa e recentemente restaurado (foto. P. Cintra, Arquivo do MCUL).CONSTITUIÇÃO DAS COLEÇÕES E MUSEUS DE C&T NAS UNIVERSIDADESAs coleções <strong>de</strong> ciência <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> ensino superior são <strong>de</strong> uma extremavulnerabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. São vulneráveis, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, na sua constituição. Tipicamente osinstrumentos, máquinas e mo<strong>de</strong>los são utilizados até à exaustão num contextolaboratorial <strong>de</strong> investigação e ensino, <strong>de</strong>pois passam por uma fase <strong>de</strong> semi-abandono emque partes po<strong>de</strong>m ser canibaliza<strong>da</strong>s, reutiliza<strong>da</strong>s etc e, finalmente, passam à fase <strong>de</strong>obsolescência e esquecimento total – em geral, numa cave ou num sótão <strong>de</strong> um<strong>de</strong>partamento. Não tenhamos ilusões, o <strong>de</strong>stino final e natural <strong>de</strong>ste equipamento nuncafoi no passado, nem é no presente, outro senão o lixo.O lixo só é evitado se alguém, tipicamente um professor, tiver a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>suficiente e estiver disposto a, <strong>de</strong> alguma maneira, proteger estes equipamentos. Se ascoleções existem hoje, é porque nalgum momento esse alguém, esse ‘anjo <strong>da</strong> guar<strong>da</strong>’dos instrumentos, existiu. Isto é completamente arbitrário, mas foi assim com as coleções59


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tportuguesas menciona<strong>da</strong>s em cima, foi assim com o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford, com o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Utrecht, com a coleção <strong>de</strong>Harvard, com a coleção <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Atenas, Tartu, e muitas outras.As universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nunca tiveram, nem têm, mecanismos internos próprios para asua salvaguar<strong>da</strong>, contrariamente às coleções <strong>de</strong> história natural, em que essesmecanismos existem há pelo menos 500 anos.Mas a arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong> não acaba no momento pré-lixo. Depois <strong>de</strong> salvas as peças,passam-se anos, por vezes déca<strong>da</strong>s, antes que o museu seja <strong>de</strong> fato constituído. Auniversi<strong>da</strong><strong>de</strong> não cria museus históricos naturalmente, quase sempre carece <strong>de</strong> umcatalisador, um momento <strong>de</strong> orgulho corporativo e vai<strong>da</strong><strong>de</strong>, em que celebre a sua história– nessa altura, as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s enchem-se <strong>de</strong> brio e mostram as suas jóias.O <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Utrecht foi criado na sequência <strong>de</strong> uma exposiçãoem 1936 quando a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> celebrou o seu tricentenário. O professor FernandoBragança Gil (1927-2009), fun<strong>da</strong>dor e primeiro diretor do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, andou anos a recolher e inventariar instrumentos, mas foipreciso que ocorresse uma exposição comemorativa dos 75 anos <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Ciências e 150 anos <strong>da</strong> Escola Politécnica no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80 para que o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong>Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa fosse criado. Custa a crer que uma coleção como ado Volta, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pavia, só tenha sido organiza<strong>da</strong> em museu e <strong>de</strong>sfruta<strong>da</strong> portodos em 1997, ano do Bicentenário <strong>da</strong> Pilha.Em suma, as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não possuem nem as estruturas nem o pessoal nem amotivação para acomo<strong>da</strong>r no seu seio museus <strong>de</strong>ste tipo, <strong>de</strong> história <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong>técnica. Não é por acaso que a constituição <strong>de</strong>stes museus só surge no século XX. Asuniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s reconhecem como muito relevante o seu papel <strong>de</strong> divulgação <strong>da</strong> ciêncianas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas, mas em geral li<strong>da</strong>m mal, não sabem, ou achamimpossível fazer divulgação <strong>da</strong> ciência a partir <strong>de</strong> equipamento histórico. Não tenhotempo <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r esta problemática aqui, mas a dicotomia mutuamente exclusivapatrimônio histórico vs. comunicação e divulgação <strong>da</strong> ciência tem sido muito prejudicialàs coleções científicas <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, inclusivamente às <strong>de</strong> história natural. Muitasuniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s optaram por centros <strong>de</strong> ciência, por vezes milionários, ao mesmo tempoque votam o seu patrimônio científico ao abandono. Outro problema importante é odivórcio entre os historiadores <strong>da</strong> ciência e os museus, embora recentemente se tenham<strong>da</strong>do passos importantes no sentido do aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> utilização <strong>da</strong>s coleções comofontes primárias para a história <strong>da</strong> ciência (e.g. HOPWOOD, 1999; SANCHEZ, BELMAR,60


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T2002; SIMON et al. 2005; DANCY, 2006; SIMON, 2008). Os grupos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Valência, Regensburg (Alemanha), Leeds, Manchester e Lisboa têm tido um papelrelevante nesta aproximação, bem como o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia do Rio <strong>de</strong> Janeiro, noBrasil.CONCLUSÃOAtravessamos hoje um momento-chave na longa história <strong>da</strong>s coleções e museus<strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> ensino superior. É um momento <strong>de</strong> crise, <strong>de</strong> transformação e muitasse irão per<strong>de</strong>r ou dispersar. Porém, é também um momento marcado por um interessecrescente pelo patrimônio universitário europeu. Nos últimos sete anos assistimos aoreconhecimento pelo ICOM <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos museus universitários através <strong>da</strong>criação do University <strong>Museu</strong>ms and Collections (UMAC) à criação <strong>da</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> museusuniversitários europeus, Universeum, a uma Recomen<strong>da</strong>ção do Conselho <strong>da</strong> Europasobre patrimônio universitário (SOUBIRAN et al., 2009) e a uma enorme multiplicação <strong>de</strong>estudos, conferências, publicações e até já algumas teses. Em Portugal, os museusuniversitários <strong>de</strong> ciência e tecnologia vão gradualmente ganhando visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> na opiniãopública e estabelecem parcerias para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetos comuns (como porexemplo o Projeto do Thesaurus <strong>de</strong> instrumentos científicos em língua portuguesa, emcolaboração com o Brasil, e que envolve todos os museus <strong>de</strong> ciência que atrás referi, àexceção do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong>s Ciências) (GRANATO, LOURENÇO, 2008).Apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s diárias, que parecem por vezes inultrapassáveis, épreciso que tomemos consciência que a situação em Portugal é melhor do que em 1978,quando a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong> Lisboa tinha acabado <strong>de</strong> ar<strong>de</strong>r e a AssociaçãoPortuguesa <strong>de</strong> Museologia (APOM, 1982) organizou um encontro em Coimbra para<strong>de</strong>bater o futuro dos museus universitários portugueses. Estou confiante que, comtrabalho <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e colaborações estreitas, é possível <strong>da</strong>r ao patrimônio universitárioa dimensão pública que ele precisa e merece.REFERÊNCIASAPOM 1982. <strong>Museu</strong>s Universitários, Sua inserção activa na cultura portuguesa [ActasColóquio APOM 1978, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, 29 <strong>de</strong> Novembro a 3 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong>1978]. APOM, Lisboa.61


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TARNOLD-FORSTER, Kate. The collections of the University of London. A report andsurvey of the museums, teaching and research collections administered by the Universityof London. London <strong>Museu</strong>ms Service, London, 1989._____________________. Held in trust: <strong>Museu</strong>ms and collections of universities innorthern England. HMSO, London, 1993._____________________. Beyond the Ark: <strong>Museu</strong>ms and collections of higher educationinstitutions in southern England. Southern <strong>Museu</strong>ms Agency, Winchester, UK, 1999.ARNOLD-FORSTER, Kate; WEEKS, Jane.. Minerals and magic lanterns. The universityand college collections of the south west. Somerset: South West <strong>Museu</strong>ms Council, 1999.__________________________________. Totems and trifles: museums and collectionsof higher education institutions in the Midlands. Bromsgrove: West Midlands regional<strong>Museu</strong>ms Council, 2000.__________________________________. A review of museums and collections ofhigher education institutions in the eastern region and the south east region of the SouthEastern <strong>Museu</strong>ms Service. Bury St Edmunds: South Eastern <strong>Museu</strong>ms Service, 2001.BASS, Helen. Survey of University <strong>Museu</strong>ms in South Eastern England. Milton Keynes:Area <strong>Museu</strong>ms Service for South Eastern England, 1984a.___________. A survey of museums and collections administered by the University ofLondon. London <strong>Museu</strong>ms Service, 1984b.COUNCIL OF MUSEUMS IN WALES. Dining amongst the bones: a survey of museumcollections in Welsh universities. Cardiff: Council of <strong>Museu</strong>ms in Wales, 2002.DANCY, J. . The thing to use. Stud. Hist. Phil. Sci., n.37, p.58-61, 2006.FERRIOT, D. ; LOURENÇO, Marta C.. De l’utilité <strong>de</strong>s musées et collections <strong>de</strong>suniversités. La Lettre <strong>de</strong> l’OCIM, n. 9, p.4-16, 2004.GRANATO, Marcus; LOURENÇO, Marta C.. 2008. Thesaurus of Scientific Instruments inPortuguese: A collaborative project between Brazil and Portugal. Poster presented at theScientific Instrument Commission Annual Meeting, <strong>Museu</strong>m of Science of the University ofLisbon, 15-21 September.HOPWOOD, Nick. Giving body to embryos. Mo<strong>de</strong>lling, mechanism, and the microtome inlate nineteenth-century anatomy. Isis, n. 9, p.462-496, 1999.LOURENÇO, Marta C.. Musées et collections <strong>de</strong>s universités: Les origines. La Revue[Musée <strong>de</strong>s Arts et Métiers], n.41, p.51-61, 2004.___________________. 2005. Between two worlds: The distinct nature and contemporarysignificance of university museums and collections in Europe. PhD dissertation,Conservatoire National <strong>de</strong>s Arts et Métiers, Paris, 2005. Supervisor:LOURENÇO, Marta C.; CARNEIRO, Ana. A propósito do Laboratório Chimico do <strong>Museu</strong><strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa: algumas reflexões sobre o patrimônio científicoem Portugal. Química – Boletim <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Química, n.103, p.63-70,2006.NORTHERN IRELAND MUSEUMS COUNCIL. A survey of the university collections inNorthern Ireland. Belfast: Northern Ireland <strong>Museu</strong>ms Council, 2002.SANCHÉZ, J.R.B.; BELMAR, A.G. (eds.). Abriendo las Cajas Negras: Los instrumentoscientíficos <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Valencia, València:Universitat <strong>de</strong> València, 2002.62


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TSIMON, Josep; BELMAR, A.G; SANCHÉZ, J.R.B.. Instrumentos y prácticas <strong>de</strong>enseñanza <strong>de</strong> las ciencias físicas y químicas en la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Valencia, durante elsiglo XIX. Endoxa, n.19, p.59-124, 2005.SIMON, Josep. Les col.leccions <strong>de</strong> física i química <strong>de</strong>ls instituts <strong>de</strong> secundària:Catalogació, estudi i metodologies. Actes d'Història <strong>de</strong> la Ciència i <strong>de</strong> la Tècnica n.1, v.1,p.85-94, 2008.SOUBIRAN, Sebastian; LOURENÇO, Marta C.; WITTJE, R.; TALAS, S.; BREMER, T..Initiatives européennes et patrimoine universitaire. La Lettre <strong>de</strong> l’OCIM, n.123, p.5-14,2009.63


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TUNA APROXIMACIÓN AL PATRIMONIO CIENTÍFICOEN ESPAÑAPedro Ruiz-Castell *En la actuali<strong>da</strong>d, el gobierno español está trabajando en el borrador <strong>de</strong> unAnteproyecto <strong>de</strong> Ley <strong>de</strong> la Ciencia y la Tecnología, que ha <strong>de</strong> regular laactivi<strong>da</strong>d científica en España. En dicho borrador existe un breve capítulo<strong>de</strong>dicado tanto a la difusión <strong>de</strong> resultados <strong>de</strong> esta activi<strong>da</strong>d como a<strong>de</strong>terminados temas relacionados con la cultura científica y tecnológica. Uno <strong>de</strong> losartículos <strong>de</strong> este capítulo está expresamente <strong>de</strong>dicado al Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencia yTecnología, la institución elegi<strong>da</strong> por la Administración General <strong>de</strong>l Estado para potenciary coordinar las actuaciones en materia <strong>de</strong> fomento <strong>de</strong> la cultura científica. 1Por <strong>de</strong>sgracia, no hay mención alguna al papel que han <strong>de</strong> jugar el patrimoniocientífico y tecnológico que esta institución alberga en este tipo <strong>de</strong> actuaciones. Bajo mipunto <strong>de</strong> vista, se trata <strong>de</strong> una gran oportuni<strong>da</strong>d perdi<strong>da</strong>. En primer lugar, porque pareceque las <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s colecciones que alberga dicha institución no merecen atenciónsuficiente como para ser menciona<strong>da</strong>s y consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como elementos cruciales en lapotenciación <strong>de</strong> la cultura científica y tecnológica <strong>de</strong>l país. Así pues, la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> cienciacomo cultura que se preten<strong>de</strong> difundir que<strong>da</strong> restringi<strong>da</strong> esencialmente a la explicación<strong>de</strong> los principios actuales <strong>de</strong> la ciencia, sin querer ahon<strong>da</strong>r en qué es la ciencia y en quéconsiste la activi<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l científico, relegando a la historia <strong>de</strong> la ciencia y <strong>de</strong> la culturamaterial <strong>de</strong> la ciencia a un papel secun<strong>da</strong>rio en dicho proceso.* Departament <strong>de</strong> Filosofia y Centre d’Història <strong>de</strong> la Ciència (CEHIC, Universitat Autònoma <strong>de</strong> Barcelona).pedro.ruiz.castell@uab.cat. Doutor em História <strong>da</strong> Ciência pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford, especialista emhistória <strong>da</strong> astronomia e dos instrumentos utilizados na astronomia, biologia molecular, microscópios, etc.Trabalhou no Museo <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong> la Ciencia e no Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencia y Tecnología <strong>de</strong> Madrid.Atualmente é professor do Departamento <strong>de</strong> Filosofia e do Centro <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Universai<strong>da</strong><strong>de</strong>Autônoma <strong>de</strong> Barcelona.1El borrador <strong>de</strong>l Anteproyecto <strong>de</strong> la Ley <strong>de</strong> la Ciencia y la Tecnología, pue<strong>de</strong> consultarse en:https://lcyt.fecyt.es/wp-content/uploads/2009/02/borrador-cero-alcyt-11_02_09.pdf (Marzo, 2009).64


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPero más importante es el hecho <strong>de</strong> que, en la actuali<strong>da</strong>d, no exista en Españaningún protocolo <strong>de</strong> actuación eficaz para po<strong>de</strong>r salvaguar<strong>da</strong>r la mayor parte <strong>de</strong> losinstrumentos o maquinarias que son utilizados en los diferentes centros <strong>de</strong> investigación<strong>de</strong>l país, principalmente aquellos <strong>de</strong>pendientes <strong>de</strong> la Administración General <strong>de</strong>l Estado.En otras palabras, se necesita una institución con la autori<strong>da</strong>d suficiente como para, a lahora <strong>de</strong> <strong>de</strong>smantelar <strong>de</strong>terminados espacios con un instrumental que pudiera serconsi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> patrimonio histórico científico o tecnológico, evitar que sean <strong>de</strong>sechados yasegurar que se siga un procedimiento que garantice su conservación y traslado aaquellas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a tal efecto, como pue<strong>da</strong> ser el propio Museo Nacional <strong>de</strong>Ciencia y Tecnología, el Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencias Naturales, el Museo Geominero,etc.Por consiguiente, la <strong>de</strong>fensa y protección <strong>de</strong>l patrimonio científico y tecnológico enEspaña seguirá rigiéndose por la Ley <strong>de</strong>l Patrimonio Histórico Español que <strong>da</strong>ta <strong>de</strong>l 25 <strong>de</strong>junio <strong>de</strong> 1985. Una ley que no aporta ningún tipo <strong>de</strong> mecanismo específico <strong>de</strong> gestión yactuación para salvaguar<strong>da</strong>r el patrimonio científico-técnico, si bien es cierto que loequipara a inmuebles y objetos muebles <strong>de</strong> interés artístico, histórico, paleontológico,arqueológico, etnográfico, etc. El problema <strong>de</strong> esta ley, empero, es que resulta<strong>de</strong>masiado genérica y que no recoge aquellos aspectos más controvertidos que se<strong>de</strong>rivan <strong>de</strong> las especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>l patrimonio científico y tecnológico, en particular <strong>de</strong>lpatrimonio contemporáneo. Unas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se pondrán <strong>de</strong> manifiesto a lo largo<strong>de</strong> este texto.¿Pero cuál es el estado real <strong>de</strong>l patrimonio científico en España a día <strong>de</strong> hoy? Lassiguientes líneas preten<strong>de</strong>n abor<strong>da</strong>r esta cuestión y proporcionar una aproximación a lasituación actual en que se encuentra este patrimonio, enumerando algunas <strong>de</strong> lascolecciones más importantes, su localización y composición, así como enumerar algunos<strong>de</strong> los problemas y retos a los que hay que hacer frente.LOS PRIMEROS GABINETESEmpezaremos por algunas <strong>de</strong> las primeras colecciones científicas españolas <strong>de</strong>que se tiene constancia. Como es sabido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finales <strong>de</strong> la E<strong>da</strong>d Media, numerososnobles y eruditos europeos <strong>de</strong>dicaron gran parte <strong>de</strong> su tiempo a la recopilación <strong>de</strong> objetos<strong>de</strong> bellas artes y otros muchos relacionados con el mundo antiguo. Una <strong>de</strong> las principalesmotivaciones para la colección <strong>de</strong> este tipo <strong>de</strong> objetos se basaba en las componentesmágico-religiosas o curativas que se les atribuía. Des<strong>de</strong> un punto <strong>de</strong> vista más65


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpragmático, la acumulación <strong>de</strong> piezas preciosas era una activi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> gran atractivo paralas familias más pudientes, <strong>da</strong>do su fácil canje por dinero y transporte en caso <strong>de</strong> peligro.Con el tiempo, estas colecciones acabarían entendiéndose como un mo<strong>de</strong>loexperimental: un microcosmos a partir <strong>de</strong>l cual conquistar el conocimiento <strong>de</strong>lmacrocosmos. La reflexión sobre el mundo natural se veía favoreci<strong>da</strong> por el control quese ejercía <strong>de</strong> un espacio limitado en el que se pretendía representar to<strong>da</strong> la naturaleza(OLMI, 1985), ya fuera mediante elementos como las cartas geográficas que permitíandominar todos los territorios conocidos o gracias a los relojes con los que medir el tiempo(FINDLEN, 1994; MACDONALD, 1998). Con el tiempo, estas colecciones se convirtieronen herramientas <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> política, puesto que la capaci<strong>da</strong>d <strong>de</strong> asombrar alexcepcional y privilegiado visitante mediante los objetos allí expuestos se convirtió en unsímbolo <strong>de</strong> magnificencia <strong>de</strong>l propietario. Esto explica en parte el progresivo aumento <strong>de</strong>estos gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ampliamente difundidos y replicados por parte <strong>de</strong> lanobleza y la alta burguesía europea barroca.En España, al igual que en el resto <strong>de</strong> Europa, algunos nobles y eruditos se<strong>de</strong>dicaron a este tipo <strong>de</strong> coleccionismo ecléctico. Un buen ejemplo es el <strong>de</strong>l oscenseVincencio Juan <strong>de</strong> Lastanosa (1607–1681), propietario <strong>de</strong> una extensa colección dispersapor su palacio. 2 De forma muy similar a como sucedía en el resto <strong>de</strong> Europa, elcrecimiento <strong>de</strong> su colección fue posible gracias a la red <strong>de</strong> contactos que estableció. Porejemplo, sabemos que obtuvo algunos <strong>de</strong> los más raros libros <strong>de</strong> química <strong>de</strong>l ilustre nobleveneciano Camilo Locarni. 3 La correspon<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> Lastanosa se extendió a otras figuras<strong>de</strong> diferentes lugares <strong>de</strong> Europa, como Juan Baptista Dru, Herbolario <strong>de</strong>l Rey <strong>de</strong> Francia,o el Con<strong>de</strong> Vincencio Mariscoti, <strong>de</strong> Bolonia. Sus relaciones se extendían a otras muchasciu<strong>da</strong><strong>de</strong>s tanto españolas como extranjeras, como Bur<strong>de</strong>os o París.Al igual que muchos nobles y eruditos coleccionistas <strong>de</strong> to<strong>da</strong> Europa, Lastanosaacumuló sistemáticamente to<strong>da</strong> clase <strong>de</strong> objetos singulares en su colección: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> armas(antiguas y mo<strong>de</strong>rnas) y vestimentas <strong>de</strong> caballos hasta “monstruosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> laNaturaleza”, incluyendo esqueletos y cuernos monstruosos, así como estampas y mapas,instrumentos matemáticos y ópticos (como esferas armilares, cuadrantes, astrolabios yanillos astronómicos hasta compases <strong>de</strong> proporción, varas <strong>de</strong> medi<strong>da</strong>, escuadras,cartabones, niveles, pantómetras, microscopios, espejos, etc.) y todo tipo <strong>de</strong> huevos,2 Véase: (RUIZ CASTELL, 2007).–1681). La pasión <strong>de</strong> saber (Huesca: Instituto <strong>de</strong> Estudios Altoaragoneses,2007), 159–165.3 Narración <strong>de</strong> lo que le pasó a Don Vincencio Lastanosa a 15 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong>l año 1662 con un religioso doctoy grave, Manuscrito B-2424 <strong>de</strong> la Hispanic Society of America (New York), f.52r.-79v.66


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcaracoles, conchas, pescados acecinados, galápagos, pe<strong>da</strong>zos <strong>de</strong> coral, minerales,piedras preciosas, árboles, plantas, frutas, aves, peces, tortugas, ranas, sanguijuelas,lombrices y numerosos libros <strong>de</strong> historia, filosofía, poesía, política, matemáticas,geometría, aritmética, astrología, cosmografía, hidrografía, geografía, perspectiva, óptica,pintura, arquitectura, arte militar, relojería, música, agrimensura, jardines, biología,mineralogía, química, botánica, medicina, cirugía, anatomía, etc. 4Con el tiempo, el interés por coleccionar diferentes aspectos <strong>de</strong>l mundo naturalfacilitó la consoli<strong>da</strong>ción <strong>de</strong> los estudios <strong>de</strong> historia natural como disciplina y su posterior<strong>de</strong>sarrollo a lo largo <strong>de</strong> la E<strong>da</strong>d Mo<strong>de</strong>rna, principalmente como consecuencia tanto <strong>de</strong>lrenovado interés <strong>de</strong> los humanistas por los estudios <strong>de</strong> este tipo realizados por losantiguos, así como por la llega<strong>da</strong>, a partir <strong>de</strong> la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong> este siglo, <strong>de</strong> extrañasplantas, animales y minerales proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>l <strong>de</strong>scubrimiento <strong>de</strong>l Nuevo Mundo y <strong>de</strong>otras exploraciones geográficas relaciona<strong>da</strong>s con el fomento <strong>de</strong> nuevas vías comerciales.De este modo, poco a poco se crearon nuevas colecciones por parte <strong>de</strong> eruditos,principalmente médicos, farmacéuticos o profesores universitarios, interesados encompren<strong>de</strong>r los misterios y el comportamiento <strong>de</strong> la naturaleza, y que <strong>da</strong>rían pie, con eltiempo, a la creación <strong>de</strong> herbarios, colecciones <strong>de</strong> historia natural y jardines botánicos.Por <strong>de</strong>sgracia, a pesar <strong>de</strong> los testimonios escritos que se tienen <strong>de</strong> este tipo <strong>de</strong>colecciones <strong>de</strong> nobles y eruditos españoles renacentistas, son muy pocas las que hansobrevivido hasta nuestros días. Una <strong>de</strong> las pocas excepciones es el gabinete <strong>de</strong> historianatural <strong>de</strong>l Instituto Botánico <strong>de</strong> Barcelona. Como bien es sabido, la gran mayoría <strong>de</strong>estas colecciones <strong>de</strong> historia natural renacentistas estaban bastante especializa<strong>da</strong>s yorienta<strong>da</strong>s a proporcionar recursos educativos y profesionales. De hecho, el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong>este tipo <strong>de</strong> colección coincidió en el tiempo con el impulso recibido por estudiosexperimentales como la medicina, lo que motivó unas políticas <strong>de</strong> adquisición y exhibiciónclaramente vincula<strong>da</strong>s a la exploración <strong>de</strong>l mundo natural y ca<strong>da</strong> vez menos sujetas aaspectos ocultos y sobrenaturales. Tal fue el caso <strong>de</strong> las colecciones forma<strong>da</strong>s pormédicos y profesores universitarios en la Italia <strong>de</strong> finales <strong>de</strong>l siglo XVI, en las que se<strong>de</strong>tecta un creciente interés por el estudio <strong>de</strong> plantas, hierbas, raíces y minerales. Esteinterés generó una amplia red <strong>de</strong> contactos e intercambios entre coleccionistas.En particular, el origen <strong>de</strong>l gabinete <strong>de</strong> historia natural <strong>de</strong>l Instituto Botánico <strong>de</strong>Barcelona se remonta a la figura <strong>de</strong> Joan Salvador i Boscà (1598–1681), miembro <strong>de</strong>l4 Ibi<strong>de</strong>m. Véase también: J. F. A. <strong>de</strong> Uztarroz, Descripción <strong>de</strong>l palacio y los jardines <strong>de</strong> Vincencio Juan <strong>de</strong>Lastanosa, Manuscrito B-2424 <strong>de</strong> la Hispanic Society of America (Nueva York), f.24r.-51v; y el Catálogo <strong>de</strong> laBiblioteca <strong>de</strong> Vincencio Juan <strong>de</strong> Lastanosa, Biblioteca Real <strong>de</strong> Estocolmo (U-379).67


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TColegio <strong>de</strong> Apotecarios <strong>de</strong> Barcelona <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1616, quien mantuvo contactos condiferentes botánicos europeos como Jacques Barrelier (1606–1673). La colección fueamplia<strong>da</strong> por su hijo, el también apotecario Jaume Salvador i Pedrol (1649–1740), quienestudió en Montpellier con Pierre Magnol (1638–1715) y posteriormente creó el primerjardín botánico privado <strong>de</strong> España. La tercera generación <strong>de</strong> esta saga la encabezó JoanSalvador i Riera (1683–1725), quien al igual que su padre, completó su formación enMontpelier y posteriormente en París, don<strong>de</strong> estudió con Joseph Pitton <strong>de</strong> Torunefort(1856–1708).Durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1710 Joan Salvador realizó varias expediciones, entre lasque <strong>de</strong>staca su exploración <strong>de</strong>talla<strong>da</strong> Mallorca y Menorca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el punto <strong>de</strong> vistabotánico –en don<strong>de</strong> recopiló abun<strong>da</strong>nte información, plantes y semillas cuyos duplicadosintercambió con muchos <strong>de</strong> sus corresponsales–, así como su viaje por la PenínsulaIbérica en compañía <strong>de</strong> Antonie <strong>de</strong> Jussieu (1686– 1758) siguiendo los itinerarios <strong>de</strong>Tournefort, don<strong>de</strong> también recolectó numerosos ejemplares que dieron al herbario suconfiguración <strong>de</strong>finitiva. Su hermano Josep Salvador i Riera (1690–1761) también estudióen Montpellier, don<strong>de</strong> fue discípulo <strong>de</strong> Bernard <strong>de</strong> Jussieu (1699–1777), iniciador <strong>de</strong>lmétodo natural <strong>de</strong> clasificación <strong>de</strong> las plantas. Al igual que su hermano, Josep Salvadorrealizó distintas expediciones, entre las que <strong>de</strong>staca su herborización <strong>de</strong> Menorca. Másaún, fue quien encargó el mobiliario que actualmente preserva las colecciones <strong>de</strong> lafamilia Salvador en el Instituto Botánico <strong>de</strong> Barcelona.Tal y como hemos dicho, este gabinete <strong>de</strong> historia natural, se ha conservadoprácticamente en su totali<strong>da</strong>d hasta nuestro día. Expuesto en el Instituto Botánico <strong>de</strong>Barcelona, el gabinete estaba formado por diferentes colecciones, incluyendo las <strong>de</strong>cuerpos simples (substancias <strong>de</strong> origen animal, vegetal o mineral que se utilizaban parala elaboración <strong>de</strong> los medicamentos), animales disecados o conservados en diversassoluciones (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> insectos y peces hasta cornamentas), conchas <strong>de</strong> distintos moluscos,piedras y minerales (utilizados en diferentes artes o representativos <strong>de</strong> la zona parafacilitar el estudio <strong>de</strong>l terreno), antigüe<strong>da</strong><strong>de</strong>s y objetos arqueológicos, armas, me<strong>da</strong>llas ymone<strong>da</strong>s e instrumentos científicos y obras <strong>de</strong> ingenio.Con todo, la parte <strong>de</strong>l gabinete que más atención ha recibido por parte <strong>de</strong> losinvestigadores ha sido, lógicamente, el herbario histórico, con casi cuatro mil pliegues <strong>de</strong>los siglos XVII y XVIII proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> diferentes lugares <strong>de</strong> la Península Ibérica, Francia,68


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TItalia y distintos jardines botánicos europeos. 5 A<strong>de</strong>más, se ha conservado gran parte <strong>de</strong>lintercambio epistolar <strong>de</strong> los miembros <strong>de</strong> la familia Salvador con muchos otros eruditoseuropeos, así como <strong>de</strong> la nutri<strong>da</strong> biblioteca <strong>de</strong>l gabinete, con más <strong>de</strong> 1300 ejemplares <strong>de</strong>diferentes libros <strong>de</strong> historia natural, agricultura, medicina, cirugía, farmacopea, alquimia,matemática, literatura, filosofía, geografía, viajes, etc. (MONTSERRAT; TOMÁS, 2008).En la actuali<strong>da</strong>d se está trabajando en una exposición que preten<strong>de</strong> <strong>da</strong>r más visibili<strong>da</strong>d auno <strong>de</strong> los tesoros menos conocidos <strong>de</strong> la ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Barcelona y que, con to<strong>da</strong>seguri<strong>da</strong>d, tendrá un hueco en el nuevo <strong>Museu</strong> Nacional <strong>de</strong> Ciències Naturals <strong>de</strong>Catalunya que se está diseñando y que será inaugurado en los próximos años.LOS MUSEOS ESPAÑOLES Y EL PATRIMONIO CIENTÍFICO Y TECNOLÓGICOPese a que no se conocen colecciones similares que hayan sobrevivido hasta nuestrosdías, no po<strong>de</strong>mos olvi<strong>da</strong>r que existe un importante número <strong>de</strong> instrumentos científicos <strong>de</strong>este período que se conservan en otras instituciones. Por ejemplo, el patrimonio científicoespañol <strong>de</strong> este período que pertenece a Patrimonio Nacional, el organismo público quecustodia los bienes <strong>de</strong> titulari<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l Estado afectados al uso y servicio <strong>de</strong>l Rey y <strong>de</strong> losmiembros <strong>de</strong> la Real Familia. A<strong>de</strong>más <strong>de</strong> su importante colección <strong>de</strong> relojes, <strong>de</strong>staca elReal Monasterio <strong>de</strong> San Lorenzo en El Escorial, en cuya biblioteca, una <strong>de</strong> las másimportantes <strong>de</strong>l mundo, hay instrumentos tan interesantes como la esfera armilar <strong>de</strong>finales <strong>de</strong>l siglo XVI - atribui<strong>da</strong> a Antonio Santucci <strong>de</strong>lle Pomarance -. 6 .Por su parte, hay otras instituciones en las que también hallamos ejemplos<strong>de</strong>stacados <strong>de</strong>l patrimonio científico y técnico español, como en el Museo ArqueológicoNacional <strong>de</strong> Madrid, don<strong>de</strong> encontramos <strong>de</strong>se una bomba hidráulica romana hasta uncuadrante norteafricano bajomedieval, pasando por un astrolabio <strong>de</strong>l s. XI <strong>de</strong> Ibrahim ibnSail al-Sahli. Del mismo modo, el Museo Naval <strong>de</strong> Madrid cuenta con una importantecolección <strong>de</strong> instrumentos científicos que <strong>da</strong>tan <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el siglo XVI y vinculados al<strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> la astronomía y la navegación. Por poner otro ejemplo, la Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> laHistoria conserva una magnífica colección <strong>de</strong> varas castellanas.Otras instituciones públicas españolas, como la Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Madrid,poseen también ejemplares únicos, como el compendio <strong>de</strong> topografía y fortificaciones5 Sobre el herbario y la correspon<strong>de</strong>ncia relativa al mismo estableci<strong>da</strong> por los diferentes miembros <strong>de</strong> lafamilia Salvador, véase por ejemplo: (BOLOS, 1946); (CAMARASA, AMIGÓ, 1993), (CAMARASA, 1995,2000, 2007); (CORTINA, 2006).6 (RIGHINI-BONELLI, 1967). Sobre los instrumentos científicos conservados en el Escorial, véase porejemplo: CLEEMPOEL, 2009).69


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tconstruido por el jesuita José Zaragoza en 1675, por encargo <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> la Cer<strong>da</strong>,Duque <strong>de</strong> Medinaceli, para Carlos II con motivo <strong>de</strong> su <strong>de</strong>cimocuarto cumpleaños.(Zaragoza, 1675). Este compendio, en particular, estuvo durante varios años <strong>de</strong>positadoen el Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencia y Tecnología <strong>de</strong> Madrid, don<strong>de</strong> se conserva unaimportante colección <strong>de</strong> instrumentos científicos para la enseñanza <strong>de</strong> las matemáticasmixtas proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>l Instituto San Isidro, institución here<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> las colecciones quepertenecieron a la Real Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> matemáticas fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Felipe II, el ColegioImperial y los Reales Estudios <strong>de</strong> San Isidro instaurados por Carlos III. 7 De hecho, estafue una <strong>de</strong> las primeras colecciones adquiri<strong>da</strong>s por este museo, creado por <strong>de</strong>creto ley el30 <strong>de</strong> junio <strong>de</strong> 1980 sin poseer colección alguna y que, poco a poco, fue aumentandosus fondos con instrumentos y colecciones <strong>de</strong> periodos posteriores proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>instituciones como la Facultad <strong>de</strong> Ciencias Físicas <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d Complutense <strong>de</strong>Madrid o el Instituto Geográfico Nacional, 8 hasta llegar a los más <strong>de</strong> diez mil objetos quealbergan sus almacenes en la actuali<strong>da</strong>d.A pesar <strong>de</strong> haberse convertido en poco menos <strong>de</strong> treinta años en una institución<strong>de</strong> referencia en el ámbito nacional, tal y como hemos <strong>de</strong>stacado al principio, no existeprotocolo alguno que obligue a las instituciones públicas a contactar con este centro a lahora <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar maquinaria o instrumental científico. Un importante problema que, sindu<strong>da</strong>, está haciendo que gran parte <strong>de</strong>l patrimonio científico y tecnológico contemporáneose pue<strong>da</strong> per<strong>de</strong>r para siempre. Con todo, el Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencia y Tecnología noes el único museo nacional <strong>de</strong>dicado a preservar el patrimonio científico y tecnológico <strong>de</strong>lpaís. Por ejemplo, el Museo Geominero <strong>de</strong> Madrid alberga una colección <strong>de</strong> mineralogíay petrología que consta <strong>de</strong> más <strong>de</strong> diez mil muestras y una colección paleontológica concerca <strong>de</strong> treinta mil fósiles que proce<strong>de</strong>n <strong>de</strong> trabajos realizados por personajes ilustres <strong>de</strong>la geología y la minería españolas. No en vano, el origen <strong>de</strong> esta institución, que a lolargo <strong>de</strong> los años se ha nutrido <strong>de</strong> los trabajos e investigaciones geológicas y mineras <strong>de</strong>lInstituto Geológico y Minero Español, se remonta a la creación <strong>de</strong> la Comisión <strong>de</strong>l MapaGeológico <strong>de</strong> España en 1849.Más allá <strong>de</strong> su valor histórico, una <strong>de</strong> las características específicas <strong>de</strong> este tipo<strong>de</strong> colecciones, en continuo crecimiento gracias a la tarea investigadora <strong>de</strong> los científicos,es su importancia a la hora <strong>de</strong> realizar investigaciones científicas avanza<strong>da</strong>s en laactuali<strong>da</strong>d. Uno <strong>de</strong> los casos paradigmáticos es el <strong>de</strong> los estudios taxonómicos que se7 Véase, por ejemplo: (Jiménez, Martínez, Sebastián, 1995).8 Véase, por ejemplo: (Rodríguez et al, 2000).70


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Trealizan en el Museo Nacional <strong>de</strong> Ciencias Naturales <strong>de</strong> Madrid, cuyos orígenes seremontan al Real Gabinete <strong>de</strong> Historia Natural fun<strong>da</strong>do en 1771 por Carlos III. De hecho,sus colecciones resultan <strong>de</strong> consulta obliga<strong>da</strong> en trabajos como la <strong>de</strong>scripción <strong>de</strong> nuevasespecies. En particular, <strong>de</strong>stacan sus colecciones <strong>de</strong> anfibios (unos treinta y cinco milejemplares), reptiles (unos veinte mil), invertebrados (unos trescientos mil), aves (unastreinta mil) y mamíferos (unos veintisiete mil), la mayor parte <strong>de</strong> ellos pertenecientes a lafauna Española, aunque también proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Filipinas, Latinoamérica, Norte <strong>de</strong> Áfricay Guinea Ecuatorial, así como su colección <strong>de</strong> entomología con más <strong>de</strong> dos millones <strong>de</strong>insectos clasificados, proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>l trabajo realizado por naturalistas españoles <strong>de</strong>mediados <strong>de</strong>l siglo XIX y principios <strong>de</strong>l XX. El museo conserva también algunosinstrumentos científicos empleados por algunos <strong>de</strong> los científicos que trabajaron a lo largo<strong>de</strong> los años en esta institución.Igualmente, el patrimonio científico conservado en los jardines botánicos quepo<strong>de</strong>mos encontrar por todo el territorio español es utilizado en la actuali<strong>da</strong>d para po<strong>de</strong>r<strong>de</strong>sarrollar <strong>de</strong>terminados proyectos <strong>de</strong> investigación científica. Muchos <strong>de</strong> estos jardineshan estado ligados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sus orígenes a la enseñanza <strong>de</strong> la botánica y/o la medicina. Tales el caso <strong>de</strong>l Real Jardín Botánico <strong>de</strong> Madrid, creado el 17 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1755 por or<strong>de</strong>n<strong>de</strong> Fernando VI. En particular, su herbario, con más un millón <strong>de</strong> ejemplares, es una <strong>de</strong>las piezas centrales en la tarea científica e investigadora <strong>de</strong> esta institución, siendo elmás gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> España y uno <strong>de</strong> los más representativos <strong>de</strong> Europa con ejemplares <strong>de</strong> laPenínsula Ibérica y plantas tipo proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> expediciones históricas a América y alPacífico, auspicia<strong>da</strong>s por esta institución durante los siglos XVIII y XIX y en las queparticiparon <strong>de</strong>stacados botánicos españoles.Terminaremos esta sección, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a algunos <strong>de</strong> los museos con coleccioneshistórico-científicas más importantes que po<strong>de</strong>mos encontrar en España, con unamención especial al <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> la Ciència i <strong>de</strong> la Tècnica <strong>de</strong> Catalunya, un sistematerritorial formado por una red <strong>de</strong> veinticinco museos, establecimientos y colecciones <strong>de</strong>interés científico y/o tecnológico, cuya se<strong>de</strong> central está en la antigua nave <strong>de</strong> producción<strong>de</strong>l Vapor Aymerich, Amat y Jover, en la locali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Terrassa. Se trata <strong>de</strong> una institución<strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a custodiar el patrimonio industrial catalán y utilizarlo para po<strong>de</strong>r explicar elproceso <strong>de</strong> industrialización <strong>de</strong> Cataluña. 9 La estrategia <strong>de</strong> esta estructura organizativatransversal que es el <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> la Ciència i <strong>de</strong> la Tècnica <strong>de</strong> Catalunya ha <strong>da</strong>doimportantes frutos a lo largo <strong>de</strong> los últimos años, no sólo por su labor a la hora <strong>de</strong> valorar9 http://www.mnactec.cat/sistema_museus.php71


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tel patrimonio industrial catalán y facilitar el inventario <strong>de</strong> colecciones industrialescientíficas, sino también por su papel a la hora <strong>de</strong> regenerar entornos industriales en<strong>de</strong>suso y potenciar económicamente las zonas don<strong>de</strong> se ubican los diferentes museosque lo conforman, explotando to<strong>da</strong>s las singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s específicas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uno <strong>de</strong> estoslugares.COLECCIONES PARA LA ENSEÑANZATal y como hemos visto, una parte <strong>de</strong>l patrimonio científico y tecnológico español seencuentra salvaguar<strong>da</strong>do en instituciones que son conscientes <strong>de</strong> su valor e importancia,como pue<strong>da</strong> ser el caso <strong>de</strong> los museos. Sin embargo, no siempre es el caso. A veces,incluso aunque exista cierta sensibili<strong>da</strong>d hacia este patrimonio, las instituciones queacogen colecciones histórico-científicas no cuentan con medios para preservarlas ymantenerlas en un estado aceptable. Tal es el caso <strong>de</strong> muchos centros <strong>de</strong> enseñanzaque poseen un importante patrimonio científico que en principio fue adquirido para ladocencia. En la gran mayoría <strong>de</strong> los casos, este patrimonio <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> los siglos XIX y XX.De hecho, muchas <strong>de</strong> estas colecciones científicas se consoli<strong>da</strong>ron a lo largo <strong>de</strong>la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong>l siglo XIX como consecuencia <strong>de</strong> la reforma educativa promovi<strong>da</strong>por Claudio Moyano y Samaniego en 1857, que significó la creación <strong>de</strong> las faculta<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ciencia en la universi<strong>da</strong>d española. Dicha reforma, al socaire <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> que la cienciaera el motor <strong>de</strong> la industria y la mo<strong>de</strong>rnización (Ron, 1999), supuso un hito <strong>de</strong> grantrascen<strong>de</strong>ncia en un siglo caracterizado por la inestabili<strong>da</strong>d política que, sin embargo,encontró en la libertad <strong>de</strong> pensamiento <strong>de</strong>l Bienio Progresista (1854–1856) y <strong>de</strong> laRevolución Gloriosa (1868–1874) la inspiración para acometer diferentes reformaseducativas en el nuevo contexto social y cultural que acabaría por transformar al país. 10Un ejemplo <strong>de</strong> este patrimonio son las colecciones científicas propie<strong>da</strong>d <strong>de</strong>algunas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s españolas. Tal es el caso <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong>Compostela o <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Valencia, <strong>de</strong> cuyo patrimonio científico se hanpublicado en los últimos años excelentes trabajos. 11 Igualmente, hace un par <strong>de</strong> años sepublicó una obra sobre los más <strong>de</strong> cincuenta museos y colecciones científicas vincula<strong>da</strong>sa las universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s madrileñas (BUENO; DÍAZ, 2007). Tal y como se indica en estetrabajo, el grueso <strong>de</strong> las colecciones madrileñas está formado por materiales vinculados ala historia natural y las disciplinas sanitarias, teniendo algunas <strong>de</strong> las más antiguas su10 Véase por ejemplo: (DÍAZ, 1999), y (PESET, HERNÁNDEZ-SANDOICA, 2001).11 Véase, por ejemplo: (Sánchez, Belmar, 2002); (Rodríguez, 1994, 2003).72


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Torigen en centros docentes establecidos en la capital con anteriori<strong>da</strong>d a la Ley Moyano—como en los casos <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong> Anatomía humana, ligado a la colección <strong>de</strong>l Colegio <strong>de</strong>Medicina <strong>de</strong> San Carlos o el Museo <strong>de</strong> la Farmacia Hispana, con instrumental proce<strong>de</strong>nte<strong>de</strong>l antiguo Colegio <strong>de</strong> Farmacia <strong>de</strong> San Fernando—.Por su parte, la enseñanza <strong>de</strong> las ciencias experimentales en las escuelas tuvo unespecial impulso con la creación en 1900 <strong>de</strong>l Ministerio <strong>de</strong> Instrucción Pública. Esteinterés y esta <strong>de</strong>terminación por mo<strong>de</strong>rnizar el país mediante la transformación <strong>de</strong>lsistema educativo tuvo en España su apogeo durante las déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1920 y 1930(NÚÑEZ, 2001). Todo esto generó, junto con la introducción y el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> nuevasten<strong>de</strong>ncias pe<strong>da</strong>gógicas (MARTÍNEZ, 2001), un aumento en la <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> aparatoscientíficos para la educación que finalmente repercutió favorablemente en el <strong>de</strong>sarrollo yla consoli<strong>da</strong>ción <strong>de</strong> una industria nacional <strong>de</strong> construcción y distribución <strong>de</strong> materialcientífico pe<strong>da</strong>gógico durante aquellos años (Ruiz-Castell, 2008). Una industria querompería la hegemonía <strong>de</strong> las casas <strong>de</strong> constructores <strong>de</strong> instrumentos francesas,alemanas e incluso británicas, que durante la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong>l siglo XIX, abastecieronmayoritariamente los centros educativos y <strong>de</strong> investigación españoles (LASTRA, 2000;RUIZ-CASTELL; CASTEL; SÁNCHEZ, 2002), por ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s las <strong>de</strong> mayorprestigio y cali<strong>da</strong>d (CLERCQ, 1985).El interés por este tipo <strong>de</strong> colecciones vincula<strong>da</strong>s a los centros educativos hamotivado en los últimos años la elaboración <strong>de</strong> distintos estudios, así como diferentesiniciativas para tratar <strong>de</strong> sensibilizar a las instituciones y obtener los recursos económicosnecesarios para po<strong>de</strong>r inventariar, catalogar y difundir este patrimonio. 12 De hecho, loscentros educativos españoles cuentan con un importante y rico patrimonio científico queto<strong>da</strong>vía está por <strong>de</strong>scubrir en muchos casos. Sin embargo, las experiencias hasta ahoralleva<strong>da</strong>s a cabo alertan acerca <strong>de</strong> la posibili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> que en estos centros educativos estascolecciones estén en peligro <strong>da</strong>do su abandono y el grado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scuido al que estánsometi<strong>da</strong>s. No en vano, la supervivencia <strong>de</strong> muchas <strong>de</strong> las colecciones y espacios queaquí hemos mencionado, ya pertenezcan a universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s o a institutos <strong>de</strong> enseñanzasecun<strong>da</strong>ria, ha <strong>de</strong>pendido en gran medi<strong>da</strong> <strong>de</strong>l esfuerzo y la voluntad entusiasta (y por logeneral <strong>de</strong>sinteresa<strong>da</strong>) <strong>de</strong> individuos que se han esforzado por preservar este legadohistórico.12 En el caso <strong>de</strong> los estudios <strong>de</strong> colecciones científicas <strong>de</strong> institutos <strong>de</strong> enseñanza secun<strong>da</strong>ria, <strong>de</strong>stacanalgunos trabajos como los <strong>de</strong> (Edreira, 1999); (Alonso, 1992), (Real, 2001), (Labra, 2002); (OCNI, 2002).Sobre la importancia <strong>de</strong> estudiar el patrimonio científico conservado en los institutos <strong>de</strong> enseñanzasecun<strong>da</strong>ria españoles, véase: (Castel, Belmar, Bertomeu, 2005).73


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TLos principales problemas a los que se enfrentan las instituciones propietarias <strong>de</strong>estas colecciones están relacionados con la carencia <strong>de</strong> personal cualificado paragestionar, estudiar, restaurar y preservar estos fondos y la falta <strong>de</strong> espacios einfraestructuras en unos centros cuya principal función no es la propia <strong>de</strong> los museos.Empero, con el fin <strong>de</strong> asesorar, garantizar la salvaguardia y promocionar la revalorización<strong>de</strong> este patrimonio histórico-científico y educativo, nuevas iniciativas han visto la luzrecientemente. Por ejemplo, la Comissió d’Instruments Científics (COMIC) <strong>de</strong> la SocietatCatalana d’Història <strong>de</strong> la Ciència i <strong>de</strong> la Tècnica nació hace unos años con la intención <strong>de</strong>coordinar los esfuerzos <strong>de</strong> diferentes instituciones e individuos por preservar y estudiar elpatrimonio científico y tecnológico <strong>de</strong> los territorios <strong>de</strong> habla catalana (Islas Baleares,Cataluña y País Valenciano). 13 Ante lo disperso y <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado <strong>de</strong> estas colecciones, elmaterial que to<strong>da</strong>vía que<strong>da</strong> por <strong>de</strong>scubrir en muchas <strong>de</strong> estas instituciones y lasdificulta<strong>de</strong>s que encuentran los centros educativos para preservar, estudiar y difundir estepatrimonio, uno <strong>de</strong> los objetivos <strong>de</strong>l proyecto es no sólo asesorar, sino tambiénproporcionar las herramientas necesarias para facilitar dicho trabajo. Al mismo tiempo,esta iniciativa preten<strong>de</strong> crear un catálogo colectivo <strong>de</strong> la cultura material <strong>de</strong> la ciencia queintegre a to<strong>da</strong>s las instituciones y centros <strong>de</strong> enseñanza <strong>de</strong> esta zona <strong>de</strong> influencia (yasean <strong>de</strong> enseñanza universitaria o secun<strong>da</strong>ria), con el objeto <strong>de</strong> garantizar laconservación y difusión <strong>de</strong> este patrimonio y proporcionar nuevos recursos pe<strong>da</strong>gógicos.Por su parte, el proyecto <strong>de</strong> investigación recientemente iniciado bajo el título“Ciencia y educación en los institutos madrileños <strong>de</strong> enseñanza secun<strong>da</strong>ria a través <strong>de</strong> supatrimonio cultural (1837-1936)” (CEIMES) preten<strong>de</strong>, a partir <strong>de</strong>l estudio <strong>de</strong>l patrimoniocientífico y educativo <strong>de</strong> los seis institutos <strong>de</strong> enseñanza secun<strong>da</strong>ria más antiguos <strong>de</strong>Madrid (IES San Isidro, IES Car<strong>de</strong>nal Cisneros, IES Cervantes, IES Lope <strong>de</strong> Vega, IESIsabel la Católica e IES Ramiro <strong>de</strong> Maeztu), analizar los modos <strong>de</strong> transmisión ycirculación <strong>de</strong>l conocimiento científico, así como las innovaciones realiza<strong>da</strong>s en laenseñanza <strong>de</strong> las ciencias en dicho centros. 14 Inspirado en el trabajo realizado entre losaños 2005 y 2006 sobre el Gabinete <strong>de</strong> Historia Natural <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> EnseñanzaSecun<strong>da</strong>ria Car<strong>de</strong>nal Cisneros, este proyecto aspira a profundizar en nuestrosconocimientos acerca <strong>de</strong> la historia <strong>de</strong> la educación científica, así como crear un museope<strong>da</strong>gógico virtual sobre la enseñanza <strong>de</strong> las ciencias en este período e impulsar nuevasinvestigaciones que mejoren la educación científica <strong>de</strong> escolares y ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos.13 http://www.instrumentscientifics.com14 http://www.ceimes.es74


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAsí pues, ante las nuevas preocupaciones y retos que plantean este tipo <strong>de</strong>colecciones, son necesarias iniciativas novedosas como las que aquí hemos esbozadocon las que <strong>da</strong>r a conocer el rico patrimonio científico y tecnológico español. Unasiniciativas que esperemos sean lo suficientemente efectivas como para concienciar a lasinstituciones y a nuestros conciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos <strong>de</strong>l valor y <strong>de</strong> la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> preservar,estudiar, enten<strong>de</strong>r y explicar este patrimonio.REFERENCIASALONSO, À. Vàzquez. Arqueología científica en el Instituto Balear: la enseñanzaexperimental <strong>de</strong> la electrostática. Revista <strong>de</strong> ciència, n.11, p.9-18, 1992.___________________. Arqueología científica en el Instituto Balear: la corriente eléctrica.n. 11, p.65–72; 1992.BOLÓS, A. De. El Herbario Salvador. Collectanea botanica, n.1, p.1-8, 1946.BUENO, Antonio González; DÍAZ, Alfredo Baratas. El patrimonio <strong>de</strong> Minerva: museos ycolecciones histórico-científicas <strong>de</strong> las universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s madrileñas. Madrid: Comuni<strong>da</strong>d <strong>de</strong>Madrid, 2007.CASTEL, Josep Simón; BELMAR, A. García; BERTOMEU, J. R.. Els instrumentscientífics <strong>de</strong>ls instituts d’ensenyament mitjà: un extraordinari patrimoni cultural que hem<strong>de</strong> preservar i estudiar., In: VILUMARA, P. Grapí; ESTEVE, M. R. Massa (coords.). Actes<strong>de</strong> la I Jorna<strong>da</strong> sobre la Història <strong>de</strong> la Ciència i l’Ensenyament Antoni Quintana Marí.Barcelona: Societat Catalana d’Història <strong>de</strong> la Ciència i <strong>de</strong> la Tècnica, p.109-114, 2005.CAMARASA, J. M.. Salvadorianae II. Les Jussieu et les Salvador: <strong>de</strong>ux familles <strong>de</strong>naturalistes au début du XVIII e siècle. In: LAYSSUS, Y. (ed.). Les naturalistes français enAmérique du Sud. XVI e -XIX e siècles. Proceedings... 118e congrès national <strong>de</strong>s sociétéshistoriques et scientifiques, Pau, 1993. Paris: CTHS, p. 69–102, 1995._________________. Salvadorianae III. Una <strong>de</strong>scripció prelinneana <strong>de</strong> Silene niceensisAll., <strong>de</strong>gu<strong>da</strong> a Jaume Salvador i Pedrol, a l’edició <strong>de</strong> 1686 <strong>de</strong>l Botanicum Monspeliense<strong>de</strong> Pèire Magnol. Collectanea Botanica,n. 25, p.245-253;2000.CAMARASA, J. M.; AMIGÓ, J.-J.. Salvadorianae I. La correspondència <strong>de</strong> Pere Barrère iVolar (Perpinyà 1690-1755) amb Josep Salvador i Riera conserva<strong>da</strong> a la bibliotecaSalvador <strong>de</strong> l'Institut Botànic <strong>de</strong> Barcelona. Collectanea Botanica, n.22, p.73-104, 1993.CAMARASA, J. M.; IBÁÑEZ, N. Joan Salvador and James Petiver: a scientificcorrespon<strong>de</strong>nce (1706-1714) in time of war. Archives of Natural History, n.34, p.140-173;2007.CLEEMPOEL,Koenraad Van. Philip II’s Escorial and its Collection of ScientificInstruments. In: STRANO, G.; JOHNSTON, S.; MINIATI, M., MORRISON-LOW, A. (eds.),European Collections of Scientific Instruments, 1550-1750. Lei<strong>de</strong>n and Boston: Brill, 2009.CLERCQ, Peter R. <strong>de</strong> (ed.). Nineteenth-Century Scientific Instruments and their Makers.Lei<strong>de</strong>n and Amster<strong>da</strong>m: <strong>Museu</strong>m Boerhaave and Rodopi, 1985.DÍAZ, A. Baratas.,La cultura científica en la Restauración. In: CORTINA, M. Suárez (ed.)La cultura española en la Restauración. Santan<strong>de</strong>r: Socie<strong>da</strong>d Menén<strong>de</strong>z Pelayo, p.279-295, 1999.75


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPANORAMA SOBRE O PATRIMÔNIO DA CIENCIA ETECNOLOGIA NO BRASIL: Objetos <strong>de</strong> C&TMarcus Granato *Nesse texto discutiremos, numa tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação, o que po<strong>de</strong>ria fazerparte do patrimônio <strong>da</strong> ciência e tecnologia (C&T), além <strong>de</strong> apresentar umpanorama sobre conjuntos <strong>de</strong> objetos que seriam candi<strong>da</strong>tos a constituir umpossível inventário nacional do patrimônio <strong>de</strong> C&T no país. Esse trabalho fazparte dos estudos e levantamentos realizados no projeto <strong>de</strong> pesquisa “Valorização doPatrimônio <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> no Brasil”, <strong>de</strong>senvolvido no âmbito do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Alguns resultados já foramanteriormente publicados (GRANATO, 2009; GRANATO e CAMARA, 2008) e o texto atualpermite ampliar o conceito <strong>de</strong> patrimônio <strong>de</strong> C&T e visualizar <strong>de</strong> forma mais ampla e<strong>de</strong>talha<strong>da</strong> as instituições relaciona<strong>da</strong>s e seus acervos.A <strong>de</strong>finição do que consi<strong>de</strong>ramos ciência, tecnologia e patrimônio po<strong>de</strong> serencontra<strong>da</strong> em texto anterior (GRANATO e CAMARA, 2008) e apenas resumimos a seguir,para melhor compreensão do trabalho. Ciência é o “conjunto <strong>de</strong> conhecimentos e <strong>de</strong>investigações com um suficiente grau <strong>de</strong> generali<strong>da</strong><strong>de</strong> para resultar em convençõesconcor<strong>da</strong>ntes e relações objetivas basea<strong>da</strong>s em fatos comprováveis” e tecnologia é o“estudo dos processos técnicos, naquilo que eles têm <strong>de</strong> geral e nas suas relações com o* - <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ;marcus@mast.br. Formado em engenharia metalúrgica e <strong>de</strong> materiais pela UFRJ (1980), Mestre e Doutor emCiências (M.Sc) pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ), sendosua tese sobre Restauração <strong>de</strong> Instrumentos Científicos Históricos. A partir <strong>de</strong> 2004, volta a coor<strong>de</strong>nar a área <strong>de</strong>Museologia no MAST e, a partir <strong>de</strong> 2006, torna-se professor e assume a vice-coor<strong>de</strong>nação do Mestrado emMuseologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Atualmente, é Coor<strong>de</strong>nador <strong>de</strong> Museologia do MAST, pesquisador doCNPq e lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> pesquisa na área <strong>de</strong> Preservação <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is.78


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> civilização”. Cabe esclarecer que o terreno <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>finições é vasto epleno <strong>de</strong> diferentes entendimentos, mas, em resumo, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r que a ciênciaestá muito relaciona<strong>da</strong> ao mundo <strong>da</strong>s idéias e conceitos; enquanto a tecnologia relaciona-seà prática, à solução <strong>de</strong> problemas práticos. Quanto ao conceito <strong>de</strong> patrimônio, consi<strong>de</strong>ramospatrimônio cultural como aquele conjunto <strong>de</strong> produções materiais e imateriais do ser humanoe seus contextos sociais e naturais que constituem objeto <strong>de</strong> interesse a ser preservado paraas futuras gerações.Em relação ao que constitui patrimônio <strong>de</strong> C&T, consi<strong>de</strong>ramos o conhecimentocientífico e tecnológico produzido pelo homem, além <strong>de</strong> todos aqueles objetos (inclusivedocumentos em suporte papel), coleções arqueológicas, etnográficas e espécimes <strong>da</strong>scoleções biológicas que são testemunhos dos processos científicos e do <strong>de</strong>senvolvimentotecnológico. Também se incluem nesse gran<strong>de</strong> conjunto as construções arquitetônicasproduzi<strong>da</strong>s com a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses processos e<strong>de</strong>senvolvimentos. Cabe esclarecer que áreas diversas po<strong>de</strong>rão estar representa<strong>da</strong>s,algumas on<strong>de</strong> a contribuição para o patrimônio <strong>de</strong> C&T será maior, como a matemática e afísica, e outras <strong>de</strong> forma mais relativa, por exemplo, a saú<strong>de</strong>. Sendo a área dos estudossobre o patrimônio cultural dinâmica e mutável, novos bens po<strong>de</strong>rão ser consi<strong>de</strong>rados, comopor exemplo, o material genético (CÂMARA, 2008), que, em nossa opinião, <strong>de</strong>ve serclassificado como patrimônio <strong>de</strong> C&T.Nos itens seguintes, será realiza<strong>da</strong> uma discussão sobre a proteção do patrimônio e,em especial, <strong>da</strong>quele relativo à ciência e à tecnologia. Em segui<strong>da</strong>, será apresentado umpanorama sobre a situação <strong>da</strong>s coleções <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> C&T no país. Decidiu-se priorizaresses conjuntos <strong>de</strong> objetos em função <strong>de</strong> sua situação <strong>de</strong> risco mais elevado, em relaçãoaos <strong>de</strong>mais itens mencionados e constitutivos <strong>de</strong>sse patrimônio.A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO DE C&TOs objetos mais facilmente i<strong>de</strong>ntificados ao patrimônio <strong>de</strong> C&T são os <strong>de</strong>nominadosinstrumentos científicos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fizeram parte intrinsecamente <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s realiza<strong>da</strong>sem laboratórios científicos e <strong>de</strong> tecnologia aplica<strong>da</strong>. No entanto, instrumento científico é umtermo complexo e que só se aplica em período histórico <strong>de</strong>terminado (século XIX e início doséculo XX); talvez possamos utilizar aparatos científicos e tecnológicos, incluindo aqui as79


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmontagens <strong>de</strong> laboratório. De forma mais geral, utilizaremos objetos <strong>de</strong> ciência e tecnologia(GRANATO et al., 2007). Além <strong>de</strong>sses objetos, incluem-se também todos aqueles conjuntos<strong>de</strong> itens que foram utilizados em pesquisa científica ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico.Assim, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados como parte <strong>de</strong>sse patrimônio as coleções biológicas,inclusive morfológicas, as coleções arqueológicas, etnográficas e mineralógicas, utiliza<strong>da</strong>spara esse fim.O patrimônio cultural é constituído por bens materiais que possuem um valorsimbólico atribuído pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, cabe perguntar: nos preocupamos com opatrimônio <strong>de</strong> C&T? Esses bens se constituem em patrimônio? Quem se preocupa com essepatrimônio? A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> se preocupa com esse patrimônio?Antes <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>termos sobre essas perguntas, que não querem calar, vejamos comoo patrimônio integral está sendo protegido e como o patrimônio <strong>de</strong> C&T aí se insere. Noplano internacional, os bens culturais estão protegidos pela Convenção sobre a Proteção doPatrimônio Mundial <strong>Cultura</strong>l e Natural, aprova<strong>da</strong> pela Conferência Geral <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>sNações Uni<strong>da</strong>s para a Educação, a Ciência e a <strong>Cultura</strong> (Unesco), em sua décima sétimareunião em Paris, em 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1972. O Brasil a<strong>de</strong>riu à Convenção em 12 <strong>de</strong><strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1977, pelo <strong>de</strong>creto 80.978. Para os fins <strong>da</strong> convenção, são consi<strong>de</strong>radospatrimônio cultural:- monumentos: obras arquitetônicas, <strong>de</strong> escultura e pintura ou <strong>de</strong> pintura monumentais,elementos ou estruturas <strong>de</strong> natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos <strong>de</strong>elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> arteou <strong>da</strong> ciência;- conjuntos: grupos <strong>de</strong> construções isola<strong>da</strong>s ou reuni<strong>da</strong>s que, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua arquitetura,uni<strong>da</strong><strong>de</strong> ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto <strong>de</strong>vista <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> arte ou <strong>da</strong> ciência;- lugares notáveis: obras do homem ou obras conjuga<strong>da</strong>s do homem e <strong>da</strong> natureza, bemcomo as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional doponto <strong>de</strong> vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.Como vemos, aqui se percebe a menção à ciência, mas não à tecnologia, e, <strong>de</strong>qualquer forma, não <strong>de</strong> forma integral. No entanto, conforme dispõe o art. 216 <strong>da</strong>Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 (BRASIL, 1988), constituem patrimônio cultural brasileiro os80


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tbens <strong>de</strong> natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores<strong>de</strong> referência à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Po<strong>de</strong>m ser formas <strong>de</strong> expressão: os modos <strong>de</strong> criar, fazer e viver; ascriações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e<strong>de</strong>mais espaços <strong>de</strong>stinados às manifestações artísticas e culturais; os conjuntos urbanos esítios <strong>de</strong> valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico ecientífico.Na carta magna está prevista a salvaguar<strong>da</strong> do patrimônio <strong>de</strong> C&T, tanto no queconcerne às suas criações (objetos, documentos, edificações relaciona<strong>da</strong>s), como aosconjuntos naturais ou construídos que tenham valor científico. O patrimônio científico etecnológico, obviamente, está incluído no âmbito do patrimônio cultural.Um dos instrumentos mais importantes <strong>da</strong> proteção do patrimônio é o tombamento.Tombar um bem é <strong>de</strong>clarar o seu valor cultural e inscrevê-lo em um dos livros <strong>de</strong> Tomboexistentes no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN - ou órgãocongênere em nível estadual ou municipal, que efetuar o tombamento. O IPHAN mantém osseguintes livros <strong>de</strong> Tombo: Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico, <strong>da</strong>s BelasArtes, <strong>da</strong>s Artes Aplica<strong>da</strong>s.Como vemos, não há um livro <strong>de</strong> tombo para objetos e monumentos relacionados àciência e à tecnologia e, assim, seu patrimônio, quando tombado, recai no item “Histórico” ou“Natural”.Quanto ao patrimônio intangível, não há também um livro para tombamento dolegado intangível <strong>da</strong> C&T. Por outro lado, a situação do que consi<strong>de</strong>ramos patrimôniointangível em C&T po<strong>de</strong>ria explicar essa situação, já que esse patrimônio já seria objeto <strong>de</strong>registro sistemático, inclusive em suas cerimônias típicas, como é o caso, no Brasil, <strong>da</strong>sreuniões anuais <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira para o Progresso <strong>da</strong> Ciência (SBPC).Retomando os questionamentos anteriormente apresentados, verifica-se que, a partir<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pelo MAST nos últimos anos, a situação atual do patrimônio <strong>de</strong>C&T <strong>de</strong> interesse histórico é preocupante. Esse panorama será apresentado em mais<strong>de</strong>talhes, para coleções <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> C&T, em item posterior <strong>de</strong>sse trabalho. Mas, a81


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpercepção que se tem, a partir disso, é <strong>da</strong> urgência em elaborar e implementar medi<strong>da</strong>simediatas para a proteção do que resta do patrimônio <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia no Brasil.Em recente trabalho <strong>de</strong> pesquisa, realizado para sua tese <strong>de</strong> doutoramento, MariaCelina <strong>de</strong> Mello e Silva, do MAST, visitou uma série <strong>de</strong> laboratórios <strong>de</strong> diversos centros <strong>de</strong>pesquisa pertencentes ao Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> (MCT), entrevistando cientistasno sentido <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r a relação que os mesmos mantêm com os documentos produzidosnos laboratórios científicos e tecnológicos. Seu propósito, com o extenso e <strong>de</strong>talhadotrabalho realizado, foi buscar elementos que contribuíssem para a elaboração <strong>de</strong> umprograma <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong> arquivos <strong>de</strong> C&T. No entanto, uma <strong>da</strong>s consi<strong>de</strong>rações dotrabalho, apresenta<strong>da</strong> a seguir, mostra a amplitu<strong>de</strong> do problema.Não há clareza sobre quais documentos oriundos <strong>da</strong> prática científica<strong>de</strong>vem ser preservados. Tão pouco há clareza, por parte <strong>de</strong> cientistas, <strong>de</strong>administradores e <strong>de</strong> historiadores, do que seja documento <strong>de</strong> arquivo.Muitas vezes, nem os próprios arquivistas possuem um nítido entendimentodo que seja documento <strong>de</strong> arquivo no meio científico. (SILVA, 2007, p. 22)Falta consciência e conhecimento sobre o assunto, mesmo por parte dosprofissionais que rotineiramente li<strong>da</strong>m com o patrimônio, no caso arquivístico. No entanto, oestudo permite, certamente, esten<strong>de</strong>r tal afirmação para os <strong>de</strong>mais itens do patrimônio <strong>de</strong>C&T como, por exemplo, objetos em geral e construções funcionais.A responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela preservação do patrimônio <strong>de</strong> C&T, em princípio, seriaatribuição do Ministério <strong>da</strong> <strong>Cultura</strong> (MINC), pois se trata <strong>de</strong> item relacionado ao patrimôniocultural brasileiro e, como verificado no <strong>de</strong>creto Nº 4.805 1 , <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2003, queaprova a estrutura regimental do MINC, uma <strong>de</strong> suas competências é a proteção dopatrimônio histórico e cultural brasileiro. No entanto, percebe-se, inclusive pela análise doslivros <strong>de</strong> tombamento, que são raríssimas as iniciativas <strong>de</strong> proteção efetua<strong>da</strong>s nessa área.Uma <strong>de</strong>las é o tombamento 2do conjunto arquitetônico do Observatório Nacional, on<strong>de</strong>,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985, situa-se o MAST, bem como <strong>de</strong> diversos outros itens, entre eles a coleção <strong>de</strong>instrumentos científicos históricos sob guar<strong>da</strong> do museu.1 - Disponível em http:www.dji.com.Br/<strong>de</strong>cretos/d-004805-12-08-2003.htm. Acesso em: 08 <strong>de</strong> Nov. 2008.2 - Lei Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1986 - Processo n o 1009-T-79/IPHAN, estando registra<strong>da</strong>s no Livro Histórico volume 1, folhas94-97, inscrição 509, <strong>de</strong> 14/08/1986. IPHAN. Depto. <strong>de</strong> Promoção. Bens Móveis e Imóveis Inscritos nos Livros doTombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1994.82


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPor outro lado, responsável pela formulação e implementação <strong>da</strong> Política Nacional <strong>de</strong>Ciência e <strong>Tecnologia</strong>, o Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> tem suas ações pauta<strong>da</strong>s nasdisposições do Capítulo IV <strong>da</strong> Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 e foi criado em 15 <strong>de</strong> março <strong>de</strong>1985, pelo Decreto nº 91.146, como órgão central do sistema fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ciência e<strong>Tecnologia</strong> 3 .O surgimento do MCT, além <strong>de</strong> expressar a importância política <strong>de</strong>sse segmento,aten<strong>de</strong>u a um antigo anseio <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica e tecnológica nacional. Sua área <strong>de</strong>competência abriga: o patrimônio científico e tecnológico e seu <strong>de</strong>senvolvimento; a política<strong>de</strong> cooperação e intercâmbio concernente a esse patrimônio; a formulação e implementação<strong>da</strong> Política Nacional <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>; a coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> políticas setoriais; a políticanacional <strong>de</strong> pesquisa, <strong>de</strong>senvolvimento, produção e aplicação <strong>de</strong> novos materiais e serviços<strong>de</strong> alta tecnologia.Em 2003, no âmbito do MCT, foi elabora<strong>da</strong> uma proposta <strong>de</strong> Política Nacional <strong>de</strong>Memória <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> (BRASIL, 2003), como resultado do trabalho <strong>de</strong> umacomissão especial constituí<strong>da</strong> por portaria (116/2003) do presi<strong>de</strong>nte do Conselho Nacional<strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão <strong>da</strong> estrutura do MCT. Essetrabalho, sobre o qual apresentaremos algumas informações, comentários e reflexões, tratase,talvez, <strong>da</strong> primeira iniciativa formal do Estado brasileiro no sentido <strong>de</strong> formalizar umapolítica <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong> vestígios <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia brasileira. Noentanto, pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> um problema fun<strong>da</strong>mental em sua concepção que se reflete em todo oseu <strong>de</strong>senvolvimento, restringe-se apenas ao patrimônio arquivístico. Em nenhum momento,menciona-se os diversos outros itens que compõem o patrimônio <strong>de</strong> C&T e que também têmrelação com a memória <strong>de</strong>sses setores.O relatório finaliza com <strong>de</strong>z recomen<strong>da</strong>ções para a elaboração <strong>de</strong> uma PolíticaNacional <strong>de</strong> Memória <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> (BRASIL, 2003. Op. cit. p. 9). A análise<strong>de</strong>ssas recomen<strong>da</strong>ções mostra que praticamente nenhuma <strong>de</strong>las foi implementa<strong>da</strong> até omomento. Houve apenas uma iniciativa diretamente relaciona<strong>da</strong> ao tema <strong>da</strong> preservação dopatrimônio <strong>de</strong> C&T, um edital do CNPq, aberto em setembro <strong>de</strong> 2003, possivelmente em<strong>de</strong>corrência do referido relatório. O Edital CTINFRA/MCT/CNPq 003/2003 <strong>de</strong>stinava-se aprojetos <strong>de</strong> apoio à infraestrutura <strong>de</strong> preservação e pesquisa <strong>da</strong> memória científica e3 - Disponível em: http://ftp.mct.gov.br/sobre/Default.htm. Acesso em: 08 <strong>de</strong> Nov. 2008.83


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ttecnológica brasileira, mas aqui ocorreu uma ampliação interessante do conceito <strong>de</strong>patrimônio, consi<strong>de</strong>rado pela comissão menciona<strong>da</strong> anteriormente, pois entendia-se acervosdocumentais <strong>de</strong> forma mais ampla, incluindo arquivos, coleções, bibliotecas, instrumentos eoutros que tivessem valor inquestionável para o estudo <strong>da</strong> produção do conhecimentocientífico brasileiro.Naquele mesmo momento, foi lançado um outro edital - Edital MCT/SECIS/CNPq -007/2003 – que se <strong>de</strong>stinava a apoiar especificamente museus e centros <strong>de</strong> ciências. O viésaqui era claramente <strong>de</strong> divulgação científica, pois se relacionava à melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> doensino <strong>da</strong>s ciências e à difusão e popularização <strong>da</strong> cultura científico-tecnológica junto àsocie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Por um lado, apoiavam-se projetos relacionados à preservação dopatrimônio e, por outro, projetos e instituições que propiciassem um trabalho <strong>de</strong>cisivo para amemória e a preservação do patrimônio <strong>de</strong> C&T, a conscientização <strong>da</strong> população sobre aimportância e o envolvimento <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia no dia a dia <strong>da</strong>s pessoas.Posteriormente, em 2006, foi lançado novo edital pelo CNPq voltado para adivulgação científica. No entanto, o que se observa é que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> divulgaçãocientífica que são propostas e apoia<strong>da</strong>s nos editais não estão vincula<strong>da</strong>s, ou muitoraramente, à conscientização do valor do patrimônio <strong>de</strong> C&T para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e, maisraramente ain<strong>da</strong>, a iniciativas <strong>de</strong> preservação. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, observa-se nos últimos anos, umaumento na consciência, por parte <strong>de</strong> setores do MCT, <strong>de</strong> que a divulgação científica é fatorimportante para a educação científica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas isso não ocorreu em relação àpreservação do patrimônio <strong>de</strong> C&T. Os editais relacionados à popularização <strong>da</strong> ciênciatornaram-se periódicos, em especial <strong>de</strong>vido à atuação do Departamento <strong>de</strong> Popularização eDifusão <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> do MCT, reconheci<strong>da</strong>mente eficiente em várias frentes<strong>de</strong> trabalho.Uma outra iniciativa do CNPq, que talvez tenha raízes nos trabalhos <strong>de</strong>ssaComissão, é a criação do seu Centro <strong>de</strong> Memória, 4 ocorri<strong>da</strong> em 13 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2004. OCentro <strong>de</strong> Memória é responsável pela organização, preservação e divulgação do acervohistórico do CNPq, que conta com documentos em diversos suportes – papel, fotografias,microfilmes, negativos e fitas cassetes, além <strong>de</strong> um acervo bibliográfico especializado empolítica e história <strong>da</strong> ciência e tecnologia. Atualmente, o acervo está em fase <strong>de</strong> organização4 - Disponível em: http://centro<strong>de</strong>memoria.cnpq.br/in<strong>de</strong>x.html. Acesso em: 09 <strong>de</strong> Nov. 2008.84


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Te parcialmente disponível ao público para consulta. Possui uma ação <strong>de</strong> coleta erecebimento <strong>de</strong> acervos relacionados à história do CNPq e, portanto, relacionados aopatrimônio <strong>de</strong> C&T brasileiro. No entanto, é claro que não está sendo implementa<strong>da</strong> umapolítica ampla <strong>de</strong> preservação dos vestígios <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> C&T. Aliás, seria preciso anteselaborar essa política.Finalmente, em 28 <strong>de</strong> outubro 2008, foi assina<strong>da</strong> uma portaria interministerial 5 , a <strong>de</strong>número 796, entre o Ministério <strong>da</strong> <strong>Cultura</strong> (MINC) e o Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>(MCT), estabelecendo uma parceria para cooperação técnica na formulação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>integração entre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pelos Ministérios e entre o Plano Nacional <strong>de</strong><strong>Cultura</strong> e o Plano Nacional <strong>de</strong> Ciência, <strong>Tecnologia</strong> e Inovação para o DesenvolvimentoNacional. Entre os 18 objetivos listados no documento, <strong>de</strong>stacamos o <strong>de</strong> número 6 -promover estudos e ações volta<strong>da</strong>s para a proteção, preservação, e a recuperação dopatrimônio cultural e científico brasileiro. Esse objetivo tem direta relação com o tema <strong>de</strong>ssetrabalho e, apesar <strong>de</strong> ser um entre tantos objetivos, já permite visualizar algum interessecomum que propicie a preservação do patrimônio sobre o qual nos <strong>de</strong>bruçamos.A própria portaria institui uma Comissão Técnica Interministerial com prazo <strong>de</strong> trintadias, prorrogável por igual período, para apresentar relatório final dos trabalhos realizados. ASecretaria-Executiva do MCT indicou pela Portaria SEXEC/MCT nº 23, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> novembro<strong>de</strong> 2008, seus representantes na Comissão.O produto do trabalho <strong>de</strong>ssa comissão foi um relatório elaborado em fevereiro <strong>de</strong>2009 e enviado para análise aos ministros <strong>da</strong>s áreas relaciona<strong>da</strong>s. Esse relatório estádividido em duas partes, sendo a primeira volta<strong>da</strong> para ações prioritárias <strong>de</strong> curto prazo, aserem implementa<strong>da</strong>s em 2009 e 2010; e a segun<strong>da</strong> volta<strong>da</strong> para a criação <strong>de</strong> Grupos <strong>de</strong>Trabalho Permanentes para <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> médio prazo.Em relação às ações <strong>de</strong> curto prazo, <strong>de</strong>stacamos 3 iniciativas relaciona<strong>da</strong>s aopatrimônio: apoio do MCT ao projeto do Centro <strong>de</strong> Referência <strong>da</strong> Pedra e do Barroco,Congonhas (MG), a criação do Centro <strong>de</strong> Referência do Patrimônio Naval, em São Franciscodo Sul (SC - <strong>Museu</strong> Nacional do Mar) e a Incorporação do MINC às ações do projetoCaminhos <strong>de</strong> Darwin do MCT.5 - Disponível em: http://www.mct.gov.br/in<strong>de</strong>x.php/content/view/3781.html. Publica<strong>da</strong> no D.O.U. <strong>de</strong> 29/10/2008,Seção I, Pág. 3. Acesso em: 01 <strong>de</strong> Jun. 2009.85


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo caso <strong>da</strong> implementação <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> médio prazo, com a criação <strong>de</strong> Grupos <strong>de</strong>Trabalho Permanentes (<strong>de</strong> acordo com as áreas afins), <strong>de</strong>stacamos aquele relacionado àanálise conjunta (IPHAN-MINC/Secis-MCT/Finep/CNPq) do documento produzido pelaComissão <strong>de</strong> Política <strong>de</strong> Pesquisa, Preservação, Recuperação e Disseminação <strong>da</strong> História<strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> Brasileiras, aqui anteriormente mencionado. Acreditamos que aparceria entre os dois ministérios e a atuação conjunta <strong>de</strong> seus profissionais po<strong>de</strong>rá ampliare aprofun<strong>da</strong>r o documento produzido por essa comissão, propiciando a criação <strong>de</strong> umapolítica <strong>de</strong> Estado para a área.AS COLEÇÕES DE OBJETOS DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA NO BRASIL: UM BREVEPANORAMAA origem <strong>da</strong>s coleçõesO patrimônio material <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> no Brasil está, em sua gran<strong>de</strong>maioria, para ser <strong>de</strong>scoberto. O conhecimento atual sobre o tema é restrito e, em especial,os objetos <strong>de</strong> ciência e tecnologia brasileiros já po<strong>de</strong>m ter sido mo<strong>de</strong>rnizados ou<strong>de</strong>scartados, na maioria <strong>da</strong>s vezes em prol <strong>de</strong> uma busca pelo instrumento ou aparato maisrecente, mais atual.Uma consulta ao Ca<strong>da</strong>stro Nacional <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s (CNM) 6 , elaborado pelo InstitutoBrasileiro <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s (IBRAM), utilizando como palavras-chave museu <strong>de</strong> ciência etecnologia, forneceu como resultado uma lista <strong>de</strong> 65 instituições. Dessas instituições, 30 sãocentros <strong>de</strong> ciência que não possuem coleções no âmbito aqui consi<strong>de</strong>rado.É interessante notar que a Associação Brasileira <strong>de</strong> Centros e <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> Ciências(ABCMC) 7 possui um ca<strong>da</strong>stro com 113 instituições. A análise <strong>de</strong>sse ca<strong>da</strong>stro mostra quealgumas instituições não são museus e centros <strong>de</strong> ciência em stricto senso como, porexemplo, o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> República (RJ). Por outro lado, diversas instituições aqui referencia<strong>da</strong>snão estão no CNM. Com base nesses dois registros e em pesquisas anteriores, foielaborado o panorama sobre instituições que têm acervos <strong>de</strong> C&T.6 - Disponível em http://www.museus.gov.br/cnm_conhecaosmuseus.htm. Acesso em: 28 <strong>de</strong> Mai. 2009.7 - Disponível em: http://www.abcmc.org.br/publique1/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=26. Acesso em: 28 <strong>de</strong> Mai.2009.86


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TCabe ressaltar que as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s são, potencialmente, gran<strong>de</strong>s fontes dopatrimônio <strong>de</strong> C&T, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam se incluir também objetos e instrumentos <strong>de</strong> ensino.Instituições que têm por função preservar esses acervos são raras e têm um trabalho árduo,em função <strong>da</strong> escassez <strong>de</strong> financiamentos e <strong>de</strong> profissionais capacitados. No entanto,algumas iniciativas merecem <strong>de</strong>staque e serão dividi<strong>da</strong>s em três gran<strong>de</strong>s grupos comoveremos a seguir.Conjuntos <strong>de</strong> objetos em museus <strong>de</strong> C&T fe<strong>de</strong>raisO <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins possui uma coleção <strong>de</strong> instrumentoscientíficos consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mais significativas no país. Todos esses objetos constituem partedo patrimônio científico sob a guar<strong>da</strong> do museu e têm sido alvo <strong>de</strong> um amplo plano <strong>de</strong>preservação. No texto introdutório <strong>de</strong>sse livro, referente ao MAST, informações mais<strong>de</strong>talha<strong>da</strong>s são apresenta<strong>da</strong>s sobre a coleção, que possui hoje 2000 objetos, dos quais 1600são tombados pelo IPHAN e pelo INEPAC. O acervo do museu é dividido em quatorzecategorias: Astronomia, Cálculo e Desenho, Cosmografia, Eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong> e Magnetismo,Geodésia e Topografia, Geofísica e Oceanografia, Medição do Tempo, Meteorologia,Metrologia e Navegação. A Figura 1 apresenta<strong>da</strong> a seguir mostra alguns instrumentos <strong>da</strong>coleção.Figura 1 - Instrumentos <strong>da</strong> coleção do MAST (barógrafo, luneta meridiana). Acervo MAST.87


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAlém do trabalho <strong>de</strong>senvolvido com suas coleções, o MAST tem <strong>de</strong>senvolvidoparcerias com diversas instituições, e algumas <strong>de</strong>ssas iniciativas têm sido volta<strong>da</strong>s para apreservação <strong>de</strong> acervos <strong>de</strong> ciência e tecnologia. Alguns resultados <strong>de</strong>ssas parcerias foram ai<strong>de</strong>ntificação e registro <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> objetos que constituem parte do patrimônio <strong>de</strong> C&Tbrasileiro, como as 236 peças do Instituto Nacional <strong>de</strong> <strong>Tecnologia</strong> (INT), as 298 peçasrelaciona<strong>da</strong>s à história <strong>da</strong> energia nuclear no Brasil, i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s em diversos centros <strong>de</strong>pesquisa <strong>da</strong> área nuclear (Instituto <strong>de</strong> Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN, Instituto<strong>de</strong> Radiodosimetria - IRD, Instituto <strong>de</strong> Engenharia Nuclear - IEN, Centro <strong>de</strong> Desenvolvimento<strong>de</strong> <strong>Tecnologia</strong> Nuclear – CDTN, Centro Brasileiro <strong>de</strong> Pesquisas Físicas - CBPF), epublica<strong>da</strong>s na forma <strong>de</strong> um inventário, os 300 objetos doados ao MAST pelo IEN e as 35peças doa<strong>da</strong>s pelo Centro <strong>de</strong> <strong>Tecnologia</strong> Mineral (CETEM). Alguns resultados <strong>de</strong>ssetrabalho foram recentemente publicados (SANTOS et al, 2008) e a Figura 2 apresentaimagens <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> C&T encontrados nessas instituições.Figura 2 - Instrumentos <strong>de</strong> instituições <strong>da</strong> área nuclear (espectrofotômetro – IRD; monitor portátil <strong>de</strong>contaminação - CDTN). Fotos: acervo MAST.Cabe também <strong>de</strong>stacar as pesquisas do MAST em parceria com o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, i<strong>de</strong>ntificando outras fontes possíveis <strong>de</strong> acervos relacionados,como o Colégio Pedro II (Rio <strong>de</strong> Janeiro), o Colégio Bento <strong>de</strong> Abreu <strong>de</strong> Araraquara e oColégio Culto à Ciência (Campinas), estes últimos em iniciativas <strong>de</strong> preservação e pesquisa88


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pela UNESP (Araraquara) e pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas(UNICAMP).Outro museu, com gran<strong>de</strong>s coleções <strong>de</strong> objetos relacionados à pesquisa científica, nopaís é o <strong>Museu</strong> Paraense Emílio Goeldi (MPEG) 8 . Também vinculado ao MCT, O MPEGapresenta perfil bem diverso do MAST, com coleções características <strong>de</strong> um museu <strong>de</strong>ciências naturais. Está localizado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belém (PA) e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fun<strong>da</strong>ção, em 1871,suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s concentram-se no estudo científico dos sistemas naturais e sócio-culturais<strong>da</strong> Amazônia, bem como na divulgação <strong>de</strong> conhecimentos e acervos relacionados à região.Fazem parte do acervo museológico do MPEG a coleção <strong>de</strong> fósseis, minerais e rochas; oherbário e a xiloteca; a coleção entomológica; a coleção <strong>de</strong> peixes; a coleção <strong>de</strong> répteis eanfíbios; a coleção <strong>de</strong> aves; a coleção <strong>de</strong> mamíferos; a coleção <strong>de</strong> objetos etnográficos; acoleção <strong>de</strong> objetos arqueológicos; o acervo lingüístico; a coleção <strong>de</strong> obras raras; o arquivo<strong>de</strong> documentos; o acervo fotográfico. As peças e exemplares pertencentes a essas coleçõessão provenientes, em sua maior parte, <strong>da</strong>s coletas realiza<strong>da</strong>s nas expedições científicasrealiza<strong>da</strong>s pela instituição. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um acervo em constante crescimento e queé referência para incontáveis estudos no país e no exterior.Já o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> 9 (FIOCRUZ, RJ) na órbita do ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, possui umacoleção que começou a se formar em 1913, com a incorporação dos objetos pertencentesaos ex-diretores <strong>da</strong> Instituição, dos diversos setores <strong>da</strong> FIOCRUZ e também por doaçõesexternas. Esse conjunto é composto objetos pessoais <strong>de</strong> Oswaldo Cruz, Carlos Chagas,Carlos Chagas Filho, Marcolino Can<strong>da</strong>u, mobiliário institucional, fragmentos <strong>de</strong> construção,acessórios <strong>de</strong> interiores, me<strong>da</strong>lhas e moe<strong>da</strong>s. Quanto ao acervo <strong>de</strong> C&T, sua formação teminício na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970. Esta coleção foi forma<strong>da</strong>, em sua maioria, a partir <strong>de</strong> doações dosserviços internos <strong>da</strong> Instituição (laboratórios e produção <strong>de</strong> medicamentos) e por doaçõesexternas. Ain<strong>da</strong> hoje, a equipe responsável pelo acervo institucional trabalha na i<strong>de</strong>ntificaçãoe coleta <strong>de</strong>sses testemunhos.O <strong>Museu</strong> Nacional 10 , apesar <strong>de</strong> pertencer à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro(UFRJ), será consi<strong>de</strong>rado aqui como museu <strong>de</strong> C&T em si, em vista <strong>de</strong> sua história e8 - Disponível em http://www.museu-goeldi.br/institucional/in<strong>de</strong>x.htm. Acesso em: 28 <strong>de</strong> Mai. 2009.9 - Disponível em: http://www.museu<strong>da</strong>vi<strong>da</strong>.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=20. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai.2009.10 - Disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br/. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.89


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>senvolvimento. Reúne os maiores acervos científicos <strong>da</strong> América Latina, laboratórios <strong>de</strong>pesquisa e cursos <strong>de</strong> pós-graduação. As peças que compõem as exposições abertas aopúblico são parte dos 20 milhões <strong>de</strong> itens <strong>da</strong>s coleções científicas conserva<strong>da</strong>s e estu<strong>da</strong><strong>da</strong>spelos Departamentos <strong>de</strong> Antropologia, Botânica, Entomologia, Invertebrados, Vertebrados,Geologia e Paleontologia.Em 2006, durante a esta<strong>da</strong> <strong>da</strong> Dra. Marta Lourenço 11 no Rio <strong>de</strong> Janeiro, foi possíveli<strong>de</strong>ntificar um grupo <strong>de</strong> instrumentos científicos nessa instituição. Os objetos não estãocatalogados e encontram-se em um ambiente ina<strong>de</strong>quado para sua conservação epertencem ao Departamento <strong>de</strong> Geologia e Paleontologia (DGP). Com o intuito <strong>de</strong> modificaressa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, foi elaborado um projeto <strong>de</strong> dissertação <strong>de</strong> mestrado, para o Programa <strong>de</strong>Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Em um levantamentopreliminar dos instrumentos, realizado por Fabrício Avellar Werneck, verificou-se um total <strong>de</strong>39 peças. A maioria ain<strong>da</strong> não foi i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> (13), constatou-se a existência <strong>de</strong> 11 balanças<strong>de</strong> precisão, 8 microscópios, 2 bússolas e um exemplar dos seguintes instrumentos:calorímetro, cunha <strong>de</strong> Hersche, espectroscópio <strong>de</strong> Busen e goniômetro. A Figura 3apresenta algumas imagens inéditas <strong>de</strong>sses objetos.Figura 3 - Instrumentos do Departamento <strong>de</strong> Geologia e Paleontologia do <strong>Museu</strong> Nacional. Foto:Fabrício A. Werneck.11 - Pesquisadora do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (MCUL), coor<strong>de</strong>nadora, pela parteportuguesa, <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> cooperação internacional entre o MCUL e o MAST.90


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO <strong>Museu</strong> Aeroespacial 12 (MUSAL, RJ) foi inaugurado em 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1976.Debruçado sobre a preservação e divulgação do material aeronáutico e documentoshistóricos para o público em geral, o MUSAL está ligado ao Minsitério <strong>da</strong> Defesa, através doComando <strong>da</strong> Aeronáutica. A abrangência do acervo existente permite uma visualizaçãoconjuntural e <strong>da</strong> seqüência histórica <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> tecnologia <strong>da</strong>s aeronaves. O espaçofísico <strong>de</strong>stinado às instalações do <strong>Museu</strong> ocupa uma área <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 15.000m 2 , incluindoum prédio <strong>de</strong> dois an<strong>da</strong>res e cinco hangares anexos. As salas <strong>de</strong> exposição do prédioabrigam as principais coleções históricas <strong>de</strong> pioneiros <strong>da</strong> aviação e o salão principal reúneas aeronaves mais antigas do <strong>Museu</strong>. Nos cinco hangares, estão em exposição a coleção <strong>de</strong>aeronaves <strong>de</strong> valor histórico e tecnológico. O acervo existente no MUSAL é composto <strong>de</strong>maquetes, documentos escritos, manuscritos, fotos, filmes, trajes <strong>de</strong> vôo, livros, armas emotores. Existem também objetos pessoais <strong>de</strong> Santos Dumont, Salgado Filho e AnésiaPinheiro Machado. Além <strong>de</strong>stes objetos, compõem, ain<strong>da</strong>, o acervo mais <strong>de</strong> cem aeronaves,sendo que, aproxima<strong>da</strong>mente, oitenta estão em exposição permanente.Conjuntos <strong>de</strong> objetos em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>sOutros acervos relacionados à ciência e à tecnologia estão, em gran<strong>de</strong> número, nasuniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileiras, muitas vezes em museus, mas outras vezes sendo guar<strong>da</strong>dos porfuncionários que prezam pela memória do local on<strong>de</strong> trabalham. Alguns exemplos serãoapresentados a seguir.Uma <strong>de</strong>ssas instituições, que possui uma coleção <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, é o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência<strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Minas (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto – Minas Gerais). Criado no séculoXIX, reúne expressivo acervo <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s mais antigas escolas <strong>de</strong> engenharia do Brasil,contando com cerca <strong>de</strong> 400 objetos <strong>da</strong>s áreas <strong>de</strong> astronomia, <strong>de</strong>senho, eletro-técnica,metalurgia e topografia. Os objetos estão, em sua maioria, em bom estado <strong>de</strong> conservação eregistrados, mas a instituição parece carecer <strong>de</strong> maior quantitativo <strong>de</strong> pessoal especializadopara <strong>de</strong>senvolver todo o trabalho necessário em torno <strong>de</strong>sse importante patrimônio. Oadvento do curso <strong>de</strong> graduação em Museologia na UFOP, on<strong>de</strong> o museu é espaço12 - Disponível em: http://www.musal.era.mil.br/. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.91


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tprivilegiado <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> experimental do curso, parece já estar alterando esse panorama. O<strong>Museu</strong> participa, junto com outras instituições brasileiras e portuguesas, do projeto <strong>de</strong>pesquisa “Thesaurus <strong>de</strong> instrumentos científicos em língua portuguesa”. 13Ain<strong>da</strong> na UFOP, temos o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Farmácia. Trata-se <strong>de</strong> um museu <strong>de</strong>pequeno porte, localizado em uma sala nas <strong>de</strong>pendências <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Farmácia, cria<strong>da</strong> em1839, e que, ao longo <strong>de</strong> sua existência, preservou um acervo formado por material didático<strong>de</strong> origem européia, mobiliário, drogas e equipamentos do final do século XIX, além <strong>de</strong>documentos com registro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> acadêmica e administrativa <strong>da</strong> instituição, livros e tesescom ênfase no século XIX e início do século XX. A peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste museu é que ele nãose encontra aberto ao público, apesar <strong>de</strong> possuir um rico acervo sobre a História <strong>da</strong>Farmácia e <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional <strong>de</strong> farmacêutico. O acervo se encontra bemconservado, necessitando <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> documentação para que essa referência <strong>da</strong>História <strong>da</strong> Farmácia não se perca. Em trabalho recente realizado pelo MAST nesse museu,foram inventariados 171 objetos.Em situação similar está uma outra coleção <strong>de</strong> interesse, sob guar<strong>da</strong> do Centro <strong>de</strong>Memória <strong>da</strong> Engenharia (Belo Horizonte - MG). Trata-se <strong>de</strong> uma iniciativa <strong>da</strong> Associação dosEx-Alunos <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais (UFMG) e quetem como objetivo primordial recuperar, reunir e manter o acervo técnico, científico e cultural<strong>de</strong>ssa Escola, <strong>de</strong> seus funcionários e ex-alunos, preservando a memória <strong>da</strong> instituição emseu contexto histórico. Uma parte do acervo é oriun<strong>da</strong> dos diversos <strong>de</strong>partamentos <strong>da</strong>Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>da</strong> UFMG como <strong>da</strong> Engenharia Elétrica, Instituto <strong>de</strong> Geociências,Engenharia Mecânica, Engenharia Hidráulica e Engenharia Sanitária e a outra parte éforma<strong>da</strong> por doações. O acervo conta com mais <strong>de</strong> 900 objetos, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacam:teodolitos, trânsitos e níveis; antigas balanças analíticas; réguas <strong>de</strong> cálculo, calculadorasmanuais e elétricas, e computadores; amperímetros, wattímetros, oscilógrafos e13 - O projeto é coor<strong>de</strong>nado pelo MAST, no Brasil, e pelo <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa (MCUL),em Portugal, e reúne uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições brasileiras e portuguesas: <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência e Técnica <strong>da</strong> Escola<strong>de</strong> Minas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto (UFOP), Colégio Pedro II no Rio <strong>de</strong> Janeiro (laboratório <strong>de</strong>Física), <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Escola Politécnica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ), <strong>Museu</strong> Dinâmico <strong>de</strong>Ciência e <strong>Tecnologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora (UFJF), <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Farmácia <strong>da</strong> UFOP,<strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, <strong>Museu</strong> Nacional<strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> Técnica <strong>de</strong> Coimbra, <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto,<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Física do Instituto Superior <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Lisboa, <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Engenharia <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Porto e <strong>Museu</strong> Para<strong>da</strong> Leitão do Instituto Superior <strong>de</strong> Engenharia do Porto.92


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgalvanômetros; <strong>de</strong>ntre outros. Uma parte do acervo, <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente cataloga<strong>da</strong> e classifica<strong>da</strong>,está exposta ao público.Ain<strong>da</strong> em Minas Gerais, agora na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora (UFJF),encontra-se o <strong>Museu</strong> Dinâmico <strong>de</strong> Ciências 14 . A coleção possui cerca <strong>de</strong> 2000 objetos dosprincipais fabricantes europeus e uma significativa coleção <strong>de</strong> instrumentos didáticosproduzidos pela Escola <strong>de</strong> Engenharia e posteriormente pelo Parque Tecnológico <strong>da</strong> UFJF.Os objetos estão distribuídos nas classes <strong>de</strong> acústica, calor, eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong>, eletrônica,informática, mecânica, metrologia, ótica e topografia e o <strong>Museu</strong>, constituído em 2001, realizaum trabalho excelente <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong>sse conjunto, que é originário <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong>Engenharia <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, cria<strong>da</strong> em 1914. Do acervo se <strong>de</strong>staca uma raríssima coleçãocientífica fabrica<strong>da</strong> pela Oficina Francesa “Le Fil’s Emile Deyrolle”. A Figura 4 apresentaimagens <strong>de</strong>ssa coleção.Figura 4 - Instrumentos do <strong>Museu</strong> Dinâmico <strong>de</strong> Ciências (anemômetro, conjunto <strong>de</strong> tubos sonoros).Fotos: acervo MAST.Outro conjunto <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> C&T <strong>de</strong> Minas Gerais está no <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Memória ePatrimônio <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Alfenas (UNIFAL). O <strong>Museu</strong> ain<strong>da</strong> não foiinaugurado, tendo apenas uma exposição comemorativa dos 95 anos <strong>da</strong> UNIFAL-MG. Aprevisão para inauguração é 2010. Quase <strong>de</strong>sconhecido, o conjunto passa atualmente porprocesso <strong>de</strong> documentação e, recentemente, a partir <strong>de</strong> um levantamento rápido(nome/uso/registro fotográfico), verificou-se que existe um total <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 742 peças no14 - Disponível em: http://www.museu.ufjf.br/historico/historico.html. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.93


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tacervo sendo: 581 <strong>de</strong> Farmácia, 56 <strong>de</strong> Odontologia e 105 <strong>de</strong> "Outros" (como por exemplo,didático ou administrativo - máquina <strong>de</strong> escrever, <strong>de</strong> calcular, projetor <strong>de</strong> sli<strong>de</strong>s, etc.).No âmbito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ), foram i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>squatro instituições <strong>de</strong> interesse, a saber: o <strong>Museu</strong> Nacional, já abor<strong>da</strong>do, o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> EscolaPolitécnica, o Observatório do Valongo e o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Química Professor Athos <strong>da</strong> SilveiraRamos.O <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Escola Politécnica 15 foi inaugurado em 1977 e conta com um acervo <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> 600 itens que revelam a história <strong>da</strong> mais antiga escola <strong>de</strong> engenharia do País. Sãodocumentos, fotografias, telas, mobiliário e instrumentos remanescentes dos laboratórios <strong>de</strong>antigas instituições <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> engenharia, como a Aca<strong>de</strong>mia Real Militar, a EscolaCentral, a Escola Polytechnica, a Escola Nacional <strong>de</strong> Engenharia e a Real Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong>Artilharia, Fortificação e Desenho, esta última, cria<strong>da</strong> em 1792 pelo vice-rei D. Luiz <strong>de</strong>Castro, foi berço do ensino <strong>de</strong> engenharia civil e militar no país.Os objetos encontrados nesse museu não estão organizados <strong>de</strong> forma sistemática,mas encontram-se, em sua maioria, em bom estado <strong>de</strong> conservação e em exposição emuma gran<strong>de</strong> sala do prédio <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia. A coleção necessita <strong>de</strong> um processo<strong>de</strong> documentação, mas está minimamente protegi<strong>da</strong>.No Observatório do Valongo 16 , po<strong>de</strong>m ser encontrados cerca <strong>de</strong> 60 instrumentos, amaioria <strong>de</strong> astronomia, fabricados entre 1880 e 1920, por importantes fabricantes europeus(Cook&Sons; Salmoiraghi; Nardin; Zeiss; Bamberg; Hughes&Son; Favarget, etc.). Seuestado <strong>de</strong> conservação é bom, mas necessitam ser organizados, registrados e catalogados.O MAST iniciou em 2007 um projeto <strong>de</strong> cooperação com o objetivo <strong>de</strong> registrar edocumentar esses objetos, além <strong>de</strong> pesquisar sua história. Um dos primeiros produtos <strong>de</strong>ssetrabalho foi uma exposição comemorativa do aniversário do Observatório em 2008, on<strong>de</strong>foram expostos vários objetos <strong>de</strong>sse conjunto. Um instrumento merece <strong>de</strong>staque, umtelescópio refrator, fabricado por Jose Hermi<strong>da</strong> Pazos 30 , em 1880.15 - Disponível em: http://www.poli.ufrj.br/museu. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.16 - Disponível em: http://www.ov.ufrj.br. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.94


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Química Professor Athos <strong>da</strong> Silveira Ramos 17 foi inaugurado em 13 <strong>de</strong>março <strong>de</strong> 2001. O museu tem por objetivo a preservação dos vestígios <strong>da</strong> história <strong>da</strong>química no Brasil. O nome <strong>da</strong>do ao museu é uma homenagem a um dos fun<strong>da</strong>dores doInstituto <strong>de</strong> Química <strong>da</strong> UFRJ. Sua se<strong>de</strong> provisória está aberta à visitação, no Centro <strong>de</strong><strong>Tecnologia</strong>, e conta com uma sala <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> à reserva técnica. O acervo contém hoje cerca<strong>de</strong> 22.500 peças, provenientes <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX e <strong>de</strong> todo o século XX. Acoleção principal é a <strong>de</strong> reagentes, através <strong>da</strong> qual se tem uma noção <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong>sembalagens, dos rótulos e <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produtos disponíveis comercialmente.Compõem também o acervo aparelhagens <strong>de</strong> vidro, equipamentos <strong>de</strong>stinados às aulaspráticas, bem como livros, fotografias e documentos.A Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo é a maior instituição <strong>de</strong> ensino superior e <strong>de</strong> pesquisado país, com seis campi situados na capital e em cinco ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do estado <strong>de</strong> São Paulo.Cria<strong>da</strong> em 1934, no âmbito <strong>de</strong>ssa universi<strong>da</strong><strong>de</strong> dois museus apresentam acervos quepo<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> interesse, o <strong>Museu</strong> Técnico do Laboratório <strong>de</strong> Topografia e Geodésia – LTG, 18<strong>da</strong> Escola Politécnica, e o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Computação Prof. O<strong>de</strong>lar Leite Linhares, 19 doDepartamento <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong> Computação e Estatística. O primeiro apresenta uma seleçãodos instrumentos usados no ensino dos alunos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1893, quando <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> EscolaPolitécnica. O acervo conta com teodolitos, taqueômetros, níveis <strong>de</strong> precisão, planímetros,<strong>de</strong>ntre outros, que estão registrados, organizados em vitrinas e em bom estado <strong>de</strong>conservação.O segundo museu, criado em 1978, está regularmente aberto ao público e conta commais <strong>de</strong> 200 objetos, entre máquinas <strong>de</strong> calcular, réguas <strong>de</strong> cálculo, computadores e outrosartefatos computacionais obsoletos. O acervo do museu foi formado a partir <strong>de</strong> doações <strong>de</strong>várias instituições <strong>de</strong> ensino, comerciais e até mesmo <strong>de</strong> pessoas físicas.Na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS), situa<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> PortoAlegre, <strong>de</strong>staca-se um grupo <strong>de</strong> 40 objetos pertencentes ao Instituto <strong>de</strong> Física, originários doObservatório Central. 20 Essa instituição iniciou suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em 24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1908 e a17 - Disponível em: http://www.iq.ufrj.br/in<strong>de</strong>x.php?option=com_content&task=view&id=74&Itemid=65. Acesso em:29 mai. 2009.18 - Disponível em: http://www.poli.usp.br/Organizacao/museuvirtual/ltg/<strong>de</strong>fault.asp. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.19 - Disponível em: http://www.icmc.usp.br/~museu/. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.20 - Disponível em: http://www.if.ufrgs.br/observatorio/in<strong>de</strong>x.html. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.95


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tvisitação pública nos anos 1960. Hoje o observatório é aberto ao público duas vezes nasemana e está em curso uma proposta <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia no local. Suacoleção é típica <strong>de</strong> instituições volta<strong>da</strong>s para o estudo <strong>da</strong> Astronomia, apresentandoinstrumentos utilizados para a <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> hora local, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, emestudos <strong>de</strong> sismologia e no mapeamento magnético do território; <strong>de</strong>staca-se um telescópioequatorial <strong>de</strong> 190mm, um círculo meridiano <strong>de</strong> 75mm, ambos fabricados por Gautier, 21 e umcírculo meridiano feito por Repsold 22 . Des<strong>de</strong> 2006, o MAST <strong>de</strong>senvolve um projeto <strong>de</strong>preservação <strong>de</strong>ssa coleção, em parceria com o Observatório Central, que inaugurou umaexposição comemorativa em 2008, utilizando gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses objetos. A Figura 5apresenta imagens <strong>de</strong> objetos do OC.Figura 5 - Imagem <strong>de</strong> objetos <strong>da</strong> coleção do OC <strong>da</strong> UFRGS (luneta meridiana, teodolito e câmerafotográfica). Fotos: Marcus Granato.Além <strong>de</strong>sse conjunto encontrado no OC, o Instituto <strong>de</strong> Física <strong>da</strong> UFRGS possui umgrupo <strong>de</strong> objetos que está em situação <strong>de</strong> quase abandono. São cerca <strong>de</strong> 200 instrumentos<strong>de</strong>positados em duas salas, no campus do Vale <strong>da</strong> UFRGS, mas sem estar organizados oui<strong>de</strong>ntificados. Existe a proposta do corpo docente do IF <strong>de</strong> fazer uma mostra com esses21 - Paul Ferdinand Gautier (1842-1909), fabricante francês que, na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX, juntamentecom a família Brunner tornaram-se os representantes mais importantes <strong>da</strong> indústria francesa <strong>de</strong> precisão.22 - A Casa Repsold, fabricante <strong>de</strong> instrumentos científicos, foi cria<strong>da</strong> por Johann Georg Repsold (1771-1830).Após seu falecimento, seus filhos Georg e Adolf e, posteriormente, seus netos Johann, Adolf e Oskar <strong>de</strong>ramcontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> aos trabalhos <strong>da</strong> casa. Repsold introduziu melhoramentos fun<strong>da</strong>mentais no projeto dos círculosmeridianos.96


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tobjetos, inclusive com espaço separado para isso, mas antes muito trabalho precisa serrealizado em prol <strong>de</strong> sua organização. I<strong>de</strong>ntificamos, em visita recente, vários objetos <strong>de</strong>ensino antigos e alguns mais recentes, provavelmente produzidos a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>1960. A Figura 6 apresenta uma imagem do <strong>de</strong>pósito on<strong>de</strong> estão esses objetos.Figura 6 - Imagem do <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> guar<strong>da</strong> dos objetos do Instituto <strong>de</strong> Física <strong>da</strong> UFRGS. Foto: MarcusGranato.Nessa mesma universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, situa-se o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Informática, 23 cujo acervo contacom cerca <strong>de</strong> 160 peças, entre réguas <strong>de</strong> cálculo, ábacos, equipamentos <strong>de</strong> hardware(computadores e seus acessórios), meios <strong>de</strong> armazenamento <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos (discos, fitas,cartões, etc.), livros, revistas, catálogos e folhetos. O museu foi criado na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990,<strong>de</strong>ntro do Instituto <strong>de</strong> Informática e po<strong>de</strong> ser visitado a partir <strong>de</strong> agen<strong>da</strong>mento, estandosituado na biblioteca <strong>de</strong>sse instituto no campus do Vale. Aqui a palavra “museu” é malemprega<strong>da</strong>, trata-se <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> peças que está sendo preservado minimamente,para não se per<strong>de</strong>rem, mas que precisam ser alvo <strong>de</strong> um trabalho meticuloso <strong>de</strong> registro edocumentação.23 - Disponível em: ttp://www.inf.ufrgs.br/~cabral/museu.html. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.97


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAlém <strong>de</strong>sses museus, a UFRGS possui um espaço que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> <strong>Museu</strong> doMotor, mas aqui também a <strong>de</strong>nominação “museu” nos parece ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Trata-se, naver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> um laboratório experimental para os alunos <strong>de</strong> engenharia mecânica. A própriaforma como utilizam as peças, cerca <strong>de</strong> 50, algumas <strong>de</strong>las corta<strong>da</strong>s para mostrar seuinterior, ou colocando em funcionamento, vão contra as diretrizes mo<strong>de</strong>rnas para os museus<strong>de</strong> C&T <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> acervos. Por outro lado, existem peças ali que merecem serpreserva<strong>da</strong>s e que são representativas <strong>de</strong> estudos, <strong>de</strong> pesquisas e do próprio ensino <strong>da</strong>engenharia nessa região.Um museu ligado à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> perfil diferente dos <strong>de</strong>mais aqui mencionados éo <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Luterana do Brasil (ULBRA). Funcionando nocampus se<strong>de</strong> <strong>da</strong> ULBRA, em Canoas (RS), o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> ocupa área <strong>de</strong> 9.346m 2 eseu acervo possui cerca <strong>de</strong> 320 veículos, entre carros <strong>de</strong> passeio, utilitários e motos, como oChase F 1908, um dos três existentes no mundo. Carros poucos conhecidos como Amílcar,Marmon, Franklin, Packard e La Salle, entre outros, fazem parte <strong>de</strong>ste acervoautomobilístico. Existem também no <strong>Museu</strong> espaços para exposições <strong>de</strong> relógios e <strong>de</strong>equipamentos ligados à área <strong>da</strong> comunicação, como rádios, câmeras fotográficas, máquinas<strong>de</strong> escrever e projetores cinematográficos, entre outros. O <strong>Museu</strong> conta ain<strong>da</strong> com uma área<strong>de</strong> 6 mil metros quadrados para a reserva técnica <strong>de</strong> veículos e oficinas <strong>de</strong> restauro.Conjuntos em outras instituiçõesAlém dos conjuntos <strong>de</strong> objetos encontrados em museus fe<strong>de</strong>rais e em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,também existem acervos em outros tipos <strong>de</strong> instituição, como órgãos municipais, estaduais,fe<strong>de</strong>rais e instituições priva<strong>da</strong>s. A seguir, apresentamos alguns exemplos.O Centro <strong>de</strong> Memória <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong> (CMCTS), em Aracaju 24 (SE) évinculado ao Instituto <strong>de</strong> <strong>Tecnologia</strong> e Pesquisa <strong>de</strong> Sergipe (ITPS) 25 . A coleção do CMCTSfoi adquiri<strong>da</strong> através <strong>de</strong> compras <strong>de</strong> equipamentos, peças, vidraria e mobiliário que, ao longodos anos, foram ficando em <strong>de</strong>suso e acondicionados em salas como o laboratório <strong>de</strong>24 - Disponível em: http://www.itps.se.gov.br/modules/tinyd1/in<strong>de</strong>x.php?id=20. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.25 - Autarquia especial do Governo do Estado <strong>de</strong> Sergipe.98


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tquímica orgânica (<strong>de</strong>sativado), almoxarifado, antiga casa <strong>de</strong> farinha (on<strong>de</strong> se faziamexperimentos <strong>de</strong> novas tecnologias em alimentos) e em <strong>de</strong>partamentos em que serviamcomo <strong>de</strong>coração. A reunião <strong>de</strong>sse material permitiu evi<strong>de</strong>nciar a organização do ITPSdurante seus 85 anos, enfatizando a riqueza <strong>da</strong>s profissões contemporâneas, em especial ado Químico. O patrimônio é constituído <strong>de</strong> 2.476 peças i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s, cataloga<strong>da</strong>s einventaria<strong>da</strong>s, fruto <strong>de</strong> doações e resgata<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Sergipe e <strong>de</strong>outras instituições. Após um longo período <strong>de</strong> pesquisa, constitui um painel significativo <strong>da</strong>história sergipana e <strong>da</strong>s relações sociais do trabalho, projetos <strong>de</strong> pesquisas, pesquisaselabora<strong>da</strong>s por outras instituições com a colaboração do ITPS e <strong>da</strong> sua própria história.O <strong>Museu</strong> do Eclipse, inaugurado em 1999, é instituição vincula<strong>da</strong> à prefeitura domunicípio <strong>de</strong> Sobral (CE), on<strong>de</strong> todo o acervo fotográfico original foi doado pelo ObservatórioNacional. Construído na Praça do Patrocínio, o <strong>Museu</strong> do Eclipse está localizado no ponto<strong>de</strong> on<strong>de</strong> foi observado o eclipse <strong>de</strong> 1919, para a comprovação <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Einstein. A luneta astronômica usa<strong>da</strong> por Henrique Morize e a carta selenográfica foramdoa<strong>da</strong>s pelo astrônomo cearense Rubens <strong>de</strong> Azevedo, que também doou um planetárioeletromecânico para a mostra didática.O <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Artes e Ciências, situado em Apareci<strong>da</strong> do Rio Negro (TO), tem comoacervo inicial o patrimônio do norte-americano Robert Paul Yassanye. Posteriormente, omuseu recebeu doações e obras adquiri<strong>da</strong>s dos artistas tocantineses. O acervo é composto<strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente 400 peças, entre elas: obras <strong>de</strong> artes (inclusive <strong>da</strong> família Yassanye eMontegrane), livros, atlas, mapas (adquiridos <strong>de</strong> vários países), peças <strong>de</strong> cerâmica donor<strong>de</strong>ste brasileiro, pedras <strong>de</strong> Minas Gerais, artefatos indígenas e aparelhos científicos etécnicos.A empresa <strong>de</strong> telefonia Oi possui dois museus <strong>da</strong>s telecomunicações 26 , nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>sdo Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong> Belo Horizonte. Esses espaços são utilizados para diversasativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais e o acervo foi formado especialmente por objetos her<strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s antigasempresas <strong>de</strong> Telecomunicações, como a Companhia Telefônica Brasileira - CTB, a Empresa<strong>de</strong> Telecomunicações do Rio <strong>de</strong> Janeiro – e a Telemar. Além <strong>de</strong>sses objetos, que foramtransferidos diretamente para o museu, existem muitos outros recebidos <strong>de</strong> doações <strong>de</strong>26 - Disponível em; http://www.oifuturo.org.br/museu/. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Mai. 2009.99


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdiversos lugares do país. Outra forma <strong>de</strong> aquisição são as compras, em antiquários, <strong>de</strong>objetos <strong>de</strong> relevância para o acervo.O <strong>Museu</strong> Asas <strong>de</strong> um Sonho, também conhecido como <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> TAM 27 , pertence àAssociação Educação, Assistência e <strong>Cultura</strong> (SP) e funciona em caráter experimental <strong>de</strong>s<strong>de</strong>sua inauguração, em novembro <strong>de</strong> 2006. Tem por objetivo preservar e exibir acervosrelacionados à história <strong>da</strong> aviação, homenageando seus criadores, construtores, mecânicose pilotos. Seu acervo contempla aeronaves, objetos culturais, documentos em papel emotores relacionados ao tema. O <strong>Museu</strong> foi fechado para reformas e sua previsão <strong>de</strong>abertura é durante o ano <strong>de</strong> 2009.O patrimônio referente ao transporte e à tecnologia ferroviários constitui um gran<strong>de</strong><strong>de</strong>safio para os profissionais <strong>da</strong> preservação. Como está em alto risco foi selecionado paraabor<strong>da</strong>gem nesse trabalho.O patrimônio <strong>de</strong> valor histórico oriundo <strong>da</strong> RFFSA foi doado ao IPHAN e está em fase<strong>de</strong> levantamento 28 . Com o propósito <strong>de</strong> consoli<strong>da</strong>r no país a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> preservacionistaferroviária, existem diversas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que são o resultado <strong>da</strong> ação i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> seusfun<strong>da</strong>dores, associados e colaboradores 29 . A partir <strong>de</strong>ssas associações foi possível constatara existência <strong>de</strong> muitos museus ferroviários no país, acredita-se que sejam mais <strong>de</strong> sessenta,e, provavelmente, <strong>de</strong>scortinamos apenas uma pequena parcela <strong>de</strong>sse panorama. Po<strong>de</strong>moscitar: <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> Bom Despacho (MG); <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> São João D'El Rey(MG); <strong>Museu</strong> do Trem do Recife (PE); <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> Curitiba (PR); <strong>Museu</strong> do Tremdo Rio <strong>de</strong> Janeiro; Centro <strong>de</strong> Preservação <strong>da</strong> História Ferroviária <strong>de</strong> São Paulo(Paranapiacaba, Santo André, SP); <strong>Museu</strong> do Trem <strong>de</strong> São Leopoldo (RS); <strong>Museu</strong>Ferroviário <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ferro Leopoldina (Além Paraíba, MG); <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong>Miguel Pereira (RJ); <strong>Museu</strong> Ferroviário Regional <strong>de</strong> Bauru (SP); <strong>Museu</strong> Vale do Rio Doce(Vila Velha, ES); <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> João Neiva (João Neiva, ES); <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Companhia27 - Disponível em: http://www.museutam.com.br/smt/jsp/<strong>de</strong>fault.jhtml?adPagina=420. Acesso em: 06 <strong>de</strong> Jun.2009.28- Disponível em: http://www.rffsa.gov.br. Acesso em: 08 <strong>de</strong> jun. 2009. A Re<strong>de</strong> Ferroviária Fe<strong>de</strong>ral S.A - emliqui<strong>da</strong>ção - foi extinta pela Medi<strong>da</strong> Provisória n.º 353, <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2007. Com a extinção, consi<strong>de</strong>randoque os ativos <strong>da</strong> empresa extinta passaram para a União, as medi<strong>da</strong>s autorizam a União a ven<strong>de</strong>r parte <strong>de</strong>ssesativos, os bens imóveis não operacionais, bem como aproveitá-los em programas <strong>de</strong> regularização fundiária ehabitações <strong>de</strong> interesse social para aten<strong>de</strong>r à população <strong>de</strong> baixa ren<strong>da</strong>.29 - Disponível em : http://www.trem.org.br/guiabmf.htm. Acesso em: 06 <strong>de</strong> Jun. 2009.100


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPaulista <strong>de</strong> Estra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Ferro (Jundiaí, SP); <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ferro Sorocabana(Sorocaba, SP). Provavelmente alguns <strong>de</strong>sses museus estão fechados, como é o caso do<strong>Museu</strong> do Trem, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, e espera-se que os mesmos possam passar à órbita doInstituto Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s, já que possuem parcela importante do patrimônio tecnológicomusealizado brasileiro.Destacamos, a título <strong>de</strong> exemplo, o <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora 30 , que contacom mais <strong>de</strong> 400 peças, ilustrando as categorias <strong>de</strong> mobiliário, instrumentos <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong>comunicação, livros técnicos, fotografias, equipamentos científicos, louças, miniaturas,locomotivas e material ro<strong>da</strong>nte. Este patrimônio cultural abor<strong>da</strong> as origens e a evolução <strong>da</strong>ferrovia, bem como seu impacto nos aspectos sociais e econômicos a partir do século XIX,no Brasil e em Juiz <strong>de</strong> Fora. O <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora tem o acervo e aedificação tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico – IEPHA.A Associação Brasileira <strong>de</strong> Preservação Ferroviária (ABPF) organiza uma série <strong>de</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em torno do patrimônio ferroviário, <strong>de</strong>staca-se o <strong>Museu</strong> Tecnológico Ferroviárioem Paranapiacaba (São Paulo) e o <strong>Museu</strong> Ferroviário <strong>de</strong> Campinas. O primeiro é compostopelo antigo pátio <strong>de</strong> manobras, máquinas fixas, oficinas, carros, vagões, locomotivas eobjetos <strong>de</strong> uso ferroviário dos dois sistemas funiculares que operaram no trajeto entre o Alto<strong>da</strong> Serra e a Raiz <strong>da</strong> Serra, na ferrovia fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Mauá. O segundo exibe antigos trens e<strong>de</strong>mais elementos em uso, em linha férrea <strong>de</strong> 24 Km <strong>de</strong> extensão (início na estaçãoAnhumas em Campinas e final em Jaguariúna). Até o momento, o acervo lá reunido contacom 15 locomotivas a vapor, sendo 11 em operação e o restante aguar<strong>da</strong>ndo restauro, umadiesel e uma elétrica (um bon<strong>de</strong> do corcovado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro), 30 carrosdiversos, uma automotriz, um auto <strong>de</strong> linha e centenas <strong>de</strong> peças menores.Certamente, gran<strong>de</strong> parte do patrimônio relacionado à tecnologia <strong>de</strong> ferrovias no paísestá em sério risco. A forma como esse patrimônio foi transferido para o IPHAN, semrecursos complementares que viabilizassem sua preservação é, talvez, a principal razãopara essa situação. A transferência dos museus ferroviários para a órbita do IBRAM, caso30 - Disponível em: http://www.funalfa.pjf.mg.gov.br/museus/ferro_acervo.php. Acesso em : 08 <strong>de</strong> Jun. 2009.101


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tseja realiza<strong>da</strong>, necessita, <strong>da</strong> mesma forma, ser acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> recursos (financeiros e <strong>de</strong>pessoal) para viabilizar a sua institucionalização.102


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TARQUIVOS DE LABORATÓRIO:O cientista e a preservação <strong>de</strong> documentosMaria Celina Soares <strong>de</strong> Mello e Silva 1Um dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios para um arquivista que irá atuar em institutos <strong>de</strong>pesquisa científica e tecnológica e, especificamente, nos seuslaboratórios, é a compreensão do trabalho realizado nestes espaços.Enten<strong>de</strong>r o universo <strong>de</strong> atuação dos laboratórios <strong>de</strong> ciência e tecnologia éfun<strong>da</strong>mental para o arquivista realizar suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> organização do arquivoinstitucional, tais como: avaliação, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, arranjo, <strong>de</strong>scrição econservação. Compreen<strong>de</strong>ndo as rotinas e os processos <strong>da</strong>s pesquisas e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s doslaboratórios, o arquivista terá condições <strong>de</strong> mapear e i<strong>de</strong>ntificar a produção documental.Outro <strong>de</strong>safio enfrentado pelos arquivistas é o <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r com a relação doscientistas para com os documentos produzidos no âmbito dos laboratórios e sob a suaresponsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>r os procedimentos utilizados pelos cientistas para a guar<strong>da</strong> econservação dos documentos <strong>da</strong>rá ao arquivista condições <strong>de</strong> dialogar e traçar diretrizes<strong>de</strong> preservação.Além <strong>de</strong> produzir documentos, as pesquisas científicas e tecnológicas realiza<strong>da</strong>sem laboratórios produzem aparatos, equipamentos, instrumentos, dispositivos eferramentas, objetos os mais diversos. Produzem, ain<strong>da</strong>, coleções <strong>de</strong> espécimes animais,vegetais e minerais. To<strong>da</strong> esta produção, que escapa do âmbito <strong>de</strong> atuação do arquivista,não po<strong>de</strong> ser ignora<strong>da</strong> por ele, pois faz parte do mesmo universo que produziu a1 <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins. Rua General Bruce, 586, Bairro Imperial <strong>de</strong> São Cristóvão, Rio <strong>de</strong>Janeiro – RJ. CEP:20.921-030. celina@mast.br. Forma<strong>da</strong> em Arquivologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ralFluminense e com Doutorado em História Social pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Atua no Arquivo <strong>de</strong> História<strong>da</strong> Ciência do MAST <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1988, tendo se especializado em arquivos pessoais <strong>de</strong> cientistas e arquivos <strong>de</strong>ciência e tecnologia.104


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdocumentação. Existe uma relação orgânica entre a produção documental e os maisdiversos objetos produzidos e utilizados nos laboratórios.Uma gran<strong>de</strong> questão que se coloca é a <strong>de</strong> como li<strong>da</strong>r com esta produção. A<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> quais documentos e objetos preserva é difícil <strong>de</strong> ser toma<strong>da</strong>. O que se <strong>de</strong>velevar em consi<strong>de</strong>ração para esta <strong>de</strong>cisão? Como avaliar a importância dos documentose objetos? Por que utilizar recursos humanos, materiais e financeiros para preservar aprodução dos laboratórios?Para respon<strong>de</strong>r a estas e outras perguntas, é preciso se ter em mente que apreservação <strong>da</strong> documentação oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> C&T é fun<strong>da</strong>mental para a história <strong>da</strong> ciência,que se interessa não apenas pelo produto final <strong>da</strong> pesquisa científica e tecnológica -como os relatórios finais, artigos, livros etc. - mas também todo o caminho percorrido e omodus operandis. Apoios e patrocínios, estrutura institucional que propiciou a pesquisa,equipe, intercâmbio com outros cientistas e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s enfrenta<strong>da</strong>s para o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s pesquisas são igualmente fontes valiosas para a busca <strong>de</strong>conhecimento sobre as pesquisas científicas.O historiador <strong>da</strong>s ciências busca informações sobre como os números, as tabelas,as máquinas e os gráficos são produzidos e trabalhados durantes uma pesquisa. Elebusca enten<strong>de</strong>r on<strong>de</strong>, como, por quem e porque máquinas e equipamentos sãoimaginados e fabricados.Além disso, o pesquisador em história <strong>da</strong> ciência <strong>de</strong>dica-se ao estudo <strong>da</strong>s práticase procedimentos científicos. Para ele, não há um relato único e evi<strong>de</strong>nte, auto-suficiente einquestionável <strong>da</strong>s ciências, o historiador tem que <strong>de</strong>finir suas questões e seusinstrumentos, histórias múltiplas, diferentes e até paralelas.Os documentos produzidos pelos laboratórios po<strong>de</strong>m ser utilizados como fontepara a história <strong>da</strong> ciência, seja qual for: estudos <strong>de</strong> laboratório; estudos sobrecontrovérsias científicas ou sobre instrumentos científicos; o estudo do contexto <strong>da</strong>justificação <strong>da</strong> ciência, do contexto <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> ciência e do contexto <strong>da</strong> difusão <strong>da</strong>ciência; estudo histórico <strong>da</strong> institucionalização <strong>da</strong> ciência; estudo histórico do ensinocientífico e estudo histórico <strong>da</strong>s relações entre a ciência e outros campos, comomovimentos sociais, religiosos, artísticos, políticos, <strong>de</strong>ntre muitas outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Para estes estudos, não apenas os documentos são importantes, mas também osequipamentos, aparatos, enfim, os objetos. Os documentos são produzidos durante to<strong>da</strong>a trajetória <strong>da</strong> pesquisa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o planejamento, execução até a conclusão dos processos105


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Te ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Pesquisas têm mostrado que as equipes dos laboratórios e os cientistasconsi<strong>de</strong>ram importante <strong>de</strong> se preservar apenas os resultados finais, as publicações.Porém, as pesquisas também <strong>de</strong>monstram que os registros <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as etapasintermediárias têm um <strong>de</strong>stino duvidoso. Sua preservação é incerta. Não há a visão <strong>da</strong>importância dos documentos produzidos pelo passo a passo <strong>da</strong> pesquisa para a história<strong>da</strong> ciência, a história <strong>da</strong> disciplina ou a área <strong>de</strong> conhecimento.QUAL O DESTINO DOS DOCUMENTOS PRODUZIDOS PELAS PESQUISAS?A questão se coloca porque tais documentos não costumam chegar aos arquivosinstitucionais. Segundo a bibliografia <strong>de</strong> apoio, seu <strong>de</strong>stino po<strong>de</strong> ser variado:- são <strong>de</strong>scartados ou são doados para quem se interessar;- vão para os arquivos privados dos cientistas, on<strong>de</strong> são guar<strong>da</strong>dos por prazoin<strong>de</strong>terminado, ou são eliminados pela família ou pelo próprio cientista;- são largados nos laboratórios e salas <strong>de</strong> trabalho, e a instituição po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar láou eliminar sem critérios.O mesmo ocorre com os instrumentos, equipamentos e aparatos diversos, muitasvezes abandonados como sucata.A experiência do Arquivo <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Ciência do MAST mostra que boa partedos documentos <strong>da</strong> pesquisa vai parar nos arquivos pessoais dos cientistas epesquisadores. Muitos são niti<strong>da</strong>mente institucionais, mas que são preservados peloscientistas, não pela instituição.PORQUE OS DOCUMENTOS NÃO SÃO PRESERVADOS?Dentre várias possíveis razões para a não preservação dos documentos <strong>da</strong>spesquisas científicas e tecnológicas produzi<strong>da</strong>s nos laboratórios, <strong>de</strong>staca-se avalorização dos documentos finais por parte <strong>de</strong> pesquisadores. É uma visãopredominante, por parte dos cientistas, <strong>de</strong> se valorizar mais o resultado final <strong>da</strong> pesquisado que os documentos oriundos <strong>da</strong>s etapas intermediárias. O que se alega é que osdocumentos finais possuem to<strong>da</strong>s as informações importantes <strong>da</strong> pesquisa, os <strong>da</strong>dos játrabalhados e que o resto não é relevante.E este é um dilema para a preservação na área científica: a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> meio não évaloriza<strong>da</strong> e nem sempre preserva<strong>da</strong>, e também não há interesse no modo como as106


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tinstituições funcionam. A preservação, assim, passa a ser um <strong>de</strong>safio que envolvetrabalho <strong>de</strong> conscientização, <strong>de</strong> entendimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> científica e tecnológica e,sobretudo, <strong>de</strong> um diálogo mais harmonioso entre o cientista-produtor, o arquivistapreservadore o historiador-pesquisador, para um total entendimento do ofício <strong>de</strong> ca<strong>da</strong>um.COMO PRESERVAR A MEMÓRIA CIENTÍFICA BRASILEIRA?A ausência <strong>de</strong> políticas, diretrizes ou programas governamentais para apreservação <strong>da</strong> memória científica e tecnológica brasileira permite que os registrosoriundos <strong>da</strong> C&T tomem os <strong>de</strong>stinos mais variados possíveis. E, ain<strong>da</strong>, possibilita per<strong>da</strong>s,<strong>de</strong>smembramentos, abandono e tráfico para o exterior. A memória <strong>da</strong> produção nacionalem C&T se per<strong>de</strong> no Brasil. A importância <strong>de</strong> se conhecer o passado, as conquistas járealiza<strong>da</strong>s, os fracassos, a história e os vultos <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas diversas áreas científicasapenas recentemente têm sido valorizados no Brasil.Na área arquivística, o governo fe<strong>de</strong>ral instituiu o programa SIGA em todos osministérios, com o objetivo <strong>de</strong> se preservar os documentos arquivísticos produzidos peloGoverno fe<strong>de</strong>ral.O SIGA tem por finali<strong>da</strong><strong>de</strong>:I - garantir ao ci<strong>da</strong>dão e aos órgãos e enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> administração pública fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>forma ágil e segura, o acesso aos documentos <strong>de</strong> arquivo e às informações nelesconti<strong>da</strong>s, resguar<strong>da</strong>dos os aspectos <strong>de</strong> sigilo e as restrições administrativas ou legais;II - integrar e coor<strong>de</strong>nar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> documentos <strong>de</strong> arquivo <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>spelos órgãos setoriais e seccionais que o integram;III - disseminar normas relativas à gestão <strong>de</strong> documentos <strong>de</strong> arquivo;IV - racionalizar a produção <strong>da</strong> documentação arquivística pública;V - racionalizar e reduzir os custos operacionais e <strong>de</strong> armazenagem <strong>da</strong> documentaçãoarquivística pública;VI - preservar o patrimônio documental arquivístico <strong>da</strong> administração pública fe<strong>de</strong>ral;VII - articular-se com os <strong>de</strong>mais sistemas que atuam direta ou indiretamente na gestão <strong>da</strong>informação pública fe<strong>de</strong>ral.107


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo âmbito do Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>, O SIGA tem seguido muitolentamente e, até o presente momento, ain<strong>da</strong> não apresentou resultados.Além dos SIGA, outras iniciativas surgiram para a preservação <strong>da</strong> memóriacientífica e tecnologia, não apenas arquivística, mas com uma visão mais ampla.Em 2003, o CNPq nomeou uma Comissão com o objetivo <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r e proporuma política <strong>de</strong> preservação <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> C&T nacional. Após ouvir cientistas,políticos, dirigentes <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong> preservação <strong>da</strong> memória,historiadores e muitos profissionais envolvidos direta ou indiretamente com acervoscientíficos e instituições científicas, a Comissão produziu um relatório final com asconclusões dos trabalhos. Tal relatório apresenta os graves problemas enfrentados paraa elaboração <strong>de</strong> uma política para a memória científica e tecnológica, e cita importantesiniciativas em an<strong>da</strong>mento, escapando <strong>da</strong> discussão conceitual, ressaltando a importância<strong>da</strong> preservação <strong>da</strong> memória científica.A Comissão Especial trabalhou convicta <strong>de</strong> que o Brasil precisa cui<strong>da</strong>rjudiciosamente <strong>da</strong> memória <strong>de</strong> sua produção científica e tecnológica sob pena <strong>de</strong> não sereconhecer como integrante do gran<strong>de</strong> processo <strong>de</strong> construção do conhecimentohumano. Levando-se em conta que a produção do conhecimento se confun<strong>de</strong> com oesforço <strong>de</strong> construção <strong>da</strong> Nação, uma política <strong>de</strong> memória <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia é<strong>de</strong> importância indiscutível; sem esta memória seria impossível pensar seriamente otrajeto brasileiro.O Relatório finaliza com 10 (<strong>de</strong>z) recomen<strong>da</strong>ções para a elaboração <strong>de</strong> umaPolítica Nacional <strong>de</strong> Memória <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong>:1. Elaboração <strong>de</strong> um Programa Nacional envolvendo todos os âmbitos <strong>da</strong> administraçãopública e setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil, sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do Ministério <strong>da</strong> Ciência e<strong>Tecnologia</strong>, por meio do CNPq;2. Formação <strong>de</strong> uma Comissão Nacional <strong>da</strong> Memória <strong>da</strong> Ciência, com representativi<strong>da</strong><strong>de</strong>interinstitucional, cuja operacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> seria efetua<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong> uma SecretariaExecutiva abriga<strong>da</strong> no Centro <strong>de</strong> Memória do CNPq;3. Criação <strong>de</strong> um grupo encarregado <strong>de</strong> inserir a memória <strong>da</strong> ciência nas diretrizes <strong>da</strong>Política Nacional <strong>de</strong> C&T;4. Estímulo às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> preservação, <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong> difusão através <strong>de</strong> editaisperiódicos;108


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T5. Infra-estrutura a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> e pessoal especializado para a preservação dos acervos <strong>de</strong>ca<strong>da</strong> instituição envolvi<strong>da</strong> na produção do conhecimento científico e tecnológico, e<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seus próprios arquivos ou centros <strong>de</strong> memória;6. Criação <strong>de</strong> uma Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> <strong>Tecnologia</strong>, para integrar otrabalho <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> pesquisa, <strong>de</strong> ensino, <strong>de</strong> documentação, <strong>de</strong> arquivos e <strong>de</strong> museus;7. I<strong>de</strong>ntificação e qualificação <strong>de</strong> acervos públicos e privados referentes à memória <strong>da</strong>ciência e <strong>da</strong> tecnologia;8. Estabelecimento <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> pessoal qualificado para a preservaçãodo patrimônio científico e tecnológico;9. Estabelecimento <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> estímulos à pesquisa em História <strong>da</strong> Ciência,pelas agências <strong>de</strong> fomento;10. Multiplicação <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> disseminação e divulgação.A partir <strong>da</strong> iniciativa do CNPq <strong>de</strong> promover editais específicos, recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> peloRelatório e constante do PPA, o governo assumiu <strong>de</strong>finitivamente a sua função <strong>de</strong>promover e fomentar a preservação <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> C&T brasileira. Porém, até o presentemomento, ain<strong>da</strong> não apontou iniciativas no sentido <strong>de</strong> traçar uma política nacional para apreservação, que envolva as instituições públicas nos níveis municipal, estadual efe<strong>de</strong>ral, e as priva<strong>da</strong>s ou socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s civis, criando re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informações, ca<strong>da</strong>strosnacionais ou comissões responsáveis por essa tarefa.Das <strong>de</strong>z recomen<strong>da</strong>ções lança<strong>da</strong>s pelo Relatório em 2003, até o final <strong>de</strong> 2007apenas as <strong>de</strong> número 4 e 9, referentes a editais <strong>de</strong> apoio a iniciativas <strong>de</strong> preservação,foram implementa<strong>da</strong>s. Em 2008 não houve edital do CNPq para a preservação <strong>de</strong>acervos.No que se refere à Recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> número 8, sobre a formação <strong>de</strong> pessoalqualificado para atuar na preservação <strong>de</strong> acervos <strong>de</strong> ciência e tecnologia, surgiu umainiciativa do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins – MAST: a criação <strong>de</strong> um Curso <strong>de</strong>Especialização em Preservação <strong>de</strong> Acervos <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> - PPACT. Estecurso preten<strong>de</strong> <strong>da</strong>r uma noção ampla <strong>de</strong> vários aspectos que envolvem a preservação <strong>de</strong>acervos <strong>de</strong> C&T, incluindo aulas teóricas e práticas em laboratórios <strong>de</strong> conservação erestauração <strong>de</strong> acervos. Com a primeira turma inicia<strong>da</strong> em março <strong>de</strong> 2009, o curso tevemuita procura <strong>de</strong>monstrando que existe <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> formação e qualificação profissionalpara a preservação <strong>de</strong> acervos.109


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOutra iniciativa do MAST para a preservação <strong>de</strong> acervos resultou em umapesquisa realiza<strong>da</strong> em laboratórios científicos e tecnológicos dos institutos do MCT naci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro 2 para a coleta <strong>de</strong> informações. O objetivo foi o <strong>de</strong> conhecercomo as equipes que atuam nos laboratórios li<strong>da</strong>m com a produção <strong>de</strong> documentos eobjetos produzidos no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong>s pesquisas e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A metodologia utiliza<strong>da</strong> pelapesquisa foi a <strong>de</strong> entrevista com aplicação <strong>de</strong> questionário, e posterior transcrição ealimentação <strong>de</strong> base <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos. Foi um total <strong>de</strong> 102 laboratórios pesquisados.Parte dos resultados obtidos nesta pesquisa sobre a preservação <strong>de</strong> documentose objetos é o que se preten<strong>de</strong> apresentar e discutir no presente trabalho.A PRESERVAÇÃO DE INSTRUMENTOS E EQUIPAMENTOS CIENTÍFICOSO objetivo <strong>de</strong> se buscar informações sobre a preservação <strong>de</strong> instrumentos eobjetos em geral se <strong>de</strong>ve basicamente a três razões. A primeira diz respeito ao fato doMAST ter especial interesse na preservação dos instrumentos que aju<strong>da</strong>ram noprogresso científico brasileiro, como os que fazem parte <strong>de</strong> seu acervo histórico. Asegun<strong>da</strong> refere-se ao fato do MAST receber por doação arquivos pessoais <strong>de</strong> cientistas,que vêm acompanhados, em alguns casos, <strong>de</strong> instrumentos e objetos diversos, comofazendo parte <strong>de</strong> seu acervo arquivístico. A terceira abor<strong>da</strong> os documentos produzidossobre os instrumentos, ou a partir <strong>de</strong>les, que realmente po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radosdocumentos <strong>de</strong> arquivo. Po<strong>de</strong>m ser tanto manuais ou instruções <strong>de</strong> uso, documentossobre o funcionamento, uso e manutenção, quanto documentos produzidos pelosinstrumentos, como listagens, relatórios, planilhas etc. E, ain<strong>da</strong>, documentos fotográficose filmográficos.Assim, o interesse por todo este material, visando sua utilização e estudo para ahistória <strong>da</strong> ciência, fez com esta temática fosse contempla<strong>da</strong> na pesquisa, on<strong>de</strong> o termoadotado foi “instrumentos/equipamentos” para efeito <strong>de</strong> facilitar as entrevistas. Sãotermos facilmente compreensíveis pelos entrevistados. Porém, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>instrumentos <strong>de</strong>stes termos, assim como outros como aparatos, ferramentas edispositivos, ain<strong>da</strong> está em discussão, sem consensos.2 Centro Brasileiro <strong>de</strong> Pesquisas Físicas – CBPF; Observatório Nacional - ON; Centro <strong>de</strong><strong>Tecnologia</strong> Mineral – CETEM; Instituto Nacional <strong>de</strong> <strong>Tecnologia</strong> – INT; Instituto Nacional <strong>de</strong>Matemática Pura e Aplica<strong>da</strong> – IMPA; Instituto <strong>de</strong> Engenharia Nuclear – IEN/CNEN; Instituto <strong>de</strong>Radioproteção e Dosimetria – IRD/CNEN.110


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO MAST optou por adotar o termo “objeto” na tentativa <strong>de</strong> abarcar to<strong>da</strong>s aspossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, generalizando a compreensão.Os resultados obtidos nos mostram que 56% dos laboratórios pesquisadosproduzem instrumentos e aparatos diversos para a realização dos trabalhos eativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Poucos são os laboratórios que produzem instrumentos científicos. Nareali<strong>da</strong><strong>de</strong> são mais confeccionados aparatos e a<strong>da</strong>ptações e melhorias nosequipamentos adquiridos.Os laboratórios que produzem seus próprios instrumentos são aqueles voltados àinstrumentação ou ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> tese.Dentre as respostas que afirmaram não produzir estes materiais foram obti<strong>da</strong>s asseguintes justificativas:- Utilizam instrumentos produzidos por outros setores- Montam e constroem dispositivos para instrumentos- Produzem instrumentos <strong>de</strong> forma artesanal- Compram equipamentos disponíveis no mercado- Fazem a<strong>da</strong>ptações e melhorias nos equipamentos adquiridos.Os objetos citados como instrumentos, equipamentos, aparatos, dispositivos etc.,foram:: acessórios; a<strong>da</strong>ptações <strong>de</strong> máquinas; amplificadores; aparatos experimentais;caixas <strong>de</strong> irradiação; circuito eletrônico; coluna para execução <strong>de</strong> ensaios;condutivímetro; controlador <strong>de</strong> temperatura; <strong>de</strong>tector; dispositivo <strong>de</strong> ensaio; divisor <strong>de</strong>voltagem; divisor do homogeneizador; sensores; equipamento <strong>de</strong> criogenia; instrumento<strong>de</strong> medição; instrumento para estudo <strong>de</strong> medição; interface; leito fluidizado; mesavibratória; monitor; montagem <strong>de</strong> peças e parafusos; papel <strong>de</strong>tector <strong>de</strong> mercúrio; peça <strong>de</strong>reposição; periférico; porta-amostra; programa <strong>de</strong> análise; protótipo; reator; sistema <strong>de</strong>aquisição <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos; sistema <strong>de</strong> captura <strong>de</strong> imagens, sistema <strong>de</strong> testes; software;solvencet; spray-dryer; e teste <strong>de</strong> instrumentação.A pesquisa foi além in<strong>da</strong>gando se estes objetos eram preservados. Foram obti<strong>da</strong>squatro resposta diferentes, conforme mostra o Gráfico 1:111


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOs instrumentos/equipamentos são preservados?25% 2% SimNão22%51%Sem respostaÀs vezesGráfico 1 – Diagrama apresentado a distribuição percentual para as respostas à pergunta sobreinstrumentos/equipamentos científicos.Das respostas positivas, ou seja, 51% do total, foi possível agrupá-las porsemelhança <strong>de</strong> argumentação, em categorias, conforme mostra o Quadro 1:Quadro 1 – Diferentes categorias <strong>de</strong> agrupamento <strong>da</strong>s respostas obti<strong>da</strong>s para a pergunta sobreinstrumentos e equipamentos.PRESERVAÇÃO DE INSTRUMENTOSCATEGORIAS1. São guar<strong>da</strong>dos no laboratório sem cui<strong>da</strong>dosespeciaisNÚMERO DE RESPOSTAS2. Só são mantidos os que estão em uso 153. São reutilizados 114. São <strong>de</strong>scartados os que têm <strong>de</strong>feito ou sãoobsoletos5. São encostados (como sucata) os antigos ouquebrados6. São guar<strong>da</strong>dos no laboratório <strong>de</strong> maneira apropria<strong>da</strong> 27. Outras respostas 28. Respostas irrelevantes 89. Sem resposta 411643112


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA argumentação <strong>da</strong> primeira categoria se <strong>de</strong>ve à falta <strong>de</strong> opção <strong>de</strong> local <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>e, ain<strong>da</strong>, para uma possível reutilização ou canibalização <strong>de</strong> suas peças (termo utilizadopelos entrevistados).Os equipamentos que estão em uso recebem atenção e preocupação por partedos cientistas, enquanto aqueles que não são mais úteis, por obsolescência ou por<strong>de</strong>feito, são <strong>de</strong>ixados <strong>de</strong> lado como sucata. Isto significa que os entrevistados somentetêm interesse nos instrumentos ou equipamentos enquanto estes lhes são úteis <strong>de</strong>alguma maneira.Algumas razões cita<strong>da</strong>s para o <strong>de</strong>scarte são:- Peças importa<strong>da</strong>s, que não existem no mercado interno, e <strong>de</strong> custo alto, que não valepena a sua restauração ou conserto.- Instrumento usado para medição, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, não po<strong>de</strong> ser reaproveitado.- Dosímetros artesanais que não po<strong>de</strong>m ser reaproveitados.- Equipamentos que são usados somente para experiências.- Aparatos e dispositivos utilizados apenas para ensaios.Apenas dois entrevistados afirmaram que os instrumentos e equipamentos ficamguar<strong>da</strong>dos no laboratório <strong>de</strong> maneira apropria<strong>da</strong>.No geral, a pesquisa mostrou que estes objetos não são preservados e não háqualquer esforço para que o seja. O reaproveitamento <strong>da</strong>s peças ain<strong>da</strong> é a atitu<strong>de</strong> maisadota<strong>da</strong>, <strong>de</strong>scaracterizando os objetos e ocasionando per<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e funçõespara as quais foram criados.Mostrou, ain<strong>da</strong>, que existe uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> poucos recursos para a pesquisa,fazendo com que seja preciso aproveitar o máximo possível <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> equipamento. Aaquisição <strong>de</strong> novos equipamentos e instrumentos, especialmente quando se trata <strong>de</strong>importação, é tarefa bastante trabalhosa e, muitas vezes, <strong>de</strong>mora<strong>da</strong>. A reutilizaçãotambém ocorre porque o uso dos equipamentos, muitas vezes, é condicionado ao tipo <strong>de</strong>pesquisa a ser realiza<strong>da</strong>. Pelas características <strong>da</strong> pesquisa, po<strong>de</strong> não ser vantajosoinvestir recursos em novas aquisições, po<strong>de</strong>ndo ser feitas a<strong>da</strong>ptações, alocando recursospara outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais prioritárias.Por último, a opinião <strong>de</strong> um entrevistado é a <strong>de</strong> que não existe um processoconsciente <strong>de</strong> preservação <strong>da</strong> memória científica no nível institucional ou nem mesmo no113


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpessoal. Assim que se tornam obsoletos, os equipamentos e instrumentos são retirados<strong>de</strong> operação e colocados em <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> material inservível.A PRESERVAÇÃO DE MANUAIS E INSTRUÇÕES DE USOTodos os laboratórios pesquisados possuem equipamentos ou instrumentos, oque significa que há a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manutenção e, em vários casos, <strong>de</strong> calibração emcondições i<strong>de</strong>ais para não alterar o experimento, é fun<strong>da</strong>mental. A função do manualtorna-se primordial sob este aspecto. Salienta-se que é o documento mais importante<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um laboratório. No entanto, para o laboratório que <strong>de</strong>senvolve equipamentos, opreparo <strong>de</strong> manual é obrigatório.No caso <strong>de</strong> instituição volta<strong>da</strong> também à área acadêmica, com mestrado eminstrumentação, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> instrumento é a sua missão e a tese é o manualque <strong>de</strong>screve o instrumento.Vale ressaltar que este é o documento existente <strong>de</strong>ntro do laboratório que maisimportância tem nas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> alguns entrevistados. Embora alguns <strong>de</strong>les tenhaminformado que, por falta <strong>de</strong> controle, muitos manuais foram perdidos ou dispersos.A preservação dos manuais <strong>de</strong> utilização foi alvo <strong>de</strong> análise, e <strong>de</strong>monstrou que agran<strong>de</strong> maioria dos entrevistados os preserva, conforme mostra o Gráfico 2:Os manuais ou instruções <strong>de</strong> uso são preservados?11%16% SimNão73%Sem respostaGráfico 2 - Diagrama apresentado a distribuição percentual para a s respostas à pergunta sobremanuais <strong>de</strong> uso.114


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAnalisando algumas respostas, foi possível verificar que alguns laboratórios fazemuma tradução simplifica<strong>da</strong> do manual, também chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> roteiro simplificado, parafacilitar a utilização dos técnicos, colocando-o para uso ao lado do equipamento eguar<strong>da</strong>ndo o original. Em sua maioria, esse procedimento é característico <strong>da</strong>s instituiçõesvolta<strong>da</strong>s à área tecnológica. A equipe dos laboratórios reconhece a importância <strong>de</strong>stesdocumentos e tenta preservá-los na medi<strong>da</strong> do possível.O entendimento do que seria a forma <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong>sses documentos foivaria<strong>da</strong>. Uns interpretaram como o local físico, e outros como o meio ou documentos,conforme apresentado no Quadro 2.Quadro 2 – Respostas sobre manuais <strong>de</strong> uso dos instrumentos.FORMA DE PRESERVAÇÃO DE MANUAIS E INSTRUÇÕES DE USOLocais como respostaNa sala <strong>de</strong> manuaisNo laboratórioNa bibliotecaNa sala <strong>de</strong> trabalhoNa Secretaria <strong>da</strong> DivisãoDocumentos e meios <strong>de</strong> preservaçãoNa forma <strong>de</strong> código fonteEm meio eletrônicoNo Manual <strong>da</strong> Quali<strong>da</strong><strong>de</strong>No site do fabricanteNo método <strong>de</strong> análise e no procedimentooperacionalNo projeto <strong>de</strong> pesquisaEm relatórioNas tesesOutra questão importante pesquisa<strong>da</strong> foi sobre o registro <strong>da</strong> utilização doinstrumento/equipamento em algum documento. Registrar a forma <strong>de</strong> utilização facilita epermite a compreensão do papel <strong>de</strong>sempenhado pelo instrumento no sucesso <strong>da</strong>pesquisa. Além disso, possibilita um rastreamento e utilização futura. O Gráfico 3 mostrauma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> significativa <strong>de</strong> respostas que afirmaram não registrar a forma <strong>de</strong>utilização, manipulação ou uso <strong>de</strong>sses objetos nas pesquisas.115


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TExiste algum documento que <strong>de</strong>screva a utilização doinstrumento?25%5%SimNão70%Sem respostaGráfico 3 - Diagrama apresentado a distribuição percentual para as respostas à pergunta sobredocumentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> utilização <strong>de</strong> instrumentos.Os entrevistados explicaram que quando uma pesquisa resulta numa tese, emgeral, todos os procedimentos adotados e a manipulação dos instrumentos eequipamentos são <strong>de</strong>scritos. Assim, as teses e os relatórios técnicos são apontadoscomo os documentos que preservam a forma <strong>de</strong> utilização. E esses documentos sãopreservados na Biblioteca.Os laboratórios que têm implantado o Sistema <strong>da</strong> Quali<strong>da</strong><strong>de</strong> possuem regras maisrígi<strong>da</strong>s com relação à produção e preservação <strong>de</strong> manuais e instruções <strong>de</strong> uso. Osmanuais prevêem uma série <strong>de</strong> procedimentos na utilização e manutenção dosequipamentos.Os laboratórios costumam manter, ao lado do equipamento, uma planilha on<strong>de</strong>são registra<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as manutenções efetua<strong>da</strong>s, bem como as condições <strong>de</strong> uso doequipamento.É obrigatório manter uma pasta para ca<strong>da</strong> equipamento com to<strong>da</strong> adocumentação referente a ele, tais como: notas fiscais, manuais, registros <strong>de</strong>manutenção, entre outros.Em alguns casos, o técnico precisa ser treinado ou qualificado para operar oequipamento, sendo que o Sistema <strong>da</strong> Quali<strong>da</strong><strong>de</strong> discrimina as qualificações necessáriaspara habilitar o técnico.116


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO que se verifica é que laboratórios regidos pelo Sistema <strong>da</strong> Quali<strong>da</strong><strong>de</strong> são maisconscientes sobre a importância <strong>da</strong> preservação <strong>de</strong> documentos do que os <strong>de</strong>mais. Ficaevi<strong>de</strong>nte a ligação entre Quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e preservação. Quanto mais planejamento eorganização, pilares <strong>da</strong> Quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, mais chances <strong>de</strong> preservação.CONCLUSÃOA pesquisa <strong>de</strong>monstrou que 51% dos instrumentos e equipamentos sãopreservados, contra 73% dos manuais e instruções <strong>de</strong> uso. As razões para isso foramapresenta<strong>da</strong>s e boa parte foi plausivelmente justifica<strong>da</strong>. Os documentos produzidos por esobre os objetos, apresentam características <strong>de</strong> documentos <strong>de</strong> arquivo e <strong>de</strong>vem serencaminhados ao arquivo institucional após a conclusão <strong>da</strong> pesquisa, ou quando nãoforem mais <strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> corrente para os pesquisadores.O <strong>de</strong>stino incerto dos documentos e equipamentos é recorrente e merece atençãoespecial por parte do Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>. Os <strong>da</strong>dos levantados mostramque estes institutos não possuem um arquivo institucional que seja geral, que abarquemtodos os setores <strong>da</strong> instituição e que controle to<strong>da</strong> a produção documental.Igualmente ocorre com os instrumentos que se per<strong>de</strong>m ou se <strong>de</strong>scaracterizam.Parte <strong>da</strong> memória do funcionamento e utilização <strong>de</strong> instrumentos e equipamentos, eobjetos diversos po<strong>de</strong>m estar se per<strong>de</strong>ndo. O conhecimento po<strong>de</strong> não passar paraequipes futuras, em prejuízo do próprio <strong>de</strong>senvolvimento científico e <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>investigação <strong>de</strong> historiadores <strong>da</strong> ciência.As tentativas para preservação <strong>da</strong> memória científica, realiza<strong>da</strong>s nos últimosanos, têm surtido uma melhora no que se refere à conscientização por parte do Ministério<strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>. Mas ain<strong>da</strong> não é suficiente para garantir a preservação. Outrasiniciativas <strong>de</strong>vem ser implementa<strong>da</strong>s como, por exemplo, o investimento no treinamento ecapacitação <strong>de</strong> pessoal para este fim. Sem mão-<strong>de</strong>-obra qualifica<strong>da</strong>, qualquer iniciativapo<strong>de</strong>rá ser apenas pontual ou momentânea, não se tornando efetiva.Outra iniciativa que po<strong>de</strong> ser pensa<strong>da</strong> seria a criação <strong>de</strong> espaço físico para apreservação dos mais variados instrumentos e equipamentos. Estes espaços po<strong>de</strong>m serdirecionados à criação <strong>de</strong> museus temáticos, com setores <strong>de</strong> arquivo responsáveis pelapreservação dos documentos produzidos por e sobre os instrumentos e equipamentos.O que é importante <strong>de</strong> se ressaltar é que, qualquer que sejam as iniciativas esoluções encontra<strong>da</strong>s, a ação do po<strong>de</strong>r público e, no caso, especificamente do MCT117


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ttorna-se fun<strong>da</strong>mental. Sem apoio, diretrizes e normativas será muito mais difícil conseguirgarantias para a preservação <strong>da</strong> memória científica brasileira.BIBLIOGRAFIA SOBRE O TEMABRASIL. Conselho Nacional <strong>de</strong> Arquivos. Resolução nº 24, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2006.Estabelece a transferência e recolhimento <strong>de</strong> documentos arquivísticos digitais parainstituições arquivísticas públicas. Diário Oficial [<strong>da</strong> República Fe<strong>de</strong>rativa do Brasil],Brasília, DF, n.150, 7 ago. 2006. Seção 1.______. Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Políticanacional <strong>de</strong> memória <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia: relatório <strong>da</strong> comissão especialconstituí<strong>da</strong> pela Portaria 116/2003 do presi<strong>de</strong>nte do CNPq, em 4 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2003.Brasília, DF, 2003. 11p. (b)______. Decreto nº 4.915 <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2003. Dispõe sobre o Sistema <strong>de</strong>Gestão <strong>de</strong> Documentos <strong>de</strong> Arquivo – SIGA, <strong>da</strong> administração pública fe<strong>de</strong>ral, e dá outrasprovidências. Diário Oficial [<strong>da</strong> República Fe<strong>de</strong>rativa do Brasil], Brasília, DF, 2003. (a).______. Ministério <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>. Uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Pesquisa do Ministério <strong>da</strong>Ciência e <strong>Tecnologia</strong>. Brasília: MCT, 2002. 30p.BRITO, Verônica Martins. 2002. A preservação <strong>da</strong> memória científica <strong>da</strong> Fiocruz: a visão<strong>de</strong> quem faz ciência. Dissertação (Mestrado em Ciência <strong>da</strong> Informação) - Programa <strong>de</strong>Pós-Gradução, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro.CAMARGO, Ana Maria <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. Conceituação e características dos arquivoscientíficos. In: ENCONTRO DE ARQUIVOS CIENTÍFICOS, 2. Anais... Rio <strong>de</strong> Janeiro:<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins, p. 11-16, 2006.______________________________. Sobre o valor histórico dos documentos. ArquivoRio Claro, n. 1, p. 11-17, 2003.CHARMASSON, T. (Dir.). Les archives scientifiques. Gazette <strong>de</strong>s Archives, n.145, 2 0 trim.1989. Numéro spécial.HAAS, Joan K.; SAMUELS, Helen Willa; SIMMONS, Barbara Tripel. Appraising therecords of Mo<strong>de</strong>rn Science and Technology: a gui<strong>de</strong>. Massachusetts: Institute ofTechnology, 1985.JOINT COMMITTEE ON ARCHIVES OF SCIENCE AND TECHNOLOGY (JCAST).Un<strong>de</strong>rstanding progress as process: documentation of the history post-war science andtechnology in the United States: final report. Chicago: Society of American Archivists,1983.SAMUELS, Helen. Avaliando os documentos <strong>da</strong> ciência e tecnologia mo<strong>de</strong>rna. In:ANDRADE, Ana Maria Ribeiro <strong>de</strong> (Org.). Caminho para as estrelas: o perfil <strong>de</strong> um museu.Rio <strong>de</strong> Janeiro: MAST, 2009.SILVA, Maria Celina Soares <strong>de</strong> Mello e. Arquivos científicos: análise <strong>da</strong> produção e <strong>da</strong>preservação dos registros <strong>da</strong> C&T no Rio <strong>de</strong> Janeiro. In: ENCONTRO DE ARQUIVOSCIENTÍFICOS, 2. Anais... Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins, p.37-43, 2006.________________________________. Documentando a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ciência etecnologia: principais questões. Trabalho inédito.118


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TWELFELÉ-CAPY, Odile. Quais os materiais para o historiador <strong>de</strong> amanhã? o futuro dosarquivos científicos. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro <strong>de</strong> (Org.). Caminho para asestrelas: o perfil <strong>de</strong> um museu. Rio <strong>de</strong> Janeiro: MAST, 2009.WELFELÉ-CAPY, Odile. Quels matériaux pour l’historien d’après-<strong>de</strong>main?: le <strong>de</strong>venir <strong>de</strong>sarchives scientifiques. Les Cahiers, v. 3, p. 103-126, 1999.119


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPANORAMA SOBRE EL PATRIMONIO DE LOSOBSERVATORIOS EN ARGENTINASixto Ramón Giménez Benítez *EL OBSERVATORIO ASTRONÓMICO DE LA PLATALa creación <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> La Plata, está íntimamenterelaciona<strong>da</strong> con un suceso astronómico: el paso <strong>de</strong>l planeta Venus por<strong>de</strong>lante <strong>de</strong>l disco solar, en diciembre <strong>de</strong> 1882. El Observatorio <strong>de</strong> Paríshabía preparado una serie <strong>de</strong> expediciones para observar este fenómeno, el cualayu<strong>da</strong>ría a mejorar la <strong>de</strong>terminación <strong>de</strong> la distancia entre la Tierra y el Sol. La Provincia<strong>de</strong> Buenos Aires fue invita<strong>da</strong> a llevar a<strong>de</strong>lante una <strong>de</strong> ellas. Para esta tarea la provinciaencargó la construcción, en París, <strong>de</strong> un anteojo refractor <strong>de</strong> unas 8 pulga<strong>da</strong>s y uncronómetro. Poco pudo hacerse, ya que el día <strong>de</strong> la observación, 6 <strong>de</strong> diciembre <strong>de</strong> 1882,estuvo nublado. Pero con estos instrumentos se or<strong>de</strong>naron también un pequeño círculomeridiano, dos péndulos astronómicos y una dotación <strong>de</strong> instrumentos meteorológicos,ya que el gobernador <strong>de</strong> la Provincia Dr. Dardo Rocha tenía la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>r unobservatorio provincial.* Museo <strong>de</strong> Astronomía y Geofísica – Facultad <strong>de</strong> Ciencias Astronómicas y Geofísicas. Universi<strong>da</strong>d Nacional<strong>de</strong> La Plata – Paseo <strong>de</strong>l Bosque s/n. Bs. As. Argentina. sixto@fcaflp.unlp.edu.ar. Licenciado em Astronomiapela Facultad <strong>de</strong> Ciencias Astronómicas y Geofísicas <strong>da</strong> UNLP- (1996), professor <strong>da</strong> Facultad <strong>de</strong> CienciasAstronómicas y Geofísicas <strong>da</strong> UNLP e Diretor do Museo <strong>de</strong> Astronomíıa y Geofísica <strong>da</strong> UNLP (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001).120


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TObservatorio Astronómico <strong>de</strong> la Plata.También fue <strong>de</strong> suma importancia, la necesi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> tener un mapa lo mas exactoposible <strong>de</strong> la provincia, para ello se pensaban <strong>de</strong>terminar las coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s geográficas <strong>de</strong>50 puntos principales en ella.Una ley provincial <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1882 estableció el Observatorio, y un <strong>de</strong>creto <strong>de</strong>noviembre <strong>de</strong> 1883 nombró director a Francisco Beuf, encargándole la construcción <strong>de</strong>los edificios <strong>de</strong> la nueva institución. Esta última fecha se toma como la <strong>de</strong> la fun<strong>da</strong>ción <strong>de</strong>lObservatorio <strong>de</strong> La Plata.Los primeros 10 años <strong>de</strong> su existencia fueron <strong>de</strong> construcción pues durante esetiempo, y con el apoyo <strong>de</strong> los gobernadores y ministros, se adquirieron la mayoría <strong>de</strong> susinstrumentos importantes y se instalaron buena parte <strong>de</strong> ellos. A este período siguió otroen que por falta <strong>de</strong> fondos, como también por la mala salud <strong>de</strong>l director, no fue posibleutilizar este plantel <strong>de</strong> instrumentos para empren<strong>de</strong>r ningún programa <strong>de</strong> investigaciónastronómica. La activi<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l Observatorio se limitó a las observaciones rutinarias <strong>de</strong>meteorología y <strong>de</strong> servicio horario y a la publicación <strong>de</strong>l Anuario, en tamaño ca<strong>da</strong> vezmás reducido por la escasez <strong>de</strong> fondos. Fallecido el primer director en 1899, al cabo <strong>de</strong>una larga y penosa enferme<strong>da</strong>d, su sucesor, el ingeniero Virgilio Raffinetti, tuvo que hacer121


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgran<strong>de</strong>s esfuerzos para mantener la mera existencia <strong>de</strong>l Observatorio. Claro está que enestas condiciones no era posible hacer más observaciones que las rutinariasindispensables.Después <strong>de</strong> pasar a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>l gobierno nacional en 1905, y <strong>de</strong> formar parte <strong>de</strong>la nueva Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> La Plata en 1906, se esperaba que el Observatoriotomara nuevo vuelo y realizara investigaciones serias e importantes, para ello laUniversi<strong>da</strong>d aumentó el personal y dio un fondo para mejoras, pero el resultado nocoincidió con las esperanzas. A<strong>de</strong>más se <strong>de</strong>signó un nuevo director, el doctor FrancescoPorro di Somenzi, astrónomo italiano. Pero los nuevos trabajos emprendidos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>lObservatorio no fueron lo esperado.En este periodo también se adquirieron una serie importante <strong>de</strong> instrumentos parael observatorio pero quedó para el doctor William J. Hussey, nombrado director en 1911,el trabajo <strong>de</strong> organizar <strong>de</strong>bi<strong>da</strong>mente la investigación astronómica <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l instituto.Los gran<strong>de</strong>s instrumentos <strong>de</strong>l ObservatorioEl primer instrumento con que contó el Observatorio fue el Pequeño refractorGautier, adquirido para la observación <strong>de</strong>l pasaje <strong>de</strong> Venus. El objetivo tiene una aberturalibre <strong>de</strong> 215 milímetros y su distancia focal es <strong>de</strong> 3 metros aproxima<strong>da</strong>mente. Estáprovisto <strong>de</strong> un sistema <strong>de</strong> relojería con regulador <strong>de</strong> Foulcault, tornillos <strong>de</strong> freno ymovimiento lento en ascensión recta y <strong>de</strong>clinación, un buscador y círculos graduados,horario y <strong>de</strong> <strong>de</strong>clinación.Izquier<strong>da</strong>: Pequeño ecuatorial, en su ubicación actual. Derecha edificio que albergaba al Pequeñoecuatorial122


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEl edificio <strong>de</strong>finitivo para este instrumento se comenzó a construir en 1885 y seterminó <strong>de</strong> construir el año siguiente. La cúpula era cilíndrica con una ranura <strong>de</strong> 55 cm <strong>de</strong>ancho que se extendía <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el muro don<strong>de</strong> estaba apoyado hasta el cenit <strong>de</strong>linstrumento. Actualmente el Pequeño Gautier no se encuentra en el Observatorio ya quefue <strong>da</strong>do en préstamo en 1944 a la Asociación Argentina Amigos <strong>de</strong> la Astronomía <strong>de</strong>Buenos Aires. El edificio es utilizado para tareas administrativas relaciona<strong>da</strong>s con el áreaacadémica <strong>de</strong> alumnos y como sala <strong>de</strong> computadoras.Izquier<strong>da</strong>: Telescopio Reflector Gautier (fotografía actual). Derecha: Imagen actual <strong>de</strong> la Cúpula<strong>de</strong>l Reclector GautierTelescopio Reflector GautierEn Abril <strong>de</strong> 1886 la provincia <strong>de</strong> Buenos Aires autoriza al director <strong>de</strong>l Observatoriola compra <strong>de</strong> un telescopio reflector <strong>de</strong> 80 cm <strong>de</strong> abertura. Las especificaciones para laconstrucción <strong>de</strong> este instrumento fueron prepara<strong>da</strong>s por el Almirante Mouchez, entoncesDirector <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> París. Por iniciativa suya el montaje para este instrumento ycasi todos los otros que fueron obtenidos en París fueron construidos por P. Gautier,siendo las partes ópticas suministra<strong>da</strong>s por los hermanos Paul y Prosper Henry,afamados ópticos y astrónomos <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> París. El espejo principal seconcluyó en 1887 y el Director Beuf lo trajo <strong>de</strong> París cuando regresó <strong>de</strong>l primer CongresoAstrográfico. La construcción <strong>de</strong> la montura fue termina<strong>da</strong> a principios <strong>de</strong> 1889. Lacúpula, que había sido pedi<strong>da</strong> a la casa Cail <strong>de</strong> París, no estaba lista to<strong>da</strong>vía y a causa<strong>de</strong> esto el envío <strong>de</strong>l instrumento se postergó hasta fines <strong>de</strong> 1890.123


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEl diseño óptico original <strong>de</strong> este telescopio era <strong>de</strong>l tipo Newtoniano, el espejoprimario tenía una abertura aproxima<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80 cm y un espesor <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 95milímetros. En 1928 el director Dr. Johannes Hartmann envía a alemania el espejo paraser perforado y así cambiar el sistema newtoniano por uno Cassegrain. La operación sepudo llevar a cabo pero, al ser termina<strong>da</strong> se produjo el estallido <strong>de</strong>l vidrio. En vista <strong>de</strong> ellola casa Zeiss proveyó otro espejo, apropia<strong>da</strong>mente perforado, <strong>de</strong> excelente cali<strong>da</strong>d y unespejo hiperbólico, que a juicio <strong>de</strong> Hartmann era también excelente. Ambas piezasllegaron al Observatorio en agosto <strong>de</strong> 1930 y ensegui<strong>da</strong> se procedió a su montaje.El edificio que alberga al Telescopio Reflector <strong>de</strong> 80 cm consiste en un cuartocircular <strong>de</strong> 9.5 metros <strong>de</strong> diámetro con pare<strong>de</strong>s que se alzan 2.5 metros sobre el pisopara soportar la cúpula. Contiene puertas a los lados norte, sur y oeste, provistasexteriormente con persianas. Las puertas, se abren a un balcón que ro<strong>de</strong>a todo eledificio, a una altura <strong>de</strong> 2.6 metros <strong>de</strong>l terreno. La entra<strong>da</strong> principal es por el lado norte.Existe una escalera <strong>de</strong> mármol que conduce <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el balcón al terreno. La cúpula estáconstrui<strong>da</strong> <strong>de</strong> un enrejado <strong>de</strong> ángulos curvos conectados con varillas horizontales y estácubierta por afuera con planchas <strong>de</strong> acero remacha<strong>da</strong>s al marco y pinta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> colorplateado, y por a<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> enchapado <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra pintado <strong>de</strong> color celeste, hoyinexistente. La ventana <strong>de</strong> la cúpula tiene 1.80 metros <strong>de</strong> ancho, extendiéndose <strong>de</strong>s<strong>de</strong> elhorizonte hasta un poco más allá <strong>de</strong>l cenit <strong>de</strong>l instrumento. Está cubierto con dospostigos los cuales se mueven horizontalmente sobre vías, por la parte superior e inferior.Este instrumento es utilizado con fines científicos, lo que ha hecho que en los últimosaños haya sido puesto en condiciones.Telescopio AstrográficoEn abril <strong>de</strong> 1886, el Po<strong>de</strong>r Ejecutivo <strong>de</strong> la Provincia <strong>de</strong> Buenos Aires autorizó alDirector <strong>de</strong>l Observatorio Astronómico <strong>de</strong> La Plata, Francisco Beuf la compra <strong>de</strong> untelescopio refractor fotográfico <strong>de</strong> 15 cm <strong>de</strong> abertura que fue solicitado al Director <strong>de</strong>lObservatorio <strong>de</strong> París. Cuando llegó a París la or<strong>de</strong>n para la construcción <strong>de</strong>linstrumento, ya se estaba proyectando allí, para el año siguiente, la realización <strong>de</strong> unCongreso Astrográfico con el objeto <strong>de</strong> iniciar la formación <strong>de</strong> un gran catálogo fotográficoy mapa <strong>de</strong> todo el cielo, que se conocería como la «Carte du Ciel». Este trabajo <strong>de</strong>bíarealizarse mediante la cooperación <strong>de</strong> varios observatorios usando instrumentos <strong>de</strong>lmismo tipo. Esta circunstancia influyó al Almirante Mouchez a comunicarse con lasautori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> La Plata para informarles <strong>de</strong> los progresos en la124


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfotografía celeste, <strong>de</strong>l próximo Congreso Astrográfico e invitar a representantes <strong>de</strong> LaPlata para asistir a la Reunión. Al mismo tiempo les recomen<strong>da</strong>ba realizaran lasmodificaciones necesarias para adquirir un telescopio astrográfico igual al <strong>de</strong> París. ElPo<strong>de</strong>r Ejecutivo aceptó inmediatamente esta recomen<strong>da</strong>ción, autorizando la compra <strong>de</strong>un instrumento mayor. Contando con el instrumento que ya se había encargado, elDirector Beuf ofreció al Observatorio <strong>de</strong> La Plata para hacerse cargo <strong>de</strong> una zona <strong>de</strong>lcielo austral, siéndole asigna<strong>da</strong> la comprendi<strong>da</strong> entre los paralelos -24° y -31°. Aunqueeste trabajo nunca se llevó a cabo.Imagen <strong>de</strong> principios <strong>de</strong> siglo XX <strong>de</strong> la cúpula <strong>de</strong>l telescopio Astrográfico.Telescopio Astrográfico, imagen <strong>de</strong> principios <strong>de</strong> siglo XX125


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEn Agosto <strong>de</strong> 1890 llegó el instrumento y la cúpula fue erigi<strong>da</strong> en Noviembresiguiente. Al poco tiempo el instrumento sufrió un acci<strong>de</strong>nte y se quebró el objetivo, reciénen 1913 pudo ser reemplazado por uno nuevo hecho por la casa Carl Zeiss. El diámetro<strong>de</strong>l objetivo es <strong>de</strong> 342 milímetros y su distancia focal es <strong>de</strong> 3.42 metros. Las fotografíasobteni<strong>da</strong>s son aproxima<strong>da</strong>mente en la escala 1 mm = 1´.El tubo <strong>de</strong>l telescopio es <strong>de</strong> sección rectangular, dividido longitudinalmente en dospartes, una que forma el tubo <strong>de</strong>l telescopio guía y la otra el telescopio fotográfico (parala fotografía sobre placas). Este último está provisto <strong>de</strong> un chasis situado en el planofocal <strong>de</strong>l sistema objetivo, para colocar la placa fotográfica. Este instrumento se <strong>de</strong>jó <strong>de</strong>utilizar en 1986. La planta baja <strong>de</strong>l edificio es utiliza<strong>da</strong> por el Jardín Maternal <strong>de</strong> laUniversi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> La Plata, lo que hace difícil el acceso al instrumento.Círculo Meridiano GautierEl 4 <strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1887 el Dr. Beuf fue autorizado para encargar un círculomeridiano <strong>de</strong> 20 cm <strong>de</strong> abertura, siguiendo lo aconsejado por el Almirante Mouchez, laconstrucción <strong>de</strong> este instrumento fue encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> a P. Gautier. El círculo meridiano fuecui<strong>da</strong>dosamente diseñado con la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> que no sólo fuera el más gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>l mundo,sino también uno <strong>de</strong> los mejores instrumentos <strong>de</strong> su clase. Fue terminado a tiempo parapresentarlo en la Exposición Universal <strong>de</strong> París <strong>de</strong> 1889. Llego a Buenos Aires en abril <strong>de</strong>1890El objetivo <strong>de</strong> este círculo meridiano fue fabricado por los Hermanos Henry <strong>de</strong>lObservatorio <strong>de</strong> París. Tiene una abertura libre <strong>de</strong> 21.3 centímetros y su distancia focales <strong>de</strong> 2.8 metros. El tubo es <strong>de</strong> acero y carece <strong>de</strong> simetría con respecto al eje, el lado <strong>de</strong>lmicrómetro es aproxima<strong>da</strong>mente 10 centímetros más largo que él <strong>de</strong>l objetivo. Las dossecciones <strong>de</strong>l tubo son <strong>de</strong> forma cónica; sus diámetros exteriores don<strong>de</strong> se unen al cubocentral tienen alre<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> 41 centímetros y en los extremos <strong>de</strong>l micrómetro y objetivo,25 centímetros.126


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TCírculo Meridiano Gautier, imagen <strong>de</strong> finales <strong>de</strong>l siglo XIXEl edificio <strong>de</strong>l gran círculo meridiano <strong>de</strong> Gautier consta <strong>de</strong> tres cuartos seguidoscomunicados entre sí, orientados <strong>de</strong> este a oeste con puertas en ca<strong>da</strong> una <strong>de</strong> estasdirecciones. Las piezas extremas son <strong>de</strong>l mismo tamaño, <strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente 4 por 5metros. La pieza central contenía el círculo meridiano; sus dimensiones son <strong>de</strong> 8.7metros <strong>de</strong> este a oeste por 7.6 metros <strong>de</strong> norte a sur por 4.8 metros <strong>de</strong> altura. El pisoestá formado <strong>de</strong> piezas <strong>de</strong> roble y cedro alterna<strong>da</strong>s y el cielo raso era <strong>de</strong> pequeñoscuadrados <strong>de</strong> roble. La ranura era <strong>de</strong> 1.15 metros <strong>de</strong> ancho. Las partes verticalesestaban cerra<strong>da</strong>s por persianas <strong>de</strong> hierro que se abrían hacia fuera y por ventanas <strong>de</strong>vidrio que se abrían hacia a<strong>de</strong>ntro, ambas dispuestas <strong>de</strong> tal manera, que una vez abiertas<strong>de</strong>jaban la ranura completamente libre.Actualmente este instrumento se encuentra <strong>de</strong>sarmado y la zona central <strong>de</strong>ledificio se utiliza como salón <strong>de</strong> conferencias.127


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TTelescopio refractor GautierEste instrumento se compró por autorización <strong>de</strong>l Po<strong>de</strong>r Ejecutivo <strong>de</strong> la Provincia,<strong>da</strong><strong>da</strong> en Mayo 4 <strong>de</strong> 1887. Siguiendo lo aconsejado por el Almirante Mouchez, Director <strong>de</strong>lObservatorio <strong>de</strong> París, su construcción fue encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> a P. Gautier. Fue recibido en LaPlata, en 1894. Paul y Prosper Henry, <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> París, construyeron el objetivo.Su diámetro, es <strong>de</strong> 433 milímetros, y su distancia focal 9.6 metros.Cúpula <strong>de</strong>l Gran Ecuatorial Gautier, imagen actualTelescopio Gran Ecuatorial Gautier, imagen actualLa parte inferior <strong>de</strong>l pilar <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ción es <strong>de</strong> ladrillo, y el resto está formado <strong>de</strong>gran<strong>de</strong>s piezas <strong>de</strong> fundición fuertemente sujeta<strong>da</strong>s por medio <strong>de</strong> tornillos. En una <strong>de</strong> ellasque forma la base, van coloca<strong>da</strong>s dos columnas rectangulares huecas, una al norte y la128


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Totra al sur, uni<strong>da</strong>s en su parte superior por una pesa<strong>da</strong> pieza <strong>de</strong> fundición que une lascolumnas y que lleva los cojinetes <strong>de</strong>l eje polar.El tubo consiste en una pieza central <strong>de</strong> fundición <strong>de</strong> hierro uni<strong>da</strong> a la cabeza <strong>de</strong>leje <strong>de</strong> <strong>de</strong>clinación; cuatro secciones <strong>de</strong> acero laminado, dos <strong>de</strong> los cuales van abajo ydos arriba <strong>de</strong>l punto medio <strong>de</strong> la pieza central. Poseía un reloj que estaba instalado en laparte central <strong>de</strong>l pilar, en una caja <strong>de</strong> vidrio. Tenía un regulador <strong>de</strong> Foucault. La cuer<strong>da</strong> <strong>de</strong>este aparato <strong>de</strong> relojería se <strong>da</strong>ba a mano y duraba dos horas. Actualmente este sistemaha sido reemplazado por un motor eléctrico. La cúpula <strong>de</strong>l gran telescopio refractor fueconstrui<strong>da</strong> por la casa Cail <strong>de</strong> París, bajo la dirección <strong>de</strong> P. Gautier. Se recibió en LaPlata a fines <strong>de</strong> 1890.Muestra permanente <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong> Astronomía y Geofísica (planta baja <strong>de</strong>l edificio <strong>de</strong>l ecuatorialGautierEste instrumento se utiliza para la observación <strong>de</strong> los visitantes al observatorio. Enel año 2001 la planta baja fue restaura<strong>da</strong> para ser utiliza<strong>da</strong> como sala <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong>Astronomía y Geofísica.Buscador <strong>de</strong> cometas ZeissEste instrumento fue adquirido en 1906 en la casa Carl Zeiss <strong>de</strong> Jena. Eltelescopio tiene una abertura libre <strong>de</strong> 200 milímetros y distancia focal <strong>de</strong> 1.38 metros.Está provisto <strong>de</strong> tres oculares montados en una pieza giratoria <strong>de</strong> manera que pue<strong>de</strong>colocarse uno <strong>de</strong>spués <strong>de</strong>l otro en posición <strong>de</strong> uso. Generalmente el ocular <strong>de</strong> menoraumento se usa para buscar cometas y el <strong>de</strong> mayor aumento para examinar<strong>de</strong>teni<strong>da</strong>mente objetos dudosos.129


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEl instrumento está montado ecuatorialmente y provisto con círculos graduados <strong>de</strong>ángulo horario y <strong>de</strong> <strong>de</strong>clinación. La característica <strong>de</strong>l montaje es que el tubo se soportaen un brazo colgante <strong>de</strong> modo que el ocular permanezca cerca <strong>de</strong>l centro <strong>de</strong> movimiento.El observador sentado en una silla giratoria abajo <strong>de</strong>l centro <strong>de</strong> movimiento necesitamoverse muy poco para abarcar gran<strong>de</strong>s áreas en ángulo horario y en <strong>de</strong>clinación.Izquier<strong>da</strong>: cúpula <strong>de</strong>l Telescopio Buscador <strong>de</strong> Cometas. Derecha: Telescopio Buscador <strong>de</strong>Cometas (imagen <strong>de</strong> mediados <strong>de</strong> siglo XX)El instrumento tiene un sistema complicado <strong>de</strong> contrapesos para mantener elequilibrio en to<strong>da</strong>s posiciones. Una rue<strong>da</strong> <strong>de</strong> mano al lado <strong>de</strong> la silla estaba en conexióncon la cúpula por medio <strong>de</strong> un cable, permitiendo al observador <strong>da</strong>r vuelta a la cúpula sin<strong>de</strong>jar su posición. Este sistema ya no existe y la cúpula <strong>de</strong>be ser movi<strong>da</strong> a mano.Actualmente este telescopio es utilizado por los estudiantes <strong>de</strong> la carrera <strong>de</strong> Astronomía,aunque la cúpula presenta problemas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algunos años.Círculo meridiano RepsoldEn Octubre <strong>de</strong> 1906, la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> La Plata, encargó a la casa <strong>de</strong> A. Repsol<strong>de</strong> Hijo <strong>de</strong> Hamburgo, la construcción <strong>de</strong> un gran círculo meridiano, <strong>de</strong> la forma másmo<strong>de</strong>rna para su época.Las partes mecánicas <strong>de</strong> este instrumento se terminaron a fines <strong>de</strong>l año siguientey se recibió en La Plata en Mayo <strong>de</strong> 1908.130


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEste instrumento tiene objetivo <strong>de</strong> lente doble <strong>de</strong> la casa Carl Zeiss, con aberturalibre <strong>de</strong> 190 milímetros y distancia focal <strong>de</strong> 2.25 metros. El tubo es simétrico con respectoal eje, y el objetivo y el micrómetro pue<strong>de</strong>n ser intercambiados sin alterar el equilibrio <strong>de</strong>ltelescopio.Los círculos graduados son <strong>de</strong> 74 centímetros <strong>de</strong> diámetro y ambos estándivididos a cuatro minutos <strong>de</strong> arco. Uno <strong>de</strong> ellos está grabado en aleación <strong>de</strong> paladio yplatino y el otro en plata. Ca<strong>da</strong> círculo se lee por medio <strong>de</strong> cuatro microscopiosmicrométricos montados sobre un tambor <strong>de</strong> modo que pue<strong>de</strong>n alterarse las posicionesrelativas uno <strong>de</strong> otro. Este instrumento recién se monto en el edificio que ocupaba elCírculo Meridiano Gautier en 1938. Actualmente este instrumento se encuentra<strong>de</strong>sarmado. Algunas <strong>de</strong> sus partes principales están expuestas en el Museo <strong>de</strong>lObservatorio <strong>de</strong> La Plata.Círculo meridiano Repsold.El Edificio principal y la bibliotecaEl edificio principal <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> La Plata comenzó a construirse en 1886 yse finalizó tres años más tar<strong>de</strong> en 1889. El edificio tiene forma rectangular, <strong>de</strong> forma talque sus lados están orientado hacia los puntos cardinales. Los lados norte y sur mi<strong>de</strong>n 33metros y los lados este y oeste 50 metros. Inicialmente en este edificio se encontraba laresi<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong>l director. Actualmente parte <strong>de</strong> este lugar es la oficina <strong>de</strong>l Decano <strong>de</strong> laFacultad. La biblioteca ocupa la parte central <strong>de</strong> área norte <strong>de</strong>l edificio principal.131


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TLa Biblioteca <strong>de</strong>l Observatorio es consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> una <strong>de</strong> las más importantes <strong>de</strong> Latinoamérica<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l área temática. Esta biblioteca posee piezas bibliográficas sobre temas <strong>de</strong> las diversasespeciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s como Astronomía, Geofísica, Física, Matemática y Técnicas.Entre ellos hay unos 10280 títulos <strong>de</strong> monografías como libros, atlas, catálogos,efeméri<strong>de</strong>s, tesis doctorales y tesis <strong>de</strong> grado, 273 títulos <strong>de</strong> publicaciones argentinas,1361 títulos <strong>de</strong> publicaciones extranjeras. A<strong>de</strong>más posee aproxima<strong>da</strong>mente 600 mapas<strong>de</strong> temática varia<strong>da</strong>.Todo libro <strong>de</strong> más <strong>de</strong> 100 años pasa a formar parte <strong>de</strong>l Museo, pero por razones<strong>de</strong> espacio, estas obras no son trasla<strong>da</strong><strong>da</strong>s.Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, London, 1687, Primera edición, <strong>de</strong> Isaac Newton(1642-1727). Opera Omnia, Francoforti, 1648, <strong>de</strong>l astrónomo <strong>da</strong>nés Tycho Brahe (1546-1601).132


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNuestra Biblioteca tiene algunos <strong>de</strong> los libros antiguos en materia <strong>de</strong> Ciencia. Uno<strong>de</strong> ellos es el famoso Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, London, 1687,Primera edición, <strong>de</strong> Isaac Newton (1642-1727). También se <strong>de</strong>staca la Opera Omnia,Francoforti, 1648, <strong>de</strong>l astrónomo <strong>da</strong>nés Tycho Brahe (1546-1601). El libro más antiguoque posee nuestra biblioteca es Astronomica Veterum Scripta Isagogica Graeca & Latina,Hei<strong>de</strong>lberg, 1589, <strong>de</strong> autores griegos et latinos. Tampoco se pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> mencionar allibro Lunario <strong>de</strong> un siglo, 1748, <strong>de</strong> Buenaventura Suarez, el primer astrónomo argentino.Hasta hace unos 10 años algunos <strong>de</strong> los libros más antiguos, como el <strong>de</strong> Newtony el <strong>de</strong> Tycho, estaban expuestos en la oficina <strong>de</strong>l Decano <strong>de</strong> la Facultad. Éste <strong>de</strong>cidióguar<strong>da</strong>rlos en una caja fuerte, lugar totalmente ina<strong>de</strong>cuado para su conservación. Elmuseo también posee un centenar <strong>de</strong> libros que fueron donados al mismo y que noformaban parte <strong>de</strong> la biblioteca <strong>de</strong>l ObservatorioSismología en el Observatorio Astronómico <strong>de</strong> La PlataCuando se creó la Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> La Plata, en 1905 se establecido entremúltiples otros puntos, que el Observatorio Astronómico organizaría la enseñanza <strong>de</strong> laMeteorología, <strong>de</strong>l Geomagnetismo y <strong>de</strong> la Sismología. En 1907 se adquirió un equiposismográfico "Vicentini" a tres componentes. Este instrumento consistía en un simplepéndulo vertical, para registrar componentes horizontales <strong>de</strong>l movimiento <strong>de</strong>l suelo y enuna barra horizontal libre en uno <strong>de</strong> sus extremos y vincula<strong>da</strong> rígi<strong>da</strong>mente al suelo en elotro para registrar la componente vertical. Registraba con mucho roce sobre papelahumado, marcaba impropiamente el tiempo, carecía <strong>de</strong> amortiguadores y sus períodospropios eran <strong>de</strong> muy pocos segundos. A causa <strong>de</strong> ello, muy poco provecho pudo sacarse<strong>de</strong> él.Sismógrafo Mainka (imagen <strong>de</strong> principios <strong>de</strong> siglo XX)133


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEn 1911 el Observatorio adquirió un sismógrafo Mainka <strong>de</strong> 450 kilos, el cualposee amortiguadores, período propio <strong>de</strong>l or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> 8 segundos, amplificación <strong>de</strong>l or<strong>de</strong>n<strong>de</strong> 160 veces e inscripción con roce pequeño. Se instaló en 1913 y tardó una déca<strong>da</strong>en prestar buenos servicios ya que en ese tiempo no se realizaron las tareascorrespondientes para su buen funcionamiento.Este sismógrafo es utilizado frecuentemente en el recorrido <strong>de</strong> las visitas alObservatorio. Des<strong>de</strong> el año 2001, la sala que alberga al Mainka, es utiliza<strong>da</strong> también,como <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong> Astronomía y GeofísicaEl 15 <strong>de</strong> Enero <strong>de</strong> 1944 se produjo el terremoto que <strong>de</strong>struyó la ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> SanJuan, Argentina.Esto llevó a perfeccionar el equipamiento <strong>de</strong> la estación sismográfica <strong>de</strong> La Plata,y para ello en 1948 se consiguió un equipo <strong>de</strong> sismógrafos H electromagnéticosSprengnether y un radio-receptor Hammarlund para controlar la marcación <strong>de</strong>l tiempo enlos sismogramas.Dos <strong>de</strong> las tres componentes <strong>de</strong>l sismógrafo Sprengnether se encuentran en elMuseo <strong>de</strong>l Observatorio, así como el registrador. La mayor parte <strong>de</strong> los instrumentos <strong>de</strong>esta área se encuentran en po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>l <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> Sismología <strong>de</strong> la Facultad.Edificio <strong>de</strong> los sismógrafos VELA. Imagen actualUn progreso importante en la activi<strong>da</strong>d sismográfica <strong>de</strong>l ObservatorioAstronómico, se logró en el año 1962. Ese año las autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s norteamericanas <strong>de</strong>l plan134


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TVELA que habían <strong>de</strong>cidido formar la red sismológica mundial uniforme (WWSSN)encontraron conveniente incorporar su estación a esa red. En ese año un equipocompleto <strong>de</strong> sismógrafos electromagnéticos, <strong>de</strong> largo y <strong>de</strong> corto período y un reloj <strong>de</strong>cuarzo fue instalado en el Observatorio <strong>de</strong> La Plata. Des<strong>de</strong> entonces el equipo vienefuncionando con gran eficiencia.MeteorologíaMenos <strong>de</strong> dos años <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> iniciarse las obras <strong>de</strong> construcción <strong>de</strong> los edificios<strong>de</strong>l Observatorio Astronómico <strong>de</strong> La Plata, comenzaron a realizarse el 1° <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 1885las primeras observaciones meteorológicas tridiurnas.Por cuanto las autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> la Provincia <strong>de</strong> Buenos Aires necesitaban <strong>da</strong>tosmeteorológicos <strong>de</strong> todo el territorio <strong>de</strong> su jurisdicción, que fueran útiles para lasactivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s agropecuarias, la estimación <strong>de</strong> las creci<strong>da</strong>s <strong>de</strong> los ríos que la atraviesan yfines estadísticos diversos, se <strong>de</strong>cidió por <strong>de</strong>creto <strong>de</strong>l 2 <strong>de</strong> junio <strong>de</strong> 1886 que elObservatorio Astronómico configurara y erigiera una red <strong>de</strong> catorce estacionesmeteorológicas, distribui<strong>da</strong>s en distintas ciu<strong>da</strong><strong>de</strong>s y poblados. La creación <strong>de</strong> esta redrecién cristaliza a principios <strong>de</strong> 1893, tras haberse reducido su número a doce. Acomienzos <strong>de</strong> 1895 se or<strong>de</strong>na la creación <strong>de</strong> sesenta y siete estaciones pluviométricas,<strong>de</strong> las cuales sólo se instalan sesenta y dos, transformando las cinco restantes enestaciones meteorológicas completas.El funcionamiento <strong>de</strong> doce estaciones iniciales permitió editar a partir <strong>de</strong>l 2 <strong>de</strong>setiembre <strong>de</strong> 1893, la primera "Carta <strong>de</strong>l Tiempo" realiza<strong>da</strong> en el país. Como era <strong>de</strong>esperar, ella sólo se refería a la Provincia <strong>de</strong> Buenos Aires.Actualmente en la Facultad <strong>de</strong> Ciencias Astronómicas y Geofísicas, funciona laEstación Meteorológica La Plata Observatorio, que posee el instrumental necesario parauna estación <strong>de</strong> su tipo.En los últimos años, esta estación ha cedido algunos <strong>de</strong> sus instrumentoshistóricos al Museo <strong>de</strong> Astronomía y Geofísica. Algunos <strong>de</strong> ellos son:Barómetro <strong>de</strong> Fortín o <strong>de</strong> cubeta móvil: Instrumento que se utiliza para medir lapresión atmosférica. Consta <strong>de</strong> un tubo <strong>de</strong> vidrio <strong>de</strong> unos 90 cm <strong>de</strong> largo y un diámetrointerno <strong>de</strong> 13 mm, parcialmente lleno <strong>de</strong> mercurio. El extremo superior <strong>de</strong>l tubo está alvacío (sin aire) y el inferior se encuentra sumergido en una cubeta llena con el mismolíquido, en don<strong>de</strong> se produce el contacto <strong>de</strong>l mercurio con la presión atmosférica. Ladiferencia <strong>de</strong> presión entre los dos extremos <strong>de</strong> la columna es la que mantiene al135


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmercurio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l tubo y la longitud <strong>de</strong> la columna es una medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> la presiónatmosférica.Termógrafo tiene como elemento sensible a la temperatura a una ban<strong>da</strong> bimetálica , queconsta <strong>de</strong> dos cintas <strong>de</strong> distinto coeficiente <strong>de</strong> dilatación curva<strong>da</strong>s y sol<strong>da</strong><strong>da</strong>s juntas. Alvariar la temperatura se dilatan <strong>de</strong>sigualmente produciendo un movimiento que,amplificado, hace que una pluma inscriba sobre una ban<strong>da</strong> gradua<strong>da</strong> y giratoriaHigrógrafo: utiliza como elemento sensible a la hume<strong>da</strong>d relativa, un haz <strong>de</strong> cabelloshumanos, expuestos al aire libre modifican su longitud. Esta variación <strong>de</strong>l largo <strong>de</strong>l haz <strong>de</strong>cabellos amplifica<strong>da</strong>, mueve una pluma que efectúa un dibujo en un tambor giratorio.Barógrafo: Instrumento que permite obtener y registrar la presión atmosférica en formacontinua. Su elemento sensor es un conjunto <strong>de</strong> cápsulas metálicas, acopla<strong>da</strong>s entre sípara aumentar su sensibili<strong>da</strong>d. Cuando aumenta la presión atmosférica, la cápsula secomprime ligeramente y cuando disminuye la presión la cápsula aumenta <strong>de</strong> tamaño porla acción <strong>de</strong> un resorte.Este movimiento es transmitido por un sistema <strong>de</strong> ejes y palancas y llega amplificado auna pluma que a su vez inscribe la curva <strong>de</strong> presión en una ban<strong>da</strong> <strong>de</strong> papel que semueve sobre un tambor.Heliofanógrafo: es un instrumento que registra el número <strong>de</strong> horas por día en que el solbrilla a pleno (insolación). El elemento básico es una esfera <strong>de</strong> vidrio, que concentra losrayos solares sobre una faja <strong>de</strong> cartulina sujeta a un soporte. Al actuar como una lente,quema la faja y <strong>de</strong>ja <strong>de</strong> esta forma un registro <strong>de</strong> insolación.Imagen <strong>de</strong>l heliofanógrafo expuesto en la sala <strong>de</strong>l museo136


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPlacas fotográficasEl observatorio <strong>de</strong> La plata posee un gran número <strong>de</strong> placas, éstas se clasificanen imágenes directas, espectros y negativos <strong>de</strong> vidrio. Mucha <strong>de</strong> estas placas fueronobteni<strong>da</strong>s en nuestro observatorio, con instrumentos propios. Otras, fueron obteni<strong>da</strong>s endistintos observatorios.Placas con imágenes directasDetalle <strong>de</strong> una <strong>de</strong> las cajas don<strong>de</strong> se guar<strong>da</strong>n las placas <strong>de</strong>l museoUnas 300 placas, con imágenes <strong>de</strong> cúmulos globulares, fueron dona<strong>da</strong>s al museopor investigadores <strong>de</strong>l Observatorio. La mayor parte <strong>de</strong> estas placas es <strong>de</strong> 12,5 por 9,5cm. Algunas son algo más gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> 13 por 17 cm. Estas estaban en sus cajasoriginales, pero separa<strong>da</strong>s entre si por recortes <strong>de</strong> diarios u otro papel ina<strong>de</strong>cuado. Estollevó a que algunas <strong>de</strong> las imágenes que<strong>de</strong>n marca<strong>da</strong>s por las tintas <strong>de</strong> los papelesutilizados como separadores. En el museo se llevo a cabo la limpieza <strong>de</strong> los mismos; lacara que no poseía la emulsión fue limpia<strong>da</strong> con alcohol. La cara con la emulsión, solofue limpia<strong>da</strong> con pincel fino, <strong>de</strong> modo <strong>de</strong> eliminar el polvo y no producir <strong>da</strong>ño. A ca<strong>da</strong>placa se le realizó un sobre <strong>de</strong> papel libre <strong>de</strong> ácido y se confeccionaron dos tipos <strong>de</strong>cajas, <strong>de</strong> acrílico y <strong>de</strong> polipropileno corrugado. Los <strong>da</strong>tos <strong>de</strong> estas placas, fueronvolcados a una base <strong>de</strong> <strong>da</strong>tos y esta es accesible vía web. También se digitalizaron to<strong>da</strong>slas placas, pero sólo para ser volcados a la base y no para su utilización eninvestigación.137


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TImágenes <strong>de</strong> cúmulos en placas <strong>de</strong> (12,5x9,5)cm.Obteni<strong>da</strong>s con el telescopio Astrográfico.Estas placas son <strong>de</strong> 16 por 16 centímetros y son unas 3000 placas. Éstas cubrengran parte <strong>de</strong>l cielo <strong>de</strong>l hemisferio sur y en su mayoría correspon<strong>de</strong>n a asteroi<strong>de</strong>s ycometas. Estas placas no forman parte <strong>de</strong>l acervo <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong> Astronomía y Geofísica,se encuentran al cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> un grupo <strong>de</strong> investigación <strong>de</strong> La Facultad <strong>de</strong> CienciasAstronómicas y Geofísicas.Es importante mencionar que el Observatorio <strong>de</strong> La Plata no posee placas <strong>de</strong> lacarta <strong>de</strong>l cielo (Carte du ciel), ya que nunca se llevaron a cabo las observaciones y suregión le fue encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> al Observatorio Nacional Argentino (Córdoba).Placas con espectrosEl observatorio <strong>de</strong> La Plata posee un número no muy bien <strong>de</strong>finido es placas conespectros, ya que no se cuenta con un inventario <strong>de</strong> las mismas, aunque se estima unnúmero superior a 5000. Estas placas fueron obteni<strong>da</strong>s en su mayor parte, enobservatorios <strong>de</strong> Chile y Argentina. La mayor parte <strong>de</strong> ellos se encuentra al cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong>dos grupos <strong>de</strong> investigación <strong>de</strong> la Facultad. Algunas <strong>de</strong> ellas son digitaliza<strong>da</strong>s en lasocasiones en que sus <strong>da</strong>tos son necesarios, pero no hay una tarea sistemática.El museo posee unas 250 placas con espectros, que fueran dona<strong>da</strong>s al mismopor distintos investigadores <strong>de</strong> la casa y en su mayor parte fueron obteni<strong>da</strong>s en el138


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TObservatorio <strong>de</strong> Cerro Tololo, en Chile, a comienzos <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1980. Estas placasson <strong>de</strong> 5 por 5 centímetros. Luego <strong>de</strong> su limpieza, se confeccionaron cajas <strong>de</strong>polipropileno corrugado para su a<strong>de</strong>cua<strong>da</strong> conservación. Los <strong>da</strong>tos <strong>de</strong> los espectros hansido volcados a una base <strong>de</strong> <strong>da</strong>tos y (en su gran mayoría) se encuentran accesibles eninternet.Negativos <strong>de</strong> vidrioEl museo <strong>de</strong>l Observatorio posee alre<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> unos 40 negativos <strong>de</strong> vidrio <strong>de</strong> 18por 24 cm. En su gran mayoría estos negativos contienen imágenes <strong>de</strong> instrumentos oedificios <strong>de</strong>l Observatorio, <strong>de</strong> comienzos <strong>de</strong>l siglo XX. Estas imágenes se utilizaron parailustrr las primeras publicaciones <strong>de</strong>l Observatorio. Hace unos 30 años, se realizaroncopias en papel, utilizando estos negativos, razón por la cual poseemos copias <strong>de</strong> ellas.Diapositivas <strong>de</strong> vidrioEl museo posee unas 200 diapositivas <strong>de</strong> vidrio, estas consisten en dos placas <strong>de</strong>vidrio, uni<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma tal que la emulsión que<strong>da</strong> encerra<strong>da</strong> entre ambas; los bor<strong>de</strong>sestán sellados con cinta. Las diapositivas son <strong>de</strong> 8 por 10 cm. Las imágenes en lasmismas son diversas, como instrumentos (no sólo <strong>de</strong>l observatorio <strong>de</strong> La Plata) oimágenes astronómicas. Estas diapositivas eran <strong>de</strong> uso didáctico. Estas diapositivas seencuentran en sus 5 cajas originales.Archivo fotográfico y documentalParte <strong>de</strong>l material que forma parte <strong>de</strong> este archivo, se encontraba originalmenteen la biblioteca <strong>de</strong> la facultad. Ésta poseía un sector don<strong>de</strong> se encontraban algunosdocumentos históricos, fotografías y recortes <strong>de</strong> periódicos.Las fotografías en papel se encontraban en una caja, sin ningún or<strong>de</strong>n ni cui<strong>da</strong>do.En la mayoría <strong>de</strong> los casos el estado <strong>de</strong> conservación era bastante bueno. Lasfotografías representan principalmente, instrumentos y edificios <strong>de</strong>l Observatorio, tambiénpo<strong>de</strong>mos encontrar el registro <strong>de</strong> eventos importantes, como congresos o visitas <strong>de</strong>personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s importantes. El número <strong>de</strong> fotografías ascien<strong>de</strong> a unas 300. De éstas,unas 200 están digitaliza<strong>da</strong>s y casi to<strong>da</strong>s se encuentran en un soporte <strong>de</strong> cartón libre <strong>de</strong>ácido, sujetas con ángulos <strong>de</strong> mylar y cubiertas por el mismo material. Esto facilita su139


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmanipulación y evita el contacto.Los documentos son <strong>de</strong> diverso tipo: notas manuscritas <strong>de</strong> la época <strong>de</strong> lafun<strong>da</strong>ción <strong>de</strong>l Observatorio, en general recibi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> distintos organismos <strong>de</strong> gobierno,también copias mecanografia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> las notas envia<strong>da</strong>s, memorias anuales y en algunoscasos correspon<strong>de</strong>ncia personal. Registros <strong>de</strong> asistencia <strong>de</strong> personal, pago <strong>de</strong> haberes ydocumentos relacionados con activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> enseñanza, legajos <strong>de</strong> alumnos y notas <strong>de</strong>exámenes.Hasta el momento se han digitalizado los documentos <strong>de</strong> los primeros 20 años <strong>de</strong>lobservatorio. En este proceso ca<strong>da</strong> uno <strong>de</strong> los documentos se ha colocado en un soporte<strong>de</strong> papel libre <strong>de</strong> ácido y cubiertos con mylar (film <strong>de</strong> poliéster) que facilita su lectura,evitando el contacto con las manos.También se posee abun<strong>da</strong>nte documentación acerca <strong>de</strong> la creación <strong>de</strong>l InstitutoArgentino <strong>de</strong> radioastronomía y <strong>de</strong>l Complejo Astronómico El Leoncito (en San Juan),cuyo telescopio <strong>de</strong> 2,15 m fue aportado por la Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> La Plata.Des<strong>de</strong> su fun<strong>da</strong>ción, el Observatorio <strong>de</strong> La Plata ha llevado un registro, nosiempre continuo, <strong>de</strong> artículos en diarios y revistas referidos al observatorio o a sucesosastronómicos o geofísicos. Esta Activi<strong>da</strong>d, en la mayoría <strong>de</strong> los casos, se limitó aacumular recortes sin ningún or<strong>de</strong>n. El museo posee algunos centenares <strong>de</strong> estosobjetos.Página <strong>de</strong> un periódico en su soporte libre <strong>de</strong> ácido y cubierto con mylar140


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TRecorte periodístico digitalizado (Diario El Día, La Plata, 7 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1886)Estos recortes <strong>de</strong> diarios y revistas han sido organizados por año, soportados encartón libre <strong>de</strong> ácido y cubiertos por mylar. To<strong>da</strong>vía son muy escasos los ejemplaresdigitalizados.141


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEL MUSEO DE ASTRONOMÍA Y GEOFÍSICAEn mayo <strong>de</strong> 1997 se crea el museo <strong>de</strong> la Facultad <strong>de</strong> Ciencias Astronómicas yGeofísicas, con la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> rescatar el patrimonio <strong>de</strong>l Observatorio. Pero este sólo se creaen los papeles, ya que no poseía un lugar a<strong>de</strong>cuado don<strong>de</strong> establecer una muestrapermanente y tampoco un <strong>de</strong>pósito. A<strong>de</strong>más no poseía director ni presupuesto y no teníapersonal. Las personas involucra<strong>da</strong>s con el museo lo hacían ad honorem.Durante los primeros años <strong>de</strong>l museo, la activi<strong>da</strong>d principal fue la <strong>de</strong> rescatar elmaterial disperso en la facultad y realizar muestras temporarias en distintos ambitos <strong>de</strong> laUniversi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> La plata. En el Año 2001 se restaura la planta baja <strong>de</strong>lTelescopio Gran ecuatorial Gautier para establecer allí la muestra permanente <strong>de</strong>l Museo.En ese momento se <strong>de</strong>signa a su primer director. En el año 2006 se contratan 2museólogos y se comienzan las tareas <strong>de</strong> conservación y la organización <strong>de</strong>l <strong>de</strong>pósito.Des<strong>de</strong> ese año el museo cuenta con presupuesto propio.Imágenes <strong>de</strong>l <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong>l Museo <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> La PlataDepósito <strong>de</strong>l museo.La tarea principal <strong>de</strong> los museólogos es al <strong>de</strong> organizar el <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong>l museo.Para ello se ha reacondicionado la sala que ocupa el sismógrafo Mainka. Se hancomprado estantes con pintura a fuego (para evitar el oxido). Ca<strong>da</strong> uno <strong>de</strong> los nivelessoporta 500 kilogramos. Luego <strong>de</strong> las tareas <strong>de</strong> limpieza, los objetos son guar<strong>da</strong>dos encajas <strong>de</strong> polipropileno corrugado con un calado en espuma <strong>de</strong> polietileno.Des<strong>de</strong> su creación el Museo <strong>de</strong> Astronomía y Geofísica forma parte <strong>de</strong> la Red <strong>de</strong>142


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TMuseos <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> la Plata. La intervención <strong>de</strong> la red fue fun<strong>da</strong>mentalpara la creación <strong>de</strong>l museo <strong>de</strong>l observatorio.OBSERVATORIO ASTRONÓMICO DE LA UNIVERSIDAD NACIONAL DE CÓRDOBAEl 24 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1871, el presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la República argentina, DomingoFaustino Sarmiento, fun<strong>da</strong> el Observatorio Nacional Argentino (ONA) que que<strong>da</strong> bajo ladirección <strong>de</strong>l Dr. Benjamin Gould, astrónomo estadouni<strong>de</strong>nse.El Observatorio Nacional Argentino el día <strong>de</strong> su inauguración 24 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1871, tomado <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong>lObservatorio Astronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa).Los planos <strong>de</strong>l edificio fueron realizados por los señores Harris y Ry<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Boston,quienes siguieron a<strong>de</strong>más la fabricación <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s las partes <strong>de</strong> hierro construi<strong>da</strong>s enaquella ciu<strong>da</strong>d.El edificio tenía forma <strong>de</strong> cruz. En sus extremos se ubicaron las cúpulas, <strong>de</strong> basecilíndrica. El brazo más largo, <strong>de</strong> 38 metros <strong>de</strong> longitud, se orientaba en dirección Este -Oeste. En éste se situaron las cúpulas mayores, <strong>de</strong> 6 metros <strong>de</strong> diámetro y otro tanto <strong>de</strong>altura. El brazo Norte - Sur, <strong>de</strong> 24,3 metros, estaba rematado por cúpulas <strong>de</strong> menortamaño, 4 metros <strong>de</strong> diámetro y 5,4 <strong>de</strong> altura.La parte central se hallaba dividi<strong>da</strong> en cuatro habitaciones <strong>de</strong> 5,8 metros <strong>de</strong> lado y3,25 metros <strong>de</strong> altura. Ca<strong>da</strong> una <strong>de</strong> éstas, poseía cuatro ventanas, dos por ca<strong>da</strong> lado quelin<strong>da</strong>ba con el exterior. Dos puertas <strong>da</strong>ban acceso al hall en forma <strong>de</strong> cruz, el cual sinventanas al exterior, se iluminaba por una claraboya hexagonal ubica<strong>da</strong> en el techo, alcentro <strong>de</strong>l edificio.En el ala oeste, una empina<strong>da</strong> escalera permitía el acceso al techo, para facilitar143


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tel acercamiento a los mecanismos <strong>de</strong> apertura <strong>de</strong> las cúpulas, no muy elaborados porcierto, como pue<strong>de</strong> apreciarse en las fotografías <strong>de</strong> la época. Las alas este y oeste,estaban <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a las mediciones meridianas. Un poco más bajas que el resto <strong>de</strong> laedificación, eran <strong>de</strong> solo 3,70 por 4,55 metros, realmente muy justas para su función.Solo la Este, se ocupó con este fin. Dos puertas <strong>de</strong> igual altura que las pare<strong>de</strong>s y untecho corredizo, permitían <strong>de</strong>scubrir una amplia franja <strong>de</strong>l cielo que pasaba por elmeridiano <strong>de</strong>l lugar.Las pare<strong>de</strong>s externas eran dobles, <strong>de</strong> unos 50 centímetros <strong>de</strong> espesor, […]. Laspare<strong>de</strong>s internas eran simples <strong>de</strong> 36 centímetros. To<strong>da</strong>s revoca<strong>da</strong>s y pinta<strong>da</strong>s concolores claros.La estructura <strong>de</strong> los techos se realizó con tirantería <strong>de</strong> pino, cubierta <strong>de</strong> chapas <strong>de</strong>hierro lisas y pinta<strong>da</strong>s. La parte central a cuatro aguas y las alas este y oeste a dosaguas. El cielo raso, <strong>de</strong> tablas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra, <strong>de</strong>jaba una escasa cámara <strong>de</strong> aire con eltecho. El piso, también formado con tablas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra, estaba separado unos 20centímetros <strong>de</strong>l terreno.Las cúpulas, que giraban sobre pare<strong>de</strong>s circulares, poseían una forma <strong>de</strong> cilindroen su base y cono en la parte superior[…], con armazón <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra, fueron recubiertasen chapa y forra<strong>da</strong>s en la parte cónica con tablas. La abertura <strong>de</strong> observación estabaforma<strong>da</strong> por puertas bisagra<strong>da</strong>s, que se abrían por medio <strong>de</strong> un sistema <strong>de</strong> cables ypoleas. Para girarlas simplemente se <strong>de</strong>bían empujar. […]En la torre este, se ubicó inicialmente el Gran Ecuatorial, en la sur, el pequeñorefractor <strong>de</strong> 13 centímetros <strong>de</strong> diámetro […]. En la cúpula norte, se instaló un fotómetro<strong>de</strong> Zóllner. El Círculo Meridiano, quedó emplazado sobre sus pilares en el ala meridianaeste; por sus reduci<strong>da</strong>s dimensiones no fue posible colocar en el mismo cuarto el relojnormal sobre un pilar aislado. Por esta razón el reloj fue instalado en la oficina <strong>de</strong>lDirector y ligado telegráficamente al telescopio.Historia <strong>de</strong>l Observatorio Astronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa)El edificio original <strong>de</strong>l Observatorio Nacional fue <strong>de</strong>molido por sectores entre losaños 1920 y 1930. El edificio actual quedo finalizado e inaugurado el 24 <strong>de</strong> Octubre <strong>de</strong>1930. El edificio <strong>de</strong>l Observatorio es Monumento Histórico Nacional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995. ELParque <strong>de</strong>l Observatorio fue remo<strong>de</strong>lado en 1971, para el Centenario <strong>de</strong>l Observatorio.144


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEdificio Actual <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong> CórdobaEl Circulo Meridiano RepsoldEste instrumento se comenzó a utilizar en septiembre <strong>de</strong> 1892, cuenta con unobjetivo <strong>de</strong> 121,9 mm <strong>de</strong> diámetro y 1463 mm <strong>de</strong> distancia focal, fue construido porAdolfo Repsold e hijo <strong>de</strong> Hamburgo. Este se mantuvo en servicio hasta principios <strong>de</strong>lsiglo XX, cuando fue reemplazado por otro similar <strong>de</strong> mayores dimensiones. Actualmentese halla ubicado en el may central <strong>de</strong>l nuevo edificio.Imagen actual <strong>de</strong>l Meridiano Repsold145


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEl Gran Refractor Ecuatorial Alvan Clark.El telescopio refractor al que se le <strong>de</strong>nominó el Gran Ecuatorial fue adquirido porel Dr. Gould en Nueva York antes <strong>de</strong> su parti<strong>da</strong> a la Argentina, fue enviado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Bostónjunto con las primeras partes <strong>de</strong>l edificio en 1870, comenzó a ser montado el 4 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong>1871, sobre un pilar <strong>de</strong> mármol blanco <strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente dos metros <strong>de</strong> altura.Poseía dos objetivos intercambiables <strong>de</strong> 28,6 centímetros <strong>de</strong> diámetro y unadistancia focal <strong>de</strong> 363 centímetros. Uno <strong>de</strong> los objetivos se utilizaba para observacionesvisuales, mientras que el segundo para fotografía. Ambos se conservan aún en elObservatorio Astronómico <strong>de</strong> Córdoba.La parte mecánica fue fabrica<strong>da</strong> por Alvan Clark e Hijos <strong>de</strong> Cambridge. El tubo, <strong>de</strong>ma<strong>de</strong>ra, tenía una sección cuadra<strong>da</strong>. Poseía relojería para compensar el movimiento <strong>de</strong>la bóve<strong>da</strong> celeste, diseñado sobre una modificación <strong>de</strong>l sistema Fraunhofer.Durante la dirección <strong>de</strong> John Thome, en 1889, fue compra<strong>da</strong> una nueva montura ala empresa Warner y Swasey, la que llegó a principios <strong>de</strong> 1890. Historia <strong>de</strong>l ObservatorioAstronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa)El "Gran Ecuatorial" con la montura Warner & Swasey, montado en la vieja cúpula, tomado <strong>de</strong>Historia <strong>de</strong>l Observatorio Astronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa)Placas CordobesasEs interesante mencionar los primeros usos <strong>de</strong> la fotografía en astronomía,146


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Trealizados en argentina. Des<strong>de</strong> su fun<strong>da</strong>ción el Observatorio Nacional organiza las tareas<strong>de</strong> obtener placas fotográficas <strong>de</strong>l cielo austral. Se lograron más <strong>de</strong> 1.200 fotografías <strong>de</strong>cúmulos y estrellas dobles. Se realizaron 364 impresiones <strong>de</strong> 103 pares estelaresbrillantes y bastante separados. También se obtuvieron algunas <strong>de</strong> la Luna, en susdistintas fases, <strong>de</strong> Marte, Júpiter y cometas. Totalizan alre<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> 1.400 placas.Gould ofrece en enero <strong>de</strong> 1885, al renunciar a la Dirección, efectuar lasmediciones <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s las placas en Estados Unidos. La propuesta fue acepta<strong>da</strong>. El Dr.Gould <strong>de</strong>dica mucho tiempo a la medición, cómputo y preparación <strong>de</strong> la publicación <strong>de</strong>este extenso trabajo. En 1889 terminan las mediciones sistemáticas <strong>de</strong> las placascordobesas. En total 281 placas, conteniendo 11.000 estrellas diferentes <strong>de</strong> 37 cúmulos.También se midieron 315 planchas con 96 estrellas dobles distintas. Solo una fracción <strong>de</strong>lnúmero total <strong>de</strong> placas.Lamentablemente Gould no llega a ver concluido el trabajo, pues lo sorpren<strong>de</strong> lamuerte.El Estado Argentino se hace cargo <strong>de</strong> la publicación <strong>de</strong>l trabajo, bilingüe como yaera costumbre, que forma el Volumen XIX <strong>de</strong> los Resultados <strong>de</strong>l Observatorio NacionalArgentino, <strong>de</strong>nominado Fotografías Cordobesas. Lo edita The Nichols press, Thos. P.Nichols en 1897.A la muerte <strong>de</strong> Gould, las placas fueron <strong>de</strong>posita<strong>da</strong>s en el Harvard CollegeObservatory, don<strong>de</strong> se encuentran en la actuali<strong>da</strong>d. Su estado es variable, existiendo ungran porcentaje en buenas condiciones. Historia <strong>de</strong>l Observatorio Astronómico <strong>de</strong>Córdoba (en prensa)Carte du ciel en CórdobaHacia finales <strong>de</strong>l siglo XIX, na<strong>da</strong> <strong>de</strong> lo planeado respecto <strong>de</strong> la carta <strong>de</strong>l cielo, sehabía realizado en el Observatorio <strong>de</strong> La Plata. Ante esta situación, Loewy, a través <strong>de</strong>ldirector <strong>de</strong>l Observatorio <strong>de</strong>l Cabo, David Gilí, pone al tanto al Dr. Thome, por entoncesdirector <strong>de</strong>l Observatorio Nacional, sobre la falta <strong>de</strong> cumplimiento <strong>de</strong>l observatorioBuenos Aires. Da<strong>da</strong> esta situación Thome inicia gestiones informales en el gobiernoargentino para ver la posibili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> que el ONA se hiciera cargo <strong>de</strong> la zona <strong>de</strong>ja<strong>da</strong>vacante, estimando como muy factible la posibili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> trasla<strong>da</strong>r el astrográfico <strong>de</strong> LaPlata a Córdoba.El director <strong>de</strong>l Observatorio Nacional Argentino concurre al Congreso <strong>de</strong> 1900,147


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque sesionó entre el 19 y 21 <strong>de</strong> julio. En esta reunión, Thome anuncia que se haría cargo<strong>de</strong> una zona y encarga a Gautier el telescopio correspondiente. La zona a su cargo <strong>de</strong>bíaser la <strong>de</strong>ja<strong>da</strong> por el Observatorio <strong>de</strong> La Plata, correspondiente a la región 24° a 31° <strong>de</strong><strong>de</strong>clinación sur, un 6,2 % <strong>de</strong>l total <strong>de</strong> la tarea, uno <strong>de</strong> los mayores porcentajes para unainstitución individual.Después <strong>de</strong> inspeccionar el Astrográfico <strong>de</strong> La Plata, Thome <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> hacergestiones para adquirir un nuevo instrumento, <strong>de</strong> iguales características. Como todos losinstrumentos <strong>de</strong> la carta <strong>de</strong>l cielo, este se construye en París, por la casa Gautier conóptica <strong>de</strong> los hermanos Henry. Las cajas conteniendo el Astrográfico cordobés llegan endiciembre <strong>de</strong> 1901 y para febrero <strong>de</strong>l año siguiente el instrumento se encuentra instalado.Las placas emplea<strong>da</strong>s en la Carte du Ciel fueron fabrica<strong>da</strong>s en Francia por A.Lumiére y Ses Fils, con emulsión <strong>de</strong>posita<strong>da</strong> sobre vidrio cilindrado <strong>de</strong> alta cali<strong>da</strong>d,especialmente <strong>de</strong>stinado para este fin, con forma cuadra<strong>da</strong> <strong>de</strong> 16 centímetros <strong>de</strong> lado y 2ó 2,5 milímetros <strong>de</strong> espesor.En 1908, el número <strong>de</strong> placas para el Catálogo llegó sólo a unas 600.Telescopio Astrográfico <strong>de</strong>l Observatorio Nacional Argentino, tomado <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong>l ObservatorioAstronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa)El Nuevo Círculo MeridianoEn 1907 en un viaje a Europa, Thome adquiere un nuevo círculo meridiano a A.Repsold <strong>de</strong> Hamburgo, con un objetivo <strong>de</strong> 190 mm <strong>de</strong> diámetro y 2,25 m <strong>de</strong> distancia148


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfocal, idéntico al existente en La Plata.Fue alojado en una sala construi<strong>da</strong> ex profeso sobre el mismo meridiano quepasaba por el viejo Círculo Meridiano, al sur, separado <strong>de</strong>l edificio principal por algunosmetros.Déca<strong>da</strong>s más tar<strong>de</strong> fue trasla<strong>da</strong>do al Observatorio Félix Aguilar lugar don<strong>de</strong> hoyse encuentra emplazado.Círculo Meridiano Repsold <strong>de</strong> 190 mm <strong>de</strong> diámetro., tomado <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong>lObservatorio Astronómico <strong>de</strong> Córdoba (en prensa)Otros instrumentos importantes <strong>de</strong> la epoca <strong>de</strong> la fun<strong>da</strong>ción son: El Pequeñoreflector portátil Alvan Clark <strong>de</strong> 13 cm <strong>de</strong> apertura y el refractor portátil “R. B. TollesMUSEO ASTRONÓMICO “PRESIDENTETE D.F. SARMIENTO – DR. B.A. GOULD”Integrado al PROMU, Programa <strong>de</strong> Museos <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong>Córdoba. EL PROMU <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Secretaria <strong>de</strong> Ciencia y Tecnología <strong>de</strong>l Rectorado <strong>de</strong>la UNC, y tiene un total <strong>de</strong> 16 Museos. De esos 16, 4 son <strong>de</strong> ciencia médicas, 4 <strong>de</strong>ciencias naturales, uno tecnológico, 4 históricos, uno <strong>de</strong> antropología, uno <strong>de</strong> arquitecturay el Astronómico.El Museo Astronómico se creo en 2003. Abrió al público por primera vez en 2004.149


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPersonal <strong>de</strong>l Museo1) Un Coordinador General.2) Dos guias para la atención <strong>de</strong> publico. Son estudiantes <strong>de</strong> astronomía, concontratos.3) Un empleado administrativo, no-docente <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d. Se ocupa <strong>de</strong> tareasadministrativas, comunicacionales, etc.4) Una Comisión <strong>de</strong> Apoyo al Museo, coordina<strong>da</strong> por el Coordinador General.5) Existen voluntarios <strong>de</strong> la Escuela <strong>de</strong> Archivología <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d y <strong>de</strong>l InstitutoTerciario Sobral que colaboran con los programas <strong>de</strong> conservación <strong>de</strong> documentos.6) Dos becarias han trabajado en el Museo durante 2009, en temas relacionados conlos Programas <strong>de</strong> Inclusión <strong>de</strong> personas con discapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s sensoriales: una Becaria <strong>de</strong>Extensión <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d, y una Becaria <strong>de</strong> Servicio <strong>de</strong> la Asociación Argentina <strong>de</strong>Astronomía.Salas ExpositivasEl Hall Central <strong>de</strong>l Observatorio, el Área <strong>de</strong>l Tiempo/Pozo <strong>de</strong> los relojes, la GaleriaSuperior <strong>de</strong>l Observatorio, la Cúpula <strong>de</strong>l Telescopio Astrográfico, la Cúpula <strong>de</strong>l GranTelescopio Ecuatorial.Como facili<strong>da</strong><strong>de</strong>s comunes, se cuenta con el Auditorio <strong>de</strong>l Observatorio y con laBiblioteca <strong>de</strong>l mismo, don<strong>de</strong> se exponen libros antiguos. Asimismo existe una sala <strong>de</strong><strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> placas fotográficas, que esta al cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> la Biblioteca <strong>de</strong>l Observatorio y<strong>de</strong>l Museo.A<strong>de</strong>más una <strong>de</strong> las casas que hay en el predio es la se<strong>de</strong> administrativa <strong>de</strong>lMuseo: es ella hay: la oficina <strong>de</strong> Dirección, una sala <strong>de</strong> reuniones, aula, sala <strong>de</strong>exposición; una sala <strong>de</strong> personal y comunicaciones, un taller <strong>de</strong> reparaciones, una sala<strong>de</strong> conservación <strong>de</strong>l papel. A<strong>de</strong>más un altillo y un sótano (hoy no utilizados) que se<strong>de</strong>stinarán a <strong>de</strong>pósitos. Este inmueble cuenta con acceso para discapacitados.Colecciones: existen cuatro gran<strong>de</strong>s categorías:1) el edificio y sus diferentes partes, fijas y móviles (cúpulas)2) documentación escrita150


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T3) documentación fotográfica. Incluye placas y fotos en papel. Referi<strong>da</strong>s tanto aimágenes <strong>de</strong>l cielo como a registro <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> institucional4) instrumentosLa categoría <strong>de</strong> Instrumentos incluye:Telescopios, maquinas <strong>de</strong> medir en coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s, relojes y cronómetros, instrumentosmeteorológicos, instrumentos <strong>de</strong> laboratorio, etc. Entre los telescopios, se <strong>de</strong>stacan:-El Gran Refractor Ecuatorial Alvan Clark, <strong>de</strong> 32 cm-El Circulo Meridiano Repsold,-El Pequeño reflector portátil Alvan Clark <strong>de</strong> 13 cm <strong>de</strong> apertura,-El refractor portátil “R. B. Tolles”A<strong>de</strong>mas:- el Astrógrafo Gautier <strong>de</strong> la Carte du Ciel- el fotómetro portátil <strong>de</strong> Zollner- el Anteojo <strong>de</strong> paso Fauth & Co.- El telescopio Zenital Wur<strong>de</strong>mann, <strong>de</strong>l COAST SurveyEl museo no cuenta con presupuesto propio, sino que se financia primordialmentea través <strong>de</strong> subsidios a proyectos que otorga anualmente la Secretaria <strong>de</strong> Ciencia ytecnología al Programa <strong>de</strong> Museos. La secretaria <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> <strong>de</strong> la Nación otorga unsubsidio para el Programa <strong>de</strong> Conservación Documental <strong>de</strong>l Museo (<strong>de</strong>sinsectación <strong>de</strong>diarios <strong>de</strong> Observación <strong>de</strong> B. Gould por anoxia en cámara <strong>de</strong> vacío).El Observatorio no <strong>de</strong>stina fondo alguno al Museo, ni para proyectos ni pararemuneración <strong>de</strong>l personal.Algunas activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s relevantes:- Circuito Educativo <strong>de</strong>l Museo-Observatorio Ambiental <strong>de</strong>l Municipio: visita en forma<strong>de</strong> circuito en tres etapas: Museo, Función en Planetario Móvil, y visita alObservatorio/Laboratorio Ambiental. Para alumnos <strong>de</strong> escuelas primarias municipales. Envigencia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2005 al 2008.- Concursos y exposiciones <strong>de</strong> fotografías- Congresos y simposios151


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T- Exposiciones <strong>de</strong> fotografía digital- Ciclos <strong>de</strong> Cine-Debate- Participación en festivales <strong>de</strong> teatroAlgunos programas en marcha:a) Programa <strong>de</strong> Inclusión <strong>de</strong> personas con discapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s: mediante eltrabajo <strong>de</strong> las becarias ya menciona<strong>da</strong>s y un subsidio <strong>de</strong> la SECYT-UNC se estainstalando cartelería Braille, así como equipos <strong>de</strong> sonido que servirán para disponer <strong>de</strong>dos spots sonoros elaborados recientemente, que explican para las personas ciegas lasituación y disposición <strong>de</strong> salas <strong>de</strong>l Museo. Asimismo se instalan dispositivos <strong>de</strong> imagen yvi<strong>de</strong>o para discapacitados auditivos. Se construyen maquetas táctiles para utilizar en lasvisita <strong>de</strong> personas ciegas. Estas instalaciones se inauguraran en agosto próximo. Seconstruyeron rampas y estacionamiento para discapacitados, así como baños.b) Programa <strong>de</strong> recuperación edilicia <strong>de</strong> la casa <strong>de</strong> Lapri<strong>da</strong> 890 (ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong>Córdoba). Se han reparado en forma total los pisos <strong>de</strong> dos <strong>de</strong> las salas, así como sucableado interno. Se puso en valor la totali<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l exterior <strong>de</strong>l inmueble. Se esperainaugurar estas instalaciones en agosto <strong>de</strong> 2009.c) Programa <strong>de</strong> Conservación documental:1- diarios <strong>de</strong> observación. Más <strong>de</strong> mil ejemplares manuscritos. Estado <strong>de</strong>conservación: <strong>de</strong>plorable, crítico.Guar<strong>da</strong>dos largas déca<strong>da</strong>s en condiciones ina<strong>de</strong>cua<strong>da</strong>s, afecta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> plaga <strong>de</strong><strong>de</strong>rmestidos. Subsidiado por <strong>Cultura</strong> Nación, se <strong>de</strong>sarrolla este Programa <strong>de</strong>Desinsectación que incluye: limpieza mecánica <strong>de</strong> las libretas. Pasaje por cámara <strong>de</strong>vació (una a dos semana <strong>de</strong> duración), relimpieza mecánica. Almacenamiento en zonaslimpias. Análisis biológico periódico <strong>de</strong>l material almacenado para controlar la noreaparición <strong>de</strong> la infestación.2- sala <strong>de</strong> placas fotográficas. Alre<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> tres mil placas <strong>de</strong> vidrio en formatosvariados. Estado <strong>de</strong> conservación: bueno, pero sometido a condiciones ambientalesina<strong>de</strong>cua<strong>da</strong>s.Des<strong>de</strong> hace dos años se reduce sistemáticamente la hume<strong>da</strong>d <strong>de</strong> lacámara/<strong>de</strong>posito mediante un <strong>de</strong>shumidificador, a raíz <strong>de</strong> 5% por año. En la actuali<strong>da</strong>d setrabaja en generar una circulación <strong>de</strong> aire fresco y seco mediante un sistema <strong>de</strong>forzadores <strong>de</strong> aire y el reemplazo <strong>de</strong> puertas sóli<strong>da</strong>s por puertas que permitan la152


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcirculación.d) Programa <strong>de</strong> Investigación acerca <strong>de</strong>l Edificio Histórico.Se lleva a cabo en colaboración con la Maestría <strong>de</strong> Conservación y Rehabilitación<strong>de</strong>l Patrimonio Arquitectónico <strong>de</strong> Facultad <strong>de</strong> Arquitectura, Urbanismo y Diseño <strong>de</strong> laDiversi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> Córdoba y la cátedra <strong>de</strong> Conservación <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong>Florencia, Italia. Como resultado <strong>de</strong> este proyecto se ha generado una primera tesis <strong>de</strong>grado aproba<strong>da</strong> en Italia en Marzo <strong>de</strong> 2009, sobre la historia <strong>de</strong> las intervencionesarquitectónicas en el edificio histórico <strong>de</strong>l Observatorio.En la actuali<strong>da</strong>d, el Museo Astronómico abre al público 4 días por semana,siempre en horarios vespertinos: miércoles, viernes y sábados <strong>de</strong> 15 a 19 horas.Domingos <strong>de</strong> 16 a 20 horas.Las visitas son gratuitas, libres y aptas para todo público.FONTESObservatorio astronómico <strong>de</strong> La Plata, Publicaciones, Tomo I, 1914.ROMERO, G.; CORA, S.; CELLONE, S. (eds.). Historia <strong>de</strong> la Astronomía Argentina.Buenos Aires: Asociación Argentina <strong>de</strong> Astronomía, 2009, (en prensa).GERSHANIK S.. Evolución <strong>de</strong> las ciencias en la República Argentina, 1923-1972. TomoVII. Buenos Aires: Socie<strong>da</strong>d Científica Argentina, 1979.Observatorio Astronómico <strong>de</strong> La Plata, Archivo <strong>de</strong> Fotografías y Placas.Observatorio Astronómico <strong>de</strong> La Plata, Archivo histórico.Museo Astronómico “Presi<strong>de</strong>ntete D.F. Sarmiento – Dr. B.A. Gould”, Guillermo Gol<strong>de</strong>s(comunicacón personal)http://museo.fcaglp.unlp.edu.arhttp://fcaglp.unlp.edu.ar/<strong>de</strong>ptoSyM/sismologia.htmlhttp://museo.fcaglp.unlp.edu.arhttp://www.astro.unc.edu.ar/153


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOBJETOS, COLEÇÕES E BIOGRAFIA:A história do laboratório <strong>de</strong> química do ImperialObservatório do Rio <strong>de</strong> JaneiroJanaína Lacer<strong>da</strong> Furtado 1Des<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 2004 o grupo <strong>de</strong> pesquisa Preservação <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is<strong>da</strong> Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Museologia do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e CiênciasAfins, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, discute meios <strong>de</strong> expor a coleção <strong>da</strong> instituição,forma<strong>da</strong> por objetos <strong>de</strong> ciência e tecnologia que <strong>da</strong>tam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início doséculo XIX, para o público <strong>de</strong> uma maneira inteligível. Neste intuito optou-se pelaabor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> biografia dos objetos, proposta por um grupo <strong>de</strong> museólogos ehistoriadores britânicos, on<strong>de</strong> procura-se traçar a trajetória <strong>de</strong> um objeto, ou <strong>de</strong> um grupo<strong>de</strong> objetos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fabricação até sua aquisição como parte <strong>de</strong> uma coleção <strong>de</strong>museu e <strong>da</strong>í o seu percurso <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> instituição. Para o estudo aqui apresentado,resultado, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> um subprojeto <strong>de</strong> pesquisa, foram escolhidos os objetos <strong>de</strong>química pertencentes à coleção, e que faziam parte do Imperial Observatório do Rio <strong>de</strong>Janeiro, para traçarmos sua trajetória.--------------------------------- § ---------------------------------1 Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro/MAST, Rua São Francisco Xavier 524, 9o.an<strong>da</strong>r,Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História. E-mail: jana_lacer<strong>da</strong>@yahoo.com.br. Graduação eMestrado em História Política pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Atualmente cursa odoutorado no mesmo programa <strong>de</strong> Pós Graduação on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve a tese “Objetos e Coleções: opapel do <strong>Museu</strong> Industrial do Jardim Botânico na construção <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional.” sob aorientação <strong>da</strong> Profa. Dra. Tânia M. Tavares Bessone <strong>da</strong> Cruz Ferreira. Pesquisadora do Grupo <strong>de</strong>Pesquisa Preservação <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is coor<strong>de</strong>nado pelo Prof. Dr. Marcus Granato. BolsistaPCI/DTI do MAST <strong>de</strong> 2004 a 2008.154


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO alargamento do objeto histórico, nas palavras <strong>de</strong> Marcel Gauchet, possibilitouao historiador novos temas, abor<strong>da</strong>gens e fontes, e permitiu, também, uma históriarenova<strong>da</strong> <strong>da</strong>s instituições e dos objetos <strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong>ntre os quais o museu e suascoleções.Para Gauchet, foi neste período que a história dos museus e <strong>da</strong>s coleções viveuseu momento pleno <strong>de</strong> efervescência, e não se trata, afirma ele, <strong>de</strong> uma história dosmuseus em si mesmos e sim <strong>da</strong> história <strong>da</strong> formação <strong>de</strong>stes museus <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu<strong>de</strong>senvolvimento histórico, e <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong>stas instituições com os <strong>de</strong>mais atoreshistóricos <strong>de</strong> sua época (GAUCHET, 1999, p.138).Entre os historiadores <strong>da</strong> ciência em particular, a renovação, que tem relação comeste alargamento do objeto histórico <strong>de</strong>scrito por Gauchet, aconteceu na Grã-Bretanha,na França e nos EUA, 2 e, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s diferenças entre estes grupos, o principalobjetivo era questionar a visão internalista <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s ciências e propor uma visão <strong>da</strong>ciência como uma prática e como um elemento <strong>da</strong> cultura, e não um processo evolutivocom leis e regras universais.O enfoque, a partir <strong>de</strong>sta mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> vista, se <strong>de</strong>slocou para asinstituições, as relações entre os interesses <strong>de</strong> grupos importantes e o conteúdo doconhecimento científico, as controvérsias científicas, o laboratório e o dia-a-dia doscientistas. Um dos livros que marcou os <strong>de</strong>bates sobre os estudos sociais <strong>da</strong> ciência foi olivro <strong>de</strong> Steve Woolgar e Bruno Latour Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Laboratório: a construção dos fatoscientíficos <strong>de</strong> 1979. Com forte relação com a antropologia cultural, sobretudo com a4noção <strong>da</strong> thick <strong>de</strong>scription, que vem a ser a <strong>de</strong>scrição minuciosa estabeleci<strong>da</strong> pelaetnografia. O próprio Woolgar afirmou que a questão fun<strong>da</strong>mental levanta<strong>da</strong> por taisestudos diz respeito ao seu valor metodológico enquanto chave para especificar o caráter<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s científicas, ou seja, observar a ciência “tal e qual se faz”.Este crescente interesse sobre “vi<strong>da</strong>” <strong>de</strong> laboratório e seus cientistas acabou pordirecionar o foco <strong>da</strong>s pesquisas também para os instrumentos e experimentos científicos.Os primeiros trabalhos, entretanto, tratavam os instrumentos como objetos antigos,artefatos culturais e até mesmo como objetos “heróicos”.A revisão historiográfica completa e as diferenças entre os grupos, bem como os principais autores epesquisadores encontra-se no texto Instrumentos em contexto: os limites e as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> umahistoriografia dos objetos <strong>de</strong> ciência. Publicado nos Anais do 2º Seminário Nacional <strong>de</strong> História <strong>da</strong>Historiografia, Mariana, 2007. Disponível emhttp://www.seminario<strong>de</strong>historia.ufop.br/seminario<strong>de</strong>historia2007/anais.htm.2155


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TSomente a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, o olhar começou a mu<strong>da</strong>r e a preocupaçãopassou a ser a investigação sobre as interações do instrumento com a experimentação,com o <strong>de</strong>senvolvimento do conhecimento científico e seu impacto no método científico enas mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> crenças científicas. O estudo <strong>de</strong>stes objetos <strong>de</strong> ciência permitiria aohistoriador o acesso aos diferentes contextos <strong>da</strong>s práticas científicas, uma vez que estesrefletiriam a or<strong>de</strong>m social e intelectual <strong>de</strong> seu tempo.O historiador britânico Jim Bennett propõe mapear a trajetória <strong>de</strong>stes objetos<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua manufatura, passando pelo momento em que ele é incorporado a umacoleção - adquirindo uma nova função e significação - até sua trajetória interna <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong>sta coleção, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar as mu<strong>da</strong>nças sociais, políticas, culturais eeconômicas que po<strong>de</strong>riam influenciar diretamente na instituição - sobretudo se tratando<strong>de</strong> uma instituição pública - e, conseqüentemente, na coleção.Samuel Alberti, historiador <strong>da</strong>s coleções e museus <strong>de</strong> história natural, também<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> história dos museus a partir dos objetos existentes em suacoleção, usando o conceito proposto pela antropologia <strong>de</strong> cultural biography of things, oubiografia cultural dos objetos. Sendo que para Alberti o momento mais importante nabiografia <strong>de</strong> um objeto vem a ser a incorporação do mesmo por uma instituiçãomuseológica (ALBERTI, 2005, p.560). Partindo <strong>da</strong> proposta <strong>de</strong>stes dois autores,elegemos um grupo <strong>de</strong> objetos - relacionados à química- para, a partir <strong>de</strong> sua trajetória,tentar contar um pouco <strong>da</strong> história <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> química no Brasil no século XIX.------------------------------- § ---------------------------------Há uma len<strong>da</strong> celta que diz que quando morremos nossa alma se transfere paraos objetos- po<strong>de</strong> ser uma árvore, uma pedra, um copo ou uma ca<strong>de</strong>ira- e permanecemcomo objetos mudos e inertes até que alguém- o que po<strong>de</strong> nunca acontecer... - passe poralgum <strong>de</strong>stes objetos e perceba uma presença neles e os toque, e com isto “revivemos”novamente naquele objeto 3 . O objeto, segundo a len<strong>da</strong>, passa a ter outro “significado”,ele <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser “inerte” e “mudo” e passa a nos dizer algo, a ser “alguém” novamente.Porém, para que este objeto adquira “vi<strong>da</strong>” alguém precisa olhar este objeto e percebernele esta existência.len<strong>da</strong> foi cita<strong>da</strong> pelo Professor Guilherme Pereira <strong>da</strong>s Neves em conferência proferi<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro intitula<strong>da</strong> História e Hermenêutica no Seminário Nacional <strong>de</strong> História <strong>da</strong>Historiogrrafia nos dias 29, 30 e 31 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 2008.1563 Esta


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFaço uso <strong>de</strong>sta len<strong>da</strong> antiga para traçar um paralelo <strong>de</strong>sta fábula com os objetos<strong>de</strong> museu. Em muitas instituições eles permanecem durante muito tempo “mudos” e“inertes”, às vezes dispostos sem critérios ou até mesmo amontoados em <strong>de</strong>pósitos ouencaixotados, até que percebamos sua presença, sua historici<strong>da</strong><strong>de</strong> e assim os tiramos <strong>da</strong>obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vitrine e restituímos uma trajetória, uma biografia.Durante muito tempo a história <strong>da</strong> cultura material aten<strong>de</strong>u, segundo o historiadorDominique Pulot, a um cui<strong>da</strong>do exclusivo <strong>de</strong> procura pela peça única, com as coleções<strong>de</strong> obras <strong>de</strong> elite. Depois, uma preocupação arqueológica <strong>de</strong>terminou a elaboração <strong>de</strong>tipologias <strong>de</strong>scritivas e cronológicas, sistemas <strong>de</strong> classificação <strong>de</strong> artefatos, etc. O estudo<strong>da</strong> cultura material começa a fazer parte <strong>de</strong> uma história social on<strong>de</strong> a preocupaçãomaior é analisar os objetos para esclarecer condutas, consi<strong>de</strong>rando seus usos eintercâmbios <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (PULOT, 2003, p.27).Entretanto, recentemente, <strong>de</strong>vido ao intercâmbio entre várias disciplinas, ointeresse se <strong>de</strong>slocou para o estudo <strong>da</strong> maneira pela qual os sujeitos e os objetos semovem, seguindo a linha <strong>de</strong> Appadurai e Kopytoff, on<strong>de</strong> o interesse passou a ser uminventário para a reconstituição do contexto do objeto, seus usos e eventuaisre<strong>de</strong>finições. A questão dos objetos se i<strong>de</strong>ntifica com o processo <strong>da</strong>s “artes <strong>de</strong> fazer”, ouseja, analisar as diferentes apropriações que envolvem <strong>de</strong>slocamentos, <strong>de</strong>terminações ere-apropriações, traçando assim trajetórias socialmente <strong>de</strong>limita<strong>da</strong>s (I<strong>de</strong>m. p.30).Samuel Alberti em artigo publicado recentemente propõe que se estu<strong>de</strong> atrajetória dos objetos <strong>de</strong> museu a partir <strong>da</strong> biografia <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, e para escreveresta biografia <strong>de</strong>vem-se interrogar estes objetos <strong>da</strong> mesma maneira que se faz aobiografar pessoas. Para tanto, Alberti (2005) elabora um questionário com as seguintesperguntas: 1) Quais os momentos mais importantes <strong>de</strong> sua (do objeto) trajetória? 2)Como o status <strong>de</strong>ste objeto se modificou ao longo do tempo? 3) O que o torna singular oucomum em relação aos <strong>de</strong>mais? 4) Qual o impacto dos diferentes contextos – social,cultural, econômico, político, científico, etc..- nesta trajetória? Para que a partir <strong>da</strong>srespostas possa se traçar uma trajetória <strong>de</strong>stes objetos que permita mais tar<strong>de</strong>estabelecer uma narrativa inteligível para o público. Sendo que Alberti - que concentrasua análise em objetos pertencentes a um museu <strong>de</strong> História Natural - coloca como omomento mais importante <strong>da</strong> trajetória do objeto o <strong>da</strong> incorporação <strong>de</strong>ste a coleção <strong>de</strong>um museu.O historiador Jim Bennett em artigo publicado no mesmo ano (2005) também<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> esta noção, entretanto, acrescenta que igualmente importante é analisar este157


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tobjeto em seu caminho (e/ou <strong>de</strong>scaminho) antes <strong>de</strong>sta incorporação. Bennett propõeain<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que sem maior profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma outra abor<strong>da</strong>gem para o estudo dosobjetos: a biografia coletiva, ou prosopografia, que significa o estudo <strong>da</strong> coleção como umconjunto 4 .Pela dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, por causa <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> documentação disponível, em se conseguirtraçar uma biografia histórica <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos objetos <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong> química do MAST,optamos por eleger a prosopografia como metodologia <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem, entretanto,Bennett não formula questões a serem <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s, apenas assinala como umapossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem para se pesquisar a trajetória dos objetos <strong>de</strong> uma coleção.Assim, tendo como embasamento inicial a proposta <strong>de</strong>stes dois autores, partimospara a confecção <strong>de</strong> um questionário específico 5 para in<strong>da</strong>garmos os objetos por nósescolhidos e que permitisse uma análise prosopográfica dos mesmos. Vale ressaltar quenosso objeto <strong>de</strong> estudo em questão, um conjunto <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> química aparentemente“perdidos” em um acervo em sua maioria <strong>de</strong>stinado a prática <strong>da</strong> física, <strong>da</strong> astronomia, <strong>da</strong>meteorologia e <strong>da</strong> geodésia, to<strong>da</strong>s as áreas do conhecimento que possuem estreitarelação com a prática <strong>de</strong> um Observatório, mas o que instrumentos <strong>de</strong> química fazem emum museu <strong>de</strong> astronomia (?).Era preciso através <strong>de</strong>stes vestígios materiais e dos sinais <strong>de</strong>ixados por estestentar reconstituir parte <strong>de</strong> um mundo há muito <strong>de</strong>saparecido. Aquilo que Carlo Gizburg<strong>de</strong>nominou como método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre <strong>da</strong>dosmarginais, on<strong>de</strong> pormenores normalmente consi<strong>de</strong>rados sem importância po<strong>de</strong>m nosfornecer a chave para se chegar aon<strong>de</strong> se preten<strong>de</strong>.Deve-se acrescentar que diferentemente <strong>da</strong>s ciências naturais, como a botânica,a zoologia e a geologia, <strong>de</strong>ntre outros, as práticas <strong>da</strong> química e <strong>da</strong> física, no casoespecífico <strong>de</strong> um Observatório Astronômico, não <strong>de</strong>terminam a constituição <strong>de</strong> umacoleção, seja para estudo, seja no sentido museológico do termo, pois são objetosutilizados e reutilizados em experimentos com fins investigativos ou pe<strong>da</strong>gógicos e<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, quando se tornam obsoletos, são muitas vezes <strong>de</strong>scartados(MEDEIROS, 2006) e somente se constituem como uma coleção ao serem incorporados4 Trata-se <strong>de</strong> uma metodologia para o estudo histórico <strong>de</strong> grupos humanos significativos <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em um <strong>de</strong>terminado corte temporal.5 O questionário formulado com o objetivo <strong>de</strong> analisar a coleção <strong>de</strong> química do MAST era composto <strong>da</strong>sseguintes perguntas, O que objetos <strong>de</strong> química fazem em um acervo <strong>de</strong> um <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia, que anteseram em maioria do Observatório Nacional? Como foram adquiridos? Estes objetos foram utilizados? Porquem? Em que espaços? Qual a relevância <strong>de</strong>stes objetos? Qual a relação <strong>de</strong>stes objetos e a química doséculo XIX no Brasil? O que estes objetos po<strong>de</strong>m nos revelar a respeito <strong>da</strong> ciência pratica<strong>da</strong> na época?158


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ta um acervo museológico, o que permite ao historiador apenas acesso a “partes”, indíciose dificilmente ao todo.Além do que os objetos que estamos tratando passaram por três estágios cruciaisem suas trajetórias, o primeiro no contexto <strong>de</strong> seu uso, pelo Imperial Observatório, osegundo seu uso, ou <strong>de</strong>suso, pelo Observatório Nacional, e terceiro <strong>da</strong> sua incorporaçãopelo MAST. E para ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes três estágios é importante compreen<strong>de</strong>r a mu<strong>da</strong>nça<strong>de</strong> significado que o conjunto coleção-espaço-contexto adquiriu ao longo do tempo.O Imperial Observatório, criado em 1827, passou ao longo <strong>de</strong> sua existência porvários Ministérios e sofreu diversas mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> estatutos e <strong>de</strong> perfil. A historiadoraChristina Helena Barbosa que estudou a trajetória <strong>da</strong> instituição nos anos finais doImpério <strong>de</strong>monstra <strong>de</strong> que maneira a instituição, muito associa<strong>da</strong> à figura <strong>de</strong>sgasta<strong>da</strong> doImperador, era como este alvo <strong>de</strong> constantes críticas pelos oponentes do Monarca,sobretudo os chamados politécnicos, que não enxergavam na instituição nenhuma“utili<strong>da</strong><strong>de</strong> prática”, e com isso parecia não ter o Observatório lugar na nova or<strong>de</strong>m queestava para se estabelecer com a República (BARBOZA, 1994).Os instrumentos participavam <strong>de</strong>sta controversa história <strong>da</strong> instituição e sofriamas conseqüências, tanto assim que com a proclamação <strong>da</strong> República a trajetória <strong>da</strong>instituição - que naquele momento <strong>de</strong>senvolvia um projeto <strong>de</strong> confeccionar um mapacompleto <strong>da</strong> abóba<strong>da</strong> celeste - foi interrompi<strong>da</strong>, e a idéia <strong>de</strong> utilizar uma técnicaexperimental, a fotografia, foi engaveta<strong>da</strong> e o instrumento <strong>de</strong> ponta adquirido para estefim, uma equatorial fotográfica, não chegou sequer a ser monta<strong>da</strong> (BRASIL, 1891). É acomprovação do impacto dos diferentes contextos, no caso o político, na trajetória <strong>de</strong> umobjeto.--------------------------------- § ---------------------------------Des<strong>de</strong> a reforma <strong>de</strong> 1772, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, o programa <strong>de</strong> CiênciasNaturais passou a ser dividido em três matérias: a primeira era História Natural, que <strong>da</strong>va“uma idéia <strong>da</strong> natureza, e constituição do mundo em geral, e do Globo terrestre emparticular, limitando-se aos objetos mais vizinhos ao Homem, e mais necessários ao uso<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”. A segun<strong>da</strong> era a física experimental que ganhava um Gabinete paraexperiências, on<strong>de</strong> “se <strong>de</strong>monstrariam ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s” mediante a manipulação <strong>de</strong>instrumentos, aparelhos e máquinas e este estudo <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s exigiu uma novametodologia que privilegiava a ação.159


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA terceira matéria <strong>da</strong>s ciências naturais era a Química. A disciplina <strong>de</strong> HistóriaNatural do curso <strong>de</strong> Filosofia Natural tinha a função <strong>de</strong> ensinar, pela observação, asver<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos fatos dos três reinos <strong>da</strong> natureza, mas observação era pouco, assim, surgea idéia <strong>da</strong> experiência como uma observação mais sutil, usa<strong>da</strong> para arrancar os segredos<strong>da</strong> natureza.O elo entre a Física e a Química era o fato <strong>de</strong> que ambas se apropriavam <strong>da</strong>experiência, ou melhor, “eram as exposições <strong>de</strong> objetos e as repetições físicas equímicas freqüentemente <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s experiências realiza<strong>da</strong>s nos diversosestabelecimentos criados para esses fins” o que levou a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Física e Química aestar associa<strong>da</strong> a uma só disciplina escolar, ao menos em seu princípio.Na França, segundo Balpe 6 , o ensino <strong>da</strong> física e química experimentais iniciou-secom a criação <strong>da</strong>s escolas centrais, durante a Revolução Francesa, suplantando o ensino<strong>da</strong> filosofia natural dos colégios do antigo regime. Bolpe <strong>de</strong>staca que ain<strong>da</strong> que esta novadisciplina, que reunia física, química e matemática, propunha aten<strong>de</strong>r a uma formaçãogeral, mas que possuía também um caráter utilitário.No final do século XIX, os ensinos científicos ganham um estatuto igual ao doensino literário sob a condição <strong>de</strong> “contribuir para a formação do Homem”. Eles tambémsão, portanto, à sua maneira “humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, num sentido amplo <strong>da</strong> palavra, as‘humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s científicas’, como não hesitou em chamá-los um dos mais fervorosospartidários <strong>da</strong> cultura clássica (BELHOUSTE, 2004. p.1).Já em 1880, o ensino secundário científico na França organizou-se em torno <strong>da</strong>divisão entre ciências matemáticas e ciências físicas (e naturais). Nas ciências físicas (enaturais) o <strong>de</strong>staque é colocado principalmente sobre a observação e a experimentação,o ensino repousa sobre a exploração pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong>s coleções do gabinete <strong>de</strong> HistóriaNatural e dos instrumentos do Gabinete <strong>de</strong> Física, enquanto nas matemáticas primam aabstração e o raciocínio. A organização do corpo docente encarrega<strong>da</strong> do ensinocientífico obe<strong>de</strong>cia a essa divisão. Assim, o professor <strong>de</strong> matemática, como mostraBelhoste (2004), ensina aritmética, álgebra, geometria, trigonometria, agrimensura egeometria <strong>de</strong>scritiva; o professor <strong>de</strong> física ensina a física, a química, a história natural e ageologia.No final do século XIX, uma nova etapa é aberta na especialização disciplinar doensino secundário científico com a divisão <strong>da</strong>s ciências físicas e naturais em ciência6 Catherine Balpe é uma autora cita<strong>da</strong> por Luis Dário Sepúlve<strong>da</strong> (2004).160


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfísica e ciência natural, essa matriz serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo educacional na implementação doprograma <strong>de</strong> ensino secundário também no Brasil.Assim, não havia profissionais ou professores <strong>de</strong> química, tampouco a químicaera dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong> física. A química era comumente pratica<strong>da</strong> por físicos, farmacêuticos emédicos, que adquiriam o conhecimento em seus respectivos cursos.Kédima Oliveira Matos (2006), que estudou o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> química naBahia no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, nos explica queativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sistemáticas na área <strong>de</strong> química ganham bastante espaço na Bahia,inicialmente no curso <strong>de</strong> medicina e, posteriormente, nos cursos <strong>de</strong> farmácia eengenharia, até a criação do curso <strong>de</strong> química para professores na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Filosofia <strong>da</strong> Bahia já em meados do século XX.Durante o século XIX, a química é ministra<strong>da</strong> como disciplina nos cursos <strong>de</strong>medicina, farmácia e engenharia. Apenas com a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> filosofia asativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> química passaram por transformações, além <strong>de</strong> ganharem novos espaçosinstitucionais, adquiriu um novo status científico e social e o químico <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> seri<strong>de</strong>ntificado como médico ou engenheiro e passou a ter uma i<strong>de</strong>ntificação profissionalprópria (MATOS, 2006). No entanto, embora a institucionalização <strong>da</strong> química somentetenha ocorrido após o século XIX, não significa que não houvesse a prática <strong>da</strong> químicano Brasil.Um <strong>da</strong>do interessante, que surgiu a partir <strong>da</strong> observação <strong>da</strong> documentaçãoreferente aos estatutos e concursos para o Imperial Observatório, foi a constatação <strong>da</strong>presença constante <strong>de</strong> exames <strong>de</strong> química e <strong>de</strong> docentes <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira para acompanharos exames. No concurso do ano <strong>de</strong> 1891, por exemplo, a portaria <strong>de</strong> no. 81 cita, no artigo9º, que uma <strong>da</strong>s matérias entre as quais o candi<strong>da</strong>to a astrônomo <strong>de</strong>veria “versar” era aquímica, além <strong>da</strong> física e <strong>da</strong> astronomia física (MORIZE, 1987, p.119). Esta informaçãonos leva a duas conclusões, a primeira <strong>de</strong> que <strong>de</strong> fato existia a prática <strong>da</strong> químicaassocia<strong>da</strong> a outras disciplinas e, segun<strong>da</strong> e talvez mais importante para nós, existiaalguma prática <strong>de</strong> química em 1891 no Observatório que exigia conhecimento <strong>da</strong> matéria.No entanto, os historiadores <strong>da</strong> ciência que se <strong>de</strong>dicaram ao tema, como SimãoMathias, Reinboldt e Simon Schwartzman, afirmam a não existência <strong>da</strong> prática <strong>da</strong>química no Brasil até pelo menos a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930 com o advento <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Mathias em seu artigo A evolução <strong>da</strong> química no Brasil lista uma série <strong>de</strong>“tentativas frustra<strong>da</strong>s” <strong>da</strong> implantação e <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> química no Brasil. Dentre as quais,161


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&To laboratório Químico-Prático, instalado em 1812 no Rio <strong>de</strong> Janeiro que possuía“objetivos práticos <strong>de</strong> aplicação e não com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a Química comoCiência” e o Laboratório Químico do <strong>Museu</strong> Nacional, “o laboratório limitou-se, porém, aanálises químicas <strong>de</strong> minerais, <strong>da</strong>s primeiras amostras <strong>de</strong> carvão nacional e <strong>de</strong> pau-brasilprovenientes <strong>de</strong> diversas regiões do País” (MATHIAS, 1979. p.98). Mathias <strong>de</strong>staca osfeitos do químico Theodoro Peckolt, entretanto, apesar <strong>de</strong> reconhecer sua importância,ressalta que seu trabalho foi <strong>de</strong> “pouca significação para a pesquisa químicapropriamente dita” (I<strong>de</strong>m.p.19).Mathias não conseguia enxergar na química pratica<strong>da</strong> nos laboratórios existentesno Brasil - o autor lista apenas alguns, hoje sabemos que eram muitos mais - umaativi<strong>da</strong><strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente científica. Mas Mathias nos dá uma pista interessante: foiespecialmente nas Escolas <strong>de</strong> Medicina que a química se <strong>de</strong>senvolveu. É curioso notarque Mathias lista uma série <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> química publicados entre o ano <strong>de</strong> 1872 e o finaldo século XIX, o que nos leva à questão: se é inexistente ou incipiente a prática <strong>da</strong>química no Brasil, para que tantos livros publicados sobre o tema?Mathias, que viveu e estudou na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, faz parte <strong>de</strong> umatradição historiográfica do início do século passado que, preocupa<strong>da</strong> em <strong>de</strong>finir umahistoriografia para o país que <strong>de</strong>sse conta <strong>de</strong> explicar os problemas e apontar soluçõespara a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, tendia a explicar o atraso econômico, social e cultural pelaexcessiva miscigenação, ocorri<strong>da</strong> ao longo dos anos <strong>de</strong> colonização, e pela herança <strong>da</strong>própria colonização portuguesa.Com o Instituto <strong>de</strong> Química do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1918, surgiu a primeira escolacom o objetivo <strong>de</strong> formar profissionais para a indústria. E na Escola Politécnica <strong>de</strong> SãoPaulo foi criado o curso <strong>de</strong> química. A crítica <strong>de</strong> Mathias é a <strong>de</strong> que estes cursos sepreocupavam em <strong>da</strong>r ensino teórico-prático <strong>de</strong> caráter estritamente profissional, “semnenhum incentivo para a pesquisa científica, mesmo <strong>de</strong> natureza aplica<strong>da</strong>” (MATHIAS,Opus cit.p.102).Da mesma idéia compartilha Rheinboldt em seu texto A química no Brasil, em queafirma, já nas primeiras páginas, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período colonial até o segundo <strong>de</strong>cênio doséculo XIX, no que diz respeito à química, na<strong>da</strong> existe e, em Portugal, somente a partirdo último quarto do século XVIII teria aparecido então as primeiras obras sobre química<strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> brasileiros (HEINBOLDT, 1994, p.11).Para Rheinboldt, até 1808, na<strong>da</strong> existe em terras brasílicas, apenas com achega<strong>da</strong> <strong>da</strong> família real iniciam-se os primeiros movimentos <strong>de</strong> organização <strong>da</strong>s162


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tinstituições na colônia. Para o autor, o século XIX <strong>de</strong>ve ser encarado como um períodopreparatório, sendo que os trabalhos <strong>de</strong> química eram poucos e <strong>de</strong> poucarepresentativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apenas após a primeira guerra mundial o quadro irá se modificar,com a criação <strong>de</strong> cursos específicos para a formação <strong>de</strong> químicos no país.No entanto, somente no Rio <strong>de</strong> Janeiro no século XIX são várias as instituições<strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à química, <strong>de</strong>ntre as quais: o laboratório do Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Barca, o LaboratórioQuímico Prático do Rio <strong>de</strong> Janeiro, o laboratório químico do <strong>Museu</strong> Nacional, oLaboratório Chimíco Pharmaceútico Militar, o laboratório <strong>de</strong> microscopia clínica ebacteriológica e, como veremos adiante, o laboratório Físico-Químico do ImperialObservatório.E se Simão Mathias afirma que “(...) nossa cultura escolástica her<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>de</strong>Portugal e com fortes raízes na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média não forneceu o surto que em outros paíseseuropeus teve lugar naturalmente após a época do Renascimento”, a historiadora AnaMaria Cardoso <strong>de</strong> Matos, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora, nos conta outra história.O artigo <strong>de</strong> Ana Maria <strong>de</strong> Matos, publicado no Seminário sobre Lavoisier em 1996,sobre a química em Portugal no final do século XVIII e início do XIX, nos mostra aimportância <strong>da</strong> química e <strong>da</strong> ciência <strong>de</strong> modo geral, neste período, como ferramentaimportante a ser utiliza<strong>da</strong> pelos governos Iluminados que pretendiam racionalizar erentabilizar a vi<strong>da</strong> econômica e administrativa do país. Matos (1996, p.12) <strong>de</strong>screve asativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Laboratório <strong>de</strong> Química <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, dirigido por DomingosVan<strong>de</strong>lli em seus primeiros anos, e que tinha por objetivo o ensino <strong>da</strong> química e“trabalhos em gran<strong>de</strong> parte para a preparação <strong>de</strong> produtos químicos relativos às Artes eMedicina”.Nadja Paraense dos Santos (2004) em seus textos sobre os primeiros laboratóriosquímicos do Rio <strong>de</strong> Janeiro e o laboratório Químico-Prático do Rio <strong>de</strong> Janeiro nosesclarece, através <strong>de</strong> documentos importantes como o “Ensaio histórico analítico <strong>da</strong>soperações do Laboratório Químico-Prático do Rio <strong>de</strong> Janeiro” - que traz um histórico <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Laboratório Químico-Prático do Rio <strong>de</strong> Janeiro no período <strong>de</strong> 1812 a 1819 -alguns pontos até então obscuros sobre suas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras funções, as reais operaçõesrealiza<strong>da</strong>s ao longo <strong>de</strong> quase sete anos <strong>de</strong> existência e os motivos <strong>da</strong> extinção dolaboratório.Nadja <strong>de</strong>monstra com base no documento que, ao contrário do que afirma SimãoMathias – “(o laboratório) teve vi<strong>da</strong> efêmera e sobre ele pouco se conhece...(seus)objetivos práticos <strong>de</strong> aplicação e não com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver a química no163


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TBrasil” - apesar <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> efêmera, <strong>de</strong> 1812 a 1819, o laboratório <strong>de</strong>senvolveuativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s significativas e ao analisar o relato <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do laboratório enten<strong>de</strong>mos arazão <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>nominação - químico-prático - bem como a motivação econômica <strong>de</strong> suacriação.--------------------------------- § ---------------------------------O Imperial Observatório, criado em 1827 pelo Ministro do Império Fernan<strong>de</strong>sPinheiro, teve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início uma história tumultua<strong>da</strong>. Uma primeira comissão,constituí<strong>da</strong> por membros <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Militar, do Corpo <strong>de</strong> Engenheiros e <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>miados Guar<strong>da</strong>-Marinha, Cândido Batista <strong>de</strong> Oliveira, Eustáquio <strong>de</strong> Melo Matos e MaximianoSilva Leite e José Victoria, respectivamente, foi forma<strong>da</strong> a fim <strong>de</strong> formular umregulamento e estabelecer as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s a serem <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pela instituição. Foiformulado então, por or<strong>de</strong>m do Ministro do Império, um questionário a ser respondidopelos membros <strong>da</strong> Comissão com 6 perguntas (MORIZE, 1987, p.43), sendo que duasperguntas eram especificamente sobre a distribuição dos trabalhos do Observatório e osinstrumentos necessários para os mesmos.Houve uma discordância entre os membros <strong>da</strong> Comissão e Maximiano apresentouum relatório à parte. Nas discordâncias entre o grupo está a localização do Observatório,Maximiano <strong>de</strong>fendia o Morro <strong>de</strong> Santo Antônio ao invés do Castelo, e <strong>de</strong>fendia, - aocontrário <strong>da</strong> maioria que afirmava que o Observatório <strong>de</strong>veria prestar “diversos trabalhosastronômicos, observações astronômicas e meteorológicas, usos <strong>da</strong> navegação egeodésia (...)” - a <strong>de</strong>stinação do Observatório “em particular, a um uso prático <strong>de</strong>astronomia” que, segundo o militar, <strong>de</strong>veria servir para formar qualquer acadêmico <strong>de</strong>qualquer instituição no ano em que cursassem as disciplinas <strong>de</strong> astronomia e navegação(I<strong>de</strong>m. p.44).No que diz respeito aos instrumentos, a lista difere em um ou outro instrumento. O“dissi<strong>de</strong>nte” Maximiano, por exemplo, listou uma luneta acromática, um micrômetro paraesta luneta, um contador, um barômetro <strong>de</strong> suspensão para uso no mar, uma agulhaazimutal, um quintante <strong>de</strong> reflexão, dois horizontes artificiais, e alguns <strong>de</strong>veriam servirpara a prática dos alunos, como os <strong>de</strong> reflexão, a agulha azimutal e horizonte artificial,<strong>de</strong>ntre outros, que não constava <strong>da</strong> lista do outro grupo, que <strong>de</strong> diferente <strong>de</strong> Maximianopedia duas bússolas, um higrômetro, um anemômetro e um electrômetro multiplicador(I<strong>de</strong>m. p.43).164


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&THá um hiato entre os anos <strong>de</strong> 1827 a 1845-46, muitos autores afirmamcategoricamente que durante este período não houve ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> no Observatório, porém,como diz o historiador Robert Darnton não se <strong>de</strong>ve afirmar que algo não existe somenteporque não foi inicialmente encontrado e, <strong>de</strong> fato, falta um trabalho <strong>de</strong> pesquisa que dêconta <strong>de</strong>ste período. Um indício disto talvez seja a afirmação <strong>de</strong> Emmanuel Liais em seurelatório do ano <strong>de</strong> 1884 que, a partir <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> uma revista do Observatório, ostrabalhos e resultados <strong>da</strong> instituição não seriam mais publicados no Jornal do Comércio.Um local cujo trabalho é inexistente não publica trabalhos ou obtêm resultados.O fato é que em 1846 foi aprovado um novo regulamento para o ImperialObservatório, on<strong>de</strong> ficava estabelecido, entre outras atribuições, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>formar alunos <strong>da</strong> Escola Militar “na prática <strong>da</strong>s observações astronômicas aplicáveis agran<strong>de</strong> geodésia” e também “a<strong>de</strong>strar” os alunos <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong> Marinha na prática <strong>da</strong>sobservações astronômicas necessárias e aplicáveis à navegação.Em 1848, o Ministro <strong>da</strong> Guerra enviou duas remessas <strong>de</strong> instrumentos para oObservatório, on<strong>de</strong> não constam ain<strong>da</strong> instrumentos <strong>de</strong> química. O que encontramosforam dois termômetros <strong>de</strong> cristal, um magneto <strong>de</strong> termômetros, dois termômetros aálcool, dois pireliômetros, <strong>de</strong> Poulliet, dois actinômetros, <strong>de</strong> Poulliet, dois psicrômetros, <strong>de</strong>Auguste, dois higrômetros, <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nsação, quatro barômetros Fortin, dois barômetrosGay-Lussac, <strong>de</strong>ntre outros adquiridos em Paris; vindos <strong>de</strong> Göettingue, um magnetômetrounifilar, bifilar, uma inclinatória, dois gran<strong>de</strong>s magnetos (MORIZE, Opus cit. p.58).A primeira menção a instrumentos <strong>de</strong> química que encontramos está na lista <strong>de</strong>instrumentos doados pelo Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Prados, em 1872, <strong>de</strong> sua coleção particular. OViscon<strong>de</strong> também foi o responsável, enquanto interinamente na direção <strong>da</strong> instituição, <strong>da</strong>criação <strong>de</strong> um curso especificamente voltado para o ensino teórico e prático <strong>da</strong>astronomia.Na lista <strong>de</strong> instrumentos encontramos a referência a um “espectroscópio para asaplicações químicas” (BRASIL, 1876). Além do espectroscópio, há os instrumentos que opróprio Liais adquiriu no exterior, <strong>de</strong>ntre eles: uma pilha <strong>de</strong> Bunsen, gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong><strong>de</strong>z elementos quadrados, com vasos suplementares, uma coleção <strong>de</strong> tubos Geissler,com diversos gases para a espectroscopia, quarenta elementos <strong>de</strong> pilhas <strong>de</strong> Daniel, <strong>de</strong>balão, para aparelhos cronográficos.No relatório <strong>de</strong> 1878, Liais escreve ao Ministro sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se montarum laboratório <strong>de</strong> química no Observatório (I<strong>de</strong>m. p.3). A partir <strong>da</strong>í, seguindo a “pista”<strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> pelos objetos <strong>de</strong> química do acervo do <strong>Museu</strong>, chegamos ao Laboratório <strong>de</strong>Química do Imperial Observatório, que até os dias <strong>de</strong> hoje era <strong>de</strong>sconhecido. E, a partirdos objetos, foi possível <strong>de</strong>terminar o tipo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>senvolvido pelo laboratório. E,165


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpartir <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>ste laboratório, direcionamos a pesquisa para, a partir <strong>da</strong>metodologia <strong>da</strong> micro-história, seguir a trajetória <strong>de</strong>ste.No relatório <strong>de</strong> 1882, Liais menciona a importância do celóstato e lamenta suasub-utilização bem como a falta <strong>de</strong> espaço <strong>da</strong> instituição, inclusive do laboratório, comopo<strong>de</strong>mos observar na citação a seguir:(...)n´uma <strong>da</strong>s salas que <strong>de</strong>via ser exclusivamente <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> aexperiências <strong>de</strong> ótica, espectroscopia, etc, collocou-se gran<strong>de</strong>quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> instrumentos (...) transforma<strong>da</strong> em um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<strong>de</strong>pósito; nesta mesma sala acha-se <strong>de</strong>posita<strong>da</strong> sobre cavalletes umaimensa luneta cuja objetiva tem 38 centímetros <strong>de</strong> diâmetro e umcomprimento <strong>de</strong> oito metros e meio” e continua, Esta luneta construí<strong>da</strong>no paiz a 8 anos, nunca serviu por não haver espaço sufficiente paracoloca-la convenientemente. (BRASIL, 1883, p.6)Já no relatório no ano <strong>de</strong> 1884, já sob a direção <strong>de</strong> Luis Cruls (que assume após oafastamento <strong>de</strong> Liais em 1881, em parte pelo <strong>de</strong>sentendimento com Manoel PereiraReis) 7 o direcionamento mu<strong>da</strong> e Cruls fala em um laboratório <strong>de</strong> físico-química (BRASIL,1885. p.52. Anexo D), área do conhecimento que começa a se <strong>de</strong>senvolver no final doséculo XIX “para maior <strong>de</strong>senvolvimento dos meios <strong>de</strong> que já dispunha o observatóriopara executar certos estudos <strong>de</strong> química e física, em benefício <strong>da</strong> astronomia física”.Para tanto, Cruls adquire novos instrumentos <strong>de</strong>ntre os quais: um espectroscópio dosistema Christie, uma coleção completa <strong>de</strong> aparelhos magnéticos e <strong>de</strong> eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong>atmosférica com registro fotográfico, uma coleção <strong>de</strong> instrumentos e aparelhos para areorganização do laboratório.È interessante notar esta mu<strong>da</strong>nça, pois <strong>de</strong>monstra o quanto o ImperialObservatório, em suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e instrumentos, estava pari passu com as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>scientíficas <strong>de</strong> seu tempo, ao contrário do que a historiografia, sobretudo a do início <strong>da</strong>República, afirma em relação às instituições, como o Imperial Observatório, que <strong>de</strong> algummodo estavam liga<strong>da</strong>s ao Imperador.A historiadora Christina H. M. Barbosa nos mostra como os oposicionistas doImperador iniciaram uma campanha contra o Observatório e Liais, apontando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> umasuposta inutili<strong>da</strong><strong>de</strong>, haja vista a astronomia ser associa<strong>da</strong> a uma ciência semaplicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> prática, até o fato <strong>de</strong> Liais ser estrangeiro (BARBOZA, Opus Cit., p.31).Ain<strong>da</strong> ficavam sem respostas se teriam sido estes objetos utilizados, por quem eem quais espaços?7 Sobre este assunto ver (BARBOZA, 1994) e (VIDEIRA; OLIVEIRA, 2003).166


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo que diz respeito aos objetos que tratamos aqui e ao que tudo indica ao menoso espectroscópio, o estojo para experiências químicas e os tubos Geissler, foramutilizados no Laboratório. A revista publica<strong>da</strong> pelo Imperial Observatório, intitula<strong>da</strong>Revista do Observatório do Rio <strong>de</strong> Janeiro, foi uma fonte importante para estabelecerquais os trabalhos <strong>de</strong>senvolvidos pelo laboratório.A revista, publica<strong>da</strong> entre os anos <strong>de</strong> 1886 e 1891, não especifica quais osquímicos do laboratório, somente foi possível <strong>de</strong>tectar que o médico Antônio Martins <strong>de</strong>Azevedo Pimentel se integrou ao Observatório em 1889, já na República, especialista emhigiene e saneamento. Uma análise dos artigos <strong>da</strong> revista nos permitiu perceber que asprincipais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do laboratório eram a análise química do ar e a relação entre o aratmosférico e a saú<strong>de</strong> <strong>da</strong>s pessoas, muito embora encontremos artigos que relacionam aquímica à física e a astronomia. Como no artigo publicado em 1887, “Ligeiro histórico <strong>da</strong>fotografia celeste”, on<strong>de</strong> se percebe a indicação <strong>de</strong> que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do laboratóriotambém relacionavam-se à Astronomia: [...] do esforço combinado <strong>de</strong> astrônomos, óticose químicos, surgiram sensíveis melhoramentos que muito auxiliaram o <strong>de</strong>senvolvimentoe aperfeiçoamento <strong>da</strong> fotografia celeste. 8O artigo escrito por Luiz Cruls neste mesmo ano <strong>de</strong>monstra mais uma vez arelação entre o conhecimento químico e as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s liga<strong>da</strong>s à astronomia. Sobre oestudo do Sol, Cruls escreveu:Não sendo suficiente o emprego do simples telescópio, do micrômetro,ou do heliômetro, para medir-lhe o diâmetro, foi necessário recorrer aouso <strong>de</strong> outros instrumentos e aparelhos. O actinômetro serviu para<strong>de</strong>terminar a temperatura do Sol, o espetroscópio, para estu<strong>da</strong>r suacomposição química [...](CRULS, 1887. p.173).Nas revistas dos anos <strong>de</strong> 1888 e 89, encontramos artigos referentes à relaçãoentre a química e mineralogia, mas nenhuma menção que este tipo <strong>de</strong> pesquisa fosse<strong>de</strong>senvolvido no Observatório. Os artigos que <strong>de</strong>screvem as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> química são,em sua maioria, sem autoria, a exceção dos artigos <strong>de</strong> Pimentel - todos relacionados àanálise química do ar - e versam sobre trabalhos <strong>de</strong> espectroscopia. Já os artigos <strong>de</strong>1888 e em diante, assim como os relatórios enviados por Cruls ao Ministério nestemesmo período, mostram que o laboratório passa a se <strong>de</strong>dicar a auxiliar os trabalhos <strong>de</strong>meteorologia, que passam a ser o foco principal <strong>da</strong> instituição nesta época, e àmicrografia atmosférica.8 S/a. Ligeiro histórico <strong>da</strong> fotografia celeste. Revista do Observatório do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Junho, 1887.p.87-89.(grifo nosso)167


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TTanto assim que Cruls chega a encomen<strong>da</strong>r um aeroscópio e um aspirador - quesabemos pela documentação não chegaram à instituição - e no relatório <strong>de</strong> 1889 pe<strong>de</strong> acriação <strong>de</strong> uma seção anexa exclusiva para a análise microscópica <strong>da</strong> poeira conti<strong>da</strong> noar e nas águas meteóricas, a exemplo do Observatório <strong>de</strong> Montsouris (BRASIL, 1890.p.114).O que observamos através dos trabalhos <strong>de</strong> química <strong>de</strong>senvolvidos noObservatório, agora chamado Observatório Astronômico, é uma mu<strong>da</strong>nça nodirecionamento <strong>da</strong> instituição. Diferentemente <strong>de</strong> Liais, que enfrentou os ataques ecríticas dos opositores do Império e dos politécnicos li<strong>de</strong>rados por Pereira Reis, LuisCruls parecia, ao contrário <strong>de</strong> Liais, ser mais flexível e a<strong>da</strong>ptável às situações adversas echegou mesmo a adotar um posicionamento, propositalmente, diferente do - <strong>de</strong>scritocomo - irrascível e vaidoso Liais (VIDEIRA, 1995). Assim ao enfrentar os <strong>de</strong>tratores, Crulsera direto e procurava anular o efeito dos ataques <strong>de</strong> seus oponentes <strong>de</strong>monstrandopublicamente suas incoerências.Cruls também não se importou em mu<strong>da</strong>r o direcionamento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>instituição para um objetivo mais “útil” no enten<strong>de</strong>r <strong>da</strong>queles que neste momento dirigemo país, que, como vimos anteriormente, pensam a ciência como ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> prática e útil.Neste momento em que chega a República, inicia-se o processo <strong>de</strong> “apagamento”<strong>de</strong> rastros do Império e o Observatório passa a voltar obrigatoriamente seus trabalhospara o serviço do novo Estado Republicano, ou seja, a geografia, a geodésia e ameteorologia e, obviamente, o problema <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> pública.O laboratório, como <strong>de</strong>monstram os relatórios e boletins analisados, continua emfuncionamento, haja vista que, no concurso <strong>de</strong> seleção para astrônomos, a químicacontinua como disciplina obrigatória.Pelos relatórios ministeriais, foi possível perceber que o laboratório existe até atransferência para o Morro <strong>de</strong> São Januário, entretanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1893, quando por ocasião<strong>da</strong> Revolta <strong>da</strong> Arma<strong>da</strong>, o Observatório serviu <strong>de</strong> forte para o exército e <strong>de</strong> hospital <strong>de</strong>campanha, e assim muitas salas e laboratórios foram <strong>de</strong>smontados e vários instrumentosencaixotados e muitos, inclusive, <strong>de</strong>ixados ao relento (BRASIL, 1894, p.30-32). Ostrabalhos <strong>de</strong>senvolvidos na instituição neste período se <strong>de</strong>ram <strong>de</strong> maneira precária,muitos instrumentos são encomen<strong>da</strong>dos e comprados, mas não chegam a sequer aserem montados pela <strong>de</strong>terioração do prédio e a falta <strong>de</strong> espaço (BRASIL, Relatório doMinistério <strong>da</strong> Guerra. Anos <strong>de</strong> 1897, 1899,1901).168


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA última menção ao laboratório está em um ofício enviado ao Ministro <strong>da</strong> Guerraapontando como primordial as obras <strong>de</strong> reestruturação do prédio, sendo <strong>de</strong> extremaurgência a reconstrução <strong>da</strong>s duas salas reserva<strong>da</strong>s ao <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> materiais e os“convenientes” reparos na oficina e laboratórios, que, inferimos, se tratam doslaboratórios <strong>de</strong> físico-química e <strong>de</strong> física 9 .Em 1909, Luis Cruls morre e assume em seu lugar Henrique Morize e, nestemesmo ano, inicia-se o processo, que levaria anos para se efetivar, <strong>de</strong> transferência <strong>da</strong>instituição do Morro do Castelo para o Morro <strong>de</strong> São Januário. É neste mesmo ano que oObservatório sofre nova reformulação e passa, pelo Decreto no. 7.501 <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> agosto<strong>de</strong> 1909, a se chamar Observatório Nacional. Através <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>creto é possível perceberque o Observatório entra na idéia <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional almeja<strong>da</strong> pelos i<strong>de</strong>ólogos <strong>da</strong>República e efetivamente fica responsável por “promover o conhecimento <strong>da</strong> climatologiageral do país”. E, mais adiante no documento, po<strong>de</strong>mos ler que o observatório <strong>de</strong>vedirecionar seus trabalhos para estu<strong>da</strong>r a ocorrência <strong>de</strong> chuva e <strong>da</strong>s secas, contribuindopara a solução dos problemas <strong>de</strong> abastecimento <strong>da</strong>s águas <strong>da</strong>s regiões secas do país,fazer previsão do tempo auxiliando na agricultura e a navegação. Determinar as posiçõesgeográficas dos principais territórios do país a fim <strong>de</strong> executar os trabalhos que “possamser utilizados para organização do mapa geográfico <strong>da</strong> República”, além do serviço <strong>da</strong>hora (BRASIL. Decreto no. 7.501, Citado por Morize, Opus cit. p.136-141).Entre a pesquisa do novo local, os projetos e as primeiras obras, se passaramcinco anos (1913), quando aconteceu a inauguração solene. Mas os relatórios <strong>de</strong> Morizeexpressam a <strong>de</strong>mora em aprontar o edifício e a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em montar os instrumentos.Em 1923, foi instalado o elevador panorâmico e na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Morize do prédionão constam laboratórios, seja <strong>de</strong> físico-química ou <strong>de</strong> física. De fato, como foi possívelperceber pelo <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> 1909, a esta altura os trabalhos do Observatórioencaminhavam-se para outra direção. O próprio Antônio Pimentel a esta altura não faziamais trabalhos para o Observatório e nem se encontrava no Rio <strong>de</strong> Janeiro.E não havia mais porque o Observatório fazer análises químicas do ar, a idéia dosmiasmas mórbidos que eram responsáveis pela transmissão <strong>de</strong> doenças foramsubstituí<strong>da</strong>s pelas teorias <strong>da</strong> microbiologia, então não havia mais porque se continuar afazer análise <strong>de</strong>ste ar ou pesquisar sobre a ação do mesmo na população. Nesta altura,nem os trabalhos <strong>de</strong> espectroscopia não são mais mencionados; ou sequer a menção <strong>de</strong>compra ou <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> química na instituição.9 Ofícios do Diretor do Observatório Astronômico. 1901-1904.169


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO Observatório per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vez sua “cara” <strong>de</strong> Emmanuel Liais, <strong>de</strong>fensor ardoroso eduramente criticado, <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> prática científica chama<strong>da</strong> injustamente <strong>de</strong> filosóficaou bacharelesca e diversas vezes acusa<strong>da</strong> <strong>de</strong> pouco útil. E passa a ser uma instituição aserviço <strong>da</strong> República.A prática <strong>da</strong> química nesta época também se modificou, já segue o caminho <strong>da</strong>especialização e separa-se <strong>da</strong> física e <strong>da</strong> astronomia surgindo como campo autônomo.Criam-se cursos e a físico-química passa a ser pratica<strong>da</strong> por químicos formados pelasUniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e Institutos.Não sabemos o que aconteceu com os objetos que sobreviveram até os nossosdias e se encontram hoje no acervo do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia, no período após amu<strong>da</strong>nça para o Morro <strong>de</strong> São Januário entre os anos 1909 e 1913.O que teria acontecido a estes objetos a partir do momento em que não forammais utilizados? Permaneceram encaixotados? Ficaram esquecidos em um <strong>de</strong>pósito atéserem enviados ao recém-criado <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia em 1985?O mais fascinante em tudo isto é pensar que <strong>de</strong> fato estes objetos foram utilizadosem pesquisas e em laboratórios e que, ao traçar sua trajetória a partir <strong>de</strong> 1872 até 1909,quando seu rastro se apaga, <strong>de</strong>scobrimos e po<strong>de</strong>mos contar um pouco mais sobre ahistória do Brasil, <strong>de</strong> suas instituições, sua política e ciência no final do século XIX e iníciodo XX. Também nos foi possível perceber que é <strong>de</strong> fato impossível dissociar a história <strong>da</strong>ciência <strong>da</strong> política, do social, do cultural e do econômico.O que nos leva a outra in<strong>da</strong>gação importante: Qual a relevância <strong>de</strong>stes objetos?Qual a relação <strong>de</strong>stes objetos e a química do século XIX no Brasil? O que estes objetospo<strong>de</strong>m nos revelar a respeito <strong>da</strong> ciência pratica<strong>da</strong> na época?A química, assim como a física experimental, era uma “ciência <strong>de</strong> cavalheiros”,para utilizarmos o termo do historiador Jan Golinski, era comum estes cavalheirospossuírem uma coleção <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> química e física para <strong>de</strong>leite e instrução sua e <strong>de</strong>sua família. No Brasil não era diferente como nos mostra Nadja Paraense em seu textosobre a relação entre Pedro II e a química, que chegou inclusive a montar um laboratório<strong>de</strong> química.O americano Thomas Ewbank assim <strong>de</strong>screve o laboratório privativo doImperador: “O laboratório era uma sala separa<strong>da</strong> para experiências <strong>de</strong> ciência e <strong>de</strong>Química. Nela se encontram uma bomba <strong>de</strong> ar, eletromagnetos, aparelhos elétricos eoutros.” (Citado por SANTOS, 2004. p. 57.) O gabinete <strong>de</strong> química do Imperador,170


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsegundo Nadja Paraense, teria sido comprado em 1843, junto com uma luneta doastrônomo francês Soulier <strong>de</strong> Sauvre - que foi Diretor do Imperial Observatório noperíodo <strong>de</strong> 1841 a 1845. Este gabinete existia para o estudo do Imperador e mais tar<strong>de</strong><strong>de</strong> seus filhos.No inventário do espólio <strong>da</strong> Família Real constam os seguintes objetos: umamáquina elétrica, quatro caixas <strong>de</strong> fotografia, uma mesa com pedras, um tabuleiro compedras minerais, quatro armários com seis prateleiras ca<strong>da</strong>, contendo corpos químicos enativos, diversos aparelhos elétricos e máquinas <strong>de</strong> física em um armário, uma balança equatro quadros representando corpos químicos. 10A historiadora tentou mapear o para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>stes objetos já no períodorepublicano, que ao que tudo indica teriam sido leiloados. Mas Paraense afirmaque não há qualquer menção a objetos <strong>de</strong> química, apenas a referência aos“móveis <strong>de</strong> laboratório”.Como já mencionamos neste relatório, funcionaram vários os laboratórios <strong>de</strong>química no Rio <strong>de</strong> Janeiro ao longo do século XIX. Além dos já anteriormentemencionados, existiam o Laboratório Chimico Pharmaceutico Militar, o LaboratórioFarmacêutico Militar, o Laboratório <strong>de</strong> Microscopia Clínica e Bacteriológico e o, agoraconhecido, Laboratório <strong>de</strong> Química, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Físico-Química, do Imperial Observatório.Ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes fazia pesquisas e experiências com um <strong>de</strong>terminado objetivo, sem falarnos laboratórios voltados para o ensino, que carecem ain<strong>da</strong> hoje <strong>de</strong> um estudo maisaprofun<strong>da</strong>do.Quanto aos objetos do Laboratório <strong>de</strong> Química do Imperial Observatório sabemosque eram instrumentos científicos <strong>de</strong> ponta para a época e utilizados em pesquisasimportantes, como a espectroscopia e a micrografia. O espectroscópio, por exemplo, foi<strong>de</strong>senvolvido em 1859 na Alemanha e tratava-se <strong>de</strong> um instrumento que dispersava a luzem um espectro, possibilitando observação e a análise elementar (JAMES, 1998, p. 563)a partir <strong>da</strong> radiação emiti<strong>da</strong> pelas estrelas. Mas, alguns anos antes, foi Willian Fox Talbotquem sugeriu que as linhas espectrais po<strong>de</strong>riam ser utiliza<strong>da</strong>s para análises químicas, oque não foi possível, por causa <strong>da</strong> má quali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos vidros utilizados nos prismas, até asdéca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1850-60. E durante este mesmo período Robert Bunsen e Gustav Kirchkoff<strong>de</strong>monstraram ser possível a análise química do sol e <strong>da</strong>s estrelas, o que levou ao<strong>de</strong>senvolvimento mais tar<strong>de</strong> <strong>da</strong> Astrofísica. Interessante notar que estas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s eram10 Inventário do Espólio <strong>da</strong> Família Imperial. Arquivo do <strong>Museu</strong> Imperial, 1889. Citado por SANTOS, N. OpusCit. p.57.171


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1870-80 no Imperial Observatório.Comprovamos assim ser possível através <strong>da</strong> pesquisa sobre o instrumento - <strong>da</strong>ta <strong>de</strong>fabricação, ou aperfeiçoamento, modo <strong>de</strong> utilização e para que experiências - perceberque se tratavam <strong>de</strong> instrumentos relativamente novos e mo<strong>de</strong>rnos para sua época. Valeressaltar que durante este período as mu<strong>da</strong>nças nos instrumentos eram lentas e osmesmos não sofreram modificações drásticas ao longo dos séculos XVIII, XIX e início doXX, o que somente irá mu<strong>da</strong>r com a miniaturização e com as mu<strong>da</strong>nças tecnológicasocorri<strong>da</strong>s após a 2ª Guerra Mundial. 11Outro objeto existente no laboratório era o conjunto <strong>de</strong> tubos Geissler, quesegundo Arne Hessenbruch, eram bastante populares na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIXe fascinavam as platéias em <strong>de</strong>monstrações nos anos <strong>de</strong> 1860 e 70. Ain<strong>da</strong> segundo ohistoriador, havia diversos usos para estes objetos, sobretudo pela física e pela química(HESSENBRUCH, 1998, p.279). Novamente, objetos utilizados tanto para fins <strong>de</strong>entretenimento e educação <strong>de</strong> leigos quanto para fins <strong>de</strong> pesquisa científica.Para finalizar, a pesquisa sobre a trajetória <strong>de</strong>stes objetos permitiu perceber quelonge <strong>de</strong> inexistente, como a historiografia <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1970 e 80 afirma, existia aprática <strong>da</strong> química nos inúmeros laboratórios, mas como não era ain<strong>da</strong> umaespeciali<strong>da</strong><strong>de</strong> como enten<strong>de</strong>mos atualmente, era pratica<strong>da</strong> por físicos, farmacêuticos eastrônomos. O que em na<strong>da</strong> diminui o valor <strong>da</strong>s pesquisas e experiências <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>snestes espaços.Permitiu-nos perceber a prática <strong>da</strong> físico-química na instituição, portanto no Brasil,ain<strong>da</strong> em 1884, sendo que este novo ramo <strong>da</strong> química surgiu justamente neste período.O que <strong>de</strong>monstra a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> do Laboratório <strong>de</strong> química do Observatório e <strong>de</strong> suasativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.FONTES E BIBLIOGRAFIAALBERTI, Samuel J. J. M. “Objects and the museum”. IN: ISIS, v. 96, p. 559-571, 2005.BARBOZA, Christina Helena <strong>da</strong> Motta. 1994. O encontro do rei com Vênus: a trajetória doobservatório do Castelo no ocaso do Império. Dissertação (mestrado). UF,: Niterói, 1994.BENNET, Jim A.. <strong>Museu</strong>ms and the history of science. ISIS, v. 96, p. 602-608, 2005.______________. “The English Quadrant in the Europe: Instruments and the Growth ofConsensus in Pratical Astronomy”. In: Journal of History of Astronomy, v. 23, Part. 1,n.71, Feb., 1992.11 Vi<strong>de</strong> (HACKMANN,1999. Editorial)172


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TESTUDO SOBRE OS OBJETOS DE C&T DOOBSERVATÓRIO DO VALONGOMaria Alice Ciocca <strong>de</strong> Oliveira *Marcus Granato **Embora pequena, a coleção dos objetos <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> doObservatório do Valongo (OV), Instituto <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio<strong>de</strong> Janeiro, retrata parte <strong>da</strong> história do ensino <strong>da</strong> Astronomia no Brasil,em especial no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Este trabalho preten<strong>de</strong> mostrar aimportância <strong>de</strong>ssa coleção e, também, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong>ssas fontesdocumentais, através <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong>s trajetórias trilha<strong>da</strong>s pelos objetos, para formarsubsídios que contribuam para a construção <strong>da</strong> história do ensino <strong>da</strong> Astronomia,como contribuição para a História <strong>da</strong> Ciência no Brasil.Nas últimas déca<strong>da</strong>s do século XX a memória <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>Brasileira passou a ter mais atenção e interesse para a História <strong>da</strong> Ciência no Brasil.Esta preocupação teve como conseqüência atitu<strong>de</strong>s que tinham por objetivo apreservação <strong>de</strong> vestígios <strong>de</strong>ssa memória. Assim, tornaram-se mais freqüentes asiniciativas volta<strong>da</strong>s para a preservação do patrimônio cultural, inclusive aqueleproveniente <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> científica e tecnológica (ANDRADE, 2007, p.12) como, porexemplo, a Fun<strong>da</strong>ção Nacional Pró-memória, instituí<strong>da</strong> em 1979, que tinha como* Mestran<strong>da</strong> do Programa <strong>de</strong> Pós–Graduação em Museologia e Patrimônio, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral doEstado do Rio <strong>de</strong> Janeiro e do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins – aliceciocca@hotmail.com** <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro,RJ; marcus@mast.br. Formado em engenharia metalúrgica e <strong>de</strong> materiais pela UFRJ (1980), Mestre eDoutor em Ciências (M.Sc) pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia Metalúrgica(COPPE/UFRJ), sendo sua tese sobre Restauração <strong>de</strong> Instrumentos Científicos Históricos. A partir <strong>de</strong>2004, volta a coor<strong>de</strong>nar a área <strong>de</strong> Museologia no MAST e, a partir <strong>de</strong> 2006, torna-se professor e assumea vice-coor<strong>de</strong>nação do Mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Atualmente, éCoor<strong>de</strong>nador <strong>de</strong> Museologia do MAST, pesquisador do CNPq e lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> pesquisa na área <strong>de</strong>Preservação <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is.175


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tobjetivo incentivar a preservação dos bens <strong>de</strong> valor cultural e natural existentes nopaís, através do inventário, <strong>da</strong> documentação e <strong>da</strong> recuperação <strong>de</strong>sses bens. Outrasiniciativas, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1980, são o núcleo <strong>de</strong> História Social <strong>da</strong> Ciência, naUniversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo - USP, cujo objetivo era realizar pesquisas e formarprofissionais para a área, e o grupo Memória <strong>da</strong> Astronomia, do Conselho Nacional <strong>de</strong>Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, criado com o objetivo <strong>de</strong> organizaro acervo histórico do Observatório Nacional e divulgar a Astronomia e sua históriapara o público em geral.Neste período, novas reflexões estavam surgindo na História <strong>da</strong> Ciência,chamando a atenção para a ligação do uso <strong>de</strong> um instrumento ao seu contextocientífico, tecnológico, social, cultural ou econômico. Essas reflexões fizeram <strong>de</strong>spertaro interesse pelas coleções científicas, propiciando uma re<strong>de</strong>scoberta do patrimônioinstrumental que, há algum tempo, era alvo <strong>de</strong> preocupações a cerca <strong>de</strong> on<strong>de</strong> seencontrava e o que havia acontecido com esses objetos, após <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> ser usadosno <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s pesquisas. Pouco se sabia sobre o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>les, se ain<strong>da</strong>estavam nas suas instituições <strong>de</strong> origem ou abandonados nos porões ou noscorredores <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, dos observatórios, dos laboratórios, dos institutos <strong>de</strong>pesquisa, entregues a obsolescência (BRENNI, 2007, p.168).Essas preocupações levaram as instituições <strong>de</strong> ensino e pesquisa acomeçarem a recolher, inventariar, catalogar e preservar, não só os seus objetos <strong>de</strong>ensino e pesquisa, mas também os documentos que refletiam a sua produçãocientífica. Essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> levaria algum tempo para atingir o Brasil. Somente nos anos2000, percebe-se uma ação, mesmo que ain<strong>da</strong> tími<strong>da</strong>, por parte <strong>de</strong> algumasinstituições, com <strong>de</strong>staque para as ações sistemáticas do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia eCiências Afins. As universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, citando Granato e Câmara (2008, p.178), sãopotencialmente gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>tentoras do Patrimônio <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> e, como tal,há que se ressaltar, também, os esforços envi<strong>da</strong>dos pelo <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Ciência e Técnica<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto - UFOP, do <strong>Museu</strong> Dinâmico <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora – UFJF e do Observatório do Valongo, <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ).INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CIENTÍFICO DO OVPreocupados com o seu patrimônio histórico-científico, alguns profissionais doOV, começaram a reunir e tratar, não só, as fontes documentais escritas, como os176


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tobjetos histórico-científicos <strong>da</strong> instituição, formando um conjunto que, ain<strong>da</strong> quepequeno, documenta não só a memória institucional e parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> prática <strong>de</strong>ensino <strong>da</strong> Astronomia no Brasil, em especial no Rio <strong>de</strong> Janeiro, mas também parte dopatrimônio <strong>da</strong> UFRJ e <strong>da</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> do Brasil.No final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, como reflexo <strong>de</strong>ssa preocupação, o OV, sob adireção <strong>da</strong> Dra. Heloisa Maria Boechat Roberty, começou a participar <strong>de</strong> projetosvoltados para a recuperação e preservação <strong>de</strong> seu acervo histórico.Em 1996, foi realizado um levantamento <strong>de</strong>sse acervo, que <strong>de</strong>monstrou aurgência <strong>de</strong> sua recuperação e preservação. Entre 1997 e 2003, com apoio <strong>da</strong>Fun<strong>da</strong>ção Universitária José Bonifácio, foram realiza<strong>da</strong>s duas fases do projetoPreservação <strong>da</strong> Memória Astronômica do Observatório do Valongo. Na primeira fase,fez-se a recuperação <strong>da</strong> cúpula e do Telescópio fabricado por Cooke & Sons, em1905. Na segun<strong>da</strong> fase, foram recuperados, pelo engenheiro–óptico Pierre JackyAlexandre Bourget: a cúpula e a luneta equatorial confecciona<strong>da</strong> pela Oficina <strong>de</strong> JoséHermi<strong>da</strong> Pazos, em 1880; uma luneta fabrica<strong>da</strong> pela Carl Zeiss; a luneta meridianafabrica<strong>da</strong> por Julius Wanschaff e uma pêndula astronômica, ambas do início do séculoXX. Foi publicado, também, o livro Imagens <strong>da</strong> Astronomia na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong>Janeiro: os 120 anos do Observatório do Valongo, num esforço <strong>de</strong> disseminação <strong>da</strong>história do OV e <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> C&T <strong>da</strong> instituição.A terceira fase <strong>de</strong>sse projeto foi realiza<strong>da</strong> entre 2004 e 2005, através <strong>de</strong>financiamento proveniente do edital CT-INFRA/MCT/CNPq-003/2003, cujo objetivo era<strong>da</strong>r apoio à infra-estrutura <strong>de</strong> preservação e pesquisa <strong>da</strong> memória científica etecnológica brasileira. Nessa fase, parte <strong>da</strong> documentação histórica foi higieniza<strong>da</strong> earquiva<strong>da</strong>, além <strong>de</strong> realiza<strong>da</strong> a limpeza, i<strong>de</strong>ntificação e restauração <strong>de</strong> parte do acervohistórico instrumental <strong>da</strong> instituição. O objetivo <strong>de</strong>ssas iniciativas era expor ao públicoparte <strong>de</strong>sse patrimônio, em uma sala recupera<strong>da</strong> com recursos <strong>de</strong>sse projeto.A partir <strong>de</strong>sses resultados, entre 2007 e 2008, foram iniciados outros doisprojetos. O primeiro, com apoio do Banco do Brasil, resultou na publicação do livro 50anos <strong>da</strong> criação do curso <strong>de</strong> Astronomia do Observatório do Valongo <strong>da</strong> UFRJ, em2008, quando o curso comemorou cinquenta anos. O segundo, com apoio <strong>da</strong>Fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Amparo à Pesquisa do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro - FAPERJ, recuperououtro espaço para receber mais uma parte dos instrumentos histórico-científicos.Destaca-se a assinatura <strong>de</strong> um convênio com o MAST, em 2008, com o objetivo <strong>de</strong>recuperar, registrar e documentar os objetos que fossem consi<strong>de</strong>rados representantes177


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>da</strong> memória institucional e portadores <strong>de</strong> elementos formadores <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dogrupo. Os trabalhos advindos <strong>da</strong> implementação <strong>de</strong>sse convênio resultaram na melhororganização e documentação do grupo <strong>de</strong> objetos, propiciando que os objetos tratadospelos profissionais do MAST fossem expostos no espaço mencionado.Essas iniciativas tiveram como resultado a formação <strong>da</strong> coleção dos objetoshistóricos <strong>de</strong> C&T do OV, constituindo agora numa fonte documental organiza<strong>da</strong> edisponível para pesquisas.DE OBSERVATÓRIO ASTRONÔMICO DA ESCOLA POLITÉCNICA ÀOBSERVATÓRIO DO VALONGODes<strong>de</strong> o início, como Observatório Astronômico <strong>da</strong> Escola Politécnica, oObservatório do Valongo esteve ligado ao ensino <strong>da</strong> Astronomia no Brasil.A história do ensino <strong>da</strong> Astronomia se inicia com a criação <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia RealMilitar, em 1810 (CAMPOS, 1994, p.93), incluindo em seu currículo disciplinas liga<strong>da</strong>sà teoria e à prática astronômica. As aulas práticas eram ministra<strong>da</strong>s, até 1845, notorreão <strong>da</strong> Escola Militar, <strong>de</strong>pois, por um breve período, na Fortaleza <strong>da</strong> Conceição e,mais tar<strong>de</strong>, no Imperial Observatório do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Esse observatório, queprimeiramente fora subordinado à Real Aca<strong>de</strong>mia Militar, <strong>de</strong>pois à Escola Militar e porúltimo à Escola Central, em 1871, se <strong>de</strong>sligou <strong>de</strong>sta última. Os alunos, que tinhamaulas práticas <strong>de</strong> Astronomia e Geodésia, naquele observatório, ficaram sem localpara as mesmas.Em 1874, quando a Escola Central passou por mu<strong>da</strong>nças e se transformou emEscola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Astronomia e Geodésia foi manti<strong>da</strong>e, como ain<strong>da</strong> não existia um local para ministrar as aulas práticas, foi aprovado, em1879, pela congregação <strong>da</strong> Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a construção <strong>de</strong> umpequeno Observatório em um dos seus terraços 1 , e <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> a apresentação <strong>de</strong>um orçamento para construção dos pilares para os telescópios e aquisição dosinstrumentos científicos necessários para as aulas práticas 2 .1 Informação apresenta<strong>da</strong> através do oficio n. 93, <strong>da</strong> Diretoria <strong>da</strong> Escola Politécnica, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> outubro1879, que está citado no ofício n. 59, <strong>de</strong>sta diretoria, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1880. Arquivo Nacional -D.D.E./S.P.E.2 Orçamento <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1880, apresentado e encaminhado ao Ministério do Império pelodiretor interino <strong>da</strong> Escola Politécnica, Ignacio <strong>da</strong> Cunha.Galvão, através do oficio n.59, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong>1880, <strong>da</strong> Diretoria <strong>da</strong> Escola Politécnica. Arquivo Nacional - D.D.E./S.P.E.178


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TUm pouco antes, Manuel Pereira Reis, professor <strong>da</strong> escola e astrônomo doImperial Observatório Astronômico, havia recebido do Ministério dos Negócios doImpério, a permissão para a instalação, no alto do Morro <strong>de</strong> Santo Antonio, <strong>de</strong>instrumentos necessários aos estudos que pretendia fazer sobre a <strong>de</strong>clinação <strong>da</strong>agulha magnética e, para outros trabalhos <strong>de</strong> meteorologia e astronomia, ligados ageografia do Brasil 3 . Para isso, foi construído um pequeno observatório, através <strong>de</strong>donativos diversos, inclusive <strong>de</strong>le mesmo e do Prof. Joaquim Galdino Pimentel, queparticipou <strong>da</strong> empreita<strong>da</strong>, posteriormente contando também com a participação do,então, bacharel André Gustavo Paulo <strong>de</strong> Frontin 4 . Esse observatório iniciou as suasativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em setembro <strong>de</strong> 1880, com instrumentos provenientes <strong>de</strong> alguns órgãospúblicos, como o Ministério <strong>da</strong> Agricultura (CAMPOS, 1994, p.95).Os três, possivelmente por serem professores <strong>da</strong> Escola Politécnica, <strong>de</strong>viamconhecer a autorização <strong>de</strong> 1879, para a construção <strong>de</strong> um observatório astronômico,para as aulas práticas, em um dos terraços <strong>da</strong> Escola e, <strong>de</strong>viam saber, também, que omesmo não atendia a “[...] todos os fins que, segundo o regulamento <strong>da</strong> Escola tem <strong>de</strong>preencher [...]”, conforme as palavras do Diretor <strong>da</strong> Escola Politécnica, na época,Ignácio <strong>da</strong> Cunha Galvão 5 . Por isso, os dois professores e o bacharel resolveram, nasessão <strong>da</strong> Congregação <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1881 6 , ce<strong>de</strong>r à Escola Politécnica os direitosque tinham sob o observatório que haviam construído 7 . Fun<strong>da</strong>-se assim, nessa <strong>da</strong>ta,o Observatório Astronômico <strong>da</strong> Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, com a principalmissão <strong>de</strong> ministrar o ensino <strong>da</strong> prática astronômica e <strong>de</strong> geodésia para os seusalunos. A Figura 1 apresenta uma imagem <strong>da</strong>s instalações do antigo Observatório <strong>da</strong>Escola Politécnica.3 Carta <strong>da</strong> 2ª Diretoria do Ministério do Império, <strong>de</strong> n. 1089, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1880. ArquivoNacional - D.D.E./S.P.E..4 Oficio n. 78, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1881, <strong>da</strong> Diretoria <strong>da</strong> Escola Politécnica. Arquivo Nacional -D.D.E./S.P.E..5 Citação retira<strong>da</strong> do Ofício <strong>de</strong> n. 78, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1881, <strong>da</strong> Diretoria <strong>da</strong> Escola Politécnica. ArquivoNacional - D.D.E./S.P.E..6 Informação retira<strong>da</strong> do oficio n. 81, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1880, <strong>da</strong> Diretoria <strong>da</strong> Escola Politécnica. ArquivoNacional - D.D.E./S.P.E..7 I<strong>de</strong>m.179


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 1 - Observatório Astronômico <strong>da</strong> Escola Politécnica. Foto: Acervo do OV.NEste observatório ministrou suas aulas práticas no Morro <strong>de</strong> Santo Antonio atéo início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, quando foi necessário que parte do Morro fosse<strong>de</strong>smontado para <strong>da</strong>r seqüência ao processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização do centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> doRio <strong>de</strong> Janeiro. Esse processo, iniciado nos primeiros anos do século XX, resultou natransferência do observatório para o Morro <strong>da</strong> Conceição, entre os anos <strong>de</strong> 1924 e1926. Nesse período, os bens foram levados para a Chácara do Valongo, nome peloqual o observatório ali, recentemente instalado, ficou conhecido posteriormente. Paralá, foram levados os instrumentos científicos e instalados, inicialmente, a lunetaequatorial, fabrica<strong>da</strong> pela oficina Pazos, e o telescópio equatorial, fabricado por Cooke& Sons 8 , ficando os <strong>de</strong>mais para uma fase posterior.Quando em condições operacionais, o Observatório passou a ser utilizado paraas aulas práticas, que eram ministra<strong>da</strong>s pelo Assistente efetivo <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>astronomia, o Engenheiro civil Orozimbo Lincoln do Nascimento 9 . Orozimbo exerceuessa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> até o seu falecimento, em 1936, e, a partir <strong>da</strong>í, as aulas passaram a serrealiza<strong>da</strong>s em um dos terraços <strong>da</strong> Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no Largo <strong>de</strong>São Francisco (CAMPOS, 1994, p.98).8 Informações retira<strong>da</strong>s do documento: Demonstração dos serviços executados no Morro <strong>de</strong> SantoAntonio para mu<strong>da</strong>nças e instalação provisória do Observatório <strong>da</strong> Escola Politécnica e <strong>da</strong>s respectivasverbas obti<strong>da</strong>s para este fim, entre 1924-1926. Arquivo Nacional - D.D.E./S.P.E..9 I<strong>de</strong>m.180


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TDurante mais <strong>de</strong> duas déca<strong>da</strong>s, mais especificamente entre 1936 e 1958, oObservatório do Morro do Valongo ficou praticamente abandonado, até a criação doCurso <strong>de</strong> Graduação em Astronomia, em 1958, na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Filosofia(FNFi) <strong>da</strong> antiga Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Brasil, quando voltou a ser utilizado para as aulaspráticas <strong>da</strong> Ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Astronomia e Geofísica.Em 1967, com a reforma universitária, a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Brasil passou a ser<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro e o OV passou a ser um órgãosuplementar do Centro <strong>de</strong> Ciências Matemáticas <strong>da</strong> Natureza. Em 2002, se tornouuma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> acadêmica, incorporando o curso <strong>de</strong> graduação <strong>de</strong> Astronomia, atéentão localizado no Instituto <strong>de</strong> Geociência. A Figura 2 apresenta uma imagem <strong>da</strong>sinstalações do OV atuais.Figura 2 - Observatório do Valongo. Foto do autor.A FORMAÇÂO DA COLEÇÃO DE OBJETOS DE C&T DO OVA coleção histórico-científica do OV é forma<strong>da</strong> por instrumentos científicosfabricados no final do século XIX e por aparatos científicos-tecnológicos fabricados noséculo XX. Para representar essas duas <strong>de</strong>nominações, <strong>de</strong> maneira mais simples eunifica<strong>da</strong>, será usa<strong>da</strong> a expressão objetos <strong>de</strong> ciência e tecnologia - C&T, seguindo asugestão <strong>de</strong> Granato e Câmara (2008, 178).181


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOs objetos históricos <strong>de</strong> C&T do OV são originários do ObservatórioAstronômico <strong>da</strong> Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, conhecido posteriormente comoObservatório do Valongo. Foram utilizados em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino e <strong>de</strong> pesquisa naárea <strong>de</strong> Astronomia. Entretanto, a coleção atual é forma<strong>da</strong> por parte <strong>de</strong>sse acervo,que foi se per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>vido a várias situações, como mu<strong>da</strong>nças, abandono,<strong>de</strong>saparecimentos, sucateamentos.De maneira geral, as per<strong>da</strong>s <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> objetos ocorreram como reflexo dosavanços tecnológicos, que <strong>de</strong>terminaram a substituição <strong>de</strong> objetos mecânicos oueletromecânicos pelos aparatos eletrônicos e, mais tar<strong>de</strong>, pelos microprocessadores.Esses avanços causaram uma revolução no funcionamento e na apresentação doinstrumental científico, gerando novos tipos <strong>de</strong> equipamentos. Essa revoluçãotecnológica levou, rapi<strong>da</strong>mente, as instituições <strong>de</strong> ensino e pesquisa - universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,laboratórios, observatórios -, a se <strong>de</strong>frontarem com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> instrumentosantigos e sem utilização prática. Muitas vezes, esses objetos foram mo<strong>de</strong>rnizados,quando possível, ou mais freqüentemente “canibalizados”, quando necessário, ou,simplesmente, esquecidos em porões, <strong>de</strong>ixados <strong>de</strong> qualquer maneira em qualquerlugar, sem que recebessem atenção, o que resultou no <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> muitos<strong>de</strong>les, principalmente entre os anos 1950 e 60 (BRENNI, 2008, p.168). Todo esseprocesso também ocorreu no OV.Ao se comparar dois inventários <strong>da</strong> época do Observatório Astronômico <strong>da</strong>Escola Politécnica com o que está sendo feito atualmente, é possível constatar quemuitos objetos <strong>de</strong>sapareceram. No primeiro inventário, <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 1911, que foisolicitado à Escola Politécnica pela Diretoria do Patrimônio Nacional do Ministério doInterior, encontram-se arrolados 15 instrumentos. Nesse documento, Orozimbo Lincolndo Nascimento, então preparador <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> astronomia, refere-se a eles como osprincipais e pertencentes ao patrimônio nacional. Desses, somente quatro estão entreos objetos até agora reunidos e documentados, são as duas lunetas equatoriais, umacom lente <strong>de</strong> 12cm, fabrica<strong>da</strong> pelas oficinas José Hermi<strong>da</strong>s Pazos (Brasil), em 1880, eoutra com lente <strong>de</strong> 12” <strong>de</strong> diâmetro, <strong>de</strong> 1905, fabrica<strong>da</strong> por Cooke & Sons (Inglaterra),além <strong>de</strong> duas pêndulas, uma fabrica<strong>da</strong> por Payer Favarger (Suíça) e uma por F.Kurssmann & Co. (Suíça). As Figuras 3 e 4 apresentam imagens <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>ssesinstrumentos.182


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 3 - Luneta fabrica<strong>da</strong> pela Oficina<strong>de</strong> José Hermi<strong>da</strong> Pazos. Foto do autor.Figura 4 – Luneta fabrica<strong>da</strong> por Cooke &O Sons – 1905. Foto do autor.Outro inventário, <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 1920, e que tem um acréscimo <strong>de</strong> 1921, é consi<strong>de</strong>radouma peça preciosa do acervo histórico, foi solicitado também a Orozimbo doNascimento, possivelmente por ocasião <strong>da</strong> transferência do observatório para achácara do Valongo, <strong>de</strong>vido à proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s <strong>da</strong>tas. É um manuscrito on<strong>de</strong> estãorelacionados os bens móveis e imóveis, separados por categoria <strong>de</strong> materiais, tendoum valor atribuído para ca<strong>da</strong> item. Está dividido em três partes, a primeira com osbens adquiridos até 1920, a segun<strong>da</strong> relaciona os itens adquiridos no ano <strong>de</strong> 1921 e aterceira parte apresenta fotografias relaciona<strong>da</strong>s a alguns <strong>de</strong>sses bens.Nas seções referentes aos instrumentos científicos e acessórios, estãorelacionados aproxima<strong>da</strong>mente 350 itens, entre lunetas, círculos meridianos,teodolitos, sextantes, astrolábios, pêndulas, cronômetros, cronógrafos, objetivas evários outros acessórios. Desses objetos, poucos pu<strong>de</strong>ram ser encontrados paraserem tratados e expostos. Contudo, como existem objetos que já foram tratados,mas, ain<strong>da</strong> precisam ser pesquisados, é possível que o número <strong>de</strong> objetos quepertenceram a Escola Politécnica aumente. Entre os instrumentos localizados queestão expostos incluem-se os quatro citados no parágrafo anterior e ain<strong>da</strong> uma lunetaazimutal, um astrolábio <strong>de</strong> prisma fabricado por A. Jobin (França), um teodolitofabricado por Gautier, Cronômetros, espectroscópio, estereoscópio, inclinômetro,lanterna <strong>de</strong> laboratório fotográfico, níveis <strong>de</strong> bolha, calibrador <strong>de</strong> nível <strong>de</strong> bolha, relé,vidrarias <strong>de</strong> laboratório e materiais fotográficos.Outro conjunto <strong>de</strong> objetos, que faz parte <strong>da</strong> coleção, constituiu-se dos queforam adquiridos nos anos 1970, para o OV, através do acordo <strong>de</strong> cooperação entre o183


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TBrasil e os países do Leste Europeu. Entre eles, <strong>de</strong>stacamos um micro<strong>de</strong>nsitômetro,fabricado por GII Zeiss Jena (Alemanha), um comparador <strong>de</strong> placas, <strong>da</strong> marca BlinkZeiss Jena, e um medidor <strong>de</strong> placas marca Ascorecord Zeiss Jena.Até o momento, a equipe do MAST já registrou pouco mais <strong>de</strong> 250 itens, sendoque nem todos estão expostos. A exposição dos objetos ocorre em diferentes lugaresdo observatório, no hall <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> estão uma luneta <strong>da</strong> Carl Zeiss, uma lunetameridiana Julius Wanschaff e uma pêndula astronômica, ambas do início do séculoXX; na sala on<strong>de</strong> se encontra a luneta equatorial <strong>da</strong> marca Cooke & Sons, encontra-setambém uma pêndula <strong>da</strong> marca F. Kurssmann, do início do século XX. Os outrosobjetos estão em três salas que foram repara<strong>da</strong>s para recebê-los. Duas <strong>de</strong>ssas salasficam no prédio que é curiosamente chamado <strong>de</strong> “casa <strong>da</strong>s bruxas”. Nesse prédio,está exposta, no an<strong>da</strong>r superior, a luneta equatorial <strong>de</strong> 12cm <strong>de</strong> lente, fabrica<strong>da</strong>, em1880, pela Oficina Hermi<strong>da</strong> Pazos. Essa peça é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s principais <strong>da</strong>coleção, por ser, possivelmente, a mais antiga e por ter sido fabrica<strong>da</strong> no Brasil,comprovando uma capacitação técnica do país já naqueles idos. No an<strong>da</strong>r térreo doprédio estão expostos, em uma vitrine que fica ao redor do pilar que sustenta a luneta“Pazos”, os objetos que pertenceram ao Observatório Astronômico <strong>da</strong> EscolaPolitécnica que já foram citados acima. Os outros objetos, incluindo os do acordoMEC/Leste Europeu, estão expostos no prédio <strong>da</strong> T4, como é chamado, por ter sidoconstruído para receber o teodolito.Wild T4, ali também exposto. As Figuras 5 e 6, aseguir, apresentam imagens do astrolábio <strong>de</strong> prisma e <strong>da</strong> luneta azimutal.Figura 5 - Astrolábio <strong>de</strong> prisma A. Jobin. Fotodo autor.Figura 6 - Luneta azimutal. Foto do autor184


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPortanto, pelo exposto, existe relevância na atribuição <strong>de</strong> importância a essacoleção, que apesar <strong>de</strong> pequena, é rica em informações, não só pelos objetos em si,mas, por estar impregna<strong>da</strong> <strong>de</strong> significados que foram <strong>de</strong>ixados ao longo do caminhotrilhado por eles, marcas que, quando explora<strong>da</strong>s, possibilitarão a reconstrução <strong>de</strong>trajetórias que formam subsídios para a História <strong>da</strong> Ciência.CONTRUINDO BIOGRAFIASOs objetos históricos são testemunhos materiais <strong>da</strong> história e refletem osacontecimentos <strong>de</strong> uma forma indireta. Peter Van Mensh (1992) refere-se ao objetocomo o menor elemento <strong>da</strong> cultura material que possui uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> reconheci<strong>da</strong> ereconhecível em si mesmo, cujos significados e marcas permitem o rastreamento <strong>da</strong>trajetória <strong>de</strong> suas existências, que são construí<strong>da</strong>s através <strong>de</strong> um olhar com enfoqueantropológico sobre objeto.É esse enfoque que permite, segundo Samuel Alberti (2005, p.560), reconstruiro caminho realizado pelo objeto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua confecção, passando pelo seu uso, porseus relacionamentos, por suas mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> “status”, criando-se, então,metaforicamente, a biografia <strong>de</strong>les. Igor Kopytoff 10 sugere que a construção <strong>de</strong>ssabiografia <strong>de</strong>ve ser elabora<strong>da</strong> como se fosse a <strong>de</strong> uma pessoa, fazendo perguntassobre quais os momentos mais importantes <strong>da</strong> trajetória do objeto, quais os diferentesstatus a que ele pertenceu e qual o significado <strong>de</strong>les ao longo do caminho percorrido;o que o faz diferente dos outros iguais a ele; quais os impactos que os várioscontextos pelos quais ele passou <strong>de</strong>ixaram na sua trajetória. Não se tratando, citandoUlpiano B. <strong>de</strong> Menezes (1998, p.180), <strong>de</strong> se recompor um cenário material, mas <strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r os artefatos na interação social.São trajetórias que só po<strong>de</strong>m ser construí<strong>da</strong>s porque esses objetos sãorepresentantes <strong>de</strong> um grupo específico e têm significados e valores recebidos <strong>de</strong>vidoaos vestígios <strong>da</strong>s memórias do grupo que o impregnam. Este é o motivo porque<strong>de</strong>vem ser preservados, para que as futuras gerações possam conhecê-los e estudálos<strong>de</strong> forma que possam enten<strong>de</strong>r a relação entre o passado e o presente e asinfluências exerci<strong>da</strong>s por essa relação. Esses valores são significados legitimamenteatribuídos pelos agentes que interagiram ou pelos que ain<strong>da</strong> interagem com eles,10 Apud ALBERTI, 2005, p. 560, tradução nossa.185


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tvalores percebidos a partir do contato e ou do conhecimento sobre esses objetos eque fazem parte <strong>da</strong> trajetória <strong>da</strong> existência <strong>de</strong>les.O patrimônio <strong>da</strong> cultura material <strong>da</strong> Ciência está carregado <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>,simbolismo, memória e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, reflexos do conhecimento que se tem sobre ele esobre o seu relacionamento com o seu grupo social que os reconhecem comorepresentante autêntico <strong>de</strong> sua memória coletiva. Esta memória está tanto namateriali<strong>da</strong><strong>de</strong>, quanto nos aspectos <strong>da</strong> intangibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois a memória guar<strong>da</strong><strong>da</strong> noobjeto tanto está liga<strong>da</strong> aos aspectos materiais, sobre as substâncias que o constitui,sobre a sua forma e marcas, quanto aos contextos ligados à sua existência. Por isso,a preservação do patrimônio é uma atitu<strong>de</strong> que vai além dos cui<strong>da</strong>dos com osaspectos materiais, que é somente parte <strong>de</strong> um todo, pois ele é formado, também, poruma parte sutil, que são os testemunhos, os significados, os sentimentos e os valoresatribuídos e percebidos por aqueles que participaram <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, do fazer, <strong>da</strong>spráticas que envolviam o objeto, ou os que por elas foram influenciados.São esses critérios e procedimentos que estão estruturando as pesquisas emrelação à coleção dos objetos <strong>de</strong> C&T do OV; são buscas e estudos envolvendo tantoas fontes documentais, como as pessoas envolvi<strong>da</strong>s com eles, que contribuem paratestemunhos, repletos <strong>de</strong> sentimentos e <strong>de</strong> valores percebidos e reconhecidos sobreesses objetos, <strong>de</strong> forma que as informações conti<strong>da</strong>s na documentação arquivística ebibliográfica, soma<strong>da</strong> às informações reuni<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>s marcas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>snos objetos, formem subsídios que aju<strong>de</strong>m à construção <strong>da</strong> História do ensino <strong>da</strong>Astronomia no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Os primeiros resultados aqui apresentados mostram ocaminho que está sendo construído.CONSIDERAÇÕES FINAISTomando por base o que foi apresentado, pelos critérios e procedimentosutilizados, po<strong>de</strong>-se dizer que os objetos históricos <strong>de</strong> C&T do OV formam parte dopatrimônio cultural brasileiro e são um conjunto portador <strong>de</strong> referências à memória <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que o <strong>de</strong>tém; que, apesar <strong>de</strong> estarem ain<strong>da</strong> em processo <strong>de</strong> formação, jápermitem a percepção <strong>de</strong> sua importância através dos estu<strong>da</strong>dos realizados.Esse conjunto <strong>de</strong>ixa claro que mais do que uma narrativa histórica que tentaarticular o passado e o presente, a memória e a história, traz potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> sereconhecem práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que186


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Testão grava<strong>da</strong>s nas marcas <strong>de</strong> suas trajetórias, que pouco a pouco vão construindosuas i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A valorização <strong>de</strong>sse patrimônio fortalece a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica do Observatório do Valongo e dá ao público, através <strong>da</strong>exposição dos seus objetos, o conhecimento dos significados e dos valores, elos <strong>da</strong>história <strong>de</strong>sse patrimônio, além <strong>de</strong> possibilitar, através do estudo e <strong>de</strong> pesquisa sobreeles a formação <strong>de</strong> subsídios em direção à construção <strong>de</strong> uma História do ensino <strong>da</strong>Astronomia no Rio <strong>de</strong> Janeiro.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALBERTI, Samuel.J.J.M. Objects and the museum. ISIS, v.96, n..4, p.559-571, <strong>de</strong>c.2005.ANDRADE, Ana Maria Ribeiro <strong>de</strong> O nascimento <strong>de</strong> um museu <strong>de</strong> ciência. ANDRADE,Ana Maria Ribeiro <strong>de</strong> (Org.). Caminho para as estrelas: reflexões em um museu. Rio<strong>de</strong> Janeiro: MAST, p.8-19, 2007.BRENNI, Paolo. Trinta anos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: instrumentos científicos <strong>de</strong> interessehistórico. In: ANDRADE, Ana Maria Ribeiro <strong>de</strong>. (Org.) Caminho para as estrelas:reflexões em um museu. Rio <strong>de</strong> Janeiro: MAST, p.162-179, 2007.BOECHAT-ROBERTY, Heloisa M., VIDEIRA, Antonio A. P.. Imagens <strong>da</strong> Astronomiana Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro: os 120 anos do Observatório do Valongo. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Observatório do Valongo/UFRJ, 2003.CAMPOS, José.Adolfo. S. Observatório do Valongo: Mais <strong>de</strong> um Século a Serviço doEnsino <strong>de</strong> Astronomia, In: BARBUY, Beatriz; BRAGA, João; LEISTER, Nelson Vani.(Orgs.), Astronomia no Brasil: Depoimentos. São Paulo: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> AstronômicaBrasileira, p. 93-105, 1994.FURTADO, Janaina. L.. O instrumento científico como fonte para a História <strong>da</strong> Ciência:uma história possível. Histórica (São Paulo), v.13, p.1-9, 2006. Disponível em: www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/ anteriores /edicao13 /materia01 /texto01.pdf. Acesso em: 12 <strong>de</strong> Ago. 2008.GONÇALVES José Reginaldo S.. O patrimônio como categoria <strong>de</strong> pensamento. In:ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Memória e patrimônio. Rio <strong>de</strong> Janeiro:DP&A, p. 21-29, 2003.GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos; FURTADO, Janaina L.. Objetos <strong>de</strong>ciência e tecnologia como fontes documentais para a história <strong>da</strong>s ciências: resultadosparciais. In: ANCIB, Encontro Nacional <strong>de</strong> Pesquisa em Ciência <strong>da</strong> Informação, 8,2007, Salvador. Anais... Brasília: ANCIB, p.1-16, 2007. .Disponível em:www.enancib.ppgci.ufba.br/artigos/DMP--035.pdf. Acesso em: 12 <strong>de</strong> Ago. 2008.GRANATO, Marcus; CAMARA, Roberta. N. <strong>da</strong>. Patrimônio, ciência e tecnologia: interrelações.In: CARVALHO, Cláudia S. R.; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sarah F.;ZAMORANO, Rafael (Org.). Um olhar contemporâneo sobre a preservação dopatrimônio cultural material. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>Museu</strong> Histórico Nacional, p.175-204,2008.MENSCH, Peter Van. The object as <strong>da</strong>ta carrier. In: ___. Towards a methodology ofmuseology (Phd Thesis). University o Zagreb, 1992. Disponível em:187


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Twww.muuseum.ee/et/erialane_areng/museoloogiaalane_ki/ingliskeelne_kirjand/p_van_mensch_towar/mensch12. Acesso em: 9 <strong>de</strong> julho 2009.MENESES, Ulpiano T. B. <strong>de</strong>. Memória e cultura material: documentos pessoais noespaço público. Estudos Históricos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 11, n. 21, p. 89-104, 1998.188


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TREFLEXÕES SOBRE RECONHECIMENTO E USOSDO PATRIMÔNIO INDUSTRIALMaria Leticia Mazzucchi Ferreira*As perspectivas teóricas atuais sobre o patrimônio se vinculam, em boamedi<strong>da</strong>, à Convenção sobre a Proteção e Promoção <strong>da</strong> Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>Cultura</strong>l (2005) <strong>da</strong> UNESCO. O reconhecimento <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural e arelação com as i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> grupos subalternos vêm imprimindo novasabor<strong>da</strong>gens sobre as funções do patrimônio nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas. Aopatrimônio monumental ou i<strong>de</strong>ntificado como expressões <strong>de</strong> culturas dominantes, vai-seconstruindo, sobretudo no Brasil, o que Jean-Louis Tornatore <strong>de</strong>nomina comoproliferação, a disseminação do <strong>de</strong>sejo patrimonial e <strong>da</strong> busca memorial nos diferentessetores e sujeitos sociais (TORNATORE, 2008, p.7).Do papel justificador e unificador do sentimento <strong>de</strong> nação, o patrimônio não po<strong>de</strong>,na perspectiva <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas (referindo-me aqui, sobretudo ao casobrasileiro e possibilitando pensar também a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> latino-americana) ser abor<strong>da</strong>doapenas como uma i<strong>de</strong>ologia <strong>da</strong> memória ou testemunhos <strong>de</strong> uma história do po<strong>de</strong>r. Naver<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos atribuir à categoria patrimônio as mais diversas funções que passam<strong>da</strong> sua institucionalização ao sentimento, <strong>da</strong>s políticas públicas às emoções que omesmo suscita.É possível compreen<strong>de</strong>r a busca patrimonial através dos diferentes sentidos quea ela são atribuídos. Nessa perspectiva, tal como afirma Daniel Fabre (2000), pelomenos dois conjuntos discursivos po<strong>de</strong>m ser i<strong>de</strong>ntificados. O primeiro justifica opassado como valor absoluto, apoiado sobre a experiência <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ções comuns aosindivíduos, a <strong>de</strong>terminados grupos, a uma geração. A isso se vincula a idéia <strong>de</strong>* Instituto <strong>de</strong> Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas, rua Barão <strong>de</strong> Santa Tecla, 408, 96010-160- Pelotas, RS. E-mail: leticiamazzucchi@gmail.com. Possui graduação em História pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> (1985), mestrado em Antropologia Social pela UFRGS (1995) e doutorado em Históriapela PUCRS (2002). Atualmente é professor adjunto <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas, atuando noMestrado em Memória Social e Patrimônio <strong>Cultura</strong>l <strong>da</strong> UFPEL. Foi Coor<strong>de</strong>nadora do Curso <strong>de</strong> Bachareladoem Museologia, entre 2006-2008. Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Comissão <strong>de</strong> implantação do Curso <strong>de</strong> Bacharelado emConservação e Restauro <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is Móveis.189


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpatrimônio como algo que não <strong>de</strong>ve mu<strong>da</strong>r, garantindo essa estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do “passadocompartilhado”. O outro repertório retórico é o <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que Fabre <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sem máscara do passado como passado” (2000, p.120), <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>somente por uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão coletiva fun<strong>da</strong>dora. Entre essas duas dimensõeshá que se pensar nos outros sentidos que se vão agregando como a própria noção <strong>de</strong>i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> memória compartilha<strong>da</strong> e <strong>de</strong> usos do passado, tanto pelos po<strong>de</strong>respúblicos quanto pelas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Ao “espírito <strong>da</strong> Nação” vemos, na contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, se contrapor outras formase significados que foram sendo atribuídos ao patrimônio e outros lugares passaram a seratribuídos <strong>de</strong> valor patrimonial. Quando falamos <strong>de</strong> Patrimônio Industrial certamente nãoestamos nos referindo apenas ao aspecto estético ou monumental <strong>de</strong>sses edifícios fabris,<strong>da</strong>s tecnologias, dos maquinários, etc. Estamos, sobretudo, falando <strong>de</strong>sses processos <strong>de</strong>produção, <strong>de</strong>sses aportes científicos e tecnológicos, dos saberes que ali estãoenvolvidos, um processo que começa com a industrialização e que vai sendo superadopelas tecnologias avança<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ssa era pós-industrial.Para o reconhecimento do Patrimônio Industrial foi necessária essa mu<strong>da</strong>nça naconcepção do que é um bem patrimonial, ampliando-o para as mais diferentesexpressões <strong>da</strong> cultura. Importante ressaltar também que o movimento em <strong>de</strong>fesa dolegado industrial teve a sua origem em Inglaterra, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, <strong>de</strong>vido à<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> muitas fábricas durante a segun<strong>da</strong> guerra mundial. A <strong>de</strong>saparição dosexemplares edificados <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s empresas apresentou um impacto direto napercepção que as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s faziam <strong>de</strong>sses espaços industriais, ou seja, o vaziogerou uma reação <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> que aquelas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s constituíam parte <strong>da</strong>i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> local.Ain<strong>da</strong> nesse sentido <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta e valorização <strong>de</strong>ssa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>patrimônio, alguns documentos são fun<strong>da</strong>mentais, como a Carta <strong>de</strong> Nizhny Tagil cujotexto foi aprovado em junho <strong>de</strong> 2003 pelos <strong>de</strong>legados presentes na Assembléia Geral doTICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage),organização transnacional cujo princípio fun<strong>da</strong>mental é o reconhecimento, catalogação epreservação do patrimônio industrial mundial. A Carta se remete ao patrimônio industrialcomo:190


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOs vestígios <strong>da</strong> cultura industrial que possuem valor histórico,tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Esses vestígiosenglobam edifícios e maquinários, oficinas, fábricas, minas e locais <strong>de</strong>processamento e refinação, entrepostos e armazéns, centros <strong>de</strong>produção, transmissão e utilização <strong>de</strong> energia, meios <strong>de</strong> transporte eto<strong>da</strong>s as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais on<strong>de</strong>se <strong>de</strong>senvolveram ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais relaciona<strong>da</strong>s com a indústria, taiscomo habitações, locais <strong>de</strong> culto ou <strong>de</strong> educação .1Essa <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Patrimônio Industrial possibilita pensá-lo numa esfera maisampla, associando-se a ele aquilo que <strong>de</strong>finimos com Patrimônio Ambiental, no que serefere ao uso <strong>da</strong>s fontes naturais, os impactos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> industrial produtiva noespaço no qual está inseri<strong>da</strong>, e o Patrimônio Imaterial, quando nos referimos a saberesque foram sendo ultrapassados pelos novos aportes tecnológicos, às formas <strong>de</strong> viverque estavam associa<strong>da</strong>s a essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas já em <strong>de</strong>suso, tal como aativi<strong>da</strong><strong>de</strong> ferroviária no Brasil pós-déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990.O Patrimônio Industrial se compõe por um conjunto <strong>de</strong> bens materiais eimateriais que fazem parte <strong>da</strong> história industrial, <strong>da</strong> tecnologia e do mundo do trabalho.Os marcos físicos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> patrimonial vão <strong>de</strong> objetos, maquinários, equipamentos,formas produtivas, incorporando saberes, conhecimentos técnicos, avançostecnológicos, edifícios industriais, etc. Em relação ao prédios industriais vemos que, àmedi<strong>da</strong> que avança o discurso patrimonial, vão sendo vistos menos como <strong>de</strong>sfiguraçõesna paisagem urbana, adquirindo, lentamente, um valor que lhes era <strong>de</strong>sconhecido: o <strong>de</strong>patrimônio.No Brasil o reconhecimento e concessão <strong>de</strong> valor patrimonial aos prédiosindustriais, às construções como pontes, ferrovias, e aos objetos, maquinários,testemunhos <strong>de</strong>sses processos tecnológicos, é ain<strong>da</strong> muito recente. As ruínas sombrias<strong>da</strong>s construções industriais, lugares <strong>de</strong>sprovidos <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que lhes <strong>de</strong>ram origeme marcas <strong>de</strong> regiões economicamente abala<strong>da</strong>s, povoaram por muito tempo o cenáriourbano <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s cuja industrialização ficou registra<strong>da</strong> como um período <strong>de</strong> ascensãoeconômica. Nesses locais, testemunhos do crescimento industrial e seu refluxoexpresso no cessar <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o dilema é saber se é possível imaginar-se um futuroquando o fim é inevitável e, ao mesmo tempo, pensar que o fim <strong>de</strong>termina o começo <strong>de</strong>outra história que po<strong>de</strong> ser a do esquecimento e <strong>de</strong>struição e, muito recentemente noBrasil, a <strong>da</strong> patrimonialização, via <strong>de</strong> regra problemática e conflituosa.O trabalho <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação do patrimônio industrial <strong>de</strong>ve passar por umaabor<strong>da</strong>gem necessariamente multidisciplinar que possibilite associar o edificado,1 .Disponível em: http://www.mnactec.cat/ticcih/industrial_heritage.htm.191


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tobjetos, equipamentos, conhecimentos técnicos, etc., com as vivências associa<strong>da</strong>s aesses processos produtivos e tecnológicos. Numa perspectiva mais ampla, éfun<strong>da</strong>mental que se compreen<strong>da</strong> a dimensão simbólica que reveste esses lugares <strong>de</strong>trabalho, as reconfigurações <strong>da</strong> memória e as negociações com o presente.Das pesquisas que vimos realizando acerca <strong>da</strong>s experiências industriais naregião extremo-sul do estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, alguns <strong>da</strong>dos, ao se tornaremrecorrentes, apontam para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> serem melhor trabalhados e abor<strong>da</strong>doscomo categorias possíveis no estudo <strong>de</strong>ssa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> patrimônio. Assim, <strong>de</strong>maneira esquemática po<strong>de</strong>mos apontar para:1 - As narrativas basea<strong>da</strong>s nos locais <strong>de</strong> trabalho, quando estes foramexperiências do passado, ten<strong>de</strong>m a abordá-lo como um lugar aprazível, eixo <strong>de</strong> umafase <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que se apresenta como promessa <strong>de</strong> <strong>de</strong>vir. A fábrica torna-se centro <strong>de</strong>uma vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sejável em contradição ao período em que trabalhavam e <strong>de</strong>ssa narrativa seconstrói o mito <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro, uma remo<strong>de</strong>lação do passado cuja finali<strong>da</strong><strong>de</strong> épossibilitar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> existência no presente. No plano discursivo vê-se que omomento que se aproxima <strong>da</strong> ruptura (o fechamento <strong>da</strong> empresa) é abor<strong>da</strong>do <strong>de</strong>maneira fragmenta<strong>da</strong>, instável e controversa (GOUX, 2002, p.102).2 - É necessário não <strong>de</strong>scolar o objeto patrimonial <strong>de</strong> seu contexto histórico e <strong>da</strong>relação que guar<strong>da</strong> com o lugar ou, melhor dizendo, é fun<strong>da</strong>mental que se recupere osnexos existentes entre o espaço industrial e o bairro, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, os <strong>de</strong>mais lugares <strong>de</strong>trabalho. A idéia <strong>de</strong> paisagem se apresenta aqui como uma categoria importante queleva a compreen<strong>de</strong>r o patrimônio não como um evento isolado em si, masnecessariamente relacional.3 - O aspecto fragmentário e residual com que se apresentam esses vestígiosindustriais no presente, po<strong>de</strong> por vezes ser contraposto às regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> memóriafortaleci<strong>da</strong> no que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> “comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino”, referindo-se aqui aosgrupos <strong>de</strong> ex-trabalhadores, cujo vínculo fun<strong>da</strong>mental é a experiência do passado.4 - Essas “comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino” apresentam-se por vezes como “lugares <strong>de</strong>memória” no sentido que são con<strong>de</strong>nsados <strong>de</strong> lembrança ativa compartilha<strong>da</strong>.5 - A pulsão memorial que acompanha essas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s se traduz, via <strong>de</strong>regra, em buscas patrimoniais (TORNATORE, 2008), investindo lugares, antes marcadopelos rituais cotidianos do trabalho, em lugares patrimoniais.192


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA PATRIMONIALIZAÇÃO DOS ESPAÇOS DE TRABALHOO movimento memorial que po<strong>de</strong>mos observar na contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> apresentanovos atores sociais atuando como sujeitos ativos no processo patrimonial. Ascoletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os grupos <strong>de</strong> memória, as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, clamam para si o quecompreen<strong>de</strong>m como representativo <strong>de</strong> suas trajetórias e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Tal como afirmaPierre Nora, o patrimônio não necessariamente é representativo do corpo social em suatotali<strong>da</strong><strong>de</strong> pois, na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, verifica-se que ele se transformou em um elementoconstitutivo <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> setorial, <strong>de</strong> uma categoria social percebi<strong>da</strong> em suadimensão cultural (NORA, 2002).No caso específico do patrimônio industrial o quadro se apresenta mais complexo<strong>da</strong>do que o sentido <strong>de</strong> pertencimento ou os processos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação que ali sãoarticulados, nem sempre se apresentam <strong>de</strong> forma coesa e o sentimento <strong>de</strong> vazio geradopelo fechamento dos lugares <strong>de</strong> produção, nem sempre é imediatamente substituído pelo<strong>de</strong>sejo patrimonial, o que se explica quando se observa o trauma gerado peloencerramento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o cessar <strong>da</strong>s máquinas, os processos <strong>de</strong>missionais.Recuperar esse tempo <strong>da</strong> per<strong>da</strong>, materializado pelo sucateamento dos lugares <strong>de</strong>trabalho, se aproxima <strong>da</strong>quilo que Paul Ricoeur <strong>de</strong>finiu como memórias impedi<strong>da</strong>s, cujonecessário trabalho <strong>de</strong> luto apresenta-se através <strong>de</strong> fases, sendo uma <strong>de</strong>las a <strong>de</strong>negação (RICOEUR,2000, p.83-87).O patrimônio industrial apresenta-se através <strong>de</strong> uma estética que não se a<strong>da</strong>ptaaos padrões visuais pelos quais compreen<strong>de</strong>mos as expressões artísticas e históricas. Aassociação <strong>de</strong>ssa tipologia patrimonial aos lugares <strong>de</strong> trabalho, aos usos <strong>da</strong> tecnologia,aos avanços técnicos, e como transversal a isso tudo, os saberes e as experiências que<strong>da</strong>li resultam, exige outros mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> compreensão e outras formas <strong>de</strong> emoçãopatrimonial. É fun<strong>da</strong>mental, para o reconhecimento do que seja patrimônio, ainstrumentalização do olhar para que reconheça ali algo a ser preservado. Os programas<strong>de</strong> Educação Patrimonial buscam justamente essa sensibilização dos sujeitos face aoobjeto patrimonial.No caso específico do Patrimônio Industrial essa educação do olhar e dossentidos ain<strong>da</strong> não entrou como um elemento do repertório dos projetos <strong>de</strong> EducaçãoPatrimonial. São raros os programas <strong>de</strong> ensino que incluem o Patrimônio Industrial, sejaatravés <strong>da</strong> História <strong>da</strong>s técnicas, seja no plano <strong>da</strong> gestão patrimonial propriamente dita.No campo do ensino <strong>da</strong> Arquitetura os prédios industriais (categoria ampl’’a na qual estãoos edifícios propriamente ditos, mas também pontes, estra<strong>da</strong>s, vias férreas, etc.) são193


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tlevados em consi<strong>de</strong>ração após a constatação <strong>de</strong> que informam sobre técnicasconstrutivas e constituem interessantes objetos <strong>de</strong> reabilitação.Mas se pensamos que é o ensino fun<strong>da</strong>mental e médio a base <strong>de</strong> formação <strong>de</strong>ci<strong>da</strong>dãos para o futuro, torna-se necessário que o Patrimônio Industrial seja introduzidocomo um eixo transversal <strong>de</strong>ntro dos temas <strong>de</strong> Geografia (os empreendimentosindustriais alteram espaços naturais e formam paisagens), Artes Visuais (pelo viés <strong>da</strong>Arquitetura e do Design), <strong>da</strong> Física, Química, e fun<strong>da</strong>mentalmente, pela ligação com ahistória local.Sendo uma tendência contemporânea <strong>de</strong> patrimonializar esses espaços <strong>de</strong>trabalho através <strong>da</strong> musealização total ou parcial dos mesmos, isso exige uma reflexãomais profun<strong>da</strong>, pois, tal como afirma Jean-Louis Tornatore, a transferência <strong>da</strong> esferaindustrial à esfera cultural não é simples nem evi<strong>de</strong>nte, ao contrário, é complexa econtraditória por vezes (TORNATORE, 2006, p.525).Esse “vitalismo cultural” que se apresenta como futuro para os esvaziados locais<strong>de</strong> trabalho não po<strong>de</strong>ria, sob a idéia <strong>da</strong> proteção, esvaziá-los mais ain<strong>da</strong> quando essamusealização ou outro que seja o projeto para os mesmos, ignorem o trabalho <strong>de</strong> luto, asrupturas, as ressignificações que a memória vai fazendo para a<strong>da</strong>ptar o passado aopresente.É com essa preocupação, inerente ao trabalho com o patrimônio industrial, quenos vemos impelidos a buscar reconhecimento e valorização <strong>de</strong> um empreendimentoindustrial que marcou a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong>, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, entre os finais doséculo XIX até os anos 1950: a Fábrica Rheingantz ou, como também era conheci<strong>da</strong>, aUnião Fabril.A FÁBRICA RHEINGANTZ: EM BUSCA DO RECONHECIMENTO PATRIMONIALPara quem entra na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, sul do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, o complexofabril Rheingantz se impõe ao olhar: na altura do número 210 <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong> <strong>de</strong> mesmonome está o prédio <strong>da</strong> fábrica têxtil, o Clube União Fabril, as ruínas do antigo Cassinodos Mestres e posteriormente Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mutuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a restauração inconclusa doprédio do Grupo Escola Comen<strong>da</strong>dor Carlos Guilherme Rheingantz, a antiga creche, ascasas dos mestres, contramestres, o corredor <strong>de</strong> casas dos operários, a caixa d´água <strong>da</strong>Rheingantz.194


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TImagem 1 - Facha<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fábrica Rheingantz nos anos 1950. Fonte: Acervo fotográfico do CentroMunicipal <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> Inah Martensen, Rio Gran<strong>de</strong>.Esse complexo composto pela fábrica e seus correlatos está num espaço <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que ocupou outrora o centro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cunho industrial: ao lado <strong>da</strong>Estação Férrea, no mesmo quadrilátero <strong>da</strong> Fábrica Nova ou Ítalo-brasileira (indústria têxtilespecializa<strong>da</strong> em algodão) e <strong>de</strong> outras pequenas e médias plantas industriais.Mesmo ao olhar mais <strong>de</strong>satento, é impossível não observar a grandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong>sse prédio fabril, cuja fun<strong>da</strong>ção remonta a 1873 quando o empresário alemão CarlosGuilherme Rheingantz, em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> com o sogro <strong>de</strong> origem portuguesa, inaugura oedifício <strong>da</strong> fábrica <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a trabalhar com a lã proce<strong>de</strong>nte <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s rurais <strong>da</strong>região <strong>da</strong> fronteira do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul com o Uruguai.195


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TImagem 2 - Vista <strong>da</strong> Fábrica Rheingantz no período <strong>de</strong> finalização do prédio que seria inauguradoem 1873. Fonte: Arquivo fotográfico do Centro Municipal <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> Inah Martensen, Rio Gran<strong>de</strong>.Nesses anos que antece<strong>de</strong>ram a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 30, a empresa se expandiu emalguns setores, como o <strong>da</strong> ampliação e especialização do processamento e fabrico <strong>de</strong>tecidos <strong>de</strong> lã, o que implicou pesados investimentos em maquinário e contratação <strong>de</strong>pessoal técnico originários <strong>da</strong> Alemanha. Não fugindo à regra <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> indústriaoitocentista, a União Fabril ou Fábrica Rheingantz operou durante muito tempo com mão<strong>de</strong>-obramarca<strong>da</strong> pela presença do imigrante, num universo multiétnico e cultural que acaracterizaria até os anos finais. A presença do alemão era principalmente nota<strong>da</strong> nossetores mais técnicos, enquanto naqueles <strong>de</strong> produção, os italianos, poloneses eportugueses se apresentavam em gran<strong>de</strong> número. O perfil empreen<strong>de</strong>dor do primeiroRheingantz a coman<strong>da</strong>r a empresa se manifestou em diversos campos, masprincipalmente no <strong>da</strong>s iniciativas sociais, característico do mo<strong>de</strong>lo empresarial do final doséculo XIX, mas inédito numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> como Rio Gran<strong>de</strong>. Essas iniciativas foram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aconstrução <strong>da</strong> Vila Operária, <strong>de</strong>sdobra<strong>da</strong> em dois gran<strong>de</strong>s lotes <strong>de</strong> maior e menorproximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a fábrica, a projetos que aten<strong>de</strong>ssem o trabalhador na íntegra, ou seja,buscando cobrir com ações propostas pela empresa, suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s fun<strong>da</strong>mentais eseu lazer.A adoção <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> medi<strong>da</strong>s que visavam beneficiar e criar vínculosfortes do operário com a empresa resultou na fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mutuali<strong>da</strong><strong>de</strong>,manti<strong>da</strong> por contribuições dos empregados <strong>da</strong> empresa e atuando no atendimento à196


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsaú<strong>de</strong> do operário e sua família, na concessão do auxílio pecuniário aos sóciostemporariamente impedidos <strong>de</strong> trabalhar e do auxílio funeral. O surgimento do “Fundo <strong>de</strong>Auxílios Carlos G. Rheingantz" será o ponto máximo <strong>de</strong>ssas ações, instaurandobenefícios tidos como extraordinários, tais como aqueles concedidos em razão <strong>da</strong> viuvezfeminina, do amparo concedido aos filhos menores, <strong>da</strong> invali<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> algumaci<strong>de</strong>nte na fábrica, e do casamento <strong>de</strong> operárias, formalmente consentido pelos pais. Aorganização <strong>de</strong> uma biblioteca e <strong>da</strong>s aulas, direciona<strong>da</strong>s aos empregados, são reflexos<strong>de</strong>sse perfil do fun<strong>da</strong>dor, representado como um erudito. A biblioteca foi organiza<strong>da</strong> noprédio que abrigava o Cassino dos Mestres e estava entre os fins aos quais se <strong>de</strong>stinavaa Mutuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, constando em seus estatutos que foram aprovados quando <strong>de</strong> suafun<strong>da</strong>ção em 1881. Manter uma biblioteca cumpriria a função <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolver a culturados sócios”, conforme artigo II dos Estatutos <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Mutuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Imagem 3 - Aveni<strong>da</strong> Rheingantz, casa dos mestres, anos 1930. Fonte:Arquivo Fotográfico doCentro Municipal <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> Inah Martensen, Rio Gran<strong>de</strong>.Entre os anos 1920 e 1940, a indústria têxtil sofreu os reveses <strong>de</strong> crisesinternacionais, ain<strong>da</strong> que beneficia<strong>da</strong> por uma situação <strong>de</strong> guerra. Posterior aoincremento produtivo experimentado nos últimos anos <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra, a Rheingantzse viu ameaça<strong>da</strong> por concorrências que vinham <strong>de</strong> fora do estado, através <strong>da</strong> indústriapaulista principalmente. Dos finais <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940 até meados dos anos 50, foi197


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpossível manter um nível <strong>de</strong> produção que possibilitava à empresa funcionar em todos ossetores, garantindo, senão um crescimento, ao menos uma relativa estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, queescondia, <strong>de</strong> fato, os processos conflituosos nos quais se <strong>de</strong>senvolvia a administração doúltimo Rheingantz. O período entre 1950 e 1970 foi marcado pelo avanço em direção aofechamento, a conclusão <strong>de</strong> um ciclo na história <strong>da</strong> empresa, o fim <strong>da</strong> era Rheingantz. Aempresa, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1970 passou a ser controla<strong>da</strong> por outro grupo empresarialpelotense, foi sistematicamente operando em condições que eram ca<strong>da</strong> vez mais<strong>de</strong>sfavoráveis, não tendo conseguido superar os problemas estruturais causados porocasião <strong>da</strong> falência <strong>da</strong> firma Rheingantz, em 1968.Mergulha<strong>da</strong> em dívi<strong>da</strong>s e sentenças judiciais, a INCA têxtil, nome pelo qual foiregistra<strong>da</strong> essa empresa adquiri<strong>da</strong> pelo Grupo Lorea, se manteve funcionandoparcialmente até o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1980. Dos anos 1990 em diante, face aoagravamento <strong>da</strong>s condições financeiras <strong>da</strong> fábrica e <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> investir namanutenção básica dos prédios que compõem o complexo fabril, a INCA foi sendoabandona<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> dia, o que ficava <strong>de</strong>monstrado tanto pela situação <strong>de</strong>comprometimento estrutural do edifício, como pelo <strong>de</strong>sânimo e fim <strong>da</strong>s expectativas <strong>de</strong>retorno aos velhos tempos, sentimento que, vivenciado coletivamente por aqueles queain<strong>da</strong> freqüentavam a Rheingantz, parecia mantê-la ain<strong>da</strong> viva.No período em que foi inicia<strong>da</strong> a pesquisa na fábrica, em 1998 (pesquisa <strong>de</strong>doutoramento na PUCRS) a situação já era dramática no que se refere ao conjuntoarquitetônico Rheingantz como um todo (FERREIRA,2002). Dentro <strong>da</strong> fábrica váriospavilhões estavam praticamente em ruínas, sem cobertura no telhado, <strong>de</strong>ixando expostasmáquinas <strong>de</strong> todos os tipos e tamanhos. Nos setores mais vinculados ao planoadministrativo, como os escritórios, a situação não era menos grave, pois, <strong>de</strong>vido a nãoser injetado mais nenhum recurso em melhorias básicas, umi<strong>da</strong><strong>de</strong>, insetos e roedores setornaram os maiores agentes <strong>da</strong> <strong>de</strong>pre<strong>da</strong>ção. Depre<strong>da</strong>ção, aliás, que já era, naquelemomento, parte <strong>da</strong> rotina <strong>da</strong> fábrica, constata<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> manhã pelo ex-funcionário queocupava a função <strong>de</strong> vigia: <strong>de</strong> pe<strong>da</strong>ços que eram roubados <strong>da</strong> gra<strong>de</strong> em ferro quecircun<strong>da</strong>va o jardim <strong>da</strong> Fiação, <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> cobre retirados dos postes <strong>de</strong> luz, até canos,telhas, enfim, uma <strong>de</strong>pre<strong>da</strong>ção contínua, feita, conforme afirmavam os ex-funcionáriosque ali permaneciam, por ex-operários <strong>da</strong> empresa Inca, revoltados com o nãopagamento <strong>de</strong> causas trabalhistas já ganhas. A tentativa <strong>da</strong> empresa <strong>de</strong> tomar as casasocupa<strong>da</strong>s por ex-funcionários gerava também sentimentos <strong>de</strong> revolta e a facili<strong>da</strong><strong>de</strong> comque aceitavam falar e ser entrevistados, em muitos casos pareceu estar associa<strong>da</strong> aalguma estratégia <strong>de</strong> <strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> aos problemas do grupo.No contexto <strong>de</strong>ssas198


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong>sse clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança e certa animosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, é queboa parte <strong>da</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>.Imagem 4 - Tear semi-automático <strong>de</strong> procedência belga. Fonte: Foto <strong>da</strong> autora.No que se refere ao material documental, os problemas se somavam. Da Ata <strong>de</strong>fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> empresa aos livros com registros <strong>de</strong> produção, bem como diários <strong>de</strong>mestres, além <strong>de</strong> objetos e fórmulas utiliza<strong>da</strong>s pelos antigos técnicos, tudo estavadisposto num sótão sujeito à umi<strong>da</strong><strong>de</strong> que vinha do forro, dos vidros quebrados <strong>da</strong>smansar<strong>da</strong>s, e a imensa população <strong>de</strong> insetos, roedores e morcegos que habitavam olocal.Do complexo Rheingantz, alguns locais como a creche e a escola se apresentamnum vazio <strong>de</strong> documentos institucionais. A creche à qual se referem os entrevistadosocupou o lugar do antigo Jardim <strong>de</strong> Infância, tendo suas instalações concluí<strong>da</strong>s na199


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdéca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940. De igual forma, sobre a escola, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no início do século XX emunicipaliza<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, não foi possível encontrar documentação específica.Através <strong>da</strong>s falas, do registro fotográfico em posse <strong>de</strong> particulares, alguns aspectosforam aparecendo como <strong>da</strong>dos, uma vez que eram recorrentes nas narrativas.O prédio central é impactante pelo tamanho e pela beleza que ain<strong>da</strong> insiste emse manter apesar do tempo, ao alto está gravado: INCA Têxtil Industrial, nome quesubstituiu o <strong>da</strong> Companhia União Fabril, a fábrica Rheingantz, em 1970. Ela está ali, etudo o que ain<strong>da</strong> persiste são indícios <strong>de</strong> outro tempo, o tempo <strong>da</strong> fábrica. Em seqüência,primeiro se vê o pavilhão do <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> tecidos, em segui<strong>da</strong> a porta <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> <strong>da</strong>gerência, <strong>de</strong> acesso restrito e que levava diretamente, através <strong>de</strong> uma esca<strong>da</strong>ria, às<strong>de</strong>pendências <strong>da</strong> administração superior <strong>da</strong> empresa. Ao lado <strong>de</strong>ssa porta está o portãocentral, via <strong>de</strong> acesso ao mundo <strong>da</strong> fábrica e logo se vê a gran<strong>de</strong> caixa d’água, um dosícones <strong>da</strong> Rheingantz, <strong>de</strong>fronte ao imenso pavilhão <strong>de</strong>stinado a fiação e tecelagem. Oque vem a seguir formava, com a fábrica, um complexo arquitetônico <strong>de</strong> inspiraçãogermânica, dividido entre construções para uso coletivo e as residências <strong>de</strong>contramestres, mestres e altos funcionários <strong>da</strong> empresa. Esse complexo edificado foi amaterialização <strong>de</strong> projetos e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s impostas pelo crescimento <strong>da</strong> empresa. Oprincípio <strong>da</strong> harmonização entre os <strong>de</strong>siguais se encontra aplicado a esse espaço, on<strong>de</strong>a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> se aliou a inspirações e <strong>de</strong>sejos mais subjetivos, buscando reconstruir,pelo estilo arquitetônico adotado e materiais utilizados, como coberturas em ardósia porexemplo, um cenário que imitasse paisagens urbanas <strong>da</strong> Alemanha. Das casas paraoperários, que é o primeiro contato visual <strong>de</strong>scrito, dois agrupamentos po<strong>de</strong>m seri<strong>de</strong>ntificados, a Vila São Paulo e o Corredor. Essas habitações <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aostrabalhadores <strong>da</strong> fábrica começam a ser construí<strong>da</strong>s na primeira déca<strong>da</strong> do século XX eaté meados dos anos 1950 eram <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aos operários homens, chefes <strong>de</strong> família. AVila São Paulo é visualiza<strong>da</strong> primeiramente através do correr <strong>de</strong> casas em fita, naAveni<strong>da</strong> Getúlio Vargas, e eram <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aos contramestres. Essas casas <strong>de</strong>alvenaria, com facha<strong>da</strong> austera, duas janelas e porta e um pequeno jardim, diferembastante <strong>da</strong>quelas que se encontram no interior <strong>da</strong> vila, que são casas originalmenteconstruí<strong>da</strong>s em ma<strong>de</strong>ira, cedi<strong>da</strong>s a funcionários do setor produtivo.No que se refere aos prédios <strong>da</strong> fábrica, a austeri<strong>da</strong><strong>de</strong> e economia <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes éuma característica visível. Com elementos arquitetônicos <strong>de</strong> inspiração germânica, oprédio evoca atualmente sensações contraditórias, como a soli<strong>de</strong>z e a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Oestado atual do imóvel, <strong>de</strong> visível <strong>de</strong>sgaste, sugere um diálogo estabelecido com aconstrução que lhe faz contraposição, que é o cemitério <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia.200


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEssa composição espacial, que po<strong>de</strong> ser expressa como uma metáfora <strong>da</strong> morte, éreafirma<strong>da</strong> quando, atravessando a Rua dois <strong>de</strong> Novembro e seguindo pela Aveni<strong>da</strong>Rheingantz terá necessariamente o observador que se <strong>de</strong>ter na frente do prédio <strong>de</strong>número 194, on<strong>de</strong> funcionou originariamente o Cassino dos Mestres e posteriormente aBiblioteca, se<strong>de</strong> <strong>da</strong> Mutuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a Cooperativa. Nesse prédio apresenta-se sintetiza<strong>da</strong>to<strong>da</strong> a idéia do abandono, não restando hoje um pouco mais do que algumas pare<strong>de</strong>s eparte <strong>da</strong> facha<strong>da</strong> on<strong>de</strong> aparece um dos elementos mais emblemáticos <strong>da</strong>s construções<strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aos alemães, o enxaimel, que cumpria, conforme relato <strong>da</strong> filha <strong>de</strong> um dosmestres, o papel <strong>de</strong> tornar mais familiar aos técnicos alemães que vinham para a fábrica,o ambiente que, por fatores climáticos, naturais, culturais, era tão diverso do país original.Ao lado, restando praticamente apenas as pare<strong>de</strong>s esta o Grupo Escolar Comen<strong>da</strong>dorCarlos Guilherme Rheingantz e que é acompanhado pelo que foi o prédio <strong>da</strong> Creche. Oque vem a seguir é um conjunto <strong>de</strong> moradias que começa por um corredor na lateral <strong>da</strong>fábrica on<strong>de</strong> se encontra o prédio que abrigava o Ambulatório, até finais dos anos 1960.Ao lado, outro corredor <strong>de</strong> casas construí<strong>da</strong>s numa arquitetura bastante <strong>de</strong>spoja<strong>da</strong>, portae janela que se <strong>de</strong>stinava ao operariado que ocupava uma escala mais inferior nahierarquia <strong>de</strong> ofícios e cargos <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Rheingantz, e eram chama<strong>da</strong>s Casas doCorredor.O retorno à Aveni<strong>da</strong> Rheingantz e a observação do que se mostra ao olhar,reafirmam essa idéia <strong>de</strong> uma topologia que reflete uma forte hierarquização do espaço,pois do lado direito <strong>de</strong> quem observa postado em direção ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> estão ascasas dos funcionários <strong>de</strong> mais alta posição técnica e administrativa que ain<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong><strong>de</strong> 60 eram quase exclusivamente alemães, e do outro lado <strong>da</strong> rua, excetuando o prédioon<strong>de</strong> morou um dos filhos do fun<strong>da</strong>dor, são to<strong>da</strong>s casas <strong>de</strong> operários pertencentes a umnível médio na pirâmi<strong>de</strong> <strong>de</strong> cargos e ofícios sobre a qual se estruturava a organizaçãointerna <strong>da</strong> empresa.Desse conjunto <strong>de</strong> imóveis, incluindo o complexo fabril, o EsporteClube União Fabril, e a Vila Operária (parte interna), todos estão enquadrados na LeiMunicipal <strong>de</strong> número 4556 que “classifica edificações <strong>de</strong> interesse sociocultural econce<strong>de</strong> benefícios aos proprietários para que sejam preserva<strong>da</strong>s”, garantindo o abono<strong>da</strong> taxa do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) aos efetivos moradores ouproprietários <strong>de</strong>sses prédios, no compromisso <strong>de</strong> que sejam manti<strong>da</strong>s as característicasoriginais do mesmo.Lugares <strong>de</strong> luto. Essa idéia <strong>da</strong> morte como metáfora que represente a <strong>de</strong>cadênciae o fechamento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Fábrica Rheingantz está referencia<strong>da</strong> nas falas dos exoperários,surgindo com recorrência a categoria ruína que indica a situação <strong>de</strong> gra<strong>da</strong>tiva,201


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tconstante e crescente <strong>de</strong>pre<strong>da</strong>ção que vem sofrendo o prédio <strong>da</strong> fábrica. Mas há outrosentido que po<strong>de</strong> ser atribuído ao termo “ruínas”, o do irrefreável <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> umaempresa que é na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> representado como o malogro <strong>de</strong> um projeto, a falência nopresente <strong>de</strong> um sonho do passado.O prédio <strong>da</strong> antiga Fábrica Rheingantz e seu entorno formam um corpo memoriala medi<strong>da</strong> que ativam, através <strong>da</strong> visuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, dos inúmeros signos visuais ali dispostos,um cenário cujo mo<strong>de</strong>lo original se encontraria no passado.Essa idéia <strong>de</strong> um local <strong>de</strong>trabalho sobrevivendo através <strong>de</strong> escombros aparece nas narrativas como uma metáforado empobrecimento gra<strong>da</strong>tivo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que veio em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> retração <strong>da</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> industrial.Transpondo os portões principais se tem acesso a portaria, atualmente <strong>de</strong>sativa<strong>da</strong>como, aliás, todo o complexo, e que era o lugar por on<strong>de</strong> todos os funcionários <strong>de</strong>veriampassar e no qual eram feitos os primeiros procedimentos <strong>de</strong> controle <strong>da</strong> freqüência eassidui<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa portaria do começo dos anos 2000 não tinha mais nenhuma função <strong>de</strong>controle, porém continuava sendo investi<strong>da</strong> <strong>de</strong> significado pois era como um últimoreduto, a última resistência a ser transposta por alguns ex-funcionários aposentados queain<strong>da</strong> persistiam em freqüentar diariamente a fábrica. Dentro <strong>da</strong> cabine envidraça<strong>da</strong>estavam ain<strong>da</strong> alguns objetos que no passado eram fun<strong>da</strong>mentais como o quadro <strong>de</strong>chaves <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as seções <strong>da</strong> empresa. Na portaria ficou, até o fechamento total <strong>da</strong>firma, um funcionário aposentado, do “tempo dos Rheingantz”(expressão utiliza<strong>da</strong> pelosentrevistados para falar <strong>de</strong>ssa outra temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, do tempo do trabalho e <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>,contrastado com o tempo do presente e <strong>da</strong> memória), que diariamente, durante muitosanos, cumpria um ritual <strong>de</strong> reinvenção do tempo: to<strong>da</strong>s as semanas, <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> a sextafeiraencarregava-se <strong>de</strong> abrir os portões <strong>da</strong> fábrica nos horários que durante muitasdéca<strong>da</strong>s foram aqueles que ritmaram o trabalho, abrir às 7h15min, fechar às 11h30min,reabrir às 13h30min e encerrar às 17h30min. Sr. Hilso, esse ex-funcionário <strong>da</strong>Companhia União Fabril foi um dos exemplos <strong>de</strong> pessoas, egressas <strong>da</strong> fábrica, que ain<strong>da</strong>a freqüentavam e não raro algum ex-operário (e fun<strong>da</strong>mentalmente as mulheres)entravam na fábrica para conversar com quem ali estivesse, para encontrar-se comoutros, para constatar, mais uma vez, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do retorno do passado.Representando uma guar<strong>da</strong> que não mais existia, Sr. Hilso e os outros aposentadoscontinuavam em sua ron<strong>da</strong> diária ao local que no passado abrigou o trabalho.202


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TImagem 5: Sr. Hilso ao lado <strong>da</strong> portaria e com a bicicleta que lhe havia sido presentea<strong>da</strong> por ummestre alemão nos anos 1950. O “guardião <strong>da</strong> Rheingantz”, como ele próprio se apresentava, veioa falecer em 2007 sem ver nenhuma ação patrimonial resguar<strong>da</strong>ndo o seu lugar <strong>de</strong> memória evi<strong>da</strong>. Fonte: Foto <strong>da</strong> autora.Entrando no espaço <strong>da</strong> fábrica, ultrapassando o núcleo on<strong>de</strong> ficavam os setores<strong>de</strong> Pessoal, Expedição e no piso superior, administração e gerência, se tinha acesso aopátio central, ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para to<strong>da</strong>s as seções <strong>de</strong> produção. Entrar nos diversospavilhões <strong>da</strong> Rheingantz era ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente incursionar no espaço <strong>da</strong> ruína, gran<strong>de</strong>svazios on<strong>de</strong>, no tempo evocado pelas falas, existia um intenso fluxo <strong>de</strong> trabalhadores.Esses 155.000m² <strong>de</strong> superfície e 45.000m² <strong>de</strong> área coberta, on<strong>de</strong> muito pano foi tecido,muito tapete foi fabricado e muita vi<strong>da</strong> circulou, abrigam o silêncio e estranhas esculturasnaturalmente forma<strong>da</strong>s pelo processo <strong>de</strong> ferrugem e <strong>de</strong>generação do maquinário emferro, alguns já totalmente <strong>de</strong>struídos. Percorrer esses vazios se tornava uma espécie <strong>de</strong>incursão em planos sobrepostos quando se tem em mente o que alguns materiais <strong>de</strong>divulgação <strong>de</strong>screviam, tal como a edição comemorativa dos 85 anos <strong>da</strong> empresa feitapela revista América Magazine, que apresentava imagens <strong>de</strong> uma fábrica mo<strong>de</strong>lo, comtodos os setores funcionando totalmente, com fotografias que tentavam mostrar ummundo <strong>de</strong> total assepsia, mo<strong>de</strong>rnização, organização e harmonia entre trabalhador efábrica (América Magazine,1959).O circuito <strong>de</strong> visitação foi o proposto pela matéria <strong>da</strong> revista. A primeira seção aser visita<strong>da</strong> seria o Galpão <strong>da</strong> Lã, on<strong>de</strong> era feita a apartação <strong>da</strong> lã dos bolsões, logo queessa chegava <strong>de</strong> seus locais <strong>de</strong> origem. O Galpão <strong>da</strong> Lã é um local com poucas203


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Taberturas, to<strong>da</strong>s localiza<strong>da</strong>s na parte superior, assim essa enorme peça parece imersana escuridão e com uma atmosfera pesa<strong>da</strong>.O cenário que a lembrança constróivirtualmente é <strong>de</strong> um lugar on<strong>de</strong> o trabalho era pautado pela força física, contaminadocom cheiros e viscosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mergulhado em sombras, um ambiente cuja <strong>de</strong>scrição po<strong>de</strong>ser a <strong>de</strong> locais fabris nos primórdios <strong>da</strong> industrialização. Essa atmosfera prossegue naseção contígua ao galpão,o setor <strong>de</strong> lavagem <strong>da</strong> lã com máquinas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>sdimensões, a maior <strong>de</strong>las <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Leviatã. Ain<strong>da</strong> no setor <strong>de</strong> produção, à esquer<strong>da</strong>ficava a Fiação, a Tecelagem, o Fio Penteado, sendo a última seção em direção ao sul, ados Tapetes e no lado oposto ficavam a Oficina Mecânica e Elétrica, a Carpintaria, aUsina ou casa <strong>da</strong>s máquinas, o laboratório <strong>de</strong> química, os escritórios <strong>de</strong> engenharia eplanejamento, o setor <strong>de</strong> mostras, o Setor <strong>de</strong> Urdição. No torreão <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> se encontrado lado esquerdo <strong>de</strong> quem entra o Setor <strong>de</strong> Pessoal, e no lado oposto o que foi, até1968, a Expedição. No an<strong>da</strong>r superior estavam concentrados todo o setor financeiro eadministrativo <strong>da</strong> fábrica, e a gerência, um lugar inacessível para a gran<strong>de</strong> maior partedos funcionários e que parecia ser, no conjunto <strong>de</strong>sses lugares esvaziados, mantidorazoavelmente conservado e limpo, <strong>da</strong>ndo a impressão <strong>de</strong> ter sido protegido contra oacelerado processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste e <strong>de</strong>struição do restante <strong>da</strong> empresa.A sala <strong>da</strong> gerência era, entre 1998-99, um espaço resguar<strong>da</strong>do, mantido pelocui<strong>da</strong>do <strong>da</strong> única funcionária que, nos últimos anos, ocupava esse an<strong>da</strong>r e queperiodicamente arejava a sala, limpava os móveis, lustrava o assoalho comprometidopela ação dos cupins. Nessa sala, elementos emblemáticos <strong>da</strong> antiga Rheingantzestavam expostos sobre móveis e pare<strong>de</strong>s, tal como um quadro pintado em 1890 on<strong>de</strong>aparece o primeiro prédio a ser ocupado pela Fábrica Rheingantz, um retrato pintadocom o busto do fun<strong>da</strong>dor, um móvel relógio que a funcionária i<strong>de</strong>ntifica como “do tempodos alemães” bem como todo o mobiliário. Dessa sala, como aliás <strong>de</strong> todo o chamadosetor administrativo, as aberturas proporcionavam uma visão bastante ampla do pátiocentral e do corredor que levava até as seções posteriores <strong>da</strong> fábrica. Subir a estreitaesca<strong>da</strong> <strong>de</strong> ferro em formato caracol nos remete a uma or<strong>de</strong>m disciplinar e hierárquicaque previa o acesso a esse pavimento em casos que, via <strong>de</strong> regra, se enquadravam empunições, <strong>de</strong>missões ou, mais raramente, a busca dos chefes superiores para algumasolicitação <strong>de</strong> caráter pessoal. De to<strong>da</strong> forma, o acesso a esse mundo era normalmenteinvestido <strong>de</strong> temor e vergonha tal como aparecem nas falas dos ex-funcionários quandose referem ao setor superior <strong>da</strong> fábrica, topológica e simbolicamente localizado ao alto.A imagem <strong>da</strong> <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção do espaço assume sua expressão mais dramáticaquando se entra naquilo que foi durante muitas déca<strong>da</strong>s o centro propulsor do processo204


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong> produção, a Usina. No boletim <strong>da</strong> Fábrica, órgão <strong>de</strong> divulgação interna <strong>da</strong> Rheingantze publicado até finais dos anos 1950, esse setor é <strong>de</strong>scrito como “no corpo humano ocoração faz circular o sangue necessário à reconstituição <strong>da</strong>s células gastas pela fadiga;em nossas fábricas este papel é reservado à Usina, ela fornece a energia elétrica, ovapor e a água necessários para os diversos processos <strong>da</strong> fabricação do tecido eparando a usina, pára tudo” (Boletim do CUF,1952). É justamente o coração <strong>da</strong> fábricaque se transformaria no maior reflexo <strong>de</strong> seu abandono: a antiga esca<strong>da</strong> em ferro que dáacesso à Usina é a metáfora mais forte disso, pois, através <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>graus carcomidospela ferrugem, o visitante vai sendo conduzido a um espaço imerso na clari<strong>da</strong><strong>de</strong>, nobranco, como se fosse esse o tom que por sua intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse traduzir ointraduzível <strong>da</strong> ruína. A peça, cujas pare<strong>de</strong>s eram cobertas por gran<strong>de</strong>s janelas, estavamno período visitado já praticamente sem os vidros, aparecendo como suspensa na luzsolar, que entra direto através <strong>da</strong>s vidraças quebra<strong>da</strong>s e ilumina o local ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramenteinvadido por pombas que fizeram <strong>da</strong>li seu espaço <strong>de</strong> aninhamento. Nenhum dos motores,bombas, relógios contadores, funciona mais. Apenas os pássaros estão ali e<strong>de</strong>safiadoramente ocupam o coração <strong>da</strong> fábrica, indiferentes a tudo.A incursão nos pavilhões que ain<strong>da</strong> mantêm algum maquinário como a fiação, atecelagem e as urdições, propõe o contato com uma estética própria gera<strong>da</strong> por objetosque, ao contrário <strong>da</strong>queles reconheci<strong>da</strong>mente <strong>de</strong> valor museológico, adquirem sentido seentendidos como um texto on<strong>de</strong>, pelo trabalho <strong>de</strong> recuperação feito pela memória, sãoentão investidos <strong>de</strong> valor afetivo, pois representam um pouco <strong>da</strong> trajetória social do lugare dos sujeitos. No entanto, se a construção industrial é investi<strong>da</strong> <strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> valorestético, requer para seu reconhecimento outra percepção que associe espaço, trabalhoe trajetórias. A constatação do risco <strong>de</strong> per<strong>da</strong> <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>sse local <strong>de</strong> memóriascolocaria em questão o <strong>de</strong>saparecimento dos traços mnemônicos em si. Exemplar dissosão os relatos <strong>de</strong> algumas ex-operárias que diziam virar a cabeça ao passar pela frentedo prédio, para não ver a <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção.No que se refere às pessoas que moravam nas casas pertencentes à Rheingantzessa vivência <strong>de</strong> um cotidiano pautado pela fábrica está muito forte nas falas, ain<strong>da</strong> quediferenciado dos que, durante a maior parte <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>, viviam no interior do mundo<strong>de</strong>limitado pelos portões. Elemento centralizador <strong>de</strong> uma fase <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, evocar os tempos<strong>da</strong> Rheingantz é também evocar um passado <strong>de</strong> infância ou juventu<strong>de</strong> mergulhado numatrama social na qual a relação do sujeito com os referenciais espaciais é estruturante narecor<strong>da</strong>ção. Nessa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> estabeleci<strong>da</strong> nos limites <strong>da</strong> fábrica, as vivências <strong>de</strong>infância estão vincula<strong>da</strong>s ao cotidiano fabril. Assim, ficar na porta esperando para ver sair205


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ta multidão <strong>de</strong> funcionários ao fim <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> turno, fazia parte <strong>de</strong>ssa sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> gera<strong>da</strong>nesse ambiente (o barulho dos tamancos, as cenas urbanas).As vivências paralelas ao mundo do trabalho configuram um cenário <strong>de</strong>estratificações sociais que no caso dos funcionários alemães adquiria visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> nãoapenas por suas residências arquitetonicamente diferencia<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais, erigi<strong>da</strong>sobe<strong>de</strong>cendo a um padrão arquitetônico <strong>de</strong> forte influência germânica, com doispavimentos e facha<strong>da</strong> ornamenta<strong>da</strong> com elementos <strong>de</strong>corativos, além <strong>de</strong> seremedifica<strong>da</strong>s com recuo <strong>da</strong> calça<strong>da</strong>, através <strong>de</strong> um pequeno jardim, mas fun<strong>da</strong>mentalmente,no que se refere à forma <strong>de</strong> ocupação e interação <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse mesmo espaço. AsCasas dos Mestres, como são referi<strong>da</strong>s, eram também estratifica<strong>da</strong>s entre si à medi<strong>da</strong>que obe<strong>de</strong>ciam a uma lógica <strong>de</strong> hierarquia <strong>de</strong> cargos e saberes vigentes no interior doprocesso organizativo e produtivo <strong>da</strong> Rheingantz. A língua se apresentava como umelemento emblemático <strong>de</strong>ssa diferenciação e, mais do que isso, um impedimentoexplícito para uma comunicação com os <strong>de</strong>mais grupos. Mesmo que soubessem falar oportuguês, tal como afirma uma <strong>de</strong>poente, filha <strong>de</strong> um mestre alemão, era prescrito quese comunicassem entre si no idioma alemão, permitindo assim uma continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>tradição e, ao mesmo tempo, uma estratégia clara <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre as<strong>de</strong>mais etnias e classes sociais.Essas <strong>de</strong>marcações sociais, engendrando seccionamentos no mesmo espaço <strong>de</strong>convivência, tinham um perfil marca<strong>da</strong>mente étnico e apenas com algumas ressalvas,brasileiros po<strong>de</strong>riam ascen<strong>de</strong>r a cargos mais elevados <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> estrutura administrativa<strong>da</strong> empresa. Quando isso ocorria, era garantido ao funcionário e sua família uma relativaaceitação por parte dos alemães sem, no entanto, abrirem espaço para uma aproximaçãomais íntima.Um <strong>da</strong>do bastante recorrente nas entrevistas feitas é o que se refere aos horários<strong>de</strong> entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong> quando então a imagem utiliza<strong>da</strong> para representar o gran<strong>de</strong> número<strong>de</strong> pessoas é a do formigueiro. Principalmente no horário <strong>de</strong> final do turno <strong>da</strong> manhã eraum movimento intenso, tal como narravam os entrevistados, <strong>da</strong>do que no contingente <strong>de</strong>operários que saíam predominavam mulheres ansiosas por chegar à casa a tempo <strong>de</strong>provi<strong>de</strong>nciar o almoço. Nos horários <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>veriam passar pela revista e isso,retar<strong>da</strong>ndo a saí<strong>da</strong>, diminuía o tempo que permaneciam fora. Ao lado <strong>da</strong> portaria ain<strong>da</strong>se encontrava o instrumento utilizado para a revista, uma cor<strong>da</strong> que ao ser puxa<strong>da</strong>po<strong>de</strong>ria acen<strong>de</strong>r uma pequena lâmpa<strong>da</strong> vermelha. Quem procedia à revista <strong>da</strong> alafeminina eram duas funcionárias e esse era ao mesmo tempo um momento <strong>de</strong>206


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tansie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>do que muitas tentativas <strong>de</strong> pequenos furtos, como lãs, foram flagra<strong>da</strong>s alie, por outro lado, fator <strong>de</strong> irritação para aquelas que necessitavam chegar cedo a casa.O horário <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> era lembrado como um momento <strong>de</strong> aglutinação <strong>da</strong> população<strong>de</strong> trabalhadores, no qual apesar <strong>da</strong> pressa em sair principalmente <strong>da</strong>s funcionárias queeram donas-<strong>de</strong>-casa, era para outros uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> encontros com colegas quetrabalhavam em outros setores, <strong>de</strong> trocas e combinações e do barulho causado pelamovimentação <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira multidão. A visão <strong>da</strong> multidão sendo libera<strong>da</strong> pelafábrica traz a idéia <strong>de</strong> uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tanto no sentido <strong>de</strong> envolver o que está em torno,como compor uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> com ele, a composição do urbano, imagens <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>que na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950 apresentava um gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> trabalhadores naindústria.O bon<strong>de</strong> que passava pela frente <strong>da</strong> fábrica é referenciado em alguns relatoscomo um dos meios utilizados pelos que moravam fora do circuito <strong>da</strong> fábrica. Pegar obon<strong>de</strong> para ir ao trabalho era prática comum, para aqueles que moravam longe, e um dosprimeiros trajetos <strong>de</strong>sse meio <strong>de</strong> transporte na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> foi justamente aquele que percorriaa chama<strong>da</strong> Linha do Parque, na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> atual Aveni<strong>da</strong> Presi<strong>de</strong>nte Vargas, passandopelas fábricas Rheingantz, pela Ítalo-Brasileira e seguindo em direção ao centro <strong>de</strong> RioGran<strong>de</strong>.Porém o meio <strong>de</strong> transporte mais utilizado era a bicicleta, para aqueles quemoravam longe. Comprar uma bicicleta era parte <strong>da</strong> autonomia adquiri<strong>da</strong> com o saláriopercebido na fábrica e seu uso foi bastante popularizado nos anos 1950, sendo, noentanto, mais evocado nas recor<strong>da</strong>ções o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> operárioscaminhando juntos em direção ao trabalho. Nos horários <strong>de</strong> começo do turno matutino,principalmente, a imagem recupera<strong>da</strong> nos <strong>de</strong>poimentos é a formação <strong>da</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>conhecidos que se juntavam para cumprir o trajeto em direção à Rheingantz. O grupo <strong>de</strong>moças, funcionárias <strong>da</strong> fábrica, adquire movimento na narrativa, percorre as ruas <strong>da</strong>Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Nova, vai-se avolumando ca<strong>da</strong> vez mais pela a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> mais gente pelocaminho, e o ruído dos tamancos vai preenchendo a rua. As ruas, o bairro, asociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> que no espaço é engendra<strong>da</strong>, vai sendo trilha<strong>da</strong> nos trajetos <strong>da</strong> memória.LUGARES: OS FERROVIÁRIOSO conjunto formado pela Fábrica Rheingantz, Viação Férrea do Rio Gran<strong>de</strong> do Sule Companhia <strong>de</strong> Fiação e Tecelagem Ítalo-Brasileira (ou Fábrica Nova) configurava-secomo um pólo centralizador <strong>de</strong> manifestações políticas e sociais, pela proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>207


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgeográfica entre os três estabelecimentos. Referências a isso eram feitas por algunsentrevistados para reafirmar a importância que assumia a região no contexto político <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a repercussão <strong>de</strong> movimentos que iniciavam através dos ferroviários. Ao mesmotempo, essa proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a Viação Férrea e o Quartel do Exército era disposta numare<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais que se estabelecia principalmente entre os rapazes e asoperárias <strong>da</strong> Rheingantz configurando-se o espaço como <strong>de</strong>nso <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que serevelava através <strong>de</strong> algumas narrativas on<strong>de</strong> a ênfase nessa disposição geográfica éposta justamente pelas mulheres que viam essa proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a Viação Férrea comoum aspecto altamente positivo pois proporcionava conhecimentos e encontros com osrapazes que, à época, eram tidos como “bons partidos” em razão <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e dossalários relativamente altos que possuíam os ferroviários.Nessa topografia dos encontros, a vizinhança com o Quartel <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militarera também muito ressalta<strong>da</strong> pelas funcionárias, pois, tal como os ferroviários, osmilitares eram tidos como bem <strong>de</strong>finidos profissionalmente, com carreira e rendimentofixo. Conforme relatos, muitos casamentos tiveram suas origens justamente nesseshorários <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> fábrica on<strong>de</strong> um posto no muro do cemitério era muito disputado,pois ficava bem <strong>de</strong> frente para o portão principal <strong>da</strong> empresa, por on<strong>de</strong> sairiam as jovensfuncionárias.LUGARES: AS CASAS DA RHEINGANTZO espaço ocupado remete a uma relação com a fábrica on<strong>de</strong>, pela narrativa, sepodia observar as estratégias <strong>de</strong> controle que incidiam sobre os funcionários,principalmente aqueles que moravam nas casas pertencentes à Companhia. Aofuncionário para quem fosse cedi<strong>da</strong> uma casa, além do compromisso em pagar umaluguel simbólico, era cobra<strong>da</strong> a manutenção do imóvel, e principalmente uma condutamoral correta na condução <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> e na relação com os vizinhos. Os casos<strong>de</strong> embriaguez publicamente assisti<strong>da</strong>, violência contra familiares e <strong>de</strong>scuido com amanutenção <strong>da</strong> casa tornavam o sujeito passível <strong>de</strong> multa, num primeiro registro, seguido<strong>de</strong> suspensão e posterior <strong>de</strong>spejo <strong>de</strong> domicílio em caso <strong>de</strong> reincidência.Os que habitavam nas casas <strong>da</strong> fábrica pertenciam, naturalmente, à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>bombeiros <strong>da</strong> empresa, po<strong>de</strong>ndo ser solicitados a qualquer momento, para cobrireventuais faltas <strong>de</strong> funcionários ou reparar algum <strong>de</strong>feito em máquinas e equipamentos.Sobretudo para o grupo que ain<strong>da</strong> vivia nas Casas <strong>da</strong> Fábrica nesses finais dos anos 90,o presente era visto como uma ruptura em razão <strong>de</strong> muitas casas serem já naquelemomento ocupa<strong>da</strong>s por pessoas que ou apresentavam uma ligação remota com a208


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfábrica, através dos parentes, ou não possuíam nenhuma vinculação com a mesma,sendo apenas inquilinos e não se reconheciam, portanto, como membros <strong>da</strong>quelacomuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, que se torna ca<strong>da</strong> vez mais dispersa. Essa <strong>de</strong>sagregação e o clima <strong>de</strong>discórdia que caracterizava a vi<strong>da</strong> nas “casas <strong>da</strong> Rheingantz” era ressaltado por exfuncionárioque não reconheciam mais na vizinhança aqueles antigos companheiros <strong>de</strong>trabalho com os quais compartilhavam confiança e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>. A memória ei<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social <strong>de</strong>ssa “comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino” forma<strong>da</strong> pelos ex-trabalhadores <strong>da</strong>Rheingantz, se apresentavam vincula<strong>da</strong>s às vivências no mesmo espaço, <strong>da</strong>í porque a<strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção constante que vinha sofrendo todo o conjunto construído era abor<strong>da</strong><strong>da</strong> comtristeza e revolta, agrava<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> mais pela sensação <strong>de</strong> impotência diante dos fatos e<strong>de</strong>scrédito nas atuais condutas leva<strong>da</strong>s a termo pelos representantes do grupoadministrador <strong>da</strong> Inca Têxtil.LUGARES DO SOBRENATURAL, LUGARES DA DESESPERANÇA“É <strong>de</strong>solador o silêncio no imenso casarão. Teares mudos, fusos quietos, acal<strong>de</strong>ira apaga<strong>da</strong>, o majestoso apito silencioso, o apito que cantava pelas madruga<strong>da</strong>schamando o seu povo <strong>de</strong> operários para um novo dia <strong>de</strong> trabalho”. Assim começa umartigo publicado no diário local <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, no ano <strong>de</strong> fechamento <strong>da</strong> fábrica. Esse fechar<strong>de</strong> portas que ocorreu em 1968 foi o primeiro na história <strong>da</strong> empresa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fun<strong>da</strong>çãoe <strong>de</strong>ixou marcas in<strong>de</strong>léveis, dores nunca mais supera<strong>da</strong>s mesmo <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> reaberturaem 1970.Os lugares <strong>de</strong> memória são lugares <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, trazem as recor<strong>da</strong>ções <strong>de</strong> períodos<strong>da</strong> existência nos quais a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> viver estava vinculado ao trabalho, aos amigos,aos filhos, à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>; mas também, por outro ângulo, esses lugares <strong>de</strong> memória sãotraduzidos como lugares <strong>de</strong> morte, porque parecem ter assimilado, em sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>,a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>de</strong>sfecho trágico que teve a empresa no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960. A<strong>de</strong>sestruturação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos empregados <strong>da</strong> empresa, provoca<strong>da</strong> pelo seu <strong>de</strong>clínioincontrolável foi <strong>de</strong>ixando seqüelas como casamentos <strong>de</strong>sfeitos, separação <strong>de</strong> cônjugesque iam buscar emprego em outras ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pressão e, até mesmo, suicídios. Sãomuitos esses eventos trágicos ocorridos como conseqüência direta do fechamento <strong>da</strong>fábrica, e alguns diziam ter ficado retido ali <strong>de</strong>ntro todo esse sofrimento, manifesto, porvezes, através <strong>de</strong> alguns fenômenos que traduziam como “assombrações”. Imagens <strong>de</strong>mulheres senta<strong>da</strong>s nos teares, máquinas que começam a se movimentar sozinhas, vozesnos an<strong>da</strong>res superiores já completamente vazios, eram apontados pelos ex-funcionárioscomo expressões <strong>de</strong>ssa carga <strong>de</strong> sofrimento <strong>da</strong> qual o espaço foi <strong>de</strong>positário.209


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA caracterização dos lugares <strong>da</strong> fábrica como marcados pelo sobrenaturalevocavam, <strong>de</strong> maneira direta, a idéia <strong>de</strong> lugares <strong>de</strong> morte, as várias mortes que ali seencontravam, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte física, <strong>da</strong>do que as falas afirmam terem sido registradosvários casos <strong>de</strong> suicídios no período <strong>da</strong> falência, passando pela morte <strong>de</strong> um projetocoletivo <strong>de</strong> futuro, <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrença em pessoas e instituições em <strong>de</strong>corrência do sentimento<strong>de</strong> traição e <strong>de</strong>scaso que provaram quando a empresa foi vendi<strong>da</strong> pela primeira vez. Asimagens espectrais <strong>de</strong> um passado que parece ter ficado suspenso, inconcluso, queesperava por uma resolução, como na fala <strong>de</strong> Sr. Hilso quando dizia que a fábricaprecisava <strong>de</strong>scansar em paz. Consciente <strong>de</strong> que não era mais possível a retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s na empresa, para Sr. Hilso a solução seria a ven<strong>da</strong> para algum grupointeressado em abrir ali outro tipo <strong>de</strong> estabelecimento industrial, mas para tanto serianecessário que a empresa sanasse seus compromissos trabalhistas, reconhecendosimbolicamente a existência <strong>da</strong>queles sujeitos que, ao terem seus trabalhosinterrompidos, ficaram a espera <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>nização que efetivamente nunca chegou.Para a fábrica “<strong>de</strong>scansar em paz” era preciso, portanto, liberá-la <strong>de</strong> sua carga <strong>de</strong>passado, sem que isso implicasse o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> memória.Na complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> que encerra essa relação dos sujeitos com a fábrica, a memóriaé ao mesmo tempo reinvenção constante <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>da</strong>s vivências e um elementoque aprisiona, que insiste em preencher com passado essa ausência <strong>de</strong> projetos para ofuturo. A região que antes era povoa<strong>da</strong> por levas <strong>de</strong> homens e mulheres cruzando ruaspara ir ou voltar <strong>de</strong> seus locais <strong>de</strong> trabalho, é hoje um espaço <strong>de</strong>svitalizado, restandoapenas os vestígios materiais do que foi nesse tempo anterior. O bairro em si <strong>de</strong>monstraesse empobrecimento industrial <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> pois, em nenhum outro lugar a memória estátão fortemente ancora<strong>da</strong> em lugares do trabalho, símbolos do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> RioGran<strong>de</strong> em outros tempos.A retração <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s nesses lugares trouxe um<strong>de</strong>saparecimento concreto do espaço construído, como no caso <strong>da</strong> Companhia Ítalo-Brasileira, <strong>da</strong> qual resta apenas uma chaminé perdi<strong>da</strong> no meio <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>supermercado; um <strong>de</strong>saparecimento gra<strong>da</strong>tivo, processado numa lenta agonia <strong>de</strong>mutilações e <strong>de</strong>pre<strong>da</strong>ções, que é o quadro <strong>da</strong> Rheingantz e seu entorno; o não<strong>de</strong>saparecimento físico do prédio, mas a irreversível <strong>de</strong>sativação <strong>de</strong> sua função, como o<strong>da</strong> Estação Férrea.210


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPATRIMÔNIO INDUSTRIAL: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PELO PASSADOO trabalho <strong>de</strong> pesquisa junto à Rheingantz resultou numa síntese histórica sobre aempresa, mas, fun<strong>da</strong>mentalmente, possibilitou uma incursão no mundo <strong>de</strong> memóriasteci<strong>da</strong>s a partir <strong>de</strong>la. Compreendê-la como um lugar <strong>de</strong> memória implica reconhecer quea i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social <strong>de</strong>ssa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> tem ali um <strong>de</strong> seus eixos articuladores uma vez queessa fábrica representa o período <strong>de</strong> maior vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>.Por outro lado, a <strong>de</strong>scrença em um futuro possível não invali<strong>da</strong> tentativas <strong>de</strong>sensibilizar o po<strong>de</strong>r público para que assuma para si a tarefa <strong>de</strong> proteção <strong>da</strong> memória<strong>de</strong>posita<strong>da</strong> ali. A escuta <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, essa que <strong>de</strong>nominamos como comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>stino ou <strong>de</strong> memória, traz sugestões <strong>de</strong> possíveis ocupações do lugar. Assim, acriação <strong>de</strong> um <strong>Museu</strong> ou Memorial Rheingantz, no espaço <strong>da</strong> antiga escola a serrestaura<strong>da</strong>, é uma <strong>da</strong>s formas que esses ex-funcionários apontavam para alojamento eexposição <strong>de</strong> suas histórias: teares, alguns do século XIX; objetos <strong>de</strong> uso industrial;tapetes; cobertores <strong>da</strong> marca Rheingantz; livros; material fotográfico e as narrativas,compila<strong>da</strong>s nesse trabalho <strong>de</strong> pesquisa. Esses objetos industriais, que antes não tinhamvisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> por estarem encompassados no conjunto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s fabris, agora sãoadmitidos como objetos biográficos, lembram o que já não são, evi<strong>de</strong>nciam outratemporali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aos objetos em si associam-se ofícios e saberes que a indústria mo<strong>de</strong>rnajá suprimiu, e que as narrativas orais ain<strong>da</strong> possibilitam recuperar.Junho <strong>de</strong> 2009. Após algumas tentativas fracassa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> efetiva patrimonializaçãodo complexo Rheingantz, uma Audiência Pública é proposta por um membro <strong>da</strong> Câmara<strong>de</strong> Vereadores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong>. Essa Audiência <strong>de</strong>verá associar na mesmatribuna um representante do Ministério Público, uma juíza fe<strong>de</strong>ral e o saber acadêmico,como dizem os proponentes, representado aqui pela pesquisa feita junto à Rheingantz.A idéia <strong>de</strong> uma Audiência Pública se associa com a <strong>de</strong> sensibilização do po<strong>de</strong>rpúblico frente ao que <strong>de</strong>ve ser apresentado como um patrimônio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do RioGran<strong>de</strong>. Para tanto é fun<strong>da</strong>mental que a Rheingantz apareça em dimensão amplia<strong>da</strong>, nodiálogo constante com a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual estava, nos diferentes momentos nos quais aempresa foi aciona<strong>da</strong> para resolver problemas <strong>da</strong> municipali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao mesmo tempo éfun<strong>da</strong>mental que fique <strong>de</strong>monstrado o potencial museológico do lugar consi<strong>de</strong>rando queé um testemunho <strong>de</strong> diferentes momentos dos processos tecnológicos <strong>da</strong> indústria têxtil,cujas máquinas que ain<strong>da</strong> existem são fontes para o conhecimento <strong>de</strong> técnicas eprocessos industriais.Passados mais <strong>de</strong> quarenta anos <strong>da</strong> <strong>de</strong>cretação do estado <strong>de</strong> falência <strong>da</strong>empresa e tendo consciência do processo <strong>de</strong>sagregador que se seguiu nos anos211


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tposteriores, é fun<strong>da</strong>mental pensar no projeto <strong>de</strong> patrimonialização comonecessariamente vinculado às memórias locais, às vivências e trajetórias, um processono qual os remanescentes <strong>de</strong>ssa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ex-trabalhadores possa se fazerrepresentar e manifestar suas legítimas ambições <strong>de</strong> reparação e memória.Tendo em vista essa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, parece importante pensar na idéia <strong>de</strong> buscapelo reconhecimento como nos coloca Paul Ricoeur (2006), o que implica em nãoneutralizar os conflitos existentes (<strong>de</strong> diferentes or<strong>de</strong>ns e sobretudo no presente peloagravamento <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s impostas pela administração atual <strong>da</strong> empresa), nãohierarquizar as memórias envolvi<strong>da</strong>s e possibilitar que esses sujeitos se transformem emver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros agentes patrimoniais, envolvidos não apenas na preservação dos vestígiosmas em sua qualificação como um projeto <strong>de</strong> presente e futuro, viável sob o ponto <strong>de</strong>vista social e econômico.Somente a partir <strong>de</strong>ssa perspectiva inclusiva e multifaceta<strong>da</strong> é possível acreditarque o apito <strong>da</strong> fábrica, ícone <strong>de</strong>ssa Rio Gran<strong>de</strong> industrial do passado, po<strong>de</strong>rásimbolicamente retornar, agora como memória, vi<strong>da</strong> e patrimônio.REFERÊNCIASCOMPANHIA UNIÃO FABRIL. América Magazine, Edição Especial, São Paulo: Ed. VartaLt<strong>da</strong>, 1959.FABRE, Daniel (dir.). Domestiquer l’histoire. Ethnologie <strong>de</strong>s monuments historiques,Paris: Éditions <strong>de</strong> la MSH, 2000.FERREIRA, Maria Leticia M. 2002. Os três apitos: memória pública e memória coletiva.Fábrica Rheingantz, Rio Gran<strong>de</strong>, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, 1950-1979. Tese <strong>de</strong> Doutorado,PPGHistória, PUCRS, 2002. Orientador: Nuncia Santoro <strong>de</strong> Constantino.GOUX Jean-Paul. À propos <strong>de</strong> mémoires <strong>de</strong> l’enclave, Cahiers CDHT,CNAM-EHESS.Démolition, Disparition, Déconstruction, n.11, p.93-104, 2002.NORA, Pierre. Pour une histoire au second <strong>de</strong>gré, Le Débat, n.122, p.29-30, 2002.RICOEUR, Paul. Percurso do Reconhecimento.São Paulo: Loyola, 2006TORNATORE, Jean-Louis. Les formes d’engagement <strong>da</strong>ns l’activité patrimoniale. Dequelques manières <strong>de</strong> s’accommo<strong>de</strong>r au passé, In : Vincent Meyer et Jacques Walter(dir.), Formes <strong>de</strong> l'engagement et espace public. Nancy : Presses universitaires <strong>de</strong>Nancy, p. 515-538, 2006.____________________. Patrimoine, mémoire, tradition, etc. À propôs <strong>de</strong> quelquessituations françaises <strong>de</strong> la relation au passé. Conferência apresenta<strong>da</strong> no II SeminárioInternacional em Memória e Patrimônio, UFPEL, Pelotas, 2008.212


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TDÊ-LHES UM CURSO D´ÁGUA E COLOCARÃO OMUNDO A SE MOVER.<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e <strong>Tecnologia</strong> Tradicional:apontamentos para um possível estudo <strong>de</strong> casoJosé Neves Bittencourt *POSSÍVEL ESTUDO DE CASO: UMA PROPOSTAA ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte foi construí<strong>da</strong> muito rapi<strong>da</strong>mente entre 1894 e1897. O sítio on<strong>de</strong> foi instala<strong>da</strong> era ocupado por uma freguesia <strong>da</strong> comarca<strong>de</strong> Sabará, <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Curral Del Rei. As origens <strong>de</strong>ssa locali<strong>da</strong><strong>de</strong>remontavam a 1701, e sua se<strong>de</strong> era um arraial, casario tipicamente colonial, em quasena<strong>da</strong> diferente <strong>de</strong> todos os que vicejavam na periferia <strong>da</strong> região do ouro.“A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é o entreposto, o local <strong>de</strong> suprimento e <strong>da</strong>s trocas comerciais. É ain<strong>da</strong>por isso (...) que, em Minas, os templos são erguidos no centro <strong>de</strong> largos, circun<strong>da</strong>dospor praças e ruas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>s quadras urbanas <strong>de</strong>les vizinhas.”(VASCONCELLOS, 2004, p.146). As ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s coloniais brasileiras surgiam e<strong>de</strong>senvolviam-se sem um planejamento prévio, condiciona<strong>da</strong>s, quase sempre, pelascaracterísticas topográficas do sítio. No arraial <strong>de</strong> Curral <strong>de</strong> El-Rey a forma do tecidourbano era <strong>de</strong>corrente tanto <strong>da</strong> topografia, como <strong>da</strong> existência do Rio Arru<strong>da</strong>s e dosvários ribeirões que lhe eram tributários.O arraial tinha centro no “largo <strong>da</strong> Matriz”, lugar on<strong>de</strong>, como diz o nome, sesituava a Matriz <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>da</strong> Boa Viagem. O termo “matriz”, nesse caso, po<strong>de</strong>* Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Artes e Ofícios Praça Rui Barbosa s/nCentro 30160-000 Belo Horizonte MG. bitten.jn@gmail.com. Possui graduação em História pela UFF (1980),mestrado em História Social pela UFF (1988) e doutorado em História pela UFF (1997). Pesquisador doInstituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, lotado atualmente na 13a Superintendência Regional.Presta serviços como pesquisador no <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Artes e Ofícios, em Belo Horizonte.213


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tser enganoso: a construção na<strong>da</strong> tinha <strong>de</strong> grandiosa. Ao contrário, era acanha<strong>da</strong>construção, em estilo jesuítico, com duas torres sineiras e quase nenhuma <strong>de</strong>coraçãoexterna. Em na<strong>da</strong> lembrava as faustosas igrejas <strong>de</strong> Vila Rica e Mariana.Em torno do largo arrumavam-se casas comerciais e residências particulares.Espalhando-se em direção à zona rural, uma dúzia <strong>de</strong> ruas: “<strong>de</strong> Sabará”, “do Capão”, “doCapim”, “Marechal Deodoro”, “<strong>da</strong> Boa Vista”. Sem traçado regular, abertas conformenovos terrenos iam sendo incorporados, “...a configuração espontânea e longilínea dá àspovoações [<strong>de</strong> Minas Gerais] uma configuração mais orgânica, uma a<strong>da</strong>ptação maior àsconfigurações do terreno e um agenciamento natural bastante diverso do racional partidopreconizado pelas ‘Leis <strong>da</strong>s Índias’.”(VASCONCELLOS, 2004, p.146) 1 Em 1894 o sítioon<strong>de</strong> se localizava o arraial foi escolhido para localização <strong>da</strong> nova capital. A construção<strong>da</strong> então chama<strong>da</strong> “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas” <strong>de</strong>u-se conforme um projeto que, no final do século19, buscava redimir séculos <strong>de</strong> “atraso colonial”. Uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> planeja<strong>da</strong> que “legitimaria o<strong>de</strong>sejo e a expressão <strong>de</strong>sse novo tempo, pautado pela i<strong>de</strong>ologia positivista republicana,concebi<strong>da</strong> pela utopia <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, sanea<strong>da</strong>, or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> e ilumina<strong>da</strong> (...). Assim, anova capital do Estado foi pensa<strong>da</strong>, planeja<strong>da</strong> e oficializa<strong>da</strong>...” (BAHIA, 2007, p.62). Osítio do Curral Del Rei foi escolhido em função <strong>de</strong> sua aparente a<strong>de</strong>quação aosparâmetros postos acima – era, acima <strong>de</strong> tudo, salubre, com fontes <strong>de</strong> água <strong>de</strong> boaquali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ampla circulação <strong>de</strong> ar e clima agradável. Mas a estrutura urbana que láexistia, essa não era compatível com na<strong>da</strong> do que era i<strong>de</strong>alizado. Restou a <strong>de</strong>molição.Para o projeto que orientou a construção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> inaugura<strong>da</strong> em 1897, o que,hoje em dia, é conhecido como “centro <strong>de</strong> Belo Horizonte”, era, então, Belo Horizontepropriamente dita. O projeto tinha por base um <strong>de</strong>senho poligonal, que estabelecia a“zona urbana”. Estabelecendo os limites <strong>de</strong>ssa zona, uma aveni<strong>da</strong> a contornava - ain<strong>da</strong>hoje chama<strong>da</strong> “do Contorno”. Para além <strong>de</strong>ssa via ficavam duas “zonas”, chama<strong>da</strong>s“suburbanas” e “dos sítios”. Segundo a lógica positiva e científica dos planejadores,capitaneados pelo engenheiro Aarão Reis, essas “zonas” tinham por objetivo permitir afutura expansão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> (a “suburbana”) e a implantação <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas quefornecessem aos habitantes urbanos gêneros <strong>de</strong> consumo (a “dos sítios”).1 “Depois <strong>de</strong> alguns anos <strong>de</strong> realizações do mo<strong>de</strong>lo espanhol, Filipe II, no ano <strong>de</strong> 1573, institui aprimeira legislação urbanística <strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, a chama<strong>da</strong> Lei <strong>da</strong>s Índias. Com esta lei, tornasepossível uma associação entre os princípios idéias renascentistas, as influências do Tratado <strong>de</strong>Tor<strong>de</strong>silhas e as realizações concretiza<strong>da</strong>s na América. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a Lei <strong>de</strong> Filipe II, não fezmais do que consagrar a planta ortogonal, que na prática já estava sendo realiza<strong>da</strong>” (DANTAS,2004).214


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAo longo dos quase duzentos anos em que a região teve o arraial como se<strong>de</strong>,essas duas áreas foram ocupa<strong>da</strong>s por proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s rurais que também produziamgêneros <strong>de</strong> consumo, só que voltados para abastecer a região <strong>da</strong> mineração. Eramproprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s rurais <strong>de</strong> porte médio, volta<strong>da</strong>s para a produção em bases escravistas.Uma <strong>de</strong>ssas fazen<strong>da</strong>s nos interessa em particular: a Fazen<strong>da</strong> do Leitão. Esseestabelecimento foi o único <strong>de</strong>ntre as inúmeras fazen<strong>da</strong>s <strong>da</strong> região <strong>de</strong> que restou algumvestígio. Por motivos não muito bem esclarecidos (e que não são propriamenteimportantes, no momento), a se<strong>de</strong> <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> escapou <strong>da</strong> <strong>de</strong>molição, em 1894. O queimporta é que a construção sobreviveu e, mais do que isso, sobreviveu para serenvolvi<strong>da</strong> pela expansão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a partir dos anos 1930. Em 1941, a mo<strong>de</strong>staconstrução tornou-se se<strong>de</strong> do então <strong>Museu</strong> Histórico <strong>de</strong> Belo Horizonte, instituição quepretendia guar<strong>da</strong>r o passado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> – passado que era i<strong>de</strong>ntificado com a pequenavila <strong>de</strong>sapareci<strong>da</strong>.A edificação estava, na época, em ruínas. Restaura<strong>da</strong> para a nova função, foifestivamente inaugura<strong>da</strong> em 1943, tornando-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, um dos marcos urbanos.Não é o objetivo, aqui, examinar a trajetória do museu, reinaugurado pelo menos trêsvezes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. O fato é que, embora a edificação tenha sido examina<strong>da</strong> emprofundi<strong>da</strong><strong>de</strong> algumas vezes (cf. PEDERZOLI, 2003, p.17-29; BITTENCOURT, 2004,p.35-56), a Fazen<strong>da</strong> do Leitão não mereceu atenção e muito menos seus aspectosprodutivos e tecnológicos. Entre 1894, quando foi <strong>de</strong>socupa<strong>da</strong> pela família doproprietário, e 1941, época em que recebeu nova função, existem poucas informaçõessobre a trajetória <strong>da</strong> edificação; entre 1943, <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> abertura do museu e nossos dias,tem sido frisado o aspecto patrimonial: a edificação foi tomba<strong>da</strong> pela Diretoria doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1951 2 . Des<strong>de</strong> então, é i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com ahistória <strong>de</strong> Belo Horizonte.O caráter <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> do Leitão como uni<strong>da</strong><strong>de</strong> produtiva nunca chegou a serobjeto <strong>de</strong> interesse, embora exista documentação sobre o assunto, inclusive uma gran<strong>de</strong>2 O Casarão foi inscrito no Livro <strong>de</strong> Tombo Histórico, tendo sido o registro executado por Carlos Drummond<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, então chefe <strong>da</strong> Seção <strong>de</strong> História <strong>da</strong> DPHAN. A relação do museu com o Patrimônio Histórico eArtístico Nacional já vinha, entretanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1941, quando o processo <strong>de</strong> restauração <strong>da</strong> edificação foiconduzido e financiado pelo órgão (cf. CALDEIRA, 2003, p.41-42). A relação entre os órgãos nem foitranqüila. O “Serviço” (como era, então, conhecido a DPHAN), impôs um partido <strong>de</strong> restauração queprivilegiava aspectos construtivos em <strong>de</strong>trimento dos museológicos, e tentou interferir inclusive no projetomuseológico apresentado pelo organizador <strong>da</strong> instituição (cf. BITTENCOURT, 2004, p.40-48).215


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcoleção <strong>de</strong> textos manuscritos que permitem uma visão bastante aproxima<strong>da</strong> <strong>da</strong> estruturaespacial <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>: são as “Ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong> campo” 3 .Minha proposta é que, pela via <strong>de</strong> documentos e ferramentas teóricas emetodológicas disponíveis, é possível examinar parte <strong>da</strong> dinâmica social <strong>da</strong> povoação<strong>de</strong>sapareci<strong>da</strong>. Embora eu não tenha nesse momento, objetivo <strong>de</strong> aprofun<strong>da</strong>r a análise <strong>da</strong>“Fazen<strong>da</strong> do Leitão”. Meu objetivo, ao propor um “possível estudo <strong>de</strong> caso” é <strong>de</strong>monstrarcomo o cruzamento entre documentos <strong>de</strong> caráter especial e um conjunto específico <strong>de</strong>conhecimentos po<strong>de</strong> fazer valer à pena, para cientistas, uma visita ao museu.CULTURA MATERIAL E TRAJETÓRIA HUMANA: SOBRE A POSSIBILIDADE DEFAZER ANALOGIASA certa altura <strong>da</strong> introdução <strong>de</strong> um livro clássico sobre museus, o autor observaque essas instituições “são arquivos <strong>da</strong>quilo que os antropólogos tem chamado ‘culturamaterial´. De modo característico, esses objetos <strong>da</strong> cultura material são objetos ‘dosoutros’ – <strong>de</strong> seres humanos cujas similari<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou diferenças são experimenta<strong>da</strong>s porobservadores externos como, <strong>de</strong> algum modo, bastante problemáticas.” (STOCKING JR,1985, p.4). Não é o caso <strong>de</strong> discutir aqui o conceito “museu”, instituiçãocaracteristicamente oci<strong>de</strong>ntal que incorporou, em tempos recentes, uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>significados e interpretações possíveis. Basta dizer que tendo a concor<strong>da</strong>r com o autorsobre a interpretação dos museus como “arquivos”. De fato, essa analogia não é difícil <strong>de</strong>aceitar: como os arquivos, os museus recolhem documentos, ain<strong>da</strong> que documentos <strong>de</strong>um caráter particular. A questão que dispara a reflexão, entretanto, é a relação“problemática” dos objetos lá reunidos com seus observadores. O que o autor chama <strong>de</strong>“outros” (vale aqui dizer que o título do livro é “Os objetos e os outros”) me parece melhor<strong>de</strong>finido como uma relação paradoxal entre distância-proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>, relação quecaracteriza a convivência <strong>de</strong> seres humanos (não importa se indivíduos ou coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s)aproximados pela cultura que lhes é comum ou afastados por culturas diversas. Osobjetos observados nas exposições museais são expressões materiais <strong>de</strong> indivíduosembebidos em uma cultura, não importa se esta esteja mais próxima ou mais distante <strong>da</strong>do observador. Mas, ain<strong>da</strong> que “expressões materiais”, esses objetos não po<strong>de</strong>m serconsi<strong>de</strong>rados em sua mera materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>de</strong>ssa forma, seriam reduzidos, me arriscaria3 Conjunto <strong>de</strong> 541 volumes, on<strong>de</strong> os topógrafos <strong>da</strong> Comissão Construtora <strong>da</strong> Nova Capital (CCNC)registravam os <strong>da</strong>dos geodésicos e topográficos que permitiriam os alinhamentos e nivelamentos necessáriospara a regularização do terreno (terraplenagem) e anotações necessárias para a carta ca<strong>da</strong>stral do Arraial doCurral <strong>de</strong>l Rei, com vistas às futuras <strong>de</strong>sapropriações (cf. ALVES, 2006, p.25).216


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdizer, a matéria amorfa. Objetos, sejam lá quais forem, são sempre produtos <strong>de</strong>processos sócio-históricos que lhes incorporam significados. Não há como pensá-los fora<strong>de</strong>sse parâmetro.Qualquer objeto consi<strong>de</strong>rado a partir <strong>de</strong> processos sócio-históricos torna-se umaespécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> sentidos, aquilo que uma palavra ou frase po<strong>de</strong> significar numcontexto <strong>de</strong>terminado, ou seja, como uma palavra ou frase po<strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> (cf.DUBOIS et al., 2007:538-9). Algumas interpretações <strong>de</strong>ssa noção a apresentam como “asoma <strong>de</strong> situações on<strong>de</strong> [uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> significante] aparece como estímulo e <strong>da</strong>srespostas comportamentais que esse estímulo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia no interlocutor” (DUBOIS etal., 2007, p.538). Essa última questão é particularmente útil com relação aos museus.Objetos recolhidos a essas instituições, apartados <strong>de</strong> seus contextos <strong>de</strong> origem,continuam, por outro lado, a “fazer sentido” para aqueles que se tornam, ao freqüentarmuseus, seus interlocutores. Aí está a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>: o objeto é sempre entendido comoproduto <strong>de</strong> alguém. Como produto <strong>de</strong> alguém, continuam <strong>de</strong>spertando “respostascomportamentais” nos observadores: encantamento, estranheza, curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, orgulho,tristeza. E o mais interessante é o que o observador sequer precisa saber exatamente <strong>de</strong>que se trata o objeto. Esse não-entendimento po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como a distância.Objetos são pontes que aproximam e distanciam.Isso não significa que a trajetória <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s possa ser reproduzi<strong>da</strong> através <strong>da</strong>reunião <strong>de</strong> objetos materiais. Mais uma vez, se coloca uma distância. De fato, a trajetória<strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s não po<strong>de</strong> ser reproduzi<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma alguma, porque o passado é algo<strong>de</strong>finitivamente perdido. É possível, no máximo, representar essa trajetória, sem evitar osurgimento <strong>de</strong> inumeráveis lacunas. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa dos museus, ao buscarrepresentar essas trajetórias, juntam sentidos aos objetos que são estu<strong>da</strong>dos eagrupados. Daí ser aceitável a analogia dos museus como “arquivos <strong>de</strong> objetostridimensionais”. Todo objeto traz, em si uma carga latente <strong>de</strong> informação, e ainterpretação <strong>de</strong>ssas informações e sua organização permite uma idéia aproxima<strong>da</strong><strong>de</strong>ssas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> como formulavam e resolviam suas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s. Não se po<strong>de</strong>per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, nunca é <strong>de</strong>mais advertir (como, por sinal, Ulpiano Meneses o faz <strong>de</strong>modo exemplar) que na relação seja com o cientista, seja com o espectador, não é opassado que fala.O documento não tem em si sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, provisoriamenteindisponível .... É ... a questão do conhecimento que cria o sistemadocumental. O historiador não faz o documento falar: é o historiadorquem fala e a explicitação <strong>de</strong> seus critérios e procedimentos éfun<strong>da</strong>mental para <strong>de</strong>finir o alcance <strong>de</strong> sua fala. To<strong>da</strong> operação comdocumentos, portanto, é <strong>de</strong> natureza retórica. Não há por que o217


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdocumento material <strong>de</strong>va escapar <strong>de</strong>stas trilhas, que caracterizamqualquer pesquisa histórica.(MENESES, 1998, p.39)“Não há por que o documento material <strong>de</strong>va escapar <strong>de</strong>ssas trilhas...” Documentosmateriais são objetos (por sinal todo e qualquer documento, mesmo uma folha <strong>de</strong> papel,é um objeto). E objetos expressam uma “cultura material”. Acima foi dito que os museussão arquivos do que os antropólogos chamam “cultura material”, como também foi dito(espero que, <strong>de</strong> modo incisivo o bastante...) que objetos, fora <strong>de</strong> uma dimensão sóciohistórica,são mera matéria amorfa. Assim, a “cultura material” ultrapassa o objeto. Elaexpressa a forma como as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mobilizam a natureza para resolver suas<strong>de</strong>man<strong>da</strong>s e se expandir.A cultura material, portanto, é repleta <strong>de</strong> intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong>; ela éconcebi<strong>da</strong>, materializa<strong>da</strong> e utiliza<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>ssocie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Por isso, ela po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong> para a compreensão dofuncionamento <strong>da</strong>s regras culturais. É importante <strong>de</strong>stacar que existeminúmeras maneiras <strong>de</strong> analisar os vestígios materiais e refletir sobresuas intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e efeitos. A leitura sobre o universo material,entretanto, é crucial para a compreensão <strong>da</strong>s regras culturais e sociaisem que estamos inseridos. (VIEIRA; FUNARI, 2009)Essa concisa <strong>de</strong>finição tem o mérito <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar claro que os estudos <strong>de</strong> culturamaterial estão relacionados, <strong>de</strong> alguma forma, com todos os campos <strong>da</strong>s Ciências doHomem, embora sua proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a Arqueologia e com a Museologia seja, porvezes, mais fácil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r. A questão é que, <strong>de</strong> to<strong>da</strong> forma, o cientista envolvido compesquisas <strong>de</strong> qualquer campo o estará, <strong>de</strong> alguma forma, com a cultura material, vistoque se trata do “estudo dos aspectos materiais <strong>da</strong> cultura entendidos como causasexplicativas e isso, em certa medi<strong>da</strong>, em prejuízo <strong>de</strong> seus aspectos não materiais”(BUCAILLE; PESEZ, 1989, p.24). Segundo esses autores, trata-se <strong>de</strong> atentar para “osfenômenos culturais mais infra-estruturais [o que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>] que recorramos aos únicosdocumentos seguros on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos estudá-los: os objetos materiais (BUCAILLE;PESEZ, 1989, p.24). Trata-se <strong>de</strong> observação provocativa. As ciências humanas tem,frequentemente, se lançado diretamente ao estudo dos aspectos simbólicos <strong>da</strong> cultura,<strong>de</strong>ixando a questão <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a qual se planta o simbólico numconstrangedor segundo plano. Sem entrar nesse <strong>de</strong>bate um tanto espinhoso, po<strong>de</strong>mosadvertir que não se trata <strong>de</strong> outra versão <strong>da</strong> velha pergunta sobre a primazia do ovo ou<strong>da</strong> galinha... Talvez seja mais correto dizer que, no caso, “ovo” (o objeto) e “galinha” (osistema simbólico) estão contidos um no outro, e um expressa o outro.218


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAssim, chego finalmente ao ponto: a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer analogias. Não épossível recuperar o passado, mas é possível fazer <strong>de</strong>le analogias. E a cultura materialproduzi<strong>da</strong> pela trajetória humana po<strong>de</strong> ser explica<strong>da</strong> através <strong>de</strong> analogias.Vejamos: grosso modo, “analogia” é a relação ou semelhança entre coisas ou fatos.Ou seja, não é algo igual à outra coisa, mas parecido ao ponto <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r estabelecercomparações. “Por analogia enten<strong>de</strong>-se a representação <strong>da</strong> mesma função em diversosmateriais e por meio <strong>de</strong> princípios diversos.” (WIESER, 1972, p.18) Po<strong>de</strong>mos pensar nosobjetos <strong>de</strong>ssa maneira: <strong>de</strong> todos eles é possível fazer uma analogia com alguma funçãoou característica humana. Em alguns casos é fácil perceber a analogia. Por exemplo,entre membros e ferramenta. Um martelo potencializa certas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do conjuntomão/braço, esten<strong>de</strong>ndo-lhes o alcance e a potência. Certamente mão/braço e martelonão funcionam isola<strong>da</strong>mente – o martelo é feito para ser usado e é pressuposto que amão e o braço <strong>de</strong>le precisem. Mas é possível comparar os dois, separa<strong>da</strong>mente, e<strong>de</strong>scobrir semelhanças entre eles. Mas certamente, a partir do martelo, isola<strong>da</strong>mente,não se conseguirá <strong>de</strong>duzir o conjunto braço/mão.De processos e fragmentos isolados não se po<strong>de</strong> recompor oorganismo total com to<strong>da</strong>s as suas múltiplas funções. Dentro doorganismo, ca<strong>da</strong> elemento possui não somente suas funçõeselementares, mas também parte <strong>da</strong>s funções do sistema, resultado <strong>da</strong>infinita vinculação dos elementos. (WIESER, 1972, p.21)É uma idéia estimulante, porque possibilita uma explicação <strong>de</strong> caráter geral quealcança boa parte dos artefatos criados pelo homem. Mas à essa idéia subjaz umaarmadilha, que é a <strong>da</strong> tautologia. Ao adotar essa tentativa <strong>de</strong> explicação estaremossendo apenas redun<strong>da</strong>ntes? Eu diria que não. De fato, a proposição é simples até queseja nuança<strong>da</strong>. Um martelo possibilita uma analogia direta com o conjunto mão/braço,assim como um alicate também permite, visto que a forma <strong>de</strong>ssas ferramentas indicaimediatamente a semelhança. Mas, quanto mais nos afastarmos <strong>da</strong> forma, menosevi<strong>de</strong>nte será a analogia. Sugiro que pensemos agora numa flecha. Um sistemaarco/flecha po<strong>de</strong> ser <strong>da</strong>do como uma forma <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r, exponencialmente, certascapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mesmo conjunto mão/braço. A flecha é um projétil disparado com umarco. É um artefato comum a maioria <strong>da</strong>s culturas e sua origem remonta ao final doperíodo paleolítico. Arco e flecha constituem um sistema, através do qual uma certaquanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia é mobiliza<strong>da</strong> a partir do corpo do arqueiro e acumula<strong>da</strong>, durantebreve período, no arco. Essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia é transmiti<strong>da</strong> ao projétil através <strong>da</strong>cor<strong>da</strong>. A ação executa<strong>da</strong> é análoga à uma forte panca<strong>da</strong> <strong>de</strong>sferi<strong>da</strong> com a mão.219


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEntretanto, po<strong>de</strong>-se notar que a inserção no sistema <strong>de</strong> uma ponta, ou mesmo <strong>de</strong> umalâmina, aumenta <strong>de</strong> forma exponencial a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se usar a mão como forma <strong>de</strong>provocar <strong>da</strong>no. Em última análise, um tiro executado com arma <strong>de</strong> fogo aten<strong>de</strong> aomesmo princípio: uma forte panca<strong>da</strong> <strong>de</strong>sferi<strong>da</strong> com a mão.Assim, temos a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, através <strong>da</strong> analogia, que os artefatoscitados formam sistemas, compreensíveis por si ou a partir do conjunto que formam como usuário humano. Vale observar que a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um sistema não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> donúmero <strong>de</strong> seus elementos, mas <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações entre eles e, conforme acomplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> do sistema, varia em quali<strong>da</strong><strong>de</strong> a ação <strong>de</strong> suas partes (cf. WIESER, 1972,p.23). Isso vale dizer que, ain<strong>da</strong> que se possa fazer uma analogias entre arco e flecha earma <strong>de</strong> fogo, no que tange às partes do sistema, a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações entre aspartes (por exemplo, o modo como a energia é mobiliza<strong>da</strong> e transmiti<strong>da</strong>) faz variar emquali<strong>da</strong><strong>de</strong> a ação <strong>da</strong>s partes.Essa idéia parece servir para todos os artefatos. Alguns são extremamentesimples, e parecem não funcionar sem a presença <strong>de</strong> um operador; outros são maiscomplexos e parecem capazes <strong>de</strong> funcionar sem a presença <strong>de</strong> um operador. Por outrolado, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua aparente simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> ou complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um aspecto po<strong>de</strong> sertomado como uma espécie <strong>de</strong> analogia universal, ou seja, “a representação <strong>da</strong> mesmafunção em diversos materiais e por meio <strong>de</strong> princípios diversos”: todo artefato mobilizacerta quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> matéria, energia e trabalho humano.É sobre o que estivemos falando até aqui. A trajetória humana po<strong>de</strong> serrepresenta<strong>da</strong>, grosso modo, como a mobilização <strong>de</strong> matéria e energia através <strong>da</strong>transformação <strong>da</strong> natureza pela via do trabalho. Mas, como vimos mais acima, esseprocesso não po<strong>de</strong> ser pensado fora <strong>de</strong> processos sócio-históricos, sob pena <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r osentido. Todo artefato contém, <strong>de</strong> certa forma, o processo sócio-histórico que o originou –ain<strong>da</strong> que a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> informação, freqüentemente, torne o processo difícil <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r.O arco e a flecha dos caçadores-coletores paleolíticos respon<strong>de</strong>u às <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quelesgrupos, assim como a arma <strong>de</strong> fogo, a partir do século XIII, às <strong>de</strong> outros grupos. Ambosos processos são análogos nesse sentido, variando o grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos em queresultam.É, neste momento, retornar ao museu como o lugar on<strong>de</strong> os vestígios <strong>de</strong>ssatrajetória se acumulam. O termo não é abusivo: são vestígios, uma espécie <strong>de</strong> “passadotangível” que, <strong>de</strong> certa forma, po<strong>de</strong> ser atribuído ao acaso e, por esse motivo, po<strong>de</strong> em220


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tseu conjunto, ser consi<strong>de</strong>rado recurso não-renovável: “... embora muitos vestígios ain<strong>da</strong>estejam por ser <strong>de</strong>scobertos, ressuscita<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>cifrados, o passado tangível po<strong>de</strong> serconsi<strong>de</strong>rado, <strong>de</strong> fato, um recurso não-renovável, exceto conforme o tempo vier aengendrá-lo novamente.” (LOWENTHAL, 1985, p.239) Um artefato preservado,atentamente estu<strong>da</strong>do e orgulhosamente exposto sobreviveu pela intervenção <strong>de</strong> fatoresque não foram previstos em sua origem – <strong>de</strong> certa forma, artefatos não foram feitos parasobreviver, mas para, mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>, se reintegrarem à natureza. Mesmo nosarquivos on<strong>de</strong>, pelo menos em teoria, reina uma certa organização, persiste o acaso:para ca<strong>da</strong> documento preservado em função <strong>da</strong>s lógicas <strong>de</strong> seleção <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> período, <strong>de</strong>ca<strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, correspon<strong>de</strong>m inumeráveis outros, <strong>de</strong>saparecidos. De certaforma dá-se o mesmo no museu, visto que as épocas têm sua própria lógica <strong>de</strong> seleção,ain<strong>da</strong> que atrita<strong>da</strong>s pela característica básica <strong>de</strong> que dificilmente os artefatos são feitospara sobreviver. Por outro lado, se, como afirma o teórico Wieser, num organismo, ca<strong>da</strong>elemento possui suas funções e parte <strong>da</strong>s funções do sistema, uma vez que os diversoselementos estão vinculados uns aos outros, então o museu contém, potencialmente, oprocesso como um todo, pois ca<strong>da</strong> artefato, pensado como parte <strong>de</strong> um sistema, contémparte <strong>da</strong>s funções do sistema.É possível que se encontre aí a potência do museu, sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> construirrepresentações: vinculando os inúmeros objetos, não importa se expostos ou em reservatécnica, se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir, parcialmente, o sistema. Se trata, pois, <strong>de</strong> uma analogia, vistoque as partes preserva<strong>da</strong>s no museu po<strong>de</strong>m ser referi<strong>da</strong>s à outro sistema.RODAS D´ÁGUA, MONJOLOS E MOINHOSGeralmente, a cultura material é uma disciplina ti<strong>da</strong> como espécie <strong>de</strong> “irmãsiamesa” <strong>da</strong> arqueologia. Esta disciplina, no senso comum, cava buracos e recolhevestígios que, pelos mais diversos motivos, foram <strong>de</strong>ixados para trás – e esses vestígios,geralmente, acabam ou em uma exposição ou em alguma sinistra reserva técnica –quando não em uma aventura tipo Indiana Jones ou “A múmia”. Grosso modo, aarqueologia não correspon<strong>de</strong> à imagem que <strong>de</strong>la fazem a literatura <strong>de</strong> aventuras e ocinema: é uma ciência social que “infere o comportamento humano, e também idéias, apartir <strong>de</strong> materiais remanescentes do que as pessoas fizeram e usaram e do impactofísico <strong>de</strong> sua presença no meio ambiente.” (TRIGGER, 2004, p.19) Ou seja, aarqueologia se remete à cultura material já que os documentos <strong>de</strong> que lança mão são osvestígios contidos no meio ambiente, mas também o próprio meio ambiente. Em boa221


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tparte <strong>de</strong> suas ações os arqueólogos não têm acesso ao comportamento dos usuários <strong>de</strong>seus documentos e nem po<strong>de</strong>m ler textos escritos que façam referências à essesdocumentos. Nesse sentido, Talvez <strong>de</strong>vamos consi<strong>de</strong>rar que é a arqueologia a “irmãsiamesa” <strong>da</strong> cultura material, visto que essa última disciplina interpreta os artefatos que aarqueologia retira <strong>de</strong> um tempo infinitamente longo. Ou, quem sabe, se possa dizer que aarqueologia li<strong>da</strong> com um <strong>da</strong>do sentido <strong>de</strong> tempo, e a cultura material, com outro, masambas as disciplinas abor<strong>da</strong>m acontecimentos embebidos no tempo.Os acontecimentos históricos não têm a mesma duração e o mesmosentido. As cama<strong>da</strong>s arqueológicas não comportam as mesmas idéias,elas são, ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las, um livro diferente e ca<strong>da</strong> nível, um capítulo,um episódio <strong>de</strong>sse livro. A duração e o sentido <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rão dos valoresque os homens atribuírem aos seus atos. Esses atos po<strong>de</strong>m serfugazes, quando referentes à vi<strong>da</strong> breve <strong>da</strong>s pessoas, ou extensos,quando se referirem ao tempo <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s ... (MAGALHÃES, 1993,p.20)A vi<strong>da</strong> individual <strong>de</strong>saparece, fisicamente, <strong>de</strong> modo muito rápido. Ela não nos dizrespeito; já a vi<strong>da</strong> nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s persiste, e po<strong>de</strong> ser abor<strong>da</strong><strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que por via <strong>de</strong>fragmentos. Ao i<strong>de</strong>ntificar artefatos, a arqueologia, <strong>de</strong> certa forma, os traz <strong>de</strong> volta aotempo presente. De forma incompleta, é certo, mas a interpretação <strong>de</strong>sses vestígiospossibilita recuperar (ain<strong>da</strong> que nunca <strong>de</strong> forma integral) processos <strong>de</strong> ocupação doterritório, formas <strong>de</strong> apropriação e interação do espaço pelos diferentes grupos que otenham ocupado, e as relações sociais e econômicas que se estabeleceram ao longo dotempo.Talvez se possa, neste ponto, explicar porque, para abor<strong>da</strong>r a Fazen<strong>da</strong> do Leitão,este trabalho se inicie com uma referência à construção <strong>de</strong> Belo Horizonte. A capitalmineira, <strong>de</strong> certo modo, sepultou o arraial – tanto física quanto simbolicamente. Aexistência <strong>de</strong>ssa povoação tornou-se virtual, pois seus aspectos materiais, aqueles queexpressavam a vi<strong>da</strong> dos habitantes ao longo <strong>de</strong> quase dois séculos, <strong>de</strong>sapareceram. Oque resta 4 tem sido estu<strong>da</strong>do (cf. BRASIL, <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto, 1997, 2006),com resultados bastante satisfatórios. Mas talvez seja possível avançar mais um pouco.Da Fazen<strong>da</strong> do Leitão, afora o “Casarão” do MHAB, não restaram vestígios. Não éobjetivo <strong>de</strong>sta curta reflexão fazer um estudo aprofun<strong>da</strong>do sobre a fazen<strong>da</strong>, que obrigariaa um mergulho na organização social, na ecologia e na tecnologia disponível. E nacultura material engendra<strong>da</strong> por aquela formação social. Estudo fascinante, e por isso4 Uns poucos artefatos, recolhidos durante a construção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, por funcionários <strong>da</strong> Comissão Construtora<strong>da</strong> Nova Capital, e doados, a partir <strong>de</strong> 1943, para o <strong>Museu</strong> Histórico <strong>de</strong> Belo Horizonte/<strong>Museu</strong> HistóricoAbílio. (Cf. BRASIL, <strong>Museu</strong> Histórico Abílo Barreto, 2006)222


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tapenas posso, por ora, o propor, por exigir fôlego mais largo do que aquele que, nomomento, disponho. Farei, então, apenas algumas observações, como forma <strong>de</strong> chegar,o mais rápido possível, a um museu, e espiá-lo como “arquivo <strong>de</strong> possíveis analogias”.Recupero, no momento, um conceito que formulei antes: todo artefato mobilizacerta quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> matéria, energia e trabalho. De fato, energia, matéria e trabalhoformam um triângulo, diria, difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer. E posso afirmar, com certeza, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que se instalaram na região do Curral <strong>de</strong>l Rei, lá pelos idos <strong>de</strong> 1701, os seguidores doban<strong>de</strong>irante João Leite <strong>da</strong> Silva Ortiz tinham certeza disso. Ortiz trouxe consigo todo umsistema social, baseado na exploração do trabalho escravo, mas o estabelecimento naregião parece também ser <strong>de</strong>vido à abundância <strong>de</strong> cursos d´água relativamentecau<strong>da</strong>losos.A localização <strong>da</strong> se<strong>de</strong> <strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s próximas a um curso d´água,porém suficientemente distantes para evitar enchentes, foi umaconstante <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII, como se po<strong>de</strong> observar nas fazen<strong>da</strong>spaulistas <strong>de</strong>sse período. Como não dispunha <strong>de</strong> água encana<strong>da</strong>, apresença <strong>de</strong> um bicame facilitava o transporte <strong>de</strong> água para o interior <strong>da</strong>casa...” (PEDERZOLI, 2003, p.19)Mas não só <strong>da</strong> casa. A água se constituía em importante fonte <strong>de</strong> energia, juntocom os animais <strong>de</strong> tração, a principal. É interessante, neste ponto, observar que aenergia é, basicamente, a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que um corpo, substância ou sistema físico têm <strong>de</strong>realizar trabalho. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, a energia não é umaquanti<strong>da</strong><strong>de</strong> inesgotável. Ao contrário, essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> é imutável: um sistema isoladopossui uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>. Essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> não aumenta nem diminui – ela setransforma.Um córrego, por exemplo (já que é o assunto), po<strong>de</strong> prover certa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>energia, enquanto a água correr. Existem formas <strong>de</strong> aumentar a extração <strong>da</strong> energiaconti<strong>da</strong> nesse sistema, mas aumentar sua quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> não é possível. A energia <strong>de</strong> nossocórrego – digamos, o córrego do Leitão, que passava diante <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>... – se expressano movimento <strong>da</strong> água – a água correndo. E assim é em qualquer sistema: energiapotencial (a tal “quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> conti<strong>da</strong>”) só se torna aproveitável caso seja converti<strong>da</strong> emmovimento, em energia cinética (cf. SALEM, 1995, p.192). É esse o tipo <strong>de</strong> energia quenos interessa diretamente, pois é a que po<strong>de</strong> se converter em trabalho 5 . O problema écomo aproveitar essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia. Neste ponto, a beleza <strong>da</strong> coisa to<strong>da</strong> setorna tangível: a criação <strong>de</strong> engenhos que permitem potencializar o movimento e5 A palavra vem do grego energês, em - “em, <strong>de</strong>ntro” + érgon,ou “trabalho, obra, ação”.223


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ttransformá-lo em outro tipo <strong>de</strong> trabalho. Basicamente, esses engenhos não fazem outracoisa que não seja or<strong>de</strong>nar e potencializar o movimento. Digamos, <strong>de</strong> maneira direta eabsolutamente precisa, que um aspecto importantíssimo <strong>da</strong> trajetória humana consisteem capturar energia.Neste ponto, po<strong>de</strong>mos falar em engenhos que se apropriam <strong>da</strong> energia cinéticasolta pela natureza e o convertem em energia pronta para ser aplica<strong>da</strong> à matéria. Nãovamos complicar apelando, por exemplo, para o arco e a flecha que já citamos. Já que éum córrego, falemos um pouco, inicialmente, do monjolo. Trata-se <strong>de</strong> um mecanismonotável pela simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e, ain<strong>da</strong> assim, pela eficiência. O monjolo permite uma analogiadireta com o sistema mão-braço-ombro, sendo perfeitamente possível inferir as relaçõesentre as partes dos sistemas, que são poucas (basicamente <strong>de</strong> 8 a 10 peças), e asrelações entre as mesmas partes do sistema orgânico humano. Usado no processamento(socagem) <strong>de</strong> cereais, ou para triturar minerais, o pilão, um tipo <strong>de</strong> martelo, écuriosamente chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> “mão-<strong>de</strong>-pilão” (note-se como as analogias orgânicas sãomuito comuns quando se fala em artefatos). Essa mão-<strong>de</strong>-pilão está integra<strong>da</strong> à umahaste feita em ma<strong>de</strong>ira durável que tem, na outra extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um cocho, ou seja, umreceptáculo – o “rabo” – escavado na própria haste. As três partes formam uma únicapeça, embora tenham funções distintas. Esse conjunto está apoiado numa forqueta,chama<strong>da</strong> “virgem”, on<strong>de</strong> se apóia a haste. No receptáculo cai certa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> água,que altera o equilíbrio do conjunto, ao tornar a extremi<strong>da</strong><strong>de</strong> do cocho mais pesa<strong>da</strong> do quea do pilão. No momento em que o <strong>de</strong>sequilíbrio acontece, a extremi<strong>da</strong><strong>de</strong> do cocho <strong>de</strong>sce,adquirindo veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> conforme mais água entra no sistema. No fim do trajeto, aaceleração aju<strong>da</strong> a <strong>de</strong>scarregar o peso extra em água, por gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O trabalho tambémserá feito por gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, na que<strong>da</strong> do pilão sobre um outro cocho, este cheio <strong>de</strong> cereais:milho, arroz, café, amendoim, para socar. Não cabe aqui um estudo mais apurado sobreos princípios físicos, bastante complexos, que tornam esse artefato eficaz. É suficiente,pelo momento, <strong>de</strong>monstrar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> analogia e a generalização que se tornapossível a partir <strong>de</strong>la. Ain<strong>da</strong> mais fascinante é o fato <strong>de</strong> que esse artefato tem um similarfeito para uso humano, o “pilão”, que <strong>de</strong>ve ter sido a origem do monjolo. Neste segundocaso, a analogia entre sistema e relações <strong>da</strong>s partes também é precisa.A fabricação <strong>de</strong>sses artefatos implica em uma gama <strong>de</strong> conhecimentos queconvém examinar, ain<strong>da</strong> que brevemente. Em princípio, ain<strong>da</strong> que se trate <strong>de</strong> invençõessimples, “não se trata <strong>de</strong> uma invenção realiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma só vez, mas resultante <strong>de</strong> umasucessão, <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> invenções to<strong>da</strong>s elas orienta<strong>da</strong>s para o mesmo fim, ou seja,fazer aumentar continuamente as fontes <strong>de</strong> energia conforme a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>.” (Parrain,224


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tapud GAMA, 1985, p.156) Supondo que o pilão manual (conhecido entre os índiosbrasileiros) seja um antecessor do monjolo, essa continui<strong>da</strong><strong>de</strong> não se <strong>de</strong>u na Américapré-cabralina 6 . Isso nos permite a conclusão <strong>de</strong> que, nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s indígenas, não eranecessário mobilizar mais energia do que aquela produzi<strong>da</strong> pelos próprios integrantes. Jáo monjolo implica na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizar energia <strong>de</strong> forma contínua, e umconseqüente conhecimento <strong>de</strong> materiais e técnicas <strong>de</strong> fabrico. Tanto a mão-<strong>de</strong>-pilãoquanto a haste e a forqueta precisam ser feitas <strong>de</strong> uma ma<strong>de</strong>ira dura: maçaranduba,limoeiro, guatambu, canela-preta, peroba. Não é necessário que as medi<strong>da</strong>s sejamprecisas, mas um gabarito mínimo <strong>de</strong>ve haver, posicionando as diversas partes dosistema e permitindo sua montagem. Deve-se também observar que esse sistema,enquanto usado para o trabalho específico <strong>de</strong> moer grãos, tornava <strong>de</strong>snecessário o uso<strong>de</strong> peças <strong>de</strong> cantaria ou metal, o que exigiria, possivelmente, uma divisão <strong>de</strong> trabalhomais complexa. O corte <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras duras, assim como o aparelhamento <strong>da</strong>s mesmasexigiu, para maior eficiência, lâminas <strong>de</strong> metal, mas não estamos falando <strong>de</strong> umasocie<strong>da</strong><strong>de</strong> fecha<strong>da</strong>, embora <strong>de</strong> relações econômicas menos complexas.A água movimenta o sistema. Já falamos <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, para os trabalhos <strong>de</strong>uma fazen<strong>da</strong>, <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> córregos ou riachos, como fontes <strong>da</strong> energia <strong>da</strong> águacorrente. Mas a água corrente precisa chegar até os maquinismos. Isso era feito através<strong>de</strong> uma calha, chama<strong>da</strong>, em geral, <strong>de</strong> “bicame”, “bica” ou “rego”, origina<strong>da</strong> num cursod´água qualquer <strong>de</strong> volume razoável.A simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> do mecanismo tem a contraparti<strong>da</strong> nas suas limitações.Sua veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> funcionamento é <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> e ao mesmo tempolimita<strong>da</strong> tanto pelo fluxo <strong>de</strong> água quanto pela posição do eixo <strong>da</strong> haste.Este ponto é importante, pois vai <strong>de</strong>finir a força do impacto <strong>de</strong>ntro dopilão e, ao mesmo tempo, impor o limite <strong>de</strong> veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> ao equipamento.(GUIMARÃES, 2008, p.13)Em alguns casos, é necessário construir um tanque, para otimizar oaproveitamento <strong>da</strong> água, mas isso acontece quando o sistema atinge maioresproporções. Em geral, a otimização é <strong>de</strong>snecessária, visto que as condições <strong>de</strong> utilizaçãodo sistema tornam o <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> água um fator que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scartado comoproblema. É interessante observar que, no interior <strong>de</strong> Minas, se costuma dizer que omonjolo é “trabalhador sem jornal”, ou seja, sem pagamento. De fato, esse dito se aplicaconforme se observa as condições pouco <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s forças produtivas, quecondiciona uma cultura material rústica, correspon<strong>de</strong>nte a <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s materiais <strong>de</strong>6 A origem <strong>de</strong>sse artefato seria chinesa, e sua introdução no Brasil teria sido feita por Brás Cubas, naprimeira meta<strong>de</strong> do século 16 (cf. John Mawe, 1812, apud GUIMARÃES, 2004, p.13)225


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tresolução relativamente simples. A própria irregulari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos cursos d´água, <strong>de</strong>vido, porexemplo, à incidência <strong>de</strong> períodos <strong>de</strong> seca, po<strong>de</strong>ria ser compensa<strong>da</strong> com a utilização <strong>de</strong>monjolos “<strong>de</strong> mão”, variação do equipamento na qual a fonte <strong>de</strong> água era substituí<strong>da</strong> porum operador humano. A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> manutenção <strong>de</strong> certa produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria serexplica<strong>da</strong> pelo uso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra escrava.Seriam as condições <strong>da</strong> “Fazen<strong>da</strong> do Leitão”. Conforme levantaram os topógrafos<strong>da</strong> Comissão Construtora, com certo cui<strong>da</strong>do, a “Fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Cândido Lúcio” estariadota<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos esses equipamentos: dois engenhos, uma fornalha e um moinho. Quaseparalela ao córrego do Leitão, uma notação parece correspon<strong>de</strong>r a um “rego”, que passapor <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quelas estruturas. Um dos engenhos provavelmente <strong>de</strong>stinava-se a moercana – o que explica a presença <strong>de</strong> uma fornalha perto <strong>de</strong>le; o segundo é mais difícil <strong>de</strong>explicar, mas talvez fosse um moinho <strong>de</strong> pedra, para fazer fubá. Certamente erammovidos por animais, visto que não faria sentido uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>quelas proporções,ter uma ro<strong>da</strong> d’água, que exigiria obras mais complexas e mais caras. Uma terceiraestrutura, menor, um pouco mais distante e alimenta<strong>da</strong> por um “rego” que <strong>de</strong>rivava doprincipal era, possivelmente, um monjolo. Não é possível <strong>de</strong>duzir que essa <strong>de</strong>rivaçãotransportasse água por um bicame, mas talvez isso explique a distância entre as trêsestruturas.Talvez a essa uni<strong>da</strong><strong>de</strong> produtiva possa ser revela<strong>da</strong> caso relaciona<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>uma tipologia característica <strong>da</strong> região <strong>da</strong>s Minas. “As fazen<strong>da</strong>s que se estabeleceram nosarredores do Curral <strong>de</strong>l Rei se <strong>de</strong>dicaram à criação <strong>de</strong> cavalo, vacum, lanígero, àplantação <strong>de</strong> mandioca, milho, cana-<strong>de</strong>-açúcar e algodão.” (BRASIL, <strong>Museu</strong> HistóricoAbílio Barreto, 1997, p.10). Região próspera durante o ciclo do ouro, foi seriamenteatingi<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>cadência <strong>da</strong> mineração. Decaiu, mas não <strong>de</strong>sapareceu: as diversasfazen<strong>da</strong>s estabeleci<strong>da</strong>s na região sobreviveram, apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Uma <strong>da</strong>spossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência era a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que essas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas tinham<strong>de</strong> se auto-sustentarem. As fazen<strong>da</strong>s acumulavam um “saber-fazer” que só era rústico naaparência, mas que reunia um conhecimento sobre as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, a forma<strong>de</strong> as respon<strong>de</strong>r e como fazer o meio ambiente funcionar como ponte entre <strong>de</strong>man<strong>da</strong> eresposta.A “Fazen<strong>da</strong> do Leitão”, volta<strong>da</strong> para a produção <strong>de</strong> subsistência e para abastecero mercado local, certamente ajustava-se a um mo<strong>de</strong>lo no qual a produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> eraregula<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>man<strong>da</strong> gera<strong>da</strong> num raio relativamente pequeno. As necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>fazen<strong>da</strong> que não podiam ser gera<strong>da</strong>s pela própria fazen<strong>da</strong>, o eram pelo comércio local.226


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEmpreendimentos maiores exigiam maior mobilização <strong>de</strong> energia, e, porconseguinte, uma tecnologia mais sofistica<strong>da</strong>. Certamente essa tecnologia já existia emobilizava as mesmas fontes <strong>de</strong> energia que atendiam as pequenas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas<strong>da</strong>s fazen<strong>da</strong>s: os cursos d´água. Também mobilizavam matérias-primas e técnicasconstrutivas – o “saber fazer” – disponíveis na própria região. E uma a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong>técnica e <strong>da</strong> tecnologia quando a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> faz necessária.Em alguns casos, após sua consoli<strong>da</strong>ção em um <strong>de</strong>terminado campo, atécnica foi redireciona<strong>da</strong> para outra ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, como parece ter sido ocaso do engenho <strong>de</strong> pilões que, <strong>de</strong>senvolvido para a soca <strong>de</strong> grãos, foiaplicado posteriormente na mineração. (GUIMARÃES, 2008, p.12)Esse tipo <strong>de</strong> “engenho” era um aperfeiçoamento do monjolo, permitindopotencializar a energia gera<strong>da</strong> por um córrego. Só que a energia gera<strong>da</strong> pelo movimento<strong>da</strong> água ativa uma gran<strong>de</strong> ro<strong>da</strong>, que, por sua vez, aciona diversas alavancas (entre três ecinco, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> potência <strong>da</strong> corrente <strong>de</strong> água e do diâmetro <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>. O mecanismoé “similar ao <strong>de</strong> uma caixa <strong>de</strong> música ou realejo” (a analogia, excelente, é <strong>de</strong> CarloMagno Guimarães). O artefato é interessante a começar por sua antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>. Asevidências mais recua<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seu uso remontam à Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> greco-romana. Ohistoriador <strong>da</strong> tecnologia Michael J. T. Lewis aponta para evidências <strong>de</strong> que o engenheirogrego Philo <strong>de</strong> Bizâncio teria <strong>de</strong>scrito sistemas baseados em ro<strong>da</strong>s d´água em seutratado <strong>de</strong> mecânica, <strong>da</strong>tado do século II a. C. Outros autores gregos tambémmencionam ro<strong>da</strong>s d´água, com a função específica <strong>de</strong> moer grãos (cf. LEWIS, 1997,p.VIII-IX).Nesse sistema, a analogia com a mão-braço-ombro continua sendo possível e, atécerto ponto, evi<strong>de</strong>nte. O número <strong>de</strong> partes é que se multiplica e as relações entre elas setornem mais complexas. O aproveitamento <strong>da</strong> potência gera<strong>da</strong> pela corrente <strong>de</strong> águapassa a exigir um eixo-motor, que, por possibilitar a transmissão <strong>de</strong> energia paramúltiplas hastes, minimiza o <strong>de</strong>sperdício inerente ao mesmo e potencializa todo oprocesso. A construção dos tanques se torna necessária e exige conhecimentosespecializados, do contrário é preciso contar com um curso d´água bem mais cau<strong>da</strong>losoque um córrego. Nesse caso é até possível trazer a água por bicames <strong>de</strong> certo porte, quea fazem precipitar <strong>de</strong> altura maior. Um sistema <strong>de</strong>sses po<strong>de</strong> ser usado para produzirfarinha <strong>de</strong> mandioca, fubá, para triturar minerais, nas forjas e no tratamento <strong>de</strong> tecidos.A fazen<strong>da</strong> Cachoeira fica no município <strong>de</strong> Bom Despacho, ao lado <strong>de</strong>Martinho Campos. Funciona [o engenho <strong>de</strong> pilões] através do eixo e <strong>da</strong>spalhetas. A palheta pega o semi-eixo <strong>da</strong> mão <strong>de</strong> pilão e eleva a certaaltura. Quando termina o ciclo <strong>da</strong> palheta, ela se solta, cai e traz a mão227


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong> pilão ao coxo para pilar o grão que estiver <strong>de</strong>ntro. A energia é água.O custo é zero’, disse o agricultor José Tales <strong>da</strong> Silva. (GLOBO RURAL,2008)É muito provável que o sistema mostrado pelo agricultor mineiro, ain<strong>da</strong>plenamente em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja semelhante aquele relacionado em um inventáriolevantado em 1810, “engenho <strong>de</strong> pilões <strong>de</strong> fazer farinha” (José Newton C. <strong>de</strong> Meneses,apud GUIMARÃES, 2008, p.15).Talvez a produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> também não tenha mu<strong>da</strong>do: um moinho <strong>de</strong> pilões <strong>de</strong> portemédio faz um ou dois sacos <strong>de</strong> fubá por dia, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do número <strong>de</strong> pilões. É, porsinal, esse o problema – a produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sses sistemas não suficiente para colocá-losnuma re<strong>de</strong> mais extensa do que a local. É nesse ponto, quando a expansão do sistemapassa a criar <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s que não po<strong>de</strong>m ser atendi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> forma usual, que emergemnovas soluções. As tradicionais ten<strong>de</strong>m, a partir <strong>de</strong> então, a serem postas <strong>de</strong> lado.COMO CULTURA MATERIAL, ANALOGIA E INTERPRETAÇÃOApresentei, ao longo <strong>de</strong>sses espaços, alguns exemplos <strong>de</strong> como po<strong>de</strong> se<strong>de</strong>senvolver a reflexão em torno <strong>da</strong> cultura material. Disciplina aponta<strong>da</strong> como “flexívelcontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> epistemológica” (BUCCAILLE; PESEZ, 1989, p.12), tem aperfeiçoado seuobjeto, que <strong>de</strong>limita como os aspectos não-simbólicos <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pela humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e para os inumeráveis artefatos, técnicas e materiais queconformam essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, sem, entretanto, retirá-los do processo histórico que osorigina.Como conclusão, é possível dizer que os estudos <strong>de</strong> cultura material <strong>de</strong>veriamestar em expansão em nosso país, visto que artefatos e processos representam, comodissemos acima, a materialização dos processos históricos. Não cabe aqui discutir acuriosa atitu<strong>de</strong> refratária aos estudos <strong>de</strong> cultura material observável em boa parte <strong>da</strong>sdisciplinas científicas que <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>la não abrir mão. Os motivos po<strong>de</strong>m ser diversos,mas a “imprecisão conceitual” (cf. BUCCAILLE; PESEZ, 1989, p.45) que a acompanhatalvez seja um <strong>de</strong>les, a reduzir seu status científico. Essa timi<strong>de</strong>z <strong>da</strong> cultura material nãoseria, pelo menos segundo alguns autores, restrita a nosso país. Também em nosso paísé com a arqueologia que os estudos <strong>de</strong> cultura material mantêm suas vinculações maisestreitas. “A arqueologia <strong>de</strong>scobre objetos concretos: sem impedir os <strong>de</strong>senvolvimentossugeridos pelas relações que se estabelecem entre estes objetos e que atingem o nível<strong>da</strong>s organizações sociais ou <strong>da</strong>s representações, a arqueologia será sempre leva<strong>da</strong>, nas228


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsuas reconstituições, a privilegiar os aspectos materiais <strong>da</strong>s civilizações que estu<strong>da</strong>.”(BUCCAILLE; PESEZ, 1989, p.45)Falamos muito, ao longo <strong>de</strong>ste texto, <strong>de</strong> uma fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong>sapareci<strong>da</strong>, que ficavadiante <strong>de</strong> um riacho (o riacho até existe ain<strong>da</strong>, <strong>de</strong> forma inglória, canalizado no subsolo<strong>de</strong> uma aveni<strong>da</strong> belo-horizontina...), num arraial colonial <strong>da</strong> região <strong>de</strong> produção mineral,séculos atrás. O arraial <strong>de</strong>sapareceu, assim como a fazen<strong>da</strong>, tragado por mu<strong>da</strong>nçaspolíticas e sociais no ambiente <strong>de</strong>ntro do qual existiu. Dele, muito pouco restou: umaedificação colonial e alguns artefatos, <strong>de</strong>positados em um museu cujo criador tinha porobjetivo <strong>de</strong> recuperar, tanto quanto possível, o Arraial do Curral <strong>de</strong>l Rei como passado <strong>da</strong>capital <strong>de</strong> Minas Gerais (cf. BITTENCOURT, 2004, p.44). Embora a fazen<strong>da</strong> já tenha sidoestu<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>de</strong>la não restam artefatos: por essa via, não é possível tentar chegar à ela. Noentanto, a surpreen<strong>de</strong>nte capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que tem a cultura tradicional <strong>de</strong> sobreviver fez comque alguns estabelecimentos semelhantes tenham tido melhor sorte, espalhados porMinas Gerais. E, <strong>de</strong>positados em museus, ain<strong>da</strong> estão artefatos que permitem analogias,na direção <strong>da</strong>quelas sobre as quais falamos antes. As analogias nos possibilitamencontrar, nos artefatos, as inúmeras justaposições <strong>de</strong> sentido que ele, mera matéria, vairecebendo. “O artefato é um corpo material, feito <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> encontros, suce<strong>de</strong>ndosecasualmente, mas que foram suas causas necessárias. O artefato não érepresentação, ele é o fluxo natural disciplinado pela mão humana, e que a culturareproduz pela codificação dos efeitos aprisionados.” (MAGALHÃES, 2003, p.173) A “série<strong>de</strong> encontros” a que se refere a imagem quase poética do arqueólogo incluí a formaçãosocial cujas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s lhe <strong>de</strong>ram origem.Encontros que, por sua vez, não cessam <strong>de</strong> acontecer. Vestígios são as pontespossíveis para chegar a um estabelecimento humano <strong>de</strong>saparecido mais <strong>de</strong> uma centena<strong>de</strong> anos atrás. “... embora a fazen<strong>da</strong> do Leitão seja do final do século XIX ... seu modo <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> e o do arraial mantinham as características do mundo rural mineiro, estabelecidoapós a <strong>de</strong>cadência <strong>da</strong> exploração do ouro, no final do século XVIII.” (PEDERZOLI, 2003,p.22) Certamente o “mundo rural mineiro” mudou em seus principais aspectos, e essamu<strong>da</strong>nça ten<strong>de</strong> transformar seus vestígios, em objetos objeto <strong>de</strong> preservaçãopatrimonial. Mas também, e talvez seja essa uma <strong>da</strong>s principais utili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>preservação, em documentos. Os exemplares do que foi possível salvar tornam-se peçasdo tipo especial <strong>de</strong> arquivo em que se constituem os museus: arquivos <strong>de</strong> culturamaterial; e po<strong>de</strong>mos pensar em esten<strong>de</strong>r essa idéia a todo o sistema <strong>de</strong> preservaçãopatrimonial, que, a partir <strong>de</strong> certos pontos <strong>de</strong> vista, po<strong>de</strong>m ser pensados como arquivos<strong>de</strong> cultura material, <strong>de</strong> super-artefatos. Esses documentos possibilitam “ver” o homem.229


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA arqueologia realiza, através <strong>de</strong> artefatos, interpretações que acabam por setornar narrativas que falam <strong>de</strong> um tempo tido como irrecuperável. Isso quer dizer: atribuirsentido. Mas não é, evi<strong>de</strong>ntemente, só ela que o faz. É também o resultado último <strong>da</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> heurística <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ciências – se consi<strong>de</strong>ramos “heurística”, <strong>de</strong> modo nãomuito rigoroso, como “a arte <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>scobertas”). Mas se consi<strong>de</strong>rarmos <strong>de</strong> modorigoroso, também: visto que a heurística investiga fontes e documentos, ao fazê-lo lhesatribui sentido. É essa também a busca <strong>da</strong> cultura material, ao interpretar artefatos.REFERÊNCIASALVES, Célia Regina Araújo. Ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong> Campo <strong>da</strong> CCNC. In: BRASIL, <strong>Museu</strong>Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Tempo e movimentos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> capital. BeloHorizonte: <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto, 2006 (Catálogo <strong>da</strong> exposição <strong>de</strong> longa duraçãodo <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto).BITTENCOURT, José N.. O sítio <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Velha, seus diversos prédios e seusmuseus, 1943-2000. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo. Reinventando o MHAB: o<strong>Museu</strong> e seu novo lugar na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Belo Horizonte: <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto, p. - ,2004.BRASIL, <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto. Velhos horizontes: Um ensaio sobre a moradiano Curral Del Rei. Belo Horizonte: <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto, 1997 (Catálogo <strong>da</strong>exposição <strong>de</strong> média duração realiza<strong>da</strong> pelo <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto entre 1997 e2002).BUCCAILLE, Robert, PESEZ, Jean-Marc. <strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong>. In: ROMANO, Ruggiero (dir.).Homo/Domesticação-<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong>, Enciclopédia Einaudi, v. 16. Lisboa: ImprensaNacional/Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 1989.BRASIL, Sistema Globo <strong>de</strong> Produções. Programa Globo Rural, 28 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009.Disponível em: http://globoruraltv.globo.com/GRural/0,27062,LTO0-4370-335653-1,00.html. Acesso em: 29 <strong>de</strong> Jun. 2009.CARVALHO, Aline Vieira <strong>de</strong>, FUNARI, Pedro Paulo <strong>de</strong> Abreu. As possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>Arqueologia Pública. história e-história. Campinas: Unicamp/CEANS. Atualiza<strong>da</strong> em 24<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2009. Disponível em:http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=arqueologia&id=31. Acesso em: 22 <strong>de</strong>Jun. 2009.DANTAS, Ana Cláudia <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s coloniais americanas. Arquitextos 050 (Textoespecial 241, julho <strong>de</strong> 2004). Disponível em:http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp241.asp. Acesso em: 15 <strong>de</strong> Jun. 2009.GUIMARÃES, Carlos Magno. Água: força, equipamentos, artes e ofícios. In: BRASIL,<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Artes e Ofícios. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Ofícios 3: Jardim <strong>da</strong>s Energias/Ofícios <strong>da</strong>Ma<strong>de</strong>ira. Belo Horizonte: Instituto <strong>Cultura</strong>l Flávio Gutierrez, 2008 (Catálogo <strong>da</strong> exposição<strong>de</strong> longa duração do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Artes e Ofícios).LEWIS, Michael. J. T.. Millstone and hammer: The origins of water power. Hull (U.K.)Univ. of Hull Press, 2a ed., 1998.230


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TLOWENTHAL, David. The past is a foreingn country. Cambridge: Cambridge Univ. Press,1985.MAGALHÃES, Marcos Pereira. O tempo arqueológico. Belém: <strong>Museu</strong> Paraense EmílioGoeldi, 1993.MENESES, Ulpiano T. B. <strong>de</strong>. Memória e cultura material: documentos pessoais noespaço público. Estudos Históricos, v.11, n. 21, p.89-103,1998.PEDERZOLI, Aurora. Uma releitura. In: BRASIL, <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto (2003).MHAB: 60 anos <strong>de</strong> história. Ca<strong>de</strong>rno 1. Belo Horizonte: <strong>Museu</strong> Histórico Abílio Barreto,2003.SALEM, Daniel,. (dir.) Dicionário <strong>da</strong>s Ciências. Petrópolis/Campinas: Vozes/Ed. <strong>da</strong>Unicamp, 1995. Verbete “Energia”. Trad. coord. Mauro M. G. <strong>de</strong> Carvalho.STOCKING Jr., George W (ed.) Objects and the others: Essays on museums a materialculture. Madison: The Wisconsin Univ. Press, 1985.TRIGGER, Bruce G.. História do pensamento Arqueológico. São Paulo: Odysseus, 2004.WIESER, Wolfgang. Organismos, estruturas, máquinas: Para uma teoria do organismo.São Paulo: Cultrix, 1972.231


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TUMA MEMÓRIA SOCIAL OPERÁRIA FORTEDIANTE DE POSSIBILIDADES DIFÍCEIS DEPATRIMONIALIZAÇÃO INDUSTRIALJosé Sergio Leite Lopes *Rosilene Alvim **Tem sido freqüente o aumento do interesse no estudo <strong>da</strong> questão dopatrimônio industrial quando as transformações na produção fabril,provoca<strong>da</strong>s por <strong>de</strong>cisões <strong>da</strong>s empresas diante <strong>de</strong> sua busca por lucro epo<strong>de</strong>r econômico, implicam no abandono <strong>de</strong> instalações e edificações quesignificam parte importante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social local. A literatura nacional e internacional sobrepatrimônio industrial aponta para este processo 1 . Tendo feito pesquisas, na segun<strong>da</strong>meta<strong>de</strong> dos anos <strong>de</strong> 1970, num importante pólo industrial cuja existência remontava aoinício do século XX, mantido comunicação com os ex-pesquisados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então e voltado* Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>Museu</strong> Nacional, Departamento <strong>de</strong> Antropologia. MUSEUNACIONAL, QUINTA DA BOA VISTA, S/N, SÃO CRISTÓVAO, 20940-040 - Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ - Brasil. .jsergiollopes@gmail.com. Antropólogo, professor associado do <strong>Museu</strong> Nacional <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral doRio <strong>de</strong> Janeiro. Fez graduação em Economia pela Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica do Rio <strong>de</strong> Janeiro (1969),mestrado em Antropologia Social pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (1975) e doutorado emAntropologia Social pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (1986). Fez pós-doutorado na Ecole <strong>de</strong>sHautes Etu<strong>de</strong>s en Sciences Sociales <strong>de</strong> Paris (1988-1990). É professor do <strong>Museu</strong> Nacional-UFRJ <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1978. Foi professor visitante na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco (2002-2005). Tem experiência na área<strong>de</strong> Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia do trabalho e dostrabalhadores, meio ambiente e conflitos sociais, história social <strong>da</strong>s ciências sociais relaciona<strong>da</strong>s ao trabalhoe antropologia do esporte.** Possui graduação em Filosofia pelo IFCS (1966), mestrado em Antropologia Social pela UFRJ (1972) edoutorado em Antropologia Social pela UFRJ (1985), Pós-Doutorado em Sociologia <strong>da</strong> <strong>Cultura</strong> (Ecole <strong>de</strong>sHautes Etu<strong>de</strong>s en Sciences Sociales (1988-1990). Atualmente, é professor adjunto IV <strong>da</strong> UFRJ. Temexperiência na área <strong>de</strong> Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, atuando principalmente nosseguintes temas: juventu<strong>de</strong>, construção social <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>, familia <strong>da</strong>s classes trabalhadoras, cultura eviolência.1 Ver Meneguello e Rubino, 2004, em especial o prefácio <strong>da</strong>s organizadoras (“Prefácio: patrimônio industrial,perspectivas e abor<strong>da</strong>gens”), o capítulo 1 <strong>de</strong> José Manuel Lopes Cor<strong>de</strong>iro (“Arqueologia industrial: um mundoa <strong>de</strong>scobrir, um mundo a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r”) e o cap. 21 <strong>de</strong> Letícia Mazzuchi Ferreira (“Tecendo a memória: a FábricaRheingantz”). Ver também J-L. Tornatore, 2004, p. 82.232


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpara a área <strong>de</strong> pesquisa nos últimos anos, tivemos oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> observar ocrescimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> social pela objetivação <strong>da</strong> memória coletiva local namedi<strong>da</strong> mesma <strong>de</strong> uma forte <strong>de</strong>sindustrialização na área 2 . Trata-se do estudo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>social dos trabalhadores têxteis e suas famílias que foram reunidos para o trabalho nasfábricas <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Tecidos Paulista, em Pernambuco, que era a maior <strong>de</strong> muitasoutras fábricas no interior e no entorno <strong>de</strong> Recife. A peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta companhia era ofato <strong>de</strong> possuir gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> terra ao norte <strong>de</strong> Recife, tendo formado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> osanos 30 um município em que, além <strong>da</strong>s fábricas, tinha o monopólio <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>territorial. Este caso-limite <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> industrial, com suas vicissitu<strong>de</strong>s históricas ao longodo século XX, e com uma população resi<strong>de</strong>nte que sobreviveu no local após ofechamento <strong>da</strong> fábrica e é testemunha <strong>de</strong> uma história pela qual os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>família patronal <strong>de</strong>monstram total ausência <strong>de</strong> preservação mínima, po<strong>de</strong> serinteressante para se pensar a relação entre a riqueza <strong>da</strong> expressão oral <strong>de</strong> uma históriaincorpora<strong>da</strong> em <strong>de</strong>saparecimento e os obstáculos e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s em torná-la objetiva<strong>da</strong>para as novas gerações locais e para um público mais amplo.Apesar <strong>da</strong>s transformações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, que aparece diversifica<strong>da</strong> em termoseconômicos e sociais, tendo quadruplicado sua população entre os anos 70 e o fim dosanos 2000, em que as antigas instalações fabris <strong>da</strong> CTP aparecem como ruínas, ain<strong>da</strong>assim to<strong>da</strong> a sua história está liga<strong>da</strong> às suas relações com aquela empresa industrial.Nestes últimos trinta anos a Companhia <strong>de</strong> Tecidos Paulista havia intensificado a ven<strong>da</strong><strong>de</strong> muitas <strong>de</strong> suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que até os anos 60 ocupavam a quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>sterras do município.Quando fomos pela primeira vez a Paulista, em 1976, algumas <strong>de</strong>stastransferências <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> já haviam sido efetua<strong>da</strong>s. Entre 1966 e o fim dos anos <strong>de</strong>1970, a maior parte <strong>da</strong>s casas <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> vila operária <strong>da</strong> CTP, que constituíam as áreasedifica<strong>da</strong>s no centro do município, havia sido adquiri<strong>da</strong> pelos seus operários estáveiscomo parte <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizações trabalhistas, fazendo <strong>de</strong> seus ex-operários proprietários <strong>da</strong>scasas on<strong>de</strong> moravam. Uma ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> terras concomitante, para a criação <strong>de</strong> um distritoindustrial numa área antes periférica do município, já então corta<strong>da</strong> pela estra<strong>da</strong> fe<strong>de</strong>ralBR-101, acabou com o monopólio industrial que fez surgir e <strong>de</strong>senvolver a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> atéentão, propiciando o estabelecimento <strong>de</strong> diversas novas fábricas, em geral filiais <strong>de</strong>fábricas do sul do país.2 Estas pesquisas anteriores foram feitas nesta locali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre 1976 e 1983, tendo resultado em váriaspublicações conjuntas e em separado, e, em particular, dois livros e um documentário <strong>de</strong> 70 min.: Alvim(1997) e Leite Lopes (1988); e Leite Lopes, Brandão e Alvim; (Tecido Memória, 2008).233


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TSurpreen<strong>de</strong>nte para nós foi a nossa volta, em 2003, mais <strong>de</strong> vinte anos após o fim<strong>de</strong> nosso primeiro período <strong>de</strong> pesquisa entre 1976 e 1983: além <strong>da</strong> <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>populacional <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> continuar aumentando, uma auto-estra<strong>da</strong> recém-inaugura<strong>da</strong>, aPE-15, passa com suas quatro pistas ao longo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, cortando uma <strong>da</strong>s duasfábricas tradicionais <strong>da</strong> CTP ao meio. A CTP também ven<strong>de</strong>u terrenos para a companhiahabitacional estadual e vários conjuntos foram construídos entre o fim dos anos 70 até osanos 90. Entre os anos 70 e os anos 2000 a população <strong>de</strong> Paulista quadruplicou,alcançando atualmente perto <strong>de</strong> 300 mil pessoas. Se até o início dos anos 60 a vilaoperária recebia um gran<strong>de</strong> fluxo <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong> trabalhadores provenientes <strong>da</strong> área rural<strong>de</strong> Pernambuco e <strong>de</strong> estados vizinhos, isto é, do campo para o arrabal<strong>de</strong> <strong>da</strong> capital; apartir dos anos 80, com o povoamento dos novos conjuntos habitacionais, o fluxopopulacional inverteu-se <strong>de</strong> Recife para Paulista, <strong>da</strong> capital para o subúrbio <strong>da</strong> áreametropolitana.Estas transformações acabaram <strong>da</strong>ndo surgimento, numa parte <strong>da</strong> populaçãolocal, a uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação <strong>da</strong> memória social <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em seu períodopioneiro, <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> industrial monopoliza<strong>da</strong> por uma companhia têxtil.A relação do grupo social estu<strong>da</strong>do com o seu passado já havia sido coloca<strong>da</strong>para nós pelos próprios trabalhadores em Paulista nos anos 70, com a ênfase na suatrajetória que vinha <strong>de</strong> uma origem camponesa e que <strong>de</strong>pois acompanhava um períodoem que as aparências <strong>de</strong> prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> companhia têxtil -- assim como as própriaslutas por melhorias <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> trava<strong>da</strong>s contra esta mesma companhia --passavam-lhes uma digni<strong>da</strong><strong>de</strong> adquiri<strong>da</strong> no passado diante <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s do tempopresente. Quando terminamos, em 1983, a fase mais intensa e prolonga<strong>da</strong> <strong>de</strong> nossapesquisa com os operários <strong>de</strong> Paulista, parecia-nos que estavam <strong>da</strong><strong>da</strong>s condiçõesfavoráveis para que a história e a memória <strong>da</strong>quele grupo social, que lhes <strong>da</strong>vai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, fossem transmiti<strong>da</strong>s às gerações seguintes. Ali estava um grupo formado porrelações <strong>de</strong>nsas <strong>de</strong> parentesco e vizinhança, com uma história cheia <strong>de</strong> peripéciasenvolvendo não somente a política e a vi<strong>da</strong> social locais, mas atingindo as escalas <strong>da</strong>política estadual e nacional (com episódios logo após a Revolução <strong>de</strong> 30, no conflito pelaaplicação <strong>da</strong> lei nacional <strong>de</strong> 8 horas <strong>de</strong> trabalho; as relações entre o Estado, a CTP e osindicato durante o Estado Novo e a segun<strong>da</strong> guerra mundial; nos anos 50 e 60, atravésdo sindicalismo), com uma trajetória que se finalizava parcialmente vitoriosa através doacesso à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s casas <strong>da</strong> vila operária por efeito <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização trabalhista. Noentanto, a partir <strong>de</strong>ste período, em meados dos anos 80, transformaram-se as própriascondições do modo <strong>de</strong> geração dos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>quele grupo operário. Declinaram as234


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tchances <strong>de</strong> emprego industrial estável para as novas gerações; aumentaram os esforços<strong>da</strong>s famílias numa escolarização mais prolonga<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus filhos sem que istoredun<strong>da</strong>sse em melhores empregos; a população <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mudou sua composição coma chega<strong>da</strong> em massa <strong>de</strong> novos habitantes provenientes do Recife para ocuparem osnovos conjuntos habitacionais.É neste contexto que aparecem fortes <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s pela recuperação esistematização <strong>da</strong> memória social <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> por parte <strong>de</strong> agentes significativos doespaço público local. E on<strong>de</strong> a volta dos pesquisadores ao local sobre o qual produziramteses, artigos e livros não é <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong> por tais agentes; a própria condição <strong>de</strong>pesquisador-coletor <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos é vista <strong>de</strong> forma diferente e transforma<strong>da</strong> em pesquisadortestemunha <strong>da</strong> história, em sistematizador e colaborador na divulgação <strong>da</strong> história local 3 .Esta nova inserção será um pretexto inicial para avaliarmos neste artigo astransformações por que passaram os operários têxteis <strong>de</strong>sse município representativo domodo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e do estilo <strong>de</strong> grupos sociais construídos na antiga industrializaçãobrasileira, no novo contexto <strong>da</strong> <strong>de</strong>sindustrialização que afeta muitas <strong>de</strong>ssas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>sem todo o país. Para isso, também será necessário <strong>da</strong>r a conhecer a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>or<strong>de</strong>m industrial implanta<strong>da</strong> no passado, que se utiliza <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> legitimação novaspara o momento <strong>de</strong> sua criação, mas que se apóia sobre a linguagem <strong>de</strong> formastradicionais <strong>de</strong> dominação. Estas formas <strong>de</strong> dominação também condicionam o conteúdodos conflitos sociais e <strong>da</strong> associativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos operários. E é este universo que éretomado nos dias <strong>de</strong> hoje por uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> historiadores locais espontâneos parareinventar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social ameaça<strong>da</strong>. Nossa volta a campo não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>interagir com esta <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> memória que condicionou a maneira como se constituiuum novo corpus <strong>de</strong> informações sobre as transformações recentes, assim como novasinformações sobre o passado que agora pu<strong>de</strong>ram ser por nós recebi<strong>da</strong>s.Diferentemente <strong>da</strong> pesquisa anterior em que palmilhamos o território <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong><strong>de</strong> operários e ex-operários cujo centro era formado por militantes ou ex-militantes <strong>de</strong>3 Ilustração disto po<strong>de</strong> ser o fato <strong>de</strong>, ao entrarmos novamente no sindicato dos tecelões após alguns anos <strong>de</strong>ausência, encontrarmos, emoldura<strong>da</strong>s na sala <strong>da</strong> diretoria, ampliações <strong>de</strong> duas fotos <strong>de</strong> assembléias <strong>de</strong>greves que foram reproduzi<strong>da</strong>s do livro <strong>de</strong> um <strong>de</strong> nós (Leite Lopes, 1988), fotos consegui<strong>da</strong>s no arquivo doJornal do Comercio <strong>de</strong> Recife em 1977, num período em que ain<strong>da</strong> eram consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s pelas autori<strong>da</strong><strong>de</strong>sfotos subversivas. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> recuperação <strong>da</strong> história anterior a 1964, que não foi vivi<strong>da</strong> pela geração queagora dirige o sindicato, po<strong>de</strong> ser observa<strong>da</strong> por este e por outros <strong>de</strong>talhes. Apesar <strong>de</strong> nossos dois livrossobre a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> terem sido por nós doados a pessoas pesquisa<strong>da</strong>s que se tornaram nossas amigas, não foipor esta via que o livro com as duas fotos referi<strong>da</strong>s chegou ao sindicato, mas através <strong>de</strong> um agente religioso,<strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong> nós, que já não estava mais na área. Além disso, nossos livros foram posteriormenterequisitados por membros do conselho <strong>de</strong> patrimônio histórico do Estado <strong>de</strong> Pernambuco para subsidiar aanálise <strong>de</strong> solicitação <strong>de</strong> tombamento <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> patronal local e <strong>de</strong> seus jardins, objeto <strong>de</strong> reivindicação<strong>de</strong> um movimento entre a população local, que será tratado mais adiante neste artigo (ver FUNDARPE,2004).235


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmovimentos sociais locais que tinham confiança nos pesquisadores num período <strong>de</strong><strong>de</strong>sconfiança e medo diante do clima repressivo do regime militar; agora, podia-se teracesso a uma gama mais diferencia<strong>da</strong> <strong>de</strong> grupos e re<strong>de</strong>s sociais locais. Além dos efeitos<strong>da</strong> re<strong>de</strong>mocratização do país, o momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> traços materiaissignificativos do passado acaba propiciando a reunião <strong>de</strong> grupos sociais que antespertenciam a lugares diferentes do espaço social local.A ca<strong>da</strong> entrevista feita no sindicato e em várias visitas feitas a antigospesquisados, mais que a transmissão <strong>de</strong> informações aos pesquisadores, manifestava-sea solicitação <strong>de</strong> um auxílio <strong>de</strong> nossa parte para documentar a história que se sentia estarsendo perdi<strong>da</strong> com o fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles que <strong>de</strong>la foram testemunhas diretas. Algunssindicalistas haviam documentado fotograficamente a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um dos arruados <strong>de</strong>casas <strong>da</strong> vila para a construção <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> PE-15, assim como haviam guiado umajornalista para a realização <strong>de</strong> várias entrevistas filma<strong>da</strong>s para a produção <strong>de</strong> umareportagem, entrevistas estas <strong>de</strong> que não dispunham (a não ser uma cópia edita<strong>da</strong>, comas entrevistas muito resumi<strong>da</strong>s).Essa <strong>de</strong>man<strong>da</strong> por uma memória sensorial (sobretudo visual, mas tambémauditiva) nos fez digitalizar e apresentar as fotos tira<strong>da</strong>s por nós na locali<strong>da</strong><strong>de</strong> em 1977,para compará-las com fotos recentes <strong>de</strong>notando as transformações aparentes entre osdois períodos; o que suscitou em segui<strong>da</strong> um levantamento <strong>de</strong> arquivos fotográficosprivados <strong>de</strong> moradores locais e <strong>de</strong> seus her<strong>de</strong>iros, assim como <strong>de</strong> ex-moradores <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. E, finalmente, a nova interação com re<strong>de</strong>s pesquisa<strong>da</strong>s, advin<strong>da</strong> não somente <strong>da</strong>busca <strong>de</strong> fotos, documentos e escritos privados (ou institucionais como os do sindicatodos tecelões ou os <strong>da</strong> prefeitura), mas também <strong>da</strong> organização <strong>da</strong>s condições para afeitura <strong>de</strong> um filme documentário, nos fez ter acesso a novos documentos e pontos <strong>de</strong>vista sobre o passado a que não tivemos acesso em nossos períodos <strong>de</strong> campo entre1976 e 1983. Assim, mesmo na volta a antigos pesquisados e entrevistados, on<strong>de</strong> tudosobre o passado já havia aparentemente sido dito; a presença <strong>de</strong> novos instrumentos <strong>de</strong>coleta, mesmo que no nível mínimo do aparato <strong>de</strong> filmagem -- como as pouco volumosascâmeras digitais, tripés e microfones <strong>de</strong> lapela – autorizam, pela introdução dodocumentarista profissional 4 e pelo publico virtual entrevisto por efeito <strong>da</strong> presença dosaparelhos (<strong>de</strong> filmar, <strong>de</strong> gravar e <strong>de</strong> fotografar), a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar a temas jáconhecidos pelos pesquisadores e que se tornaram naturalizados por ambos os lados. E4 Trata-se do cineasta documentarista Celso Brandão (<strong>da</strong> UFAL) que, tendo conosco trabalhado por ocasião<strong>de</strong> seu filme “Memórias <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> e do Trabalho”, sobre as fabricas têxteis alagoanas e suas vilas operárias em1986, dispôs-se a documentar visualmente uma série <strong>de</strong> antigos e novos pesquisados <strong>de</strong>ntre ex-operáriostêxteis <strong>de</strong> Paulista e outros municípios pernambucanos.236


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tassim são registrados, <strong>de</strong> forma diferente, fatos e versões conhecidos, assim comooutros antes <strong>de</strong>sconhecidos.INDUSTRIALIZAÇÃO, DESINDUSTRIALIZAÇÃO E DEMANDAS DEPATRIMONIALIZAÇÃO.A primeira vaga <strong>de</strong> <strong>de</strong>sindustrialização, nos anos <strong>de</strong> 1980, atingiu as indústriastêxteis tradicionais <strong>da</strong> região, fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no inicio do século XX. Algumas haviam iniciadosuas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s na ultima déca<strong>da</strong> do século XIX, outras nos anos <strong>de</strong> 1920.A CTP, que está entre as primeiras, <strong>de</strong>senvolveu-se quando compra<strong>da</strong> em 1904pela família Lundgren, com o patriarca imigrante – que fizera fortuna em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>logística comercial no porto <strong>de</strong> Recife na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX – e três <strong>de</strong>ntreseus cinco filhos que o suce<strong>de</strong>ram pouco <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> compra. Estes três, os IrmãosLundgren, <strong>de</strong>senvolveram, sob a égi<strong>de</strong> do mais velho, conhecido como CoronelFre<strong>de</strong>rico 5 , uma autarquia industrial-comercial que reunia uma planta fabril em expansãono município <strong>de</strong> Paulista em Pernambuco a uma re<strong>de</strong> comercial varejista ven<strong>de</strong>ndotecidos inicialmente nos estados do Nor<strong>de</strong>ste e posteriormente no Su<strong>de</strong>ste do Brasil,on<strong>de</strong> se concentravam as principais companhias <strong>da</strong> indústria têxtil brasileira, via <strong>de</strong> regrasepara<strong>da</strong>s do comercio atacadista e varejista (STANLEY STEIN, 1979). Esta entra<strong>da</strong> <strong>de</strong>uma empresa sedia<strong>da</strong> <strong>de</strong> fato na periferia brasileira e que ousava entrar com sucesso nomercado nacional e inclusive em São Paulo e no Rio <strong>de</strong> Janeiro, é assim acusa<strong>da</strong> <strong>de</strong>práticas <strong>de</strong> dumping industrial, por pagar menores salários e <strong>de</strong> ter uma retaguar<strong>da</strong>autárquica ti<strong>da</strong> como feu<strong>da</strong>l no que concerne à sua força <strong>de</strong> trabalho. De fato, a CTP eraum caso-limite <strong>de</strong> fábrica com vila operária, pela sua magnitu<strong>de</strong> e concentração <strong>de</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s 6 . O auge <strong>de</strong>ssa companhia se dá entre a segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> dos anos 1930 até5 A <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> coronel faz referencia aos títulos <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> nacional imperial a notáveis e senhores compo<strong>de</strong>r econômico e político nas áreas rurais; o que lhes conferia uma legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>, pelo Estado central,virtualmente <strong>de</strong>tentor <strong>da</strong> violência física e simbólica nacional, a senhores <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> monopólios <strong>de</strong> fatonas locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior brasileiro. Por extensão, tal <strong>de</strong>signação passou a ser feita para aqueles gran<strong>de</strong>ssenhores que <strong>de</strong>tinham <strong>de</strong> fato o referido monopólio local. Comum em senhores rurais, esta <strong>de</strong>signação foiestendi<strong>da</strong> a alguns gran<strong>de</strong>s senhores industriais.6 No início dos anos 50, quando se consumou sua construção, a vila tinha por volta <strong>de</strong> 6.000 casas. Era <strong>de</strong>longe a maior do Brasil na época; nenhuma <strong>da</strong>s 300 outras empresas têxteis possuía uma vila comparável.Seu tamanho era igualmente maior que o <strong>de</strong> outras vilas que adquiriram fama internacional, como a <strong>de</strong>Mulhouse – que só contava com 1.240 casas quando foi termina<strong>da</strong>, em 1895 (Cf. GUERRAND, 1987, p. 381)– ou a vila <strong>da</strong>s fábricas Pullman, no sul <strong>de</strong> Chicago, famosa por sua concepção arquitetônica (BUDER, 1975).No Brasil, uma concentração <strong>de</strong> uma população operária <strong>de</strong> dimensões similares ocorreu entre o final dosanos 40 e a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 50, em Volta Redon<strong>da</strong>, RJ, com a instalação <strong>da</strong> CSN. As vilas operárias acabaramnotabilizando-se no caso <strong>de</strong> indústrias em áreas urbanas ou suburbanas em que tiveram um papel mo<strong>de</strong>larno estabelecimento <strong>de</strong> relações prescritivas para as novas populações recém recruta<strong>da</strong>s para o trabalhoindustrial. Na literatura internacional as vilas operárias <strong>de</strong> fábricas aparecem tendo um importante papel nosprocessos <strong>de</strong> proletarização do campesinato e em particular na sua obreirização. Este processo <strong>de</strong>inculcação <strong>de</strong> novos comportamentos e práticas a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s à disciplina e à vi<strong>da</strong> social associa<strong>da</strong>s ao237


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&To inicio dos anos 50 (os anos <strong>da</strong> 2ª guerra mundial e seus <strong>de</strong>sdobramentos imediatos nopós-guerra constituem-se no ponto culminante <strong>da</strong> indústria têxtil brasileira <strong>de</strong> algodão).No final dos anos 50 começa a pesar sobre a indústria têxtil <strong>de</strong> Pernambuco aconcorrência com o pólo dominante em São Paulo, com maior capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnização. No período que se suce<strong>de</strong> ao golpe militar, a CTP, assim como outrasindústrias tradicionais <strong>da</strong> região, procura investir em novas instalações, máquinas eorganização <strong>da</strong> produção, tendo como contraparti<strong>da</strong> um enxugamento do quadro <strong>de</strong>pessoal, e, em particular, com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acuar os seus operários estáveis asaírem <strong>da</strong> fábrica. Essa renovação <strong>da</strong> produção conseguiu prolongar a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> CTP, nasua parte fabril, por cerca <strong>de</strong> vinte anos; a partir <strong>de</strong> 1983 a empresa passará por fortescrises, com para<strong>da</strong>s e retoma<strong>da</strong>s <strong>da</strong> produção, até fechar <strong>de</strong>finitivamente as portas emmeados dos anos 90. Situação similar é sofri<strong>da</strong> pelas <strong>de</strong>mais indústrias tradicionais <strong>da</strong>região em torno dos anos 80 e 90, com algumas poucas resistindo ao longo do tempo 7 .A segun<strong>da</strong> vaga <strong>de</strong> <strong>de</strong>sindustrialização, coincidindo com os últimos momentos <strong>de</strong>algumas <strong>da</strong>s fábricas tradicionais, atinge as novas fábricas têxteis instala<strong>da</strong>s a partir dosúltimos anos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, com recursos e incentivos fiscais <strong>da</strong> SUDENE, que sãofiliais <strong>de</strong> empresas do sul do país, <strong>de</strong> São Paulo e Santa Catarina. Gran<strong>de</strong> parte dosoperários que iniciaram suas carreiras nos últimos anos <strong>da</strong> CTP foi absorvi<strong>da</strong> por essasnovas fábricas. Também muitos operários e suas famílias vieram morar em Paulista<strong>de</strong>vido à proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste distrito industrial; embora a organização <strong>da</strong> produção nasseções <strong>de</strong> tecelagem tenha se voltado para o recrutamento <strong>de</strong> homens <strong>de</strong>vido às novascaracterísticas <strong>da</strong>s máquinas nas indústrias mo<strong>de</strong>rniza<strong>da</strong>s, também havia gran<strong>de</strong>recrutamento <strong>de</strong> mulheres nas seções <strong>de</strong> confecção anexas em algumas <strong>da</strong>s plantasfabris. Com a conjugação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores, tais como a política fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong>liberação <strong>da</strong>s importações têxteis dos anos 90, a guerra <strong>de</strong> incentivos fiscais entre osestados <strong>da</strong> fe<strong>de</strong>ração, entre outros, levaram gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas filiais para outrosestados do Nor<strong>de</strong>ste, ou a reconcentrarem-se nas fábricas originais no Sul do país. Destaforma, o município <strong>de</strong> Paulista per<strong>de</strong> suas características <strong>de</strong> concentração industrial paratornar-se mais uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> dormitório <strong>de</strong>ntre várias na região metropolitana <strong>de</strong> Recife 8 .trabalho industrial acaba formando um habitus operário peculiar na situação <strong>da</strong> forte presença <strong>de</strong> umainstituição que controla simultaneamente o trabalho e a moradia <strong>de</strong> seus subordinados. Para uma análise<strong>de</strong>stes núcleos fabris, com uma extensa documentação histórica e fotográfica, ver Correa, 1998 (com muitasfotos <strong>de</strong> Phillip Gunn).7 Tal é o caso <strong>da</strong> empresa Companhia Industrial Pirapama no município <strong>de</strong> Esca<strong>da</strong>, uns 50 km. ao sul <strong>de</strong>Recife; assim como a Cia. Industrial Pernambucana, <strong>de</strong> Camaragibe, compra<strong>da</strong> pelo grupo <strong>de</strong> São PauloBraspérola e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguns anos fecha<strong>da</strong>, é reaberta pela empresa francesa Vivalin.8 Hoje uma <strong>da</strong>s fábricas que formava o conjunto industrial <strong>da</strong> CTP foi corta<strong>da</strong> ao meio pela PE-15 (umaampliação para quatro faixas <strong>da</strong> estreita estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> mão dupla que existia na direção <strong>de</strong> João Pessoa). Aconstrução <strong>de</strong>sta nova estra<strong>da</strong> é significativa <strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> um período caracterizado pela imobilização <strong>da</strong>força <strong>de</strong> trabalho, para outro período, caracterizado pelos fluxos, inclusive pela flui<strong>de</strong>z <strong>de</strong> uma força <strong>de</strong>trabalho que procura por emprego não mais localmente, mas em to<strong>da</strong> a área metropolitana.238


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNas fábricas remanescentes intensifica-se aquilo que já se passava anteriormenteno distrito industrial, a saber, as técnicas <strong>de</strong> trabalho por produção responsabilizandopequenos grupos <strong>de</strong> operários, o que faz intensificar o processo <strong>de</strong> produção e dificulta asoli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os trabalhadores. Também tais modificações na produção incorporamao mesmo tempo lições <strong>da</strong>s lutas entre operários e administrações fabris em escalacomparativa internacional incluindo aí a própria luta pela imposição <strong>de</strong> novas categorias eclassificações. Assim, se por um lado, tais fábricas ten<strong>de</strong>m a diminuir sua força <strong>de</strong>trabalho com reorganizações produtivas e mo<strong>de</strong>rnizações tecnológicas, tornando-setambém raras na região nos últimos anos, por outro procuram impor uma novahegemonia mais sutil, mas não menos intensa, a começar pelo banimento do uso <strong>da</strong>spalavras operário, em favor <strong>da</strong>s categorias em torno <strong>da</strong>s <strong>de</strong> operador e colaborador.Além disso, a própria <strong>de</strong>signação <strong>da</strong> profissão como a <strong>de</strong> tecelão passa a neutralizar-se<strong>de</strong> seus significados históricos implícitos através <strong>da</strong> <strong>de</strong> operador têxtil, colaboradorpolivalente próprio a trabalhar em qualquer setor.Assinala-se assim, com essas duas vertentes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sindustrialização, otransbor<strong>da</strong>mento do mundo social criado pela antiga fábrica e sua vila operária,fun<strong>da</strong>dora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e do município. Transbor<strong>da</strong>mento gra<strong>da</strong>tivo <strong>de</strong>vido às tensões econflitos no interior <strong>de</strong>sse mundo social, alimentados por processos gerais externos àci<strong>da</strong><strong>de</strong> como movimentos e leis sociais mais amplos.Po<strong>de</strong>-se assim sintetizar este processo do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> tal transbor<strong>da</strong>mento e<strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> industrialização tradicional <strong>da</strong> região, trazendo o fechamento ou asobrevivência <strong>da</strong>s fabricas <strong>de</strong>sfeitas <strong>de</strong> suas vilas operárias. Tendo as fábricas têxteis,constituí<strong>da</strong>s na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, em comum entre si um estilo <strong>de</strong>industrialização procurando atrair e formar novos trabalhadores industriais, as vilasoperárias <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s empresas têm um papel estratégico na trajetória <strong>de</strong>ssascompanhias e <strong>de</strong> seus trabalhadores. O ocaso <strong>de</strong>sse estilo <strong>de</strong> industrialização põe emevidência processos (entre outros): (i) <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s casas para ostrabalhadores e a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> aparência e o crescimento dos bairros operários, (ii) <strong>de</strong>ven<strong>da</strong> <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s territoriais <strong>da</strong>s empresas e <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção, em alguns <strong>de</strong>stesterrenos, <strong>de</strong> novas indústrias pertencentes a uma nova era <strong>de</strong> fábricas <strong>de</strong> beira <strong>de</strong>estra<strong>da</strong> com incentivos estatais e não mais, como as antigas, implanta<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong>sci<strong>da</strong><strong>de</strong>s a que <strong>de</strong>ram origem ou em que tiveram uma hegemonia flagrante em seus<strong>de</strong>stinos políticos e no modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus habitantes (iii) <strong>de</strong> transformação dos bairrosoperários centrados na locali<strong>da</strong><strong>de</strong> em bairros dormitórios alimentando os fluxos <strong>de</strong> umaregião metropolitana maior, (iv) <strong>de</strong> transformação <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma geração para239


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Toutra, fazendo aparecer a chama<strong>da</strong> questão social <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s classes populares,consi<strong>de</strong>rando, no entanto, estratégica a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações familiares entre asgerações, (iv) <strong>de</strong> ven<strong>da</strong> <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s territoriais <strong>da</strong>s empresas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição ou <strong>de</strong>reivindicação <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> patrimônios históricos locais com dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>reconhecimento.Esta ultima tendência, do <strong>de</strong>smonte <strong>da</strong>s fabricas e <strong>de</strong> seus bens imobiliários,inclusive <strong>da</strong>queles vistos como os mais simbólicos e representativos <strong>de</strong> uma era, trazemà baila, para setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil local, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> obtenção dos meios <strong>de</strong>objetivar e reproduzir entre as gerações uma memória que mantenha algo <strong>de</strong> umai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social que foi construí<strong>da</strong> ao longo do século XX.A RECONSTITUIÇÃO DO SISTEMA FABRICA-VILA OPERÁRIA EM SEU PERÍODODE AUGE; MARCOS DE UMA MEMÓRIA SOCIALUma memória <strong>da</strong> dominação incorpora<strong>da</strong>A memória social que se procura recuperar resi<strong>de</strong> em gran<strong>de</strong> parte no relato dosex-operários e operárias remanescentes do período <strong>de</strong> recrutamento intenso <strong>de</strong> mão <strong>de</strong>obra pela fábrica, iniciado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos <strong>de</strong> 1930. O conteúdo <strong>de</strong> tais relatos, ricamentevariados pelas características individuais e familiares singulares, apresenta, no entanto,regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a partir <strong>da</strong>s quais um mo<strong>de</strong>lo prescritivo <strong>de</strong> narrativa do grupo social po<strong>de</strong>ser visto como o resultado construído por um pensamento coletivo. Os elementosrecorrentes são: (a) a vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> famílias <strong>da</strong>s áreas rurais para transformar seus membrosem trabalhadores <strong>da</strong> fabrica, tendo por mo<strong>de</strong>lo geral o recrutamento <strong>de</strong> famíliascamponesas por parte <strong>de</strong> agentes especializados, pagos por produção (a saber, pelonumero <strong>de</strong> famílias numerosas que arregimentavam); (b) a presença patronal naencenação <strong>de</strong> um ritual <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> numa instituição a ser vista como fato social total; (c)o trabalho para todos os membros <strong>da</strong> família, que compõem, a partir <strong>de</strong> um somatório <strong>de</strong>baixos salários, um salário <strong>da</strong> família; (d) a existência <strong>de</strong> benefícios extra-monetárioscomo a concessão <strong>de</strong> pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> terra para a plantação <strong>de</strong> alimentos dirigi<strong>da</strong> a pais <strong>de</strong>família mais velhos para o trabalho fabril; a organização <strong>de</strong> uma feira com preçoscontrolados para baixo, advindos <strong>da</strong> produção camponesa nas vastas terras <strong>da</strong>companhia; a promoção <strong>de</strong> folguedos tradicionais e do futebol através <strong>de</strong> subvenções aclubes; (e) o reconhecimento <strong>de</strong> um governo local <strong>de</strong> fato, com monopólio do mercado <strong>de</strong>trabalho e <strong>da</strong>s casas, assim como o monopólio <strong>da</strong> violência física e simbólica <strong>da</strong>companhia.240


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO relato <strong>da</strong> história coletiva, que é feito <strong>de</strong> forma recorrente e complementar (quena montagem do documentário po<strong>de</strong>m ser dispostas como que em jogral e em váriasvozes como que variantes <strong>de</strong> uma narrativa comum) pelos moradores antigos e exoperários<strong>da</strong> CTP, salienta <strong>de</strong> início a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> um empreendimento do qual elesfizeram parte. A convergência <strong>de</strong> famílias camponesas do interior <strong>de</strong> Pernambuco e <strong>de</strong>outros estados do Nor<strong>de</strong>ste na vila operária, orquestra<strong>da</strong> pela CTP e seus agentesrecrutadores, é salienta<strong>da</strong> através <strong>de</strong> suas peripécias: fugas <strong>de</strong> engenhos e proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> cana <strong>de</strong> açúcar; saí<strong>da</strong> <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> crise do trabalho familiar camponês, com afábrica têxtil servindo <strong>de</strong> empregadora para todos os membros <strong>da</strong> família, em particularmoças e rapazes; reunião <strong>de</strong> famílias numerosas para aten<strong>de</strong>rem as exigências dorecrutamento (inclusive <strong>de</strong> parentes mais distantes ou <strong>de</strong> não-parentes para comporem afamília numerosa procura<strong>da</strong> pelos agentes). Também o impacto <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> na vilaoperária, com a reunião coletiva prévia <strong>da</strong>s levas <strong>de</strong> famílias recruta<strong>da</strong>s para seremconduzi<strong>da</strong>s em fila a um ritual <strong>de</strong> apresentação ao patrão ou seu representante navaran<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong>, com a distribuição <strong>de</strong> membros familiares pelos postos <strong>de</strong>trabalho e a distribuição <strong>de</strong> casas, é narrado <strong>de</strong> forma teatral pelas testemunhas diretas<strong>de</strong>stas práticas (situa<strong>da</strong>s entre os anos 30 e o início dos anos 50) ou por aqueles que jácontam a história <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> mão por serem <strong>de</strong>positários <strong>da</strong> história oral. A construção<strong>de</strong>sta teatralização <strong>da</strong> dominação personaliza<strong>da</strong> tradicional <strong>de</strong> forma industrial,manifesta<strong>da</strong> neste ritual <strong>da</strong> varan<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong>, que é uma invenção do patronato<strong>de</strong>sta companhia, é reforça<strong>da</strong> por outras práticas na linguagem <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>dominação tradicional aperfeiçoa<strong>da</strong> para uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhadores. Entretais práticas, estão a distribuição <strong>de</strong> pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> terra para os pais <strong>de</strong> famíliacamponeses, atraídos para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> com suas famílias, po<strong>de</strong>rem ter um lugar para suasativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s tradicionais <strong>de</strong> subsistência e <strong>de</strong> valor simbólico em pequenos pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong>terra para roçado, a organização <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> feira <strong>de</strong> produtos alimentares e outros,<strong>de</strong> pequenos produtores subordinados à companhia em terras <strong>de</strong> sua proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> quefornecem a baixos preços bens <strong>de</strong> consumo em abundância para as famílias <strong>de</strong>trabalhadores (que têm salários mais baixos que as companhias <strong>de</strong> Recife e do centrosuldo país).Nesta narrativa <strong>da</strong> grandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do empreendimento também se salienta aorganização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social <strong>de</strong> lazer local, com as ban<strong>da</strong>s <strong>de</strong> música, os bailes, os clubese torneios <strong>de</strong> futebol, o apoio a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Igreja Católica (como as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> JOClocal), o acesso nos domingos aos jardins <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong>, assim como rumores e241


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tnotícias <strong>da</strong>s idiossincrasias patronais tais como as brigas <strong>de</strong> galo e a participação nasprincipais corri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cavalo nacionais e internacionais <strong>de</strong> animais criados no haras local.Mas o distanciamento humorístico e crítico <strong>de</strong>stas gran<strong>de</strong>zas se completa com orelato do po<strong>de</strong>r político sobre a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social local, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a existência <strong>de</strong> umaparelho repressor através do enorme corpo <strong>de</strong> vigias armados na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> controla<strong>da</strong> pelaCTP, até o controle do governo local <strong>de</strong> fato. Tal governo chocou-se tanto com aimplementação <strong>da</strong>s leis sociais quanto com a associativi<strong>da</strong><strong>de</strong> sindical dos operários.Episódios como os conflitos <strong>da</strong> CTP com o interventor estadual Agamenon Magalhãesnos anos 40, a resistência <strong>da</strong> empresa em aplicar as leis sociais e a tolerar o sindicatodos trabalhadores, as greves nos anos 50, culminando com uma greve marcante em1963, são objeto <strong>de</strong> muitos relatos.Uma memória do engran<strong>de</strong>cimento pelos conflitosA atual <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> memória por parte <strong>de</strong> setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>passa também pelo fato <strong>de</strong> que, ao lado <strong>da</strong> gran<strong>de</strong>za <strong>da</strong>s iniciativas patronais, existiaigualmente a gran<strong>de</strong>za dos conflitos com uma companhia que sempre havia resistido àsindicalização <strong>de</strong> seus trabalhadores assim como à legislação social implanta<strong>da</strong>gra<strong>da</strong>tivamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos <strong>de</strong> 1930 até 1964 9 . Por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong>s vicissitu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> história<strong>da</strong>s relações entre a companhia e o sindicato operário, no entanto, apresentavam-seefeitos inesperados <strong>da</strong> própria organização social local <strong>de</strong>fronta<strong>da</strong> às mu<strong>da</strong>nçasadministrativas <strong>da</strong> empresa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final dos anos 50 privilegiando a produção em<strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> manutenção <strong>da</strong> vila operária.A partir dos anos 50, quando pouco a pouco as <strong>de</strong>missões passaram a superar ascontratações, a rotativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mão-<strong>de</strong>-obra passou a atingir fortemente o contingenteoperário. Por ocuparem todos os postos clan<strong>de</strong>stinos do "setor externo" (plantação <strong>de</strong>9 Seguindo-se à lei <strong>de</strong> sindicalização <strong>de</strong> 1931, em que o Estado nacional sancionava o reconhecimento dossindicatos <strong>de</strong> trabalhadores, foi fun<strong>da</strong>do em Paulista o primeiro sindicato, que em segui<strong>da</strong> reivindicou, noinício <strong>de</strong> 1932, a aplicação <strong>da</strong> recente lei fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong>s 8 horas <strong>de</strong> trabalho. A interpretação do sindicato era a<strong>de</strong> que a aplicação <strong>da</strong> lei acarretava um aumento do salário hora normal e <strong>da</strong>s horas extras, e isso <strong>de</strong>via serconvertido ao salário pago por produção. A interpretação <strong>da</strong> companhia era <strong>de</strong> que com a lei, o que era pagona jorna<strong>da</strong> usual <strong>de</strong> 12 ou <strong>de</strong> 10 horas <strong>de</strong>veria ser reduzido proporcionalmente, mantendo-se o mesmosalário horário e o preço correspon<strong>de</strong>nte dos salários pagos por produção. Tendo tal conten<strong>da</strong> sido leva<strong>da</strong> àarbitragem técnica do Ministério do Trabalho (como um primeiro conflito após a nova lei), o seu parecer foifavorável à interpretação dos trabalhadores. Seguiu-se um lock-out parcial <strong>da</strong> CTP alegando criseeconômica. Uma série <strong>de</strong> provocações patronais e a exasperação dos trabalhadores forneceram pretextospara o fechamento <strong>de</strong>ste primeiro sindicato. O segundo só foi estabelecido entre 1941 e 1942, quando aoposição patronal à enti<strong>da</strong><strong>de</strong> foi contraria<strong>da</strong> pelo apoio do governo estadual, que tinha a força do regimeautoritário que vigorou entre 1937 e 1945. A relação <strong>da</strong> CTP com o sindicato, porém, ao longo do tempo,raramente foi tranqüila.242


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Teucaliptos e corte <strong>de</strong> lenha, vigias, construção civil e manutenção <strong>da</strong> vila) os homenseram mais facilmente <strong>de</strong>missíveis. As moças, quando <strong>de</strong>miti<strong>da</strong>s, retornavam à posição"natural" <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r em casa. Elas permaneciam na vila operária on<strong>de</strong> ficavam disponíveispara um retorno eventual ao trabalho no caso <strong>de</strong> retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s contratações na fábrica.Os jovens rapazes <strong>de</strong>mitidos, que não tinham lugar no universo doméstico, acabavam empouco tempo indo buscar trabalho em outro lugar. Assim, o laço mais estreito <strong>da</strong>s moçascom a casa e a família é que, paradoxalmente, podia levá-las a permanecer na fábricamais tempo que seus irmãos (exceto os que ocupavam postos especializados ou <strong>de</strong>contramestres).Assim foi que as operárias <strong>da</strong> fiação e <strong>da</strong> tecelagem formaram, a partir do finaldos anos 50, um dos grupos mais estáveis no interior <strong>da</strong> fábrica, tendo como objetivo, domesmo modo que os contramestres, terminar sua vi<strong>da</strong> profissional naquela empresa. Efoi para garantir tal possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que esses dois grupos, até então mais passivos nosconflitos <strong>de</strong> trabalho que começaram já no inicio dos anos 50, apareceram, no início dosanos 60, como os mais mobilizados em torno do sindicato operário.Durante os anos 40 e 50, as fian<strong>de</strong>iras estiveram ao lado dos operáriosespecializados <strong>da</strong> pré-fiação <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provinha a iniciativa <strong>da</strong> maioria dos movimentosreivindicatórios e do <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong>s greves 10 . Orgulhosos <strong>de</strong> sua habili<strong>da</strong><strong>de</strong>técnica, ocupando um lugar estratégico no início do processo <strong>de</strong> produção que lhespermitia bloquear to<strong>da</strong> a produção seguinte, pagos por peça como as fian<strong>de</strong>iras e astecelãs, esses operários estavam sempre vigilantes quanto às manobras, muitas vezesfraudulentas, a que se permitia a administração <strong>da</strong> empresa quando do pagamento dossalários.Ocorreram conflitos trabalhistas em torno <strong>de</strong>ssas questões, em 1943, 1952, 1954e 1956, a partir <strong>da</strong> paralisação do trabalho na pré-fiação. Não foi, aliás, um acaso o fato<strong>de</strong> ter sido este o primeiro setor atingido pela mo<strong>de</strong>rnização dos equipamentos <strong>da</strong>empresa: a organização dos operários <strong>da</strong> seção foi assim <strong>de</strong>struí<strong>da</strong>, a partir <strong>de</strong> 1958, porcausa <strong>de</strong> <strong>de</strong>missões em massa e <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong> exercício <strong>da</strong>profissão e <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição do posto.10 Outro lugar importante nas greves eram as seções <strong>de</strong> tinturaria e estamparia <strong>da</strong> fábrica, sessõesconstituí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> operários masculinos, e que tinham o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>, paralisando o trabalho por muitos dias,fazerem apodrecer os panos já fabricados pelas seções anteriores.243


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPoupa<strong>da</strong>s, temporariamente, <strong>da</strong>s reestruturações associa<strong>da</strong>s à contração doemprego <strong>de</strong>corrente <strong>da</strong>s mo<strong>de</strong>rnizações, as fian<strong>de</strong>iras e tecelãs "her<strong>da</strong>ram" acombativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seus companheiros <strong>de</strong>mitidos, na conjuntura do início dos anos 60.Elas já os secun<strong>da</strong>vam na organização coletiva <strong>da</strong>s reclamações dos operários contra acompanhia, que se tornaram numerosas nos anos 50, assim que se institucionalizoulocalmente a Justiça do Trabalho com a criação <strong>de</strong> um tribunal <strong>de</strong> primeira instância, em1944. E essas mesmas operárias tomaram parte ativa nas lutas que se <strong>de</strong>senvolveramem 1962 no interior do sindicato, visando à renovação <strong>de</strong> sua diretoria 11 .Tal dinamização sindical no início dos anos 60 não seria possível sem aimportância que teve a Juventu<strong>de</strong> Operária Católica para reunir as diversas experiênciasvivi<strong>da</strong>s pelos jovens trabalhadores ao longo do processo brusco <strong>de</strong> <strong>de</strong>senraizamentocamponês e <strong>de</strong> acelera<strong>da</strong> obreirização. As re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que foram até o iníciodos anos 50 um instrumento a serviço <strong>da</strong> dominação simbólica <strong>da</strong> CTP sobre as famíliasoperárias e, mais particularmente, sobre essa parte estratégica <strong>da</strong> força <strong>de</strong> trabalho queeram os jovens, <strong>de</strong>sempenharam <strong>de</strong>pois um papel no distanciamento <strong>de</strong>ssa geração <strong>de</strong>“jocistas” em relação à companhia e, inclusive, em sua oposição, no momento em que aempresa mudou as regras do jogo, com as <strong>de</strong>missões superando as admissões 12 .O auge do conflito com a companhia, a greve <strong>de</strong> 1963, permanece como umcontraponto às marcas que aparecem naquele tipo i<strong>de</strong>al elaborado pelos ex-operários <strong>da</strong>fábrica sobre o passado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Se as representações coletivas dos operários situamas origens <strong>da</strong> saga <strong>da</strong> companhia e <strong>de</strong> si próprios na personalização patronal teatraliza<strong>da</strong>na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s famílias no mundo <strong>da</strong> fábrica, também o fim <strong>de</strong>ssa antiga relação <strong>de</strong>dominação interioriza<strong>da</strong> e legitima<strong>da</strong> tem por auge uma encenação tambémpersonaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> revolta. Tendo os piquetes <strong>de</strong> greve paralisado as duas fábricas e aci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a própria água e a energia que servia à casa gran<strong>de</strong> é raciona<strong>da</strong>, através <strong>da</strong>paralisia <strong>da</strong>s cal<strong>de</strong>iras e do setor elétrico <strong>da</strong> fábrica assim como do bloqueio <strong>da</strong> leva<strong>da</strong> <strong>de</strong>11 O surgimento <strong>de</strong>ssas carreiras <strong>de</strong> operárias e o papel que as mulheres pu<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>sempenhar naconstituição <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> social no interior do grupo relacionam-se com a participação <strong>de</strong> um bomnúmero <strong>de</strong>ntre elas nas associações religiosas locais patrocina<strong>da</strong>s pela companhia. To<strong>da</strong>s aquelas jovensque haviam começado a trabalhar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 12-14 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, cansa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho,encontravam finalmente na JOC (Juventu<strong>de</strong> Operária Católica) ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que as motivavam e lhesproporcionavam a formação e as relações sociais não recebi<strong>da</strong>s na escola <strong>da</strong> companhia, muito improvisa<strong>da</strong>e pouco freqüenta<strong>da</strong> pelas crianças operárias, mais volta<strong>da</strong>s para o aprendizado direto do trabalho na fábrica(cf. ALVIM; LEITE LOPES, 1990).12 A experiência <strong>de</strong> implantação local do Partido Comunista, a partir <strong>de</strong> 1945, foi, <strong>da</strong>do o controle exercidopela CTP na locali<strong>da</strong><strong>de</strong>, feita <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o envio <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> jornais até a fixação <strong>de</strong>operários vindos <strong>da</strong>s fábricas <strong>de</strong> Recife –, o que trazia riscos para a segurança pessoal dos militantes. Emcontraste com esse tipo <strong>de</strong> ação incentiva<strong>da</strong> <strong>de</strong> fora, a reconversão política dos militantes <strong>da</strong> JOC constituiuuma <strong>da</strong>s principais mediações através <strong>da</strong>s quais o movimento <strong>de</strong> oposição à CTP se enraizou na populaçãolocal. Essa volta do sistema contra si mesmo acelerou a emergência e a explicitação <strong>de</strong> conflitos.244


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tágua canaliza<strong>da</strong> 13 . O episódio ressaltado como <strong>de</strong>cisivo é o <strong>da</strong> interdição pelo piquete alipresente <strong>de</strong> que o patrão Arthur Lundgren pu<strong>de</strong>sse entrar em uma <strong>da</strong>s fábricas paratomar seu banho matinal numa casa <strong>de</strong> banhos próximo à leva<strong>da</strong>. Este inci<strong>de</strong>nte teriaprovocado a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>finitiva do Comen<strong>da</strong>dor Arthur <strong>de</strong> sua residência na casa gran<strong>de</strong> esua i<strong>da</strong> para Recife sem voltar à fábrica até seu falecimento em 1967.O sentimento coletivo do grupo operário, no entanto, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u originalmente<strong>da</strong> JOC nem <strong>de</strong> grupos religiosos ou políticos, nem também <strong>da</strong> incidência <strong>de</strong> eventosconflitivos que alimentavam a transmissão oral <strong>da</strong> tragi-comici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acontecimentos:sua origem remonta mais geralmente a uma sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e a uma história que foramelabora<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> dominação específicas estabeleci<strong>da</strong>sem Paulista e que escaparam parcialmente ao controle <strong>da</strong> companhia que era, nãoobstante, onipresente. Esse sentimento construiu-se por sobre uma memória coletivaconstituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> experiências compartilha<strong>da</strong>s 14 .Mas é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, também, que esses sentimentos compartilhados só pu<strong>de</strong>ram seconstituir em memória coletiva <strong>de</strong>vido à permanência, através <strong>da</strong>s gerações, do grupoque foi o suporte <strong>da</strong> acumulação direta <strong>da</strong> história incorpora<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> um dos seusmembros. Em outras vilas operárias, como as <strong>da</strong>s usinas açucareiras em que apenas oshomens trabalhavam e a contratação dos filhos era ca<strong>da</strong> vez mais difícil, a permanênciano tempo e a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> no espaço <strong>da</strong>s famílias tornaram-se praticamente impossíveis(LEITE LOPES, 1976). Pelo contrário, uma parte não <strong>de</strong>sprezível do grupo operário <strong>de</strong>Paulista conseguiu permanecer no local a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong>s <strong>de</strong>missões, e isso graças à<strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentesco <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s a partir do recrutamento familiardireto, à relevância do trabalho <strong>da</strong>s mulheres na fábrica, graças às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>reconversão dos antigos operários ao pequeno comércio, como a feira local <strong>de</strong> produtosalimentícios. É esta memória, ameaça<strong>da</strong> após as transformações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> nos últimosvinte e cinco anos, que setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil local procuram avivar em meados dosanos 2000.13 A água encana<strong>da</strong> e a eletrici<strong>da</strong><strong>de</strong> beneficiavam somente a casa gran<strong>de</strong> a as casas <strong>de</strong> chefes e técnicos(frequentemente estrangeiros no passado); as casas dos trabalhadores nos arruados <strong>da</strong> vila operária eramalimenta<strong>da</strong>s por água carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> chafarizes localizados em algumas ruas ou diretamente <strong>de</strong> riachospróximos (on<strong>de</strong> se tomava banho e se fazia lavagem <strong>de</strong> roupas) e a iluminação era supri<strong>da</strong> por umailuminação <strong>de</strong> can<strong>de</strong>eiros.14 Tais como o recrutamento familiar e os rituais <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> no mundo <strong>da</strong> fábrica; a nostalgia <strong>da</strong> abundânciados produtos alimentícios que a CTP acumulava graças ao seu monopólio <strong>de</strong> compra; o medo <strong>da</strong> milíciapriva<strong>da</strong> <strong>da</strong> companhia constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 500 homens; a experiência <strong>da</strong>s comunicações mu<strong>da</strong>s egestuais no borburinho <strong>da</strong> fábrica que faziam parte <strong>de</strong> uma renitente cultura <strong>de</strong> fábrica; a admiração poraqueles velhos pais <strong>de</strong> família tão ligados a seus roçados a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejarem resistir à companhia que,tendo mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> política, agora os queria <strong>de</strong>salojar.245


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO TRANSBORDAMENTO DA CIDADE-EMPRESA EM CIDADE.Nos anos que logo se seguiram ao golpe militar, no contexto <strong>da</strong> repressão aostrabalhadores organizados e a implantação <strong>de</strong> novas leis, a CTP começou a executar umprojeto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização que acarretou a dispensa em massa dos operários "estáveis",isto é, aqueles que tinham mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos na empresa e estavam protegidos contra a<strong>de</strong>missão pela antiga lei <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> – que o regime militar acabara <strong>de</strong> modificar, em1967 15 . Estas medi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> empresa atingiam fortemente aquilo que era o projeto mesmo<strong>de</strong> futuro dos operários. Muitos dos atingidos faziam parte <strong>da</strong>s primeiras gerações apo<strong>de</strong>rem concretizar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> usufruírem, ali mesmo, dos direitos relativos àaposentadoria. As novas forças <strong>de</strong> mobilização, que se haviam manifestado por ocasião<strong>da</strong> renovação sindical <strong>de</strong> 1962 e <strong>da</strong> greve vitoriosa <strong>de</strong> 1963, reapareceram então,passado o medo que se seguiu às perseguições nos dias subseqüentes ao golpe <strong>de</strong>Estado <strong>de</strong> 1964. E foram as mulheres dos setores <strong>da</strong> fiação e <strong>da</strong> tecelagem queassumiram mais ativamente a mobilização. Elas eram, pela primeira vez, maioria nadireção sindical que se reconstituiu em 1967; a maior parte pertencera, no passado, aassociações católicas locais. O sindicato iniciou uma luta na Justiça, apoia<strong>da</strong> porassembléias e manifestações maciças, pedindo a reintegração dos <strong>de</strong>mitidos.Foram feitas reclamações coletivas diante dos tribunais. To<strong>da</strong> a experiênciaanterior <strong>de</strong> militância feminina <strong>de</strong> origem religiosa foi emprega<strong>da</strong> na organização <strong>da</strong>smanifestações e <strong>da</strong>s coletas <strong>de</strong> donativos <strong>de</strong>stinados a apoiar a resistência <strong>da</strong>s famíliasdos <strong>de</strong>mitidos que tiveram que esperar, durante mais <strong>de</strong> um ano, pela <strong>de</strong>cisão dotribunal. Embora a Justiça tenha rejeitado o pedido <strong>de</strong> reintegração, a CTP foi con<strong>de</strong>na<strong>da</strong>a pagar in<strong>de</strong>nizações tão eleva<strong>da</strong>s que ela acabou propondo pagar uma boa parte <strong>da</strong>soma <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> aos <strong>de</strong>mitidos com a cessão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s casas em que antesmoravam. Progressivamente, meta<strong>de</strong> <strong>da</strong>s 6.000 casas <strong>da</strong> vila operária tornou-seproprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s famílias (e a sua quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong> no fim dos anos 80). Esta luta permitiuassegurar, assim, a permanência <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> geração recruta<strong>da</strong> nos anos 3015 A estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do empregado que completar <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> trabalho numa mesma empresa foi introduzi<strong>da</strong> naConsoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Leis do Trabalho no Brasil, promulga<strong>da</strong> em 1942, segundo a prática <strong>de</strong> caixas beneficentescorporativas, no sentido <strong>de</strong> <strong>da</strong>r estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> às contribuições previ<strong>de</strong>nciárias. A <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> empregado queatingisse os <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> casa acarretava no pagamento <strong>da</strong> in<strong>de</strong>nização <strong>de</strong> uma quantia equivalente aoúltimo salário pago multiplicado pelo dobro dos anos <strong>de</strong> trabalho possuídos pelo empregado <strong>de</strong>mitido. Em1967, o governo militar sancionou a lei do Fundo <strong>de</strong> Garantia do Tempo <strong>de</strong> Serviço (FGTS) que constituía umfundo, com pequenas contribuições mensais <strong>da</strong>s empresas acompanhando suas folhas salariais <strong>de</strong> modoque a qualquer momento o trabalhador <strong>de</strong>mitido possa retirar esse fundo, versado em seu nome, e geridopelo Estado. Os novos empregados já entravam nos seus novos empregos segundo a nova lei. Ostrabalhadores estáveis regidos pela lei tinham o direito <strong>de</strong> continuar sob esse regime, segundo <strong>de</strong>cisões <strong>da</strong>justiça do trabalho. A CTP, como várias outras empresas locais e em todo o país, aproveitou o impacto <strong>da</strong>nova lei para <strong>de</strong>mitir os seus operários estáveis e oferecer-lhes em segui<strong>da</strong> pequenas in<strong>de</strong>nizações aos seusoperários em troca <strong>da</strong> renúncia às questões na justiça do trabalho.246


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Te 40 e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Este resultado não foi estranho por um lado à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> luta manifesta<strong>da</strong> pelos trabalhadores diante <strong>de</strong> sua história anterior a 1964, e poroutro lado, ao <strong>de</strong>sinteresse <strong>da</strong> empresa na manutenção <strong>da</strong> vila operária nos mol<strong>de</strong>santeriores. Esta foi a segun<strong>da</strong> vez que se apresentava a ocasião <strong>de</strong> uma modificação nomonopólio territorial <strong>da</strong> companhia 16 .O “transbor<strong>da</strong>mento” geográfico <strong>da</strong>s vilas operárias, que também é social epolítico, tem sido observado historicamente; estas vilas obe<strong>de</strong>cendo em geral a umpadrão <strong>de</strong> crescimento tendo como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> a instalação <strong>de</strong> indústrias em áreas<strong>de</strong>spovoa<strong>da</strong>s -- ou “<strong>de</strong>spovoa<strong>da</strong>s” <strong>de</strong> uma população susceptível <strong>de</strong> transformar-se emforça <strong>de</strong> trabalho fabril -- alia<strong>da</strong> a um movimento <strong>de</strong> expansão industrial apresentandocarência <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra; e como ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong> a <strong>de</strong>sagregação <strong>da</strong> antiga vilaoperária, que passa a ser apenas o núcleo original <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> maior. Muitas vezesesse transbor<strong>da</strong>mento já ocorre pelo crescimento <strong>da</strong> própria empresa monopolista quetem necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> áreas fora <strong>da</strong> sua proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> territorial para acomo<strong>da</strong>rtrabalhadores adventícios ou temporários e assim formar bairros ou ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s satéliteslivres. Tal fenômeno ocorreu também no Brasil em áreas periféricas que se tornaramposteriormente ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou bairros <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s maiores. O caso <strong>de</strong> Paulista ou o caso <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Volta Redon<strong>da</strong>, no estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> se situa a primeirasi<strong>de</strong>rurgia estatal no Brasil (privatiza<strong>da</strong> nos anos 90), são exemplos <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s cria<strong>da</strong>spor fábricas e que <strong>de</strong>pois atraíram para sua área novas empresas, sendo perdido aomesmo tempo o domínio territorial monopolista que as companhias <strong>da</strong>s fábricas originaispossuíam (cf. LEITE LOPES et alli, 2004, introdução e cap. 3).16 Assim, nos anos 50, quando a empresa se interessava em manter sua vila operária em função <strong>da</strong>produção fabril, a tentativa pelos habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atenuar as conseqüências <strong>da</strong>quele monopólio foiparcialmente bem sucedi<strong>da</strong>. Pelo lado dos trabalhadores e suas li<strong>de</strong>ranças, assim como <strong>de</strong> uma populaçãourbana <strong>de</strong> comerciantes e funcionários públicos, havia interesse na quebra do monopólio territorial eimobiliário <strong>da</strong> companhia sobre a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, sujeitando to<strong>da</strong> a população às casas aluga<strong>da</strong>s <strong>da</strong> fábrica. Surgiuentão um movimento no pós-guerra em Pernambuco, no bojo por reivindicações, em escala nacional, <strong>de</strong>reforma agrária e melhorias urbanas, pela <strong>de</strong>sapropriação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> se<strong>de</strong>s municipais encrava<strong>da</strong>s emterritório particular, para efeitos <strong>de</strong> reforma urbana e acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> “cinturão ver<strong>de</strong>” resultantes<strong>de</strong> reforma agrária. Essa reivindicação, surgi<strong>da</strong> dos movimentos existentes no interior <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> usinasaçucareiras e fábricas têxteis com vilas operárias, freqüentes em Pernambuco, à qual não é estranha aparticipação prepon<strong>de</strong>rante <strong>de</strong> dirigentes sindicais <strong>de</strong> Paulista, acabou sendo incorpora<strong>da</strong> à Constituiçãoestadual <strong>de</strong> 1947, e sua implementação foi reclama<strong>da</strong> nos anos seguintes em Paulista. Assim, uma iniciativa<strong>da</strong> câmara municipal <strong>de</strong> Paulista no início dos anos 50 acabou votando favoravelmente pela implementação<strong>da</strong>quele item <strong>da</strong> constituição estadual, no bojo <strong>de</strong> um movimento auto<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> “movimento pelalibertação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Após muitas marchas e contramarchas e escaramuças políticas na Câmara municipal ena Assembléia Legislativa estadual, on<strong>de</strong> os interesses <strong>da</strong> companhia também se faziam sentir, foi feito umacordo pela <strong>de</strong>sapropriação <strong>de</strong> uma área próxima à <strong>da</strong> vila operária para a constituição <strong>de</strong> um novo bairrolivre cujos lotes seriam vendidos pela prefeitura – <strong>de</strong>ixando-se intactas as áreas não edifica<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong>vila operária. Esse bairro livre tornou-se um dos respiradouros <strong>da</strong> população local fora <strong>da</strong> área pertencente àcompanhia, ao lado <strong>de</strong> outras áreas periféricas, tolera<strong>da</strong>s pela empresa para a alocação <strong>de</strong> trabalhadorestemporários e populações rurais subordina<strong>da</strong>s.247


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TMas uma outra trajetória histórica é freqüente entre os núcleos fabris e vilasoperárias, a saber, a <strong>de</strong>cadência do sistema fábrica-vila operária. Aqui, a própria“mo<strong>de</strong>rnização” ocorri<strong>da</strong> nas fábricas entre os anos 60 e 80, acompanhando novosestilos <strong>de</strong> industrialização menos “autárquicos” e mais concentrados nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s-fim<strong>da</strong>s empresas, levam-nas a investir mais no interior <strong>de</strong> suas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas e aquerer <strong>de</strong>sfazer-se <strong>de</strong> suas vilas operárias. Além disso, a mo<strong>de</strong>rnização tecnológicadispensando força <strong>de</strong> trabalho faz <strong>de</strong>sequilibrar a correspondência entre o número <strong>de</strong>trabalhadores empregados e o número <strong>de</strong> casas <strong>da</strong> vila operária, parte <strong>de</strong>las tornando-se<strong>de</strong>snecessária para a empresa. Abre-se então, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 60 e 70 (às vezes antes,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do valor imobiliário <strong>da</strong>s vilas operárias em bairros valorizados para moradiaurbana; às vezes <strong>de</strong>pois) um longo período <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação e <strong>de</strong>smantelamento <strong>de</strong>stesnúcleos fabris, com uma história diversifica<strong>da</strong> a ser repertoria<strong>da</strong>, e que perdura até osdias <strong>de</strong> hoje, assumindo outros valores para populações e empresas concerni<strong>da</strong>s e paraautori<strong>da</strong><strong>de</strong>s públicas atinentes às questões suscita<strong>da</strong>s. Além do permanente interessecomercial dos imóveis e territórios que antes estavam voltados para a produção industriale sua retaguar<strong>da</strong>, apresentam-se interesses coletivos na eventual proteção a umpatrimônio consi<strong>de</strong>rado histórico, interesses estes renovados sob roupagens <strong>de</strong> direitossociais e ambientais. Por outro lado, o investimento <strong>da</strong>s fábricas e empresas em seustrabalhadores e funcionários, fora do domínio estrito <strong>da</strong> produção, anteriormentecristalizado na moradia anexa à fábrica, po<strong>de</strong> assumir novas feições: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> benefíciosindiretos como planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, clubes, viagens, financiamentos, premiações, festas,promoção <strong>de</strong> esportes, estímulo a ações <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> social ou ambiental <strong>da</strong>empresa através <strong>da</strong> organização <strong>de</strong> voluntariados <strong>da</strong> parte dos funcionários; to<strong>da</strong>s elasmo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s renova<strong>da</strong>s <strong>de</strong> interessar o trabalhador no capital simbólico <strong>da</strong> empresa.As diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> conflitos e negociações entre empresas etrabalhadores relativas às condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>smobilização <strong>da</strong> vila operária, <strong>da</strong> eventualmo<strong>de</strong>rnização <strong>da</strong> empresa e <strong>da</strong> diminuição <strong>de</strong> sua mão <strong>de</strong> obra e <strong>de</strong> seus ativosimobilizados, do eventual fechamento <strong>da</strong> fábrica e do redirecionamento dos seusinvestimentos; são to<strong>da</strong>s elas relações que interessam à memória <strong>da</strong> populaçãoremanescente e à associativi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior ou menor que venha a apresentar diante <strong>de</strong>suas novas condições <strong>de</strong> existência 17 .17 O caso <strong>da</strong> Companhia Industrial Pirapama, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Esca<strong>da</strong>, Pernambuco, on<strong>de</strong> uma crise em 1982levou-a a ameaçar os seus operários com o seu fechamento, os operários mais antigos conseguiram aomesmo tempo a manutenção <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e a manutenção do emprego que interessava a eles e aoconjunto <strong>de</strong> operários mais recentemente recrutados. Como neste período havia, ao contrário do queocorrera anos antes em Paulista, fortes movimentos sociais em todo o país, num período <strong>de</strong> atenuação do248


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TTENTATIVAS DE CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA OBJETIVADA COMOINSTRUMENTO DE REPRODUÇÃO DA HISTÓRIA INCORPORADAEm diversas áreas industriais antigas como as ex-vilas operárias <strong>de</strong> fábricastêxteis (e <strong>de</strong> outros setores industriais) na área metropolitana <strong>de</strong> Recife, movimentossociais locais esboçam lutas por maior participação dos moradores na administraçãolocal, procurando minorar os impactos que <strong>de</strong>sfiguram o formato tradicional <strong>de</strong>ssesbairros, como no caso-extremo <strong>da</strong> transformação <strong>de</strong> estra<strong>da</strong>s locais em complexos <strong>de</strong>auto-estra<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>struindo, <strong>de</strong>vido ao seu traçado avaliado em termos econômicosestritos, a paisagem usual, como na própria ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulista. Nessas áreas opatrimônio histórico potencial representado pelas vilas -- por vezes reconhecido eressaltado como no caso <strong>de</strong> agentes sem po<strong>de</strong>r específico como o sindicato dos tecelões<strong>de</strong> Paulista, ou como no caso do processo <strong>de</strong> planejamento participativo <strong>da</strong> Agen<strong>da</strong> 21no município <strong>de</strong> Camaragibe, em Pernambuco, levado adiante pela prefeitura -- seguesendo <strong>de</strong>scaracterizado e transformado, sem constituir-se num recurso <strong>de</strong> políticaspúblicas volta<strong>da</strong>s para a história e a cultura locais. Antigos terrenos e galpões<strong>de</strong>sativados tornam-se um passivo ambiental sem perspectivas <strong>de</strong> compensação 18 . Astransformações nessas antigas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s industriais vão no sentido <strong>de</strong> uma dispersão <strong>de</strong>sua força <strong>de</strong> trabalho, antes concentra<strong>da</strong> localmente, por to<strong>da</strong> a região metropolitana,aumentando os fluxos <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> trabalhadores. Os terrenos <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong>s antigas fábricas são vendidos e muitos conjuntos habitacionais (no caso <strong>de</strong> Paulista)e ocupações em terrenos com riscos <strong>de</strong> <strong>de</strong>slizamento (em Camaragibe) se formaram<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 80, a<strong>de</strong>nsando a população e transformando os laços sociais <strong>de</strong>vizinhança formados nessas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s no período em que havia o predomínio <strong>de</strong> suas vilasoperárias entre os anos 30 e 70.O interesse do sindicato <strong>de</strong> trabalhadores têxteis <strong>de</strong> Paulista na sistematização edivulgação <strong>da</strong> história local, ressaltando suas tradições operárias, foi o principal fatoratravés do qual nossa nova pesquisa na locali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos anos 2000 acabou<strong>de</strong>sembocando em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> busca e coleta <strong>de</strong> registros visuais e sonoros queautoritarismo do governo militar, e com a eleição livre <strong>de</strong> governadores (quando então o governador MiguelArraes, <strong>de</strong>posto em 1964 pelos militares é novamente eleito para o cargo) os trabalhadores locaismobilizados conseguem que a Caixa Econômica Fe<strong>de</strong>ral compre to<strong>da</strong>s as casas <strong>da</strong> vila operária <strong>da</strong>companhia, e que esta, com o capital assim obtido, possa fazer funcionar a fábrica e garantir o emprego dostrabalhadores. Esta fábrica ain<strong>da</strong> está em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.18 A nova noção <strong>de</strong> “direitos difusos” po<strong>de</strong> aplicar-se tanto à penalização e à correção <strong>de</strong> <strong>da</strong>nos ambientais(neste caso terrenos baldios e ruínas industriais, eventualmente contaminados) quanto à promoção <strong>da</strong>patrimonialização <strong>de</strong> um espaço material significativo <strong>de</strong> uma memória social como compensação ambiental.Para a questão do <strong>de</strong>stino dos restos industriais e <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sengenharia e transformação em outrasativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ver Luis Henrique Sánchez, 2001.249


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpu<strong>de</strong>ssem ser divulgados publicamente. Tendo sua base <strong>de</strong> associados sido composta,ao longo dos últimos anos, <strong>de</strong> uma proporção crescente <strong>de</strong> aposentados, o sindicatoresolveu fun<strong>da</strong>r uma associação autônoma com vistas a uma especialização e a umesforço especifico em torno dos direitos e novos direitos voltados para esta faixa <strong>de</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong>, em particular os direitos previ<strong>de</strong>nciários. Muitos ex-militantes sindicais voltaram àativa nas mobilizações contra a redução <strong>de</strong> direitos adquiridos na área previ<strong>de</strong>nciária, emtorno <strong>da</strong> penibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e riscos do trabalho manual, assim como <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> do trabalho.Com as novas leis <strong>de</strong> gratui<strong>da</strong><strong>de</strong> nos transportes públicos apos os 65 anos, muitos<strong>de</strong>stes ex-operários tornaram-se militantes <strong>de</strong>sprendidos e rejuvenecidos a levarinformações e petições para amigos e ex-colegas espalhados pela região metropolitana ea freqüentar reuniões e assembléias <strong>de</strong> associações e fe<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> aposentados.Nesse conjunto <strong>de</strong> aposentados alguns foram indicados para <strong>da</strong>rem seu <strong>de</strong>poimento,outros abriram novos contatos.O próprio cotidiano dos sindicalistas, a maioria dos quais <strong>da</strong>s gerações quepassaram pelas novas fabricas do distrito industrial e que chegaram ao sindicato no bojodos movimentos sociais dos anos 80, é crescentemente ocupado com reuniões emconselhos municipais e estaduais voltados para diferentes políticas publicas, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,<strong>de</strong> emprego, <strong>de</strong> educação profissional e <strong>de</strong> políticas urbanas. Assim, apesar <strong>da</strong> drásticaredução <strong>da</strong> base <strong>de</strong> associados ativos, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> redução <strong>da</strong> mão <strong>de</strong> obraindustrial, o sindicato consegue ain<strong>da</strong> estar presente no centro dos movimentos sociaislocais.Ao <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar-se a feitura <strong>de</strong> um documentário sobre a memória dos exoperáriossobre sua trajetória e vi<strong>da</strong> cotidiana no “tempo <strong>da</strong> companhia”, com base nos<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> nossos antigos pesquisados dos anos 70 e 80, foram-seacumulando materiais visuais, novos personagens e eventos voltados para a(re)construção <strong>de</strong>sta memória social 19 . O evento referido na nota anterior incentivou atroca <strong>de</strong> informações e pôs o foco na viabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciativas <strong>de</strong> articulação em torno <strong>da</strong>história local. No seminário conhecemos um grupo <strong>de</strong> jovens <strong>de</strong> formação universitária eprofessores secundários moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, alguns <strong>de</strong>les filhos e netos <strong>de</strong> exoperáriose funcionários <strong>da</strong> companhia, também interessados na memória local. No final<strong>de</strong> 2005 eles constituem um “movimento pró-museu <strong>de</strong> Paulista”, diante dos rumores <strong>da</strong>19 Através <strong>da</strong> filmagem <strong>de</strong> um evento, chamado “Memória dos Tecelões”’, realizado no dia 1º <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>2005, constituído <strong>de</strong> uma mesa com ex-operários que falaram sobre suas trajetórias na fábrica e na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, eem segui<strong>da</strong> com a abertura <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>poimentos por parte <strong>de</strong> membros do público presente, <strong>de</strong>u-se aparti<strong>da</strong> pública <strong>de</strong> um trabalho em conjunto com uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ex-pesquisados <strong>de</strong> 1976-77 e <strong>de</strong> sindicalistasatuais, que vinha sendo planejado em conversas e reuniões anteriores.250


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tven<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> e seus jardins por parte dos proprietários <strong>da</strong> CTP para uma gran<strong>de</strong>empresa nacional <strong>de</strong> lojas <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamento, concentrando <strong>da</strong> alimentação a vestuário eeletrodomésticos, o que acarretaria a <strong>de</strong>struição do “jardim do coronel”. O movimento<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o patrimônio material e imaterial do município, mas prioritariamente a casagran<strong>de</strong> e o jardim do coronel 20 . É interessante que na falta <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>aproveitamento para fins públicos <strong>da</strong>s ruínas <strong>da</strong>s duas fábricas <strong>de</strong> Paulista 21 , e, na falta<strong>de</strong> espaços públicos, histórica e simbolicamente significativos nos múltiplos arruados doconjunto arquitetônico <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> vila operária 22 , que grupos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil localtenham se fixado na casa gran<strong>de</strong> patronal e seus jardins como monumento <strong>da</strong> memória<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong>s famílias operárias que a construíram (e que estão na origem <strong>de</strong> muitas<strong>da</strong>s famílias atuais). A parte per<strong>de</strong>dora na conten<strong>da</strong> entre dois her<strong>de</strong>iros, filhos <strong>de</strong> ArthurLundgren, vinha manifestando timi<strong>da</strong>mente interesse em fazer um museu <strong>da</strong> companhiae <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na casa gran<strong>de</strong>, mas a parte vencedora, o outro irmão, distancia-se <strong>da</strong>locali<strong>da</strong><strong>de</strong> e do Estado <strong>de</strong> Pernambuco e coman<strong>da</strong> <strong>de</strong> longe a empresa imobiliária emque se tornou a companhia na locali<strong>da</strong><strong>de</strong>, recolhendo aluguéis restantes <strong>de</strong> casas <strong>da</strong> vilaoperária que não foram transferi<strong>da</strong>s aos ex-operários, <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> mercadorias nosgalpões <strong>da</strong>s fabricas, e <strong>de</strong> ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> terrenos para novos empreendimentos imobiliários 23 .Neste sentido, a ven<strong>da</strong> do terreno <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong> seus jardins para uma loja <strong>de</strong><strong>de</strong>partamentos seria uma <strong>de</strong> suas maiores transações com ativos <strong>da</strong> CTP. Esta iniciativa20 “O Movimento PRÓ MUSEU é uma articulação surgi<strong>da</strong> em 2005, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a preservação do patrimôniotangível, intangível e natural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Paulista. Em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> comemoração do 73º aniversário <strong>de</strong>emancipação político-administrativa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Paulista, no próximo dia 04 <strong>de</strong> setembro, o PRÓ MUSEUestá lançando uma campanha para a eleição dos 05 mais simbólicos e expressivos CARTÕES-POSTAIS docentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, no contexto histórico do século XX, com suas tradições, memória operária e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>coletiva dos paulistenses. Visando, sobretudo, sensibilizar as novas gerações para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>preservação do extenso patrimônio localizado no centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Paulista, com o exame e a apreensão<strong>de</strong> sua História. Também procura reaproximar a memória <strong>da</strong>s gerações passa<strong>da</strong>s, remanescentes do antigoperíodo fabril, aos novos atores sociais do presente. O projeto possui quatro etapas: patrimônio material doséculo XX, patrimônio material do período colonial, patrimônio imaterial e patrimônio natural” (site domovimento, www.movimentopromuseu.org.br). Ver Ricardo Andra<strong>de</strong> <strong>da</strong> Costa Silva, 2006 e 2008.21 Ruínas utiliza<strong>da</strong>s pela companhia através do aluguel dos serviços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito e armazenamento <strong>de</strong>mercadorias <strong>de</strong> outras firmas, enquanto não se concretizam propostas imobiliárias para que ela ven<strong>da</strong> comproveito financeiro estes terrenos. Nos últimos anos a universi<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> Maurício <strong>de</strong> Nassau instaloualguns <strong>de</strong> seus cursos numa edificação feita pela CTP, em pequena parte do terreno on<strong>de</strong> antes havia aFábrica Arthur, para a concentração <strong>de</strong> lojas em um shopping, empreendimento este que não foi adiante. Jáa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> CTP na Paraíba, Rio Tinto, homóloga a Paulista, viu ser instala<strong>da</strong> recentemente em antigosgalpões <strong>da</strong> fábrica as <strong>de</strong>pendências <strong>de</strong> um novo campus <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Paraíba.22 Cujos moradores foram modificando através <strong>de</strong> pequenas reformas funcionais em suas casas.23 Também o recebimento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização por parte do estado pela permissão <strong>de</strong> que uma autoestra<strong>da</strong>cortasse ao meio uma <strong>da</strong>s fabricas, <strong>de</strong>sfigurando o centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e cortando-o <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seusbairros, po<strong>de</strong> ter sido uma razão a mais para esta mobilização em torno <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. A construção<strong>da</strong> auto estra<strong>da</strong> na sua passagem pela fabrica acabou <strong>de</strong>struindo uma pequena igreja existente no seuinterior que tinha sido a igreja do Frei Caneca, um dos heróis nacionais e do estado na revolução anti-colonial<strong>de</strong> 1817, e portanto uma edificação com um valor histórico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a perspectiva <strong>de</strong> uma concepção tradicional<strong>de</strong> patrimonialização.251


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tnão contava em seus planos com a mobilização <strong>de</strong> setores do espaço publico <strong>de</strong>Paulista, como o sindicato dos trabalhadores têxteis, preocupado com a memóriaoperária <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e habilitado para as discussões por sua experiência em conselhos <strong>de</strong>todo tipo (distanciando-se <strong>da</strong> exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> pauta <strong>de</strong> reivindicações econômicastradicionais <strong>da</strong> categoria profissional), e <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> jovens estu<strong>da</strong>ntes universitáriose professores do ensino médio resi<strong>de</strong>ntes na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, alguns dos quais com passagens naadministração municipal. Em 2007, foi constituído o site na internet do movimento prómuseucom iniciativas nas escolas (escolha pela internet dos maiores cartões postais <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong>) e junto ao conselho estadual <strong>de</strong> cultura que legitima com sua chancela apretensão à patrimonialização. Para os ex-trabalhadores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> a casa gran<strong>de</strong> estáassocia<strong>da</strong> ao “tempo dos coronéis”, com suas gran<strong>de</strong>zas e conflitos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suafreqüentação como lazer concedido pelo patrão aos seus operários, e <strong>de</strong> visitas e fotosabaixo do busto do Coronel Fre<strong>de</strong>rico; até os episódios <strong>da</strong> greve <strong>de</strong> 1963 e do cerco àcasa gran<strong>de</strong> através do corte <strong>de</strong> abastecimento e do impedimento pelos piquetes <strong>da</strong>tentativa do patrão <strong>de</strong> entrar na fábrica -- para o usufruto <strong>de</strong> uma instalação priva<strong>da</strong>, parauso doméstico, como uma extensão <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> no interior <strong>da</strong> fábrica -- o seu banhoem sitio murado; evento este que estaria na origem do progressivo abandono <strong>da</strong> famíliapatronal <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong>.Apos um longo período <strong>de</strong> tramitação no Conselho Estadual <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> e aposdiscussões sobre a priori<strong>da</strong><strong>de</strong> ou não <strong>de</strong>ste tombamento industrial, finalmente talconselho dá um parecer favorável a esta patrimonialização. Resta saber como seprocessarão as negociações com o que resta <strong>da</strong> CTP, seu po<strong>de</strong>r econômico tendo forçajunto ao po<strong>de</strong>r municipal (que é mais sensível aos empregos criados pela nova loja doque com o bem a ser patrimonializado), se haverá <strong>de</strong> fato o espaço público, como seráorganizado o centro cultural a ser criado, e as suas condições <strong>de</strong> fazê-lo funcionar, e <strong>de</strong>sua eficácia em transmitir uma memória <strong>da</strong> relação ao longo do tempo <strong>da</strong> família patronale <strong>da</strong>s famílias <strong>de</strong> trabalhadores, como se <strong>da</strong>rão as disputas em torno <strong>da</strong> memória. Dequalquer forma a perspectiva <strong>de</strong> um fim dos conflitos sociais e do apagamento <strong>da</strong>memória <strong>de</strong> uma forma especifica <strong>de</strong> dominação com a <strong>de</strong>sindustrialização e ocrescimento populacional não se confirma, com a reconversão <strong>de</strong> antigos grupos sociaispara as novas disputas e com o aparecimento <strong>de</strong> novos agentes sociais (com suas novasgerações) e instrumentos <strong>de</strong> políticas publicas e novos direitos sociais.252


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TREFERÊNCIASALVIM, Rosilene. A Sedução <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>; os operários camponeses e a fábrica dosLundgren. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graphia, 1997.ALVIM, Rosilene; LEITE LOPES, José Sergio. Famílias operárias, famílias <strong>de</strong> operárias.Revista Brasileira <strong>de</strong> Ciências Sociais, n. 14, ano 5, p. 7-17, out. 1990.SILVA, Ricardo Andra<strong>de</strong> <strong>da</strong> Costa. 2006. Desenvolvimento Local Sustentável: UmaAbor<strong>da</strong>gem Histórica do Centro do Paulista. Dissertação (mestrado). MestradoProfissional em Gestão <strong>de</strong> Políticas Públicas, Fun<strong>da</strong>ção Joaquim Nabuco. 2006._____________________________. Cartões-Postais do Paulista-PE: Uma proposta <strong>de</strong>preservação do Patrimônio”, comunicação ao IV Encontro Multidisciplinar em <strong>Cultura</strong>,Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Comunicação – UFBa, maio <strong>de</strong> 2008.BUDER, Stanley. Pullman, an Experiment in Industrial Or<strong>de</strong>r and Community Planning,1880-1930. New York: Oxford University Press, 1967.CORREIA, Telma <strong>de</strong> Barros. Pedra: Plano e Cotidiano no Sertão. São Paulo: PapirusEditora, 1998.FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO(Fun<strong>da</strong>rpe), Exame Técnico; Tombamento <strong>da</strong> Casa Gran<strong>de</strong> e Jardim do Coronel –Paulista-PE. Parecer assinado por Luís Eduardo Moriel Carneiro (como coor<strong>de</strong>nador dopatrimônio histórico), Rosa Virgínia <strong>de</strong> Sá Bomfim (como chefe <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>preservação) e Junancy B. Wan<strong>de</strong>rley Jr. (como chefe <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> projetos), 2004.GUERRAND, Roger-Henri. Propriétaires et Locataires; les origines du logement social enFrance. Paris: Quintette, 1987.LEITE LOPES, Jose Sergio. O 'Vapor do Diabo': O Trabalho dos Operários do Açúcar.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Paz e Terra, <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1976. 2ª edição em outubro <strong>de</strong> 1978._______________________. A Tecelagem dos Conflitos <strong>de</strong> Classe na ‘'Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>sChaminés'. São Paulo: Editora Marco Zero (co-edição com CNPq), 1988.Leite Lopes, Jose Sergio; ANTONAZ, Diana; PRADO, Rosane; SOLVA, Gláucia. AAmbientalização dos Conflitos Sociais; Participação e Controle Público <strong>da</strong> PoluiçãoIndustrial. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumará, 2004MENEGUELLO, Cristina; RUBINO, Silvana (orgs.). Patrimônio Industrial: Perspectivas eAbor<strong>da</strong>gens. Coletânea <strong>de</strong> Textos <strong>da</strong> 1º. Encontro em Patrimônio Industrial, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>Estadual <strong>de</strong> Campinas/Comitê Brasileiro <strong>de</strong> Preservação do Patrimônio Industrial, 2004.SÁNCHEZ, Luis Henrique. Desengenharia: O Passivo Ambiental na Desativação <strong>de</strong>Empreendimentos Industriais.São Paulo: Edusp/Fapesp, 2001.Tecido Memória (documentário). Direção e produção, conjuntamente com Celso Brandãoe Rosilene Alvim. Fotografia: Celso Brandão; Montagem: Maya Da-Rin e Silvia Boschi;Desenho <strong>de</strong> som e mixagem: Mariana Barsted; Tratamento <strong>de</strong> imagem: Daniel Canela.(sobre a historia cotidiana e política dos operários têxteis <strong>de</strong> Pernambuco). 70 min.<strong>Museu</strong> Nacional-PPGAS-NuAP, 2008.TORNATORE, Jean-Louis. Beau comme un haut fourneau; sur le traitement enmonument <strong>de</strong>s restes industriels, L’Homme, n.170, p.79-116, 2004.253


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFoto 1 - Juventu<strong>de</strong> Operária Católica (JOC) feminina diante (<strong>da</strong>s costas) do busto do CoronelFre<strong>de</strong>rico Lundgren, no jardim <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> (Arquivo Luís <strong>de</strong> Barros).Foto 2 - Croquis <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> (FUNDARPE, 2004, anexo).254


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFoto 3 - Convite do sindicato dos tecelões para um evento no 1º. <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2005, sobre amemória dos antigos operários <strong>de</strong> Paulista.Foto 4 - Vista aérea geral do centro Paulista cercado pelas duas fábricas <strong>da</strong> CTP nos anos <strong>de</strong>1950. O quarteirão <strong>da</strong> casa gran<strong>de</strong> aparece à direita <strong>da</strong> Igreja.255


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFoto 5 - Ruínas <strong>da</strong> fábrica Aurora (fim dos anos 2000) que na foto <strong>de</strong> cima (que se vê <strong>de</strong> baixo pracima, <strong>de</strong> perto pra longe) aparece no seu topo superior (ponto <strong>de</strong> vista mais ao chão do panorama<strong>da</strong> ponta inverti<strong>da</strong> <strong>da</strong> foto superior).Foto 6 - casa gran<strong>de</strong> dos Irmãos Lundgren.Fotos 7 e 8 - O abraço à casa gran<strong>de</strong> e seu jardim, organizado pelo movimento pró-museu, a favor dotombamento.256


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO PATRIMÔNIO AERONÁUTICO:<strong>de</strong>limitação e reflexões em torno do temaFelipe Koeller Rodrigues Vieira 1Marcus Granato 2Aaeronáutica transformou o mundo. Apesar <strong>de</strong> nem to<strong>da</strong>s as pessoas teremacesso ao transporte aéreo, as suas influências ocorrem também <strong>de</strong> outrasformas. A utilização <strong>de</strong> imagens aéreas em publicações e nos programas <strong>de</strong>televisão e filmes, a visão <strong>de</strong> aeronaves em vôo sobre ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e campos, autilização <strong>de</strong> helicópteros por corporações policiais e <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil, o uso<strong>de</strong> aeronaves para a propagan<strong>da</strong> aérea, a presença <strong>de</strong> aviões agrícolas nas zonas rurais,são algumas <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> aeronáutica estar presente na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas.A invenção do avião gerou conseqüências tão importantes para o mundo que IvanRen<strong>da</strong>ll a classifica junto às gran<strong>de</strong>s tecnologias que modificaram a relação do serhumano consigo mesmo e com o meio on<strong>de</strong> vive. Nas palavras do autor:As a piece of applied science the airplane has a place alongsi<strong>de</strong> thewheel, gunpow<strong>de</strong>r, the printing press and the steam engine as one of thegreat levers of change in world history. The effect of aircraft on the waywe live has been profound: they have shrunk the world, minglingpreviously isolated cultures; they have ad<strong>de</strong>d a menacing dimension towarfare, spawned new technologies, created new economic zones andgiven us a toehold in Space. (RENDALL, 1988, p.8). 31 Terceiro Serviço Regional <strong>de</strong> Investigação e Prevenção <strong>de</strong> Aci<strong>de</strong>ntes Aeronáuticos. Aveni<strong>da</strong> General Justo160, 1º an<strong>da</strong>r, Castelo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ, CEP: 20021-130; felipekoeller@yahoo.com.br. Oficial aviador <strong>da</strong>Força Aérea Brasileira e museólogo. Bacharel em Ciências Aeronáuticas pela Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong> Força Aérea eMestre em Museologia e Patrimônio pela UNIRIO/MAST. Oficial <strong>de</strong> Segurança <strong>de</strong> Vôo, Instrutor <strong>de</strong> vôo <strong>de</strong>avião e helicóptero e Investigador Sênior <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes aeronáuticos (SERIPA III/CENIPA).2 <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ;marcus@mast.br. Formado em engenharia metalúrgica e <strong>de</strong> materiais pela UFRJ (1980), Mestre e Doutor emCiências (M.Sc) pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ),sendo sua tese sobre Restauração <strong>de</strong> Instrumentos Científicos Históricos. A partir <strong>de</strong> 2004, volta a coor<strong>de</strong>nara área <strong>de</strong> Museologia no MAST e, a partir <strong>de</strong> 2006, torna-se professor e assume a vice-coor<strong>de</strong>nação doMestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Atualmente, é Coor<strong>de</strong>nador <strong>de</strong> Museologia doMAST, pesquisador do CNPq e lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> pesquisa na área <strong>de</strong> Preservação <strong>de</strong> Bens <strong>Cultura</strong>is.3 Como uma peça <strong>de</strong> ciência aplica<strong>da</strong> o avião tem um lugar junto à ro<strong>da</strong>, à pólvora, à imprensa e ao motor avapor como uma <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s alavancas <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça na história mundial. O efeito do avião no nosso modo257


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA importância <strong>da</strong> aeronáutica foi percebi<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. ConformeCrouch (2007a, p.19), já pela meta<strong>de</strong> do século XVIII, o Conservatoire <strong>de</strong>s Arts et Métiersexpunha, em Paris, objetos relativos às primeiras conquistas aeronáuticas: a primeiraválvula a ser utiliza<strong>da</strong> em um balão <strong>de</strong> hidrogênio (<strong>de</strong> 1783), equipamentos do primeirobalão <strong>de</strong> observação militar (1793) e objetos empregados nos primeiros experimentoscientíficos em vôos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> altitu<strong>de</strong> (1804). A história <strong>da</strong> musealização do patrimônioaeronáutico continuou, então, com a criação <strong>de</strong> coleções e exposições nos EstadosUnidos, na Inglaterra, na Alemanha e, após, em outros países ao redor do mundo.No Brasil, a idéia <strong>de</strong> um <strong>Museu</strong> Aeronáutico <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1943, quando o primeiroMinistro <strong>da</strong> Aeronáutica, ex-Senador <strong>da</strong> República e ex-Ministro do Superior TribunalMilitar, Joaquim Pedro Salgado Filho, <strong>de</strong>terminou sua organização, sendo essa iniciativae posteriores tentativas interrompi<strong>da</strong>s por falta <strong>de</strong> local disponível. Com a transferência<strong>da</strong> antiga Escola <strong>de</strong> Aeronáutica do Campo dos Afonsos, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, paraPirassununga (on<strong>de</strong> foi renomea<strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong> Força Aérea) foram iniciados, a partir <strong>de</strong>janeiro <strong>de</strong> 1974, os trabalhos <strong>de</strong> restauração do prédio e hangares <strong>da</strong> antiga "Divisão <strong>de</strong>Instrução <strong>de</strong> Vôo" <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Aeronáutica. Simultaneamente, foram iniciados ostrabalhos <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> acervo, restauração <strong>de</strong> aviões, motores, armas e outras peças <strong>de</strong>valor histórico. O <strong>Museu</strong> Aeroespacial foi inaugurado, então, em 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1976.(CARDOSO apud LUCCHESI, 2006).Com o avanço tecnológico <strong>da</strong>s aeronaves atuais e a gran<strong>de</strong> expansão <strong>da</strong> aviaçãomundial, que se populariza através <strong>da</strong> multiplicação <strong>de</strong> companhias aéreas “low fare”, 4 onúmero <strong>de</strong> aviões e helicópteros em uso tem crescido, com a substituição <strong>de</strong> aeronavesantigas por novas, tanto na aviação civil como nas forças aéreas. Esta renovação <strong>da</strong> frotatem produzido efeitos nas instituições museológicas <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s a li<strong>da</strong>r com o patrimônioaeronáutico.Conforme a afirmação <strong>de</strong> Tom Crouch, os museus aeronáuticos têm crescidoextraordinariamente ao redor do planeta.While rooted in a tradition stretching back to the late eighteenth century,aerospace museums have enjoyed a period of extraordinary growth overthe past tree <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s. (2007b, p. 19). 5<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> tem sido profundo: eles têm encolhido o mundo, pondo em contato culturas previamente isola<strong>da</strong>s,eles têm adicionado à guerra uma dimensão ameaçadora, espalhado novas tecnologias, criado novas zonaseconômicas e nos colocado com um pé no espaço. (Tradução nossa).4 Companhias aéreas especializa<strong>da</strong>s na comercialização <strong>de</strong> passagens <strong>de</strong> baixo preço, surgi<strong>da</strong>s no mundo apartir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990.5 Enquanto enraizados em uma tradição que remonta ao século XVIII, os museus aeroespaciais passarampor um período <strong>de</strong> crescimento extraordinário nas últimas três déca<strong>da</strong>s. (Tradução nossa).258


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEste crescimento é reflexo do valor atribuído pela humani<strong>da</strong><strong>de</strong> ao avião. Estaferramenta transformadora <strong>da</strong> qual já se prenunciava a importância <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> suaver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira consoli<strong>da</strong>ção enquanto invento útil.A INVENÇÃO DO AVIÃONo início do século XX, com a evolução dos motores <strong>de</strong> combustão interna àexplosão, foi cria<strong>da</strong> uma fonte energética portátil e potente o suficiente para ser aplica<strong>da</strong>com sucesso nas aeronaves. O trabalho <strong>de</strong> Santos-Dumont no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>dirigibili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos balões baseou-se no emprego <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> motor e no<strong>de</strong>senvolvimento dos comandos <strong>de</strong> vôo. (BARROS, 2006, p. 187).Ao instalar os novos motores em aeronaves <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s a partir dos jáconsoli<strong>da</strong>dos planadores, estavam cria<strong>da</strong>s as condições necessárias para o<strong>de</strong>senvolvimento do vôo do avião. Conforme Lilienthal avalia, profeticamente, ascondições presentes no final do século XIX:Whilst the solution of the flight problem is, properly speaking, the domainof the scientifically educated and practical, experienced engineer, thewhole question is one which engages the attention of almost every otherprofession. Every one recognizes the extraordinary consequences whichwill attend the solution of the flight problem; every one is able to see <strong>da</strong>ilyfrom the observations of flying creatures that practical flight is possible.On the other hand, no investigator has so far been found who can proveconclusively that there is no hope for the imitation of flight by man 6 .(LILIENTHAL, 1889, p.105).O historiador <strong>da</strong> Força Aérea Norte-Americana, Richard Hallion realiza umacomparação entre os dois inventos aeronáuticos, o balão e o avião, e sua relação com aciência e a tecnologia bastante fiel ao conteúdo histórico pesquisado:The balloon and the airplane constituted the two great machines of theatmospheric flight revolution. The balloon was the more “scientific” aswell as the simpler to achieve, and because it was easier, it appearedfirst. The airplane was more “technological” and difficult to accomplish,<strong>de</strong>man<strong>de</strong>d a more interdisciplinary and industrial approach, and thus tookover a century longer. The balloon sprang from the seventeenth an<strong>de</strong>ighteenth centuries, the product of Archime<strong>de</strong>s’ mechanics and Anglo-French chemistry (the ever more comprehensive un<strong>de</strong>rstanding of thebehavior and extraction of gases). The airplane was a creation of the6“Enquanto a solução do problema do vôo é, propriamente falando, o domínio <strong>de</strong> engenheiroscientificamente educados, práticos e experientes, a questão por inteiro atrai a atenção <strong>de</strong> praticamente to<strong>da</strong>sas outras profissões. Todo mundo reconhece as extraordinárias conseqüências que serão trazi<strong>da</strong>s pelasolução do problema do vôo; todo mundo é capaz ver diariamente, <strong>da</strong>s observações <strong>da</strong>s criaturas voadorasque o vôo prático é possível. Por outro lado, nenhum investigador foi tão distante a ponto <strong>de</strong> provarconclusivamente que não há nenhuma esperança para a imitação do vôo pelo homem.” (tradução nossa).259


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tnineteenth century more than the twentieth, an integration of multipleareas of inquiry: pratical, experimentally based aerodynamics, structuralengineering, and internal-combustion propulsion. By far the invention ofthe airplane possessed the greater significance for the future. It had theability to exploit movement through the air with extraordinary freedom,speed, and effect, something the balloon could not do 7 . (HALLION,2003, p.41)Os registros e fontes existentes <strong>de</strong>ste momento <strong>da</strong> história <strong>da</strong> aeronáutica,quando a invenção do avião está quase sendo concretiza<strong>da</strong>, nos indica o quanto osestudos e as opiniões dos especialistas em aviação po<strong>de</strong>m ficar impregnados <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ologias e nacionalismos. Durante a pesquisa bibliográfica, foi possível perceber atendência dos textos franceses enaltecerem o papel <strong>de</strong> Clement A<strong>de</strong>r, enquanto ostrabalhos norte-americanos e ingleses reverenciam os irmãos Wright e os livrosbrasileiros, Santos-Dumont.Tal observação reforça as palavras <strong>de</strong> Lilienthal e Hallion cita<strong>da</strong>s acima, asprimeiras escritas em 1889 e as últimas em 2003, mostrando a gran<strong>de</strong> importânciasimbólica atribuí<strong>da</strong> à invenção do avião. Não sendo o escopo <strong>de</strong>ste trabalho realizar umainvestigação exaustiva <strong>da</strong> invenção do avião, em si, fica aqui este registro <strong>da</strong>s diferenças<strong>de</strong> opinião observa<strong>da</strong>s.Por outro lado, a gran<strong>de</strong> extensão <strong>da</strong>s pesquisas e a intercomunicação dostrabalhos científicos realizados nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1890 e 1900, tornaram possível verificarque os interessados na pesquisa aeronáutica, sejam eles os Wright, Santos-Dumont,Chanute, Langley ou outros, tentavam obter conhecimento dos trabalhos dos pioneirosCayley, Lilienthal, A<strong>de</strong>r e intercambiar informações dos avanços obtidos, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>spossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação <strong>da</strong> época. Testemunha a este favor a criação e ostrabalhos <strong>de</strong> pesquisa dos sócios <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s aeronáuticas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no século XIX,como a Aeronautical Society of Great Britain (atual Royal Aeronautical Society), cria<strong>da</strong>em 1866, e a Société d'Encouragement à la Locomotion Aérienne, atual Aeroclub <strong>de</strong>France, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1898 (com a participação <strong>de</strong> Santos-Dumont).7 “O balão e o avião constituem as duas gran<strong>de</strong>s máquinas <strong>da</strong> revolução do vôo atmosférico. O balão é mais“científico” tanto quanto o mais simples <strong>de</strong> alcançar e, por ser foi mais fácil, ele apareceu primeiro. O avião émais “tecnológico” e difícil <strong>de</strong> efetuar, <strong>de</strong>man<strong>da</strong>ndo uma solução mais interdisciplinar e industrial, levando umséculo a mais. O balão <strong>de</strong>senvolveu-se a partir dos séculos <strong>de</strong>zessete e <strong>de</strong>zoito, um produto <strong>da</strong> mecânica <strong>de</strong>Arquime<strong>de</strong>s e <strong>da</strong> química anglo-francesa (a ca<strong>da</strong> vez melhor compreensão e entendimento docomportamento e extração dos gases). O avião é uma criação do século <strong>de</strong>zenove mais do que do séculovinte, uma integração <strong>de</strong> múltiplas áreas <strong>de</strong> pesquisa: prática, aerodinâmica experimental, engenhariaestrutural e propulsão a combustão interna. De longe a invenção do avião possui um maior significdo para ofuturo. Ele tem a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> explorar o movimento através do ar com extraordinária liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> eefeito, algo que o balão não po<strong>de</strong> fazer.” (tradução nossa).260


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEm 1906, logo após os vôos <strong>de</strong> Santos-Dumont com o 14 Bis, o capitão doExército Francês Ferdinand Ferber, amigo e admirador dos Wright, havia publicado narevista L’Aerophile 8 um artigo on<strong>de</strong> afirmava: “ I believe if the Wright brothers will notmake a public trial, they will lose not only their anticipated profits but as well the glory ofbeing the first inventors...” (HALLION, 2003, p. 222). 9A discussão inicia<strong>da</strong> com os vôos realizados em 1906, em Paris, por Santos-Dumont, motivou a i<strong>da</strong> dos irmãos Wright à França, em 1907. Tendo sido recebidos comceticismo pelos lí<strong>de</strong>res do mundo aeronáutico <strong>de</strong> então, não conseguiram seu intento <strong>de</strong>ven<strong>de</strong>r o projeto <strong>de</strong> sua aeronave na Europa. (WOHL, 1994, p. 20) Ao retornar aos EUA,em novembro <strong>de</strong> 1907, Wilbur e Orville <strong>de</strong>cidiram romper o sigilo que envolvia seus vôose a performance <strong>da</strong> sua aeronave, planejando retornar à França em 1908, <strong>de</strong>sta vezlevando consigo sua aeronave Flyer 1908.A partir <strong>de</strong>sta viagem, a discussão sobre a invenção do avião e as influênciasrecebi<strong>da</strong>s pelos inventores (uns dos outros) per<strong>de</strong> espaço para um outro aspecto quepo<strong>de</strong> ser observado. Naquele ano, já existiam alguns aviões voando efetivamente naFrança. Consi<strong>de</strong>rando-se o sigilo que envolvia a aeronave dos Wright, a qual não eraconheci<strong>da</strong> na Europa, po<strong>de</strong>mos inferir que o avião foi, no mínimo, inventado novamentepor Santos-Dumont, em um processo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do realizado nos Estados Unidos.Conforme afirma Whol, um apaixonado <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong> primazia dos Wright (como atotali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos norte-americanos):…during the years before 1914 the French i<strong>de</strong>ntified themselves andwere i<strong>de</strong>ntified by others as the ‘winged nation’ par excellence. It was aFrench-man, Louis Blériot, who was the first to fly the English Channel;and was the French who organized the first succeful aviation competition,staged the first exhibition of aircraft, opened the first flight trainingschools, and led the world before 1914 in the manufacture of airplanes.Much of this activity was concentrated in or around Paris. 10 (WOHL,1994, p. 2).8 Inicialmente publica<strong>da</strong> em janeiro <strong>de</strong> 1893 pelo jornalista francês e balonista Georges Besançon, emcolaboração com a Union Aérophile <strong>de</strong> France, foi publica<strong>da</strong> até 1947, na forma <strong>de</strong> uma revista mensalilustra<strong>da</strong>. L’Aerophile tornou-se uma <strong>da</strong>s primeiras publicações do início <strong>da</strong> aviação. Os primeiros anos foram<strong>de</strong>votados aos balonistas e a importância <strong>da</strong> meteorologia no balonismo (efeitos atmosféricos emequipamentos, instrumentos e pessoas). Conforme ocorria o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s asas artificiais, planadorese aeronaves movi<strong>da</strong>s a motor, a revista divulgava para o público os avanços alcançados.9 “Eu acredito que se os irmãos Wright não realizarem um experimento público eles per<strong>de</strong>rão não só seusfeitos iniciais mas também a glória <strong>de</strong> terem sido os primeiros inventores...” (tradução nossa).10 “... durante os anos anteriores a 1914 os franceses i<strong>de</strong>ntificavam a si mesmos e eram i<strong>de</strong>ntificados poroutros como uma ‘nação ala<strong>da</strong>’ por excelência. Foi um francês, Louis Blériot, quem primeiro atravessou emvôo o Canal <strong>da</strong> Mancha e foram os franceses quem organizaram a primeira bem sucedi<strong>da</strong> competição <strong>de</strong>aviação, encenaram a primeira exibição <strong>de</strong> aeronaves, abriram as primeiras escolas <strong>de</strong> treinamento <strong>de</strong> vôo eli<strong>de</strong>raram o mundo, antes <strong>de</strong> 1914, na fabricação <strong>de</strong> aeroplanos. Muitas <strong>de</strong>ssas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s estavamconcentra<strong>da</strong>s em Paris ou ao seu redor.” (tradução nossa).261


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO período <strong>de</strong> 1908 a 1909 foi marcado pelas primeiras competições aéreas com apresença <strong>de</strong> aeronaves <strong>de</strong> diversos fabricantes. A invenção do avião se consoli<strong>da</strong>va eera <strong>da</strong><strong>da</strong> a larga<strong>da</strong> <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> tecnológica <strong>da</strong> aviação.A questão envolvendo a primazia do vôo ocorri<strong>da</strong> entre os Wright e Santos-Dumont acabou fazendo uma outra “vítima”, Clément A<strong>de</strong>r, que havia experimentado oseu Eole, em 1890, e o Avion III, em 1897. Este último haveria voado ao menos 300metros. Pelo menos as marcas <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s sumiram do terreno, apesar <strong>da</strong> aeronave nãoter se elevado mais do que alguns centímetros imperceptíveis à distância.Valorizando esta história, no Primeiro Salão <strong>de</strong> Aeronáutica, ocorrido no GrandPalais, em 1908, o Avion III foi exposto em um lugar <strong>de</strong> honra, em uma primeirareverência ao patrimônio <strong>da</strong> aviação. Em 1911, o General Pierre-Auguste Roques, chefe<strong>da</strong> aviação do Exército Francês, <strong>de</strong>terminou que o termo Avion, cunhado por A<strong>de</strong>r,<strong>de</strong>veria ser utilizado no lugar <strong>de</strong> aéroplane, outra palavra francesa. (HALLION, 2003, p.223).Observando-se os acontecimentos <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1890 e 1900, à luz dosconceitos adotados hoje pela sociologia <strong>da</strong> ciência, é possível perceber que: mais do queum invento <strong>de</strong> um cientista singular, o avião é uma criação coletiva. Hoje, ao dissecarmosuma <strong>de</strong>ssas máquinas maravilhosas i<strong>de</strong>ntificamos as aplicações do diagrama <strong>de</strong> forçassugerido por Sir Cayley, as asas arquea<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Lillienthal, a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> lateral postula<strong>da</strong>pelos Wright, os ailerons e o motor a petróleo introduzidos por Dumont. Esses últimos,contendores <strong>da</strong> primazia, utilizaram-se do conceito <strong>da</strong>s células, criado em 1894, porLawrence Hargrave, inglês radicado na Austrália (GRAY, 1928; NAUGHTON, 2003).Além disso, observamos a adoção <strong>da</strong> disposição dos comandos <strong>de</strong> vôo criados,posteriormente, por Blèriot e outras tantas criações, advin<strong>da</strong>s dos mais diversos cantosdo mundo.A conclusão pessoal dos autores, como estudiosos do Patrimônio e um <strong>de</strong>lestambém como aviador é que a discussão sobre quem inventou o avião é mais carrega<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias do que <strong>de</strong> objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica. A invenção do avião foi um processo comdiversos acontecimentos que po<strong>de</strong>m ser arbitrados como marcos importantes, não sepo<strong>de</strong>ndo atribuir sua invenção a uma pessoa, ou equipe, apenas. O arbítrio <strong>da</strong>s naçõesna escolha e valorização <strong>de</strong> seus pioneiros, observado ao redor do mundo, é mais uma<strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> força simbólica atribuí<strong>da</strong> à aeronáutica. Este simbolismo é associadoaos objetos do patrimônio aeronáutico e cultuado pelos governos, pelos acadêmicos,pelos profissionais <strong>da</strong> área e pelo público em geral.262


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a principal e maior contribuição <strong>de</strong> Santos Dumont para aaeronáutica mundial foi muito maior do que obter <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte uma solução <strong>de</strong>engenharia há muito tenta<strong>da</strong> para o vôo mecânico do mais pesado que o ar, o queDumont alcançou com o 14-bis. Os trabalhos do cientista brasileiro continuaram, comestudos <strong>de</strong> estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> lateral, no projeto nº 15, uma <strong>da</strong>s <strong>de</strong>ficiências observa<strong>da</strong>s no 14-bis. No projeto nº 18, uma embarcação que dispunha <strong>de</strong> hidrofólios 11 , foramaperfeiçoados os conhecimentos sobre a geração <strong>de</strong> sustentação em um monoplano. Atéque, na série conheci<strong>da</strong> como Demoiselle, com os projetos nº 19, 20, 21 e 22,construídos <strong>de</strong> 1907 a 1909, Dumont conseguiu obter um “avião diminuto”, “seguro ecapaz <strong>de</strong> ser construído por uma pessoa” (BARROS, 2006, p.190-192).Santos Dumont, então, permitiu a divulgação <strong>de</strong> seu projeto, abdicando <strong>de</strong>patentear sua invenção. Ao fazer isto, a aviação foi, <strong>de</strong> fato, apresenta<strong>da</strong> ao mundo todo.Os segredos <strong>de</strong> como construir um avião, obtidos através <strong>de</strong> muito trabalho intelectual eprático, que atravessou déca<strong>da</strong>s, e <strong>de</strong> inúmeros martírios, foi propagado para to<strong>da</strong> ahumani<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal forma que muitos Demoiselle foram construídos ao redor do planeta.A aviação foi apresenta<strong>da</strong> ao mundo por Santos Dumont, este, sim, foi o seu maior feitoindividual. Santos Dumont, conforme citado por Barros (2006, p.192):Divulgou os planos <strong>de</strong>talhados do Demoiselle e, em entrevista, <strong>de</strong>ixouregistra<strong>da</strong> a sua posição: Se quer prestar-me um gran<strong>de</strong> obséquio,<strong>de</strong>clare, pelo seu jornal, que, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> propagar a locomoção aérea,eu ponho à disposição do público as patentes <strong>de</strong> invenção do meuaeroplano. To<strong>da</strong> a gente tem o direito <strong>de</strong> construí-lo e, para isso, po<strong>de</strong> virpedir-me os planos. O aparelho não custa caro. Mesmo o motor nãochega a 5.000 francos (Le Matin, nº 9332; 15/<strong>de</strong>z/1909).“Não é conhecido o número exato <strong>de</strong> ‘Demoiselles’ construídos no mundo. Porém,está fartamente documentado que o foram na França, Estados Unidos e Alemanha, entreos anos <strong>de</strong> 1909 e 1920”. (DRUMOND, 198[?], p.139). Um dos Demoiselle originais,construídos à partir <strong>de</strong> 1908, pertence, hoje, ao acervo do Musée <strong>de</strong> L’Air et <strong>de</strong> L’Espace,localizado em Le Bourget, França, poucos quilômetros ao norte <strong>de</strong> Paris. (PETIT apudBIOUSSE, 1992, p.19).11 O hidrofólio também é uma invenção <strong>de</strong> Santos Dumont que consiste na aplicação dos princípios <strong>da</strong>mecânica dos fluidos utilizados pela aeronáutica, no seu ramo aviação, sob a água. Resumi<strong>da</strong>mente ohidrofólio funciona como uma asa <strong>de</strong>baixo d’água, gerando sustentação à partir <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>slocamento e, com isso, elevando o casco do barco para fora <strong>da</strong> água. Eliminando-se o contato do cascocom a água reduz-se o arrasto, obtêm-se maior eficiência hidrodinâmica e atinge-se veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s muitomaiores na água.263


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TApós isto, surgiram centenas <strong>de</strong> outros projetos <strong>de</strong> aeronaves em diversasnações. Muitos exemplares sobreviventes <strong>de</strong>stas épocas passa<strong>da</strong>s encontraram repousonos diversos museus aeronáuticos existentes ao redor do mundo, outros foramtransformados em monumentos históricos, suspensos por pe<strong>de</strong>stais no centro <strong>de</strong> praçasou <strong>de</strong>fronte a edifícios. Alguns ain<strong>da</strong> voam. Mas todos são reconhecidos como parcela dopatrimônio aeronáutico.PATRIMÔNIO, MONUMENTO E MONUMENTO HISTÓRICOO termo patrimônio, tomado por si só – sem a aposição <strong>de</strong> adjetivos – possuidiversas conotações em uso por muitas áreas do saber, tais como o Direito, a Economia,a Contabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a Antropologia e a Museologia, <strong>de</strong>ntre tantas outras. De forma genérica,e buscando seu sentido etimológico, patrimônio significa herança <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> pelos pais paraos filhos, abarcando a idéia <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> família (CHOAY, 2006; OLIVEIRA, 2007).A concepção <strong>de</strong> patrimônio <strong>de</strong> que trata a Museologia relaciona-se ao que<strong>de</strong>nominamos, hoje, Patrimônio <strong>Cultura</strong>l. A Constituição Brasileira <strong>de</strong> 1988, no seu artigo216, <strong>de</strong>fine o que constitui o patrimônio cultural brasileiro na or<strong>de</strong>m jurídica vigente nopaís.Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens <strong>de</strong> naturezamaterial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores<strong>de</strong> referência à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, à ação, à memória dos diferentes gruposformadores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, nos quais se incluem:I - as formas <strong>de</strong> expressão;II - os modos <strong>de</strong> criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e <strong>de</strong>mais espaços<strong>de</strong>stinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios <strong>de</strong> valor histórico, paisagístico, artístico,arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988).Esta <strong>de</strong>finição mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> patrimônio cultural mostra sua relação com ai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural e a memória social. Este conceito é o resultado <strong>de</strong> um<strong>de</strong>senvolvimento gradual ocorrido ao longo dos últimos séculos pois: “O sentido domonumento histórico an<strong>da</strong> a passos lentos” (CHOAY, 2006, p.25). Ao se realizar umarevisão dos trabalhos publicados na área dos estudos do patrimônio, se clarifica aevolução do significado <strong>de</strong>ste tema entre os pesquisadores e profissionais <strong>da</strong> área.Françoise Choay escrevendo sobre patrimônio histórico, o apresenta como uma <strong>da</strong>s264


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpartes constitutivas do patrimônio cultural. O uso <strong>de</strong>ste termo remete à acumulaçãocontínua <strong>de</strong> objetos ligados ao passado <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ibid., p.11).A abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> evolução do conceito <strong>de</strong> patrimônio histórico é inicia<strong>da</strong>, porChoay, através do estudo <strong>de</strong> dois conceitos intimamente ligados ao mesmo, que tambémconsi<strong>de</strong>ramos pertinentes: os conceitos <strong>de</strong> monumento e <strong>de</strong> monumento histórico.O termo monumento é uma <strong>de</strong>rivação <strong>da</strong> palavra latina monumentum, que por suavez vem <strong>de</strong> monere, que significa advertir, lembrar (Ibid., p.17). Mais do que uma merareferência cognitiva, a função do monumento possui uma profun<strong>da</strong> conotação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mpsicológica. Nas palavras <strong>da</strong> autora:A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata <strong>de</strong>apresentar, <strong>de</strong> <strong>da</strong>r uma informação neutra, mas <strong>de</strong> tocar, pela emoção,uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumentotudo o que for edificado por uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos pararememorar ou fazer que outras gerações <strong>de</strong> pessoas rememoremacontecimentos, sacrifícios, ritos e crenças. (CHOAY, 2006, p.18).Dentro <strong>de</strong>ste conceito, e como exemplificação do mesmo, <strong>de</strong>staca-se para ospassantes <strong>da</strong> Rua <strong>da</strong>s Laranjeiras, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a presença domonumento ao aviador italiano Carlo Del Prete, falecido naquela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em meio àgran<strong>de</strong> comoção pública, após um aci<strong>de</strong>nte aeronáutico ocorrido em 1928, nas águas <strong>da</strong>Baía <strong>da</strong> Guanabara. A escultura em frente à estátua do aviador <strong>de</strong>screve sucintamente asua história e o motivo <strong>da</strong> homenagem, cumprindo a função do monumento <strong>de</strong>rememorar o seu sacrifício, feito pela aviação. O monumento é composto pelo conjunto<strong>de</strong> três esculturas, a terceira sendo uma representação suspensa, em escala 1:2, <strong>da</strong>aeronave mo<strong>de</strong>lo S.64, com a qual Del Prete realizou a travessia do Atlântico.Muitos outros monumentos foram erigidos em memória a personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e feitosaeronáuticos na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro e em várias outras locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileiras eestão acessíveis nas praças, ruas e edifícios além <strong>de</strong>, é claro, nos aeródromos civis emilitares e nos aeroportos 12 .Mas, <strong>de</strong> forma diversa aos monumentos, os monumentos históricos não possuemcomo função original a perpetuação <strong>da</strong> memória. São objetos do passado, convertidosem testemunhos históricos, em um tempo posterior ao seu uso cotidiano. Esta diferença<strong>de</strong> origem faz com que, além <strong>da</strong> função memorial, o monumento histórico carregue12 Aeródromo é todo local <strong>de</strong>stinado ao pouso e <strong>de</strong>colagem <strong>de</strong> aeronaves. Aeroporto é um aeródromo civilque dispõe <strong>de</strong> facili<strong>da</strong><strong>de</strong>s para o embarque e <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> passageiros.265


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tconsigo um valor cognitivo: é um objeto-fonte <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos históricos. A conservação dosmesmos torna-se assim imprescindível e é praticamente domina<strong>da</strong> por estacaracterística. Ain<strong>da</strong> ressaltando algumas palavras <strong>de</strong> Choay (2006, p.27):[...] uma vez que se insere em um lugar imutável e <strong>de</strong>finitivo numconjunto objetivado e fixado pelo saber, o monumento histórico exige,<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> lógica <strong>de</strong>sse saber, e ao menos teoricamente, umaconservação incondicional.Estas observações a respeito <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> conservação dos monumentoshistóricos são aplicáveis a praticamente todo o universo dos bens musealizados.Segundo o International Council of <strong>Museu</strong>ms - ICOM:<strong>Museu</strong> é uma instituição permanente, aberta ao público, sem finslucrativos, a serviço <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento, queadquire, conserva, pesquisa, expõe e divulga as evi<strong>de</strong>ncias materiais eos bens representativos do homem e <strong>da</strong> natureza, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>promover o conhecimento, a educação e o lazer. (ICOM apud IPHAN,2005).A origem <strong>da</strong> palavra museu, segundo a mitologia grega, casa ou templo <strong>da</strong>smusas, está relaciona<strong>da</strong> às nove musas que presidiam as artes liberais, filhas <strong>de</strong> Zeus,Deus dos <strong>de</strong>uses, e Mnemosine, <strong>de</strong>usa <strong>da</strong> memória (MONTEIRO; CARELLI, 2007). Doculto <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>usas, no templo <strong>da</strong>s musas surge o termo museu – no vocábulo gregomouseion e no latim museum – que também significou, durante o Renascimento,“gabinete <strong>de</strong> literatos, homens <strong>de</strong> letras e <strong>de</strong> ciências”.Nas palavras <strong>da</strong> professora Tereza Cristina Scheiner:Compreendido ain<strong>da</strong>, na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea, como instituiçãopermanente, local <strong>de</strong>dicado ao estudo, conservação, documentação edivulgação <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncias materiais do Homem e do seu ambiente, o<strong>Museu</strong> - 'instituição cultural' – é vinculado, na historia do Oci<strong>de</strong>nte, àsformas políticas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e aos grupos hegemônicos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Esta percepção <strong>de</strong> <strong>Museu</strong> vem sendo manti<strong>da</strong> na literaturaespecializa<strong>da</strong>, a partir <strong>de</strong> uma suposta origem do termo - que teria sido oMouseion, ou 'templo <strong>da</strong>s Musas'. Mas se o museu é o templo <strong>da</strong>smusas, não seria preciso existir em local específico (templo) on<strong>de</strong> seguar<strong>de</strong> o sagrado (musas)? Não teria surgido <strong>da</strong>í o conceito, elaboradoatravés do tempo e ain<strong>da</strong> hoje muito difundido entre a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>acadêmica, do museu como espaço sacralizado <strong>de</strong> guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> Memória,local on<strong>de</strong> as musas vivem e falam? O 'templo <strong>da</strong>s musas' nos levaria aevocar assim, num primeiro nível <strong>de</strong> leitura, o local (em Delfos) on<strong>de</strong> asmusas falavam, pela voz <strong>da</strong>s pitonisas, ou mesmo o Mouseion <strong>de</strong>Alexandria - primeiro centro cultural conhecido do mundo oci<strong>de</strong>ntal,fun<strong>da</strong>do no séc. III a. C., para glória do mundo helenístico. (SCHEINER,1999, p. 134).266


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TO surgimento do museu, enquanto instituição tal qual o conhecemos hoje, estáintimamente ligado à consoli<strong>da</strong>ção do conceito <strong>de</strong> monumento histórico ocorrido duranteo século XVIII. Mais uma vez, pontua Choay (2006, p.62), referindo-se ao significadomo<strong>de</strong>rno <strong>da</strong> palavra museu, que:O <strong>Museu</strong>, que recebe seu nome mais ou menos ao mesmo tempo que omonumento histórico, institucionaliza a conservação material <strong>da</strong>spinturas, esculturas e objetos <strong>de</strong> arte antigos e prepara o caminho para aconservação dos monumentos <strong>da</strong> arquitetura.Ora, entre os bens constantes nos inventários dos museus aeronáuticos po<strong>de</strong>mexistir pinturas, esculturas e objetos <strong>de</strong> arte, mas dificilmente um museu que só contenhaobjetos <strong>de</strong>sta natureza será classificado como “aeronáutico” em <strong>de</strong>trimento do título <strong>de</strong>museu <strong>de</strong> artes plásticas.A Carta <strong>de</strong> Nizhny Tagil sobre o patrimônio industrial, elabora<strong>da</strong> pelo ComitêInternacional para a Conservação do Patrimônio Industrial 13 , em 17 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2003,<strong>de</strong>fine que:O patrimônio industrial compreen<strong>de</strong> os vestígios <strong>da</strong> cultura industrial quepossuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico.Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas,minas e locais <strong>de</strong> processamento e <strong>de</strong> refinação, entrepostos earmazéns, centros <strong>de</strong> produção, transmissão e utilização <strong>de</strong> energia,meios <strong>de</strong> transporte e to<strong>da</strong>s as suas estruturas e infra-estruturas, assimcomo os locais on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolveram ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais relaciona<strong>da</strong>scom a indústria, tais como habitações, locais <strong>de</strong> culto ou <strong>de</strong> educação.(TICCIH, 2003, p.3).As principais categorias <strong>de</strong> bens aeronáuticos são abrangi<strong>da</strong>s por esta <strong>de</strong>finição:as aeronaves, que são meios <strong>de</strong> transporte; os aeródromos, que compreen<strong>de</strong>m edifíciose infra-estrutura ligados à aeronáutica; e os aeroclubes e escolas <strong>de</strong> aviação, que sãolocais <strong>de</strong> educação por sua própria natureza.Os aeródromos e edifícios que os compõem, aí incluídos os hangares <strong>de</strong>stinadosao abrigo <strong>da</strong>s aeronaves <strong>de</strong> diversos tipos, estão contidos, também, na <strong>de</strong>finição <strong>da</strong>Carta <strong>de</strong> Paris, <strong>de</strong> 1962, enquanto componentes <strong>de</strong> paisagens e sítios urbanos.A salvaguar<strong>da</strong> não <strong>de</strong>veria limitar-se às paisagens e aos sítios naturais,mas esten<strong>de</strong>r-se também às paisagens e sítios cuja formação se <strong>de</strong>ve,no todo ou em parte, à obra do homem. Assim, disposições especiais<strong>de</strong>veriam ser toma<strong>da</strong>s para assegurar a salvaguar<strong>da</strong> <strong>de</strong> algumas13 O TICCIH – The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (ComitêInternacional para a Conservação do Patrimônio Industrial) é a organização mundial consagra<strong>da</strong> aopatrimônio industrial, sendo também o consultor especial do ICOMOS - International Council on Monumentsand Sites (Conselho Internacional <strong>de</strong> Monumentos e Sítios) para esta categoria <strong>de</strong> patrimônio.267


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpaisagens e sítios, tais como as paisagens e sítios urbanos, que são,geralmente, os mais ameaçados, especialmente pelas obras <strong>de</strong>construção e pela especulação imobiliária. Uma proteção especial<strong>de</strong>veria ser assegura<strong>da</strong> às proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos monumentos. (UNESCO,1962, p.2)A aplicação do conceito <strong>de</strong> monumento histórico à maquinaria e aos meios <strong>de</strong>transporte, realizado pela Carta <strong>de</strong> Nizhny Tagil, permite a extensão dos conceitos <strong>de</strong>conservação e restauração contidos na Carta <strong>de</strong> Veneza 14 , <strong>de</strong> 1964, para bens dopatrimônio aeronáutico. Somando-se a estas, as <strong>de</strong>finições <strong>da</strong> Carta <strong>de</strong> Burra, <strong>de</strong> 1980,também são aplicáveis ao manejo dos citados objetos, às operações <strong>de</strong> conservação,preservação, restauração, manutenção, reconstrução e a<strong>da</strong>ptação.Com isso, as intervenções realiza<strong>da</strong>s em aviões, balões, helicópteros e dirigíveispassam a possuir uma série <strong>de</strong> documentos balizadores <strong>de</strong> ações, aumentando alongevi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos mesmos, assegurando a sua transmissão às futurasgerações e preservando os atributos responsáveis pelo seu valor simbólico.Esta preservação <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> reflete-se <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância, naforma como foi acolhi<strong>da</strong> pela Conferência <strong>de</strong> Nara, realiza<strong>da</strong> no Japão, em 1994.A conservação do patrimônio cultural em suas diversas formas eperíodos históricos é fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> nos valores atribuídos a essepatrimônio. Nossa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar estes valores <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, emparte, do grau <strong>de</strong> confiabili<strong>da</strong><strong>de</strong> conferido ao trabalho <strong>de</strong> levantamento<strong>de</strong> fontes e informações a respeito <strong>de</strong>stes bens. O conhecimento e acompreensão dos levantamentos <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos a respeito <strong>da</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong>dos bens, assim como <strong>de</strong> suas transformações ao longo do tempo, tantoem termos <strong>de</strong> patrimônio cultural quanto <strong>de</strong> seu significado, constituemrequisitos básicos para que se tenha acesso a todos os aspectos <strong>da</strong>autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>. (UNESCO, ICCROM, ICOMOS, 1994, p.2).Por outro lado, nem to<strong>da</strong>s as pessoas e instituições que li<strong>da</strong>m com o patrimônioaeronáutico têm conhecimento e/ou utilizam estes conceitos. Assim como se i<strong>de</strong>ntifica amodificação do uso <strong>de</strong> edificações representantes do conjunto do patrimônio imóvel,através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação e re-significação, observa-se em diversos locaisdo mundo o recondicionamento <strong>de</strong> aeronaves antigas, algumas raras. O uso <strong>de</strong>ssepatrimônio e sua restauração para condições <strong>de</strong> utilização plena, isto é, para condição <strong>de</strong>vôo, têm conseqüências éticas e práticas relativas à autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> e à segurança <strong>de</strong> vôo.Apesar disso, <strong>de</strong>ve-se levar em conta o contexto exposto na Declaração <strong>de</strong> Sofia,<strong>de</strong> 1996, que dá abertura a novas formas <strong>de</strong> interpretação do conceito <strong>de</strong> conservação.14 As Cartas Patrimoniais estão disponíveis na página do IPHAN na internet: www.iphan.gov.br.268


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA História ensina e as transformações sociais <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> seudinamismo permitem constatar que o conceito <strong>de</strong> patrimônio cultural seencontra em constante processo <strong>de</strong> evolução. Em conseqüência, aconservação dos testemunhos tangíveis e intangíveis do passado nãoconstitui apenas uma questão <strong>de</strong> juízo atiço e estético, mas também umtema <strong>de</strong> atuação prática. Isto implica que não mais se aceite a idéia <strong>de</strong>que a doutrina <strong>da</strong> conservação seja estática e, doravante, sejamosconvocados a consi<strong>de</strong>rar o patrimônio cultural em função do contextogeral, levando-se em conta a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s culturas.(ICOMOS, 1996, p.1).As <strong>de</strong>finições <strong>da</strong> Carta <strong>de</strong> Nizhny Tagil dão conta, então, <strong>da</strong> parte referente aostestemunhos tangíveis <strong>da</strong> Aeronáutica, citados na Declaração <strong>de</strong> Sofia, po<strong>de</strong>ndo ser,também, classificados como “bens <strong>de</strong> natureza material”, conforme a re<strong>da</strong>ção do art. 216<strong>da</strong> Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, citado anteriormente.O mesmo artigo 216, porém, vai além dos bens <strong>de</strong> natureza material, parcelatangível do patrimônio, inclui também na constituição do patrimônio cultural brasileiro osbens <strong>de</strong> natureza imaterial. Surge, então, a questão: existe parcela <strong>de</strong> natureza intangívelcomponente do patrimônio aeronáutico?A resposta a esta pergunta passa pela compreensão <strong>de</strong> como é utilizado,atualmente, o conceito <strong>de</strong> patrimônio intangível, expressão emprega<strong>da</strong> por vários autoresacadêmicos, ou imaterial, conforme expresso no texto <strong>da</strong> Constituição. Por não ser oobjetivo <strong>de</strong>ste trabalho diferenciar nuances semânticas entre os dois termos, os mesmosserão utilizados, aqui, como equivalentes. Consi<strong>de</strong>rando-se que não há na<strong>da</strong> imaterial nadimensão em que vivemos, eminentemente material, será <strong>da</strong><strong>da</strong> preferência ao uso dotermo intangível neste trabalho.A primeira observação sobre o uso <strong>da</strong> expressão “patrimônio intangível” no Brasilé que a mesma é, quase sempre, relaciona<strong>da</strong> com as expressões culturais <strong>de</strong> caráterpopular ou liga<strong>da</strong> a minorias étnicas.A referência internacional sobre o tema é a “Convenção para a salvaguar<strong>da</strong> dopatrimônio cultural imaterial”. Conheci<strong>da</strong> como Recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Paris, a mesma é<strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2003, tendo sido gera<strong>da</strong> pela Conferência Geral <strong>da</strong>Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Educação, a Ciência e a <strong>Cultura</strong> (UNESCO).As consi<strong>de</strong>rações iniciais realiza<strong>da</strong>s falam sobre “direitos humanos”, “profun<strong>da</strong>inter<strong>de</strong>pendência que existe entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio materialcultural e natural”, “processos <strong>de</strong> globalização e <strong>de</strong> transformação social”, “comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s,269


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tem especiais indígenas” e “a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural e a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana”. Estes termossão um prelúdio do sentido <strong>de</strong> proteção às minorias, subjacente à Convenção.A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “patrimônio cultural imaterial” existente na Recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Paris<strong>de</strong> 2003 é encontra<strong>da</strong> no primeiro parágrafo do seu artigo 2:1. Enten<strong>de</strong>-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas,representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com osinstrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – queas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os grupos e, em alguns casos, os indivíduosreconhecem como parte integrante <strong>de</strong> seu patrimônio cultural. Essepatrimônio cultural imaterial, que se transmite <strong>de</strong> geração em geração, éconstantemente recriado pelas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e grupos em função <strong>de</strong> seuambiente, <strong>de</strong> sua interação com a natureza e <strong>de</strong> sua história, gerandoum sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e continui<strong>da</strong><strong>de</strong>, contribuindo assim parapromover o respeito à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural e à criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana. Paraos fins <strong>da</strong> presente Convenção, será levado em conta apenas opatrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentosinternacionais <strong>de</strong> direitos humanos existentes e com os imperativos <strong>de</strong>respeito mútuo entre comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, grupos e indivíduos, e do<strong>de</strong>senvolvimento sustentável. (UNESCO, 2003, p. 2).Esta <strong>de</strong>finição, <strong>de</strong> caráter geral, é complementa<strong>da</strong> no segundo parágrafo,enfocando os campos <strong>de</strong> interesse para as ações <strong>de</strong> salvaguar<strong>da</strong>. Estas são maisurgentes, quanto maior for a ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong>s manifestações dopatrimônio cultural intangível. Desta forma, a Recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Paris, particulariza a<strong>de</strong>finição realiza<strong>da</strong> inicialmente conforme a citação abaixo:2. O “patrimônio cultural imaterial”, conforme <strong>de</strong>finido no parágrafo 1acima, se manifesta em particular nos seguintes campos:a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo dopatrimônio cultural imaterial;b) expressões artísticas;c) celebrações, práticas sociais, rituais e atos festivos;d) conhecimentos e práticas, relacionados à natureza e ao universo;e) técnicas artesanais tradicionais. (UNESCO, 2003, p. 3).Na prática, este segundo parágrafo orienta a busca e salvaguar<strong>da</strong> dos bens dopatrimônio cultural intangível ameaçados <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento; as expressões popularese étnicas que po<strong>de</strong>m se per<strong>de</strong>r para sempre, caso a marcha <strong>de</strong> aculturação e influência<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rna e globaliza<strong>da</strong>” não seja compensa<strong>da</strong> com a valorização <strong>da</strong>scaracterísticas locais e tradicionais dos povos, bem como outras medi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>preservação.270


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TDe maneira diversa, a aeronáutica, por sua natureza, exige recursos financeiros etécnicos na maioria <strong>da</strong>s vezes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> vulto, não parecendo estar incluí<strong>da</strong> nasintenções protecionistas cita<strong>da</strong>s no parágrafo dois <strong>da</strong> Recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Paris <strong>de</strong> 2003.Apesar disto, a <strong>de</strong>finição inicial, do primeiro parágrafo, po<strong>de</strong> ser reconsi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> em termosmais amplos, não a fim <strong>de</strong> obter a salvaguar<strong>da</strong> internacional para alguma expressãoliga<strong>da</strong> ao patrimônio aeronáutico, mas para i<strong>de</strong>ntificar a sua parcela intangível.Ao se consi<strong>de</strong>rar o grupo <strong>de</strong> pessoas liga<strong>da</strong>s diretamente à aeronáutica, po<strong>de</strong>ndosesubdividi-lo em comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> pilotos, <strong>de</strong> tripulantes <strong>de</strong> vôo e controladores <strong>de</strong> vôo(e outros) 15 , é possível i<strong>de</strong>ntificar algumas <strong>da</strong>s características cita<strong>da</strong>s. O início <strong>da</strong><strong>de</strong>finição fala <strong>de</strong> “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas [...]que as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os grupos [...], reconhecem como parte do seu patrimônio cultural”.Diz ain<strong>da</strong> que “esse patrimônio cultural imaterial, que se transmite <strong>de</strong> geração emgeração, é constantemente recriado [...] em função <strong>de</strong> seu ambiente, <strong>de</strong> sua interaçãocom a natureza e <strong>de</strong> sua história, gerando um sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e continui<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Po<strong>de</strong>-se supor, por hipótese, a qual o autor reconhece por vivência própria, queexistam, em ca<strong>da</strong> um dos grupos citados - pilotos, tripulantes, controladores <strong>de</strong> vôo,mecânicos <strong>de</strong> aeronaves, etc. -, estas “práticas, representações, expressões,conhecimentos e técnicas” intangíveis, que se encontrem além do que está previsto nosmanuais e regulamentos. A assimilação <strong>de</strong>sta parcela <strong>da</strong> cultura aeronáutica seriarealiza<strong>da</strong> em conjunto com a instrução formal e com a vivência aeronáutica, sendotransmiti<strong>da</strong> <strong>de</strong> geração em geração, não <strong>de</strong> pais para filhos, mas <strong>de</strong> instrutores paraalunos, <strong>de</strong> mentores para neófitos. Esta cultura não se limita às práticas profissionais,mas às práticas <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, condiciona<strong>da</strong>s pelos ritmos <strong>da</strong> profissão, tais como as dita<strong>da</strong>spelas freqüentes viagens dos pilotos <strong>de</strong> linha aérea.Da mesma forma, é possível reconhecer que um grupo <strong>de</strong> pessoas expostasfreqüentemente a um ambiente físico diferente do ambiente <strong>da</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> social,também <strong>de</strong>senvolve características culturais diversas. Po<strong>de</strong>mos citar diversos exemplos:marinheiros, alpinistas, exploradores <strong>da</strong>s calotas polares, mergulhadores, etc. As15 Por exemplo, o grupo <strong>de</strong> passageiros i<strong>de</strong>ntificado informalmente como “jet-set internacional”, formado porparte <strong>da</strong> elite econômica, social, política e artística <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960 e 1970. Os indivíduos queinauguraram a era <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfica gera<strong>da</strong> pela malha <strong>de</strong> transporte aéreo à jatoparticiparam <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> subconjunto cultural supra-nacional, <strong>de</strong>senvolvido informalmente e quecarece <strong>de</strong> mais estudos para ser esclarecido e <strong>de</strong>limitado a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente, bem como para se mensurar suainfluência no mundo atual. Com o advento <strong>da</strong>s passagens aéreas <strong>de</strong> baixo custo, o perfil do conjunto <strong>de</strong>passageiros aéreos internacionais transformou-se, <strong>de</strong> forma que o equivalente ao “Jet-set internacional” doséc. XXI possui características culturais diversas <strong>da</strong>s originais.271


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpessoas que executam estas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, profissionais ou amadoras, <strong>de</strong>senvolvem umsentido <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e pertencimento diverso <strong>da</strong> sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional. Porexemplo: marinheiros <strong>de</strong> todo o mundo são conhecidos pelo seu vocabulário único,parcela <strong>da</strong>s línguas nacionais, distinta do utilizado pelo restante <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, quepermanece a maior parte do tempo em terra firme. Estes, por sua vez, reconhecem queos marinheiros passam parte <strong>de</strong> sua existência em um “mundo” diferente, sujeitos adiferentes condições, muitas vezes perigosas, o que adiciona um certo valor e mistério àsua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e à sua vi<strong>da</strong>.Ora, aviadores e tripulantes <strong>de</strong> aeronaves (bem como os passageiros, só queestes <strong>de</strong> forma eventual) estão expostos a um ambiente único. Controladores <strong>de</strong> vôo emecânicos também o estão, <strong>de</strong> forma indireta. Estes, apesar <strong>de</strong> estarem em terra, estãosempre raciocinando como se estivessem no ar, com aeronaves que estão no ar ou irãovoar em breve. A simples visualização <strong>da</strong>s aeronaves expostas em um museuaeronáutico e <strong>de</strong> seus manuais <strong>de</strong> operação é capaz <strong>de</strong> transmitir aos visitantes apenasuma pequena parcela do que significa a operação <strong>da</strong>s mesmas. O que seres humanossão capazes <strong>de</strong> fazer voando nessas aeronaves, os perigos à que estão expostos, adificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a beleza do ambiente ou medo <strong>da</strong> morte, são aspectos quenão se transmitem facilmente ao público <strong>de</strong> um museu. Esta parte, intrínseca à culturaaeronáutica e geradora <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação mútua entre os “iniciados” ao redor do mundo, é,certamente, reconheci<strong>da</strong> como uma característica cultural intangível <strong>de</strong> imensosignificado, que se transmite <strong>de</strong> geração em geração e é constantemente recria<strong>da</strong> emfunção do ambiente do vôo, <strong>da</strong> interação com a natureza do espaço aéreo e com ashistórias vivi<strong>da</strong>s, gerando o sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e continui<strong>da</strong><strong>de</strong> citado naRecomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Paris <strong>de</strong> 2003.Como observou a Profª. Maria Néli<strong>da</strong> Gonzalez <strong>de</strong> Gomez, em conferência noworkshop “Museologia como Campo Disciplinar”, ocorrido no âmbito do ICOFOM-LAM 16 ,“o patrimônio intangível é o elo entre os campos sujeitos do patrimônio e o patrimônioobjeto”(GOMEZ, 2008).Como afirmado na Conferência <strong>de</strong> Nara, a conservação do patrimônio cultural éfun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> nos valores atribuídos a esse patrimônio e no seu significado. Quais16 ICOFOM-LAM, Latin American ICOFOM Regional Group (grupo regional <strong>da</strong> América Latina do ComitêInternacional para a Museologia). O encontro do ICOFOM-LAM em 2008 ocorreu no MAST, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio<strong>de</strong> Janeiro, organizado pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, PPG-PMUS.272


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tseriam, então, os valores atribuídos e os significados do Patrimônio Aeronáutico? Umaaeronave é um objeto inanimado, porém, quando opera<strong>da</strong> por pessoas, po<strong>de</strong> realizarfeitos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.“Aí estão as provas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s homens...” (DONDI apud CHOAY, 2006, p.46).Esta citação, referente à observação dos gran<strong>de</strong>s monumentos históricos <strong>de</strong> Roma,<strong>de</strong>monstra bem a função memorial atrela<strong>da</strong> ao significado atribuído e ao valor percebidono Patrimônio.observa que:Em um sentido muito parecido, Crouch, citado por Dechow e Leahy (2006, p.420),[T]he core of the museum’s appeal runs even <strong>de</strong>eper than the opportunityto see the actual aircraft and spacecraft in which intrepid men andwomen wrote the history of the twentieth century in the sky… Peopleflock to the NASM [National Air and Space <strong>Museu</strong>] from around the worldbecause this museum makes them proud to be human. 17Os objetos são testemunhos materiais <strong>da</strong> história, porém, as histórias dos feitosrealizados transparecem nos objetos por formas indiretas. Uma aeronave <strong>de</strong> combatepo<strong>de</strong> mostrar os <strong>da</strong>nos dos projéteis inimigos que a alvejaram, um helicóptero <strong>de</strong> resgatepo<strong>de</strong> ter vestígios <strong>de</strong>ixados pelas vítimas que foram salvas, as marcas nos trens <strong>de</strong>pouso <strong>de</strong> um avião <strong>de</strong> instrução po<strong>de</strong>m ilustrar a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se ensinar pilotagem aum aluno.Se os objetos não tiverem valor atribuído a partir do conhecimento que se temsobre eles, não se constituirão em patrimônio cultural. Há, então, que se preservar maisdo que apenas os vestígios materiais. Nas palavras <strong>de</strong> Michel Parent (1984, p.112):A exigência <strong>da</strong> conservação ultrapassa hoje em dia o critério <strong>da</strong>antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> e ten<strong>de</strong> a englobar tudo o que testemunhe culturas,mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, vínculos profundos do homem com anatureza.Desta forma, é possível perceber que os vestígios materiais <strong>da</strong> aeronáuticacompõem apenas parte <strong>de</strong> um todo. Alguém familiarizado com a aviação, com o vôo, aopercorrer os corredores <strong>de</strong> um museu aeronáutico, consegue visualizar a parte intangível,por ter sido iniciado na cultura particular do grupo. Os visitantes “leigos”, porém,raramente o po<strong>de</strong>riam.17 O núcleo do apelo do museu vai muito além <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver aeronaves e espaçonaves reais, nasquais intrépidos homens e mulheres escreveram a história do século vinte no céu... O povo <strong>de</strong> todo o mundose reúne no NASM por que este museu os faz orgulhosos <strong>de</strong> serem humanos. (Tradução nossa)273


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEntão, como se faria a conservação e a divulgação dos testemunhos intangíveisdo passado <strong>da</strong> aeronáutica? Já existem formas <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> patrimônio,em geral são registros visuais, sonoros e escritos sobre o mesmo. Mas o que comporia,então, esta parte intangível do patrimônio aeronáutico?A resposta a esta pergunta talvez não esteja ain<strong>da</strong> disponível, porém po<strong>de</strong> serpesquisa<strong>da</strong>, ou busca<strong>da</strong>, na memória <strong>da</strong>s pessoas envolvi<strong>da</strong>s com a aeronáutica: seustestemunhos e os significados, sentimentos e valores atribuídos pelos mesmos àaeronáutica e <strong>de</strong>senvolvidos neles pela prática <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> aeronáutica.Mais do que narrativas históricas, seria busca<strong>da</strong> a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural específica<strong>da</strong> aeronáutica, enquanto ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana <strong>de</strong> locomoção pelo espaço aéreo; to<strong>da</strong>s aspráticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que sejam reconheci<strong>da</strong>spelo grupo <strong>de</strong> pessoas liga<strong>da</strong>s à aeronáutica como parte do seu patrimônio cultural,<strong>de</strong>staca<strong>da</strong> <strong>da</strong> cultura do restante <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.O entendimento <strong>de</strong>stas questões a respeito <strong>da</strong> natureza do PatrimônioAeronáutico é importante para balizar as ações a serem realiza<strong>da</strong>s sobre os objetos quecompõem, e que po<strong>de</strong>rão vir a compor, o acervo dos museus que conservam e expõeeste patrimônio.Assim, o estudo do Patrimônio Aeronáutico não po<strong>de</strong> ser efetuado sem oembasamento nos principais documentos existentes sobre Patrimônio <strong>Cultura</strong>l, porémnão po<strong>de</strong>, tampouco, ser efetuado sem levar em consi<strong>de</strong>ração as reais práticasexistentes no campo. A análise <strong>da</strong>s diferentes abor<strong>da</strong>gens faz parte intrínseca <strong>de</strong>steestudo, uma vez que objetiva, também, o entendimento dos significados e valores ligadosà aeronáutica e seu patrimônio.PATRIMÔNIO AERONÁUTICO: DEFINIÇÃO E CONTEÚDOA partir do exposto acima, é possível inferir que o Patrimônio Aeronáutico é umaparcela do patrimônio cultural, contendo itens que se enquadram no escopo doPatrimônio Industrial e Técnico-Científico.A pesquisa realiza<strong>da</strong> sobre o conceito <strong>de</strong> Patrimônio Aeronáutico não encontrouuma <strong>de</strong>finição estabeleci<strong>da</strong> para o mesmo. Apesar disso, existem diversas referênciasqualificando objetos como “importante exemplar do Patrimônio Aeronáutico”, ou“Patrimônio <strong>da</strong> Aeronáutica” a ser preservado. Estas expressões adjetiva<strong>da</strong>s sãoencontra<strong>da</strong>s, freqüentemente, atribuí<strong>da</strong>s a aeronaves históricas, monumentos e marcos274


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcomemorativos e instalações aeroportuárias ou <strong>da</strong> indústria aeronáutica. (PETIT apudBIOUSSE; CHENEL; DÉGARDIN, 1992; MACEDO apud DRUMOND, 198[?]; POCIASK,2008).Um dos exemplos encontrados refere-se à Houston Aeronautical Heritage Society(HAHS). Esta instituição, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no Texas, Estados Unidos, no ano <strong>de</strong> 1998, <strong>de</strong>dica-seà preservação <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> aviação na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Houston-TX. Entre outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> está restaurando o prédio do antigo terminal <strong>de</strong> embarque e <strong>de</strong>sembarque<strong>de</strong> passageiros, <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 1940, no Aeroporto William P. Hobby, o qual serátransformado em museu aeronáutico. A motivação para tanto está expressa claramenteno website <strong>da</strong> instituição:While most major cities have razed the beautiful art <strong>de</strong>co airport terminalsof the 1930s and 1940s to make way for mo<strong>de</strong>rn buildings, jet traffic orthe closing of airports, the Houston Municipal Airport Terminal stands onWilliam P. Hobby Airport as a quiet monument to the rich and variedhistory of aviation in the region.The Terminal and adjacent property is leased to the HoustonAeronautical Heritage Society by the City of Houston. By restoring thisunique building, the Houston Aeronautical Heritage Society is preservingan important piece of Houston's history for future generations. The<strong>Museu</strong>m is the only educational institution in Houston <strong>de</strong>dicated topromoting our city's significant civil aviation history. (HAHS, 2003). 18Além do prédio do terminal aeroportuário, que além <strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado comopatrimônio aeronáutico também po<strong>de</strong> ser classificado como patrimônio arquitetônico, aHAHS preserva, em condições <strong>de</strong> vôo, uma aeronave Lockheed Lo<strong>de</strong>star, <strong>de</strong> 1943, e umavião mo<strong>de</strong>lo Cessna 172, <strong>de</strong> 1957, entre outros.Outro interessante exemplo é a Associação dos Amigos do <strong>Museu</strong> Aero Fênix(AAMAF), enti<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa sem fins lucrativos fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1995. Do seu estatuto,<strong>de</strong>stacamos os dois primeiros artigos, que citam a expressão “patrimônio aeronáuticoportuguês” sem, no entanto, <strong>de</strong>fini-lo.18 Enquanto a maioria <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>moliu os belos terminais aeroportuários art déco dos anos 30 e40, para abrir espaço para edifícios mo<strong>de</strong>rnos, tráfego <strong>de</strong> jatos ou para o fechamento dos aeroportos, oTerminal do Aeroporto Municipal <strong>de</strong> Houston permanece no Aeroporto William P. Hobby como ummonumento silencioso <strong>da</strong> rica e varia<strong>da</strong> história <strong>da</strong> aviação na região.O terminal e a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> adjacente são alugados à Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do Patrimônio Aeronáutico <strong>de</strong> Houston pelaCi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Houston. Restaurando este edifício original, a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do Patrimônio Aeronáutico <strong>de</strong> Houstonestá preservando uma parte importante <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Houston para as futuras gerações. O museu é a únicainstituição educativa em Houston <strong>de</strong>dicado a promover a significativa história <strong>da</strong> aviação civil <strong>da</strong> nossaci<strong>da</strong><strong>de</strong>.(Tradução nossa)275


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TArt. 1º A A.A.M.A.F. é uma organização não-governamentalin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualquer organização política, sindical e religiosa eespecialmente vocaciona<strong>da</strong> para a preservação do PatrimónioAeronáutico Português e sua divulgação.Art. 2º A A.A.M.A.F. tem por finali<strong>da</strong><strong>de</strong> a preservação <strong>de</strong> PatrimónioAeronáutico Português, formação, iniciativas culturais aeronáuticas e oapoio geral ao <strong>Museu</strong> Aero Fénix. (AAMAF, 1995, p.1).Na pesquisa não foi i<strong>de</strong>ntificado um conceito claramente expresso para <strong>de</strong>screvero patrimônio aeronáutico. Apenas uma pequena relação <strong>de</strong> “categorias <strong>de</strong> objetos” quepo<strong>de</strong>riam fazer parte <strong>de</strong>sse conjunto foi encontra<strong>da</strong> e é cita<strong>da</strong> mais abaixo.Uma Proposta para o Conteúdo do Patrimônio AeronáuticoNão é possível criar uma política sistemática <strong>de</strong> conservação do PatrimônioAeronáutico sem que haja uma <strong>de</strong>finição <strong>da</strong>s categorias <strong>de</strong> objetos que po<strong>de</strong>m comporesta parcela do patrimônio. A Instrução do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica, IMA 210-2,Tombamento <strong>de</strong> Bem Patrimonial Histórico e <strong>Cultura</strong>l <strong>da</strong> Aeronáutica, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong>1979 (BRASIL, 1979), ain<strong>da</strong> em vigor, não esclarece esta questão.Um dos problemas observados na re<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>ste documento é o usoindiscriminado em vários documentos e fontes bibliográficas consultados dos termosMinistério <strong>da</strong> Aeronáutica e Aeronáutica. O item 1-1. “Finali<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong> IMA 210-2 diz que:A presente instrução tem por finali<strong>da</strong><strong>de</strong> estabelecer os procedimentosreferentes à pesquisa e ao tombamento <strong>de</strong> bens móveis e imóveis, <strong>de</strong>natureza consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> histórica, cuja conservação seja <strong>de</strong> interesse parao Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica como também estabelecer regras àpreservação dos bens referidos.Preten<strong>de</strong>-se, assim, com a presente Instrução implantar medi<strong>da</strong>s quevisem i<strong>de</strong>ntificar, incorporar, preservar, conservar, controlar e recuperaros Bens Patrimoniais Históricos <strong>da</strong> Aeronáutica.O Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica, sucedido pelo Comando <strong>da</strong> Aeronáutica é, muitasvezes chamado apenas <strong>de</strong> Aeronáutica, com letra maiúscula, significando uma <strong>da</strong>s trêsForças Arma<strong>da</strong>s do Brasil. Instituição permanente prevista na Constituição <strong>de</strong> 1988. Opatrimônio aeronáutico, <strong>de</strong> que trata este trabalho, extrapola as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s militares, sereferenciando nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s aéreas como um todo. A aeronáutica, com letra minúscula,refere-se à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana <strong>de</strong> locomoção através do meio atmosférico.O capítulo seis <strong>da</strong> IMA 210-2, intitulado Disposições Gerais, dispõe que “sãoconsi<strong>de</strong>rados ‘patrimônio histórico e cultural’ <strong>de</strong> interesse <strong>da</strong> Aeronáutica": urna com o276


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcoração <strong>de</strong> Santos Dumont, sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong> Força Aérea(localiza<strong>da</strong> em Pirassununga - SP); a Guarnição <strong>de</strong> Aeronáutica dos Afonsos, com maior<strong>de</strong>staque para a antiga Escola <strong>de</strong> Aeronáutica (localiza<strong>da</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro - RJ); a Casa<strong>de</strong> Cabangu (localiza<strong>da</strong> em Santos Dumont – MG), local <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> SantosDumont, tomba<strong>da</strong> pela Secretaria <strong>de</strong> Patrimônio Histórico do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais; aCasa “Encanta<strong>da</strong>”, residência <strong>de</strong> Santos Dumont manti<strong>da</strong> pela prefeitura municipal(localiza<strong>da</strong> em Petrópolis – MG); o MUSAL, com respectivas instalações e acervoexpositivo incorporado (localizado no Rio <strong>de</strong> Janeiro – RJ); e o <strong>Museu</strong> Aeronáutico doIbirapuera, a cargo <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Santos Dumont (localizado em São Paulo – SP).O formulário citado (Anexo 1 <strong>da</strong> IMA 210-2) possui, em seu verso, instruções parapreenchimento. O campo 1, “Natureza do Bem Patrimonial”, <strong>de</strong>ve ser preenchido <strong>de</strong>forma a:I<strong>de</strong>ntificar o objeto, a edificação ou o monumento, <strong>da</strong>ndo uma idéiaprecisa <strong>de</strong> sua natureza, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s diversas categorias, tais como:acessório <strong>de</strong> aeronave, armamento, baixela, con<strong>de</strong>coração, <strong>de</strong>pendênciahistórica (sala, pátio, cela, túnel, etc), instrumento, me<strong>da</strong>lhacomemorativa, mobiliário, mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aeronave, obra <strong>de</strong> arte, peça <strong>de</strong>adorno, peça <strong>de</strong> uniforme, símbolo, troféu, utensílio, etc.O próprio fato <strong>da</strong> única categorização dos objetos <strong>de</strong> interesse para o PatrimônioHistórico <strong>da</strong> Aeronáutica constante <strong>da</strong> IMA 210-2 estar no verso do Anexo 1, comoinstrução para o preenchimento do formulário, já é revelador <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seestabelecer critérios mais objetivos para a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>stes bens, apesar <strong>de</strong>sta relaçãonão <strong>de</strong>ver ser ignora<strong>da</strong>. Esta necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> se torna ain<strong>da</strong> mais visível ao percebermosque, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as 19 categorias cita<strong>da</strong>s como exemplo, apenas três são referentes aobjetos exclusivamente aeronáuticos: acessório <strong>de</strong> aeronave, instrumento (seconsi<strong>de</strong>rarmos como instrumento <strong>de</strong> vôo) e mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aeronave. Mesmo o armamento,po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> uso aeronáutico ou terrestre.Desta forma, e no contexto <strong>da</strong> pesquisa realiza<strong>da</strong>, propõe-se, aqui, uma <strong>de</strong>finiçãopara o conteúdo do Patrimônio Aeronáutico, enten<strong>de</strong>ndo-se aeronáutica como sendo aativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção através do meio aéreo.Levando-se em consi<strong>de</strong>ração os diversos componentes e expressões a que seaplica o adjetivo “aeronáutico”, po<strong>de</strong>r-se-ia incluir no rol do Patrimônio Aeronáutico, notodo ou em parte, os seguintes “vestígios” materiais ou intangíveis:277


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ta) Como patrimônio aeronáutico tangível:• As aeronaves <strong>de</strong> todos os tipos, os equipamentos, roupas, capacetes,ferramentas e <strong>de</strong>mais objetos <strong>de</strong> uso aeronáutico ou <strong>de</strong>senvolvidosinicialmente para uso aeronáutico, enquanto criações tecnológicas;• Os aeródromos, aeroportos, helipontos, hangares e sítios <strong>de</strong> vôo, enquantoedificações e espaços <strong>de</strong>stinados à manifestação <strong>da</strong> cultura humana, científicae tecnológica aeronáutica;• Os registros dos experimentos e vôos <strong>da</strong>s primeiras aeronaves em ca<strong>da</strong>categoria, os projetos pioneiros, <strong>de</strong>senhos e todos os registros e monumentosreferentes às conquistas realiza<strong>da</strong>s através do vôo mecânico artificial,enquanto patrimônio histórico;• Os manuais <strong>de</strong> vôo, manuais <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> aeronaves, publicaçõestécnicas, livros teóricos e técnicos, mapas, cartas e procedimentos <strong>de</strong> vôopublicados, enquanto documentos <strong>da</strong> cultura técnica e científica aeronáutica;• Os livros e estudos históricos, biografias, fotografias, filmes e <strong>de</strong>mais registros,com conteúdo aeronáutico, enquanto documentos <strong>da</strong> história aeronáutica;• Os objetos diversos que fizeram parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> aeronáutica, aquicompreendi<strong>da</strong>s as aviações civil, particular e <strong>de</strong> transporte aéreo público, emilitar, do Comando <strong>da</strong> Aeronáutica, do Exército e Aviação Naval, incluindomobiliário, me<strong>da</strong>lhas, selos, armas, automóveis, documentos diversos, objetospessoais e todos os testemunhos materiais <strong>da</strong> história aeronáutica e <strong>de</strong> seuspersonagens.b) Como patrimônio aeronáutico intangível:• As histórias, len<strong>da</strong>s e tradições orais dos aviadores civis e militares (<strong>da</strong> FAB,Exército e Aviação Naval) 19 , controladores <strong>de</strong> tráfego aéreo (civis e militares),mecânicos <strong>de</strong> aeronaves, tripulantes <strong>de</strong> vôo, pára-quedistas, homens <strong>de</strong>resgate e pessoal ligado à infra-estrutura aeronáutica (aeroportos ehelipontos);19 FAB, Força Aérea Brasileira, usa<strong>da</strong> aqui para diferenciar <strong>de</strong> aeronáutica, que po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>da</strong> como aaeronáutica militar do Comando <strong>da</strong> Aeronáutica ou, no seu contexto mais amplo: a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoçãohumana na atmosfera. Aviação do Exército, conheci<strong>da</strong> como aviação militar até 20 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1941, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> criação do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica. Aviação Naval, componente aéreo <strong>da</strong> Marinha.278


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T• As <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> vôo acrobático, <strong>de</strong> vôo <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração, <strong>de</strong> vôo<strong>de</strong>sportivo, <strong>de</strong> pára-quedismo esportivo e <strong>de</strong>mais tipos <strong>de</strong> “balés aéreos”,como forma <strong>de</strong> expressão;• As técnicas e práticas <strong>de</strong> pilotagem, <strong>de</strong> manutenção aeronáutica, <strong>de</strong> controle<strong>de</strong> tráfego aéreo e outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s afins, que se encontrem para além do<strong>de</strong>scrito e previsto em manuais e procedimentos, componentes <strong>da</strong> culturaaeronáutica enquanto modo <strong>de</strong> fazer;• O saber aeronáutico, ou a<strong>da</strong>ptado para aplicação aeronáutica, <strong>de</strong>senvolvidopor aviadores, pilotos, mecânicos, engenheiros, controladores <strong>de</strong> vôo, físicos,químicos, biólogos, economistas e acadêmicos em to<strong>da</strong>s as vertentes,enquanto criação tecnológica e científica.Devem ser pesquisa<strong>da</strong>s, também, para a averiguação <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> valorsimbólico significativo para a aeronáutica:• As histórias, len<strong>da</strong>s e tradições orais dos passageiros, <strong>de</strong> sobreviventes <strong>de</strong>aci<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> vítimas <strong>de</strong> tragédias não aeronáuticas resgata<strong>da</strong>s através <strong>de</strong>meios aeronáuticos e to<strong>da</strong>s as pessoas que tiveram contato esporádico ounão profissional com a aeronáutica em suas diversas formas;Também são objetos <strong>de</strong> interesse para a preservação do Patrimônio Aeronáutico,apesar <strong>de</strong> não estarem contidos unicamente no mesmo, mas por revelarem a extensão<strong>da</strong> influência <strong>da</strong> cultura aeronáutica no ambiente cultural em geral:• As pinturas, <strong>de</strong>senhos, esculturas, músicas, poemas, romances, histórias eto<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais manifestações artístico-culturais contendo assuntoaeronáutico ou influenciado pela cultura aeronáutica <strong>de</strong> qualquer forma,enquanto criação artística e expressão do <strong>de</strong>sejo humano <strong>de</strong> voar;• Os objetos <strong>de</strong> uso cotidiano, como automóveis, utensílios domésticos,brinquedos e roupas, com formato inspirado ou influenciado no <strong>de</strong>senho ouprojeto <strong>de</strong> aeronaves ou ain<strong>da</strong> adornados com motivos aeronáuticos,enquanto manifestação cultural.Assim o patrimônio aeronáutico não se compõe apenas <strong>de</strong> objetosexclusivamente aeronáuticos, mas possui interseções com diversos outros tipos oucategorias do patrimônio cultural. Ca<strong>da</strong> um dos objetos ou expressões citados acima279


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>vendo receber tratamento específico conforme sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>de</strong>vendo receberregistro a<strong>de</strong>quado, <strong>de</strong> acordo com seu caráter intangível.CONSIDERAÇÕES FINAISÉ indubitável que a evolução <strong>da</strong> aeronáutica faz parte do contexto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>smodificações ocorri<strong>da</strong>s no mundo a partir do final do século XIX. O po<strong>de</strong>r transformador<strong>de</strong>sta nova ferramenta do homem já foi provado em tempos <strong>de</strong> guerra e em tempos <strong>de</strong>paz. Apesar <strong>de</strong> relativamente recente, a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> investimento científico,tecnológico, financeiro, político e humano realizado no domínio aeronáutico foi tamanhaao redor do planeta que o acervo patrimonial acumulado é imenso.Até mesmo pelo seu valor histórico e social, o uso <strong>de</strong>ste patrimônio <strong>de</strong>ve serrealizado com critério, respeitando as diretrizes éticas vigentes nos campos <strong>da</strong>aeronáutica, <strong>da</strong> manutenção, <strong>da</strong> conservação, <strong>da</strong> Museologia e do Patrimônio. O valorsimbólico <strong>de</strong> qualquer aeronave, enquanto materialização <strong>da</strong> conquista do sonho <strong>de</strong> voaré, por si só, um po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> coesão social, impulsionador <strong>da</strong>s vonta<strong>de</strong>shumanas e fonte inesgotável <strong>de</strong> orgulho.Os estudos a respeito do patrimônio aeronáutico e <strong>da</strong> conservação <strong>de</strong> aeronavessão recentes, escassos e dispersos. Carecem ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> maiores fun<strong>da</strong>mentaçõesacadêmicas e humanísticas. Apesar disso, a conservação do patrimônio é umanecessi<strong>da</strong><strong>de</strong> social. Como prova, <strong>de</strong>stacamos as inúmeras associações <strong>de</strong> amantes <strong>da</strong>aviação espalhados ao redor do mundo, ca<strong>da</strong> uma tentando trabalhar a sua maneira,umas com mais, outras com menos orientação técnica e científica, mas to<strong>da</strong>s com aintenção <strong>de</strong> valorizar e preservar o patrimônio aeronáutico, vivenciando <strong>de</strong> maneiraparticipativa o sonho humano <strong>de</strong> voar.To<strong>da</strong>s estas iniciativas são <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> investimento <strong>de</strong> energia e vonta<strong>de</strong>bem-intenciona<strong>da</strong>s. Se a preservação efetiva do patrimônio aeronáutico se beneficiapouco <strong>da</strong>s mesmas é, mais provavelmente, <strong>de</strong>vido à não difusão dos preceitos <strong>da</strong>conservação, do que à uma vonta<strong>de</strong> consciente <strong>de</strong> não preservá-lo. To<strong>da</strong>s as críticas quepo<strong>de</strong>m ser direciona<strong>da</strong>s aos pequenos grupos <strong>de</strong> amadores que, na tentativa <strong>de</strong>“resgatar o valor” <strong>de</strong> uma aeronave antiga, a modificam <strong>de</strong> maneira irreversível, po<strong>de</strong>mser utiliza<strong>da</strong>s como auto-crítica pelas diversas organizações internacionais que labutamna seara do Patrimônio e <strong>da</strong> Museologia, as quais possuem muito pouca informação a280


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Trespeito do patrimônio aeronáutico que pu<strong>de</strong>sse servir <strong>de</strong> orientação aos gruposamadores.Não se po<strong>de</strong> negar que o patrimônio aeronáutico é um gran<strong>de</strong> atrator <strong>de</strong> visitantesaos museus <strong>de</strong> aviação. Nem que o surgimento <strong>de</strong> museus aeronáuticos ao redor domundo é um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro fenômeno museológico ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente estu<strong>da</strong>do. Essesdois fatos já constituem argumentação mais do que suficiente para que sejam criados<strong>de</strong>partamentos específicos nos organismos nacionais e internacionais <strong>de</strong> Patrimônio eMuseologia como forma <strong>de</strong> estimular o trabalho acadêmico, o intercâmbio <strong>de</strong>informações, a criação <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> procedimento e a implementação <strong>de</strong> políticaséticas <strong>de</strong> manejo dos patrimônios aeronáuticos nacionais e internacional.Os diversos exemplos <strong>de</strong> usos do patrimônio aeronáutico ao redor do mundo sãoum indício <strong>de</strong> que não existe apenas um caminho correto ao li<strong>da</strong>r com esse assunto. Oestudo caso-a-caso po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser estimulado como forma <strong>de</strong> aumentar a compreensãosobre o assunto, <strong>de</strong>limitando o campo <strong>da</strong>s experiências existentes e analisando ascaracterísticas regionais e as consequências técnicas, históricas, museológicas e éticas<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> prática.Des<strong>de</strong> a exposição estática <strong>de</strong> partes <strong>de</strong> aeronave recupera<strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>stroços,conserva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> forma como foram acha<strong>da</strong>s, até os “museus voadores” (flying museums),on<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as aeronaves recebem manutenção periódica e são utiliza<strong>da</strong>s na prática,existe uma gama enorme <strong>de</strong> experiências na li<strong>da</strong> com o patrimônio aeronáutico. Ca<strong>da</strong>uma <strong>de</strong>las, com os seus pressupostos éticos, ain<strong>da</strong> que expressos <strong>de</strong> maneira informal.Para que se possa permitir a preservação <strong>da</strong>s informações históricas, técnicas ecientíficas e, principalmete, que se possa transmitir todo esse acervo para as futurasgerações, é <strong>de</strong>sejável que mais atenção seja <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a esse tema pelos especialistasno assunto.E que a museologia aeronáutica se <strong>de</strong>senvolva, <strong>de</strong> forma a permitir que qualquerpessoa, ao se <strong>de</strong>parar com as magníficas aeronaves existentes nos museusaeronáuticos <strong>de</strong> todo o mundo, pense:“Aí estão as provas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s homens...” (DONDI apud CHOAY, 2006, p.46).REFERÊNCIASASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DO MUSEU AERO FÊNIX – AAMAF. Estatuto <strong>da</strong> AAMAF.1995. Disponível em: http://www.aeronauta.com/aero.fenix/aamaf.html. Acesso em: 14Dez. 2008.281


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA CONSTRUÇÃO DE UM PATRIMÔNIO CIENTÍFICO:A Coleção Costa LimaMarcio Rangel ∗Oestudo <strong>de</strong> coleção <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> história natural e o hábito docolecionismo nos levam necessariamente ao início do século XV,quando o entusiasmo reinante pelas antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>s tem o seu focoredirecionado para um novo mundo <strong>de</strong>scoberto (Pomian, 1984, p. 77).As viagens que se multiplicaram neste período <strong>de</strong>slocaram as fronteirasdo invisível e atingiram locais até então impensados, levando para o velho mundo não sómercadorias altamente lucrativas, mas também todo um novo saber. Tecidos,ourivesarias, porcelanas, fatos <strong>de</strong> plumas, estátuas, cerâmicas, exemplares <strong>da</strong> flora e <strong>da</strong>fauna passaram a constituir os novos semióforos, objetos que, retirados <strong>de</strong> seu contextoe recolhidos, não pelo valor <strong>de</strong> uso, mas por seus significados, per<strong>de</strong>ram utili<strong>da</strong><strong>de</strong>,passando a representar o invisível: países exóticos, socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes, outrosidiomas.Segundo Pomian (1984), todos estes objetos não tinham, to<strong>da</strong>via, nos séculosXVI e XVII, o mesmo estatuto <strong>da</strong>s antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>s. 1 Mais do que objetos <strong>de</strong> estudo, eles secaracterizavam como curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mundo ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconhecido. Apesar dointeresse dos “sábios” e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong> que significavam, lhes era atribuído um valor∗ <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ;marciorangel@mast.br. Formado em Museologia (1995) e mestre em Memória Social (2000), ambos ostítulos obtidos pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Doutor em História <strong>da</strong>s Ciências pelaFun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz/COC (2006). Durante três anos atuou como museólogo do Departamento <strong>de</strong><strong>Museu</strong>s e Centros <strong>Cultura</strong>is/IPHAN/MinC. Atualmente é Pesquisador Adjunto do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia eCiências Afins/MCT e Professor do Mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Tem experiênciana área <strong>de</strong> Museologia, com ênfase em coleções histórico-científicas, história <strong>da</strong> ciência, memória epatrimônio.1 Os vestígios <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, que tiveram, durante séculos, o caráter <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício, adquirem significado apartir do momento em que são relacionados com os textos provenientes <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, dos quais <strong>de</strong>vemtornar possível a compreensão. Por isso, não são apenas relíquias ou mirabilia: tornam-se objetos <strong>de</strong> estudo;adquirem um significado preciso através <strong>de</strong> pesquisas que consistem em confrontá-los uns com os outros eem reportá-los todos aos textos que provêm <strong>da</strong> mesma época (POMIAN, 1984, p. 76).284


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmenor. Até a meta<strong>de</strong> do século XVIII, pelo menos na França, são as me<strong>da</strong>illes, isto é, asmoe<strong>da</strong>s antigas, as peças <strong>de</strong> coleção por excelência. É a partir <strong>de</strong>sta <strong>da</strong>ta que estaspeças serão suplanta<strong>da</strong>s pelos objetos <strong>de</strong> história natural.Sobre esta nova forma <strong>de</strong> ver o mundo natural, Foucault (1992, p. 145) afirmaque, do “primeiro olhar minucioso” sobre as coisas, <strong>de</strong> suas “<strong>de</strong>scrições neutras e fiéis”,os estudiosos começaram a <strong>de</strong>purar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a separar a observação <strong>da</strong> fábula, e<strong>de</strong>ssa purificação constitui-se a primeira forma <strong>de</strong> história, a história <strong>da</strong> natureza. Osdocumentos <strong>de</strong>sta nova história, ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> acordo com a visão crítica <strong>de</strong> Foucault, são osespaços on<strong>de</strong> as coisas e os seres, nesse momento, colocavam-se objetivamente umasao lado <strong>da</strong>s outras, agrupa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> acordo com seus traços comuns, uma vez jáanalisa<strong>da</strong>s e cataloga<strong>da</strong>s com seus nomes próprios. Os resultados <strong>de</strong>sta nova or<strong>de</strong>m sãoos herbários, as coleções, os jardins e os museus.Dentro <strong>de</strong>ste universo, os gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s são consi<strong>de</strong>rados os marcosfun<strong>da</strong>mentais do que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>nominar como processo <strong>de</strong> consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>ste novomo<strong>de</strong>lo, que, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, apresentaram alguns dos aspectosbásicos do perfil dos museus, que se mantiveram até os nossos dias (LOPES, 1995, p.12).Antes mesmo <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> História Natural no século XVIII, 2 ascoleções <strong>de</strong> história natural, reuni<strong>da</strong>s em gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s particulares, já eramestu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>s, cataloga<strong>da</strong>s e arranja<strong>da</strong>s sistematicamente. Foi através doestudo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas coleções, a <strong>da</strong> rainha <strong>da</strong> Dinamarca, que o médico e botânicosueco Carolus Linnaeus criou o sistema internacional <strong>de</strong> nomenclatura zoológica,adotado na 10 a edição do Systema Naturae 3 por todos os estudiosos <strong>da</strong> natureza. Sabese<strong>da</strong> importância metodológica que assumiram esses espaços e essas distribuiçõesnaturais para a classificação, nos fins do século XVIII. Os gabinetes e jardins <strong>de</strong> HistóriaNatural <strong>de</strong>ssa época passaram a substituir seus antigos mostruários por exposiçõescataloga<strong>da</strong>s, que se tornaram um modo <strong>de</strong> introduzir, na linguagem sobre o mundo, umanova maneira <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação (Foucault, 1992, p. 145). De acordo com Kury e Camenietzki2 Britsh <strong>Museu</strong>m – 1753; Muséum d’Historie Naturelle – 1793, <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> História Natural <strong>de</strong> Coimbra – 1772.3 Nessa edição, <strong>de</strong>screvia 4.236 espécies <strong>de</strong> animais, distribuídos em seis classes (Mammalia, Aves,Amphibia, Pisces, Insecta e Vermes), 34 or<strong>de</strong>ns e 312 gêneros. Da Região Neotropical, incluiu apenas umaspoucas espécies, sendo as brasileiras principalmente extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Historia naturalis Brasiliae <strong>de</strong> Marcgrave ePiso. A falta <strong>de</strong> informações sobre a fauna e a flora brasileiras se <strong>de</strong>via principalmente à política <strong>de</strong> segredomanti<strong>da</strong> por Portugal, que impedia a disseminação <strong>de</strong> qualquer notícia sobre suas colônias. Papavero &Overal, 2003. A Historia Natural no Tempo <strong>de</strong> Landi. Capturado em 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2006. Disponível on-linena fonte: http://www.landi.inf.br/anais/A%20Historia%20Natural%20no%20tempo%20<strong>de</strong>%20Landi.doc.285


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T(1997, p. 63), “o <strong>de</strong>bate acerca <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> natureza, <strong>da</strong> classificação e do estatuto <strong>da</strong>scoleções <strong>de</strong> História Natural marcou o panorama intelectual europeu <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>sdo século XVIII e do início do século XIX. Neste período, a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional ésubstituí<strong>da</strong> pela ciência, que emerge como um conhecimento pragmático, utilitário eespecializado, on<strong>de</strong> a Natureza se torna mo<strong>de</strong>lo e fonte <strong>de</strong> riquezas”.Foi neste período que os principais museus europeus passaram a reunirimportantes coleções <strong>de</strong> história natural <strong>de</strong> várias partes do mundo. No Brasil,pesquisadores <strong>de</strong> diferentes nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s vieram ao país, em busca <strong>de</strong> espécimespara as coleções <strong>de</strong> seus museus, recolhendo, além <strong>de</strong> material botânico e zoológico,objetos etnográficos, arqueológicos e paleontológicos. 4 De acordo com Schwarcz (1993,p. 69), a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m era salvar o que se pu<strong>de</strong>sse, uma vez que imperava a idéia <strong>de</strong>que as culturas recém-<strong>de</strong>scobertas se extinguiriam, estando os “vestígios” mais bempreservados nos museus metropolitanos.A associação feita entre os museus <strong>de</strong> história natural e o estudo <strong>da</strong>biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> não parou <strong>de</strong> se estreitar e se fortalecer no <strong>de</strong>correr dos anos. 5Disseminados por todos os continentes e a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente organizados, os museus <strong>de</strong>história natural, quase sempre, apresentavam características monumentais. Os museusserão os Templos <strong>da</strong> Ciência, como Pyenson e Sheets-Pyenson (1999, p. 131)<strong>de</strong>nominam o <strong>Museu</strong> Britânico, um dos principais paradigmas museológicos do séculoXIX. Da mesma forma, a pesquisa em sistemática, que trata <strong>de</strong>ssas coleções científicas,passou a representar a espinha dorsal do conhecimento em biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Posteriormente aos museus, as Instituições biomédicas e agrícolas que surgiram no fimdo século XIX e início do XX iniciaram também a formação <strong>de</strong> coleções científicas, mascom objetivos diferentes dos museus <strong>de</strong> história natural. Nessas instituições, foram osproblemas sanitários e fitossanitários que impulsionaram a formação <strong>de</strong> coleções <strong>de</strong>grupos específicos, como os insetos transmissores <strong>de</strong> doenças, fungos, helmintos etc.A COLEÇÃO COSTA LIMANo universo <strong>da</strong>s coleções entomológicas <strong>de</strong> Manguinhos, interessa-nosparticularmente a Coleção Costa Lima, que se formou e se <strong>de</strong>senvolveu <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>4 Sobre naturalistas viajantes no Brasil, ver o número especial <strong>da</strong> revista História, Ciências, Saú<strong>de</strong> –Manguinhos, volume VIII, suplemento 2001.5 De acordo com Pyenson e Sheets-Pyenson (1999, p. 134), o número <strong>de</strong> museus <strong>de</strong> história natural cresceuexponencialmente em alguns países. Por volta <strong>de</strong> 1900, a Alemanha possuía 150 museus <strong>de</strong> historia natural,a Inglaterra, 250, os Estados Unidos, 250 e a França, 300.286


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ttradição do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), tradição forma<strong>da</strong> por nomes como OswaldoCruz, Adolpho Lutz, Arthur Neiva, Carlos Chagas e outros importantes pesquisadores. 6 AColeção Costa Lima existente no IOC é uma coleção fecha<strong>da</strong>, isto é, após a morte doentomólogo, nenhum outro exemplar é adicionado a essa coleção. Ela representa ahistória <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> do cientista. Lá, são encontrados os exemplares que utilizou para os seusestudos e aqueles que serviram somente para material <strong>de</strong> comparação. A análise <strong>da</strong>Coleção Costa Lima nos faz compreen<strong>de</strong>r a infra-estrutura básica <strong>de</strong> suporte para o<strong>de</strong>senvolvimento dos estudos entomológicos. A coleção é um rico e diversificado banco<strong>de</strong> materiais (espécimes ou exemplares) preservados, associados a <strong>da</strong>dos biológicos egeográficos, ferramentas imprescindíveis para o trabalho dos taxonomistas e apoioindispensável para muitas outras áreas do conhecimento. Os exemplares atestam ariqueza biológica <strong>da</strong>s diversas regiões <strong>de</strong> on<strong>de</strong> são oriundos, certificam a <strong>de</strong>nominaçãopara um grupo <strong>de</strong> organismos e constituem a base <strong>de</strong> informação para análises <strong>de</strong>distribuição geográfica, diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> morfológica, relações <strong>de</strong> parentesco e evolução <strong>da</strong>sespécies, além <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r conceitos morfológicos e taxonômicos e a maneira comoesses conceitos estão sendo modificados no <strong>de</strong>correr do tempo.Por ter atuado durante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> científica na Escola Nacional <strong>de</strong> Agronomia(antiga Escola Superior <strong>de</strong> Agricultura e Medicina Veterinária) e no Instituto OswaldoCruz, a sua coleção reuniu um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> importância econômica esocial, na área <strong>da</strong> entomologia agrícola, como pragas <strong>de</strong> plantas cultiva<strong>da</strong>s, e na área <strong>da</strong>entomologia médica, como vetores <strong>de</strong> doenças. Além <strong>da</strong> coleção Costa Lima existente noInstituto Oswaldo Cruz, existe, também, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural do Rio <strong>de</strong> Janeiro(UFRRJ), uma coleção entomológica <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Costa Lima. Este acervo foi organizadodurante os anos em que lecionou nesta universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, sendo o material coletado utilizadopara as aulas práticas e para algumas <strong>de</strong> suas pesquisas. Diferentemente <strong>da</strong> coleção<strong>de</strong>posita<strong>da</strong> no Instituto Oswaldo Cruz, esta coleção é aberta e continua recebendomaterial <strong>de</strong> diversos pesquisadores até os dias atuais. Um dos gran<strong>de</strong>s contribuidorespara o aumento <strong>de</strong>ste acervo foi Cincinato Rory Gonçalves, engenheiro agrônomo, aluno<strong>de</strong> Costa Lima que o substitui na cátedra <strong>de</strong> entomologia agrícola quando este seaposentou.6 O Departamento <strong>de</strong> Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz per<strong>de</strong>u todos os seus pesquisadores, cassadospela Revolução <strong>de</strong> 1964, e todos os alunos e estagiários abandonaram o Instituto. O Departamento <strong>de</strong>Entomologia, que ocupava o 2 o an<strong>da</strong>r do Pavilhão Mourisco, foi “<strong>de</strong>spejado”, juntamente com a ColeçãoEntomológica com mais <strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> exemplares, para um prédio abandonado, o antigo Hospital doInstituto Oswaldo Cruz. A mu<strong>da</strong>nça foi tumultua<strong>da</strong>, per<strong>de</strong>ram-se várias gavetas e centenas <strong>de</strong> exemplares.Este episódio ficou conhecido como o “Massacre <strong>de</strong> Manguinhos”. Em 1986, em uma nova mu<strong>da</strong>nça, aColeção Entomológica voltou para o 2 o an<strong>da</strong>r do Pavilhão Mourisco, agora ocupando várias salas, pois asantigas instalações <strong>de</strong> ferro que ocupavam to<strong>da</strong> a altura <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s salas (três an<strong>da</strong>res) foram joga<strong>da</strong>s fora(JURBERG; SANTOS, 2004).287


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo processo <strong>de</strong> formação do acervo, po<strong>de</strong>mos encontrar estes diferentesmomentos <strong>da</strong> carreira <strong>de</strong> Costa Lima, observando a coleção como uma biografia, comoum livro que contivesse o resumo <strong>de</strong> suas pesquisas, sua metodologia <strong>de</strong> trabalho e suare<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações. Em sua trajetória, é possível i<strong>de</strong>ntificar o seu interesse pelaentomologia médica, área <strong>de</strong> atuação inicial <strong>de</strong> sua carreira, que volta a emergir noepisódio <strong>da</strong> vacina contra a febre amarela, ou acompanharmos o seu interesse crescentepelo campo <strong>da</strong> entomologia agrícola, que se transforma em sua principal ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Umoutro <strong>da</strong>do que nos chama a atenção é o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> exemplares que têm suaorigem em diferentes coletores, o que nos remete a um perfil interessante <strong>de</strong> nossopersonagem: Costa Lima era um cientista <strong>de</strong> gabinete, ou seja, não ia ao campo coletarmaterial para a sua coleção. Uma parte consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> seu acervo foi obti<strong>da</strong> através <strong>da</strong>sdiversas Inspetorias Agrícolas que enviavam insetos que estavam atacando plantações<strong>de</strong> diferentes partes do país. Para estabelecer os procedimentos <strong>de</strong> combate,necessitavam <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação exata <strong>da</strong> praga. Po<strong>de</strong>mos, ain<strong>da</strong>, citar o material obtidoatravés <strong>de</strong> suas relações pessoais com cientistas que eram seus contemporâneos emantinham uma relação <strong>de</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Gregório Bon<strong>da</strong>r, Frei Thomaz <strong>de</strong> Borgmeier,Adolph Hempel, Adolph Ducke, Adolpho Lutz, José Pinto <strong>da</strong> Fonseca, Lauro Travassos,Howard etc.Entre estes pesquisadores, existia uma intensa troca <strong>de</strong> material entomológico,solicitações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> exemplares, sendo necessário, em alguns casos,estabelecer comparações com os já <strong>de</strong>positados e i<strong>de</strong>ntificados nas coleções. Aquali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coleção entomológica também estava vincula<strong>da</strong> ao número <strong>de</strong>pesquisadores que trabalharam com seu material, <strong>de</strong>screvendo e i<strong>de</strong>ntificando<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s espécies. Neste processo <strong>de</strong> construção, ao mesmo tempo que solicitavaaos seus pares exemplares que estivessem faltando em sua coleção, envia material <strong>de</strong>seu acervo para ser i<strong>de</strong>ntificado ou confirmado por <strong>de</strong>terminados especialistas. Todosestes procedimentos <strong>de</strong> solicitação e i<strong>de</strong>ntificação, que faziam parte <strong>de</strong> seu cotidiano,po<strong>de</strong>m ser acompanhados através <strong>de</strong> sua vasta correspondência.O transporte <strong>de</strong>sse material era extremamente rudimentar, às vezes ocasionandoa <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> alguns exemplares. Além <strong>da</strong>s solicitações, Costa Lima recebia material<strong>de</strong> amigos que estavam acompanhando mais <strong>de</strong> perto o seu trabalho ou sabiam <strong>de</strong> seuinteresse por algumas espécies.Ain<strong>da</strong> na análise <strong>da</strong> formação <strong>da</strong> coleção, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionarCarlos Alberto Campos Seabra, peça fun<strong>da</strong>mental na trajetória <strong>de</strong> Costa Lima. Filho <strong>de</strong>288


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TDemócrito Seabra, industrial do ramo <strong>de</strong> tecidos, um dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>miaBrasileira <strong>de</strong> Ciências e amigo íntimo <strong>de</strong> Costa Lima, Campos Seabra conviveu comCosta Lima <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança. Este convívio o levou a se interessar pelo universoentomológico. Ain<strong>da</strong> quando criança, no período <strong>da</strong> administração <strong>de</strong> Carlos Chagas(1917-1934), freqüentava o laboratório <strong>de</strong> Costa Lima no Instituto Oswaldo Cruz,experiência esta que, no nosso enten<strong>de</strong>r, o levou a trabalhar como entomólogo por umbreve período <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, formou-se em medicinae, mesmo sem fazer parte do quadro <strong>de</strong> funcionários, começou a trabalhar comoassistente <strong>de</strong> Costa Lima.Apesar <strong>de</strong> seu interesse pela entomologia, esta não era a sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> principal.Her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> fortuna, transformou-se em um executivo do ramo financeiro,tendo a entomologia se tornado um hobby. Sua atuação junto a Costa Lima foi <strong>de</strong> sumaimportância para a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong>ste pesquisador. Como citamosanteriormente, por ser um cientista <strong>de</strong> gabinete, sua coleção só podia ser aumenta<strong>da</strong>através do material remetido por outros pesquisadores ou por coletores contratados.Neste sentido, po<strong>de</strong>mos afirmar que, em gran<strong>de</strong> parte, a riqueza <strong>de</strong> sua coleção se <strong>de</strong>veao seu amigo e mecenas Carlos Alberto Campos Seabra, que financiava, com suafortuna pessoal, diversos coletores que traziam exemplares para a Coleção Costa Lima epara a sua coleção particular.Nesta relação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> entre Costa Lima e Carlos Alberto CamposSeabra, a entomologia era um dos principais pontos <strong>de</strong> convergência. Com as facili<strong>da</strong><strong>de</strong>sque sua fortuna lhe proporcionou e com auxilio <strong>de</strong> seu sábio amigo, pô<strong>de</strong> adquirir váriascoleções particulares que <strong>de</strong>spertavam o interesse dos principais institutos <strong>de</strong> pesquisado país 7 .Apesar <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo e preocupação constante com o enriquecimento <strong>de</strong> suacoleção e <strong>de</strong> seu apoio incondicional ao amigo Costa Lima, Campos Seabra também<strong>de</strong>sempenhou um outro importante papel <strong>de</strong> mecenas. Em 1952, adquiriu a ColeçãoZikán, com cerca <strong>de</strong> 150 mil insetos, oriundos principalmente do Parque Nacional <strong>de</strong>Itatiaia, envia<strong>da</strong> para o Instituto Oswaldo Cruz com o seu auxílio e o do ConselhoNacional <strong>de</strong> Pesquisa. Desse conjunto, merecem <strong>de</strong>staque as coleções <strong>da</strong>s or<strong>de</strong>ns7 A Coleção Carlos Alberto Campos Seabra reuniu diversas coleções particulares, <strong>de</strong>ntre estas merecem<strong>de</strong>staque: <strong>de</strong> H. Zellibor (São Paulo) e <strong>de</strong> J. M. Bosq (Buenos Aires) e parte <strong>da</strong> coleção K. Lenko, com baseem material coligido em Barueri. Esta coleção foi doa<strong>da</strong> ao <strong>Museu</strong> Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro/UFRJ. Omaterial <strong>da</strong> coleção Zellibor é particularmente importante para o estudo <strong>da</strong> fauna do estado <strong>de</strong> São Paulo ereúne material abun<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> algumas locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, principalmente: São Paulo (Jabaquara), Marília e Peruíbe.De acordo como o Boletim Informativo <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Zoologia (Ano XXVII – Nº 80 – Curitiba,junho <strong>de</strong> 2005), esta coleção possuía mais <strong>de</strong> 5.000.000 <strong>de</strong> exemplares.289


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TLepidoptera (57.329 espécimes); Coleoptera (56.744 espécimes) e Hymenoptera (32.785espécimes). 8Sobre o apoio <strong>de</strong> Carlos Alberto Campos Seabra à entomologia brasileira,po<strong>de</strong>mos afirmar que sua atuação como mecenas <strong>de</strong>sse importante campo do saberesteve volta<strong>da</strong> para o financiamento <strong>de</strong> diversos entomologistas e coletores profissionais.Mas a sua mais importante ação nessa área foi a atenção dirigi<strong>da</strong> a Costa Lima,personagem que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância estabeleceu uma relação <strong>de</strong> muita proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> comele, permea<strong>da</strong> pela a admiração que seu pai possuía pelo cientista. Um outro ponto quemerece <strong>de</strong>staque é que Campos Seabra não participou <strong>de</strong>ste universo apenas comopatrocinador, mas foi membro ativo <strong>de</strong>le, realizando pesquisas no campo <strong>da</strong> entomologiae formando, no <strong>de</strong>correr dos anos, uma importante coleção. 9Na lógica do mecenato científico, 10 no qual o relacionamento pessoal e o respeitomútuo têm papel relevante, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r o apoio do banqueiro carioca à Seção<strong>de</strong> Entomologia do IOC, on<strong>de</strong> Costa Lima <strong>de</strong>senvolvia suas pesquisas. SegundoSanglard (2005, p. 77), em uma relação <strong>de</strong> mecenato, há sempre uma proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> entreprotetores e protegidos, sem que isto necessariamente estabeleça uma relação <strong>de</strong>subordinação entre o mecenas e seu protegido. Existe, neste mecanismo, um respeitomútuo, um compartilhamento <strong>de</strong> interesses, como po<strong>de</strong>mos verificar na relação entreCosta Lima e Campos Seabra.To<strong>da</strong>s estas coleções possuem, além <strong>de</strong> um patrimônio natural imensurável, umpatrimônio histórico riquíssimo para a sistemática, traduzido no que chamamos tipos. Ariqueza <strong>da</strong> Coleção Costa Lima se <strong>de</strong>ve aos diversos tipos ou espécimes-tipo que acompõem. Estes são exemplares nos quais a primeira <strong>de</strong>scrição do inseto foi feita. É apeça-chave <strong>de</strong> qualquer acervo, pois é a prova concreta e conserva<strong>da</strong> <strong>da</strong> existência <strong>de</strong>um inseto com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s características que lhe são peculiares. Ca<strong>da</strong> tipo representao exemplar utilizado para a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s características <strong>da</strong>quele grupo. O tipo, ouholótipo, por <strong>de</strong>terminação do Código Internacional <strong>de</strong> Nomenclatura Zoológica, é oexemplar que serviu <strong>de</strong> base à <strong>de</strong>scrição original <strong>de</strong> uma espécie, e ao qual o nomelatinizado está perpetuamente ligado, sendo a principal fonte <strong>de</strong> consulta, sempre que8Informações Capturados <strong>da</strong> internet em 09 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2006. On-line. Diponivel na Fonte:http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/static/correspon<strong>de</strong>ncia/joseph.htm9 A coleção forma<strong>da</strong> por Campos Seabra rapi<strong>da</strong>mente tornou-se referência para todos os entomólogos doBrasil. Vários cientistas hospe<strong>da</strong>vam-se em sua casa e pesquisavam em seu acervo. Doou sua coleção parao <strong>Museu</strong> Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro.10 No que se refere ao mecenato científico, ver: Sanglard (2005). Nesse trabalho, a autora discute o processo<strong>de</strong> patrocínio privado à ciência no Brasil, na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, tendo como locus privilegiado <strong>de</strong>sua análise a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.290


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpairem dúvi<strong>da</strong>s sobre a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong> espécie. Os holótipos sãoconsi<strong>de</strong>rados como Patrimônio <strong>da</strong> Ciência, sob a guar<strong>da</strong> <strong>da</strong>s instituições científicas, quetêm o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> mantê-los, conservá-los e torná-los acessíveis a todos os pesquisadoresinteressados.Em uma outra perspectiva, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar os exemplares que formam estacoleção indícios ou pistas materiais <strong>de</strong> pesquisas pregressas. Através <strong>de</strong>les, é possívelmapear as principais pragas que assolaram a lavoura brasileira, i<strong>de</strong>ntificando período elocal <strong>de</strong> ocorrência, fazendo emergir <strong>de</strong>ste contexto as crises agrícolas causa<strong>da</strong>s porinsetos que colocaram em risco a economia nacional. Além <strong>de</strong> patrimônio científico, ascoleções são suportes <strong>de</strong> memória, pois nos remetem a procedimentos, práticascientíficas e conceitos <strong>de</strong> nosso passado remoto e recente. Apesar <strong>de</strong> possuir este fortelaço com o nosso passado, as coleções científicas possuem um laço <strong>de</strong> igual intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>com o futuro, quando consi<strong>de</strong>ramos o seu potencial genético e as possíveisreestruturações conceituais que po<strong>de</strong>m ocasionar.Um outro <strong>da</strong>do <strong>de</strong> relevância na Coleção é a sua relação direta com a produçãoteórica <strong>de</strong> Costa Lima. Quase todos os exemplares <strong>de</strong>scridos nas suas obras estão noacervo. Somente na sua obra Catalogo <strong>de</strong> insectos que vivem em plantas do Brasil estãomenciona<strong>da</strong>s 1.749 espécies <strong>de</strong> insetos que atacam plantas do Brasil, registrando-se osvegetais atacados e assinala<strong>da</strong> a distribuição geográfica <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>sses parasitos.Já em sua obra Insectos do Brasil, para <strong>de</strong>screver todos os exemplares <strong>de</strong>sta publicação,além <strong>de</strong> se apoiar em sua própria coleção, parte consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> sua análise foi realiza<strong>da</strong>nas coleções entomológicas do Instituto Oswaldo Cruz, que foram forma<strong>da</strong>s por materialque vinha sendo reunido por outros pesquisadores.Com a <strong>de</strong>struição do meio ambiente, as coleções científicas acabaram portransformar-se em centros <strong>de</strong> documentação <strong>de</strong> interesse mundial. Dentro <strong>de</strong>staperspectiva, as informações acumula<strong>da</strong>s em seu interior <strong>de</strong>vem ser encara<strong>da</strong>s comobase para a construção <strong>de</strong> uma parcela expressiva do conhecimento acerca <strong>da</strong>diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> mundial. Tal situação <strong>de</strong>spertou uma gran<strong>de</strong> preocupação com oacondicionamento e conservação <strong>de</strong>ste patrimônio, que por sua gran<strong>de</strong> importância <strong>de</strong>veestar em condições a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s <strong>de</strong> preservação.A Coleção Costa Lima, forma<strong>da</strong> por aproxima<strong>da</strong>mente 35.000 exemplares,abrangendo to<strong>da</strong>s as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> insetos, constitui-se em um importante registro <strong>da</strong>existência <strong>de</strong> espécies no tempo e espaço, é repositório dos espécimes tipo essenciaispara a i<strong>de</strong>ntificação precisa dos insetos <strong>de</strong> interesse agrícola. Ao mesmo tempo é291


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdocumento <strong>da</strong> fauna entomológica <strong>de</strong> áreas perturba<strong>da</strong>s, empobreci<strong>da</strong>s ou em vias <strong>de</strong><strong>de</strong>saparecimento, tornando-se indispensável nas pesquisas em sistemática e evolução,em estudos <strong>de</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em suma, é um acervo insubstituível cuja preservaçãonão po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scui<strong>da</strong><strong>da</strong> nem interrompi<strong>da</strong>. Desejamos, ain<strong>da</strong>, ressaltar que, associa<strong>da</strong>às coleções científicas, existe uma ampla documentação produzi<strong>da</strong> pelos pesquisadoresque as montaram e estu<strong>da</strong>ram. São ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong> campo, correspondências, fotografias,mapas, manuscritos, relatórios, separatas e ilustrações que constituem fontes <strong>de</strong>inestimável importância para o estudo <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s científicas relaciona<strong>da</strong>s àformação <strong>de</strong>sses acervos. Tanto as coleções como a documentação a ela associa<strong>da</strong>encerram informações fun<strong>da</strong>mentais para o entendimento <strong>de</strong> questões biológicas,históricas e sociais.A DOCUMENTAÇÃO GRÁFICA DOS TRABALHOS CIENTÍFICOSDando continui<strong>da</strong><strong>de</strong> à analise <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as questões que envolvem as coleçõescientificas, consi<strong>de</strong>ramos importante <strong>de</strong>stacar que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s em torno<strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s coleções favoreceram a melhoria <strong>da</strong>s técnicas elabora<strong>da</strong>s pelas seçõesauxiliares indispensáveis às coleções, tais como as seções que eram responsáveis pelailustração dos exemplares <strong>de</strong>positados no Instituto Oswaldo Cruz, no momento <strong>de</strong> suapublicação nos periódicos científicos: <strong>de</strong>senho, pintura, caligrafia, microfotografia efotografia. Desenho e fotografia eram consi<strong>de</strong>rados serviços complementaresindispensáveis em qualquer organização <strong>da</strong> natureza do Instituto Oswaldo Cruz. Estasduas técnicas tiveram gran<strong>de</strong> atenção e cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> Oswaldo Cruz e seus sucessoresmais próximos (FONSECA, 1974).De acordo com Oliveira e Conduru (2004), “a ilustração científica é um tipo <strong>de</strong>representação figurativa cujas finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s são registrar, traduzir e complementar, pormeio <strong>da</strong> imagem, observações e experimentos científicos que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>espécies microscópicas <strong>de</strong> animais e vegetais até a anatomia humana, passando pelaarqueologia, paleontologia, mineralogia, geologia, cartografia, astronomia, arquitetura,física, engenharia e história natural <strong>de</strong> uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seres vivos e sua relação com apaisagem ou nichos on<strong>de</strong> vivem”.A ilustração é, em sentido geral, uma imagem que está usualmente acompanha<strong>da</strong><strong>de</strong> texto, fazendo parte, assim, do que se <strong>de</strong>nomina iconografia, ou "documentação visual292


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque constitui, ou completa <strong>de</strong>terminado texto" (ARAÚJO, 1986, p. 477). Incluem-se, nosconceitos <strong>de</strong> iconografia ou ilustração, as imagens obti<strong>da</strong>s tanto através <strong>de</strong> métodosmanuais <strong>de</strong> representação, como <strong>de</strong>senho, pintura e gravura, quanto <strong>de</strong> reproduçãotécnica, como a fotografia.Em uma ilustração científica, as representações <strong>de</strong>vem ser, sobretudo, claras eprecisas cientificamente, e não necessariamente esteticamente atraentes. Atualmente,elas vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a produção manual e fotográfica até as imagens digitaliza<strong>da</strong>s. Háfotografias feitas, essencialmente, para a publicação científica, cuja funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> comoilustração científica tem sido discuti<strong>da</strong> em relação à do <strong>de</strong>senho científico. Existem, poroutro lado, numerosas obras contendo reproduções <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> animais eplantas através <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, pintura e gravura, cuja beleza plástica tem merecidoestudos. Tais imagens, em geral, trazem os elementos essenciais que esse tipo <strong>de</strong>representação exige: verossimilhança e atenção aos <strong>de</strong>talhes, que permitem, porexemplo, a i<strong>de</strong>ntificação dos seres representados ou a melhor compreensão <strong>de</strong>fenômenos naturais <strong>de</strong>scritos, ou seja, sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong> didática (FORD, 1992). Por estascaracterísticas, são <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s ilustrações científicas.Em seu artigo, “Nas frestas entre a ciência e a arte: uma série <strong>de</strong> ilustrações <strong>de</strong>barbeiros do Instituto Oswaldo Cruz”, Oliveira e Conduru (2004), mencionam o fato <strong>de</strong>que os exemplos mais populares <strong>de</strong> ilustração científica sejam os que aparecem nosrelatos dos viajantes que exploravam os territórios pouco conhecidos pela Europa noséculo XIX. “Merecem <strong>de</strong>staque as ilustrações <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> Spix, Saint-Hilaire,Humboldt, Burmeister e Descourtilz” (DE PAULA, 1997; KURY & SÁ, 1999, in: OLIVEIRA;CONDURU, 2004). De fato, as investigações científicas e as expedições a terras poucoconheci<strong>da</strong>s, especialmente no século XIX, estimularam o <strong>de</strong>senvolvimento do <strong>de</strong>senhocientífico, sobretudo o <strong>de</strong> botânica, já que eram necessários o testemunho fiel <strong>da</strong>s<strong>de</strong>scobertas e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> plantas com potencial uso na farmacologia, química eagricultura (OLIVEIRA; CONDURU, 2004).O recém-criado Instituto <strong>de</strong> Manguinhos queria estabelecer sua influência políticae hegemônica no campo <strong>da</strong>s ciências biomédicas no Brasil (BENCHIMOL; TEIXEIRA,1993), <strong>de</strong> modo que não se poupariam esforços para somar quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s estéticas àscientíficas nessas ilustrações, elaborando-as a cores e imprimindo-as em gráfica <strong>de</strong>quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ter-se-ia lançado mão <strong>de</strong> práticas artísticas para melhorar a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>293


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tilustração como documento científico e torná-las atraentes esteticamente. Procurava-se,por certo, “a combinação <strong>de</strong> suficiente ver<strong>da</strong><strong>de</strong> científica e sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> artística emproporções semelhantes” (DANSE, 1990, p. 27).Desta forma, a ilustração científica no Instituto Oswaldo Cruz sempre teve gran<strong>de</strong>importância, seus cientistas publicaram, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1901, uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong>trabalhos científicos contendo ilustrações, algumas <strong>da</strong>s quais realiza<strong>da</strong>s por elespróprios. Mas, no final <strong>da</strong> primeira déca<strong>da</strong> do século XX, é criado um periódico científicopara a divulgação <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> instituição, as Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, econtratam-se ilustradores com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> específica <strong>de</strong> ilustrar os achados doscientistas sobre história natural e medicina tropical.A perfeita documentação gráfica dos trabalhos publicados nas Memórias doInstituto se refletiu, sobretudo, na reputação adquiri<strong>da</strong> pelo seu primeiro <strong>de</strong>senhista,Manuel <strong>de</strong> Castro-Silva, artista <strong>de</strong> extraordinário mérito no gênero <strong>de</strong> trabalho queexigiam na época as publicações <strong>de</strong> Manguinhos, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro trabalho <strong>de</strong> miniaturista, noque se referia aos objetos macroscópicos representados, e <strong>de</strong> observação minuciosa noque dizia respeito aos cortes histológicos e <strong>de</strong>mais preparados microscópios. CastroSilva, contratado como <strong>de</strong>senhista, trabalhou em Manguinhos, <strong>de</strong> 1908 a 1934, on<strong>de</strong> teveeleva<strong>da</strong> produção em termos <strong>de</strong> ilustração científica, a exemplo <strong>da</strong>s numerosasestampas por ele executa<strong>da</strong>s e publica<strong>da</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro número <strong>da</strong>s Memórias doInstituto Oswaldo Cruz, em 1909. Depois <strong>de</strong> Castro-Silva, <strong>de</strong>vemos mencionar RudolfFischer 11 (Figura 1), que foi contratado para trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz, como<strong>de</strong>senhista, em 1 o <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1912. Veio para o Brasil a pedido <strong>de</strong> Oswaldo Cruz, sendoum dos principais ilustradores <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Adolpho Lutz. Permaneceu trabalhando emManguinhos até 1915, quando se mudou para São Paulo. Inicialmente, exerceu a mesmafunção <strong>de</strong> ilustrador no Instituto Butantã, indo posteriormente trabalhar no InstitutoBiológico. Neste último, trabalhou por mais <strong>de</strong> vinte anos, primeiro como <strong>de</strong>senhistamicrocopistae posteriormente como revisor e re<strong>da</strong>tor. Sem formação formal em biologia,acabou por especializar-se no estudo <strong>de</strong> insetos, particularmente dos dípteros.11 Rudolph Fischer (1886 – 1955), nasceu em Leipzig, Alemanha e faleceu na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, em 25 <strong>de</strong>maio <strong>de</strong> 1955. Durante o período que trabalhou como entomólogo, publicou ao todo treze artigos, comilustrações próprias. Nestes artigos estudou a metamorfose e a sistemática <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados insetos; analisoua distribuição geográfica e <strong>de</strong>screveu espécies novas. Capturado <strong>da</strong> Internet em 6/10/2006. Disponível onlinena Fonte: http:www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/static/correspon<strong>de</strong>ncia/rudolph.htm294


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 1 – Ilustração feita por Rudolph Fische para o trabalho <strong>de</strong>: Lutz, Adolpho;Neiva, Arthur; Costa Lima, Ângelo M. <strong>da</strong>., sobre "Pupipara" ou "Hippobosci<strong>da</strong>e" <strong>de</strong>aves brasileiras. Memória do Instituto Oswaldo Cruz, 7(2): 173-99, 1915.Castro Silva foi um dos ilustradores <strong>de</strong> Insectos do Brasil, obra cui<strong>da</strong>dosamenteproduzi<strong>da</strong> por Costa Lima. No prefácio do primeiro tomo, o autor faz um agra<strong>de</strong>cimentoao “incomparável mestre do <strong>de</strong>senho cientifico no Brasil” que contribuiu para a quali<strong>da</strong><strong>de</strong>gráfica <strong>da</strong> publicação. Um outro <strong>de</strong>senhista que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>stacado é Orlando VicenteFerreira. Antes <strong>de</strong> trabalhar com Costa Lima, trabalhou <strong>de</strong> 1940 a 1946, como técnico e<strong>de</strong>senhista <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Rockefeller, on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>senhar mosquitos, uma <strong>de</strong> suas295


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tprincipais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. 12 Após a saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Rockefeller do Brasil, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>1950, Orlando foi aproveitado pelo Instituto Oswaldo Cruz, passando a trabalhar naSeção <strong>de</strong> Zoologia Médica. Já no laboratório <strong>de</strong> Costa Lima, fazia as ilustrações para osartigos científicos que seriam publicados, sendo o seu primeiro trabalho a ilustração <strong>de</strong>um coleóptero. Com o <strong>de</strong>correr do tempo e o acúmulo <strong>de</strong> obrigações, passou a trabalhardiretamente na organização <strong>da</strong> coleção, auxiliando Costa Lima no acondicionamento eetiquetagem dos exemplares. Com a compra <strong>da</strong> Coleção Zikán por Campos Seabra, otrabalho no laboratório aumentou consi<strong>de</strong>ravelmente. Sendo assim, Costa Lima <strong>de</strong>ixouao encargo <strong>de</strong> Orlando Vicente Ferreira o tratamento <strong>de</strong>sta coleção recém-adquiri<strong>da</strong> 13 .Com o <strong>de</strong>correr dos anos, Orlando Ferreira passou a ser responsável por boa parte dotrabalho no laboratório, cui<strong>da</strong>ndo, <strong>de</strong>ntre outras coisas, <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a correspondência.Trabalhou com Costa Lima até a sua morte. Após a cassação dos pesquisadores – oMassacre <strong>de</strong> Manguinhos –, ficou responsável pela coleção.Além <strong>de</strong> Castro-Silva, Rudoph Fischer e Orlando Ferreira, outros importantes<strong>de</strong>senhistas trabalharam em Manguinhos: Luís Kattenbach e Porciúncula <strong>de</strong> Moraes,pintores bem conhecidos, o último professor <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Belas Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Posteriormente, encontramos Edith <strong>da</strong> Fonseca NogueiraPenido, mais <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> ao <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> plantas e <strong>de</strong> flores, particularmente orquí<strong>de</strong>as,Antonio Viegas Pugas, Carlos <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> e Silva, Luiz Cor<strong>de</strong>iro, Raymundo HonórioDaniel , Antonio Leal, Ary Gonçalves e Waldir Botelho (FONSECA, 1974). A presença <strong>de</strong>tantos profissionais no quadro do Instituto é um indicativo claro <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>ilustração para as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s científicas.Muitos <strong>de</strong>stes profissionais tinham apenas a formação artística, o que nãocomprometia a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu trabalho, que era guiado por alguns preceitos <strong>da</strong> ciênciaque exigiam precisão científica e a orientação dos cientistas. A ilustração científica podiaser feita por artistas ou pelo próprio cientista, 14 seja porque este carecia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhistapara documentar seus achados em termos plásticos ou porque preferia ele mesmo fazêlo.Foi o que aconteceu em dois momentos no início <strong>da</strong> carreira <strong>de</strong> Costa Lima: primeiro12 A Coleção <strong>de</strong> Mosquitos <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Rockefeller, na qual trabalhou, reunia exemplares <strong>de</strong> todo o país.Atualmente esta coleção encontra-se no Centro <strong>de</strong> Pesquisas René Rachou, <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz.(Sá e Klein, 2001, p. 53).13 Entrevista concedi<strong>da</strong> por Orlando Vicente Ferreira para o Projeto Memória <strong>da</strong>s Coleções Científicas doInstituto Oswaldo Cruz. Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz – Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz – Departamento <strong>de</strong> Arquivo eDocumentação – Setor <strong>de</strong> Arquivos <strong>de</strong> Imagem e Som – Subsetor <strong>de</strong> Arquivo Sonoro.14 Na própria produção bibliográfica do Instituto Oswaldo Cruz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras publicações científicas,aparecem ilustrações elabora<strong>da</strong>s pelos próprios pesquisadores, como Oswaldo Cruz, Lauro Travassos, JulioMuniz e Costa Lima.296


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tquando estava em missão no Pará, fazendo seus próprios <strong>de</strong>senhos e, <strong>de</strong>pois, nostrabalhos <strong>de</strong> laboratório que realizou em 1915 com Adolpho Lutz e Arthur Neiva. Aconservação <strong>da</strong>s coleções era <strong>de</strong> suma importância para a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong>ilustração. Os exemplares que eram reproduzidos no Instituto Oswaldo Cruz eramselecionados pelos cientistas, na coleção <strong>de</strong> insetos <strong>da</strong> instituição, sendo posteriormenteentregues aos <strong>de</strong>senhistas para que se fizessem as pranchas. Os ilustradorestrabalhavam a partir <strong>de</strong>sses mo<strong>de</strong>los, dirimindo eventuais dúvi<strong>da</strong>s com os cientistas.Nos <strong>de</strong>senhos entomológicos, trabalha-se ao microscópio, obtendo-se imagensque correspon<strong>de</strong>m a várias vezes o tamanho do inseto representado. É preciso que seobtenha uma imagem maior, porém semelhante à forma natural a ser representa<strong>da</strong>,mantendo-se equivalências. Parece consenso que as características peculiares <strong>de</strong> uminseto <strong>de</strong>vem ser enuncia<strong>da</strong>s por certos <strong>de</strong>talhes morfológicos e cromáticos, incluindo osessenciais para a i<strong>de</strong>ntificação. Po<strong>de</strong> haver, na imagem, porém, quali<strong>da</strong><strong>de</strong> artística,beleza, sem que se perca quali<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, sem que o receptor sinta dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r o que por ela lhe é apresentado.Todo tipo <strong>de</strong> representação tem claramente <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A forma <strong>da</strong>representação não po<strong>de</strong> se dissociar <strong>de</strong> seu propósito, necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e exigências domeio no qual e para o qual foi produzi<strong>da</strong>. Na ilustração científica, o primeiro requisito é ainformação visual fi<strong>de</strong>digna quanto à verossimilhança, para o que é seguramentenecessário o emprego <strong>de</strong> técnicas artísticas. As quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s estéticas, supostamentesecundárias, são aprecia<strong>da</strong>s porque tornam o <strong>de</strong>senho do espécime mais atraente e,com freqüência, mais inteligível.A fotografia também foi muito utiliza<strong>da</strong> como ilustração científica nos trabalhos doInstituto. Ela facilitava a acentuação <strong>de</strong> certos aspectos do exemplar em estudo e apossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> selecionar e ampliar ângulos <strong>de</strong> observação não-acessíveis ao olhohumano, bem como <strong>de</strong> fixar imagens que fogem à óptica natural. Para os seus trabalhos,Costa Lima contou com o fotógrafo J. Pinto <strong>da</strong> Silva (Fig. 2 e 3), que, por ter umaexecução perfeita, era muito requisitado pelos pesquisadores. Da mesma forma queencontramos os <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Castro-Silva e Vicente Ferreira na sua obra, encontramos<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> fotografias <strong>de</strong> J. Pinto <strong>da</strong> Silva. Ambas as técnicas foram fartamente utiliza<strong>da</strong>por Costa Lima para ilustrar sua publicação. 1515 Em alguns casos, como citado no capitulo 2, por uma questão <strong>de</strong> economia, solicitava, somente a algunsamigos, imagens <strong>de</strong> outras instituições.297


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 2 – Fotografia feita por J. Pinto para um trabalho <strong>de</strong> Costa Lima, sobreinsetos que atacam o Maracujá. Costa Lima, Angelo M. <strong>da</strong>. Sobre insectos quevivem em maracujás (Passiflora spp.). Mem. Inst. Oswaldo Cruz, 23(3): 159-62,mar., 1930.298


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 3 – Fotografia feita por J. Pinto para um trabalho <strong>de</strong> Costa Lima, sobreinsetos que atacam o Maracujá. Costa Lima, Angelo M. <strong>da</strong>. Sobre insectos quevivem em maracujás (Passiflora spp.). Mem. Inst. Oswaldo Cruz, 23(3): 159-62,mar., 1930.Como afirmam Oliveira e Conduru (2004), “a ilustração científica é umarepresentação figura<strong>da</strong> e, como tal, mantém relação com o mo<strong>de</strong>lo representado através<strong>de</strong> analogias e equivalências, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do olhar e, conseqüentemente, do299


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tconhecimento <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um”. Mas o que nos interessa <strong>de</strong>stacar neste processo são asdiversas implicações existentes no trabalho <strong>da</strong> Coleção Entomológica Costa Lima. Apartir <strong>de</strong> sua realização, também po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar a ilustração científica oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong>Coleção como patrimônio científico, pois a mesma passa a ser um testemunhoiconográfico <strong>de</strong> diversos exemplares <strong>de</strong>positados em seu acervo.O PATRIMÔNIO CIENTÍFICO COMO SUPORTE DA MEMÓRIA CIENTÍFICANACIONALEm sua origem, o patrimônio esteve ligado às estruturas familiares, econômicas ejurídicas <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> estável, enraiza<strong>da</strong> no espaço e no tempo. Com o <strong>de</strong>correrdos anos, este conceito foi re-qualificado por diversos adjetivos: genético, natural,histórico, científico etc. O patrimônio se tornou um conceito nôma<strong>de</strong> que hoje segue umatrajetória própria e diferente <strong>de</strong> sua origem (CHOAY, 2001, p. 11). Para a nossa análise,interessa-nos a utilização do adjetivo científico, atribuindo, <strong>de</strong>sta forma, ao patrimônioformado pela coleção Costa Lima contornos próprios, sem com isso <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar suascaracterísticas <strong>de</strong> patrimônio genético, natural e histórico.No processo <strong>de</strong> construção do patrimônio científico <strong>de</strong>ve ser compreendido ovasto conjunto <strong>de</strong> bens materiais e simbólicos produzidos ou utilizados ao longo dotrajeto <strong>da</strong> produção e difusão do conhecimento. Nos dois últimos séculos, diversospesquisadores brasileiros e estrangeiros acumularam expressivo material zoológico emcoleções <strong>de</strong> instituições nacionais. Estas coleções científicas constituem o testemunho eo banco <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos do conhecimento gerado pela pesquisa pregressa. No mundocontemporâneo, além <strong>de</strong> as coleções científicas se colocarem como fonte crucial <strong>de</strong>informação para a medicina, farmácia, agronomia etc., elas também se transformaramem herança cultural, em testemunho <strong>da</strong> rica história do <strong>de</strong>scobrimento e <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira em seu território. Foi com este olhar que abor<strong>da</strong>mos a ColeçãoCosta Lima, como patrimônio científico, como testemunho <strong>da</strong> consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>entomologia agrícola brasileira.Indubitavelmente, o Brasil apresenta uma tradição já secular e bem arraiga<strong>da</strong> emzoologia, o que o distingue <strong>da</strong> maioria dos países latino-americanos. Os seus principaismuseus <strong>de</strong> história natural são instituições <strong>de</strong> renome internacional. Entretanto, o <strong>de</strong>safiolançado pela megadiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> presente no nosso território é gran<strong>de</strong>, e os meiosempregados até então não estão à sua altura. Se levarmos em consi<strong>de</strong>ração aveloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> maioria dos ecossistemas, provavelmente muito <strong>da</strong>300


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> que restou será invariavelmente perdi<strong>da</strong> antes mesmo que possamosconhecê-la.As coleções zoológicas brasileiras constituem um acervo inesgotável <strong>de</strong>informação essencial que <strong>de</strong>verá, no futuro, propiciar <strong>de</strong>scobertas importantes ain<strong>da</strong> forado alcance tecnológico <strong>de</strong>sta geração. Com o advento <strong>da</strong> revolução molecular, elaspassaram a representar bancos genéticos on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser armazena<strong>da</strong>s alíquotas <strong>de</strong>tecidos, imprescindíveis aos estudos <strong>de</strong> biologia molecular e biotecnologia.As coleções também representam uma herança cultural; um testemunho <strong>da</strong> ricahistória do <strong>de</strong>scobrimento e <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira em seu territórionacional. Nas coleções científicas, encontramos representantes <strong>da</strong> fauna já extinta, quehabitou um dia os ecossistemas alterados <strong>de</strong> forma irreversível pela ação antrópica.Neste sentido, as coleções constituem um suporte essencial para os estudos <strong>de</strong>caracterização e impacto ambiental. Entretanto, cabe sublinhar, que essas coleçõespassam a ganhar importância científico-cultural, apenas após a condução <strong>de</strong> estudos quepropiciem, às mesmas, acesso <strong>de</strong> valor. Isto significa dizer que, por maior valor intrínsecoque possuam, os objetos <strong>de</strong> uma coleção só passam a adquirir status <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong>herança natural ou cultural <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>dos e tornados acessíveis à coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.CONSIDERAÇÕES FINAISAo preservamos o patrimônio científico brasileiro, estamos realizando, a partir dopresente, uma ligação direta com o nosso passado, com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ciência edos homens que contribuíram para a sua consoli<strong>da</strong>ção. Mais do que nos remeter aopassado, a preservação do patrimônio científico simultaneamente nos remete para ofuturo, alimentando-nos com indícios, materiais ou não, que nos auxiliam noestabelecimento <strong>de</strong> diretrizes para as nossas ações. Compreen<strong>de</strong>ndo o patrimônio comonossa herança, como legado dos que nos antece<strong>de</strong>ram, como matéria-prima do<strong>de</strong>senvolvimento científico, po<strong>de</strong>mos afirmar que o legado <strong>de</strong> Costa Lima foi <strong>de</strong>cisivopara o <strong>de</strong>senvolvimento e consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> entomologia agrícola brasileira. Sua atuaçãono Instituto Oswaldo Cruz, na Escola Superior <strong>de</strong> Agricultura e Medicina Veterinária, suaspublicações e sua coleção nortearam diversos pesquisadores que tiveram como base <strong>de</strong>ação todo o patrimônio formado por ele. A história <strong>de</strong> sua coleção reflete a própriahistória <strong>da</strong> entomologia agrícola no Brasil. Po<strong>de</strong>mos afirmar que Costa Lima é o quecostumam <strong>de</strong>signar <strong>de</strong> “homem patrimônio”.301


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TREFERÊNCIASARAÚJO, Emanuel. A construção do livro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Brasília: Nova Fronteira;Instituto Nacional do Livro, 1986.BENCHIMOL, Jaime Larry; TEIXEIRA, Luís Antonio. Cobras, lagartos e outros bichos:uma história compara<strong>da</strong> dos Institutos Oswaldo Cruz e Butantã. Rio <strong>de</strong> Janeiro: EditoraUFRJ, 1999.CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora Unesp, 2001.DANSE, S. Peter. The art of natural history. Nova York: Arch Cape Press, 1990.FONSECA, Olympio <strong>da</strong>. A Escola <strong>de</strong> Manguinhos: contribuição para o estudo do<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> medicina experimental no Brasil. Separata do Tomo II <strong>de</strong> OswaldoCruz Monumenta Histórica. São Paulo, 1974.FORD, Brian J. Images of Science. A history of scientific illustration. Londres: The BritishLibrary, 1992.FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia <strong>da</strong>s ciências humanas.São Paulo: Martins Fontes, 1992.JURBERG, Jose; SANTOS, C. P. Entomol. Vect., n.11, v.1, p.19-58, 2004.KURY, Lorelai; CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Or<strong>de</strong>m e Natureza: coleções e culturacientífica na Europa Mo<strong>de</strong>rna. Anais do <strong>Museu</strong> Histórico Nacional, v. 29, 1997.LOPES, Maria Margareth. O Brasil <strong>de</strong>scobre a pesquisa científica: os museus e asciências naturais no século XIX. São Paulo: Ed. Hucitec, 1997.OLIVEIRA, Ricardo Lourenço; CONDURU, Roberto. Nas frestas entre a ciência e a arte:uma série <strong>de</strong> ilustrações <strong>de</strong> barbeiros do Instituto Oswaldo Cruz. Historia, ciência e saú<strong>de</strong>- Manguinhos, v. 11, n. 2, Mai - ago, 2004.POMIAN, Krzysztof. Enciclopédia Einaudi., v.1. Porto: Imprensa Nacional/Casa <strong>da</strong>Moe<strong>da</strong>, 1984.PYENSON, Lewis. “Functionaries” and “Seekers” in Latin América: Missionary Diffusion ofExact Sciences, 1850-1930. Quipu, v. 2, n. 3, set-<strong>de</strong>c.,1985.SÁ, Magali Romero; Klein, Lisabel Espellet. Fundo Instituto Oswaldo Cruz: inventário dosdocumentos <strong>da</strong>s coleções científicas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Fiocruz/COC, 2001.SANGLARD, Gisele. 2005. Entre os salões e o laboratório: filantropia, mecenato epraticas cientificas no Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1920-1940. Tese (doutorado). Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História <strong>da</strong>s Ciências <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz: PPHC/COC/Fiocruz. Rio<strong>de</strong> Janeiro, 2005. Orientador: Jaime Larry Benchimol.SWARCZ, Lilian M. O espetáculo <strong>da</strong>s raças: cientistas, instituições e a questão racial noBrasil - 1870 - 1930. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1993.7 - ENDEREÇOS ELETRÔNICOShttp://www.bvsalutz.coc.fiocruz.brhttp://www.landi.inf.br/anais/A%20Historia%20Natural%20no%20Landi.doc.302


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAS COLEÇÕES MICROBIOLÓGICAS E SUAIMPORTÂNCIA COMO PATRIMÔNIO CIENTÍFICO:o caso <strong>da</strong>s coleções <strong>da</strong> FIOCRUZRoberta Nobre <strong>da</strong> Câmara *Marcus Granato **Magali Romero Sá ***Atualmente, as coleções cientificas biológicas, <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> pesquisa doBrasil, constituem um patrimônio <strong>de</strong> informação sobre fauna, flora e genética,com importância para estudos e divulgação <strong>da</strong>s espécies brasileiras e sãofun<strong>da</strong>mentais para o <strong>de</strong>senvolvimento e formação <strong>de</strong> novas categorias <strong>de</strong>patrimônio, como o patrimônio genético. Como parte do patrimônio natural ex-situ 1 são <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> importância para a implementação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> conservação e do uso sustentável*<strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> (FIOCRUZ), Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ; alicebetac@gmail.com.Gradua<strong>da</strong> em História pela UFF (1996) e mestre em Museologia e Patrimônio pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral doEstado do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UNIRIO/MAST, 2008). Atualmente é gerente do Passado e Presente , área <strong>de</strong> vistaçãodo <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz..**<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ;marcus@mast.br. Graduado em engenharia metalúrgica e <strong>de</strong> materiais pela UFRJ (1980), Mestre e Doutor emCiências pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ), sendo suatese sobre Restauração <strong>de</strong> Instrumentos Científicos Históricos. A partir 2006 torna-se professor e assume a vicecoor<strong>de</strong>naçãodo Mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Des<strong>de</strong> 2004 é Coor<strong>de</strong>nador <strong>de</strong>Museologia do MAST; é pesquisador do CNPq e lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> pesquisa na área <strong>de</strong> Preservação <strong>de</strong> Bens<strong>Cultura</strong>is.***Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz (COC - FIOCRUZ), Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ; . Gradua<strong>da</strong> emCiências Biológicas pela Fun<strong>da</strong>ção Técnico-Educacional Souza Marques (1976), mestrado em CiênciasBiológicas (Zoologia) pela UFRJ (1986) e doutorado em History and Philosophy of Science - University of Durham(1996). Atualmente é pesquisador titular <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz.1 Patrimônio natural que não está em seu habitat original.303


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong> recursos naturais, envolvendo áreas estratégicas <strong>da</strong> atuação governamental, tais comopesquisas <strong>de</strong> fármacos, controle ambiental e biotecnologia.Como Suarez e Tsutsui (2004) nos apontam, as coleções cientificas biológicas sãotambém usa<strong>da</strong>s para <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r o caminho percorrido por doenças infecciosas. Para eles, omais recente acontecimento foi o uso do Antrax, 2 que ficou em evidência após os ataquesterroristas <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2001 à Nova Iorque, nos Estados Unidos <strong>da</strong> América,quando pesquisadores recorreram a coleções <strong>da</strong> bactéria que estavam armazena<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, para estudos comparativos com as bactérias usa<strong>da</strong>s no ataque terrorista.Os autores apresentam em seu artigo pesquisas em epi<strong>de</strong>miologia que fizeram uso <strong>da</strong>scoleções científicas biológicas <strong>de</strong> museus americanos. Entre outros exemplos, está o que serefere aos exames do vírus <strong>da</strong> influenza em pássaros preservados, comparados comamostras <strong>de</strong> vírus <strong>da</strong>s pessoas infecta<strong>da</strong>s pela epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> gripe <strong>de</strong> 1918, que resultaramem vírus mais próximos dos suínos do que <strong>da</strong>s aves, o que permitiu esclarecer e superar asteorias que afirmavam a transmissão ocorria <strong>da</strong>s aves para humanos.Em alguns países, as coleções científicas <strong>de</strong> museus também são usa<strong>da</strong>s paracontrole ambiental, pois, analisando espécimes, pesquisadores po<strong>de</strong>m estimar os níveis <strong>de</strong>contaminação ao longo <strong>de</strong> déca<strong>da</strong>s. Na Suécia, por exemplo, coleções <strong>de</strong> pássaros doSvenska Nuturhistoriska Muséet 3 foram usa<strong>da</strong>s para medir a contaminação ambiental pormercúrio e verificou-se que, nos anos 1950, ocorreram elevados níveis do metal nasamostras correlatas, em conseqüência <strong>da</strong> crescente industrialização sueca (BERG et al.,1966).Shaffer e colaboradores (1998) apontam a importância <strong>da</strong> documentação dosmuseus, como as fichas <strong>de</strong> catalogação gera<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>s coleções científicas, no controledo <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> espécies. Na página oficial do National <strong>Museu</strong>m of Natural History dosEstados Unidos, 4 há um artigo intitulado CSI for Birds: Scientists Use Forensic Techniques toImprove Airport Safety 5 que versa sobre as pesquisas do laboratório Feather Investigation2 Doença comum entre os animais, causa<strong>da</strong> pelo Bacillus anthacis, não é transmiti<strong>da</strong> <strong>de</strong> pessoa a pessoa. Suatransmissão po<strong>de</strong> ser pelas vias respiratórias, cutâneas gastrintestinal.3 <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> História Natural <strong>da</strong> Suécia.4 O Smithsonian Institution é o maior complexo <strong>de</strong> museus do mundo, contando com 19 museus, centros <strong>de</strong>pesquisa e zoológico. Entre seus museus, está o National <strong>Museu</strong>m of Natural History.5 CSI- Crime Scene Investigation. Para acesso ao texto, http://www.mnh.si.edu/highlight/feathers/. Acesso em 1<strong>de</strong> Mar. 2008.304


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TLab, atualmente envolvido na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> pássaros que colidiram com aviões (birdsstrikes).Essas colisões causam prejuízos ao setor aéreo, diminuem a população <strong>de</strong> algumasespécies e ain<strong>da</strong> colocam em risco passageiros <strong>de</strong> linhas aéreas. As investigações sobre asespécies são feitas por métodos que variam <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação morfológica tradicional 6 àbiologia molecular. Os <strong>da</strong>dos produzidos pela equipe do Smithsonian são usados pela UnitedStates Air Force e pelo setor <strong>de</strong> aviação comercial americano, objetivando i<strong>de</strong>ntificar rotasmigratórias e hábitos <strong>de</strong> espécies, a fim <strong>de</strong> evitar aci<strong>de</strong>ntes.Para Suarez e Tsutsui (2004), os museus e suas coleções são uma espécie <strong>de</strong>bibliotecas biológicas (biological libraries) para as pesquisas em áreas estratégicas, quegeram benefícios sociais e financeiros. 7Embora as coleções sejam realmente essenciais para pesquisas, nem sempre elastiveram sua importância reconheci<strong>da</strong>. O editorial <strong>da</strong> revista Nature (NATURE, 2008, p.500)intitulado Secret treasure-troves restored versa sobre coleções que estão no anonimato, masque merecem ser conheci<strong>da</strong>s, nem que seja para puro <strong>de</strong>leite dos cientistas. Encontramosno texto, o relato sobre a coleção Spalanzani, inicia<strong>da</strong> em 1770, com espécimes que iam <strong>de</strong>“tartarugas gigantes a gibão”, que foi <strong>de</strong>speja<strong>da</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pavia, Itália, para aconstrução <strong>da</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> direito, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930, e armazena<strong>da</strong> por anosina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente, até 1991. A partir <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2008, o periódico passou a publicarmensalmente artigos sobre essas coleções.Posto a importância <strong>de</strong>ssas coleções, apresentaremos a seguir a criação <strong>da</strong>scoleções científicas <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz-FIOCRUZ, fato ocorrido no início do séculoXX.AS COLEÇÕES CIENTÍFICAS DA FIOCRUZA história <strong>da</strong>s coleções científicas do Instituto Oswaldo Cruz caminha pari passu coma própria história institucional. Criado em 1900, sob a diretoria geral do Barão <strong>de</strong> PedroAfonso, e nomeado Instituto Soroterápico Fe<strong>de</strong>ral, tinha como objetivo a produção <strong>de</strong> soro eimunizantes contra a peste-bubônica, que assolava a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, então capital6 Uso <strong>de</strong> espécimes <strong>da</strong> coleção.7 Para os autores, as coleções po<strong>de</strong>m reduzir custos <strong>de</strong> pesquisas, uma vez que os estudos <strong>de</strong> campo geramcustos altos para as instituições.305


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfe<strong>de</strong>ral. Logo após sua criação, o instituto amplia sua atuação, transpondo a exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> produção do soro antipestoso e abrangendo a publicação <strong>de</strong> trabalhos científicos,pesquisas experimentais, expedições científicas e o aumento <strong>da</strong> pauta <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>insumos.O primeiro trabalho científico que <strong>de</strong>u início à vasta produção intelectual <strong>de</strong>Manguinhos foi publicado na revista Brazil-Médico, com a <strong>de</strong>scrição do mosquito Anopheleslutzii, feita pelo diretor técnico na época, Oswaldo Cruz, em 1901. Neste ano, foi tambéminicia<strong>da</strong> a Coleção Entomológica. Ambas iniciativas teriam seus exemplares multiplicados empouco tempo, mol<strong>da</strong>ndo o caráter único que encontramos na instituição até os dias atuais,instituição volta<strong>da</strong> para ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s aplica<strong>da</strong>s, controle e produção <strong>de</strong> insumos, educação edivulgação cientifica.Desavenças entre o Barão <strong>de</strong> Pedro Afonso e Oswaldo Cruz culminaram no pedido<strong>de</strong> exoneração do Barão, em 1902. A direção do Instituto Soroterápico ficou a cargo <strong>de</strong>Oswaldo Cruz, entusiasta <strong>da</strong> medicina experimental e <strong>da</strong> microbiologia. Em 1903, durante oGoverno Rodrigues Alves, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Publica,assumindo como missão a extinção <strong>da</strong>s três epi<strong>de</strong>mias que mais preocupavam osgovernantes: febre amarela, varíola e peste bubônica. Oswaldo Cruz criou para issodiferentes estratégias.Ao mesmo tempo, nas instalações do Instituto, as crescentes investigações cientificas<strong>de</strong> Manguinhos em seus primórdios <strong>de</strong>screviam novos insetos e novos gênerosentomológicos, que receberam nomes dos cientistas <strong>da</strong> instituição, que dividiam seu tempoentre as pesquisas e a produção, como <strong>de</strong>screve Jaime Benchimol (1990, p.30):Em fins <strong>de</strong> 1906, por exemplo, Figueredo <strong>de</strong> Vasconcellos, além <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>rdo soro e <strong>da</strong> vacina contra a peste, preparava a maleína e realizavaestudos sobre o mormo e a transmissão <strong>da</strong> espirilose <strong>da</strong>s galinhas porpercevejos; Cardoso Fontes, além <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> e conservação <strong>da</strong>s culturasmicrobianas, ocupava-se do preparo <strong>da</strong>s tuberculinas; Aragão investigava odiagnóstico <strong>da</strong> peste, preparava o soro antiestreptocócico, <strong>de</strong>dicava-se àclassificação sistemática <strong>de</strong> uma família dos carrapatos e ao estudo <strong>da</strong>piroplasmose eqüina; Alci<strong>de</strong>s Godoy alem <strong>de</strong> trabalhar na peste <strong>da</strong>manqueira, preparava os soros antidifitéricos e fazia a dosagem do soroantipestoso; Arthur Neiva e Carlos Chagas aparentemente eram os únicosque não estavam ligados à rotina <strong>da</strong> produção: o primeiro organizava umaclassificação sistemática dos mosquitos e fazia experiência comespectrofotometria; Chagas tinha a seu cargo tudo que dizia respeito à vi<strong>da</strong>e aos hábitos dos culicí<strong>de</strong>os, especialmente quanto a transmissão <strong>da</strong>malária.306


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNos primeiros anos, as investigações estavam foca<strong>da</strong>s nas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>pública e no repertório <strong>da</strong>s pesquisas, com <strong>de</strong>staque para as doenças tropicais. Outro<strong>de</strong>staque foi o acréscimo <strong>de</strong> novos produtos na pauta <strong>de</strong> insumos, como a produção <strong>de</strong>vacinas veterinárias, o que tornou o Instituto mais versátil e o <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u <strong>da</strong> exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> terapêutica humana.No entanto, o interesse e a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> científica dos primeiros pesquisadores nãoestavam restritos ao mundo dos insetos, bacilos pestíferos e produção <strong>de</strong> insumos.Expedições científicas inicia<strong>da</strong>s em 1906, como a inspetoria dos portos nacionais, cortavamo Brasil e tentavam diagnosticar os males <strong>da</strong> terra <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>. Sob a égi<strong>de</strong> dosaneamento do país, Oswaldo Cruz i<strong>de</strong>alizou a instalação <strong>de</strong> hospitais nos portos brasileiros.Seu plano não se concretizou, mas a expedição aos portos <strong>de</strong>u início às inúmerasexpedições cientificas do Instituto e a um vasto material coletado que seria amplamenteesmiuçado nas instalações <strong>de</strong> Manguinhos. As Figuras 1 e 2 apresentam imagens <strong>da</strong>sexpedições do Instituto Oswaldo Cruz, que foram amplamente documenta<strong>da</strong>s em fotografias.Figura 1- Acampamento à noite, em São Raimundo Nonato, no Piauí, durante a expedição científicarealiza<strong>da</strong> por Artur Neiva e Belisário Penna aos estados <strong>da</strong> Bahia, Pernambuco, Piauí e Goiás. SãoRaimundo Nonato, 1912. Departamento <strong>de</strong> Arquivo e Documentação <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz.307


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 2 - Parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> expedição <strong>de</strong> 1918 ao Alto do Paraná e ao sul do Mato Grosso, com o objetivo<strong>de</strong> colher material científico e estu<strong>da</strong>r as condições médico sanitárias <strong>da</strong> região. Arquivo Olympio <strong>da</strong>Fonseca, <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins.Vermes, lâminas <strong>de</strong> pacientes, fotografias, amostras <strong>de</strong> sangue, peças <strong>de</strong> anatomia eexemplares silvestres formavam aos poucos as coleções científicas do Instituto. Ain<strong>da</strong> em1906, Oswaldo Cruz foi convi<strong>da</strong>do a participar do XIV Congresso Internacional <strong>de</strong> Higiene eDemografia, realizado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Berlim, em 1907 (Figura 3). Oswaldo Cruz embarcou emviagem para a Europa munido <strong>de</strong> maquetes do instituto, panfletos, amostras <strong>de</strong> produtosbiológicos e exemplares <strong>de</strong> coleções científicas. Sobre este episódio, Benchimol (1990, p.35) comenta:Contudo o que causa sensação entre os europeus que participavam docongresso foram os materiais concernentes às doenças tropicais: as peçasanatomopatológicas, registrando as lesões provoca<strong>da</strong>s pela febre amarela ea peste bubônica, a coleção <strong>de</strong> insetos, especialmente <strong>de</strong> mosquitosbrasileiros, que incluía o <strong>de</strong>senho em cores, do Stegomia calopus – o ovo, alarva e a pupa – 30 vezes aumentado.308


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFigura 3 - Berlim, 1907, Sala do Instituto <strong>de</strong> Manguinhos na Exposição Internacional <strong>de</strong> Higiene emBerlim, na qual a seção brasileira recebeu o primeiro prêmio. Berlim, set. 1907. Acervo doDepartamento <strong>de</strong> Arquivo <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz.Oswaldo Cruz foi reconhecido por seus méritos em Berlim e obteve o primeiro lugarentre os trabalhos apresentados. No retorno ao Brasil, laureado com a me<strong>da</strong>lha <strong>de</strong> ouro,reconhecido internacionalmente e consagrado por seus feitos consi<strong>de</strong>rados heróicos – afinal,em apenas quatro anos à frente <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> publica as epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> febre amarela, varíola epeste bubônicas foram <strong>de</strong>bela<strong>da</strong>s – Oswaldo Cruz foi aclamado pela população carioca epela imprensa. Os ecos <strong>da</strong> aclamação refletiram nas práticas <strong>de</strong> Manguinhos.O impacto <strong>da</strong> premiação <strong>de</strong> Berlim foi fun<strong>da</strong>mental para a tramitação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cretos quelegitimavam mu<strong>da</strong>nças significativas na trajetória do Instituto. O Instituto SoroterápicoFe<strong>de</strong>ral é nomeado Instituto <strong>de</strong> Medicina Experimental, nomenclatura efêmera que foisubstituí<strong>da</strong>, em 1908, por Instituto Oswaldo Cruz.Em 1909, foi publicado o primeiro periódico institucional, As Memórias do InstitutoOswaldo Cruz, que tinha por incumbência a disseminação dos estudos realizados por309


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpesquisadores <strong>de</strong> Manguinhos. O <strong>de</strong>staque <strong>da</strong> primeira edição foi a publicação do artigo <strong>de</strong>Carlos Chagas, que consagrou uma <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scobertas mais importantes <strong>da</strong> História <strong>da</strong>Medicina brasileira. Um único pesquisador i<strong>de</strong>ntificou o ciclo completo <strong>de</strong> uma doença:Chagas i<strong>de</strong>ntificou o vetor (barbeiro); o protozoário, que nomeou Tripanossoma cruzi emhomenagem ao seu mestre Oswaldo Cruz; o reservatório doméstico e a doença,<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> mal <strong>de</strong> Chagas, quando fez o diagnóstico <strong>da</strong> menina Berenice. As novas<strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> Chagas no interior <strong>de</strong> Minas Gerais permitiram o incremento dos <strong>de</strong>batescientíficos e, em conseqüência, o aumento <strong>da</strong> coleção entomológica, com novas gavetas <strong>de</strong>barbeiros e percevejos que foram fun<strong>da</strong>mentais nos processos <strong>de</strong> investigação <strong>da</strong> doença.Em 1913, é cria<strong>da</strong> a Coleção helmintológica do Instituto Oswaldo Cruz,<strong>de</strong>sdobramento dos trabalhos <strong>de</strong> campo dos pesquisadores Gomes <strong>de</strong> Farias e LauroTravassos, contemporâneos <strong>de</strong> Oswaldo Cruz. O primeiro pesquisador ingressou no institutoem 1906 e Travassos teve seu ingresso em 1913. Vale ressaltar que alguns exemplares <strong>da</strong>coleção foram coletados antes <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> mesma e pertenciam à coleção particular <strong>de</strong>Gomes <strong>de</strong> Faria. Além disso, o próprio Oswaldo Cruz <strong>de</strong>positou, na coleção, exemplarescoletados a partir <strong>de</strong> suas investigações.Em 1922, durante a gestão Carlos Chagas, sucessor na direção do Instituto após amorte <strong>de</strong> Oswaldo Cruz em 1917, temos a criação <strong>da</strong> Coleção <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> <strong>de</strong> Fungos doInstituto, inicia<strong>da</strong> por Olympio <strong>da</strong> Fonseca. Essa coleção constitui-se numa “coleção viva”,uma vez que as espécies preserva<strong>da</strong>s em óleo mineral encontram-se ativas até os dias <strong>de</strong>hoje. Parte <strong>da</strong> coleção foi adquiri<strong>da</strong> por Olympio <strong>da</strong> Fonseca em viagens por centros <strong>de</strong>pesquisas europeus e americanos, formando um acervo <strong>de</strong> amplo espectro, no que se refereà linhagem <strong>de</strong> fungos.Os pesquisadores <strong>de</strong> Manguinhos <strong>de</strong>dicaram-se à criação e manutenção <strong>de</strong> vastoacervo institucional, amplamente documentado. O conjunto <strong>da</strong>s coleções cientificas doInstituto Oswaldo Cruz não está restrito a espécimes conservados em vidros nos laboratórios<strong>de</strong> suas curadorias, mas sua amplitu<strong>de</strong> envolve fichas, fotografias, livros <strong>de</strong> campo eca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> necropsias. Os documentos, como fichas <strong>de</strong>scritivas, <strong>de</strong>senhos e fotografias,estão sob a guar<strong>da</strong> do Departamento <strong>de</strong> Arquivo e Documentação <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz(COC) – uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) volta<strong>da</strong> para guar<strong>da</strong> <strong>de</strong>acervos documentais, preservação do conjunto arquitetônico e produção histórica.310


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA PATRIMONIALIZAÇÃO DAS COLEÇÕES CIENTÍFICAS DA FIOCRUZ – O ESTUDO DECASO DA COLEÇÃO DE FUGOS FILAMENTOSOSEm 2005, as Coleções Helmintológica, <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> <strong>de</strong> Fungos Filamentosos eEntomológica foram, juntamente com outras cinco coleções 8 do Instituto Oswaldo Cruz,incluí<strong>da</strong>s na categoria <strong>de</strong> “fiel <strong>de</strong>positária” como amostras <strong>de</strong> componentes do patrimôniogenético brasileiro. O cre<strong>de</strong>nciamento <strong>de</strong> fiel <strong>de</strong>positária tem como objetivo conservar omaterial testemunho (sub-amostras) proveniente <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso ao componentedo patrimônio genético, garantir i<strong>de</strong>ntificação taxonômica correta em instituição reconheci<strong>da</strong>pelo governo brasileiro e permitir o rastreamento do patrimônio genético acessado porinstituição <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente autoriza<strong>da</strong> (CALDEIRA, 2005, p.30).A solicitação do cre<strong>de</strong>nciamento é feita junto ao Ministério do Meio Ambiente e osformulários a serem preenchidos estão disponíveis na Internet e <strong>de</strong>vem ser encaminhadosao Departamento <strong>de</strong> Patrimônio Genético. As primeiras <strong>de</strong>liberações que cre<strong>de</strong>nciaminstituições fiéis <strong>de</strong>positárias são <strong>de</strong> 2002. 32 O formulário disponível na página oficial do MMAé direcionado às instituições, no entanto, nem to<strong>da</strong>s as coleções <strong>de</strong> uma instituição são fiéis<strong>de</strong>positárias <strong>de</strong> amostras do patrimônio genético. Cabe também ressaltar que a chancela <strong>de</strong>fiel <strong>de</strong>positária não é permanente e por isso a coleção é constantemente avalia<strong>da</strong> pelo MMAcom o objetivo <strong>de</strong> averiguar se a mesma está <strong>de</strong>ntro dos parâmetros solicitados no ato docre<strong>de</strong>nciamento.Atualmente, encontramos no Brasil cerca <strong>de</strong> 180 fiéis <strong>de</strong>positários do que constitui opatrimônio genético nacional, entre instituições e coleções, distribuí<strong>da</strong>s em to<strong>da</strong>s as regiõesdo país e concentra<strong>da</strong>s na região su<strong>de</strong>ste. São herbários, institutos <strong>de</strong> agronomia,<strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e museus os responsáveis pela guar<strong>da</strong> e manutenção <strong>de</strong>coleções cientificas, que propiciam o estudo <strong>de</strong> parte <strong>da</strong> nossa diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ameaça<strong>da</strong> pelaexploração dos recursos naturais.8 Coleção <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong>s <strong>de</strong> Bacillus e Gêneros Correlatos, a Coleção <strong>de</strong> Moluscos, a Coleção <strong>de</strong> Febre Amarela, aLeishmania Type Culture Collection, a <strong>de</strong> Fungos Potencialmente produtores <strong>de</strong> micotoxinas e <strong>de</strong> interesse emSaú<strong>de</strong> Coletiva, Malacológica e Tripanossomatí<strong>de</strong>os.311


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TFaremos a seguir, um breve relato sobre como a Coleção <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> <strong>de</strong> FungosFilamentosos se situa diante <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fiel <strong>de</strong>positária. Ressaltamos aqui que essacoleção se diferencia <strong>da</strong> Coleção Entomológica, que conte, a Coleção Costa Lima,apresenta<strong>da</strong> na tese <strong>de</strong> doutoramento <strong>de</strong> Márcio Rangel, por ser uma coleção aberta, ouseja, que ain<strong>da</strong> recebe exemplares. Vale aqui esclarecer o que é uma coleção fecha<strong>da</strong>: AColeção Costa Lima existente no IOC é uma coleção fecha<strong>da</strong>, Isto é, após a morte doentomólogo nenhum outro exemplar é adicionado à essa coleção. Ela representa a história<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> do cientista (RANGEL, 2006, p. 239).Após o cre<strong>de</strong>nciamento como fiel <strong>de</strong>positária <strong>de</strong> amostras do patrimônio genético, em2005, a coleção <strong>de</strong> fungos filamentosos adquiriu mais respaldo para <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> cepas <strong>de</strong>trabalhos científicos. Como uma via <strong>de</strong> mão dupla, pesquisadores precisam <strong>de</strong>positar suasamostras numa coleção fiel <strong>de</strong>positária, que, por sua vez, precisa do reconhecimentocientífico para a manutenção do seu cre<strong>de</strong>nciamento.Nessa coleção, estão <strong>de</strong>posita<strong>da</strong>s onze cepas <strong>de</strong> amostras do patrimônio genéticonacional, coleta<strong>da</strong>s em dípteros (moscas), na Amazônia. São fungos <strong>de</strong>rmopatológicos, queestão em pesquisa e cujos resultados ain<strong>da</strong> não foram publicados em trabalhos científicos.Ressaltamos que esses fungos estão mantidos como “material restrito” e seus nomes, porquestões óbvias não estão publicados em base <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos ou trabalhos. Destacamos tambémque outras amostras envia<strong>da</strong>s por pesquisadores também se encontram na coleção comomaterial restrito. No que se refere ao fiel <strong>de</strong>positário, po<strong>de</strong>mos acessar o documento <strong>de</strong>cre<strong>de</strong>nciamento mas, por outro lado, as informações sobre esse processo, <strong>de</strong>ntro dolaboratório, não estão acessíveis. Sabemos também que, no caso <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong> fungosfilamentosos, a solicitação do cre<strong>de</strong>nciamento se originou na presidência <strong>da</strong> instituição e não<strong>de</strong>ntro dos laboratórios e que tais fungos foram escolhidos por fazerem parte <strong>de</strong> projeto emárea protegi<strong>da</strong> pelo IBAMA. Se o Ministério do Meio Ambiente possui farta documentaçãosobre o cre<strong>de</strong>nciamento <strong>da</strong>s instituições fiéis <strong>de</strong>positárias em sua página oficial, é muitoobscuro quais são as amostras do patrimônio genético nacional. Enten<strong>de</strong>mos que aescassez documental po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>da</strong> a recente legislação sobre amostras do patrimôniogenético, que ain<strong>da</strong> precisará ser compreendi<strong>da</strong> e apreendi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro dos laboratórios e naspesquisas <strong>de</strong> campo antes <strong>de</strong> disponibiliza<strong>da</strong> ao público em geral.312


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo que se refere ao processo <strong>de</strong> patrimonialização <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong> fungosfilamentosos, percebemos que sua salvaguar<strong>da</strong> não está assegura<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma permanente.Como vimos, a categoria fiel <strong>de</strong>positária <strong>de</strong> amostras do patrimônio genético não é perene.Institucionalmente, também é preciso criar garantias que permitam a existência <strong>de</strong>ssacoleção para gerações futuras, uma vez que há carência <strong>de</strong> pessoal e <strong>de</strong> verbas. Dentro <strong>de</strong>todo programa orçamentário para 2007, apenas 1,5% <strong>da</strong> verba do Instituto Oswaldo Cruz foi<strong>de</strong>stina<strong>da</strong> à to<strong>da</strong>s as coleções científicas, verba essa que no caso <strong>da</strong> coleção <strong>de</strong> fungosfilamentosos é insuficiente para a compra <strong>de</strong> material para a simples manutenção. Uma <strong>da</strong>sperguntas que a pesquisa suscitou foi: por que apenas os fungos cre<strong>de</strong>nciados comoamostras do “patrimônio” genético nacional estão na categoria <strong>de</strong> “patrimônio” genético?Talvez porque a compreensão do termo patrimônio seja diferencia<strong>da</strong> entre as áreasambiental e <strong>da</strong> cultura. Por que não são patrimônio genético todos os exemplares <strong>da</strong>coleção? Se não cabe cre<strong>de</strong>nciar a coleção completa como fiel <strong>de</strong>positária <strong>de</strong> amostras dopatrimônio genético, porque em sua composição essa coleção também é composta poramostras exóticas, enten<strong>de</strong>mos que é preciso outro mecanismo <strong>de</strong> proteção que garanta asalvaguar<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse patrimônio.Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, nas pesquisas realiza<strong>da</strong>s, nos <strong>de</strong>paramos com o fato <strong>de</strong> que todo oprocesso <strong>de</strong> proteção existente, no momento, não consiste em patrimonialização <strong>de</strong>sseacervo. O que existe é uma outra forma <strong>de</strong> proteção, e diferencia<strong>da</strong>, do material genético enão garante sua preservação para as gerações futuras. Reforçamos aqui a importância <strong>da</strong>atuação institucional em políticas <strong>de</strong> preservação <strong>da</strong>s coleções, assim como uma reflexãodos profissionais sobre o que se enten<strong>de</strong> por patrimônio.REFERÊNCIASBENCHIMOL, Jaime. Adolph Lutz e a <strong>de</strong>rmatologia em perspectiva histórica.In: Dermatologiae Micologia. BENCHIMOL, Jaime e SÁ, Magali (orgs). Rio <strong>de</strong> Janeiro Editora Fiocruz,2004.CALDEIRA, Maria Teresa. O papel <strong>da</strong> instituição fiel <strong>de</strong>positária e critérios para o seucre<strong>de</strong>nciamento. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE COLEÇÕES CIENTÍFICAS, I, 2005, Rio <strong>de</strong>Janeiro. Anais ... Rio <strong>de</strong> Janeiro: IOC, p.29-32, 2005.BERG, W.; JOHNELS,A; WESTERMARK, T. Mercury contamination in feathers of Swedishbirds from the past 100 years. Oikos, n.17, p. 71-83, 1966.313


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNATURE. Secret treasure-troves restored. Nature, v. 451, p.500, 31 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2008.RANGEL, Marcio Ferreira. 2006. Um entomólogo chamado Costa Lima: a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>um saber e a construção <strong>de</strong> um patrimônio científico. Tese (Doutorado). Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz. Fun<strong>da</strong>ção OswaldoCruz. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2006. Orientador: Magali Romero Sá.SUAREZ, Andrew. The Value of <strong>Museu</strong>m Collections for research and society. In:BioScience, v. 5, p. 66-74, jan. 2004.SHAFFER, Bradley; FISHER, Robert; DAVIDSON, Carlos. The role of natural historycollection in documenting species <strong>de</strong>clines. Trends in Ecology and Evolution, v.13, p. 27-30,1988.314


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TCOLEÇÕES BOTÂNICAS:objetos e <strong>da</strong>dos para a ciênciaAriane Luna Peixoto *Maria Regina <strong>de</strong> Vasconcellos Barbosa **Dora Ann Lange Canhos ***Leonor Costa Maia ****Aflora brasileira é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s mais ricas do mundo e sobre elahá um fabuloso acervo <strong>de</strong> estudos clássicos, do século XIX e mesmo<strong>de</strong> antes, tanto <strong>de</strong>scritivos como iconográficos, e coleções botânicasque, freqüentemente, os respal<strong>da</strong>ram. As coleções (objetos recolhidose iconografias) <strong>de</strong> Alexandre Rodrigues Ferreira, nas capitanias do “Grão Pará, RioNegro, Mato Grosso e Cuiabá”, <strong>de</strong> Karl Frie<strong>de</strong>rich Philipp von Martius e colaboradores,em vários estados brasileiros, <strong>de</strong> Francisco Freire Allemão, em regiões do Nor<strong>de</strong>ste,especialmente do Ceará, exemplificam parte <strong>de</strong>sses estudos. Entretanto, <strong>de</strong>vido àriqueza <strong>de</strong> espécies <strong>da</strong> Flora, à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ecossistemas que amplia a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>morfológica dos táxons, e à dimensão continental do país, ain<strong>da</strong> será necessário muitoesforço para <strong>de</strong>scobrir, nomear, <strong>de</strong>screver, conhecer a biologia, ecologia e distribuição* Instituto <strong>de</strong> Pesquisas Jardim Botânico do Rio <strong>de</strong> Janeiro (JBRJ), Rua Pacheco Leão 915, 22460-038Horto, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ. ariane@jbrj.gov.br. Gradua<strong>da</strong> em História Natural e Mestre em Botânica pelaUFRJ; Doutora em Botânica pela Unicamp. Professora Titular aposenta<strong>da</strong> pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ralRural do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Pesquisadora Associa<strong>da</strong> do JBRJ. Pesquisadora bolsista do CNPq.** Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Paraíba, Departamento <strong>de</strong> Sistemática e Ecologia, Caixa postal 5065, CCEN,Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Universitária, 58051-970, João Pessoa, PB, mregina@dse.ufpb.br. Engenheira Florestal pelaUFRRJ, Mestre em Botânica pelo <strong>Museu</strong> Nacional e Doutora em Botânica pela Unicamp. Pesquisadorabolsista do CNPq.*** Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco, Departamento <strong>de</strong> Micologia, Av. Prof. Moraes Rego s.n., Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>Universitária, 50670-901, Recife PE. leonorcmaia@pq.cnpq.br. Gradua<strong>da</strong> em Ciências Biológicas pelaFAFIRE, Mestre em Botânica pela UFRPE e Doutora em Fitopatologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Flóri<strong>da</strong>.Professora Associa<strong>da</strong> II <strong>da</strong> UFPE e coor<strong>de</strong>nadora do INCT Herbário Virtual <strong>de</strong> Plantas e Fungos doBrasil. Pesquisadora bolsista do CNPq.****Centro <strong>de</strong> Referência em Informação Ambiental (CRIA), Av. Romeu Tórtima, 388, 13084-791Campinas, SP dora@cria.org.br gradua<strong>da</strong> em Engenharia <strong>de</strong> Alimentos e doutoran<strong>da</strong> do Programa <strong>de</strong>Pós-graduação em Política Científica e Tecnológica do Instituto <strong>de</strong> Geociências <strong>da</strong> Unicamp. Diretora doCRIA.315


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgeográfica <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong>s espécies <strong>de</strong> plantas do território brasileiro (PEIXOTO,1999).Os documentos que certificam a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a riqueza <strong>da</strong> flora <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> região ou país encontram-se <strong>de</strong>positados em herbários que guar<strong>da</strong>m osmateriais (espécimes ou exemplares) e os <strong>da</strong>dos a eles associados 1 . Freqüentemente,bibliotecas ou outros setores <strong>da</strong>s instituições que <strong>de</strong>têm herbários guar<strong>da</strong>m relatos <strong>de</strong>expedições, ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong> coleta ou diários <strong>de</strong> campo, imagens fotográficas ou<strong>de</strong>senhos vinculados a espécimes colecionados.Os herbários são indispensáveis para estudos <strong>de</strong> sistemática <strong>de</strong> plantas e sãoferramentas <strong>de</strong> apoio à pesquisa para muitas outras áreas do conhecimento. Além <strong>de</strong>documentar a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica do país, os espécimes ali <strong>de</strong>positados guar<strong>da</strong>mparte <strong>da</strong> história <strong>de</strong> regiões anteriormente cobertas por vegetação natural, e hojeocupa<strong>da</strong>s por ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, empreendimentos diversos ou áreas hoje <strong>de</strong>sfloresta<strong>da</strong>s(PEIXOTO, BARBOSA, 1989). As coleções botânicas são reconheci<strong>da</strong>s hoje por to<strong>da</strong>a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, e não apenas pelos cientistas, como prioritárias para se levar a caboestudos <strong>de</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, manejo sustentável dos recursos naturais, programas <strong>de</strong>recuperação ambiental, ecoturismo e outros (PEIXOTO, BARBOSA, 2003)Este texto abor<strong>da</strong> os herbários brasileiros, espaços privilegiados nos quaiscientistas <strong>de</strong> diferentes formações e olhares po<strong>de</strong>m encontrar objetos colhidos nanatureza e <strong>da</strong>dos sobre eles e sobre os locais on<strong>de</strong> foram coletados. Os métodos parao colecionamento dos objetos para os herbários, as normas que regulamentam anomenclatura <strong>de</strong> plantas e os padrões para a or<strong>de</strong>nação dos <strong>da</strong>dos a eles associadostêm se beneficiado <strong>de</strong> novas tecnologias aliando-as a procedimentos queatravessaram séculos.O ESTABELECIMENTO DE HERBÁRIOS NO BRASILAnalisando a Botânica brasileira do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong>s coleções científicas,Peixoto (1999) i<strong>de</strong>ntificou quatro etapas no estabelecimento e crescimento dosherbários brasileiros até então: a primeira, quando cinco herbários já haviam sidoinstalados no século XIX no Rio <strong>de</strong> Janeiro (R, RB), em Minas Gerais (OUPR), em SãoPaulo (SPSF), e no Pará (MG) 2 e cinco no primeiro quarto do século XX: no Rio <strong>de</strong>1 Os herbários e outras coleções a eles associa<strong>da</strong>s (xilotecas, carpotecas, bancos <strong>de</strong> DNA e outros) são,<strong>de</strong> modo geral, tratados como coleções botânicas preserva<strong>da</strong>s. Os jardins botânicos, arboretos, bancos<strong>de</strong> germoplasma são exemplos <strong>de</strong> coleções vivas.2 Os herbários são referidos por seus acrônimos registrados no In<strong>de</strong>x Herbariorum (HOLMGREN etal.,1990). O In<strong>de</strong>x Herbariorum lista os herbário <strong>de</strong> todo o mundo e estima que neles há316


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TJaneiro (RBR, RIZ, UFRJ) e em São Paulo (SP, ESA). Desses primeiros herbáriosapenas dois estavam fora do eixo Rio <strong>de</strong> Janeiro/ São Paulo: o <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Farmácia<strong>de</strong> Ouro Preto e o do <strong>Museu</strong> Paraense [<strong>Museu</strong> Paraense Emílio Goeldi]. O Rio <strong>de</strong>Janeiro, então centro do po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>tinha o predomínio em quantitativos <strong>de</strong> herbários.A segun<strong>da</strong> fase se esten<strong>de</strong> até cerca <strong>de</strong> 1950, quando o país já contava com22 herbários. As instituições que os sediavam eram ain<strong>da</strong> predominantementevolta<strong>da</strong>s para as ciências agrárias (Institutos <strong>de</strong> Pesquisas Agronômicos ou similares eEscolas <strong>de</strong> Agronomia) e os cientistas que li<strong>da</strong>vam com a Botânica eram oriundos,principalmente, <strong>da</strong>s Escolas <strong>de</strong> Agronomia, Farmácia ou Medicina.A criação <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Botânica do Brasil (SBB), em 1950, veio impulsionaros estudos nessa área, inaugurando uma nova fase. Pesquisadores e estu<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong>sistemática <strong>de</strong> plantas e áreas correlatas, muitos já oriundos dos cursos <strong>de</strong> HistóriaNatural e <strong>de</strong>pois dos cursos <strong>de</strong> Biologia, pu<strong>de</strong>ram ampliar áreas geográficas <strong>de</strong> estudoe táxons estu<strong>da</strong>dos, aproveitando-se do conhecimento acumulado tanto porespecialistas estrangeiros quanto por brasileiros. O incentivo e o apoio financeiro <strong>da</strong>dopelas agências nacionais <strong>de</strong> fomento, o Conselho Nacional <strong>de</strong> Pesquisa (hojeConselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq) e aCampanha [<strong>de</strong>pois Coor<strong>de</strong>nação] <strong>de</strong> Aperfeiçoamento <strong>de</strong> Pessoal do Ensino Superior(CAPES), cria<strong>da</strong>s em 1951, foram também motivadores para a expansão <strong>da</strong>s coleçõesbotânicas e a formação <strong>de</strong> recursos humanos em Taxonomia. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>sorganiza<strong>da</strong>s pela SBB propiciavam discussões e intercâmbio <strong>de</strong> materiais eincentivavam a mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos cientistas entre diferentes instituições brasileiras,essencial para o manejo e i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> espécimes em coleções <strong>de</strong> herbário. Aca<strong>da</strong> ano a SBB promovia um congresso, sediado em diferentes ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do país,aliado ao qual ocorriam expedições para conhecer e documentar a flora local (MELLOFILHO, PEIXOTO, 2000; FERNANDES, 2000). Angely, em 1959, relaciona 47herbários para o Brasil, fornecendo informações sobre a estrutura, o acervo e oscientistas que com eles li<strong>da</strong>vam. Cita alguns herbários então não vinculados ainstituições, chamando-os <strong>de</strong> herbários privativos (ANGELY, 1959).Nos 25 anos finais do século XX a criação ou expansão <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> pósgraduaçãosão marcadores <strong>de</strong> uma nova etapa. A Botânica passa a formar umcontingente maior <strong>de</strong> cientistas, e os herbários brasileiros tomam gran<strong>de</strong> impulso,tanto em número <strong>de</strong> exsicatas <strong>de</strong>posita<strong>da</strong>s como na análise e i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>espécimes <strong>da</strong>s coleções. Uma ação do governo teve <strong>de</strong>staque neste período: aaproxima<strong>da</strong>mente 350 milhões <strong>de</strong> espécimes que documentam a vegetação <strong>da</strong> terra nos últimos 400anos (http://sciweb.nybg.org/science2/In<strong>de</strong>xHerbariorum.asp).317


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Timplantação do Programa Flora, em 1975, com a coor<strong>de</strong>nação e o apoio financeiro doCNPq. Durante a sua vigência, abrangeu 11 herbários, alguns dos quais tiveram oacervo duplicado, além <strong>de</strong> melhorias nas instalações, aquisição <strong>de</strong> equipamentos e acontratação <strong>de</strong> pessoal técnico, muitos dos quais foram posteriormente incorporadosàs instituições. As ações do Programa Flora tiveram início em 1976 no <strong>Museu</strong>Paraense Emílio Goeldi e no Instituto <strong>de</strong> Pesquisas <strong>da</strong> Amazônia e, a partir <strong>de</strong> 1978,começaram na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, em sete instituições do Nor<strong>de</strong>ste e no úniconúcleo no Su<strong>de</strong>ste, o Instituto <strong>de</strong> Botânica <strong>de</strong> São Paulo. Após oito anos <strong>de</strong> vigência, oPrograma Flora foi <strong>de</strong>sativado (PEIXOTO, 1999).No final do século XX o Brasil contava com 115 herbários e um acervo <strong>de</strong>4.566.640 espécimes <strong>de</strong>positados (PEIXOTO, 1999).OS HERBÁRIOS BRASILEIROS HOJEO Brasil conta hoje com 150 herbários, dos quais 125 são ativos emintercâmbio <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos e materiais científicos. Os <strong>de</strong>mais têm finali<strong>da</strong><strong>de</strong> didática ouestão em implantação (BARBOSA, VIEIRA, 2005; MENEZES et al., 2005; PEIXOTO etal., 2006). O intercâmbio entre os herbários do Brasil e <strong>de</strong>stes com herbários doexterior é uma <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> rotina que muito enriquece as coleções e aprimorai<strong>de</strong>ntificações, aumentando a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos espécimes <strong>de</strong>positados. Dos 125herbários ativos, 87 estão registrados no In<strong>de</strong>x Herbariorum e 23 são cre<strong>de</strong>nciadosjunto ao Conselho <strong>de</strong> Gestão do Patrimônio Genético (CGEN/MMA) como fiéis<strong>de</strong>positários <strong>da</strong> flora brasileira. Guar<strong>da</strong>m um acervo <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 6 milhões <strong>de</strong>exemplares. Embora significativo esse conjunto <strong>de</strong> exemplares é inferior às coleçõesdos maiores herbários no mundo. Os herbários do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Paris (P) e do JardimBotânico <strong>de</strong> Kew (K), por exemplo, acumulam sozinhos, mais espécimes do que oconjunto dos herbários brasileiros (PEIXOTO, MORIM, 2003).A maior parte dos herbários brasileiros <strong>de</strong>tém menos <strong>de</strong> 50 mil espécimes<strong>de</strong>positados. Os maiores herbários em quantitativo <strong>de</strong> espécimes <strong>de</strong>positados sãolistados na tabela 1. O Su<strong>de</strong>ste concentra o maior quantitativo <strong>de</strong> herbários e o maioracervo acumulado. As regiões Norte e Centro-Oeste <strong>de</strong>têm os menores números <strong>de</strong>herbários e <strong>de</strong> espécimes <strong>de</strong>positados e representam gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>safios a seremenfrentados, consi<strong>de</strong>rando os baixos índices <strong>de</strong> coleta e a pequena quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>taxonomistas (BARBOSA, VIEIRA, 2005).Além <strong>da</strong> documentação <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica, o conjunto <strong>de</strong> espécimes <strong>de</strong>ca<strong>da</strong> herbário reflete parte <strong>da</strong> história institucional e também dos botânicos e318


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tadministradores que por ela passaram. Pelos registros po<strong>de</strong> se visualizar os fluxos <strong>de</strong>recursos aportados, as expedições <strong>de</strong> campo realiza<strong>da</strong>s, os gran<strong>de</strong>s projetosinstitucionais, intercâmbios com outras instituições, os cientistas visitantes.Quadro 1 - Herbários Brasileiros com maiores contingentes <strong>de</strong> espécimes <strong>de</strong>positadosHerbárioSigla<strong>de</strong>signativaAno <strong>de</strong>fun<strong>da</strong>çãoNúmero <strong>de</strong>exemplares<strong>Museu</strong> Nacional, Rio <strong>de</strong> Janeiro R 1808 550000Jardim Botânico do Rio <strong>de</strong> Janeiro RB 1890 500000Instituto <strong>de</strong> Botânica <strong>de</strong> São Paulo SP 1917 350000EMBRAPA-Amazônia Oriental IAN 1945 170000<strong>Museu</strong> Botânico Municipal <strong>de</strong> Curitiba MBM 1965 320000Instituto Nacional <strong>de</strong> Pesquisas <strong>da</strong> Amazônia INPA 1954 220000Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília UB 1963 230000Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo SPF 1932 190000Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas UEC 1974 150000Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul ICN 1937 161000OS HERBÁRIOS DO FUTUROAs plantas <strong>de</strong>sempenham papel fun<strong>da</strong>mental na manutenção e estabili<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong>s funções básicas dos ecossistemas e são universalmente reconheci<strong>da</strong>s como umaparte vital <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica. Em busca <strong>de</strong> mecanismos que levassem aocumprimento <strong>de</strong> acordos assumidos na Convenção sobre a Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> Biológica(CDB), a Estratégia Global para a Conservação <strong>de</strong> Plantas (GSPC) foi apresenta<strong>da</strong>em 2002, na Conferência <strong>da</strong>s Partes (COP 6) e adota<strong>da</strong> por unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> pelos paísessignatários <strong>da</strong> CDB. O objetivo final e <strong>de</strong> longo prazo <strong>da</strong> GSPC é o <strong>de</strong> conter a per<strong>da</strong><strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> plantas. A Taxonomia é fun<strong>da</strong>mental para o conhecimento <strong>da</strong>biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Além <strong>de</strong> nomear e <strong>de</strong>screver plantas, animais e microorganismos,estudos taxonômicos são fun<strong>da</strong>mentalmente para a compreensão <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>através <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> parentesco entre as espécies. Os paísessignatários <strong>da</strong> CDB, reconhecendo a existência <strong>de</strong> “impedimento taxonômico” para asua efetiva implementação, propuseram, em 2002, a Iniciativa Taxonômica Global(GTI). Os objetivos do programa <strong>de</strong> trabalho <strong>da</strong> GTI envolvem diversas açõesdiretamente vincula<strong>da</strong>s a coleções, tais como: avaliar as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>sem taxonomia nos planos nacional, regional e global; estabelecer e manter sistemas einfra-estruturas necessárias para obtenção, estudo e curadoria <strong>de</strong> espécimesbiológicos; facilitar o estabelecimento <strong>de</strong> infra-estrutura e sistema <strong>de</strong> acesso à319


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tinformação taxonômica, priorizando países <strong>de</strong> origem dos espécimes; incluir nosprogramas transversais <strong>da</strong> CDB elementos para o aprimoramento <strong>da</strong> taxonomia.Algumas ações do governo após a promulgação <strong>da</strong>s Diretrizes para a PolíticaNacional <strong>de</strong> Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em 2002, trouxeram alguns avanços para a coleta edocumentação <strong>da</strong> biota brasileira em coleções científicas e para estudos taxonômicos,essenciais para o conhecimento e a conservação <strong>da</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dentre estaspo<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s: a criação do Programa <strong>de</strong> Pesquisa em Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>(PPBio), a elaboração <strong>de</strong> diretrizes e estratégias para coleções biológicas, aelaboração <strong>da</strong> lista <strong>de</strong> espécies <strong>da</strong> flora do Brasil, a ser concluí<strong>da</strong> até 2010 e o recenteestabelecimento do Instituto Nacional <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> Herbário Virtual <strong>de</strong>Plantas e Fungos (INCT Herbário Virtual).Em 2004, foi criado o Programa <strong>de</strong> Pesquisa em Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>, noMinistério <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong> (MCT) visando “articular a competência regional enacional para que o conhecimento <strong>da</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira seja ampliado edisseminado <strong>de</strong> forma planeja<strong>da</strong> e coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>, com quatro objetivos principais: 1.Apoio à implementação e manutenção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inventário <strong>da</strong> biota; 2. Apoio àmanutenção, ampliação e informatização <strong>de</strong> acervos biológicos do País; 3. A apoio apesquisa e <strong>de</strong>senvolvimento em áreas temáticas <strong>da</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>; 4.<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações estratégicas para políticas <strong>de</strong> pesquisa em biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.O PPBio, em sua fase inicial, foi implantado na Amazônia e posteriormente no Semi-Árido, planejando expandir-se, em 2009, para a Mata Atlântica.O PPBio utiliza um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong>scentralizado no qual um NúcleoGestor coor<strong>de</strong>na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em parceria com diferentes instituições (MCT, 2005). SãoNúcleos Gestores do PPBio, o Instituto Nacional <strong>de</strong> Pesquisas <strong>da</strong> Amazônia (INPA)coor<strong>de</strong>nando ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e ações na Amazônia Oci<strong>de</strong>ntal, o <strong>Museu</strong> Paraense EmílioGoeldi (MPEG) na Amazônia Oriental, e a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana(UEFS), na região semi-ári<strong>da</strong> do Nor<strong>de</strong>ste. As coletas realiza<strong>da</strong>s em expediçõescientíficas promovi<strong>da</strong>s pelas instituições vincula<strong>da</strong>s ao PPBio acontecempredominantemente em Uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação e/ ou em áreas prioritárias paraconservação e as coletas intensivas em plotes <strong>de</strong>limitados, nos quais diferentescomponentes <strong>da</strong> biota são colecionados, e muito enriqueceram as coleções. Aaquisição <strong>de</strong> equipamentos e a melhoria <strong>de</strong> instalações, associa<strong>da</strong>s à capacitação <strong>de</strong>recursos humanos e a visita <strong>de</strong> sistematas oriundos <strong>de</strong> instituições do país e doexterior às coleções, visando estudo <strong>de</strong> grupos taxonômicos específicos, trouxeramuma nova dinâmica às coleções científicas.320


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TEm 2005-2006 o MCT coor<strong>de</strong>nou, através do Centro <strong>de</strong> Gestão e Estudosestratégicos (CGEE), e em parceria com a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Botânica do Brasil (SBB), aSocie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Microbiologia (SBM), a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Zoologia(SBZ) e o Centro <strong>de</strong> Referência em Informação Ambiental (CRIA) a elaboração dodocumento ”Diretrizes e estratégias para a mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> coleções biológicasbrasileiras e a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> sistemas integrados <strong>de</strong> informação sobrebiodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>” apresentado e ratificado pelo governo durante a Conferência <strong>da</strong>sPartes (COP8) realiza<strong>da</strong> em Curitiba, em 2006 (EGLER, SANTOS, 2006). Para tal, foielaborado um extenso diagnóstico que contou diretamente com a participação <strong>de</strong> 67cientistas que também apontaram estratégias para suas áreas <strong>de</strong> especialização,gerando em conjunto 29 documentos e notas técnicas 3 .A elaboração do documento [Diretrizes e estratégias] pelo MCT eCGEE foi instiga<strong>da</strong> por duas razões. A primeira, <strong>de</strong> cunhointernacional, que está relaciona<strong>da</strong> à preparação <strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong>necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s em taxonomia, que está expresso noPrograma <strong>de</strong> Trabalho <strong>da</strong> Iniciativa Global em Taxonomia (GTI) <strong>da</strong>Convenção <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s sobre Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> Biológica. Asegun<strong>da</strong> razão, que é <strong>de</strong> cunho nacional, está relaciona<strong>da</strong> aoprocesso <strong>de</strong> preparação <strong>de</strong> uma política nacional para coleçõesbiológicas, que está expressa na ação Apoio à Mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong>Acervos Biológicos (coleções ex situ), no Plano Plurianual 2004-2007.(EGLER, em entrevista grava<strong>da</strong> no JBRJ, em 2007).Para as coleções botânicas são aponta<strong>da</strong>s 12 ações estratégicas, quatrovincula<strong>da</strong>s à infra-estrutura e gestão <strong>de</strong> informações e oito vincula<strong>da</strong>s a recursoshumanos e pesquisa. As quatro vincula<strong>da</strong>s à infra-estrutura e gestão <strong>de</strong> informaçõessão: 1) Apoiar as coleções na ampliação dos recursos humanos e materiais, visando àpreservação e dinamização do acervo; 2) Ampliar a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> instala<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coleçõesbrasileiras, <strong>de</strong> modo a torná-las aptas a respon<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s crescentes sobrebiodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>; 3) Promover a informatização <strong>da</strong>s coleções científicas e sua respectivaintegração, <strong>de</strong> modo a agilizar o intercâmbio e a comunicação e divulgar os acervos;4) Implementar as bases <strong>de</strong> um herbário virtual nacional.As oito ações para recursos humanos e pesquisa são: 1) Promover acapacitação e titulação nos grupos <strong>de</strong> maior carência <strong>de</strong> pesquisadores no país; 2)Estimular a capacitação <strong>de</strong> taxonomistas visando a sua participação em projetosintegrados <strong>de</strong> estudos <strong>da</strong> flora brasileira; 3) Conscientizar as Instituições <strong>de</strong> ensino epesquisa <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contratação <strong>de</strong> especialistas nos diferentes grupos; 4)Organizar cursos modulados <strong>de</strong> aperfeiçoamento em Taxonomia e metodologias <strong>de</strong>trabalho em herbário e laboratório, aten<strong>de</strong>ndo às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s diferentes regiões3 Disponíveis em: www.cria.org.br/cgee/col. Acesso em: 17 <strong>de</strong> Jul. 2009.321


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgeográficas do país; 5) Estimular a preparação <strong>de</strong> revisões taxonômicas <strong>de</strong> gênerosessencialmente brasileiros ou bem representados no Brasil; 6) Estimular projetos parainventário, sobretudo em áreas pouco ou ain<strong>da</strong> não visita<strong>da</strong>s e aquelas sujeitas aimpactos; 7) Facilitar a obtenção <strong>de</strong> auxílios para visitas <strong>de</strong> curta duração a herbáriosnacionais e estrangeiros, contendo coleções representativas dos grupos taxonômicosem estudos, e para realização <strong>de</strong> expedições científicas por pesquisadores, docentese alunos <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> pós-graduação; 8) Promover o intercâmbio entrepesquisadores, docentes e alunos <strong>da</strong>s Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e Instituições <strong>de</strong> Pesquisa emTaxonomia (Fanerógamos, Criptógamos e Fungos) possibilitando consultas a coleçõescientíficas, participação em cursos, realização <strong>de</strong> estágios e projetos conjuntos(PEIXOTO et al., 2006).A Estratégia Global para Conservação <strong>de</strong> Plantas (GSPC) <strong>de</strong>fine cincoobjetivos gerais a serem buscados pelos signatários <strong>da</strong> CDB: compreen<strong>de</strong>r edocumentar a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> plantas; conservar a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> plantas; usar adiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> plantas <strong>de</strong> forma sustentável; promover a educação e aconscientização sobre a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica; e capacitação para a conservação <strong>de</strong>plantas. Uma <strong>da</strong>s metas do primeiro objetivo diz respeito a “uma lista funcionalamplamente acessível <strong>da</strong>s espécies conheci<strong>da</strong>s <strong>de</strong> plantas, como um passo para aelaboração <strong>de</strong> uma lista completa <strong>da</strong> flora mundial” e consi<strong>de</strong>ra viável atingir esta metaaté 2010. A lista é vista como um requisito fun<strong>da</strong>mental para a conservação <strong>de</strong> plantas(RBJB, 2006). A participação brasileira além <strong>de</strong> comprometi<strong>da</strong> por acordosinternacionais é indispensável pelo fato do país ser <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s floras maisricas do globo. Em 2008, por <strong>de</strong>signação do MMA, o Jardim Botânico do Rio <strong>de</strong> janeiro(JBRJ) passou a coor<strong>de</strong>nar a ação <strong>de</strong> elaboração <strong>da</strong> lista brasileira <strong>de</strong> plantas, emsintonia com as Diretrizes <strong>da</strong> Política Nacional <strong>de</strong> Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e assim cumprircompromissos internacionais assumidos pelo país. Para tal, foi <strong>de</strong>senvolvido umsistema <strong>de</strong> informação on-line sob a coor<strong>de</strong>nação do JBRJ, em parceria com o CRIA.Os trabalhos foram iniciados pela integração <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos já disponíveis em listas <strong>de</strong>espécies e floras elabora<strong>da</strong>s anteriormente por diferentes instituições epesquisadores. A partir <strong>de</strong>ssa base comum, porém distribuí<strong>da</strong> on line, os cerca <strong>de</strong> 340taxonomistas <strong>de</strong> plantas e fungos envolvidos na elaboração <strong>da</strong> lista trabalham noslaboratórios e herbários <strong>de</strong> suas próprias instituições.Em 2008, foi aprovado, <strong>de</strong>ntro do edital para constituição <strong>de</strong> InstitutosNacionais <strong>de</strong> Ciência e <strong>Tecnologia</strong>, o projeto Herbário Virtual <strong>de</strong> Plantas e Fungosdo Brasil, cujas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s se iniciaram no final <strong>de</strong> 2009. Este INCT englobou algumasdiretrizes e estratégias para coleções biológicas, estabeleci<strong>da</strong>s em 2005 visando322


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tintegrar as ações e visões <strong>de</strong> curadores <strong>de</strong> herbários, taxonomistas, <strong>de</strong>senvolvedores<strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> informação (especialistas em informática para biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>) eespecialistas em re<strong>de</strong>s, em busca <strong>de</strong> um objetivo comum: disponibilizar <strong>da</strong>dos einformações <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acervos <strong>de</strong> forma livre e aberta na Internet.O gran<strong>de</strong> esforço <strong>de</strong>senvolvido pelos cursos <strong>de</strong> pós-graduação na formação <strong>de</strong>taxonomistas, o trabalho <strong>de</strong> articulação dos herbários promovido 4 pela SBB ao longodos últimos 20 anos, a enorme expansão <strong>da</strong> Internet em abrangência e veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ferramentas e protocolos que facilitam o processo <strong>de</strong>compartilhamento <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos feito pelo CRIA possibilitam hoje a disponibilização <strong>de</strong> umconjunto significativo <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s coleções. A re<strong>de</strong> SpeciesLink 5 em parceria com 48herbários que juntos possuem um acervo estimado em cerca <strong>de</strong> 3.8 milhões <strong>de</strong>exemplares, disponibiliza <strong>de</strong> modo aberto e compartilhado 2.076.975 registros on line.Neste contingente estão <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> dois herbários do exterior, o The New Yok BotanicalGar<strong>de</strong>n (NY) e o Missouri Botanical Gar<strong>de</strong>n (MO), integrados a esta re<strong>de</strong> com os<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> exemplares coletados no Brasil. Os maiores conjuntos <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> umamesma instituição disponíveis em re<strong>de</strong> são oriundos dos herbários RB (JardimBotânico do Rio <strong>de</strong> Janeiro), MBM (<strong>Museu</strong> Botânico Municipal <strong>de</strong> Curitiba) e INPA(Instituto Nacional <strong>de</strong> Pesquisas <strong>da</strong> Amazônia).Uma estratégia que vem <strong>de</strong>monstrando êxito na curadoria dos espécimes edos <strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s coleções botânicas é a constituição <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> herbários. Estas re<strong>de</strong>stêm promovido o compartilhamento mais efetivo <strong>de</strong> recursos financeiros; a revisão <strong>de</strong>protocolos e padrões que envolvem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a coleta <strong>de</strong> exemplares, a sua preservaçãoe tombamento em coleções; a disponibilização <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> modo aberto ecompartilhado na internet. No conjunto <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos hoje disponíveis no speciesLink,quatro sub-re<strong>de</strong>s foram constituí<strong>da</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente com recursos buscados emagências <strong>de</strong> fomento fe<strong>de</strong>rais ou estaduais e em projetos internacionais: o Biota SãoPaulo 6 , a Taxonline 7 , que reúnem coleções zoológicas e botânicas dos estados <strong>de</strong> SãoPaulo e Paraná, respectivamente, a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herbários do Nor<strong>de</strong>ste, a Re<strong>de</strong> Capixaba<strong>de</strong> Herbários. Existe também a re<strong>de</strong> Florescer 8 que reúne e disponibiliza <strong>da</strong>dos dosherbários do Brasil central, e ain<strong>da</strong> não está integra<strong>da</strong> a re<strong>de</strong> speciesLink. Além <strong>da</strong>4 Informações sobre a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herbários po<strong>de</strong>m ser onti<strong>da</strong>s em (www.ufrgs.br/taxonomia/herbários).5 O speciesLink é uma re<strong>de</strong> colaborativa, inicia<strong>da</strong> em 2001, que disponibiliza <strong>da</strong>dos sobre espécies eespécimes <strong>de</strong> acervos biológicos e <strong>de</strong> observações. Informações em http://splink.cria.org.br.6 Programa <strong>de</strong> Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável <strong>da</strong> Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> doEstado <strong>de</strong> São Paulo (www.biota.org.br).7 Re<strong>de</strong> Paranaense <strong>de</strong> Coleções Biológicas (www.taxonline.ufpr.br).8 Flora Integra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Região Centro-Oeste (www.florescer.unb.br).323


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tdisponibilização do conjunto <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos dos herbários, estas re<strong>de</strong>s geralmentepromovem cursos <strong>de</strong> capacitação para curadores e técnicos <strong>de</strong> herbário, estimulam avisita <strong>de</strong> taxonomistas para i<strong>de</strong>ntificação do acervo e compartilham informações entreos herbários associados.As coleções biológicas continuam sendo a principal fonte para estudos sobrediversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica. Entretanto, o número <strong>de</strong> taxonomistas brasileiros, apesar <strong>de</strong>muito superior ao <strong>de</strong> déca<strong>da</strong>s atrás, ain<strong>da</strong> é insuficiente para a imensa tarefa <strong>de</strong>inventariar, caracterizar e classificar a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> biológica brasileira (BICUDO,SHEPHERD, 1998; PIRANI, 2005). Entre as metas do INCT Herbário Virtual está a <strong>de</strong>ampliar a capacitação em taxonomia e a integração entre herbários, com ações empesquisa, formação <strong>de</strong> recursos humanos e transferência <strong>de</strong> conhecimento para asocie<strong>da</strong><strong>de</strong>.Além <strong>de</strong> aumentar a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e relevância <strong>da</strong>s coleções e <strong>de</strong> pesquisasnelas realiza<strong>da</strong>s, a exposição pública dos <strong>da</strong>dos permite melhora na sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Porém, talvez o benefício prepon<strong>de</strong>rante do compartilhamento <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos seja aaceleração no avanço científico com o acesso aos <strong>da</strong>dos e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> maiorintegração e trocas entre diferentes áreas <strong>de</strong> conhecimento.Não obstante as menciona<strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> apoio às coleções biológicas, é notórioque ain<strong>da</strong> há uma enorme carência <strong>de</strong> recursos humanos e financeiros e <strong>de</strong>mecanismos eficientes que possam garantir a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> apoio a médioe longo prazos. Embora esforços tenham sido <strong>de</strong>senvolvidos, ain<strong>da</strong> não se conseguiuavançar o suficiente para que a biota brasileira esteja representa<strong>da</strong> nas coleções.De fato, o Brasil está longe <strong>de</strong> cumprir as metas <strong>da</strong> CDB no que diz respeito aoconhecimento e conservação <strong>da</strong> flora do Brasil. O Programa <strong>de</strong> Capacitação emTaxonomia, instituído no CNPq, não obteve os investimentos esperados, emboraesteja calcado em uma forte base conceitual e seja indispensável, como referido noGSPC e GTI e em muitos documentos produzidos no Brasil. A representação <strong>de</strong>plantas e fungos nos herbários brasileiros é muito aquém <strong>da</strong> necessária para estudosem diferentes abor<strong>da</strong>gens <strong>de</strong> botânica, ecologia e biologia <strong>da</strong> conservação.Programas exitosos como o Biota-Fapesp, que recentemente completou 10 anos <strong>de</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e o PPBio, embora com recursos <strong>de</strong> pouca monta, quando comparado aoprimeiro, mostram o que se po<strong>de</strong> avançar em conhecimento e documentação <strong>da</strong> floraquando há boas <strong>de</strong>finições políticas e investimento financeiro. A publicação <strong>da</strong> lista <strong>de</strong>espécies <strong>de</strong> plantas e fungos do Brasil, prevista para os próximos meses, integrandoinformações gera<strong>da</strong>s por um conjunto gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisadores, ao cumprir uma <strong>da</strong>s324


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmetas do GSPC, <strong>da</strong>rá um passo importante para atingir objetivos <strong>de</strong> prazos maislongos, como a elaboração <strong>da</strong> flora do Brasil, incluindo caracterização dos táxons enomes locais e vernáculos, também estabelecido como meta no GSPC (GSPC, 2006).E mostrará o quanto se tem para ser estu<strong>da</strong>do. São ain<strong>da</strong> poucos os taxonomistasbrasileiros envolvidos com revisões e monografias <strong>de</strong> grupos taxonômicos, trabalhoárduo que envolve, além dos trabalhos em coleções, análises e uso <strong>de</strong> novasferramentas em taxonomia.A difusão <strong>de</strong> informações sobre a biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, <strong>de</strong> modo que acomuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, tomadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, formuladores <strong>de</strong> políticas ambientais eeducadores tenham acesso ao conhecimento gerado e <strong>de</strong>le façam uso para criarnormas e leis ambientais coerentes com os anseios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e o <strong>de</strong>senvolvimentosustentável é outro <strong>de</strong>safio que passa, essencialmente pelo processo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong>paradigmas <strong>de</strong> como a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e o governo tratam a biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nesse <strong>de</strong>safio,os herbários brasileiros também têm importante tarefa a ser cumpri<strong>da</strong>.AGRADECIMENTOA Dra. Ana O<strong>de</strong>te dos Santos Vieira, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina,que vem coor<strong>de</strong>nando nos últimos anos a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herbários <strong>da</strong> SBB, porcompartilhar as informações repassa<strong>da</strong>s pelos curadores dos herbários brasileiros einformações <strong>de</strong> interesse à taxonomia <strong>de</strong> plantas.REFERÊNCIASANGELY, J. Instituições <strong>de</strong> botânica no Brasil. Boletim do Instituto paranaense <strong>de</strong>Botânica, n.11, p.1-39, 1959.BARBOSA, Maria Regina V.; PEIXOTO, Ariane L. Coleções botânicas brasileiras:situação atual e perspectivas. In: PEIXOTO, Ariane L. (org.) Coleções biológicas <strong>de</strong>apoio ao inventário, uso sustentável e conservação <strong>da</strong> biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Instituto <strong>de</strong>Pesquisas Jardim Botânico do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro. 2003.BARBOSA, Maria Regina V.; VIEIRA, Ana O<strong>de</strong>te. Coleções <strong>de</strong> plantas vasculares:Diagnóstico, <strong>de</strong>safios e estratégias. Disponível em: (www.cria.org.br/cgee/col). Acessoem: 09 <strong>de</strong> Jul. 2009.BICUDO, Carlos E.M.; SHERPHERD, George J.. Sintese. In: BICUDO, Carlos E.M.;SHERPHERD, George J. (ed). Fungos, Microorganismos e Plantas. Biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> doEstado <strong>de</strong> São Paulo, Brasil, v.2, p.77-79, Fapesp. São Paulo, 1998.EGLER, Ione; SANTOS, Marcio <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong> (Coord.). Diretrizes e estratégias para amo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> coleções biológicas brasileiras e a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> sistemasintegrados <strong>de</strong> informação sobre biodiversi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Brasília: MCT/ CGEE, 2006.325


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA CULTURA MATERIAL E A DIVULGAÇÃOCIENTÍFICAGuaracira Gouvêa 1Este livro, organizado pelo <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins, temcomo proposta discutir aspectos relacionados ao patrimônio <strong>da</strong> ciência etecnologia, tendo como referencial o arcabouço <strong>da</strong> cultura material. Nessecontexto, alguns dos textos foram pensados para abor<strong>da</strong>r o tema Coleçõese Divulgação Científica. Assim, consi<strong>de</strong>rando que nosso contexto <strong>de</strong> fala estáterritorializado por um museu <strong>de</strong> ciência e tecnologia que tem sob sua guar<strong>da</strong> coleções<strong>de</strong> instrumentos científicos e as coloca expostas ao olhar por meio <strong>de</strong> exposições e, alémdisso, organiza ações educativas, volta<strong>da</strong>s para o publico, media<strong>da</strong>s por essasexposições, com objetivo que o publico produza sentidos sobre essas coleções, bemcomo sobre o conhecimento científico e tecnológico, é pertinente colocarmos emdiscussão categorias como cultura material e imateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> e divulgação científica, poiselas são historicamente constitutivas dos museus <strong>de</strong> ciência e técnica e suastransformações, isto é, seus múltiplos sentidos caracterizam as transformações dosmuseus ao longo <strong>de</strong> sua história.Como uma opção didática, apresentarei algumas reflexões sobre os temas culturamaterial, a seguir sobre divulgação científica e na apresentação <strong>de</strong> minhas reflexõesacerca dos museus <strong>de</strong> ciência e técnica tentarei articular esses dois conceitos tendocomo referência as ações educativas em museus, que é meu lugar <strong>de</strong> fala.1 Licenciatura e bacharelado em Física pela USP e UFRJ, mestrado em Educação pela FGV - RJ edoutorado em Educação Gestão e Difusão em Biociências pela UFRJ. Pós-Doutorado em Educação pelaUAB, Espanha. Professora adjunta <strong>da</strong> UNIRIO e colaboradora <strong>da</strong> UFRJ. Pesquisa os temas: linguagens,museus <strong>de</strong> ciência, educação em ciências e formação <strong>de</strong> professores presencial e a distância nos quaisestão vincula<strong>da</strong>s suas produções mais relevantes. Bolsista Produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> PQII, CNPq.327


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TCULTURA MATERIALQuando trabalhamos com um conceito formado por um substantivo (cultura) e umadjetivo (material), estamos diante <strong>de</strong> um problema. Os significados do conjunto têm umahistória semântica que está inseri<strong>da</strong> nas <strong>de</strong> seus componentes, em nosso caso cultura ematerial.Julgamos necessário problematizarmos, em primeiro lugar, o conceito <strong>de</strong> cultura,sem a expectativa <strong>de</strong> esgotá-lo, mas <strong>de</strong> trazer elementos que nos auxiliem em nossopropósito – discutir a cultura material e a divulgação científica em ações educativas emmuseus. Em segui<strong>da</strong>, trataremos do conceito material.Os seres humanos em suas práticas sociais produzem cultura que em ”seusentido vasto remete aos modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> pensamento”. (CUCHE, 2002, p.11), istosignifica que estamos abor<strong>da</strong>ndo tanto a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos utilizados em nossosmodos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, bem como na imateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos valores simbólicos constitutivos <strong>de</strong>ssesmodos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e dos pensamentos.construído pelos sentidos que <strong>da</strong>mos a nossas formas <strong>de</strong> viver.A cultura está associa<strong>da</strong> ao mundo simbólicoNo entanto, a palavra cultura nem sempre esteve esse sentido vasto e ain<strong>da</strong>autores divergem <strong>de</strong>ssa caracterização que nos leva a falar <strong>de</strong> culturas. Para Cuche(2002, p. 13),A noção <strong>de</strong> cultura oferece a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conceber a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> dohomem na diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seus modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e crença, enfatizando, <strong>de</strong>acordo com os estudiosos, a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> ou a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Autores <strong>de</strong> diferentes posições teóricas abor<strong>da</strong>m a questão <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong>diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> na cultura <strong>de</strong> forma bem diferencia<strong>da</strong>, uns estabelecem hierarquias sociais(cultura domina<strong>da</strong> e dominante; cultura <strong>de</strong> classes), outros estabelecem hierarquiasculturais (cultura erudita e <strong>de</strong> massa). Bourdieu (1983) ao abor<strong>da</strong>r modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>grupos sociais não adota a palavra cultura, prefere utilizar a palavra habitus e refere-se àcultura como conjunto <strong>de</strong> obras culturais, produtos simbólicos no contexto <strong>da</strong> produção<strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong>s letras e socialmente valorizados, <strong>de</strong>sta forma consi<strong>de</strong>ra um sentidorestrito para a noção <strong>de</strong> cultura.Segundo Bourdieu (1983), os habitus, disposições duráveis e transponíveis,organizam as práticas sociais <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo e suas representações, nessesentido, para nós, são elementos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> que são adquiridos em processos <strong>de</strong>socialização em diferentes contextos. O habitus caracteriza um grupo, sua vinculaçãosocial, mas não o isola <strong>de</strong> trocas simbólicas.328


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNo mundo contemporâneo, particularmente a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990 ocorreramgran<strong>de</strong>s e rápi<strong>da</strong>s transformações nas práticas sociais que caracterizam o processo <strong>de</strong>globalização e mundialização do mundo, associado, respectivamente, a noção <strong>de</strong>território e <strong>de</strong> trocas culturais. Assim, "as relações sociais entre o indivíduo e o contextosocial, ou o indivíduo e o coletivo, ou, ain<strong>da</strong>, do sujeito com o movimento social precisamser repensa<strong>da</strong>s". (SCHERER - WARREN, 1998, p.16).Vivemos em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> planetária em que as informações, referencia<strong>da</strong>s porimagens, circulam rapi<strong>da</strong>mente. As distâncias se encurtam, o universo se amplia, faz-senecessário repensar a noção <strong>de</strong> espaço-tempo, o que significa, por sua vez, repensar asrelações sociais.O indivíduo, na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> globaliza<strong>da</strong>, participa <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> exclusão einclusão social, à medi<strong>da</strong> que, <strong>de</strong> acordo com sua origem e formação educacional, po<strong>de</strong>aten<strong>de</strong>r às exigências <strong>de</strong> um mercado competitivo globalizado, ou fazer parte <strong>da</strong> massa<strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos <strong>de</strong>scartáveis, pelo <strong>de</strong>semprego estrutural ou por uma qualificação que nãocorrespon<strong>de</strong> às exigências tecnológicas. Para Scherer-Warren (1998), no entanto, essesindivíduos estão ca<strong>da</strong> vez mais submetidos a uma cultura homogeneizadoracaracterística <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo.Essa perspectiva reforça a noção <strong>de</strong> cultura na uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, prevalece o global sobreo local, hierarquiza as culturas, submete os sujeitos a um processo <strong>de</strong> aculturação. Noentanto, as produções <strong>de</strong> sentido que organizam a dinâmica social não são realiza<strong>da</strong>ssomente no sentido <strong>da</strong> dominação, mas também no sentido <strong>da</strong> resistência. Os grupossociais, como afirma Santos (1977), têm o direito a serem, iguais, quando a diferença osinferioriza, e o direito a serem diferentes, quando a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> os <strong>de</strong>scaracteriza, levandonosa concluir que o acesso às culturas diferencia<strong>da</strong>s é fun<strong>da</strong>mental para garantiruniversalismo e diferenciação.Em muitos autores o processo <strong>da</strong> aculturação é negado, pois consi<strong>de</strong>ram que háper<strong>da</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas nossa i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> está sempre referencia<strong>da</strong> ao outro. Eu só mevejo diferente em relação ao outro. Essa discussão é pertinente para grupos queestabelecem muitas trocas no tempo, tanto espaciais como culturais.Para Cuche (2002), nenhuma cultura existe em estado puro, sem ter sofridoinfluências, o processo <strong>de</strong> aculturação é um fenômeno universal, mesmo que ele não sedê <strong>da</strong> mesma forma em todos os lugares e em todos os tempos. Para nós, neste trabalhointeressa <strong>de</strong>stacar que a ciência com seus modos <strong>de</strong> produzir conhecimento e suas329


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tidéias contribui na constituição <strong>da</strong> cultura dos grupos sociais contemporâneos, issoqueiramos ou não.Quando falamos em materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> associamos ao tangível, ao que se po<strong>de</strong> tocar,juntar, guar<strong>da</strong>r e conservar, o que documenta e assim se torna testemunho <strong>de</strong> umaépoca. Essa noção <strong>de</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos leva a pensar em diferentes objetos que po<strong>de</strong>mse tornar objetos <strong>de</strong> conhecimento ou não: cartas, mapas, moe<strong>da</strong>s, vasos, livros,máquinas, instrumentos, fotografias, e muitos outros. No entanto, é possível pensar namateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos não tangíveis, por exemplo, o elétron; ou o elétron é uma idéia,é uma construção?Quando nas ciências <strong>da</strong> natureza consi<strong>de</strong>ramos o espaço, a matéria e tempo, oobjeto material é resultado <strong>da</strong>s transformações <strong>da</strong> matéria ou é o objeto imaterial querepresenta seus processos <strong>de</strong> transformação, essas transformações ocorrem em umperíodo <strong>de</strong> tempo que re-configuram o espaço. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> queexpressa as transformações e indica o passar do tempo ou <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> época e noslocaliza no espaço.Quando tomamos como referência o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ciência mo<strong>de</strong>rna amateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> reafirma sua importância, pois, segundo Pomian (1985, p. 13) as formas <strong>de</strong>produzir conhecimento “pauta<strong>da</strong>s na experimentação, confrontos, provas e leis,característicos <strong>da</strong> ciência mo<strong>de</strong>rna, têm necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> imperativa <strong>de</strong> objetos materiais efatos concretos e realizam um exame exigente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> tangível”.No mundo contemporâneo no qual po<strong>de</strong>mos ter objetos virtuais, mas que têmreferencia na materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos concretos ou são criados a partir <strong>de</strong>stes, comopensar a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>? E ai como po<strong>de</strong>remos agrupar, classificar, preservar e expor aoolhar?As noções <strong>de</strong> cultura e <strong>de</strong> material nos indicam que essas noções são mutáveis epolissêmicas para o mesmo período histórico. Ao nos referirmos à noção <strong>de</strong> culturamaterial po<strong>de</strong>ríamos dizer o mesmo, pois várias conotações são adota<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong>história <strong>da</strong>s ciências humanas, mas é possível traçar um caminho dos sentidos adotados,para tal consi<strong>de</strong>ramos aspectos abor<strong>da</strong>dos por Pomian (1985).Para esse autor a cultura material surge <strong>de</strong> forma embrionária nos utensílios <strong>de</strong>pedra <strong>de</strong> extratos arqueológicos que são objetos comuns que indicam um laço materialcom a civilização que os produziu, isto significa que indicam possíveis mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> modos<strong>de</strong> subsistência <strong>de</strong> grupos sociais <strong>de</strong>ssa civilização. Ain<strong>da</strong>, chama atenção que essa330


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tarqueologia difere <strong>da</strong> arqueologia clássica que se interessava pelos achados associadosaos gran<strong>de</strong>s feitos e os <strong>de</strong>nominados heróis.A perspectiva adota<strong>da</strong> por este autor para a cultura material contrapõe-se aoindividual, fica atento aos fatos repetitivos e não aos acontecimentos, <strong>de</strong>staca o que éestável na coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, reveladora <strong>de</strong> hábitos e tradição.Assim, inicia-se a ampliação do conceito <strong>de</strong> cultura e o estudo <strong>da</strong> cultura materialvolta-se para a <strong>de</strong>scrição dos mecanismos gerais do funcionamento <strong>da</strong>s coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>shumanas, abor<strong>da</strong>ndo aspectos vinculados tanto à infra-estrutura como à superestrutura.Os objetos, em sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, encerram significados <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> infra-estrutura –características, técnicas <strong>de</strong> fabrico e função; e <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> superestrutura – simbólicos.A materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos objetos expressa as relações sociais <strong>de</strong> grupos, caracteriza<strong>da</strong>s pelomodo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, isto é pelos gestos, objetos, rituais, hierarquias, <strong>de</strong>sta forma esses objetostornam-se fontes, documentos.Para Pomian (1985, p.17) abor<strong>da</strong>r a cultura material é estu<strong>da</strong>r “(...) os aspectosmateriais <strong>da</strong> cultura entendidos como causas explicitas, e isso em certa medi<strong>da</strong>, emprejuízo dos seus aspectos menos materiais”. Ain<strong>da</strong> é cultura <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, expressana repetição e na materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, no entanto, não <strong>de</strong>scarta as marcas simbólicas dosobjetos, o invisível.Ao problematizarmos a cultura material e os significados que os objetos encerram,parece oportuno in<strong>da</strong>gar, particularmente neste espaço, quando, como e porque umobjeto torna-se parte <strong>de</strong> uma coleção. Por que existem coleções? Quais são seussignificados?Para Pomian (1985, p.92), “uma coleção é qualquer conjunto <strong>de</strong> objetos naturaisou artificiais, mantidos temporariamente ou <strong>de</strong>finitivamente fora do circuito <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>seconômicas e sujeitos a uma proteção especial em um local fechado preparado paraesse fim, e expostos ao olhar público”. Os objetos <strong>de</strong> coleção, segundo o autor, secaracterizam pelo seu <strong>de</strong>slocamento no tempo e no espaço, pois per<strong>de</strong>m seu valor <strong>de</strong>uso. Ain<strong>da</strong>, afirma que os objetos <strong>de</strong> coleção assemelham-se a obras <strong>de</strong> arte, que nãotêm uma finali<strong>da</strong><strong>de</strong> utilitária, sendo sua única finali<strong>da</strong><strong>de</strong> a <strong>de</strong> se expor ao olhar. Noentanto, como as obras <strong>de</strong> arte, ao se tornarem peças <strong>de</strong> coleção passam a ter um valor<strong>de</strong> troca, a medi<strong>da</strong> em que existe um mercado no qual são comprados e vendidos e seuscompradores ganham prestígio social ao adquiri-los.331


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TOs objetos <strong>de</strong> coleção, como elementos <strong>da</strong> cultura material po<strong>de</strong>m ser entendidosenquanto suportes <strong>da</strong> memória coletiva e <strong>da</strong>s fontes <strong>da</strong> historia e são <strong>de</strong>nominadossemióforos.Segundo Pomian (1985, p.95), semióforos são objetos que não têm utili<strong>da</strong><strong>de</strong>,“mas que representam o invisível, são dotados <strong>de</strong> um significado, não sendomanipulados, mas expostos ao olhar”. O valor dos objetos <strong>de</strong> coleção resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong>serem não objetos úteis, mas sim por serem “carregados <strong>de</strong> significado”. Sãoconsi<strong>de</strong>rados preciosos, pois representam o invisível e promoverem um intercambio queune o mundo visível e o invisível, que po<strong>de</strong> se tornar sagrado, <strong>de</strong> outros tempos. Maspara que tenham esse papel precisam ser expostos ao olhar.Os semióforos, ao longo <strong>de</strong> sua história constituem coleções que têm distintossignificados do invisível, do sagrado ao profano. É preciso <strong>de</strong>stacar que com o início <strong>da</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna os objetos não são recolhidos por seu valor <strong>de</strong> uso, mas por causa <strong>de</strong>seus significados, como representantes do invisível: outros climas, socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes,paises exóticos. Estes objetos, paulatinamente irão se tornar objetos <strong>de</strong> estudo.Para nós, neste trabalho, interessa <strong>de</strong>stacar outra categoria <strong>de</strong> semióforos, cita<strong>da</strong>por Pomian, surgi<strong>da</strong> após o século XVII e que, além disso, fornecerá peças <strong>de</strong> coleção:os instrumentos científicos. Para Pomian,(...) estes proce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> no que respeita aoinvisível <strong>de</strong> que se tenta restringir os limites na natureza, forjando, parao referir, uma nova linguagem: a <strong>da</strong> teoria matemática, que, a partir<strong>da</strong>quilo que se vê, <strong>de</strong>ve permitir chegar a conclusões infalíveis sobre oque não se po<strong>de</strong> ver. Também neste caso, há um novo grupo social quese forma, o dos cientistas. (1985, p. 98).As coleções forma<strong>da</strong>s por objetos <strong>de</strong>sse grupo social - os cientistas - é queestarão sob a guar<strong>da</strong> dos museus <strong>de</strong> ciência e tecnologia e se constituem em culturamaterial <strong>da</strong>s ciências.A cultura material <strong>da</strong>s ciências surge, nos anos <strong>de</strong> 1980 (GRANATO; SANTOS;LACERDA; 2007) em um contexto <strong>de</strong> proposta <strong>de</strong> novos temas <strong>de</strong> estudo, conseqüência<strong>da</strong>s fortes críticas à negligência, por parte <strong>de</strong> historiadores <strong>da</strong> ciência, <strong>da</strong> contribuição <strong>da</strong>experimentação e dos objetos <strong>de</strong> ciência para o <strong>de</strong>senvolvimento científico. Segundoesses autores:332


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA cultura material <strong>da</strong>s ciências seria o estudo não do objeto em si, ummicroscópio ou um voltímetro, por exemplo, mas <strong>da</strong>s diferentes técnicase tecnologias conti<strong>da</strong>s naquele objeto, por quem e para quem esteobjeto foi construído, com que finali<strong>da</strong><strong>de</strong> e se seu uso correspon<strong>de</strong>u aoobjetivo para que foi originalmente construído (GRANATO et al., 2007,p.2-3)Desta forma, estaria associa<strong>da</strong> à materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do objeto e a aspectos simbólicosdo fazer científico e à época <strong>de</strong>sse fazer, isto significa que a partir do tangível chega-seao intangível, <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição do objeto a explicitação dos processos.Van Praet (2001) consi<strong>de</strong>ra que essa questão se coloca há mais <strong>de</strong> um séculopara os profissionais dos museus e a expressa <strong>da</strong> seguinte forma:como passar dos princípios relativamente já dominados <strong>da</strong> conservaçãoe <strong>da</strong> exposição <strong>de</strong> traços materiais (...) para aqueles, ain<strong>da</strong> hoje emelaboração, <strong>de</strong> conservação e <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong> processos naturais,culturais, técnicos etc., que têm origem no intangível”. (VAN PRÄET,2001, p. 25).Como nosso lugar <strong>de</strong> fala é o museu <strong>de</strong> ciência, essa questão está no centro <strong>de</strong>nossas preocupações. Como elaborar ações educativas, que neste caso são <strong>de</strong>divulgação científica que tenham origem no intangível?DIFUSÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICAA humani<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre criou, no intuito <strong>de</strong> manter as relações sociais e outransformá-las, formas <strong>de</strong> difundir, por meio <strong>de</strong> práticas educativas, os saberes que elaproduziu. Esses saberes sempre foram diferenciados, produzidos por grupos sociaisdistintos e são constitutivos <strong>de</strong> sua cultura. No entanto, a medi<strong>da</strong> em que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> foise tornando ca<strong>da</strong> vez mais complexa (ocupação territorial - ampliam-se os territóriosocupados por meio <strong>da</strong> evolução dos meios <strong>de</strong> transporte e o contato entre grupos sociaisculturalmente distintos; formas <strong>de</strong> comunicação amplia<strong>da</strong>s - escrita, fala<strong>da</strong> e porimagens; formas <strong>de</strong> produção econômicas, constituição <strong>de</strong> impérios etc.), esses saberes,produzidos por grupos distintos, entram em contato e se estabelece um saber que é ohegemônico e que <strong>de</strong>ve ser difundido - um dos componentes <strong>de</strong>ste saber é o científico etecnológico. A escola contemporânea e os meios <strong>de</strong> comunicação são instituições que<strong>de</strong>vem cumprir o papel <strong>de</strong> difundir tais conhecimentos.To<strong>da</strong> prática social, para sobreviver, precisa se reproduzir (criar seus seguidores)e ter uma função social. Assim, a ciência precisa formar seus a<strong>de</strong>ptos e garantir junto333


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Taos outros grupos uma função social. Essas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s geram a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sedifundirem os conhecimentos científicos produzidos. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> algunspraticantes <strong>da</strong> ciência, esses seriam os elementos para justificar ações <strong>de</strong> difusão <strong>de</strong>conhecimento científico. Porém, do ponto <strong>de</strong> vista dos não praticantes, ter acesso aosconhecimentos científicos e, principalmente, às técnicas produzi<strong>da</strong>s significa,principalmente, po<strong>de</strong>r discutir e interferir na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas públicas do sistema <strong>de</strong>ciência e tecnologia, o que caracteriza estes não praticantes como alfabetizados científicae tecnologicamente. A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, tendo como referência oconhecimento científico, que dá uni<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural aos dois grupos, estabelece espaço <strong>de</strong>resistência. Estamos argumentando que ter acesso à cultura científica po<strong>de</strong> não se tornaruma aculturação, mas sim um elemento <strong>de</strong> resistência.Na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea, permea<strong>da</strong> pelo sistema ciência e tecnologia, umelemento fun<strong>da</strong>mental para o exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia é o acesso aos conhecimentoscientíficos e tecnológicos produzidos. Isso está explicitado nas políticas públicaseducacionais e <strong>de</strong> C&T, na atuação dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa e na atuaçãopolítica <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica. São engendra<strong>da</strong>s, então, formas <strong>de</strong> difundir oconhecimento científico. Essas formas, assim como a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> para que públicodifundi-las, estão associa<strong>da</strong>s à história <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia e a inserção <strong>de</strong>sta nahistória.Divulgação Científica – Fenômeno ComunicacionalA comunicação é um fenômeno social que po<strong>de</strong> ser estu<strong>da</strong>do do ponto <strong>de</strong> vistape<strong>da</strong>gógico, histórico, sociológico, psicológico e lingüístico.No século XVIII, segundo Melo (1992), quando a psicologia <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>ssugeriu a divisão entre alma e mente, a comunicação passou a ter dois objetivosinter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: um <strong>de</strong> natureza cognitiva ou intelectual (que toca à mente) e outro <strong>de</strong>natureza emocional (que toca à alma). A partir <strong>de</strong>ssa teoria, os objetivos <strong>da</strong> comunicaçãopassaram a ser <strong>de</strong>finidos como: informativo – apelo à mente, à cognição; persuasivo –apelo à alma, às emoções; diversional – apelo à diversão, ao <strong>de</strong>scanso. Atualmente,essa teoria está ultrapassa<strong>da</strong>, pois não se atribui uma única função à mensagem, isto é,elas não atuam <strong>de</strong> modo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e especializado. No entanto, caracterizam-se asmensagens como informativas (educativas), persuasivas (propagan<strong>da</strong>) e diversionais(entretenimento), principalmente, quando se fala em meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa,334


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tmas a compreensão do objetivo <strong>da</strong> mensagem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> intenção <strong>de</strong> quem comunicae <strong>da</strong> percepção <strong>de</strong> quem a recebe.Segundo Berlo (1963), nós nos comunicamos para influenciar; comunicamo-noscom um objetivo específico. Assim, todo comunicador é um manipulador <strong>de</strong> símbolos.Por isso, é fun<strong>da</strong>mental, para a comunicação eficiente que o comunicador explicite comclareza sua intenção, o que preten<strong>de</strong> atingir com a mensagem que vai produzir e difundir.Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, existe um jogo entre o produtor <strong>de</strong> mensagens e o receptor, ambos têm umpapel ativo no processo <strong>de</strong> comunicação. “A comunicação humana só é possível quandoexiste um campo <strong>de</strong> experiência comum entre comunicador e receptor” (Melo, 1992, p.10) que alimenta esse jogo. Esse campo <strong>de</strong> experiência estaria fun<strong>da</strong>mentado nocompartilhamento <strong>de</strong> elementos <strong>da</strong>s culturas do receptor e do produtor <strong>da</strong>s mensagens.Na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea, a partir <strong>de</strong> 1900, a expansão e a diversificação dosmeios <strong>de</strong> comunicação, bem como a expansão <strong>da</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>, permitiram o acessocrescente à informação e a diferentes formas <strong>de</strong> entretenimentos, fazendo surgir ofenômeno <strong>da</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, caracterizado por ser indireto – sem mediaçãounilateral – só um tem papel ativo na produção <strong>da</strong> mensagem para todos indistintamente.No entanto, não se fala sobre tudo para todos ao mesmo tempo. A comunicação<strong>de</strong> massa tem categorias <strong>de</strong> mensagens com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s funções. Tal como foiexpresso anteriormente, essas funções não são in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, mas ca<strong>da</strong> mensagemprivilegia uma função. Além disso, para ca<strong>da</strong> meio <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa (imprensa– jornal, livro, revista, folheto, volantes – cinema, rádio, disco, televisão, ví<strong>de</strong>o/CD ecomputador), as funções são explicita<strong>da</strong>s por meio <strong>da</strong> linguagem característica do veículosuporte.A difusão <strong>de</strong> conhecimentos científicos e tecnológicos tem utilizado, ao longo <strong>da</strong>linha do tempo, os diferentes meios <strong>de</strong> comunicação, conseguindo alcançar ca<strong>da</strong> vezmais um público maior. Assim, a difusão <strong>de</strong> conhecimento científico e tecnológico vai secaracterizando como um fenômeno comunicacional <strong>de</strong> massa, tornando-se objeto <strong>de</strong>estudo <strong>de</strong> teóricos <strong>da</strong> comunicação e introduzindo a figura <strong>de</strong> um mediador – ocomunicador - entre o cientista e o público leigo.Nesse momento, vale <strong>de</strong>stacar que a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, ampliam-se asformas <strong>de</strong> comunicação por meios digitais que subvertem os papeis produtor e receptor<strong>de</strong> mensagens, colocando novas questões acerca <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> se realizar a difusão doconhecimento, pois esta sempre privilegiou o sentido do produtor para o receptor e amediação <strong>de</strong> um interlocutor legitimado. Como as ações <strong>de</strong> difusão <strong>de</strong> conhecimento335


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tserão produzi<strong>da</strong>s por alguém <strong>de</strong>nominado leigo, tanto em relação ao conhecimentocientífico quanto em relação a seu conhecimento como especialista na mediação entre aciência e o público leigo?A comunicação científica e tecnológica atual difere <strong>da</strong> dos séculos anteriores peladiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> veículos, pelas formas <strong>de</strong> linguagem e principalmente pela extensão <strong>de</strong>leitores aos quais se dirige. Estes possuem níveis <strong>de</strong> entendimento muito diferenciadossobre a ciência e a tecnologia. Nos séculos anteriores, o público que tinha acesso a essadivulgação era mais homogêneo – os bem informados, os letrados <strong>da</strong> época.Divulgação, Popularização, Vulgarização CientíficaAté o momento, adotamos o termo difundir na concepção assumi<strong>da</strong> por Bueno(1984), a partir <strong>de</strong> Pasqualli (1978) a difusão científica é todo processo ou recursoutilizado para a veiculação <strong>de</strong> informações científicas e tecnológicas. Nesse sentido, adifusão incorpora a divulgação científica, a disseminação científica e o jornalismocientífico.A disseminação científica se processa entre os pares e é veicula<strong>da</strong>, por exemplo,pelas revistas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s científicas. Bueno (1984) afirma que a divulgação científicavolta<strong>da</strong> para o público maior pressupõe um processo <strong>de</strong> recodificação, e, mais ain<strong>da</strong>, nãose restringe ao campo <strong>da</strong> imprensa. Inclui os jornais e revistas, mas também livrosdidáticos, as aulas <strong>de</strong> ciências do 2 o Grau, os cursos <strong>de</strong> extensão para não especialistas,as histórias em quadrinhos, os suplementos infantis, os folhetos voltados para saú<strong>de</strong>,higiene, os documentários e programas <strong>de</strong> rádio e televisão e Internet.Da mesma forma, Martinez (1997) consi<strong>de</strong>ra que a popularização <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong>tecnologia se apóia em quatro elementos: a educação formal – ensino <strong>de</strong> ciências; osmeios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa (televisão, rádio, imprensa escrita e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>informação); centros e museus interativos <strong>de</strong> ciência e programas multimídia.A difusão está conti<strong>da</strong>, <strong>de</strong>sta forma, nas diferentes práticas <strong>da</strong> educação científicae tecnológica, seja nas práticas sociais realiza<strong>da</strong>s nos espaços formais <strong>de</strong> educação(sistema <strong>de</strong> ensino formal-escola), ou nos espaços não-formais <strong>de</strong> educação. Noentanto, essas práticas são diferencia<strong>da</strong>s, e a divulgação, ou vulgarização, oupopularização <strong>da</strong> ciência e ou comunicação pública <strong>da</strong> ciência diferem do ensino <strong>de</strong>ciências, pois são componentes <strong>da</strong> educação não-formal, tendo principalmente para asua realização, condições sociais distintas do ensino <strong>de</strong> ciências.336


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TMas o que é divulgação científica?Para alguns cientistas, a divulgação científica é a comunicação <strong>de</strong> informaçõescientíficas. Fornece elementos para que as pessoas possam encontrar imagens para suacuriosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e induz a criação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los usados na ciência. Acrescentam, ain<strong>da</strong>, queuma relação mais estreita entre cientistas, jornalistas e artistas produziria uma divulgaçãocientífica <strong>de</strong> melhor quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e mais eficiente. Divulgar ciência é colocar na esferapública o que estava restrito à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, é também falar <strong>da</strong> própria ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>- valores e normas, falar <strong>da</strong> cultura científica.Barros (1992) <strong>de</strong>fine cinco categorias <strong>de</strong> divulgação científica: a) a divulgaçãoutilitária; b) a divulgação do método; c) a divulgação dos impactos; d) a divulgação dosavanços; e) a divulgação cultural. Essas categorias não são exclu<strong>de</strong>ntes, uma po<strong>de</strong>conter elementos <strong>da</strong>s outras.A divulgação utilitária está associa<strong>da</strong> à divulgação <strong>da</strong>s aplicações <strong>da</strong> ciência(exemplo: novo combustível ou programa <strong>de</strong> educação sanitária); a divulgação dométodo fala dos procedimentos sem criticá-los (experimentos para se mostrar umfenômeno); a divulgação dos impactos refere-se às aplicações <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>scobertas(supercondutores, por exemplo); a divulgação dos avanços apresenta a ciência como umprocesso <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> informações e <strong>de</strong> progressos contínuos (forma <strong>de</strong>apresentação dos trabalhos, por exemplo, em partículas elementares). Para Barros, nasquatro categorias <strong>de</strong>scritas anteriormente, há um ponto comum. To<strong>da</strong>s elas têm comoobjetivo <strong>de</strong> divulgação um aspecto diretamente ligado à produção científica. Aceitam aciência como uma forma <strong>de</strong> conhecimento universal, hegemônico, e procuram umalinguagem apropria<strong>da</strong> para simplificá-la e popularizá-la, para nós essas perspectivasestão relaciona<strong>da</strong>s aos objetos <strong>da</strong> ciência e aos seus processos."A quinta categoria - cultural - difere <strong>da</strong>s anteriores justamente neste pontofun<strong>da</strong>mental: seu objetivo é a cultura, enquanto sua linguagem é a ciência. Ou seja, nestacategoria, a ciência aparece como um elemento inicial a partir do qual se abor<strong>da</strong>rá acultura. Através <strong>da</strong> óptica <strong>da</strong> ciência <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> época procura-se compreen<strong>de</strong>ra cultura ... O que importa é saber como uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> visão <strong>de</strong> mundo contribui paracriar um corpo <strong>de</strong> conhecimento capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r sentido e significado à natureza. E mais,como a ciência se insere num contexto histórico-cultural, expressão, ela mesma, <strong>de</strong>ssecontexto." (Barros, 1992, p. 64). Divulgar ciência seria estabelecer ações <strong>de</strong> aculturação<strong>de</strong> grupos sociais não produtores <strong>da</strong> cultura científica.337


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPara Massarani (1998, p.14), "talvez seja Roqueplo” (1974) quem <strong>de</strong>fine adivulgação científica <strong>de</strong> forma mais abrangente, afirmando ser to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>explicação e <strong>de</strong> difusão dos conhecimentos, <strong>da</strong> cultura e do pensamento científico etécnico, sob duas condições. A primeira <strong>de</strong>las é que essas explicações e essa difusão dopensamento científico sejam feitas fora do ensino oficial ou <strong>de</strong> ensino equivalente. Asegun<strong>da</strong> condição imposta por ele é que tais explicações extra-escolares não <strong>de</strong>vem tercomo objetivo formar especialistas, nem mesmo aperfeiçoá-los em sua própriaespeciali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele acredita que a divulgação científica <strong>de</strong>ve se dirigir ao maior públicopossível sem, no entanto, excluir o cientista ou o homem culto. Esta perspectiva estáassocia<strong>da</strong> aos objetos e pensamentos <strong>da</strong> cultura científica.Nesse sentido, a divulgação científica é uma prática social realiza<strong>da</strong> por: museus<strong>de</strong> ciência e tecnologia; conferências públicas <strong>de</strong> ciência; editorias <strong>de</strong> revistas; editorias<strong>de</strong> ciência <strong>de</strong> jornais; livros; editores <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> televisão; produtores <strong>de</strong> filmes nasfeiras <strong>de</strong> ciência e tecnologia, nos programas <strong>de</strong> ciência nas praças públicas, nascampanhas em torno <strong>de</strong> algum tema científico etc. e que envolve sempre uma reelaboraçãodo discurso científico e <strong>de</strong> alguma forma algum processo <strong>de</strong> aculturação.Como fazer divulgação científica em museus?A divulgação científica é uma prática social realiza<strong>da</strong> em espaços não formais <strong>de</strong>educação em ciências, por meio <strong>de</strong> diferentes ações. Atualmente, o público tem acessoaos mais variados meios <strong>de</strong> comunicação, estes disponibilizam diferentes temáticas e asapresentam a partir do uso <strong>de</strong> diversas mídias com seus respectivos textos e linguagens.Assim, segundo Gouvêa et al (2003) ao se divulgar ciência estamos diante <strong>de</strong> dois<strong>de</strong>safios: comunicar um texto científico e consi<strong>de</strong>rar a linguagem do suporte escolhido.O primeiro <strong>de</strong>safio está associado à produção, a partir do texto científico, <strong>de</strong> outrotexto – o <strong>de</strong> divulgação científica. Vale <strong>de</strong>stacar que não é somente a estrutura quediferencia o texto científico <strong>de</strong> outros textos, mas também as estruturas sintáticas e oconjunto léxico utilizado. Isto significa que somente membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científicacompartilham plenamente a leitura <strong>de</strong>sses textos, que são escritos por eles e para eles(Coracino, 1991; Maingueneau,1993; e Gomez,1995), surgindo <strong>da</strong>í a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>produção <strong>de</strong> outro texto, que para Zamboni, (1997) pertence a um gênero <strong>de</strong> discursodistinto do discurso científico.338


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAutores como Halli<strong>da</strong>y e Martin (1993), Mortimer et al (1998), Battinelli (1999)<strong>de</strong>stacam que, na linguagem comum, predominam narrativas que relatam seqüênciaslineares <strong>de</strong> eventos, compreensíveis a maioria <strong>da</strong>s pessoas, enquanto a linguagemcientífica congela os processos, transformando-os em grupos nominais que são ligadospor verbos que exprimem relações entre esses processos, acarretando <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> léxicae especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> sintática à linguagem científica, dificultando a sua compreensão.Essa forma <strong>de</strong> construir o texto científico, <strong>de</strong> acordo com Halli<strong>da</strong>y e Martin (1993),foi sendo elabora<strong>da</strong> para que os conhecimentos produzidos estivessem interligados, isto,é, “o que se conhece” e a “nova informação”. A tática usa<strong>da</strong> para se conseguir isso éconstruir uma única frase por meio <strong>da</strong> transformação dos verbos <strong>da</strong> linguagem cotidianaem grupos nominais, ligados por um verbo que os relaciona. Para Battinelli (1999) issoproduz uma rigi<strong>de</strong>z semântica que visa a evitar redundâncias. Para tanto, há umasimplificação <strong>da</strong> sintaxe no sentido <strong>da</strong> nominalização. Esse processo dificulta oentendimento do conteúdo dos textos científicos por pessoas não familiariza<strong>da</strong>s comessa linguagem. Nesse momento, aflora a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> divulgação científica e surge afigura do divulgador/mediador que terá com tarefa produzir outro texto, compreensívelaos não iniciados em ciência.O outro <strong>de</strong>safio está associado à escolha dos diferentes suportes <strong>de</strong>apresentação dos textos (jornal, revista, ví<strong>de</strong>o, exposições, multimídias), que implica nouso <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> linguagem e ain<strong>da</strong> a articulação entre esses recursos semióticos naelaboração <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> divulgação científica. Para a elaboração <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados textosprecisamos consi<strong>de</strong>rar apenas linguagem verbal escrita e imagética, no entanto, para amaioria dos textos que circulam no mundo contemporâneo é preciso consi<strong>de</strong>rar, ain<strong>da</strong>, osmodos semióticos oral e gestual e em que suportes estão expressos.Para os museus <strong>de</strong> ciência caracterizados por possuírem uma coleção <strong>de</strong>instrumentos científicos, coloca-se mais um <strong>de</strong>safio: Como articular todos esses meiossemióticos com mais um – os instrumentos científicos?O MUSEU E A EXPOSIÇÃOO museu, segundo Van-Praët e Poucet (1993), tem como especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> aarticulação dos elementos lugar, objeto e tempo, que <strong>de</strong>ve ser observa<strong>da</strong> nas diferentesformas <strong>de</strong> apresentar a informação. Uma <strong>de</strong>ssas formas é <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> exposição, e alógica <strong>de</strong> exposição – articulação entre lugar, tempo e objeto – caracteriza historicamente339


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&To tipo <strong>de</strong> museu ao qual nos estamos referindo. Nesse sentido, Knauss (2003) consi<strong>de</strong>raque é possível, por meio <strong>da</strong> discussão <strong>da</strong> lógica <strong>de</strong> exposição, por exemplo, aproximar ahistoria dos museus e a história <strong>da</strong>s coleções (objetos), principalmente quando estamostomando como referência os museus <strong>de</strong> história e <strong>de</strong> história natural, oriundos <strong>da</strong>tradição enciclopedista que alia museu, coleção e conhecimento.Particularmente, é importante ressaltar que a lógica <strong>de</strong> exposição começa a serrevista quando, no século XVII, os museus são abertos ao gran<strong>de</strong> público — abertos àobservação <strong>de</strong> qualquer pessoa —, e as suas coleções, antes organiza<strong>da</strong>s em função<strong>da</strong>s <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>da</strong> pesquisa, dos pesquisadores e dos artistas, começam ser li<strong>da</strong>s poresse público. Nesse momento, a exposição pública <strong>de</strong> coleções adquire caráter educativoe <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> conhecimento <strong>da</strong> população, reafirmando a perspectivaenciclopedista.Ao final do século XIX, a maneira <strong>de</strong> expor passou a ser sublinha<strong>da</strong>pela separação entre o conteúdo <strong>da</strong>s coleções científicas dos museus esua apresentação pública, com a organização <strong>de</strong> exposições temáticas<strong>de</strong> caráter didático. As coleções não ficavam mais expostas àexaustão, uma vez que o momento do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s ciênciasimpunha a seleção dos objetos para apresentações temáticas. Ai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> entre museu e exposição se <strong>de</strong>sfaz, embora a forma <strong>da</strong>sexposições acompanhasse sem problema as novas concepçõescientíficas. Um exemplo era a Galeria <strong>de</strong> Paleontologia do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong>História Natural <strong>de</strong> Paris, que optou por uma apresentação em que osfósseis não eram mais mostrados em função <strong>da</strong> classificaçãosistemática, mas <strong>da</strong>s eras a que pertenciam, oferecendo ao visitante “aca<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> natureza” numa linha evolutiva. Orientados por esse museu,também no Brasil, os museus nacionais foram marca<strong>da</strong>mente ligadosaos padrões biológicos <strong>de</strong> investigação e mo<strong>de</strong>los evolucionistas <strong>de</strong>análise.(VALENTE, 2003, p. 35)Orientar a exposição <strong>de</strong> coleções pauta<strong>da</strong> no paradigma hegemônico <strong>da</strong> área <strong>de</strong>conhecimento do museu significou “a retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> função científica e patrimonial domuseu e permitiu que se enriquecesse a análise <strong>de</strong>sse fenômeno que leva a uma visãocontemporânea <strong>de</strong> museu: instituição <strong>de</strong> conservação <strong>da</strong>s produções <strong>da</strong> natureza e doespírito humano (para usar as expressões fun<strong>da</strong>doras dos museus do século XVIII) elocal <strong>de</strong> comunicação cultural com um público ampliado, atuando sobre os registros dosaber e <strong>da</strong> fruição (para usar as expressões atuais do ICOM)” (Van-Praet, 2003, p. 23). Oenfoque nos processos e não nos objetos é uma característica dos museus <strong>de</strong> ciênciasnaturais do século XIX, mas não ficou restrito a estes, pois tal procedimento <strong>de</strong>finiu umaperspectiva <strong>de</strong> pensamento que norteou muitas ações, inclusive as educativas.340


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TAs tentativas <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça têm por base a preocupação com o acesso dopúblico à informação <strong>da</strong>quilo que o museu veicula. A pressão é exerci<strong>da</strong>em função <strong>de</strong> uma exigência mais fun<strong>da</strong>mental, visto que, para que osdiversos subgrupos que compõem a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> possam intercomunicarse,é necessário, além <strong>de</strong> garantir a todos a entra<strong>da</strong> nos museus, que ossemióforos <strong>de</strong> um mesmo gênero sejam virtualmente acessíveis a todos.Segundo Pomian, tratando os objetos enquanto semióforos e não comocoisas úteis, eles representam o invisível (o significado), e é esse invisívelque <strong>de</strong>ve ser acessível. Aqui resi<strong>de</strong> a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> do museu: ao tratar ossemióforos, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar a natureza do significado e aspossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e limites <strong>da</strong> interpretação dos objetos, e <strong>de</strong>ve perceber opapel do visitante no processo <strong>de</strong> “produzir” significados, na medi<strong>da</strong> emque ele está liberado para produzir suas próprias “leituras”. A<strong>da</strong>ptar-se aesse novo momento é ter clareza sobre o que significa o museu na suaessência e preocupação <strong>de</strong> preservar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>”. (VALENTE, 2003,p. 37)A idéia <strong>de</strong> exposição, atualmente, supõe um modo <strong>de</strong> recepção por parte <strong>de</strong> umindivíduo <strong>da</strong>quilo que é exposto, seja uma obra <strong>de</strong> arte, objetos etnográficos, um textocientífico, uma máquina ou uma floresta. Contudo, a exposição não se limita a mostrar;indica também como olhar. A colocação, em um espaço, <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> objetos,supostamente referentes a um tema, não garante sua compreensão. Por isso, éimportante perceber, ain<strong>da</strong>, que a exposição é essencialmente um fato <strong>de</strong> linguagem, umato comunicativo.Nesse sentido, o objetivo ao elaborarmos a exposição é o <strong>de</strong> tornar acessível oinvisível pela articulação <strong>de</strong> diferentes modos semióticos, incluindo os semióforos e nãoos <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado. Em muitos museus a tática foi a <strong>de</strong> excluir a cultura materialcientífica expressa por objetos e substituí-los por outros objetos que pu<strong>de</strong>ssem tornar oinvisível compreensível, assim foca-se somente nos processos. No entanto, esses sãoconstituídos por seqüências <strong>de</strong> narrativas que precisam ser li<strong>da</strong>s pelo visitante <strong>de</strong> umaforma parafrásica, não po<strong>de</strong> haver polissemia, senão os significados serão outros e não oinvisível que queríamos tornar acessível e isso não é muito simples <strong>de</strong> fazer, pois seriapreciso reproduzir as mesmas condições nas quais foram gerados os processos. Emmuitos museus o que temos exposto são fragmentos do processo, fragmentando oinvisível, retirando o visível e a historici<strong>da</strong><strong>de</strong> expressa pela materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos semióforos.Desta forma, essa linguagem dos museus contemporâneos precisa ser expressapor diferentes textos, disponibilizando a articulação entre lugar, objeto e tempo e indicarnovas concepções <strong>de</strong> objeto (material – imaterial); <strong>de</strong> patrimônio tangível e intangível; <strong>de</strong>espaço edificado ou natural; <strong>de</strong> memória, ampliando nosso conceito <strong>de</strong> museu e <strong>de</strong>exposição. Em uma reserva natural, como os Jardins Botânicos, convivem coleções em341


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tespaços fechados, organiza<strong>da</strong>s em função do paradigma <strong>da</strong> sistemática ou <strong>da</strong> evolução;coleções <strong>de</strong> espécies vivas naturalmente distribuí<strong>da</strong>s; aparatos interativos, materiais ouvirtuais; performances, instalações, todos constituindo-se em objetos expostos.Seguramente, tanto o <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong>s coleções para os processos, como apossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uso e <strong>de</strong> ocupação <strong>de</strong> lugares diferenciados por diversos recursosmidiáticos contemporâneos geraram novas articulações entre lugar, objeto e tempo,agora entendidos <strong>de</strong> forma mais amplia<strong>da</strong>.No entanto, é preciso ressaltar que a disposição <strong>de</strong> semióforos, <strong>de</strong> objetos eelementos expositivos (quaisquer recursos) precisa ser apresenta<strong>da</strong> <strong>de</strong> forma que façasentido ao visitante. Observa-se, portanto, que a relação simbólica <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> expor vaialém <strong>de</strong> um simples ato <strong>de</strong> tornar público os semióforos ou os processos. A exposição éum produto resultante <strong>da</strong> execução <strong>de</strong> uma técnica e respon<strong>de</strong> a um objetivo, o <strong>de</strong>produzir um efeito, ou seja, uma intenção. Assim, em sentido amplo, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>como resultante do agenciamento <strong>de</strong> coisas (objetos) em um espaço (lugar) a partir <strong>de</strong>uma intenção, envolvendo táticas - técnicas comunicacionais - e atores sociais, etornando-se capaz <strong>de</strong> atrair o público.Quando estamos nos referindo à articulação entre lugar, objeto e tempo, po<strong>de</strong>mostrazer à discussão os seus correspon<strong>de</strong>ntes nas ciências <strong>da</strong> natureza: espaço, matéria etempo. O lugar é a (re)significação social do espaço; o objeto é resultado <strong>da</strong>stransformações <strong>da</strong> matéria ou representa seus processos <strong>de</strong> transformação e o tempo éo localizador histórico <strong>de</strong>ssas transformações, isto é dos objetos.Objetos, estes, <strong>da</strong> cultura material científica que são constitutivos <strong>da</strong> história <strong>da</strong>ciência e <strong>da</strong> técnica e se o objetivo <strong>da</strong> divulgação científica em museus, viabiliza<strong>da</strong> porexposições, é <strong>de</strong> aculturação do visitante, necessita consi<strong>de</strong>rar os objetos, pois estes sãoa expressão do visível e instigam o invisível, este relacionado a todos os elementosconstituitvos <strong>da</strong> cultura científica, os modos <strong>de</strong> viver e <strong>de</strong> pensar <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>científica.AGRADECIMENTOSÀ minha orientan<strong>da</strong> Andréa Fernan<strong>de</strong>s Costa que tem me instigado a estu<strong>da</strong>r acultura material, os objetos e os museus e ain<strong>da</strong> compartilha comigo suas idéias.342


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<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TSOCIALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO E MUSEUS DECIÊNCIA E TECNOLOGIAJose Mauro Matheus Loureiro *O que me consola é que todos somos assim. Bem limitados econdicionados pelos próprios olhos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes uns dos outros. Étrocando as experiências, numa conversa franca e humil<strong>de</strong>, que nosaju<strong>da</strong>mos mutuamente a enxergar melhor as coisas que vemos, e aromper as barreiras que nos separam sem razão. Pois ninguém é dono<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Intérprete só.Carlos Mesters"Por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong>s palavras"Ciência e tecnologia são elementos essenciais na estruturação <strong>de</strong>sseconjunto complexo e variado que é o mundo contemporâneo. Nesseterritório, a ciência mo<strong>de</strong>rna tornou-se um dos principais subsídios para aconstrução <strong>de</strong> regimes <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, enquanto a tecnologiatransforma nossa cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong> em uma veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte. Os <strong>de</strong>sdobramentos<strong>de</strong>sse contexto são, como todos os <strong>de</strong>mais, ambivalentes. Se críticas po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vemser feitas aos aspectos negativos <strong>da</strong> ciência e tecnologia, não há como <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>reconhecer os benefícios trazidos por ambas a uma parcela <strong>da</strong> civilização. É forçoso,contudo, <strong>de</strong>stacar a <strong>de</strong>pendência e a estreita ligação <strong>da</strong> C&T com as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>sprodutivistas e, portanto, com o Capital e o Mercado. Essa abor<strong>da</strong>gem nos levaria a umalonga e proveitosa reflexão, mas nosso propósito nesse texto limita-se à inter-relação dopatrimônio científico e os museus <strong>da</strong> ciência com a socialização <strong>da</strong> informação.* Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Centro <strong>de</strong> Ciências Humanas. Av. Pasteur, 458, sala,410, Urca, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ – Brasil. jmmloureiro@hotmail.com. Possui graduação em Museologia pelaUNIRIO (1980), mestrado (1996) e doutorado (2000) em Ciência <strong>da</strong> Informação pela UFRJ e pós-doutoradoem Antropologia Social pelo PPGAS/<strong>Museu</strong> Nacional/UFRJ (2006). Atualmente, é professor adjunto IV <strong>da</strong>UNIRIO, consultor ad hoc do CNPq, pesquisador colaborador <strong>da</strong> UFPB, pesquisador colaborador do MAST edo IBICT. Tem experiência na área <strong>de</strong> Museologia, atuando principalmente nos seguintes temas: informação,divulgação científica , museu e memória.345


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA preocupação em preservar e divulgar o patrimônio científico e tecnológicorevestiu-se <strong>de</strong> enorme relevância junto a alguns setores vinculados à área museológica,além <strong>de</strong> educadores, jornalistas e profissionais dos diferentes campos <strong>da</strong> ciência. Asações teóricas e operacionais volta<strong>da</strong>s para esse tipo <strong>de</strong> empreendimento, sem dúvi<strong>da</strong>,encontram-se marca<strong>da</strong>s pelos permanentes esforços teóricos e operacionais <strong>de</strong>stinadosa permitir um contato ca<strong>da</strong> vez maior com a ciência mo<strong>de</strong>rna e a tecnologia. Conceitoscomo ‘vulgarização’, ‘divulgação’, ‘popularização’, educação não-formal, <strong>de</strong>ntre outrossão freqüentemente acionados na construção dos <strong>de</strong>bates relacionados à reflexão doconjunto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que proveriam canais <strong>de</strong> comunicação <strong>da</strong> ciência e tecnologiajunto aos diferentes segmentos sociais.Para introduzir o tema <strong>da</strong> palestra, recorro à noção <strong>de</strong> Socialização <strong>da</strong>Informação, território cujos princípios constitutivos e marcos teóricos se encontrampermanentemente em construção.O termo socialização <strong>de</strong>riva do latim socius, isto é associado. O conceito éencontrado nas ciências humanas e sociais sob diversas concepções e as propostaspara sua efetivação se encontram presentes em diversos mo<strong>de</strong>los e mecanismos. Sem<strong>de</strong>sconhecer a dinâmica teórica e aplicativa no âmbito <strong>da</strong>s Ciências Sociais e Humanas,abordo o conceito <strong>de</strong> ‘socialização’ a partir <strong>da</strong>s contribuições singulares que se<strong>de</strong>senvolvem há algumas déca<strong>da</strong>s no âmbito <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Informação. Essassingulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s advêm, sobretudo, dos esforços voltados para a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> umaárea recente do conhecimento em função <strong>da</strong> qual são empreendidos esforçospermanentes <strong>de</strong> construção teórica e metodológica. Esse empenho construtivo, somadoà crença em seu caráter essencialmente interdisciplinar, facultou a ocorrência <strong>de</strong>diferentes estudos e pesquisas dos horizontes info-comunicacionais relacionados àciência e tecnologia, ao museu e ao patrimônio. Importa sublinhar ain<strong>da</strong> que a Ciência <strong>da</strong>Informação ao ser entendi<strong>da</strong> como uma área em permanente processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>seus parâmetros teóricos e metodológicos impedindo tentativas <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong>ortodoxias e visões unilaterais, incentivando o diálogo e permitindo o exercícioenriquecedor e saudável <strong>da</strong> discordância.No final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970, Simon Nora e Alain Minc vincularam a noção àdisponibilização <strong>de</strong> "mecanismos através dos quais sejam gera<strong>da</strong>s e se harmonizem ascontradições e as liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s", argumentando que as informações dirigi<strong>da</strong>s às gran<strong>de</strong>smassas populacionais são recebi<strong>da</strong>s com reservas por serem percebi<strong>da</strong>s como oriun<strong>da</strong>s346


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong> centros <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e manipulatórias. Os autores enfatizavam a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que os<strong>de</strong>stinatários <strong>da</strong>s informações estivessem......associados à sua elaboração, que os receptores sejam emissores eque as emissões tenham em conta as condições <strong>de</strong> recepção. Estaparticipação não será aceitável a não ser que os grupos antagônicossejam igualmente capazes <strong>de</strong> fabricar, tratar e comunicar sua própriainformação. (1978, p. 123)No Brasil, os primeiros estudos foram <strong>de</strong>senvolvidos por Heloísa TardinChristovão e Gil<strong>da</strong> Braga (1994) no âmbito <strong>da</strong> recuperação <strong>da</strong> informação e <strong>da</strong>comunicação científica. Mais do que “a 'tradução' <strong>da</strong> informação científica e tecnológicapara o público em geral”, as autoras concebem a socialização <strong>da</strong> informação sobretudocomo a ......construção, tratamento e divulgação <strong>da</strong> informação <strong>de</strong> diferentes tiposem parceria, ou seja, a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição conjunta por parte <strong>de</strong>produtores e usuários, que aqui se con-fundiriam, <strong>de</strong> suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,e <strong>de</strong> quais seriam os caminhos (metodologias) mais a<strong>de</strong>quados paraatendê-los.Estimulando a relação dialógica dos sujeitos e dos contextos sócio-culturaisdiversificados, a socialização <strong>da</strong> informação se apresenta como alternativa à elitização <strong>da</strong>ciência, estimulando sua relação com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em seu todo. Privilegiandoabor<strong>da</strong>gens participantes, almeja a participação cooperativa, voluntária e solidária e a recontextualizaçãopermanente <strong>da</strong> informação como instrumento <strong>da</strong> práxis.Entre os autores que refletiram sobre questões referentes ao conceito <strong>de</strong> práxis,privilegiamos Paulo Freire (1987, p. 92), por reconhecer em sua obra a preeminência <strong>da</strong>reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social e objetiva como fruto <strong>da</strong> ação humana. A transformação <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>é abor<strong>da</strong><strong>da</strong>, assim, como tarefa histórica que compete aos homens enquanto seres <strong>da</strong>práxis. Esta, por sua vez, é vista como “reflexão e ação ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente transformadora<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>” e como “fonte <strong>de</strong> conhecimento reflexivo e criação". Cabe ressaltar queação e reflexão não se dão em bases dicotômicas, mas simultaneamente, e direciona<strong>da</strong>sà transformação <strong>de</strong> estruturas.Conceitos e noções instrumentalizados por Paulo Freire em seu sistemape<strong>da</strong>gógico são empregados inicialmente nas ações <strong>de</strong> socialização <strong>da</strong> informação,como especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Informação, <strong>de</strong> modo a subsidiar a horizontali<strong>da</strong><strong>de</strong>orgânica <strong>de</strong> seus processos info-comunicacionais. Assim como a “pe<strong>da</strong>gogia do347


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Toprimido” proposta por Paulo Freire, a socialização <strong>da</strong> informação não busca explicar areali<strong>da</strong><strong>de</strong> aos sujeitos, mas sim estabelecer um diálogo voltado para a transformaçãoconjunta <strong>de</strong>sta reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.O diálogo é valorizado na medi<strong>da</strong> em que se trata <strong>de</strong> “uma exigência existencial",não se limitando à mera troca <strong>de</strong> idéias e menos ain<strong>da</strong> à inculcação <strong>de</strong> idéias <strong>de</strong> umsujeito no outro. Trata-se <strong>de</strong> uma relação horizontal em que não há espaço para a autosuficiência,nem existem sábios ou ignorantes, mas "homens que, em comunhão, buscamsaber mais" (FREIRE, 1987, p. 79-81).A socialização <strong>da</strong> informação, assim como a obra freireana, encontram-sevincula<strong>da</strong>s à órbita política por não se restringirem à compreensão, mas proporem aintervenção na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Des<strong>de</strong> sua gênese, caminhos, trilhas e estratégias <strong>da</strong> socialização <strong>da</strong> informaçãono interior <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Informação implicam na opção metodológica pela pesquisaparticipante.Tal tipo <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>senvolve-se, principalmente, no âmbito <strong>da</strong>s ações sociais eeducacionais dirigi<strong>da</strong>s à concretização <strong>de</strong> interesses e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos segmentospopulares. Concebi<strong>da</strong> como nova forma <strong>de</strong> conhecimento coletivo "do Mundo e <strong>da</strong>scondições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> pessoas, grupos e classes populares", Carlos Rodrigues Brandãoafirma que a pesquisa participante articula estratégias que permitam a classes e gruposadquirirem o direito e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> refletirem, produzirem e administrarem a utilização dosaber que possuem a respeito <strong>de</strong> si. Dessa maneira, pesquisadores e pesquisadostornam-se “sujeitos <strong>de</strong> um mesmo trabalho comum”, cujos frutos se uniriam aos <strong>de</strong>maisinstrumentos voltados para as conquistas populares. (BRANDÃO, 1986, p. 9-11)A participação, característica essencial <strong>da</strong> pesquisa participante, tem sido alvo <strong>de</strong><strong>de</strong>bates. Questiona-se a conotação i<strong>de</strong>ológica que reveste o aspecto participativo <strong>da</strong>pesquisa, o qual po<strong>de</strong> ser transformado, por um lado, em manipulação e, por outro, emsimples ativismo. Essa questão referente à participação necessita <strong>de</strong> maior explicitação eaprofun<strong>da</strong>mento. Embora reconhecendo a pertinência <strong>de</strong> tais críticas, acreditamos que osestilos <strong>de</strong> pesquisa participante têm o indispensável potencial para aprimorar seusarcabouços teóricos, metodológicos e práticos. Por outro lado, ao assumir postura sociale política <strong>de</strong> tornar o empreendimento científico disponível às classes populares, <strong>de</strong>modo a capacitá-las para operar transformações frente às estruturas sociais, políticas eeconômicos dominantes, a pesquisa participante, ain<strong>da</strong> que repleta <strong>de</strong> contradições eparadoxos, mostra-se eficiente instrumento <strong>de</strong> apoio a mu<strong>da</strong>nças que possam beneficiar348


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tgrupos tradicionalmente marginalizados. A pesquisa <strong>de</strong> caráter participante preten<strong>de</strong>-se,ain<strong>da</strong>, como um canal <strong>de</strong> diálogo entre a ciência e as experiências culturais popularesque po<strong>de</strong>m resultar em solo fecundo para possíveis rupturas em ambos os horizontes.Tal como apresenta<strong>da</strong> nos parágrafos anteriores, a socialização <strong>da</strong> informaçãocomo especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Ciência <strong>da</strong> Informação, evi<strong>de</strong>ncia suas dimensões política ei<strong>de</strong>ológica. Tais dimensões, presentes também na ciência pratica<strong>da</strong> na aca<strong>de</strong>mia, nãoinvali<strong>da</strong>m sua proposta <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um processo info-comunicativo no qualemissores e receptores são posições horizontalmente intercambiáveis e voltados para<strong>de</strong>man<strong>da</strong>s coletivas.A Socialização <strong>da</strong> Informação alinhou-se em seus primórdios ao universo <strong>de</strong>autores inspirados nas obras <strong>de</strong> Karl Marx a fim <strong>de</strong> prover um solo essencialmentevoltado ao diálogo, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e à autonomia. Suas premissas essenciais eram, epermanecem sendo, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> teorias e ações que dialoguem e questionemtodo tipo <strong>de</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e discurso com pretensões <strong>de</strong> ‘ver<strong>da</strong><strong>de</strong> universalizante’.Intenta-se que as operações no interior do social nas quais se encontrem envolvidosprocedimentos <strong>de</strong> transferência <strong>da</strong> informação ocorram sem os elementos coercitivos econvencionais estipulados em normas, convenções e mo<strong>de</strong>los que privilegiam eendossam a hegemonia <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> mundo e grupos sociais dominantes.Nesse sentido, a socialização <strong>da</strong> informação não procura somente <strong>de</strong>stacar oselementos formais <strong>da</strong> diferença, mas propor interlocuções e conexões nos quaisdiferentes saberes e práticas possam convergir para a construção <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates e solução<strong>de</strong> problemas sem per<strong>de</strong>r suas características distintivas. Prevaleceriam modos <strong>de</strong>organização integradores nos quais emissores e receptores <strong>da</strong> informação trocariampermanentemente <strong>de</strong> pólo buscando incluir as variáveis que compõem os diversossaberes oci<strong>de</strong>ntais e não-oci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> maneira a ampliar direitos, regras e limites nasrelações dos agentes com o mundo natural e social.Os conceitos e hipóteses apresentados no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> socialização <strong>da</strong>informação possuem efetivamente contornos utópicos que transparecem em sua ambição<strong>de</strong> eliminar ou, pelo menos, reduzir o caráter conflitivo inerente às socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas.Por outro lado, contudo, apresenta-se como um eficaz instrumento <strong>de</strong> estruturação <strong>de</strong>modos narrativos que auxiliam na eluci<strong>da</strong>ção e <strong>de</strong>núncia dos interesses políticos,i<strong>de</strong>ológicos e econômicos que se encontram camuflados nos diferentes conceitos,hipóteses e produtos elaborados no mundo oci<strong>de</strong>ntal contemporâneo. Ao propor ainvenção <strong>de</strong> dispositivos que incentivem e apóiem a aliança e a conjugação <strong>de</strong> saberes e349


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ttécnicas, a socialização <strong>da</strong> informação nos convi<strong>da</strong> a incorporar valores e conhecimentosdissociados do universo científico, mas que dão significado e sentido a grupos sociaisheterogêneos. Trata-se <strong>de</strong> reconhecer que os conhecimentos gerados pelo ‘Outro’,embora dissociado e excluído pela racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> instrumental que caracteriza a ciênciamo<strong>de</strong>rna, mostram-se eficazes frente aos <strong>de</strong>safios subjetivos e sócio-culturais impostospela existência humana.A aplicação dos pressupostos <strong>da</strong> socialização <strong>da</strong> informação nos quadros dopatrimônio e dos museus <strong>de</strong> ciência e tecnologia requer a adoção <strong>de</strong> uma releitura radical<strong>de</strong> ambos os domínios. É necessário simultaneamente re<strong>de</strong>finir os conceitosfun<strong>da</strong>mentais <strong>de</strong> invenção <strong>de</strong> patrimônios e examinar criticamente as funções e objetivos<strong>de</strong>ssas instituições. Os profissionais <strong>da</strong> área <strong>de</strong>vem ter em conta que se encontraminseridos em um campo relacional – a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> humana - cuja trama é forma<strong>da</strong> pordiferentes racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sejos e fluxos <strong>de</strong> conhecimento. Gerir o patrimônio e osmuseus <strong>de</strong> ciência e tecnologia sem dialogar com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> como um todo equivale arenunciar à singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do olhar do “Outro” acreditando na ‘onipotência’ seletiva <strong>de</strong>especialistas ungidos pelas aca<strong>de</strong>mias para nos dizer o que lembrar e o que preservar.Tudo o que foi dito até aqui po<strong>de</strong> ser resumido em uma passagem <strong>de</strong> JoãoGuimarães Rosa em “Gran<strong>de</strong> Sertão: Vere<strong>da</strong>s”. A fala do jagunço Riobaldo expressacom poesia e profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> aquilo que se encontra por trás do que <strong>de</strong>nominamos “sensocomum”:Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobrecoitado... Eu quase que na<strong>da</strong> não sei. Mas <strong>de</strong>sconfio <strong>de</strong> muita coisa. Osenhor conce<strong>de</strong>ndo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre. - osenhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa porfundo <strong>de</strong> todos os matos, amém.BIBLIOGRAFIABRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986,211 p.CHRISTOVÃO, Heloisa Tardin, BRAGA, Gil<strong>da</strong> Maria. Ciência <strong>da</strong> Informação e Sociologiado Conhecimento Científico: a intertematici<strong>da</strong><strong>de</strong> plural (Sobre "A ciência e seu público" <strong>de</strong>Léa Velho: um ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Ciência <strong>da</strong> Informação), Transinformação, v. 9, n 3, p. 33- 45, set/<strong>de</strong>z 1997.FREIRE, Paulo. Pe<strong>da</strong>gogia do oprimido. 24 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1987. 184 p.NORA, S., MINC, A. L'informatisation <strong>de</strong> la societé. Paris: La Documentation Française,1978. 162 p.350


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TNOTAS SOBRE O PAPEL DAS COLEÇÕESMUSEOLÓGICAS NA DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIAMaria Lucia <strong>de</strong> Niemeyer Matheus Loureiro *Otexto que se segue tem origem em um projeto <strong>de</strong> pesquisa intitulado“Divulgação científica em museus: as coleções e seu papel nalinguagem expográfica”. O projeto, <strong>de</strong>senvolvido no âmbito <strong>da</strong>Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Museologia do MAST, tem como foco os processos<strong>de</strong> musealizaçao nos domínios <strong>da</strong> ciência, que se constituem marcos na trajetória <strong>de</strong>objetos - ou na sua biografia, como diriam Samuel Albert e Igor Kopitoff.1A divulgação científica po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como "o uso <strong>de</strong> processos e recursostécnicos para a comunicação <strong>da</strong> informação científica e tecnológica ao público em geral"(BUENO apud ALBAGLI, 1996, p. 397). Implica na tradução <strong>de</strong> uma linguagemespecializa<strong>da</strong> para uma leiga, visando a atingir um público mais amplo.Sarita Albagli (1996, p 397) adota como sinônimos os termos popularização <strong>da</strong>ciência e divulgação científica, preferindo este último por ser mais freqüente na literatura.Marcelo Gomes Germano (2005, p. 1), por sua vez, prefere o termo popularização <strong>da</strong>ciência, ressaltando que seu uso supõe duas “premissas básicas: Primeiro, oreconhecimento <strong>de</strong> que a ciência não é popular e afastou-se perigosamente do domíniopúblico. Segundo, que é possível e necessário trabalhar no sentido <strong>de</strong> vencer o crescenteabismo entre ciência e povo, entre ciência e classes populares”.* <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ;marialucia@mast.br. Possui graduação em Museologia pelo <strong>Museu</strong> Histórico Nacional - atual Escola<strong>de</strong> Museologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro (1976) -, Mestrado (1998) eDoutorado (2003) em Ciência <strong>da</strong> Informação pelo IBICT / UFRJ. Tem experiência nas áreas <strong>de</strong>Museologia e Ciência <strong>da</strong> Informação. Realiza pesquisas relaciona<strong>da</strong>s à divulgação científica,linguagens expositivas e processos <strong>de</strong> musealização nos domínios <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> ciência.Atualmente é tecnologista pleno do MAST.351


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TSurgido na França do século XIX como “uma forma alternativa ao conceito <strong>de</strong>vulgarização <strong>da</strong> ciência”, o termo não encontraria aceitação naquele país, alcançandomaior repercussão entre os britânicos. (GERMANO, 2005, p.10)Albagli enfatiza a “transformação radical” opera<strong>da</strong> na relação entre ciência esocie<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial.(...) se foi no período pós-guerra que a ciência alcançou o auge do seuprestígio, foi também a partir <strong>de</strong> então que sua influência sobre aeconomia e sobre a vi<strong>da</strong> cotidiana dos ci<strong>da</strong>dãos tornou-se mais óbvia,atraindo a atenção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre si e ampliando a consciência e apreocupação com respeito aos impactos negativos do progressocientífico-tecnológico. Essa preocupação manifestou-se maisclaramente ao final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 60 e início dos anos 70, no quadro <strong>de</strong>turbulência política e cultural que caracterizou aquele período, levando,por conseguinte, ao aumento <strong>da</strong>s atenções sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>melhor informar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> a respeito <strong>da</strong> ciência e <strong>de</strong> seus impactos.Foi nesse contexto que afloraram, com maior sistematici<strong>da</strong><strong>de</strong>, iniciativasorienta<strong>da</strong>s para a popularização <strong>da</strong> ciência e tecnologia. (ALBAGLI,Sarita, 1996, p. 397)Embora seja bem mais freqüente a associação <strong>da</strong>s práticas <strong>de</strong> divulgaçãocientífica com os chamados centros <strong>de</strong> ciência (que não se <strong>de</strong>dicam necessariamente àpreservação e divulgação <strong>de</strong> coleções), o “papel educacional e informativo dos museus<strong>de</strong> ciência e tecnologia sempre esteve presente”, como observa Albagli, que ressalta avalorização sócio-econômica <strong>da</strong> ciência e tecnologia a partir <strong>da</strong> Revolução Industrial, oque teria contribuído para o estabelecimento <strong>de</strong> instituições museológicas. A criação do<strong>Museu</strong> do Conservatoire National <strong>de</strong>s Arts et Metiers (Paris, 1794) teria sido “motiva<strong>da</strong>pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> prover educação profissional para trabalhadores em mecânica”,enquanto o Science <strong>Museu</strong>m (Londres, 1857) e o Deutshes <strong>Museu</strong>m (Berlim, 1906)seriam “também exemplos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> motivação”. (ALBAGLI, 1996, p. 400)2Existe uma unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os estudiosos dos museus em relação à suaorigem na sistematização <strong>da</strong>s coleções dos chamados “gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.Quanto aos museus <strong>de</strong> ciências, viriam <strong>de</strong> tradições diferentes: museus <strong>de</strong> ciência etecnologia como o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins - MAST <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> umalinhagem <strong>de</strong> instituições (como o já mencionado Conservatoire <strong>de</strong>s Arts et Métiers <strong>de</strong>Paris) comprometi<strong>da</strong>s com a preservação e difusão do patrimônio científico e tecnológico,enquanto os museus <strong>de</strong> história natural <strong>de</strong>dicaram-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas origens à coleta econservação sistemáticas <strong>de</strong> espécimes com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estudo.352


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TComo reunir em uma mesma abor<strong>da</strong>gem museus <strong>de</strong> matrizes distintas, voltados àCiência & <strong>Tecnologia</strong>, História Natural, jardins botânicos e zológicos, centros <strong>de</strong> ciência?Em primeiro lugar, não são tão níti<strong>da</strong>s as fronteiras entre os diferentes tipos <strong>de</strong> museus<strong>de</strong> ciência, e mesmo entre estes e os museus em geral, como bem observou FernandoBragança Gil (1988, p. 72-73). Em segundo lugar, mas não menos importante, adivulgação científica é em si uma questão interdisciplinar por <strong>de</strong>finição e que, por issomesmo, ultrapassa as “fronteiras” entre as diferentes ciências.Ao abor<strong>da</strong>r as distintas matrizes e tradições dos museus <strong>de</strong> ciência, MartaLourenço (2000, p. 3-4) reconhece uma raiz comum no <strong>Museu</strong> Ashmolean, que afirmaser o “primeiro museu do mundo, no sentido ‘mo<strong>de</strong>rno’ do termo”. O museu tem comoembrião uma coleção doa<strong>da</strong> à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford, em 1677, em que coexistiamespécimes <strong>de</strong> história natural, objetos <strong>de</strong> arte e uma Officina Chimica on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o finaldo século XVII teriam sido realiza<strong>da</strong>s <strong>de</strong>monstrações públicas regulares”.Antes <strong>de</strong> passar às consi<strong>de</strong>rações sobre as coleções, <strong>de</strong>ixo claro que ao falar emmuseus refiro-me ao seu sentido amplo: não apenas às instituições auto-intitula<strong>da</strong>s“museu” mas também aos jardins botânicos e zoológicos, herbários e outras coleções <strong>de</strong>estudo.3O termo coleção, entre outros significados, <strong>de</strong>signa um conjunto ou reunião <strong>de</strong>itens <strong>de</strong> uma mesma natureza ou que guar<strong>da</strong>m alguma relação entre si. Quanto ao termoacervo, remete à idéia <strong>de</strong> estoque, quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> e, no universo dos museus <strong>de</strong>signa, <strong>de</strong>modo geral, o conjunto <strong>de</strong> bens sob sua guar<strong>da</strong>. Em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua característica <strong>de</strong>artefato, no entanto, as noções <strong>de</strong> conjunto ou acumulação não dão conta <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong>“coleção”, que é resultante <strong>de</strong> uma ação humana intencional, por meio <strong>da</strong> qual algunselementos materiais são selecionados, removidos <strong>de</strong> seus contextos <strong>de</strong> origem ereunidos em um conjunto artificial. Em uma coleção museológica, <strong>de</strong>ve ser ressaltadoain<strong>da</strong> o ingresso dos objetos em um espaço institucionalizado, gerador <strong>de</strong> processosinformacionais que lhes agregam novos valores e conferem novos papéis e funçõesprovenientes <strong>de</strong> sua re-significação.Krzysztof Pomian (1984, p. 53) <strong>de</strong>fine a coleção como “qualquer conjunto <strong>de</strong>objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou <strong>de</strong>finitivamente fora do circuito <strong>de</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s econômicas, sujeitas a uma proteção especial, num local fechado preparadopara esse fim e expostos ao olhar do público". Para o autor, trata-se <strong>de</strong> uma práticauniversal do qual gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, coleções <strong>de</strong> estudo e o museu mo<strong>de</strong>rno353


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tseriam manifestações singulares. Coleções serviriam para ligar as esferas do visível e doinvisível, separa<strong>da</strong>s até o Paleolítico Superior, quando o invisível teria se projetado novisível por meio <strong>de</strong> uma nova categoria <strong>de</strong> objetos que provocaram uma fissura na esferado visível: <strong>de</strong> um lado, haveria as coisas úteis, que se consomem, e <strong>de</strong> outro, ossemióforos, objetos “dotados <strong>de</strong> um significado”, os quais, por não serem manipulados,mas simplesmente expostos ao olhar, não sofreriam usura. (POMIAN, 1984, p. 71)Uma nova categoria <strong>de</strong> semióforos (“aqueles que se estu<strong>da</strong>m”) apareceria naEuropa Oci<strong>de</strong>ntal a partir do século XV, vincula<strong>da</strong> à emergência <strong>de</strong> novos atores sociais(posteriormente <strong>de</strong>nominados humanistas), e novas atitu<strong>de</strong>s em relação “ao passado, àspartes <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s do espaço terrestre, à natureza”. Essas atitu<strong>de</strong>s se evi<strong>de</strong>nciam nareunião <strong>de</strong> antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> objetos provenientes <strong>de</strong> locais longínquos, <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> arte e<strong>de</strong> instrumentos científicos. As coleções <strong>de</strong> instrumentos científicos também estariamvincula<strong>da</strong>s à emergência <strong>de</strong> novos atores sociais (posteriormente <strong>de</strong>nominadoscientistas), e são emblemáticos <strong>de</strong> uma nova atitu<strong>de</strong> em relação ao invisível e <strong>da</strong>tentativa <strong>de</strong> restringir seus limites. (POMIAN, 1984, p. 75-78)Norton Wise (2006, p. 75) também enfatiza a importância <strong>de</strong> “tornar novas coisasvisíveis - ou tornar coisas familiares visíveis <strong>de</strong> novas formas”, <strong>de</strong>stacando os "novosmundos” que se abriram à percepção visual, como as “montanhas e vales na superfície<strong>da</strong> lua, que se tornaram visíveis pelo telescópio <strong>de</strong> Galileu”.Em um estudo sobre colecionadores e coleções, Philipp Bloom (2003, p.30) ressalta “uma explosão <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> científica e colecionadora inicia<strong>da</strong> na Itália doséculo XVI”, <strong>da</strong> qual ocuparia “a linha <strong>de</strong> frente” Ulisse Aldrovandi, com seu museu.Até o século XV, colecionar havia sido privilégio <strong>de</strong> nobres e <strong>da</strong> Igreja, queacumulavam objetos preciosos ou relíquias sagra<strong>da</strong>s. Cem anos após a <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong>América, foi pela primeira vez abala<strong>da</strong> a crença <strong>de</strong> que “não havia fenômeno natural,nem cultural, nem animal nem sensação que já não tivessem sido interpretados<strong>de</strong>finitivamente por Aristóteles e Plínio, por Cícero ou Pitágoras. “Coisas que os antigosnão conheceram” são menciona<strong>da</strong>s por nomes como Jean <strong>de</strong> Léry, viajante francês quepublicou em 1578 a história <strong>de</strong> sua viagem às terras do Brasil. (BLOOM, 2003, p. 32-35)Conforme o autor, as explicações para o que ele chama “surto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>colecionadora” do século XVI estariam “um pouco neste mundo e um pouco no outro”.Por um lado, a ampliação <strong>da</strong>s fronteiras do conhecimento trazia novos questionamentose novos fenômenos que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>vam abor<strong>da</strong>gens novas - telescópios e microscópiospermitiam aos estudiosos explorarem o macrocosmo e “as pequenas coisas”. Por outro,354


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tem um mundo “ca<strong>da</strong> vez mais secular e capitalista”, ocorria também uma “mu<strong>da</strong>nça namaneira <strong>de</strong> perceber a morte e o mundo material”. (Bloom, 2003, p. 37)Des<strong>de</strong> o final do século XVII e, sobretudo, no XVIII, uma “nova maneira <strong>de</strong> olhar omundo” e uma “brusca mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> natureza” no ato <strong>de</strong> colecionar levariam a “formasmais metódicas <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r o mundo material” e à especialização <strong>da</strong>s coleções. CarlLineu representaria a vanguar<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma mu<strong>da</strong>nça em que a “ambição <strong>de</strong> colecionar tudoque fosse digno <strong>de</strong> nota” foi substituí<strong>da</strong> por “uma divisão <strong>de</strong> disciplinas”, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s quaissurgiria o novo projeto <strong>da</strong> “classificação racional e a <strong>de</strong>scrição completa <strong>da</strong> natureza”.(BLOOM, 2003, p. 107)4Samuel Alberti (2005, p. 560-561) abor<strong>da</strong> a história dos museus por meio dosobjetos em suas coleções, concentrando-se em caminhos passíveis <strong>de</strong> serem exploradospor historiadores <strong>da</strong> ciência. A partir <strong>de</strong> Kopytoff, sugere que os objetos <strong>de</strong> museusteriam uma ‘vi<strong>da</strong>’ ou ‘carreira’ metafórica, e que o estudo <strong>de</strong> suas biografias seria“especialmente fecundo no contexto do museu”. Adverte, no entanto, para o risco <strong>de</strong>atribuir “<strong>de</strong>masiado po<strong>de</strong>r às próprias coisas”, o que equivaleria a “diminuir a agência dosseres humanos na história”. São estes, prossegue o autor, que imbuem as coisas “<strong>de</strong>valor e sentido, manipulando e contestando seu significado ao longo do tempo”.Susan Pearce (1993, p. 139) enfatiza o papel fun<strong>da</strong>mental dos museus nainteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias científicas como as relações taxonômicas <strong>de</strong> espécies animais evegetais, que se tornariam “conceitos significativos” por meio do “espaço organizado e asvitrines em série” dos museus. O mesmo po<strong>de</strong> ser dito sobre “as seqüências cronológicas<strong>de</strong> material histórico ou seqüências tipológicas <strong>de</strong> artefatos”.Coleções <strong>de</strong> museus são artefatos capazes <strong>de</strong> conferir visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>sdispersas no tempo e/ou no espaço e, portanto, naturalmente invisíveis. Idéias econceitos como “espécie”, “gênero” e “família”, por exemplo, são visíveis apenas através<strong>da</strong> reunião artificial <strong>de</strong> espécimes vivos ou <strong>de</strong> seus “fragmentos”, naturalmente dispersos.É útil, aqui, frisar que os museus <strong>de</strong> “história natural” operam tradicionalmente umadistinção entre as coleções <strong>de</strong> estudo, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> aos cientistas, e as coleções a seremexpostas ao público, dirigi<strong>da</strong>s aos não especialistas. Essa prática foi inaugura<strong>da</strong> em 1891pelo <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> História Natural <strong>de</strong> Berlim.<strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> ciência li<strong>da</strong>m, freqüentemente, com reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s (acontecimentos,eventos, e fenômenos) inacessíveis à percepção humana – por serem extremamente355


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tpequenos, gran<strong>de</strong>s ou distantes, dispersos no tempo ou no espaço - merecem referênciaespecial “fragmentos do mundo” <strong>de</strong> naturezas muito diversas: <strong>de</strong> espécimes botânicos ezoológicos conservados in vivo ou in vitro a imagens e instrumentos científicos. Entreestes últimos, enfatizamos os instrumentos óticos, cuja proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar imagens e<strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao infinitamente distante (as lunetas, por exemplo) ou infinitamentepequenos (como os microscópios) lhes conferem um duplo papel: não apenas sãorecursos atraentes em exposições interativas, mas documentam o “fazer” <strong>da</strong> ciência.Jorge Wagensberg (2005, p. 310), para quem reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a “palavramuseológica”, <strong>de</strong>fine o museu como “reali<strong>da</strong><strong>de</strong> concentra<strong>da</strong>”, enfatizando que ele é“insubstituível no mais importante estágio do processo cognitivo: o início”, eacrescentando que “a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> estimula mais que qualquer uma <strong>de</strong> suasrepresentações”. Através <strong>de</strong> suas coleções, os museus <strong>de</strong> ciência são capazes <strong>de</strong>conferir materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s dispersas no tempo e/ou no espaço - e,portanto, naturalmente invisíveis.REFERÊNCIASALBAGLI, Sarita. Divulgação Científica: informação científica para a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia? RevistaCiência <strong>da</strong> informação, Brasília, v. 25, n. 3, p. 396-404, 1996.ALBERTI, Samuel. J. M. M. Objects and the museum. Isis, v. 96, p. 559-571, 2005.BLOOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima <strong>de</strong> colecionadores e coleções. Rio <strong>de</strong>Janeiro: São Paulo, Record, 2003.GERMANO, Marcelo Gomes. Popularização <strong>da</strong> Ciência como ação cultural libertadora. VCOLÓQUIO INTERNACIONAL PAULO FREIRE. Recife, PE, 19-22 setembro 2005.GIL, Fernando Bragança. <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> ciência: preparação do futuro, memória do passado.Revista <strong>da</strong> <strong>Cultura</strong> Científica, Lisboa, n. 3, p. 72-89, 1988.KOPYTOFF, Igor. The <strong>Cultura</strong>l Biography of Things. In: APPADURAI, Arjun (ed.). TheSocial Life of Things: Commodities in <strong>Cultura</strong>l Perspective. Cambridge: Cambridge Univ.Press, p. 64-91, 1986.LOURENÇO, Marta. Catarino. 2000. <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> Ciência e Técnica: que objectos?Dissertação (Mestrado). Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa, 2000.PEARCE, Suzan M. <strong>Museu</strong>ms, objects and collections. Washington: SmthsonianInstitution Press, 1993.POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: Enciclopedia Einaudi v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional,Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, p. 51-86, 1984.WAGENSBERG, Jorge. The “total” museum, a tool for social change. História, Ciências,Saú<strong>de</strong>, v. 12 (suplemento), p. 309-332, 2005.WISE, M. Norton. Making Visible. Isis, v. 96, p. 75-82, 2006.356


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TPATRIMÔNIO CULTURAL INTANGÍVEL, DISCURSOE PRESERVAÇÃOLuiz Carlos Borges *PATRIMÔNIO E DISCURSONão é difícil observar, na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma preocupação globaliza<strong>da</strong> em torno<strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa, documentação e preservação <strong>de</strong> bens culturais, tangíveis ouintangíveis 1 , sejam tradicionais ou contemporâneos. Dentre as muitasquestões esse tipo <strong>de</strong> fenômeno levanta, chamam a atenção as discussões relativas aopatrimônio cultural intangível. No conjunto dos patrimônios, ditos culturais ou simbólicos,<strong>de</strong>ve-se aqui <strong>de</strong>stacar aqueles que integram o campo científico e tecnológico, tais como,os sistemas, os mo<strong>de</strong>los, as teorias, as nomenclaturas e taxonomias, os quais, <strong>da</strong>mesma forma que os objetos que <strong>da</strong>í são oriundos, <strong>de</strong>vem igualmente ser alvo <strong>de</strong>políticas, metodologias e ações <strong>de</strong> preservação. O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é justamenteapresentar uma discussão preliminar <strong>de</strong> caráter teórico, a partir <strong>da</strong> perspectiva teóricometodológica<strong>da</strong> Análise <strong>de</strong> Discurso, acerca <strong>da</strong> política patrimonializante e <strong>de</strong>preservação. Para efeito <strong>de</strong> ilustração serão apresentados dois exemplos <strong>de</strong> “objetos”intangíveis sujeitos à preservação, um relativo à ciência lingüística, e outro àetnocosmologia.* <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Astronomia e Ciências Afins. Rua General Bruce, 586, Rio <strong>de</strong> Janeiro-RJ-Brasil, CEP 20921-030.www.mast.br. lcborges@mast.br. Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio-UNIRIO/MAST. Analista <strong>de</strong> Discurso, com doutorado em Linguística (Unicamp, 1999), <strong>de</strong>senvolve ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong> pesquisa na área <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Ciência, com foco em Etnociência, tendo por objeto a astronomia e acosmologia dos índios Guarani Mbyá. Outras áreas <strong>de</strong> interesse acadêmico referem-se ao campo científico(os discursos intra e extra campo) e a questões relaciona<strong>da</strong>s à museologia e ao patrimônio.1 Seria interessante fazer uma reflexão em torno <strong>de</strong>ssas nominações diglóssicas impostas aos bens ditospatrimonializáveis: material/ imaterial, tangível/intangível (por exemplo, quando se diz que se <strong>de</strong>ve buscaralgo que está além <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do objeto: quais são ontológica e gnosiologicamente os sentidos <strong>de</strong>ssa“materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>”? Discutir, nas mesmas bases, o próprio termo que nomeia a categoria: patrimônio (notar queneste caso também existe um jogo <strong>de</strong> sentidos com base na oposição entre patrimônio sem adjetivação epatrimônio com adjetivação (simbólico, cultural) seria também bastante provocativo.357


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TInicialmente e à guisa <strong>de</strong> ressalva, não faz parte do escopo <strong>de</strong>ste trabalhoenvere<strong>da</strong>r por uma discussão teórica e metodológica <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m disciplinar no campoespecífico do patrimônio ou <strong>da</strong> preservação, no que tange às suas teorias, métodos epráticas. Antes, tomar-se-á como base <strong>de</strong> argumentação noções mais gerais quepermitam uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> caráter transdisciplinar.Com base nas diversas formulações encontra<strong>da</strong>s em diferentes CartasPatrimoniais (INSTITUTO..., 2004), po<strong>de</strong>-se resumi<strong>da</strong>mente dizer que são consi<strong>de</strong>radosbens ou patrimônios culturais (materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis) os produtose testemunhos dos diversos povos e que, enquanto tais, fazem parte do ethos <strong>de</strong>ssespovos e <strong>de</strong> suas múltiplas tradições histórico-culturais, tais como, os bens móveis eimóveis, as expressões artísticas e os conhecimentos produzidos acerca <strong>da</strong> natureza edo universo, incluí<strong>da</strong> a mitologia, as tecnologias, os rituais, as dietas alimentares e tudoaquilo que compreen<strong>de</strong> a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> étnica, social e gnosiológica do gênero humano. A<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> um objeto, expressão ou manifestação cultural como bem patrimonial<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> seu reconhecimento e sua significação histórico-cultural para uma<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> nação, povo, comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ou segmento populacional. Dessa perspectiva, ospatrimônios culturais integram os processos i<strong>de</strong>ntitários <strong>de</strong> um povo ou nação. Destarte,o operador conceitual significação cultural <strong>de</strong>signará o valor estético, histórico, científico,técnico ou social <strong>de</strong> que um <strong>de</strong>terminado bem encontra-se investido pelas geraçõespassa<strong>da</strong>s, presentes ou futuras, ou ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong> estratégia <strong>de</strong> constituição imaginária dotempo sócio-histórico (MORAES, 2007).Uma concepção mais ampla <strong>de</strong> patrimônio cultural, nota<strong>da</strong>mente no que se refereao patrimônio cultural intangível que, <strong>de</strong> acordo com Boylan (2006), é mais orientado apessoas do que a objetos, requer certamente que se possa avançar no equacionamento<strong>da</strong>s correlações intrínsecas entre a história e a cultura, para que seja possível apreen<strong>de</strong>re compreen<strong>de</strong>r o bem ou valor objeto <strong>de</strong> uma ação patrimonial. O que se <strong>de</strong>ve ressaltar éo caráter <strong>de</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e, por conseguinte, <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e historici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>qualquer patrimônio (objeto ou política), uma vez que, como afirma Marx, as esferas <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> social, política e cultural são condiciona<strong>da</strong>s pelo modo <strong>de</strong> produção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material(MARX, 1978).No Brasil, a nova política <strong>de</strong> estado concernente ao patrimônio cultural imaterial eintangível remonta ao Decreto 3.551 <strong>de</strong> 4.8.2000 que instituiu o inventário dos bens quepertençam a essa categoria, com base na Recomen<strong>da</strong>ção sobre a salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> culturatradicional e popular, aprova<strong>da</strong> pela Conferência Geral <strong>da</strong> UNESCO em 1989. To<strong>da</strong>via,358


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Talguns problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m conceitual e prática se impõem. Em primeiro lugar, a<strong>de</strong>finição mesma do que é, e para quem, patrimônio cultural; em segundo, a distinçãoentre patrimônio material e imaterial, pois em muitos casos essa distinção não é banal;em terceiro, a <strong>de</strong>finição do que é, e para quem, tradicional – especialmente quando setrata <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> técnicas (<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico).Regina Abreu propõe uma <strong>de</strong>finição que, embora seja consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> provisória, aju<strong>da</strong> aequacionar em bases razoavelmente bem alicerça<strong>da</strong>s a relação entre diferentes modos<strong>de</strong> produção <strong>de</strong> saber. Segundo esta autora, por conhecimentos tradicionais <strong>de</strong>ve-seenten<strong>de</strong>r aqueles saberes que são “<strong>de</strong>finidos como inovações e criações <strong>de</strong> basetradicional, resultantes <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual” <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que são “produtoras <strong>de</strong>saberes singulares, específicos e únicos” (ABREU, 2003, p. 39).Com relação ao patrimônio intangível, também dito imaterial, importa, ain<strong>da</strong>,discutir a base conceitual que sustenta discursivamente a categorizaçãointangível/imaterial. O que constitui o cerne <strong>de</strong>ssa questão, certamente i<strong>de</strong>ológica (lógicae argumentativa; teórica e política) e, por conseguinte, discursiva, é o recurso a umataxonomia que distingue material/tangível <strong>de</strong> um lado e imaterial/intangível <strong>de</strong> outro e,subjacentemente, um controle sígnico-semântico que unidireciona os sentidos dos doistermos-chave. Depurando-os e, ao mesmo tempo e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong>ssesmecanismos <strong>de</strong> controle, produzindo enunciados e conceituações que não silenciam osequívocos.É assim que, em relação a qualquer política patrimonialista, cabe in<strong>da</strong>gar acerca<strong>da</strong>s conexões histórico-culturais dos processos <strong>de</strong> patrimonialização com as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>slocais, ou seja, com as condições materiais produtoras dos objetos que são alvo <strong>de</strong>ssesprocedimentos. Este tipo <strong>de</strong> in<strong>da</strong>gação justifica-se, pois se não se levar em conta amateriali<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é, a historici<strong>da</strong><strong>de</strong>, dos elementos culturais objetos <strong>de</strong> processos <strong>de</strong>patrimonialização, subsiste o risco <strong>de</strong> serem instituí<strong>da</strong>s efetivas representações noimaginário social que, efetivamente, não representam na<strong>da</strong>.Essas consi<strong>de</strong>rações remetem, por sua vez, à constatação <strong>de</strong> que, para serefetiva, a patrimonialização <strong>de</strong>ve respal<strong>da</strong>r-se na noção <strong>de</strong> valor. Ou seja, <strong>de</strong>veconsi<strong>de</strong>rar que todo bem tangível ou intangível relaciona-se histórico-social e, portanto,culturalmente, à existência <strong>de</strong> valores diferenciados (contraditórios e <strong>de</strong>siguais) que to<strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, momentânea e circunstancialmente, confere a esses bens. Issoimplica atentar para o que esses valores significam nessas e para essas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s,sendo elas também sociohistoricamente circunscritas (KONDER, 2002). Parafraseando o359


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tfilósofo Cornelius Castoriadis (1992), dir-se-ia que a condição sine qua para que qualquerente sociocultural se torne patrimônio é que esse ente ou objeto signifique relativamenteà instituição social e, ao mesmo tempo, ao conjunto dos <strong>de</strong>mais patrimônios que lhe sãoequivalentes; ou seja, é preciso que co-exista e co-opere diacrônica e sincronicamentecom os <strong>de</strong>mais.Para ser patrimônio é, então, necessário que um bem ou valor se apresente comorepresentável. Isto é, que se institua na memória sócio-histórica, que seja parte(<strong>de</strong>componível) do “magma <strong>da</strong>s significações imaginárias sociais <strong>de</strong> que faz parte”(CASTORIADIS, 1987, p. 118). Nos termos <strong>de</strong> Boylan (2006), to<strong>da</strong> política <strong>de</strong>patrimonialização <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar as interações entre as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os processos <strong>de</strong>significação que nos remetem ao processo histórico-social <strong>de</strong>ssas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É combase nessas argumentações e em suas implicações lógico-conceituais que se evi<strong>de</strong>nciaa inextricabili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre uma idéia, sentimento ou saber e sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Entretanto,a aceitação <strong>de</strong>sse vínculo intrínseco não implica explícita ou implicitamente encamparpressupostos ontológicos, nem o estabelecimento <strong>de</strong> vínculos causais entremateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> e suporte.Essa condição <strong>de</strong> patrimonialização impõe que qualquer <strong>de</strong>cisão acerca <strong>de</strong> umbem tornar-se, ou não, patrimônio, <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar simultaneamente o seucondicionamento histórico e se uso social (KONDER, 2002). Entretanto, <strong>de</strong>ve-se levar emconta que as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s são constitutivamente heterogêneas e, por conseguinte,sujeitas às contradições entre as classes e as frações <strong>de</strong> classe que a compõem. Face aessas consi<strong>de</strong>rações, o que, então, estará sendo preservado a ca<strong>da</strong> variação tempocultural,ou a ca<strong>da</strong> formação cultural? Mesmo correndo o risco <strong>de</strong> extrapolar nametaforização, po<strong>de</strong>-se asseverar que o que <strong>de</strong>ve ser preservado são precisamente osobjetos ou o objetivável, ou seja, as materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s (as teorias tal qual formula<strong>da</strong>s, osrituais e narrativas tal qual dramatizados, o corpo <strong>de</strong> crenças, as técnicas ou o saberfazer,etc.), pois são elas que, na relação com os indivíduos e a história, reclamamsentidos. A ênfase posta na materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do objetivável remonta, por sua vez, à tesemarxiana segun<strong>da</strong> a qual não é a consciência dos homens [o intangível] que <strong>de</strong>termina oseu ser social [a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>], mas, ao contrário, é a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s condições reais<strong>de</strong> existência que <strong>de</strong>terminam a consciência (MARX, 1978).No que tange à linguagem, por exemplo – conquanto, em linhas gerais, o mesmose aplique às teorias, aos sistemas e a todo conjunto <strong>de</strong> saberes e práticas socialmenteinstituídos e instituintes - não é possível falar <strong>de</strong> fatos <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentido360


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsem referir à materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir <strong>da</strong>s, nas e com as quais a língua, os sentidos e seusefeitos são sócio-culturalmente construídos e se historicizam. Em outros termos, não éfactível preservar e/ou discorrer sobre processos linguísticos e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentidossem que o ser-assim e os entes do mundo sejam consi<strong>de</strong>rados. Qual seja, a discussãosobre preservação ou o sentido <strong>de</strong> qualquer patrimônio <strong>de</strong>ve necessariamente incluir,para ser práxis historicamente significativa, as materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s em que este ou aquelepatrimônio se apresenta e representa no mundo. Além do mais, no que concerneespecificamente à dimensão discursiva do sentido, observe-se que o sentido <strong>de</strong> qualquerenunciado só se torna significativo, isto é, inteligível e interpretável, quando remete (e nosremete) continuamente às re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentidos em funcionamento. Em outros termos, o quetorna possível a significação é um processo permanente <strong>de</strong> retorno e reprodução <strong>da</strong>sre<strong>de</strong>s multidimensionais <strong>de</strong> sentido que são sócio-culturalmente construí<strong>da</strong>s ereconstruí<strong>da</strong>s na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.AS LÍNGUAS COMO PATRIMÔNIO INTANGÍVELNo campo <strong>da</strong> linguagem, tanto os objetos-língua, quanto o aparato teóricometodológicoe suas práticas são (ou <strong>de</strong>vem ser) objeto <strong>de</strong> patrimonialização e <strong>de</strong>preservação. A argumentação a seguir centrar-se-á no objeto língua. Assim, e para efeito<strong>de</strong> argumentação, a língua <strong>de</strong>ve ser compreendi<strong>da</strong> como uma virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e como “umadispersão <strong>de</strong> regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s lingüísticas constituí<strong>da</strong>s sócio-historicamente” (GUIMARÃES,1989, p. 76). Isso posto, essa duas características <strong>de</strong> qualquer linguagem, a “virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>”e a “dispersão <strong>de</strong> regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vistaestrutural, como sendo o lugar <strong>de</strong> resistência <strong>da</strong>s línguas à patrimonialização. A reflexão<strong>de</strong> Jean Paulus, especialmente quando diz que “não há língua, sistema <strong>de</strong> signos, semum sistema <strong>de</strong> conceitos — parte integrante <strong>da</strong>quele. Estes se organizam e se <strong>de</strong>limitamdiferentemente segundo as línguas” (PAULUS, 1985, p. 67) certamente contribui parasustentar o argumento acima.Na perspectiva <strong>da</strong> Análise <strong>de</strong> discurso, parte-se do reconhecimento <strong>da</strong>materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> língua e <strong>da</strong> história e, assim, “procura-se enten<strong>de</strong>r a língua fazendosentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo dohomem e <strong>da</strong> sua história” (ORLANDI, 2005, p. 15). É por essa razão que se po<strong>de</strong> dizerque, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> linguagem ten<strong>de</strong>r à unici<strong>da</strong><strong>de</strong>, à discrição e ao completo, ela não po<strong>de</strong><strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> conviver com a incompletu<strong>de</strong> e a falha. Daí a importância <strong>de</strong> se reconhecer a361


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tor<strong>de</strong>m <strong>da</strong> língua enquanto sistema significante material intrinsecamente liga<strong>da</strong> à or<strong>de</strong>m<strong>da</strong> história, como materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> simbólica.A <strong>de</strong>speito <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s teóricas e práticas inerentes às práticas <strong>de</strong>salvaguar<strong>da</strong> e preservação <strong>de</strong> sistemas linguísticos, grupos <strong>de</strong> lingüistas têm-se<strong>de</strong>dicado a essa tarefa ao redor do mundo. Somando-se ao esforço dos linguistas,instituições transnacionais também <strong>de</strong>senvolvem projetos <strong>de</strong> salvamento linguístico,como, por exemplo, o programa <strong>da</strong> UNESCO chamado “Programa <strong>de</strong> Salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong>sLínguas Ameaça<strong>da</strong>s”, bem como os reiterados programas e ações visando evitar a morte<strong>de</strong> línguas indígenas no Brasil, do que o workshop “Línguas Indígenas Ameaça<strong>da</strong>s:Estratégias <strong>de</strong> Preservação e Revitalização” que, conforme noticia o Jornal <strong>da</strong> Ciência(2007) que é promovido pelo Laboratório <strong>de</strong> Línguas Indígenas <strong>da</strong> UnB e que se realizounos dias 4 e 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong>ste ano, é um excelente exemplo, assim como também o é o“Programa <strong>de</strong> Documentação <strong>de</strong> Línguas Ameaça<strong>da</strong>s no Brasil”, <strong>de</strong>senvolvido pela Funaie que conta com apoio, por meio <strong>de</strong> convênio, do Instituto Max Planck <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong>. OInstituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN também <strong>de</strong>senvolve umprojeto que visa reconhecer as línguas falantes no território brasileiro como patrimônioimaterial nacional.Em geral, as formas <strong>de</strong> salvaguar<strong>da</strong>r uma língua incluem documentá-las antesque se extingam, salvando seu conhecimento para os especialistas, com o fito <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver estratégias <strong>de</strong> transmissão transgeracional (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que falantes nessascondições). Esses projetos estão estratégica e enfaticamente centrados nadocumentação, isto é, a formação <strong>de</strong> coleções <strong>de</strong> materiais lingüísticos e culturais,compostas <strong>de</strong> textos representativos, gravações <strong>de</strong> áudio e ví<strong>de</strong>o contento amostras <strong>de</strong>léxico, do sistema <strong>de</strong> sons, do sistema morfológico, <strong>de</strong> gramática. De modo que nosdiscurso dos lingüistas — e por que não no discurso salvacionista em geral? —, salvaruma língua significa acima <strong>de</strong> tudo registrá-la e arquivá-la em bancos <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos para finscientíficos 2 .A língua é, pois, um espaço <strong>de</strong> significância para o qual contribuem diversoscomponentes <strong>da</strong> formação sócio-histórica <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> e, ao mesmo tempo, é oque permite revelar, transmitir, tornar perceptível e interpretável esses setores. De modo2 Esse discurso salvacionista, no campo científico, não se diferencia, em sua formação histórico-i<strong>de</strong>ológica,<strong>de</strong> outros discursos, projetos e campanhas <strong>de</strong> salvamento <strong>de</strong> espécies ou ecossistemas em perigo <strong>de</strong>extinção, ameaçados pelo aquecimento global ou por ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s produtivas pre<strong>da</strong>tórias.362


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tque se expor a uma língua (documentá-la, estudá-la, patrimonializá-la) significa,outrossim, expor-se a uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> complexa e contraditória que existe no e além <strong>de</strong>um sistema fono-morfo-sintático-semântico ou <strong>de</strong> um meio <strong>de</strong> comunicação, isto é, além<strong>de</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fatográfica (SCHAFF, 1983). Em vista <strong>de</strong>ssa ênfase estruturalizante edocumental, Mikhail Bakhtin (1979) aponta que o equívoco constitutivo <strong>de</strong> todo i<strong>de</strong>alismolingüístico 3 consiste em pensar a língua a partir <strong>de</strong> uma perspectiva monológica,negligenciando o fato <strong>de</strong> que uma língua se constitui na interação verbo-social entre osseus falantes, sendo, por essa razão, <strong>de</strong> natureza dialógica. Afinal, as línguas, do mesmomodo que os falantes, são o conjunto <strong>da</strong>s relações sociais. Desse modo, abstrai-las <strong>de</strong>sua formação histórico-i<strong>de</strong>ológica, reduzindo-as ao sistema ou à estrutura, resulta emsilenciar acerca <strong>da</strong> condição sem a qual uma língua não se sustenta enquanto tal: a <strong>de</strong>ser material e inalienavelmente liga<strong>da</strong>s ao processo sociohistórico.SER, TEMPO E DEVIR ENTRE OS GUARANISaindo do campo lingüístico e passando ao <strong>da</strong> História <strong>da</strong> Ciência e, emparticular, à área <strong>da</strong>s etnociências, enfocar-se-á a seguir alguns aspectos do sistemaguarani <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> saber e, simultaneamente, <strong>de</strong> constituição do ethos tribal e <strong>de</strong>sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mais especificamente, serão discutidos alguns elementos <strong>de</strong>constituição e uso do tempo, <strong>de</strong> acordo com bases epistemológicas e gnosiológicas dosGuarani Mbyá. O objetivo não é uma discussão <strong>de</strong> caráter internalista, mas apresentaralguns argumentos que subsidiem uma discussão mais ampla acerca <strong>da</strong>patrimonialização/preservação <strong>de</strong>sses elementos culturais.Os Guarani constituem um dos membros mais importantes <strong>da</strong> família linguísticatupi-guarani (Tronco Tupi), com uma ampla distribuição pela América do Sul, e que, noBrasil, mantêm al<strong>de</strong>amentos em cerca <strong>de</strong> 10 estados (BORGES, 1999; CADOGAN,1992; CLASTRES, 1978; CLASTRES, 1990; LITAIFF, 1996; SCHADEN, 1974; UNKEL,1987; VIVEIROS DE CASTRO, 1987). Mais particularmente, os <strong>da</strong>dos apresentadosreportam-se ao trabalho <strong>de</strong> pesquisa realizado nas al<strong>de</strong>ias Guarani Mbyá (um dos maisimportante e numeroso subgrupo guarani, sendo os <strong>de</strong>mais os Kayova e os Nhan<strong>de</strong>va)localiza<strong>da</strong>s no litoral sul-fluminense, uma em Angra dos Reis, no distrito <strong>de</strong> Bracuhy, a3 Irônica e significativamente auto<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> “Lingüística científica”.363


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TTekoa Sapukai; uma em Paraty Mirim, a Tekoa Itatĩ e outra em Patrimônio, a TekoaAraponga, ambas no município <strong>de</strong> Paraty.Com vistas à discussão do tempo como categoria operativa e representacional nocontexto sócio-histórico e discursivo <strong>de</strong>sse grupo indígena e, por conseguinte, enquantopatrimônio cultural, os argumentos essenciais aqui utilizados baseiam-se na concepção<strong>de</strong> tempo proposta por Jean-Paul Sartre e segundo a qual “a temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> éevi<strong>de</strong>ntemente uma estrutura organiza<strong>da</strong>; (...), uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong> que domina suasestruturas secundárias e que lhes confere significação” (SARTRE, 2001, p. 158), na qualcategorias operativas como “presente”, “passado” e “futuro” <strong>de</strong>vem ser entendi<strong>da</strong>s nacondição <strong>de</strong> instantes estruturados <strong>de</strong> uma síntese, para a qual contribuemsignificativamente o imaginário e a memória sociais.Assim posto, o tempo se nos impõe como elemento constitutivo, instituinte einextrincável <strong>da</strong> formação, do funcionamento e do modo <strong>de</strong> ser (eidos e etos) <strong>de</strong> to<strong>da</strong> equalquer socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. De forma que, conforme assegura Castoriadis (1992), ca<strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> cria, para si mesma e consubstancial ao seu modo próprio <strong>de</strong> ser, um tempoque lhe é próprio e que lhe confere a sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> no conjunto <strong>da</strong>s <strong>de</strong>maissocie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Ora, é exatamente este o mote que dirige a atenção ao questionamentoacerca <strong>da</strong> existência do tempo e <strong>de</strong> seu estatuto discursivo e ontológico na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>guarani mbyá – e, obviamente, enquanto categoria patrimonializável.Po<strong>de</strong>-se, então, dizer que se há uma dimensão temporal nas coisas e se há umadimensão temporal socialmente instituí<strong>da</strong>; há, ain<strong>da</strong>, uma dimensão temporal no corpo,uma vez que este é simultânea e complexamente atravessado por aquelas duasinstâncias. O conjunto <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fenômenos sociais e psíquicos relacionados aotempo forma uma dêixis temporal que indica, em ca<strong>da</strong> caso, o momento propício para arealização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s individuais ou coletivas, sejam elas produtivas ou <strong>de</strong> lazer.Concor<strong>da</strong>ndo com Agnes Heller (2000), é na cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todo ser social que atemporali<strong>da</strong><strong>de</strong> se faz presença e se representa nas várias instâncias <strong>da</strong> existência. Atemporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em sua dimensão ontológica e imaginária se representa, portanto, comohomogênea e hierárquica. Obviamente, tanto sua homegenei<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto sua hierarquiase estruturam <strong>de</strong> acordo com as diferentes formações sócio-históricas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.Parece evi<strong>de</strong>nte à observação que existem diversas categorias e mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>stemporais, pois embora nos reportemos a um tempo em geral, somos obrigados a li<strong>da</strong>rno cotidiano com várias <strong>de</strong> suas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Ou seja, ain<strong>da</strong> que se possa constituir364


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Ti<strong>de</strong>almente um tempo abstrato em geral, é com a sua dispersão material que convivemos.Assim, distribuímos e organizamos nossa cotidiani<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação ao tempo docalendário, tempo psicológico, tempo litúrgico etc.; tempos sagrados e tempos profanos.É justamente diante <strong>de</strong>sses atravessamentos temporais que é quase inevitável perguntarse existiria o tempo como e enquanto tal; o tempo em si mesmo; uma espécie <strong>de</strong> temposeruniversal, no qual e a partir do qual to<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s temporais fossem<strong>de</strong>riváveis.Po<strong>de</strong>-se, a partir <strong>da</strong>í, afirmar que “o tempo <strong>da</strong> consciência é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> humanaque se temporaliza como totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a qual é para si mesma seu próprio inacabamento”(SARTRE, 2001, p. 207). Desse modo, falar sobre e do tempo significa, sobretudo, falar<strong>de</strong> um tempo para ou em nós (tempo para um sujeito, ou tempo subjetivo) e <strong>de</strong> um tempono e do mundo (tempo para ou nas coisas, ou tempo objetivo). Com relação aosdiferentes modos <strong>de</strong> percepção do tempo, Rehfeld (1988) oferece um bom exercíciotaxonômico: a) tempo vivencial (relativo à experiência do eu), b) tempo real (o tempo queopera in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> consciência), c) tempo relacional (relativo à consciência temporal,ou não, face às mu<strong>da</strong>nças e ao movimento), d) tempo absoluto (transcorrer do tempoin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte à percepção <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças e do movimento), e) tempo linear (tempo comefeito cumulativo: <strong>de</strong> um início ao um fim), f) tempo sagrado (tempo revivido, reevocação<strong>de</strong> acontecimentos <strong>de</strong> retorno periódico, cuja sacrali<strong>da</strong><strong>de</strong> respeita à sua origem e não aoseu conteúdo), g) tempo escatológico (tempo que tem começo e fim), i) tempo profano ej) tempo histórico.De um lado, há o tempo coisificado, o tempo mensurável, o tempo como repetiçãodo idêntico (periodici<strong>da</strong><strong>de</strong>, eterno retorno), a que Castoriadis (1987; 1992) chama <strong>de</strong>tempo i<strong>de</strong>ntitário, cujos entes temporais seriam: o tempo cósmico, o tempo cronológico, otempo histórico, o tempo linguístico. De outro, o tempo vivido, também chamado <strong>de</strong>tempo imaginário, relativo à experiência na consciência do sujeito, o qual po<strong>de</strong> ser tantoum tempo público como um tempo cósmico.O tempo objetivizável é fun<strong>da</strong>mentalmente marcado pela repetição, pelarecorrência e pela equivalência; sendo, portanto, um tempo que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve serescandido e controlado. Já o tempo imaginário, ou social, é aquele que institui umauni<strong>da</strong><strong>de</strong> e uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> sociais, sem os quais os sujeitos e as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s estariam empermanente estado <strong>de</strong> dispersão; e que, enquanto tal, é construído com referência aotempo cósmico na forma <strong>de</strong> calendários, rituais, festivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É este tempo que instituiem ca<strong>da</strong> sujeito e em ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> os fatos <strong>de</strong> consciência do e sobre o tempo. E é365


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>de</strong>sse modo que ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> constrói a sua própria temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>; ou, em outrostermos, sua concepção e categorização do tempo. Consequentemente, se o tempo nuncaé neutro ou exterior a uma <strong>da</strong><strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas apresenta-se sempre como um lugar <strong>de</strong>significação, o tempo imaginário comparece, então, como aquele que, além <strong>de</strong> sersignificativo, estabelece-se fun<strong>da</strong>mentalmente como o tempo <strong>da</strong> significação.A relação tempo e espaço é ain<strong>da</strong> um outro aspecto a consi<strong>de</strong>rar.Esquematicamente, po<strong>de</strong>-se dizer que, diferentemente do espaço (o lugar <strong>da</strong>s coisas),que po<strong>de</strong> ser concebido como uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> simultânea e, portanto, como diferença,o tempo (dimensão do movimento e <strong>da</strong> duração) apresenta-se como uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>sucessiva e, por conseguinte, como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Então, se o tempo é, por excelência, aemergência <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele se consubstancia como criação e <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> formas. É aisso que Castoriadis (1992) chama <strong>de</strong> emergência radical do novo.Em relação ao tempo (do) imaginário e (do) simbólico, não <strong>de</strong>ve ser negligenciadoo papel <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez que a memória e o afeto apresentam-se na condição<strong>de</strong> co-partícipes <strong>da</strong> experiência vivencial <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, especialmente na forma <strong>de</strong>recor<strong>da</strong>ção atualiza<strong>da</strong> e, enquanto tal, são dois dos fatores que constroem as tradições(VESCHI,1996; HOBSBAWN; RANGER, 2002). Nesse sentido, o eu que sou resulta domeu passado. Ou, em termos onto-temporais, o sujeito ou o ser É seu passado, pois éem seu passado que se encontra a matriz <strong>de</strong> sua investidura em sujeito, conformeassevera Sartre (2001). Desse modo, ao comparar essa <strong>de</strong>finição do ser pelatemporali<strong>da</strong><strong>de</strong> com a situação dos guarani, percebo que ela ilumina a questão do tempoinstituinte mbyá, visto que, em sua auto-representação, eles são o seu passado; eles sãoa recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong> bela mora<strong>da</strong> <strong>de</strong> Nhamandu 4 , como aponta o excertoabaixo <strong>de</strong> cantos cerimoniais guarani: “assim, farei correr o fluxo <strong>da</strong>s Belas Palavras/paravocê, que se lembrará <strong>de</strong> mim”; “Eis porque você, que vai morar sobre a terra,/tenhalembrança <strong>da</strong> minha bela mora<strong>da</strong>” (CLASTRES, 1990, p. 113).De acordo com os relatos míticos mbyá (cf. CADOGAN, 1992, CLASTRES 1978e CLASTRES, 1990), Nhamandu participa <strong>da</strong> arché, pois ele se encontra na origem domovimento e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. No antes do tempo (pytũ yma ou “noite primigênia”, yvytu yma, ou“vento primigênio”) não há movimento, existe apenas uma massa indistinta e igual a simesma. É a manifestação corpórea <strong>de</strong> Nhamandu que, se <strong>de</strong> um lado, provoca a ruptura<strong>de</strong>sse estado <strong>de</strong> inércia e, por conseguinte, a emergência do novo; <strong>de</strong> outro, instala-se4 Nome <strong>da</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong> originária Guarani Mbyá que, a partir <strong>de</strong> seu próprio corpo e <strong>de</strong> seu movimento constante<strong>de</strong> expansão, <strong>de</strong>u existência e forma ao universo tal qual esses índios o concebem366


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tcomo o tempo-zero <strong>de</strong> um evento, aquele que é movimento, diferenciação e criação <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>; mas, igualmente, criação do <strong>de</strong>vir.Na materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> linguística mbyá encontram-se inúmeras formas e maneiras <strong>de</strong><strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre essas <strong>de</strong>staca-se o emprego <strong>de</strong> marcadores oudêiticos temporais: a) indicação <strong>de</strong> futuro: arã (exemplo: ranguarã ‘época em que iráacontecer’); b) indicação <strong>de</strong> passado: ere (exemplo, ranguare ‘época em que jáaconteceu’); c) hoje: aỹ; d) ontem: kuee; e) amanhã: koẽrã (literalmente, ‘futura manhã’);f) antigo, primitivo ou originário: yma, etc. Essas indicações temporais, na língua, po<strong>de</strong>mser genéricas ou específicas, <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s ou in<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s.Os marcadores temporais também po<strong>de</strong>m ser não-verbais (ain<strong>da</strong> que expressoslinguisticamente), como os marcadores celestes (astros etc.), os marcadoresmeteorológicos, os marcadores sazonais (florescimento, plantio, nascimentos), e osmarcadores rituais (colheitas ou festas, como, por exemplo, o batizado anual) etc. Oconjunto <strong>de</strong>sses marcadores constitui uma parte significativa <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> discursivambyá referente à temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim é que esses dêiticos funcionam como operadores<strong>de</strong> uma concepção totalizante do tempo. Discursivamente, os marcadores temporais têma função <strong>de</strong> estabelecer uma or<strong>de</strong>m ou permanência na transitorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s coisas.Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, as diferentes experiências locais referentes àtemporali<strong>da</strong><strong>de</strong> encontram-se inscritas na língua, que é a condição material do discurso,<strong>de</strong> maneira que a existência <strong>de</strong> um discurso mbyá concernente ao tempo tem <strong>de</strong> estarmaterializa<strong>da</strong> nos fatos <strong>de</strong> linguagem. Assim sendo, um conceito essencial paracompreen<strong>de</strong>rmos a relação dos Guarani com o tempo, ou com as diversas parciali<strong>da</strong><strong>de</strong>sque compõem a sua temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é oguerojera pelo qual eles <strong>de</strong>screvem ummovimento autogerado, <strong>de</strong>sdobrando-se in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente.É importante salientar que tanto em oguerojera, quanto em aguyje e em kandire apresença <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> é preceptível, e é em relação ao tempo do sagrado que essesconceitos <strong>da</strong> tekologia mbyá (LITAIFF, 1996) fazem sentido e, concomitantemente,provêm os Guarani Mbyá <strong>de</strong> sentido e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Se isso parece claro em oguerojeraque se refere ao movimento <strong>de</strong> expansão universal responsável pela existência do tempoe do espaço guarani; em aguyje, a temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> encontra-se intrínseca, pois esse termo<strong>de</strong>signa não apenas o processo <strong>de</strong> maturação (<strong>de</strong> homens, coisas e <strong>da</strong> história), comotambém o chegar ao fim <strong>de</strong>sse processo; em kandire, salienta-se a expressão do ser edo vir-a-ser na mesma perspectiva temporal, (re)início <strong>de</strong> ciclo vital. Kandire, aguyje eoguerojera são, pois, a presença significante do passado atualizado como eixo instituinte367


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&T<strong>da</strong> ética e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> guarani mbyá. Trata-se, antes <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong> um tempo vivencialou um tempo revivido (recor<strong>da</strong>ção e reenvocação).Para que se enten<strong>da</strong> melhor o sistema guarani <strong>de</strong> conhecimento, é preciso dizerque, para eles, o cosmológico (tempo-espaço, existência) se sobrepõe aohistóricossocial. Desse modo, o critério guarani <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se sustenta na afirmação<strong>de</strong>ssa cosmologici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o belo e o bem (episteme, estética eética) se <strong>de</strong>finem na e a partir <strong>da</strong> presença/existência divina. Desse modo, só o que<strong>de</strong>riva originariamente <strong>da</strong> divin<strong>da</strong><strong>de</strong> investe-se <strong>de</strong> permanência; tudo aquilo que resultado processo cronológico e profano é consi<strong>de</strong>rado provisório. Por seu turno, o temposagrado institui-se como “um tempo em que se revela a exigência divina e não o seu ser:exigência que mol<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, nas condições <strong>da</strong><strong>da</strong>s, na base dos ensinamentos dopassado” (REHFELD, 1988, p. 163). Com base nesses argumentos, po<strong>de</strong>-se dizer que oinvestimento <strong>de</strong> uma esfera do tempo em campo do sagrado é um componente dodiscurso e <strong>da</strong> memória social dos Guarani Mbyá, e um elemento importante para que sepossa compreen<strong>de</strong>r o processo guarani <strong>de</strong> subjetivação e <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> suai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.Finalmente, a irreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> mostra-se outro aspecto importante do tempo. Airreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> constitui o núcleo duro dos eventos e dos processos temporais. SegundoAgnes Heller, se o tempo se caracteriza pela “irreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acontecimentos, otempo histórico é a irreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acontecimentos sociais”, <strong>de</strong> forma que “todoacontecimento é irreversível do mesmo modo” (HELLER, 2000, p. 3. Grifos <strong>da</strong> A.). Combase na constatação <strong>de</strong> que, além <strong>de</strong> constituir-se como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, o tempo constituiuma irreversibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se aventar a hipótese <strong>de</strong> que encontra-se aí um doselementos que dão origem e sustentação à crise originária e instituinte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>guarani, especialmente no que tange à sua auto-representação e <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> retorno, ouultrapassagem, ao que eles <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> Terra Sem Males 5 : não há como reverter otempo; não há, portanto, como reverter ao tempo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Nhamandu ⎯ ou seja, acrise instala-se <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que já não é possível ao homens reencenar o atooriginal transformador-fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> Nhamandu. Crise insuperável que impulsiona osGuarani em direção à presença fantásmica <strong>de</strong>ssa terra-sem-males e que,simultaneamente, contribui para a reafirmação e a sustentação cotidiana <strong>de</strong> suai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.5 Em língua guarani, Yvy Marã Ey. Trata <strong>da</strong> Terra mítico-originária, cuja temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> – por ser a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira– exclui o perecimento e o sofrimento, ambos causados pela ilusão <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> históricossocial, ti<strong>da</strong>scomo simulacros, uma vez que meras cópias <strong>da</strong>quela terra ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira.368


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&TA temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> guarani integra, assim, o conjunto <strong>de</strong> narrativas que compõe oseu discurso fun<strong>da</strong>dor. Enten<strong>da</strong>-se por discurso fun<strong>da</strong>dor aquele que funciona em umespaço <strong>de</strong> interdiscursivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> maneira que “tudo o que é dito, tudo o que é expressopor um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso sãopercebi<strong>da</strong>s vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quaseimperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento<strong>da</strong> fala” (BAKHTIN, citado por BRAIT, 1999: 14). E, <strong>da</strong> mesma forma que a linguagem, atemporali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em qualquer <strong>de</strong> suas acepções, funciona e significa enquanto inscrição nahistória. E, como tal, instaura-se como patrimônio cultural e intangível, sujeita ao valorque lhe é culturalmente atribuído e, em suma, irredutível às taxonomias e à fixação nasmemórias (sejam legais, sejam metálicas).EM BUSCA DA INTANGIBILIDADE PATRIMONIALIZÁVEL: UMA DISCUSSÃOPRELIMINARDe volta à questão patrimônio cultural/preservação, é importante retomar uma<strong>de</strong>finição operacional segundo a qual <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado patrimônio cultural tudoaquilo que se refere aos aspectos e feitos essenciais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, que sãoportadores <strong>de</strong> referências à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e à memória <strong>de</strong> grupos formadores <strong>de</strong> umasocie<strong>da</strong><strong>de</strong> e, portanto, aqueles que representam, valorizam, difun<strong>de</strong>m e preservam adiversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>de</strong> uma nação. Em outros termos, po<strong>de</strong>-se classificar comopatrimônio cultural aquele que tem e produz ressonância histórico-cultural (GONÇALVES,2007). Assim, todo patrimônio se configura em um jogo simbólico, <strong>de</strong>terminado no tempoe no espaço, em um permanente entrelaçamento entre sujeitos (individuais e/oucoletivos), suas formações (culturais, discursivas e suas condições materiais <strong>de</strong>existência), em consonância com a processuali<strong>da</strong><strong>de</strong> do fluxo histórico, pelo qual um<strong>de</strong>terminado objeto ou traço cultural em um <strong>da</strong>do momento/recorte histórico é consignadocomo patrimônio. Esta processuali<strong>da</strong><strong>de</strong> histórico-social inscreve-se igualmente emdiversos procedimentos discursivos, a partir dos quais é possível <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r asformações histórico-i<strong>de</strong>ológicas <strong>da</strong>s políticas e ações patrimonializantes.Ao se pensar em preservação - tombamento, patrimonialização (ver LANDIM,2007) -, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar no papel <strong>de</strong>terminante que o duoimaginário/simbólico exerce na constituição mesmo <strong>da</strong> noção/valor <strong>de</strong> patrimônio, vistoque a memória <strong>de</strong>sempenha um papel instituinte na construção dos sujeitos e do369


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tprocesso histórico. Desse modo, aquilo que <strong>de</strong>nominamos e valorizamos como nossopassado “é re-significado como estratégia projetiva <strong>de</strong> construção, negociação eviabilização do futuro. O passado é reconstruído na lógica <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> novos sentidosdo presente e do futuro. O passado é, principalmente, um discurso que se negocia naconstrução do futuro” (MORAES, 2007, p. 107).Por outro lado, e à semelhança <strong>de</strong> Tostes (2007), <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar que uma<strong>da</strong>s finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do processo <strong>de</strong> patrimonialização é justamente a preservação <strong>de</strong> bensculturais, como se aplicaria, com respeito à língua, esse princípio que preten<strong>de</strong> evitar quetais objetos se percam quando, no que tange à língua, trata-se <strong>de</strong> um bem dinâmico e emconstante transformação 6 . O que seria, pensando-se a língua, a sua patrimonializaçãocom vistas à sua preservação, mesmo consi<strong>de</strong>rando com Scheiner (2007) que o campopatrimonial é dinâmico e que se a<strong>da</strong>pta bem ao surgimento e utilização <strong>de</strong> novastecnologias <strong>de</strong> apreensão, <strong>de</strong>cupação, memorização, codificação (reprodução/recriação)e disponibilização <strong>de</strong>smaterializa<strong>da</strong> e em tempo real dos objetos alvos <strong>de</strong>patrimonialização?Esse quadro conceitual leva a um outro tipo <strong>de</strong> reflexão. Po<strong>de</strong>r-se-ia assimilar opatrimonialismo à re<strong>de</strong> <strong>de</strong> aparatos i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong> que to<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> dispõe (verALTHUSSER, 1980; BORGES, 1999, e, ain<strong>da</strong> que em outra perspectiva teórica,BOURDIEU, 2003)? Parece que sim, no momento em que remete ao imaginário social, àconstrução <strong>de</strong> um sentido homogeneizador, a uma representação como “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>nacional” que, ao mesmo tempo em que produz uma imagem <strong>de</strong> pertença, (re)produzigualmente um efeito <strong>de</strong> sentido uniformizador e cristalizador à idéia <strong>de</strong> povo, <strong>de</strong> nação,<strong>de</strong> cultura e <strong>de</strong> história. Processo ao qual, certamente, o patrimônio cultural ou simbólico,mediado pela língua, por suas próprias características e funções, se integra. Afinal, asciências e as tecnologias (com suas re<strong>de</strong>s sociotécnicas, seus aparatos <strong>de</strong> controle,legitimação e reprodução) são elementos fun<strong>da</strong>mentais que atuam na potencialização<strong>da</strong>s forças produtivas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (IANNI, 2000).O processo <strong>de</strong> tombamento como instância dos aparelhos i<strong>de</strong>ológicos e comorepresentação, intervenção e produto <strong>de</strong> narrativas (imaginário, representações quetambém são i<strong>de</strong>ológicas) e, como tal, “apresenta um futuro <strong>de</strong>sejado, mesmo que seja6 O ponto central com relação à questão língua/patrimonialização não concerne à dinâmica <strong>da</strong>s línguas esuas transformações no tempo e no espaço, mas ao conceito mesmo <strong>de</strong> língua que subjaz nos programas eações patrimonializantes. Quando se fala que “a língua x” é um patrimônio, <strong>de</strong> que língua se está falando?;patrimônio <strong>de</strong> que grupo social?; como registrar esse patrimônio? Mesmo levando-se em conta, como contraargumentaTeresa Scheiner (em comunicação pessoal) que se preserva na transformação, que preservar não370


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Tsobre um passado i<strong>de</strong>alizado”, como parte <strong>de</strong> uma “hegemonia social e simbólica”(MORAES, 2007, p. 108-109), ou, em outros termos, i<strong>de</strong>ológica (basea<strong>da</strong> naracionalização e sustenta<strong>da</strong> pelas re<strong>de</strong>s sócio-técnico-científicas e políticas). EmScheiner (2007) encontram-se novos argumentos a favor <strong>da</strong> hipótese <strong>de</strong> que é possívelsubsumir as práticas patrimonialistas aos aparatos i<strong>de</strong>ológicos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (AIS, cf.BORGES, 1999). A autora põe em evidência a existência <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s institucionaliza<strong>da</strong>s,tais como “re<strong>de</strong> <strong>de</strong> patrimônio”, “memória do mundo”, “patrimônio mundial” patrocina<strong>da</strong>spela UNESCO, por exemplo, que “funcionam como mecanismos universalistas <strong>de</strong>controle, pelo alto, do saber e <strong>da</strong>s iniciativas culturais (SCHEINER, 2007, p. 41). Aprofusão <strong>de</strong> programas e iniciativas, tais como os mencionados acima, <strong>de</strong>ixa claro que opatrimônio serve, para além dos controles <strong>da</strong>s agências governamentais ou priva<strong>da</strong>s(nacionais e internacionais), como componentes <strong>da</strong>s estratégias <strong>de</strong> reforço <strong>da</strong>si<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s (restritivas ou expandi<strong>da</strong>s).Nesta mesma direção, embora em outra perspectiva analítica, chama a atenção ofato <strong>de</strong>, na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, à memória histórico-social (memória <strong>de</strong> um corpo históricoculturalmenteesculpido e, por isso mesmo, e irremediavelmente imersa no magma <strong>da</strong>ssignificações) juntaram-se novas tecnologias <strong>de</strong> registro, tratamento e arquivamento dosfatos patrimoniais tangíveis e intangíveis. Isto é, encontram-se no mercado e à disposiçãodiversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> “memórias metálicas, os multi-meios, a informática, aautomação”, por meio <strong>da</strong>s quais “apagam-se os sentidos <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia”(ORLANDI, 2005, p. 10), por reduzir ou linearizar o patrimônio simbólico a um acervo <strong>de</strong>informações que, por não distinguir posições, mostram-se i<strong>de</strong>ologicamente equivalentes,ain<strong>da</strong> que, contraditoriamente a esse movimento encobridor, os efeitos <strong>da</strong> história e <strong>da</strong>i<strong>de</strong>ologia - porque inalienáveis do imaginário instituinte <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong> - permaneçam e seapresentem o próprio processo <strong>de</strong> registro/apagamento.Com relação à materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do patrimônio intangível, observa-se que se o eixocentral <strong>da</strong> política preservacionista com relação ao patrimônio cultural dirige-se aossentidos e significados dos objetos e fatos culturais e não a esses objetos e fatosculturais concreta e historicamente existentes (ver CHAGAS, 2003, p. 97), cabe, então,perguntar que patrimônio estará sendo preservado? Ora, consi<strong>de</strong>rando-se que tanto ossentidos como os lugares (produtores e/ou or<strong>de</strong>nadores) <strong>de</strong> sentido são nomeados eentendidos porque exprimem e remetem ao ser do/no mundo, isto é, a uma <strong>da</strong><strong>da</strong>sociali<strong>da</strong><strong>de</strong>-historici<strong>da</strong><strong>de</strong> e, portanto, que sua existência é correlata à existênciaé sinônimo <strong>de</strong> imobilizar e que todo movimento <strong>de</strong> captura implica em per<strong>da</strong>s, permanece em questão o fato371


<strong>Cultura</strong> <strong>Material</strong> e Patrimônio <strong>de</strong> C&Torganiza<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coisas no/do mundo, ver-se-á que os sentidos e significados sãounicamente instituídos por uma relação histórico-social (e <strong>de</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong>) entreinterlocutores em um <strong>de</strong>terminado tempo, cultura e referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Além do mais, não é possível falar acerca <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentido sem referir àmateriali<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir, nas e com as quais os sentidos e seus efeitos são sócioculturalmenteconstruídos e se historicizam. Isto é, não é factível discorrer/preservarsentidos sem que nos atenhamos ao ser-assim e aos entes do mundo. Qual seja, adiscussão sobre preservação/sentido <strong>de</strong> qualquer patrimônio <strong>de</strong>ve necessariamenteincluir, para ser práxis historicamente significativa, as materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s em que este ouaquele patrimônio se apresenta e representa no mundo. Destarte, no que tangeespecificamente ao sentido, <strong>de</strong>ve-se recor<strong>da</strong>r que qualquer sentido só se tornasignificativo ao remeter-se a uma (ou mais) <strong>de</strong>ntre as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentidos que sãohistórico-culturalmente construí<strong>da</strong>s e reconstruí<strong>da</strong>s na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo quando se fala<strong>de</strong> algo como sendo não-sentido, continua-se, ain<strong>da</strong> e sempre, a circun<strong>da</strong>r o magma dosentido em seu todo. Nesta acepção, estar no espaço discursivo do <strong>de</strong>s-sentido é estarem um <strong>de</strong>slocamento que inequivocamente atravessa o real do sentido.Em suma, o afã preservacionista, aliado às tecnologias científicas einformacionais (para captura, tratamento e armazenamento) <strong>de</strong>sdobra-se em umprocesso técnico-cultural, teórico e político pelo qual tudo que é sólido, virtualiza-se; tudoque é estável, reconhecível e centralizado, dissolve-se e difun<strong>de</strong>-se em re<strong>de</strong>s earmazena-se em memórias metálicas (efeito <strong>da</strong> racionalização técnico-administrativa)igualmente excentra<strong>da</strong>s.Apesar disso, e para finalizar, constata-se que os esforços <strong>de</strong> patrimonializaçãodos bens intangíveis — a não ser que se reduzam ao inventário lingüístico, isto é, aoregistro factual ou fatográfico, <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> fala, <strong>de</strong> expressões lingüísticas locais(regionais ou <strong>de</strong> categorias <strong>de</strong> falantes) — constituem, para utilizar uma metáfora <strong>de</strong>Scheiner (2007), tentativas <strong>de</strong> capturar (como a uma imagem), o que é em si mesmoincapturável (por ser processual e incompletu<strong>de</strong>).REFERENCIASABREU, Regina. A emergência do patrimônio genético e a nova configuração no campodo patrimônio. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs). Memória e patrimônio:ensaios contemporâneos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: DP&A Editora Lt<strong>da</strong>, p.30-45, 2003.<strong>de</strong> que o enunciado “a língua x” refere-se sempre a uma língua imaginária.372


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