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CAPOEIRA: - Asociacion Cultural de Capoeira Angola

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AGRADECIMENTOSIêQuando eu aqui chegueiQuando eu aqui chegueiA todos eu vim louvarVim louvar a DeusPrimeiroMorador <strong>de</strong>sse lugarAgra<strong>de</strong>ço a Deus, guia e protetor em todos os momentos <strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong>dádiva e aventura que é a vida.Agora eu tô cantandoCantando dando louvorTô Louvando a Jesus CristoPor que nos abençoouCantando, dando louvor e agra<strong>de</strong>cendo às pessoas que fizeram da trajetória<strong>de</strong>ste trabalho um encontro feliz: às amigas e aos amigos, que contribuíram para aprodução <strong>de</strong>sta pesquisa com leitura, sugestões, diálogo, presença.Aos membros da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, que me acolheramcom generosida<strong>de</strong>, disponibilizando suas experiências e seus saberes.À equipe do Colégio Padre <strong>de</strong> Man e ao Centro Universitário do Leste <strong>de</strong>Minas Gerais - UNILESTEMG, pelo apoio e incentivo.Aos funcionários e professores do Mestrado <strong>de</strong> Psicologia da PUC-MINAS,em especial ao Professor Dr. João Leite Ferreira Neto, que conduziu a orientação<strong>de</strong>sta pesquisa com confiança, atenção e sensibilida<strong>de</strong>.Êh viva meu DeusÊh viva meu MestreA Reginaldo Consolatrix - Mestre Reginaldo Véio - meus agra<strong>de</strong>cimentos,reverência e reconhecimento da generosida<strong>de</strong>, sabedoria e maestria com queacompanhou minha iniciação na capoeiragem e a produção <strong>de</strong>ste trabalho.Ê viva meu DeusIê viva meu MestreMestre Véio,Que me ensinouA <strong>Capoeira</strong>Iê a capoeiraCamará.


RESUMOEste trabalho apresenta um estudo sobre a experiência da capoeira, no intuito <strong>de</strong> investigara emergência da resistência mediante diferentes configurações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Através daabordagem da capoeira como experiência, buscamos abarcar a diversida<strong>de</strong> que a constituie explorar suas conexões com o universo <strong>de</strong> produção das relações sociais, da cultura, daancestralida<strong>de</strong>, do po<strong>de</strong>r, do saber, das resistências. O conceito <strong>de</strong> resistência, nestetrabalho, é inspirado em Foucault e refere-se principalmente à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação,invenção do novo, <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> ser e viver. A partir <strong>de</strong>ssa ênfase, preten<strong>de</strong>mospesquisar as diferenças engendradas na prática da capoeira no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua história e,principalmente, como se configura a resistência na capoeiragem contemporânea. Pararealização <strong>de</strong> tal tarefa, <strong>de</strong>senvolvemos uma pesquisa qualitativa por meio <strong>de</strong> um estudo <strong>de</strong>caso da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, grupo <strong>de</strong> Timóteo-MG. Ao coligar aexperiência <strong>de</strong>sse grupo a elaborações teórico-acadêmicas, temos o objetivo <strong>de</strong> promover oencontro entre saberes e práticas. Problematizar a capoeira em sua forma historicamentesingular, articular o conhecimento científico às memórias e experiências locais, semhierarquizações, para alcançar o que permite a constituição <strong>de</strong> um saber histórico <strong>de</strong> lutas ea utilização <strong>de</strong>sse saber nas táticas do presente. Na contemporaneida<strong>de</strong>, diante das formashegemônicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que operam, principalmente, através da produção <strong>de</strong> subjetivaçõesdominadas, capturadas pela lógica do consumo, tendo o marketing como principalinstrumento <strong>de</strong> controle e <strong>de</strong> modulação, as experiências que propiciam a singularida<strong>de</strong>, aemergência <strong>de</strong> subjetivações autônomas, são formas <strong>de</strong> resistência essenciais. A <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong>, ao articular aspectos heterogêneos como música, dança, ancestralida<strong>de</strong>,ritualida<strong>de</strong>, luta, rompe contornos subjetivos e produz a conquista da malícia como arte daexistência contemporânea. A produção da malícia é prática infinita, processo quepotencializa o conhecimento <strong>de</strong> si para se transformar continuamente, engendrandosingularida<strong>de</strong>. Essa produção constitui-se na relação com o outro, em práticaseminentemente coletivas. Portanto, as resistências na capoeira emergem com a conquistada malícia que é produzida na roda, on<strong>de</strong> o corpo, em festa, conecta universos corporais eincorporais, engendra novos campos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s em processos <strong>de</strong> singularização quepo<strong>de</strong>m alcançar dimensões sócio-políticas.Palavras-chave: capoeira, Foucault, po<strong>de</strong>r, resistência, processos <strong>de</strong> subjetivação, malícia.


ABSTRACTThis paper presents a study about the experience of capoeira. It had the intention ofinvestigating the emergency of the resistence different kinds of power. From the capoeiraapproach as an experience, we try to inclu<strong>de</strong> the diversity that makes it and exploring therelationship between this practice and the universe of producing social relationship, culture,returning to the ancestral, power, knowledge, resistence. The concept of resistenceapproached on this paper, inspired on Foucault, refers itself to the capacity of creating,inventing the new, the different ways of being and living. To make this job , it was <strong>de</strong>velopeda qualitative research by a specific study on the Associaçao <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, inTimoteo - Minas Gerais. In articulating the experience of this group to theoretical-schoolasticproductions, we had the objective of promoting the association of knowledge and practice,creating a situation for the capoeira in its historically singular way, linking the knowledge tothe memories and local experiences, without creating hiearchy, trying to reach what permitsthe composition of a historical knowledge of fights and the use of this knowledge in currentlytactics.In contemporaneity, before hegemony ways of showing power that works in producingdominated subjectivity, captured by the consuming logic,having the marketing as the maintool to control and modulation, the experiences that propitiate the singularity, the emergencyof autonomous subjective. The <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, articulating heterogenous aspects such assongs, dance, ancestrality, rituality, and fights breaks the subjective outlines and makes theconquest of malícia as contemporaneous art. the production of this malícia is an endlesspractice, a process that potencialize self-knowledge to self-transform continuously envolvingsingularity. This production is ma<strong>de</strong> in the relationship with the partner in eminent collectivepractices. Therefore, the resistence in capoeira emerges with the conquest of malíciaproduced in the circle, where the body conects body and non-body universes, engen<strong>de</strong>rsnew fields of possibilities in singularizing processes that can reach socio-political dimensions.Keywords: capoeira, Foucault, power, resistence, subjective process, malícia.


SUMÁRIO1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................................................................102. O MÉTODO ..............................................................................................................................................................192.1. Especificida<strong>de</strong>s da pesquisa <strong>de</strong> campo............................................................................................213. A <strong>CAPOEIRA</strong> NO BRASIL ...................................................................................................................................273.1. A proveniência <strong>de</strong> uma tradição..........................................................................................................273.2. No país escravocrata, dança e luta por liberda<strong>de</strong>...........................................................................303.3. A vadiação: escapada das técnicas disciplinares...........................................................................384. A <strong>CAPOEIRA</strong>GEM DA LENÇO DE SEDA NAS TRAMAS HISTÓRICAS ...........................................464.1. Na cida<strong>de</strong> do apito... <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ça: a capoeira na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo.......................................464.2. A conexão da capoeiragem com a Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada e a emergência <strong>de</strong>novos acontecimentos...................................................................................................................................544.2.1. Dexeu Falá..................................................................................................................................................................................554.2.2. A <strong>Capoeira</strong> na Escola Estadual Capitão Egídio Lima.................................................................................................564.2.3. A Festa da Criança Pasárgada...........................................................................................................................................614.2.4. Eixos transversais......................................................................................................................................................................655. A <strong>CAPOEIRA</strong>GEM EM TEMPOS DE MODERNIDADE LÍQUIDA..........................................................675.1. As técnicas <strong>de</strong> governo contemporâneas: a mo<strong>de</strong>lização <strong>de</strong> sujeitos consumidores e osatravessamentos no universo da capoeiragem......................................................................................725.2. Os processos <strong>de</strong> subjetivação e a emergência da resistência pela via da singularida<strong>de</strong>.....775.3. O corpo: das mo<strong>de</strong>lizações dominantes às maquinações <strong>de</strong> resistência ...............................83


6. <strong>CAPOEIRA</strong> ANGOLA: TRADIÇÃO E CRIAÇÃO EM UM DIÁLOGO CORPORAL QUEPOTENCIALIZA A VIDA.............................................................................................................................................866.1. <strong>Angola</strong> <strong>de</strong> Pastinha: filosofia e fundamentos baseados na alegria ............................................886.2. Na roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, gran<strong>de</strong> e pequeno sou eu...............................................................................926.3. A produção da malícia e a arte da existência na contemporaneida<strong>de</strong>................................... 1076.3.1. Ocupar-se <strong>de</strong> si é uma prática constante, <strong>de</strong>senvolvida ao longo da existência............................................1076.3.2. A prática <strong>de</strong> si como uma ocupação regulada, um trabalho com prosseguimentos e objetivos. ...........1096.3.3. Quem quiser cuidar <strong>de</strong> si <strong>de</strong>ve procurar a ajuda <strong>de</strong> um outro...............................................................................1156.3.4. As artes da existência abrem campos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> subjetivações autônomas e singulares.............1196.3.5. A prática <strong>de</strong> si como uma ação política..........................................................................................................................1217. <strong>CAPOEIRA</strong> E ATUALIDADE............................................................................................................................. 1228. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................................. 130REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................................... 137


101. INTRODUÇÃONeste estudo, preten<strong>de</strong>mos investigar como emergem resistências nomovimento da capoeira. Chamamos atenção para o fato <strong>de</strong> que o conceito <strong>de</strong>resistência abordado neste trabalho, inspirado em Foucault, refere-se principalmenteà capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação, invenção do novo, <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> ser e viver.“Movimento” refere-se tanto a se mover e se flexibilizar no ato <strong>de</strong> capoeirar quanto ase mover no mundo, no universo social, estabelecer articulações entre pessoas egrupos, em todos os níveis <strong>de</strong> forças materiais e sociais. Mobiliza um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vivere mudar o mundo em uma experiência <strong>de</strong> movimento social.Por meio da prática prolongada da capoeira emerge a malícia, que não estávinculada à raiz da palavra, que pressupõe a malda<strong>de</strong>, o mal, mas a um saberconquistado. A conquista da malícia, na capoeiragem, engendra um conhecimento<strong>de</strong> si e do mundo que potencializa a produção <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>, em um processo <strong>de</strong>movimento infinito. Portando, investigar a resistência na capoeiragem implica emtrilhar um caminho <strong>de</strong> tradição, luta, contestação e também criação, flexibilida<strong>de</strong>,reinvenção contínua, articulada ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> viver econviver.Segundo Foucault (1977), resistência e po<strong>de</strong>r são conceitos interrelacionados.O po<strong>de</strong>r não é algo transcen<strong>de</strong>nte ou uma substância que se possapossuir ou <strong>de</strong>legar, mas algo imanente, que se manifesta como prática, exercício. Aresistência, por sua vez, é inerente ao po<strong>de</strong>r, ou seja: on<strong>de</strong> há exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r háresistência:Há sempre, com certeza, alguma coisa no corpo social, nas classes, nosgrupos, nos próprios indivíduos que escapa, <strong>de</strong> uma certa maneira, àsrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r; alguma coisa que não é a matéria primeira, mais oumenos dócil ou recalcitrante, mas que é movimento centrífugo, a energiainversa, a escapada (FOUCAULT, 2003, p. 244).A questão que propomos é enten<strong>de</strong>r como se dá essa escapada, como seengendra a resistência na capoeiragem, mediante diferentes configurações dopo<strong>de</strong>r.


12julgamento <strong>de</strong> valor e <strong>de</strong>termina quem tem cultura e quem não tem, sendo usadopara <strong>de</strong>signar diferentes níveis culturais em sistemas <strong>de</strong> valor: as culturas clássicas,populares, científicas, artísticas. Nessa perspectiva, a capoeira é abordada comomanifestação da cultura popular brasileira. O sentido da cultura-alma é sinônimo <strong>de</strong>civilização e remete ao fato <strong>de</strong> que todos têm uma cultura, todos po<strong>de</strong>m reivindicari<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural. Com esse sentido, emergem tanto o etnocentrismo quanto umaespécie <strong>de</strong> policentrismo cultural, com vários eixos etnocêntricos. A abordagem dacapoeira enquanto manifestação da cultura afro-brasileira emerge mediante osentido cultura-alma. Porém, na opinião dos autores, a cultura-alma isola uma esferada cultura em oposição a outros níveis tidos como heterogêneos e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra quea produção <strong>de</strong> sentido na cultura <strong>de</strong> um povo, etnia ou grupo social acontecearticulando esferas diversas, tais como as da arte, da maneira <strong>de</strong> produzir bens, <strong>de</strong>produzir relações sociais.Chauí (1982) também aponta alguns riscos ao abordarmos a questão dacultura. Enfatiza que, na expressão “cultura popular”, o termo “popular” po<strong>de</strong> serassociado ao populismo, uma política <strong>de</strong> manipulação das massas no qual opopular, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>ve ser valorizado, é tomado como realida<strong>de</strong>bruta que necessita ser educada e controlada. Dessa ambigüida<strong>de</strong> resulta umaimagem <strong>de</strong> cultura popular i<strong>de</strong>al, cuja efetivação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> uma “vanguardaesclarecida” (CHAUÍ, 1982, p. 61). Outro risco refere-se ao fato <strong>de</strong> que, no encontro<strong>de</strong> uma cultura do povo com o autoritarismo das elites, as manifestações popularespo<strong>de</strong>m tanto negar ou recusar as culturas dominantes quanto reafirmá-las. A autora<strong>de</strong>staca que “os dominantes” têm interesse em conduzir a noção <strong>de</strong> “popular” para anoção <strong>de</strong> “nacional”, em uma universalização que impossibilita à socieda<strong>de</strong>relacionar-se com suas particularida<strong>de</strong>s, com suas diferenças. Essa lógica <strong>de</strong>universalização está presente inclusive quando a cultura popular é entendida como“cultura dominada e ten<strong>de</strong>-se a mostrá-la como invadida, aniquilada pela cultura <strong>de</strong>massa, (...) envolvida pelos valores dominantes, (...) manipulada pela folclorizaçãonacionalista” (CHAUÍ, 1982, p. 63).Observamos nessa abordagem a presença constante <strong>de</strong> dicotomias,contrapondo cultura popular e cultura dominante, diversida<strong>de</strong> e universalida<strong>de</strong>,cultura <strong>de</strong> massa e cultura <strong>de</strong> elite. Na visão <strong>de</strong> Chauí (1987), quando tomada peloprisma das dicotomias, a abordagem da cultura po<strong>de</strong> sofrer reducionismos por estarenquadrada em concepções do “bem” ou do “mal”, conforme a conveniência


13i<strong>de</strong>ológica do pesquisador. Dito <strong>de</strong> outro modo, a palavra “cultura” po<strong>de</strong> tornar-seuma “palavra-cilada”, “que nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar a realida<strong>de</strong> dos processos emquestão” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 23)Na presente pesquisa, preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>svencilhar-nos <strong>de</strong>ssa cilada daabordagem dicotômica, no intuito <strong>de</strong> alcançar a polifonia, a heterogeneida<strong>de</strong> que seconecta e constitui a capoeiragem: os diferentes saberes e culturas, as diversasformas <strong>de</strong> relacionar-se com o outro e com o mundo, as diferentes maneiras <strong>de</strong>produzir bens, o universo da arte, os atravessamentos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e resistências, emprocessos contínuos <strong>de</strong> transformação e criação, em diferentes tempos e espaços.Nessa perspectiva, não vamos discorrer sobre a capoeira no campo da cultura, sejapelo viés da cultura-alma, como manifestação da cultura afro-brasileira, ou comocultura popular. Ressaltamos que a capoeira, em seu percurso histórico, foiclassificada <strong>de</strong> diferentes formas: como crime, como esporte, hoje figurando naspolíticas públicas no campo da cultura. Entretanto, Guattari afirma que a questãoque se impõe na contemporaneida<strong>de</strong>(...) não é mais quem produz a cultura ou quais vão ser os recipientes<strong>de</strong>ssas produções culturais, mas (...) como produzir novos agenciamentos<strong>de</strong> singularização que trabalhem por uma sensibilida<strong>de</strong> estética, pelamudança da vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo pelastransformações sociais (...) (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.29-30).Enten<strong>de</strong>mos que essa questão coloca em cena o campo <strong>de</strong> reflexão para oqual preten<strong>de</strong>mos direcionar nosso trabalho, a saber: como se configura aresistência na prática da capoeira, ou como a capoeiragem potencializa a criação <strong>de</strong>novas formas <strong>de</strong> vida.Optamos, portanto, por abordar a capoeira como uma experiência. SegundoFoucault (1984), uma experiência articula esferas diversas e constitui-se noentrelaçamento <strong>de</strong> três eixos correlatos: “a formação dos saberes que a ela sereferem; os sistemas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que regulam sua prática e as formas pelas quais osindivíduos po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem se reconhecer como sujeitos [...]” (FOUCAULT, 1984,p.10). Enten<strong>de</strong>mos que pesquisar a capoeira enquanto experiência possibilitaabarcar a diversida<strong>de</strong> que a constitui nos entrelaçamentos entre saberes, relações<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e processos <strong>de</strong> resistência com maior distanciamento <strong>de</strong> possíveisdicotomias.Contudo, ressaltamos que a ênfase <strong>de</strong>ssa abordagem está em investigar atransformação que se produz na capoeiragem, uma vez que a experiência é alguma


14coisa <strong>de</strong> que se sai transformado, que nos <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> do que somos, em umprocesso <strong>de</strong> emergência da diferença (FOUCAULT, 1984). Nesse sentido,buscamos, na capoeira, a diferença produzida, as transformações engendradasnessa prática, tanto na perspectiva individual quanto na coletiva.Enfim, enten<strong>de</strong>r a capoeira como experiência significa explorar as conexões<strong>de</strong>ssa prática com o universo da produção <strong>de</strong> bens, relações sociais, po<strong>de</strong>r, cultura,saber, para alcançar os pontos <strong>de</strong> transformação, a diferença engendrada nosprocessos <strong>de</strong> subjetivação individuais e coletivos, as formas <strong>de</strong> resistência.Outra peculiarida<strong>de</strong> relativa à abordagem da capoeira nessa pesquisa é <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m metodológica. Muitos dos pesquisadores que investigam e escrevem sobre acapoeira são capoeiristas. Assim, estando imersos no mundo da capoeiragem,vivenciando no corpo essa prática, apropriam-se <strong>de</strong> conhecimentos inapreensíveisàqueles que, como esta pesquisadora, observam <strong>de</strong> fora. Reconsi<strong>de</strong>rando, talvez“fora” não seja a palavra mais a<strong>de</strong>quada para <strong>de</strong>signar a perspectiva na qual mecoloco para investigar a capoeira. É possível que o mais a<strong>de</strong>quado seja consi<strong>de</strong>rarum espaço entre, que é fora e <strong>de</strong>ntro. Dentro da roda, não como um dos atores dojogo, mas imerso em um universo <strong>de</strong> sons, movimentos, ritmos, ritualida<strong>de</strong>s queenvolvem e contaminam todos que se aproximam e se <strong>de</strong>ixam afetar por essaexperiência.Dizer da capoeira sem ser capoeirista é como entrar na roda <strong>de</strong> formapropensa a escorregar, a não ser suficientemente perspicaz para compreen<strong>de</strong>r edizer das nuances e malícias que emergem no mundo da capoeiragem. SegundoAbib (2004), esse universo é hermético aos não-iniciados, guardando mistérios esegredos inapreensíveis à racionalida<strong>de</strong> científica, com uma lógica diferenciada, naqual predominam outras temporalida<strong>de</strong>s, outras formas <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> saberes,<strong>de</strong> conceber o divino, outros modos <strong>de</strong> ser e estar no mundo.Ressaltamos que a capoeira é uma experiência que articula diversosuniversos: música, dança, luta, jogo, religiosida<strong>de</strong>, memória. É atravessada porrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e engendra processos <strong>de</strong> subjetivação que transitam entre atradição e a invenção, a repetição e a criação do diferente. Nessa prática, sãoengendrados saberes com uma lógica <strong>de</strong> produção e transmissão singulares, queperpassam o movimento, o corpo, a oralida<strong>de</strong>, a ritualida<strong>de</strong> e extrapolam aracionalida<strong>de</strong> acadêmica cartesiana. Discorrer sobre os sentidos e significados


16estava oculto. A palavra do poeta é aquela que, ao ser pronunciada, <strong>de</strong>svela o quese mantinha encoberto, trazendo à tona a verda<strong>de</strong>, instaurando e mantendo umacompreensão <strong>de</strong> mundo, articulando todo um universo <strong>de</strong> significados. ParaFoucault (1995a),(...) o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas ecotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos dascoisas, suas similitu<strong>de</strong>s dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar<strong>de</strong>les, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em queas palavras cintilavam na semelhança universal das coisas (FOUCAULT,1995a, p.64).Na capoeiragem, principalmente na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> 2 , o lugar <strong>de</strong> mestreevoca o poeta: as palavras do mestre ganham dimensão da poesia, palavras vivasque fluem à semelhança das coisas. Gestos e movimentos produzem linguagenspoéticas que conectam pontos diversos, fun<strong>de</strong>m passado e presente. Partindo darelevância do mestre no universo da capoeiragem, tomaremos seu discurso comoum dos elos <strong>de</strong> articulação entre saberes engendrados na capoeira e saberescientíficos, evocando esse discurso ao longo <strong>de</strong> todo o trabalho.Observamos ainda que, segundo Foucault (1995), a maneira mais propícia àinvestigação sobre po<strong>de</strong>r e resistência implica não apenas em estabelecer relaçõesestreitas entre teoria e prática, mas também em usar “a resistência como catalisadorquímico <strong>de</strong> modo a esclarecer as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” (FOUCAULT, 1995, p.234).Portanto, na tessitura do texto <strong>de</strong>ssa pesquisa, buscaremos guiar-nos pelaexperiência da capoeira, acionando a prática dos capoeiristas da Associação <strong>de</strong><strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> todo o trabalho.Em função <strong>de</strong>ssa peculiarida<strong>de</strong>, apresentamos no capítulo seguinte ametodologia utilizada no processo da presente pesquisa. Nele, <strong>de</strong>screvemos aconstrução metodológica, com a especificação das técnicas utilizadas, eapresentamos o grupo pesquisado, uma vez que esse trabalho se configura comouma pesquisa qualitativa <strong>de</strong>senvolvida através do estudo <strong>de</strong> caso da Associação <strong>de</strong><strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda - núcleo <strong>de</strong> Timóteo/MG. Esse grupo foi fundado em 1978,2 A capoeira contemporânea é praticada em dois estilos diferentes. A <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é um estilocaracterizado por um jogo com movimentos mais próximos ao chão, em um processo <strong>de</strong> diálogocorporal. Trata-se <strong>de</strong> um jogo enca<strong>de</strong>ado, no qual o movimento <strong>de</strong> um capoeirista é diretamenteintricado ao <strong>de</strong> seu contendor, numa articulação contínua <strong>de</strong> perguntas e respostas corporais.Observa-se, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, a manutenção dos rituais e tradições da capoeiragem, umaconexão com a ancestralida<strong>de</strong>. No capítulo seis, apresentamos os fundamentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>.


17pelo mestre Reginaldo Véio 3 e seus amigos, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, Minas Gerais.Atualmente, conta outros núcleos em atuação no Brasil, Itália e Chile e é afiliado àAssociação Brasileira <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> - ABCA <strong>de</strong> Salvador/BA, instituição que éreferência brasileira das práticas <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>.No capítulo três, acessamos a experiência da capoeira por meio daabordagem <strong>de</strong> alguns pontos que sinalizam mudanças no <strong>de</strong>correr da tramahistórica. Ressaltamos que nosso intento não é discorrer sobre toda a história dacapoeira no Brasil, mas elucidar pontos <strong>de</strong> diferenciações que nos parecemsignificativos. Percorrendo alguns dos fios que se entrelaçam na teia <strong>de</strong>ssaexperiência, preten<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r como essa prática surgiu no contextobrasileiro, como se transformou e engendrou novas resistências diante <strong>de</strong> diferentesformas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Priorizamos os pontos que têm conexão com a experiência daAssociação <strong>de</strong> capoeira Lenço <strong>de</strong> Seda.No quarto capítulo, apresentamos a experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong>Lenço <strong>de</strong> Seda, sua gênese na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo e alguns acontecimentos queexpressam como diferentes formas <strong>de</strong> resistência emergiam no contexto urbano, emconexão com a capoeiragem da Lenço <strong>de</strong> Seda.O capítulo seguinte discorre sobre a capoeira na contemporaneida<strong>de</strong>. Nele,buscamos compreen<strong>de</strong>r as configurações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r contemporâneas e como emergea resistência na prática da capoeira nesse contexto. Destacamos que, diante dascapturas capitalísticas dos processos <strong>de</strong> subjetivação, da produção <strong>de</strong> sujeitosconsumidores, a capoeira transforma-se com atravessamentos e capturas <strong>de</strong> formas<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r hegemônicas. Questionamos, então, se a capoeiragem po<strong>de</strong> ser, aindahoje, consi<strong>de</strong>rada uma prática <strong>de</strong> resistência, ou quais as formas <strong>de</strong> resistência quese produzem na capoeiragem em nosso tempo.No capítulo seis, discorremos sobre a capoeira <strong>Angola</strong>, no intuito <strong>de</strong> investigarcomo essa experiência, por meio da conexão entre tradição e invenção, po<strong>de</strong>produzir novas formas <strong>de</strong> resistência. Partimos do pressuposto <strong>de</strong> que roda <strong>de</strong>capoeira se configura como um espaço-tempo que abre campos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s,processos <strong>de</strong> invenção, emergência da singularida<strong>de</strong>. Investigamos como essasingularida<strong>de</strong>, produzida na capoeiragem com o processo <strong>de</strong> construção da malícia,po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma nova forma <strong>de</strong> arte da existência.3 Pseudônimo <strong>de</strong> Reginaldo Consolatrix, mestre <strong>de</strong> capoeira da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda.


18O capítulo sete trata da capoeira e da atualida<strong>de</strong>, buscando diferenças que seapresentam no tempo presente, sinalizações <strong>de</strong> perigos e possibilida<strong>de</strong>s futuras,além <strong>de</strong> discorrer sobre os atravessamentos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e resistência na capoeiraatual.


192. O MÉTODOÔ menino aprenda a ler / ô menino aprenda a ler.Dê uma chance a seu saber.Vai e faça capoeira, pra você se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r.<strong>Capoeira</strong> tem história fundamentada em segredos,Quando parece tá séria, ela não passa <strong>de</strong> brinquedo.Nela não se apren<strong>de</strong> tudo, mais se ganha habilida<strong>de</strong>.Quanto mais você pratica mais conhece a liberda<strong>de</strong>.(MESTRE MOA DO KATENDÊ, 2003)Reafirmamos que <strong>de</strong>senvolver um estudo sobre a capoeira no campoacadêmico é um <strong>de</strong>safio, pois significa promover o encontro entre conhecimentos esaberes produzidos a partir <strong>de</strong> lógicas muito diferentes. De acordo com Abib (2004),os saberes das ciências contemporâneas têm como base uma racionalida<strong>de</strong>herdada do pensamento cartesiano, sustentada pela lógica <strong>de</strong> verificação analítica,<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração da verda<strong>de</strong>, com pretensão <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong>. Tal racionalida<strong>de</strong>nem sempre abarca a multiplicida<strong>de</strong> do real, tampouco as singularida<strong>de</strong>s douniverso da capoeiragem.Sendo assim, para discorrer sobre a capoeira é necessário reapren<strong>de</strong>r a ler,como se canta na ladainha, pois a capoeira tem histórias e saberes fundamentadosem segredos. Então, dizer da capoeira no universo acadêmico requer umametodologia que possibilite problematizar essa experiência em sua formahistoricamente singular e reativar saberes locais, “(...) para torná-los capazes <strong>de</strong>oposição e <strong>de</strong> luta contra a coerção <strong>de</strong> um discurso teórico, unitário, formal”(FOUCAULT, 1986, p.172). Com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver um trabalho nessadireção, optamos por uma abordagem metodológica em proximida<strong>de</strong> com agenealogia foucaultiana.Esclarecemos que uma abordagem singular, local, não implica em ausência<strong>de</strong> rigor. Foucault (2003) aponta que um trabalho genealógico tem sua generalida<strong>de</strong>,sua sistematização e sua homogeneida<strong>de</strong>.A generalida<strong>de</strong> apresenta-se nos modos <strong>de</strong> problematização, na maneira <strong>de</strong>analisar questões historicamente singulares em seus aspectos <strong>de</strong> alcance geral, esignifica “abrir problemas tão concretos e gerais quanto possível” (FOUCAULT,2004, p.220). Ao investigarmos a experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>


20Seda, preten<strong>de</strong>mos problematizar questões locais, singulares, com atravessamentosgerais em relação à capoeira no Brasil e às formas <strong>de</strong> resistência nacontemporaneida<strong>de</strong>.A sistematização está na articulação da pesquisa em torno <strong>de</strong> três eixos, nosquais é preciso analisar a especificida<strong>de</strong> e o intrincamento: o eixo do saber, o dopo<strong>de</strong>r e o da subjetivida<strong>de</strong>.Em relação à homogeneida<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> tomar como domínio homogêneoas formas <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> que organizam as maneiras <strong>de</strong> fazer (aspectotecnológico) e a liberda<strong>de</strong> com a qual os homens agem nesses sistemas práticos,reagindo e modificando o que os outros fazem (versão estratégica). De acordo como autor, a homogeneida<strong>de</strong> é assegurada pelo domínio das práticas, com sua versãotecnológica e sua versão estratégica. Dessa maneira, Foucault contempla, nahomogeneida<strong>de</strong>, a diversida<strong>de</strong>, pois, em cada contexto, em cada local, as versõestecnológicas e estratégicas assumem formas particulares e singulares.Enten<strong>de</strong>mos que, na capoeira, essa articulação entre aspecto tecnológico eversão estratégica po<strong>de</strong> ser observada no processo <strong>de</strong> aprendizagem, que se dádurante os treinos e na roda. Nos treinos, há um processo <strong>de</strong> repetição dos golpes,movimentos corporais que são a base da capoeira, instituídos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem.Esses movimentos, como a ginga, o aú, o rabo <strong>de</strong> arraia, apesar das transformaçõesao longo da história, preservam uma base que se repete, como uma tecnologia quecaracteriza a prática da capoeira. No entanto, é comum, no universo dacapoeiragem, a fala <strong>de</strong> que há uma capoeira para cada capoeirista, uma vez quecada um constrói e cria um jeito próprio <strong>de</strong> gingar, <strong>de</strong> se movimentar e <strong>de</strong> jogar.Durante o jogo, na roda, aqueles golpes e movimentos adquirem uma versãoestratégica. Através da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação, particularida<strong>de</strong>s e multiplicida<strong>de</strong>semergem a cada movimento, num processo <strong>de</strong> invenção singular <strong>de</strong> cada jogador,grupo e/ou linhagem <strong>de</strong> mestre. Essa articulação entre as versões tecnológica eestratégica po<strong>de</strong> ser observada também nas músicas, nos ritmos do berimbau, nashistórias, enfim, em todos os elementos que compõem essa experiência que gerasingularida<strong>de</strong>s. Assim, reiteramos nossa opção por uma abordagem na perspectivagenealógica, por entendê-la a<strong>de</strong>quada a uma pesquisa sobre a experiência dacapoeira na contemporaneida<strong>de</strong>.Destacamos, ainda, que compreen<strong>de</strong>mos a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma pesquisagenealógica e não nos posicionamos como “genealogista puro-sangue”, mas como


21pesquisadora que se lança na experiência <strong>de</strong> investigar a capoeira com a intenção<strong>de</strong> produzir um trabalho teórico-ético-político, articulando a coerência teórica com asformas particulares <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> saber e subjetivação que emergem nacapoeiragem.2.1. Especificida<strong>de</strong>s da pesquisa <strong>de</strong> campoA Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seus 28 anos <strong>de</strong>história, atuou e atua em locais e frentes muito diversificadas, sempre ligados amovimentos educacionais, sociais e culturais. Atualmente, os capoeiristas da “Lenço<strong>de</strong> Seda” <strong>de</strong>senvolvem ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> capoeira no Brasil e no exterior, em escolas,empresas, áreas comunitárias e na se<strong>de</strong> da associação, atuando junto a crianças,adolescentes e adultos. Diante <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências, fez-se necessáriaa utilização <strong>de</strong> estratégias metodológicas diversas e também a invenção <strong>de</strong> modosespecíficos no uso das técnicas <strong>de</strong> pesquisa, no processo <strong>de</strong> investigação sobre ahistória e as vivências contemporâneas <strong>de</strong>sse grupo.A articulação histórica entre passado e presente é colocada aqui não em umarelação causa/efeito, mas no sentido <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r os processos <strong>de</strong> mudançashistóricas conectadas aos acontecimentos contemporâneos, que também estão emmovimento. Uma atitu<strong>de</strong> histórico-crítica, para abrir um domínio <strong>de</strong> pesquisashistóricas e se colocar à prova da realida<strong>de</strong> (FOUCAULT, 2003). Nessa direção, foirealizado um estudo <strong>de</strong> caso da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, tendocomo foco o grupo da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Foram utilizados os seguintesprocedimentos: pesquisa documental, observação participante, entrevistasindividuais semi-estruturadas e grupos focais.A pesquisa documental constou <strong>de</strong> leitura e análise <strong>de</strong> reportagens, cartazes<strong>de</strong> divulgação, letras <strong>de</strong> músicas, panfletos, regimentos internos, atas <strong>de</strong> reunião eoutros escritos. Foram acessados também fitas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o, fotos e CDs gravados pelogrupo.A observação participante teve início no segundo semestre <strong>de</strong> 2005 e tornouse,no <strong>de</strong>correr do processo, o que Cruz (1996) <strong>de</strong>nominou uma “participaçãoobservante”, significativo envolvimento no cotidiano do grupo e na prática da


22capoeira. Essa mudança no uso da técnica se configurou a partir do primeiro contatocom o mestre Reginaldo Véio para apresentação da proposta da pesquisa. Nessaocasião, o mestre disse que, para pesquisar a capoeira na Lenço <strong>de</strong> Seda, eranecessário experimentar a capoeiragem, colocando o corpo para jogar, pois existemaspectos <strong>de</strong>ssa vivência que só compreen<strong>de</strong> quem pratica. Finalizando, o mestreressaltou: “sobre a capoeira eu converso com capoeiristas, não comcapoeirólogos" 4 .Com a palavra “capoeirista”, o mestre referia-se às pessoas que vivenciam acapoeira com o corpo, enquanto “capoeirólogos” seriam os que estudam e falamsobre a capoeira sem experimentar corporalmente essa prática, o que equivale àletra da ladainha 5 que diz: “vai e faça capoeira, nela não se apren<strong>de</strong> tudo, mas seganha habilida<strong>de</strong>”. Provavelmente, habilida<strong>de</strong> para buscar compreen<strong>de</strong>r ou alcançaros mistérios da capoeiragem.Assim, iniciou-se o trabalho <strong>de</strong> “participação observante”, incluindo aexperimentação corporal da capoeira.(...) além <strong>de</strong> proporcionar o registro objetivo das ativida<strong>de</strong>s e eventos, essasituação <strong>de</strong> aprendiz colocou-me diante <strong>de</strong> um mundo subjetivo, <strong>de</strong>vivências emocionais, afetivas, que pesaram muitíssimo na minhainterpretação e análise (CRUZ, 1996, p.157).Em relação às entrevistas semi-estruturadas, a escolha <strong>de</strong>ssa técnica ocorreuem consonância com alguns aspectos relevantes da capoeira. Abib (2004) observaque, na capoeira, a oralida<strong>de</strong> exerce papel fundamental. É por ela que se dá atransmissão das histórias, das vivências, dos saberes da capoeiragem. Sendoassim, a entrevista <strong>de</strong> pesquisa é inestimável, principalmente se realizada na forma<strong>de</strong> entrevista reflexiva, ou seja:(...) como um encontro interpessoal no qual é incluída a subjetivida<strong>de</strong> dosprotagonistas, po<strong>de</strong>ndo se constituir um momento <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> umnovo conhecimento, nos limites <strong>de</strong> representativida<strong>de</strong> da fala e na busca <strong>de</strong>uma horizontalida<strong>de</strong> nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (...) (SZYMANSKI, 2004, p.14).De acordo com Szymanski (2004), uma entrevista na perspectiva reflexiva<strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar o momento da entrevista como processo <strong>de</strong> interação entreentrevistador e entrevistado, atravessado por diversos aspectos: emocionais,contextuais e <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, sistemas <strong>de</strong> crenças e valores. Assim,4 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 06/02/06.5 Ladainha é um estilo <strong>de</strong> música que se canta na roda <strong>de</strong> capoeira.


23significados são construídos e a entrevista torna-se um momento <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>idéias e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um discurso para o interlocutor, o que caracteriza umrecorte da experiência, um saber particularizado. Ratificamos, então, a relevância daentrevista em uma pesquisa sobre a capoeira, sendo um momento <strong>de</strong> organizaçãodo discurso sobre essa prática que tem, na oralida<strong>de</strong>, uma forte tradição <strong>de</strong>transmissão <strong>de</strong> saberes.Nessa perspectiva, foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas.Foram entrevistados o mestre <strong>de</strong> capoeira da Associação, um contramestre, doisprofessores e a madrinha do grupo. A opção pela entrevista semi-estruturada <strong>de</strong>u-semediante o fato <strong>de</strong> que essa estratégia permite focar temas e/ou questões doestudo, ao mesmo tempo em que possibilita ao entrevistado abordá-los utilizandohistórias e relatos <strong>de</strong> experiências, com uma margem <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.Os entrevistados, ao serem citados no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sse trabalho, sãoi<strong>de</strong>ntificados pelo nome através do qual são conhecidos no universo dacapoeiragem. Ressaltamos que Mestre Reginaldo Véio, Pepinha, JorginhoEscorpião e a Madrinha Flor fazem parte da associação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua gênese. No casodo Professor Maia, é a capoeira e a Associação Lenço <strong>de</strong> Seda que fazem parte dahistória <strong>de</strong> sua vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância.Com esse universo <strong>de</strong> entrevistados, acreditamos contemplar duasdimensões em relação à experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda. A primeira diz respeito aotempo <strong>de</strong> vivências no percurso histórico do grupo. A segunda refere-se àdiversida<strong>de</strong> das experiências e ao espaço <strong>de</strong> atuação. Professor Maia atua na ilha<strong>de</strong> Sar<strong>de</strong>gna, na Itália, on<strong>de</strong> fundou e coor<strong>de</strong>na as ativida<strong>de</strong>s da Associação <strong>de</strong><strong>Capoeira</strong> Malta dos Zuavoz e participa ativamente da elaboração e execução <strong>de</strong>projetos <strong>de</strong>senvolvidos na se<strong>de</strong>. Pepinha, Jorginho Escorpião e Madrinha Floratuam na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, Minas Gerais, e compõem, juntamente com mestreReginaldo Véio, o núcleo que orienta e coor<strong>de</strong>na as ações realizadas na Se<strong>de</strong> daAssociação.Jorginho oferece aulas <strong>de</strong> capoeira para as crianças do bairro on<strong>de</strong> mora.Pepinha atua como capoeirista contratado pela Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> Ensino,ministrando aulas <strong>de</strong> capoeira para crianças <strong>de</strong> 6 a 15 anos em escolas situadas embairros periféricos da cida<strong>de</strong>.Madrinha Flor é pedagoga e, além <strong>de</strong> acompanhar as ativida<strong>de</strong>s da se<strong>de</strong>,atua como elo entre a capoeiragem e o universo escolar. A função <strong>de</strong> madrinha


24emerge na capoeiragem mediante o ritual do batizado. Conforme mestre Bola Sete(CRUZ, 2006), o batizado é um ritual <strong>de</strong> iniciação em que o aluno recebe seu nome<strong>de</strong> guerra na capoeiragem, posto por um padrinho, que po<strong>de</strong> ser seu mestre, mestreconvidado ou um capoeirista mais experiente. Nos batizados da Lenço <strong>de</strong> Seda,emerge e figura da madrinha, que, conforme Flor, tem a função <strong>de</strong> ser elemento <strong>de</strong>apoio, contribuindo para a sensibilização e busca do equilíbrio diante dos conflitosnas relações do grupo na capoeiragem. É comum, no universo da capoeiragembaiana, que os capoeiristas acessem, através do candomblé, a força do femininopresente nos aconselhamentos e bênçãos das suas mães-<strong>de</strong>-santo. De acordo comMestre Reginaldo Véio 6 , na trajetória da Lenço <strong>de</strong> Seda, a madrinha coloca em cenaa dimensão do feminino, uma força que acompanha, incentiva, aconselha, acolhe,suaviza e equilibra a potência <strong>de</strong> luta. Madrinha Flor <strong>de</strong>sempenhou e <strong>de</strong>sempenhaesse papel no grupo, principalmente para os capoeiristas da primeira geração <strong>de</strong>crianças que se formaram na Lenço <strong>de</strong> Seda.Mestre Reginaldo Véio, no cumprimento <strong>de</strong> sua função <strong>de</strong> mestre,acompanha e orienta a prática da capoeiragem em todos os grupos que compõem aAssociação e dirige os trabalhos e práticas <strong>de</strong> capoeira da se<strong>de</strong>, em Timóteo. Háaproximadamente trinta anos, Mestre Véio atua também na área da saú<strong>de</strong>, comoterapeuta em medicinas alternativas inspiradas em técnicas chinesas ou hindus,com práticas <strong>de</strong> acupuntura, quiropatia, shiatsu, tui-na, leitura corporal, florais ehomeopatia. Sua experiência no campo terapêutico articula-se à capoeiragem: paraele, a capoeira constitui-se também como prática terapêutica. Em seu discurso,sobre a capoeira, observamos a presença <strong>de</strong> vocabulário e <strong>de</strong> elementos similaresàqueles presentes no campo da saú<strong>de</strong>, o que não expressa apenas umacoincidência <strong>de</strong> palavras, mas a aproximação em relação a alguns conceitosabordados nessa pesquisa.O trabalho com grupo focal foi concebido a partir da interseção entre cincopesquisadores que <strong>de</strong>senvolviam trabalhos acadêmicos em relação à história daLenço <strong>de</strong> Seda: três monografias <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> especialização – nasáreas <strong>de</strong> educação e produção cultural – e dois trabalhos <strong>de</strong> dissertação <strong>de</strong>mestrado – um na área <strong>de</strong> História e o outro, nossa pesquisa.6 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


25De acordo com Meier e Kudlowiez (2003), o grupo focal é uma técnica quepropicia o encontro <strong>de</strong> pessoas ligadas entre si por constantes <strong>de</strong> tempo e espaço,articuladas em torno <strong>de</strong> uma tarefa. Busca-se, nesses encontros, instituir um locusfacilitador <strong>de</strong> expressão e propiciar a manifestação <strong>de</strong> percepção, crenças, valores,atitu<strong>de</strong>s e representações sociais sobre o tema em questão, além <strong>de</strong> possibilitar ainvestigação e a produção <strong>de</strong> conhecimentos.Nessa perspectiva, aconteceram três encontros entre os pesquisadores emembros da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, com objetivo <strong>de</strong> conhecertodos os projetos <strong>de</strong> pesquisas e discutir a história da Associação. Foramapresentados os projetos e seus respectivos objetos <strong>de</strong> estudo, os pontos <strong>de</strong>conexão das pesquisas com a história da Lenço <strong>de</strong> Seda e, principalmente, osrelatos, a discussão e a análise <strong>de</strong> fatos e acontecimentos que os membros daAssociação consi<strong>de</strong>ram importantes. Simultaneamente, foram colocados àdisposição dos pesquisadores os arquivos documentais da Associação.O grupo focal foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para essa pesquisa. Além <strong>de</strong>propiciar relatos da história da Associação e lembranças <strong>de</strong> acontecimentospassados, possibilitou ao grupo uma reflexão sobre a Instituição nacontemporaneida<strong>de</strong>, engendrando a produção <strong>de</strong> novos conhecimentos.Destacamos que as diversas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas no processo <strong>de</strong>pesquisa, além <strong>de</strong> possibilitar ao grupo espaços <strong>de</strong> reflexão acerca <strong>de</strong> sua história eexperiências contemporâneas, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram também novos acontecimentos.Dessa forma, o processo <strong>de</strong> pesquisa aproximou-se da abordagem metodológica<strong>de</strong>nominada pesquisa-ação. Minayo (1996), citando Thiollent, aponta que apesquisa-ação se caracteriza como um tipo <strong>de</strong> pesquisa no qual há uma estreitaarticulação com uma ação ou resolução <strong>de</strong> um problema coletivo – um processo noqual pesquisador e participantes estão envolvidos <strong>de</strong> modo cooperativo eparticipativo na realização da referida ação.Ressaltamos que, no presente trabalho, não havia intenção inicial nessadireção, todavia, em seu processo a pesquisa constituiu-se como experiência queproduziu transformações nas práticas do grupo, da pesquisadora e no próprio ato <strong>de</strong>pesquisar. Essa experiência, atravessada por diferentes fatores, funcionou comocatalisador <strong>de</strong> novas ações, novos acontecimentos. Dentre eles, a realização <strong>de</strong> doisencontros, nos quais se reuniram membros da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda, pesquisadores e convidados da comunida<strong>de</strong>: pessoas que estiveram


26presentes no <strong>de</strong>correr do percurso histórico da Associação, educadores,representantes do po<strong>de</strong>r público, <strong>de</strong> movimentos sociais, professores universitáriose outros.O primeiro encontro, <strong>de</strong>nominado “Nas voltas que o mundo dá - encontro <strong>de</strong>Pesquisadores”, foi realizado em agosto <strong>de</strong> 2006. Nele, foram apresentadas aspesquisas em andamento, seus enfoques teóricos e as diferentes abordagens daexperiência da Lenço <strong>de</strong> Seda. No <strong>de</strong>correr das apresentações, os convidadosparticiparam com explanações, questionamentos e <strong>de</strong>bates.Entre o primeiro e o segundo encontro, outro acontecimento emergiu: osmembros da associação, em parceria com a pesquisadora <strong>de</strong>ste trabalho,elaboraram um projeto <strong>de</strong> recuperação e conservação <strong>de</strong> acervo histórico,encaminhado ao Fundo Estadual <strong>de</strong> Cultura e, posteriormente, selecionado eaprovado. Esse fato <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou novas ações, inclusive a realização <strong>de</strong> umsegundo encontro, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2006. Nele, o projeto <strong>de</strong> recuperação econservação do acervo histórico da Associação foi apresentado à comunida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>stacando-se a importância <strong>de</strong>sse acervo para pesquisas sobre a história daInstituição e da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Houve também reflexões e <strong>de</strong>bates em torno dostemas memória, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e transformações nas formas <strong>de</strong> resistência queemergem na capoeira e na prática da Lenço <strong>de</strong> Seda, articulada à vida na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Timóteo.Os eventos citados <strong>de</strong>monstram como o processo <strong>de</strong> pesquisa produziudiferenças na experiência do grupo, tendo sido um dos elementos <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adores<strong>de</strong> acontecimentos que alcançaram a comunida<strong>de</strong> e continuam se multiplicando emnovas ações, como a alteração, no final <strong>de</strong> 2006, do regimento da Associação, coma inclusão <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>partamentos, entre eles, um <strong>de</strong> relações acadêmicas euniversitárias. Além disso, houve o planejamento e a organização do grupo para arealização do trabalho <strong>de</strong> recuperação do acervo a ser realizado em 2007 e apreparação <strong>de</strong> novo encontro para apresentação da pesquisa, após sua conclusão.


273. A <strong>CAPOEIRA</strong> NO BRASIL: ARTICULAÇÕES DE PODER E DE LIBERDADENAS RODAS E NA VIDA3.1. A proveniência <strong>de</strong> uma tradiçãoLá on<strong>de</strong> a alma preten<strong>de</strong> se unificar, lá on<strong>de</strong> o Eu inventa para si umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ou coerência, o genealogista parte em busca do começo – doscomeços enumeráveis que <strong>de</strong>ixam esta suspeita <strong>de</strong> cor, esta marca quaseapagada que não saberia enganar um olho, por pouco histórico que seja; aanálise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares erecantos <strong>de</strong> sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos(FOUCAULT, 1986, p.20).É comum, no universo da capoeiragem, a discussão sobre a origem dacapoeira. Alguns afirmam que ela veio da África, outros, que é uma experiênciaproduzida em terras brasileiras. Contudo, quando nos propomos a discorrer sobre agênese da capoeira, não buscamos um ponto original, mas investigar como essaexperiência se engendrou, como se formou a teia que gerou a capoeiragem: osinumeráveis começos no processo <strong>de</strong> sua produção, as marcas singulares, asdispersões, as conexões <strong>de</strong> diferentes universos que se entrecruzaram epropiciaram o advento <strong>de</strong>ssa prática no contexto brasileiro - enfim, sua proveniência(FOUCAULT, 1986).Rego (1968) aponta a dificulda<strong>de</strong> em se afirmar a origem da capoeira, poisexistem poucos registros sobre a data da chegada ou sobre a procedência dosnegros que aqui aportavam como escravos. Segundo o autor, há historiadoresafricanistas com tendência a consi<strong>de</strong>rar que os primeiros negros aportados emterras brasileiras seriam <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>. Nas cantigas, nos toques, nos movimentos enas histórias da capoeira, é comum a referência à capoeira <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, assim comoa associação <strong>de</strong> sua origem às danças-rituais do sudoeste da África. A partir <strong>de</strong>ssasinformações, po<strong>de</strong>ríamos crer que a capoeira teve sua origem no continenteafricano. Esse discurso é corrente no universo da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, assim como naselaborações <strong>de</strong> pesquisadores que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m uma africanização <strong>de</strong>ssa experiência.Contudo, uma pesquisa sobre a proveniência da capoeira incita-nos a buscar aheterogeneida<strong>de</strong> do que se imaginava o único elemento fundante.


28Abib (2004) sinaliza traços <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong> no surgimento da capoeira,quando diz que ela brotou espontaneamente, <strong>de</strong> forma heterogênea, em diferenteslocais do Brasil. Aponta que é importante consi<strong>de</strong>rar a existência <strong>de</strong> outrasmanifestações semelhantes à capoeira tal como a conhecemos em nosso país nãosó na África, mas também em vários pontos da América. Ressalta que “(...) nãopo<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o processo híbrido que caracterizou a formação dasmanifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas” (ABIB, 2004, p.87).Em relação aos povos africanos que chegavam ao Brasil no período daescravidão, Rego acrescenta que, “além da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação,buscavam os negros elementos <strong>de</strong> outros folguedos e <strong>de</strong> coisas outras doquotidiano para inventarem novos folguedos, como teria sido o caso da capoeira”(REGO, 1968, p.32). Mestre Reginaldo Véio, ao discorrer sobre o surgimento dacapoeira, apresenta alguns dos elementos, ou “coisas outras do cotidiano” que searticularam na produção <strong>de</strong>sse “novo folguedo”:O surgimento da capoeira, eu vejo também <strong>de</strong> uma maneira diferente, claroque não foi uma coisa intencional, foi mais uma coisa que resultou dasconjunturas ali do momento... ninguém se propôs a criar uma luta. E aquiloveio <strong>de</strong> que maneira então? Veio da lembrança dos animais da África, veiodas lembranças das danças primitivas, veio da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventarbrinca<strong>de</strong>iras pras crianças, pros adolescentes, dar pra eles ativida<strong>de</strong> lúdica,<strong>de</strong> prazer (...). Então, ali se foram cruzando, inclusive, elementos do branco,elementos do índio, que aci<strong>de</strong>ntalmente transitavam ali <strong>de</strong>ntro. (...) Dentro<strong>de</strong>sse contexto vai resultando - eu imagino - uma coreografia que respondiaàquele contexto todo (...). É um momento muito rico, um fervedouro, umapanela quente fervendo cultura (MESTRE REGINALDO VÉIO) 7A partir da história contada pelo mestre, observamos que a capoeira é umaprática intrincada aos diversos aspectos que atravessam a vida, que traz em sielementos da cultura africana e incorpora outros, próprios <strong>de</strong> uma experiênciavivenciada no contexto brasileiro, com entrelaçamentos heterogêneos <strong>de</strong> diferentesgrupos, culturas, saberes, <strong>de</strong>sejos. Uma acontecimentalização que, <strong>de</strong> acordo comFoucault (2004), emerge através <strong>de</strong> conexões complexas, com processos históricosmúltiplos, produzindo ruptura das evidências:(...) on<strong>de</strong> se estaria bastante tentado a se referir a uma constante histórica,ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência se impondoda mesma maneira para todos, trata-se <strong>de</strong> fazer surgir uma singularida<strong>de</strong>(FOUCAULT, 2004, p. 339).7 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


29Enten<strong>de</strong>mos que investigar o advento da capoeria no Brasil implica em buscarrupturas diversas: da evidência <strong>de</strong> que a capoeira é uma prática <strong>de</strong> origem africana,da evidência dos contornos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos grupos e culturas, da evidência <strong>de</strong>que, diante <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> dominação-escravidão, toda prática <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> écerceada, impossibilitada, sendo a contra-força a única forma <strong>de</strong> resistência. Enfim,buscar as inumeráveis rupturas que se abrem e se reencontram em novasconexões, produzindo uma experiência singular.Compreen<strong>de</strong>r a capoeira como acontecimentalização é operar por meio <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>smultiplicação causal, que, na visão <strong>de</strong> Foucault (2004), consiste em analisaros processos múltiplos que constituem o acontecimento. Dessa maneira, investigar aproveniência da capoeiragem no Brasil requer analisar a condição <strong>de</strong> vida dosnegros escravos, as tradições africanas, o encontro entre diferentes etnias africanase brasileiras, o contexto escravista, a conexão <strong>de</strong> diferentes linguagens. Taisprocessos <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>scompostos, visto que cada um <strong>de</strong>les também se compõeem atravessamentos diversos.Nessa perspectiva, é necessário consi<strong>de</strong>rar a capoeira como um “poliedro <strong>de</strong>inteligibilida<strong>de</strong>” (FOUCAULT, 2004, p. 340), cujo número <strong>de</strong> faces é in<strong>de</strong>finido enunca po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado concluído. Trata-se <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> conexõesheterogêneas, no qual elementos diferentes são postos em relação, <strong>de</strong> diversasformas, sem ponto central ou intencionalida<strong>de</strong> específica, por meio da interação,fusão e conexão entre danças, músicas, religiosida<strong>de</strong>, ritualida<strong>de</strong>, corpos, <strong>de</strong>sejos,sonhos, elementos do índio, do negro, tradição e invenção, em movimento contínuo<strong>de</strong> transformação. A capoeiragem é simultaneamente dança-luta-jogo, exercício <strong>de</strong>alegria e liberda<strong>de</strong> do corpo na dança, <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> força, valentia e po<strong>de</strong>r nogrupo, jogo <strong>de</strong> dissimulação diante da dominação escravista, contra-força e luta nasestratégias <strong>de</strong> fuga do negro escravo. Mediante esse polimorfismo <strong>de</strong> elementos erelações, ela adquire manifestações diferentes, a cada tempo e espaço, como “umprojétil inteligente, que amadurece na medida em que caminha” (MESTREREGINALDO VÉIO) 8 .Com intuito <strong>de</strong> investigar, nesse movimento, as mudanças <strong>de</strong> direção e ospolimorfismos que emergem, serão pontuadas algumas diferenças <strong>de</strong>ssa prática no<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua historia.8 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


303.2. No país escravocrata, dança e luta por liberda<strong>de</strong>A capoeiragem surgiu no Brasil em um período no qual predominava umestado <strong>de</strong> dominação, ou melhor, <strong>de</strong> dominação-escravidão. De acordo comFoucault (2004), os estados <strong>de</strong> dominação acontecem em circunstâncias nas quaisas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r se encontram cristalizadas, com poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>reversão, com mecanismos disciplinares rígidos e coercitivos, ou seja, “(...) quandoum indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilida<strong>de</strong> do movimento (...)”(FOUCAULT, 2004, p.266).A partir das elaborações <strong>de</strong> Domingues e Fiusa (1996), <strong>de</strong>stacamos o estado<strong>de</strong> dominação estabelecido no contexto brasileiro, mediante a relaçãocolonizado/colonizador. O Brasil era uma colônia <strong>de</strong> exploração sob o mo<strong>de</strong>lomercantilista. Conforme Bosi (1998), esse ímpeto mercantil e predatório é o queconstituiu, em termos <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> riquezas, a aceleração econômica damatriz colonizadora.A mão-<strong>de</strong>-obra escrava estabelece-se em conexão com esse mo<strong>de</strong>lo.Segundo Domingues e Fiusa (1996) a escravidão do índio era inviável, pois suacaptura e venda gerariam negócios internos. Além disso, o uso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obraassalariada também era inconveniente, por gerar renda que não seria revertida paraa metrópole. Assim, a escravidão <strong>de</strong> negros africanos configurou-se como aestratégia mais conveniente, pois a compra <strong>de</strong> negros dos traficantes metropolitanosgerava mais uma fonte <strong>de</strong> renda para Portugal, que controlou o tráfico negreiro<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XV. Autores apontam que, até o final do século XVIII, o Brasil haviarecebido cerca <strong>de</strong> dois milhões <strong>de</strong> negros africanos.Nesse cenário, a diferença <strong>de</strong> cor torna-se “o sinal mais ostensivo da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que reina entre os homens; e, na estrutura colonial escravista, ela éum traço inerente à separação dos estratos e das funções sociais” (BOSI, 1998,p.106). Até o século XVII, a socieda<strong>de</strong> brasileira apresentava uma estrutura socialimóvel e estratificada. Havia basicamente dois grupos isolados: <strong>de</strong> um lado, oscolonos latifundiários; <strong>de</strong> outro, a gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> negros escravos (DOMINGUES;FIUSA, 1996).


31No escravismo, os senhores – colonos latifundiários – exerciam plenospo<strong>de</strong>res sobre a vida dos negros que aqui aportavam. O exercício do po<strong>de</strong>r dava-sepor meio <strong>de</strong> mecanismos muito severos, com técnicas coercitivas como castigos eviolências corporais. Um po<strong>de</strong>r exercido com plenos direitos <strong>de</strong> vida e morte, ou,segundo Foucault (1977), um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> morte, pois o senhor po<strong>de</strong>ria matar seuescravo, legitimamente, a título <strong>de</strong> castigo. Buarque <strong>de</strong> Holanda (1976) relata que,na história das senzalas, há muitos casos <strong>de</strong> mortes e <strong>de</strong>formações por excesso <strong>de</strong>espancamento.Esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> morte associava-se a outras formas <strong>de</strong> dominação, quepretendiam gerir a vida. Uma <strong>de</strong>las era a separação dos negros <strong>de</strong> uma mesmafamília ou grupo. Quando chegavam ao Brasil, os negros se tornavam objeto <strong>de</strong> umapolítica oficial <strong>de</strong> dominação. Para evitar laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, grupos e famíliaseram separadas e etnias rivais eram colocadas lado a lado (CRUZ, 1996).Mediante esse po<strong>de</strong>r exercido em relações <strong>de</strong> forças assimétricas, aspossibilida<strong>de</strong>s e margens <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> eram estreitas. A resistência era, quasesempre, pelo viés da contestação, negação, reação à força, com revoltas e rebeliõesescravas negras, fugas individuais ou coletivas, rituais religiosos <strong>de</strong> vingança,revoltas armadas.Porém, essa resistência negativa não era a única: emergem,simultaneamente, estratégias <strong>de</strong> resistência positivas. A chegada dos povosafricanos ao Brasil representava não apenas a chegada <strong>de</strong> força <strong>de</strong> trabalho, masum contingente <strong>de</strong> culturas, mitos, rituais, jeitos <strong>de</strong> viver e tradições oriundas dasterras d’África. Esses povos inventaram formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> suas tradições eengendraram códigos e práticas novas, <strong>de</strong>ntre elas, a capoeira, que era, inclusive,utilizada pelos negros “como um instrumento <strong>de</strong> luta (...) no qual o saber corporalinscrito em cada perna, braço, tronco, cabeça e pé podia ser transformado numaarma eficaz a serviço da sua libertação” (ABIB, 2004, p.89). Diante <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong>dominação-escravidão, a luta não po<strong>de</strong>ria estar explicitamente manifestada:A coreografia que abria o cenário, com espaço para o corpo, tinha umimpulso <strong>de</strong> resistência e tomada <strong>de</strong> consciência das diferenças culturais, dacondição da escravidão, que exigia muito uma prática <strong>de</strong> combate. (...) Nomeu enten<strong>de</strong>r, a capoeira-dança camuflou a possibilida<strong>de</strong> do jogo e, ali<strong>de</strong>ntro, escon<strong>de</strong>u a possibilida<strong>de</strong> da luta (Mestre Reginaldo Véio) 9 .9 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


32Portanto, mesmo em circunstâncias nas quais predominam estados <strong>de</strong>dominação é possível haver resistência como processo <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong>, que traz aemergência do novo, do diferente. Nesse(...) quadro <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong>, os negros <strong>de</strong>senvolveram estratégias <strong>de</strong>sobrevivência e abriram espaços on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ram reverter certas relações <strong>de</strong>dominação (...). A capoeira foi, sem dúvida, uma das expressões utilizadaspelos negros na construção <strong>de</strong> seus espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (...) (CRUZ, 1996p. 25).Na capoeiragem, a construção <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> produz-se naconexão dança-luta-jogo, com atravessamentos <strong>de</strong> música, ritmos, rivalida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>sejos, culturas, ritualida<strong>de</strong>s: corpos, movimento e ritmos abrindo campos <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s para inventar novas formas <strong>de</strong> viver e conviver.É comum imaginarmos a capoeira nascendo no contexto rural, nas senzalasdas fazendas, nos quilombos. Todavia, na opinião <strong>de</strong> Nestor <strong>Capoeira</strong> (1998), é nocontexto da cida<strong>de</strong> que seu crescimento e sua transformação foram maisexpressivos. Reis (1997) <strong>de</strong>clara que não existem pesquisas históricas acerca dacapoeira dos séculos XVI a XVIII, o que dificulta a reconstituição do processo <strong>de</strong><strong>de</strong>slocamento da capoeiragem do campo para a cida<strong>de</strong>.Rego (1968) cita a opinião <strong>de</strong> Nascentes 10 , segundo o qual o termo capoeirasurge a partir dos escravos que traziam capoeiras <strong>de</strong> galinhas para ven<strong>de</strong>r nomercado. Enquanto o espaço <strong>de</strong> venda não era aberto, eles divertiam-se jogandocapoeira. Cruz (1996) ressalta a importância da capoeiragem como elemento <strong>de</strong>socialização dos negros e espaço <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> diferentes universos sócioculturais,no contexto urbano. Com as elaborações <strong>de</strong>sses autores, po<strong>de</strong>mosobservar que emergiam formas diferentes <strong>de</strong> manifestação da capoeira nosencontros que aconteciam nas ruas da cida<strong>de</strong>. Nesse contexto, essa experiênciaganhou maior visibilida<strong>de</strong>, força e intensida<strong>de</strong>.Segundo Buarque <strong>de</strong> Holanda (1976), a vida dos escravos nas cida<strong>de</strong>s eramais amena, com maiores possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convívio. Os encontros que aconteciamno convívio urbano favoreciam o agrupamento dos negros e propiciavam tanto amanifestação e a conservação <strong>de</strong> tradições culturais comuns quanto a conexãoentre povos <strong>de</strong> origens diversas e condições culturais diferentes, engendrandonovas formas <strong>de</strong> expressão. De acordo com Abib (2004), nesses novos espaços <strong>de</strong>10 Antenor Nascentes é autor do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, publicado em 1932.


33socialização, emergiu uma cultura escrava <strong>de</strong> rua, com manifestações diversas,<strong>de</strong>ntre elas a capoeiragem.A prática da capoeira agregava diversas etnias africanas e produzia uma novamaneira <strong>de</strong> lidar com as diferenças culturais, em uma experiência que entrelaçava oexercício livre do corpo – com o ritmo, a dança - a uma potência <strong>de</strong> luta, frente àbrutalida<strong>de</strong> a que eram submetidos os negros escravos. Na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong>Janeiro, no século XIX, os capoeiristas eram figuras <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas comunida<strong>de</strong>snegras, tanto por sua agilida<strong>de</strong> corporal e habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta quanto por qualida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança e companheirismo.A expansão e maior visibilida<strong>de</strong> das culturas negras <strong>de</strong> rua <strong>de</strong>spertaram otemor da elite livre, criando mecanismos repressivos severos, que acentuaram asdiferenças entre negros e brancos nos espaços da cida<strong>de</strong>. Conforme Abib (2004), osprimeiros documentos históricos nos quais aparece o termo “capoeira” são relativosà cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro e dizem respeito a ocorrências policiais.Segundo Reis (1997), os <strong>de</strong>cretos que puniam os capoeiristas vinculavam apratica da capoeira a pessoas negras e apresentavam uma dupla preocupação:punir o corpo e inibir o atrevimento e a audácia dos escravos capoeiras, semacarretar prejuízos econômicos a seus senhores, ou seja, uma punição aplicada“meticulosamente”, ao nível das autorida<strong>de</strong>s policiais.Observamos aqui o fortalecimento <strong>de</strong> novos mecanismos no exercício dopo<strong>de</strong>r, que se <strong>de</strong>sloca da morte e passa a gerir a vida. De acordo com Foucault(1977), o po<strong>de</strong>r sobre a vida – biopo<strong>de</strong>r – <strong>de</strong>senvolveu-se a partir do século XVII, emdois eixos principais que perpassavam as relações com o corpo: as disciplinasanátomo-políticas e as biopolíticas da população. As disciplinas anátomo-políticasdo corpo humano centraram-se no corpo como máquina, utilizando técnicasminuciosas para o investimento na sua docilida<strong>de</strong>, na ampliação <strong>de</strong> suas aptidões,na extorsão <strong>de</strong> sua força, no crescimento <strong>de</strong> sua utilida<strong>de</strong>. Com as biopolíticas, oexercício do po<strong>de</strong>r centrou-se no corpo-espécie, mediante intervenções e controlesreguladores da população, com ênfase nos processos biológicos e patológicos e,também, nas condições que po<strong>de</strong>m fazer tais aspectos variarem. Nas tramashistóricas, o exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r emerge <strong>de</strong> formas variadas. Assim, as disciplinasanátomo-políticas e as biopolíticas estão presentes simultaneamente e, muitasvezes, associadas.


34Na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no século XIX, mediante a prática dacapoeiragem, observamos o exercício do biopo<strong>de</strong>r com predominância dasdisciplinas anátomo-políticas do corpo, pois a punição dos capoeiristas não <strong>de</strong>veriaser a morte, nem po<strong>de</strong>ria ser aplicada para extinguir totalmente sua força, masdosada <strong>de</strong> maneira a resguardar parte <strong>de</strong>ssa força para a utilização <strong>de</strong> seu senhor.Todavia, a predominância das disciplinas anátomo-políticas não excluía asbiopolíticas, ao contrário: articulava-se a elas, uma vez que, concomitantemente,havia uma gestão da vida da cida<strong>de</strong>.Reis aponta que a punição do corpo era motivada pelo fato <strong>de</strong>, nele,materializar-se a rebeldia, o inconformismo escravo. “Porém, o corpo do capoeira,supliciado pelo po<strong>de</strong>r, é o mesmo corpo insurgente que transgri<strong>de</strong> a rígida hierarquiaescravista e, ao fazê-lo, toma a forma <strong>de</strong> um contra-po<strong>de</strong>r” (REIS, 1997, p.42). Asmedidas repressivas, portanto, não conseguiam impedir a capoeiragem.Em meados do século XIX, a experiência da capoeira adquire novas formas, edois pontos <strong>de</strong> diferença se <strong>de</strong>stacam. O primeiro é relativo ao perfil doscapoeiristas. Até então, a capoeira era consi<strong>de</strong>rada uma prática <strong>de</strong> negros escravos.A partir <strong>de</strong> 1850, os registros policiais revelam uma ampliação no espectro <strong>de</strong> seuspraticantes, abarcando também pessoas livres, artesãos, imigrantes <strong>de</strong> diversasetnias. O segundo ponto <strong>de</strong> mudança refere-se à forma <strong>de</strong> organização dos grupos,com o surgimento das maltas. Se, até aquele momento, as manifestações dacapoeiragem eram tidas como espontâneas ou ocasionais, a partir das maltas esseformato muda, com o aparecimento <strong>de</strong> grupos organizados.As maltas constituíam uma unida<strong>de</strong> fundamental <strong>de</strong> atuações planejadas doscapoeiras, na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Eram compostas por grupos com três, vinte,cem, duzentos integrantes, numa forma <strong>de</strong> resistência associativa. De acordo comAbib (2004), as maltas aglomeravam parcelas marginalizadas da população: negrosescravos, libertos, trabalhadores pobres, <strong>de</strong>socupados, arruaceiros, biscateiros,<strong>de</strong>linqüentes, valentões, imigrantes portugueses, franceses, ingleses e outros quecompartilhavam “os mesmos lugares sociais <strong>de</strong>ntro do universo <strong>de</strong> miserabilida<strong>de</strong>”(MELO, 2001, p. 182).Observamos, aqui, os primeiros registros históricos <strong>de</strong> estratificação naexperiência da capoeira. Reis (1997) informa que as maltas possuíam organizaçãointerna hierárquica, com chefias, ajudantes, cabos <strong>de</strong> esquadra, classes internasque expressavam papéis específicos a serem cumpridos por seus integrantes, que


35eram i<strong>de</strong>ntificados por cores, sinais, sons, assobios e <strong>de</strong>marcavam seus domíniosapropriando-se dos espaços da cida<strong>de</strong> e conferindo a eles uma lógica popular <strong>de</strong>ocupação. As fronteiras territoriais das maltas eram <strong>de</strong>fendidas rígida eviolentamente contra a entrada <strong>de</strong> grupos rivais. De acordo com Cruz (1996), havia,inicialmente, vários pequenos agrupamentos, que se aglutinaram em duas gran<strong>de</strong>smaltas: Nagoas e Guayamus.A atuação das maltas <strong>de</strong> capoeiras colocava em foco rivalida<strong>de</strong>s e conflitosentre grupos. Constituía-se um ethos guerreiro, que conectava afetos diversos,envolvia dramatizações, coreografias, malabarismos, canções que afirmavam opo<strong>de</strong>r do grupo a partir do <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> personagens célebres, cantigas <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio,brados <strong>de</strong> guerra, <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> <strong>de</strong>streza e valentia, atos <strong>de</strong> violência,transgressão <strong>de</strong> normas e regras socialmente instituídas. Em <strong>de</strong>terminadosperíodos, como nas festas religiosas ou aparições públicas previamente anunciadas,os confrontos das maltas eram verda<strong>de</strong>iros espetáculos nas ruas da cida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>spertando fascínio e medo na população (ABIB, 2004).O ethos guerreiro, que se intensificava e adquiria novas formas com asmaltas, participava não apenas dos confrontos públicos entre grupos rivais, mastambém dos movimentos negros por liberda<strong>de</strong>, que se articulavam nos subterrâneosda socieda<strong>de</strong> escravista, com a utilização <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> dissimulação einsubordinação, por meio <strong>de</strong> arruaças, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e violentas disputas nos espaçosurbanos. Os grupos rivais lutavam entre si, mas se uniam contra o inimigo comum: apolícia.A intensificação da repressão policial evi<strong>de</strong>nciava-se nas cenas <strong>de</strong> violênciacotidiana entre os capoeiras e a polícia. Buarque <strong>de</strong> Holanda (1976) afirma queinsurreições, crimes, negligência eram as formas <strong>de</strong> o escravo protestar. Essaefervescência sinalizavao caráter iminente <strong>de</strong> uma rebelião escrava, prestes a ser <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada,tendo em vista o forte po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>sses “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iros” que, acada dia, mostravam com maior evidência, serem sim, capazes <strong>de</strong>sfazer aor<strong>de</strong>m estabelecida pela socieda<strong>de</strong> colonial-escravista (ABIB, 2004, p. 94).Contudo, ao mesmo tempo em que a capoeira era consi<strong>de</strong>rada uma ameaçaà or<strong>de</strong>m vigente e enquadrada como contravenção penal, com severa repressãopolicial, i<strong>de</strong>ntificamos outros pontos <strong>de</strong> contato entre os capoeiras e os soldados;entrelaçamentos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e resistência na capoeiragem. Cruz (1996) informa que os


36militares praticavam jogos proibidos com negros e pardos e aprendiam capoeira comos escravos nas ruas, praças e praias da cida<strong>de</strong>. Soldados capoeiristas participavam<strong>de</strong> apresentações públicas das maltas e integrantes das maltas também abriam<strong>de</strong>sfiles militares com acrobacias, danças e cantos. Não obstante essas conexõespela via da ludicida<strong>de</strong>, do jogo, observa-se também o uso instrumental dacapoeiragem no universo militar.Segundo Reis (1997), as instituições policiais recrutaram capoeiristascariocas, tanto a partir <strong>de</strong> atos voluntários quanto com prisões arbitrárias ealistamento forçado, principalmente quando as tropas precisavam <strong>de</strong> maiorcontingente. Durante o período da Guerra do Paraguai, a intensificação da inclusãodos capoeiras na instituição militar compunha uma estratégia para fortalecer astropas e também para retirar das ruas os elementos in<strong>de</strong>sejáveis ao sistema. Essaguerra custou a vida <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> negros. Porém, “o recrutamento forçado <strong>de</strong>capoeiras não era garantia absoluta <strong>de</strong> seu a<strong>de</strong>stramento. Muitos capoeiristaspermaneciam ligados às re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações sociais que os vinculavam às suasmaltas” (REIS, 1997, p. 57).As maltas, além <strong>de</strong> sua potência guerreira, <strong>de</strong> suas apresentações lúdicasnas praças, festas e folguedos da cida<strong>de</strong>, também se conectavam a movimentospolíticos, articuladas à monarquia. Reis (1997) aponta que, logo após a abolição, foiformada uma milícia basicamente <strong>de</strong> capoeiras, arrebanhando os libertos. Esseexército <strong>de</strong> rua, a Guarda Negra, atuava principalmente nos comícios republicanos eagia, por ocasião das eleições, cercando o local <strong>de</strong> votação e hostilizando osadversários <strong>de</strong> seu chefe político. Eram comuns os embates violentos entre asmaltas e os republicanos. Em contrapartida, os capoeiras podiam atuar sem sofrermaiores perseguições da policia imperial.Com a Proclamação da República, instituiu-se dupla oposição aoscapoeiristas: eles eram consi<strong>de</strong>rados inimigos políticos e inimigos sociais. Eramcaracterizados como vagabundos, assassinos, arruaceiros e insufladores <strong>de</strong> greves,pois também se articulavam ao incipiente movimento operário que se formava. Navisão <strong>de</strong> Melo (2001), aos olhos da elite daquela época, o universo da capoeiragemconstituía-se como(...) força <strong>de</strong> trabalho livre e mercenária, primariamente ligada à monarquia.O capoeira pobre, mestre no manejo da navalha, andava em grupos,i<strong>de</strong>ntificava-se pelo uso <strong>de</strong> fitas amarelas e vermelhas nos braços, morava,em geral, em cabeças <strong>de</strong> porco (cortiços), servia aos homens do estado, à


37polícia, ao jogo do bicho, aos operários e não servia a ninguém. Eramediante a perspectiva republicana um mero <strong>de</strong>jeto social (MELO, 2001,p.186).Nessa elaboração, observamos o caráter difuso e híbrido da prática dacapoeiragem: com grupos heterogêneos, ela não se prendia a nenhum partidopolítico, instituição ou i<strong>de</strong>ologia e mantinha-se à margem do sistema, nãoenquadrada à or<strong>de</strong>m e às regras instituídas. Assim, os capoeiras tornaram-se oprincipal alvo da policia nos primeiros tempos da República, processo que culminoucom a criminalização da capoeira em 1890 (REIS, 1997). Contudo, essacriminalização e a severa repressão policial não extinguiram a experiência dacapoeira. Na opinião <strong>de</strong> mestre Reginaldo Véio,Essa realida<strong>de</strong> histórica potencializou muito as possibilida<strong>de</strong>s da capoeira, aponto <strong>de</strong> ela ganhar um status <strong>de</strong> um instrumento <strong>de</strong>stacado, teorizado eelaborado <strong>de</strong>ntro do Código Penal, <strong>de</strong>finindo punições para utilização <strong>de</strong>la.Quero dizer, chegou uma hora em que a capoeira virou um pólo <strong>de</strong>referência <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong> luta nesse sentido mais amplo, que incomodouo próprio Estado. Nesse momento ela ganha uma expressão política. (...)Quando o po<strong>de</strong>r se coloca diante <strong>de</strong> uma manifestação popular, simples,alegre, festeira, se posta diante <strong>de</strong>la e elabora códigos para resistir, a gentejá inverteu a lógica <strong>de</strong> quem resiste e quem se impõe. É a capoeira maisuma vez subvertendo as coisas. Essa dimensão política potencializada abrehorizonte na história para a capoeira se colocar (MESTRE REGINALDOVÉIO) 11 .Observamos, com o <strong>de</strong>poimento do mestre, que a capoeira alcançou força nocontexto social e constituiu-se em um ethos guerreiro com gran<strong>de</strong> potência, a ponto<strong>de</strong> passar a figurar no Código Penal, o que <strong>de</strong>monstra que o Estado precisou criarcodificações para se contrapor a essa força. Na elaboração do mestre, <strong>de</strong>stacamosdois aspectos em relação ao intrincamento entre po<strong>de</strong>r e resistência na experiênciada capoeira. Primeiramente, buscamos compreen<strong>de</strong>r como a criminalização seconverteu em novos horizontes para a capoeira. Enten<strong>de</strong>mos que, diante <strong>de</strong>ssenovo contexto, a prática da capoeiragem <strong>de</strong>mandou mais camuflagens, espertezas eartimanhas, nova forma <strong>de</strong> articulação dos grupos e criação <strong>de</strong> novos códigos como,por exemplo, o Toque <strong>de</strong> Cavalaria: quando a capoeiragem acontecia, nas ruas epraças das cida<strong>de</strong>s, um dos capoeiristas ficava <strong>de</strong> tocaia, com a atribuição <strong>de</strong>sinalizar, através <strong>de</strong> um toque <strong>de</strong> berimbau diferenciado, quando a polícia estavachegando. Ao ouvi-lo, os capoeiristas dispersavam-se e escapavam <strong>de</strong> ser presos.11 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


38Todavia, Nestor <strong>Capoeira</strong> (1998) enfatiza que as transformações na práticada capoeira não emergem apenas como disfarce mediante a repressão policial, mastambém como luta no sentido mais amplo: uma estratégia social multifacetada, quearticula a utilização <strong>de</strong> formas violentas <strong>de</strong> contestação, a solidarieda<strong>de</strong> grupal e “umrefinado modo irônico <strong>de</strong> lidar com as agruras da vida” (ABIB, 2004, p.95).Diante <strong>de</strong>ssa experiência, o Estado elabora códigos para governar. Essescódigos não se limitam à criminalização, mesmo porque a inserção no código penalnão impediu que a capoeiragem continuasse a acontecer nos espaços da cida<strong>de</strong>.Aqui conectamos o segundo aspecto a partir do <strong>de</strong>poimento do mestre Véio: amudança na forma como o Estado se posiciona diante da capoeira. O mestre, aodizer da capoeira, enfatizou a dimensão alegre, festeira presente nessa experiência.Essa dimensão lúdica o código penal não conseguiria conter.3.3. A vadiação: escapada das técnicas disciplinares.Em cada freguesia um africano com uma responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar, parafazer <strong>de</strong>la sua arma contra seu perseguidor, (...) se comunicavam noscantos improvisados, dançava e cantava enredos, inventava truques,piculas, para dar volta no corpo, escon<strong>de</strong>ndo chicote, inventando miséria, ocorpo todo faz miserêr, cabeça, mão, pernas, e só consegue com manhas(MESTRE PASTINHA apud DECÂNIO, 1996, p.44).A vadiação é o termo utilizado pelos capoeiristas para <strong>de</strong>signar a prática dacapoeiragem na qual predomina a ludicida<strong>de</strong>, a brinca<strong>de</strong>ira, a alegria <strong>de</strong>experimentar o corpo com liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento em conexão com o ritmo, com orito, com outros corpos ou, conforme mestre Reginaldo Véio, em uma manifestaçãofesteira. Sodré (1988) <strong>de</strong>staca que a festa, no universo das culturas negras,<strong>de</strong>stinava-se à renovação das forças, pois a dança, o ritmo e o rito que acaracterizam territorializam o corpo do indivíduo, realimentando a força cósmica. Navisão <strong>de</strong> Cruz (1996) os capoeiristas, por meio da festa, da luta e da dança, ampliamsua potência e alcançam maior po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> realização. A intensificação da vadiação nacapoeiragem sinaliza a diferença na emergência da resistência. Essa transformaçãona forma <strong>de</strong> resistência remete a mudanças na forma <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.No processo <strong>de</strong> transformações econômicas e políticas, atravessadas pori<strong>de</strong>ologias liberais mo<strong>de</strong>rnas, lutas abolicionistas, revoltas e fugas negras,


39manifestações dos artistas e intelectuais, engendrou-se o fim do regimeescravocrata e a Proclamação da República no Brasil. Nessa trama histórica,observamos formas <strong>de</strong> exercício do po<strong>de</strong>r com o uso <strong>de</strong> novas técnicas <strong>de</strong> governo.De acordo com Foucault, governar é sempre um equilíbrio versátil, comcomplementarida<strong>de</strong> e conflitos entre atos <strong>de</strong> coerção e processos, nos quais ocomportamento é construído e modificado por si mesmo. As tecnologiasgovernamentais abarcam uma forma <strong>de</strong> governar ações a partir <strong>de</strong> dois mecanismossimultâneos e relacionados: o governo do outro sobre si e o governo <strong>de</strong> si sobre simesmo (HARTMANN, 2003).Revel (2005) aponta que as tecnologias governamentais po<strong>de</strong>m serobservadas no conjunto das instituições, procedimentos, análises, reflexões e táticasque permitem o exercício <strong>de</strong> uma forma específica e complexa <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e que têmcomo alvo a população, a construção da gestão política global sobre a vida dosindivíduos, através da biopolítica. As biopolíticas, associadas às disciplinas,constituem técnicas <strong>de</strong> governo que operam, inclusive, por meio da distribuição dosindivíduos no espaço, do controle do tempo e da ação (FOUCAULT, 1987).Na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no início do século XX, observamos como asbiopolíticas atravessaram a experiência da capoeira. De acordo com Cruz (1996), areorganização dos espaços na cida<strong>de</strong>, nesse período, estabelece um processo <strong>de</strong>mudanças radicais, com o intuito <strong>de</strong> alinhar a socieda<strong>de</strong> brasileira aos padrõesculturais e econômicos europeus. Em nome da higiene, do saneamento e doprogresso, efetivou-se a <strong>de</strong>sapropriação e a <strong>de</strong>molição <strong>de</strong> casarões que abrigavamparcelas marginalizadas da população. A pobreza urbana era <strong>de</strong>salojada etransferida para outras áreas, “(...) que se tornaram os <strong>de</strong>positários das tradiçõesmarginalizadas pelas elites” (CRUZ, 1996, p.90). Nesse contexto, a repressão àcapoeira e sua criminalização, além do controle da ação, têm uma dimensãoassociada à higienização do espaço urbano, pois a capoeiragem distanciava-se dosmo<strong>de</strong>los culturais europeus e estava ligada ao mundo das culturas <strong>de</strong> rua, àsmanifestações <strong>de</strong> festas, danças, jogos e lutas compartilhadas pelas parcelasmarginalizadas da população.Abib (2004) aponta que, provavelmente, nunca uma experiência culturalcausou tanta preocupação aos dirigentes brasileiros. Contudo, longe da cida<strong>de</strong>burguesa letrada, eram criados espaços da alegria, on<strong>de</strong> formas expressivas ligadasao candomblé, ao samba e à capoeira, aconteciam e atravessavam os hábitos e as


40criações dos indivíduos da cida<strong>de</strong>, inclusive com a participação <strong>de</strong> membros dosenado, da marinha, do exército e <strong>de</strong> representantes da elite intelectual (CRUZ,1996).A prática da capoeira nesses espaços adquire contornos diferentes: se, com aexperiência das maltas, a luta ganhou maior visibilida<strong>de</strong> na capoeira, agora há ummovimento <strong>de</strong> reversibilida<strong>de</strong>, no qual o jogo, a ludicida<strong>de</strong> e a alegria predominamcomo formas <strong>de</strong> resistência pela via da invenção. Conforme Abib (2004), a capoeiramunia os marginalizados <strong>de</strong> armas po<strong>de</strong>rosas na luta contra a opressão, armas queextrapolaram a luta enquanto contestação e confronto e alcançam um processo <strong>de</strong>criação: a emergência <strong>de</strong> novos territórios existenciais, por meio da vadiação. Aintensificação da vadiação na capoeiragem expressa-se <strong>de</strong> maneira maiscontun<strong>de</strong>nte na Bahia.A capoeira baiana diferenciava-se da capoeira carioca principalmente emrelação às questões político-i<strong>de</strong>ológicas, visto que, na Bahia, a prática pouco searticulava aos embates políticos da monarquia e da república. De acordo com Rego(1968), na Bahia,Em tudo era notada a presença do capoeira, mui especialmente nas festaspopulares. (...) Os capoeiras com alguns companheiros e discípulosrumavam para o local da festa, com seus instrumentos musicais, inclusivearmas para o momento oportuno e lá, com amigos outros que encontravam,faziam a roda e brincavam o tempo que queriam (REGO, 1968, p. 37).Dessa forma fluida, a capoeira acontecia não apenas nos momentos dasfestas populares, mas também em conexão com os ritos <strong>de</strong> rua, o mundo dotrabalho, as cenas do cotidiano. Havia capoeiragem on<strong>de</strong> havia uma quitanda ouuma venda <strong>de</strong> cachaça com um largo em frente. Na visão <strong>de</strong> Chauí (1982), a venda<strong>de</strong> cachaça - o boteco - é o ponto <strong>de</strong> encontro dos trabalhadores, encontro dosdiferentes. Para os homens do boteco, “ser macho era ser valente (<strong>de</strong>safiar asocieda<strong>de</strong>) e resistente (não entregar companheiro quando se é apanhado poralguma força da or<strong>de</strong>m)” (CHAUÍ, 1982, p. 68). Após o trabalho ou aos domingos,feriados e dias santos, capoeiristas famosos reuniam-se nas quitandas, vendas - oubotecos - para tagarelar, beber e jogar a capoeira, o que era divertimento e luta nomomento oportuno.Essa prática que emergia nos largos e nas festas populares como forma <strong>de</strong>encontro, <strong>de</strong> exercício livre do corpo, com um espírito <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira e umsentimento <strong>de</strong> alegria, era a vadiação. Mestre Reginaldo Véio enfatiza que


41“vadiação” é um termo cheio <strong>de</strong> conteúdo na capoeira, inclusive conectado aocontexto social:Antigamente você prendia um camarada porque ele era vadio, estavavadiando. O que é vadiando? - Mostra seus documentos, dá o en<strong>de</strong>reçoon<strong>de</strong> você trabalha. Não tem trabalho? Vou te levar pra <strong>de</strong>legacia. – Aprática da capoeira entre os capoeiristas era tida como a prática davadiação, pra você ver o conteúdo <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong> subversão (MESTREREGINALDO VÉIO) 12 .A capoeiragem era associada a pessoas, sem trabalho, a parcelasmarginalizadas da população, estigmatizadas como vadias. Todavia, a vadiação nacapoeiragem era uma forma <strong>de</strong> brincar com a serieda<strong>de</strong> da vida, subverter a or<strong>de</strong>me criar espaços da alegria. Mestre Reginaldo Véio acrescenta que “a gente po<strong>de</strong>falar que a roda <strong>de</strong> capoeira é uma possibilida<strong>de</strong> constante <strong>de</strong> contestar aautorida<strong>de</strong>, subverter a or<strong>de</strong>m, transformar em brinca<strong>de</strong>ira um ritual <strong>de</strong> vida que ésério, é competitivo” (MESTRE REGINALDO VÉIO) 13 .O exercício livre do corpo na brinca<strong>de</strong>ira, no jogo, contrariava a lógica <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r, escapava das técnicas <strong>de</strong> governo exercidas através das biopolíticas dapopulação e das repressões policiais, do controle dos corpos e das ações paraa<strong>de</strong>strar as forças, “ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo” (FOUCAULT,1987, p.143). Observamos então, novas formas <strong>de</strong> enquadrar a prática da capoeiraou, conforme <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Pepinha, formas <strong>de</strong>(...) organizar a capoeira assim, igual essas coisas <strong>de</strong> exercício militar,educação física, ginástica. Pegar esse movimento que era natural, que eranativo nas comunida<strong>de</strong>s, e trazer um jeito <strong>de</strong> organizar e aí tentar controlar(PROFESSOR PEPINHA) 14 .Segundo Reis (1996), as primeiras tentativas <strong>de</strong> enquadramento da capoeiraocorreram no Rio <strong>de</strong> Janeiro, quando a prática passou a ser <strong>de</strong>scrita como esportenacional por alguns autores da elite branca, em publicações que buscavamminimizar a herança étnica africana, civilizar e legitimar a capoeiragem, tornando-asímbolo nacional. Destacamos o livro <strong>de</strong> Aníbal Burlamaqui, “Ginástica nacional(capoeiragem) metodizada e regrada”, publicado no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1928, queestabelece regras para o jogo <strong>de</strong>sportivo da capoeira. Observamos no título da obrao enquadramento biopolítico, no sentido <strong>de</strong> estratificar a experiência da capoeira,12 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.13 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.14 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


42paralisar a flui<strong>de</strong>z do movimento que emergia nas ruas <strong>de</strong> forma lúdica, heterogêneae livre, para transformá-la em prática metodizada, regrada, controlada e controlável:“a capoeira como uma luta esportiva com local <strong>de</strong> exibição <strong>de</strong>finido (...) sendo queos lutadores <strong>de</strong>verão observar as regras durante as lutas mediadas por um árbitro”(REIS, 1996, p. 91).De acordo a autora, essa tentativa <strong>de</strong> legitimar a capoeira no contexto cariocaconstituiu-se como um jeito branco e erudito <strong>de</strong> converter a capoeira em esporte,com pouca ressonância na época. Por outro lado, no contexto baiano, emergiu umjeito negro e popular <strong>de</strong> fazê-lo: era a criação da <strong>Capoeira</strong> Regional por Manuel dosReis Machado - Mestre Bimba. A invenção da Regional é mais uma transformaçãona prática da capoeiragem. Mestre Bimba, em <strong>de</strong>poimento a Rego (1928), falou dacriação da <strong>Capoeira</strong> Regional como uma maneira <strong>de</strong> fortalecer a capoeira comoesporte, educação física, ataque e <strong>de</strong>fesa pessoal. Nessa criação, ele se valeu <strong>de</strong>golpes <strong>de</strong> batuque, <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes da coreografia do maculelê, além <strong>de</strong> golpes <strong>de</strong> lutagreco-romana, jiu-jitsu, judô e savata. A capoeira sai das ruas e <strong>de</strong>ve ser praticadana aca<strong>de</strong>mia, <strong>de</strong> maneira or<strong>de</strong>nada, com disciplina rigorosa, métodos <strong>de</strong>treinamento, competitivida<strong>de</strong> e performance atlética.Mestre Reginaldo Véio, em seu <strong>de</strong>poimento, ressalta que a Regional retirouda capoeiragem o aspecto que a polícia da época não conseguia combater: avadiação. Com essa nova forma mais estilizada e or<strong>de</strong>nada, ela trazia uma seduçãomaior ao homem urbano, dava a ele um status que emergia no contexto político esocial do Estado Novo, pois as práticas esportivas eram valorizadas, associadas aoaprimoramento do corpo, à moralização dos costumes e ao incremento do trabalho.Para Abib (2004), aliava-se a essa valorização do esporte a tentativa <strong>de</strong>enaltecer a miscigenações e os valores mestiços, como estratégia para construiruma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional. Chauí (1987) reitera esse aspecto ao discorrer sobre oprocesso <strong>de</strong> controle das manifestações populares por meio <strong>de</strong> uma incorporaçãooficial, que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou nos anos 30 e 40. Dessa forma, a dispersão efragmentação das culturas populares po<strong>de</strong>riam a ser capturadas pela integraçãonacional, promovida pelo Estado.Nesse contexto, mestre Bimba, que já praticava e ensinava a <strong>Capoeira</strong>Regional em sua aca<strong>de</strong>mia, foi convidado a fazer, juntamente com seus alunos, umaexibição no Palácio do Governo. Após se apresentar para o governador JuracyMagalhães e seus convidados, em 1937, o mestre recebeu licença oficial para


43registrar seu Centro <strong>de</strong> Cultura Física e <strong>Capoeira</strong> Regional, on<strong>de</strong> ministrava aulas <strong>de</strong>capoeira. O certificado, expedido pela Secretaria da Educação, Saú<strong>de</strong> e AssistênciaPública, qualificava o ensino da <strong>Capoeira</strong> Regional <strong>de</strong> mestre Bimba como ensino <strong>de</strong>educação física. Dessa forma, a aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> mestre Bimba foi a primeira a serreconhecida oficialmente pelo po<strong>de</strong>r público (REGO, 1968).Esse evento abriu campo para o <strong>de</strong>senvolvimento da <strong>Capoeira</strong> Regional, epo<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o marco sinalizador da institucionalização da capoeira,retirada do código penal em 1934 por meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>creto do presi<strong>de</strong>nte GetúlioVargas e reconhecida oficialmente como esporte nacional em 1972, através <strong>de</strong>portaria expedida pelo Ministério <strong>de</strong> Educação e Cultura. Esses episódios po<strong>de</strong>m serconsi<strong>de</strong>rados pontos sinalizadores da captura da capoeiragem pelo campo dasbiopolíticas, que passam a estar ligadas à área social do Estado: as políticas <strong>de</strong>educação, saú<strong>de</strong>, esporte, lazer (FERREIRA NETO, 2004).Hoje, a capoeira é ensinada nas escolas, aca<strong>de</strong>mias e universida<strong>de</strong>s noBrasil e em diversos outros países. Mestre Reginaldo Véio 15afirma que “emqualquer cida<strong>de</strong> européia com mais <strong>de</strong> duzentos mil habitantes tem um capoeirista”.A Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda tem membros e grupos em diferentesestados brasileiros, no Chile e na Itália.Não há como negar a força da <strong>Capoeira</strong> Regional e sua importância para adisseminação e legitimação sociais da experiência da capoeiragem, que se expan<strong>de</strong>no Brasil e dá a volta ao mundo. Contudo, ressaltamos: ao criar esse estilo, mestreBimba “dá um tcham pra capoeira, dá uma visibilida<strong>de</strong> mais legal pra ela, mas,também, fica no fio da navalha” (PROFESSOR PEPINHA) 16 . Ao organizar eestratificar a capoeiragem, estabelecer conexões com outras lutas, movimentos ecoreografias, a <strong>Capoeira</strong> Regional distancia-se dos fundamentos e ritualida<strong>de</strong>safricanas, das tradições que compunham a experiência da capoeira. A Regional é,por vezes, consi<strong>de</strong>rada uma <strong>de</strong>scaracterização da capoeira autêntica.Abib (2004) discorda <strong>de</strong>sse posicionamento e enfatiza que, ao criar a<strong>Capoeira</strong> Regional, mestre Bimba soube, estrategicamente, articular um movimentopara o reconhecimento público e a valorização da capoeiragem. Concordamosparcialmente com Abib, porém, ressaltamos que, com a Regional, emergem novosperigos: a capoeiragem tornou-se mais aberta a novas configurações e mais15 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.16 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


44suscetível aos atravessamentos e capturas do po<strong>de</strong>r, tanto em relação àsbiopolíticas no período do Estado Novo quanto em relação aos agenciamentoscapitalísticos da contemporaneida<strong>de</strong>.Paralelamente ao processo <strong>de</strong> criação da <strong>Capoeira</strong> Regional, que organiza eestrutura a capoeira na aca<strong>de</strong>mia, a capoeiragem <strong>de</strong> rua não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> acontecer.Muitos capoeiristas baianos(...) mantiveram as formas tradicionais, muito mais voltadas para avadiação, para a brinca<strong>de</strong>ira, e mesmo, enquanto luta com característicasàs vezes violentas (...), na Liberda<strong>de</strong>, no Barracão, no terreiro, na roda <strong>de</strong>Wal<strong>de</strong>mar da Paixão (ABIB, 2004, p.102).Enfim, a capoeiragem <strong>de</strong> rua, não-regrada, mais fluida, <strong>de</strong>nominada<strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, continuou a ser praticada nos espaços da cida<strong>de</strong>, porém,carregava em si o estigma da capoeira como <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, vagabundagem.De acordo com Cruz (2006), também no universo da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> tiveraminício tentativas <strong>de</strong> organização, no intuito <strong>de</strong> construir uma imagem positiva e nãoestigmatizadada capoeira. Uma das primeiras iniciativas nessa direção foi a criaçãodo Centro <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> Conceição da Praia, por renomados mestres baianos,na década <strong>de</strong> 20. Além disso, o autor <strong>de</strong>staca como evento importante no universoda <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> o momento em que a nata da capoeiragem baiana ofereceu aVicente Ferreira Pastinha – Mestre Pastinha – o título <strong>de</strong> “Mestre Geral <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong> na Bahia”. Nasce então, em 1941, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador, o Centro Esportivo<strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> - CECA, mestrado por Pastinha.A capoeira ensinada e praticada no Centro Esportivo <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>manteve a articulação da tradição, ancestralida<strong>de</strong> e ritualida<strong>de</strong> advindas das lutas edos sofrimentos dos negros durante o tempo da escravidão, com o acréscimo <strong>de</strong>“uma nova filosofia (...) baseada agora numa estética <strong>de</strong> jogo mais simbólica esubjetiva, na ludicida<strong>de</strong>, no companheirismo, no respeito, na ética e nos valoreshumanos” (ABIB, 2004, p.107).Consi<strong>de</strong>ramos, porém, que a invenção <strong>de</strong> mestre Pastinha não estava isentaou imune aos atravessamentos da lógica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da época. De acordo com Abib(2004), Pastinha também objetivou construir uma nova imagem para a capoeira,diferenciada daquela estigmatizada pela capoeiragem <strong>de</strong> rua que era associada amalandragem, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, agressão. Nessa construção, o mestre associouelementos do esporte, tradição africana, ancestralida<strong>de</strong>, teatralida<strong>de</strong>, luta,


45musicalida<strong>de</strong> e o jogo, articulados a uma nova filosofia que emerge a partir do corpo,do encontro no diálogo corporal. É a tradição que se repete pela diferença, areinvenção na capoeiragem. Na contemporaneida<strong>de</strong>, João Pequeno e João Gran<strong>de</strong>- os alunos mais famosos <strong>de</strong> Pastinha - são os responsáveis por seu legado e pelacontinuida<strong>de</strong> da forma tradicional <strong>de</strong> ensinar e praticar a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> nos dias<strong>de</strong> hoje. Eles são reconhecidos no Brasil e em outros países como mestres <strong>de</strong>referência <strong>de</strong>ssa capoeiragem.A experiência da capoeira nos dias <strong>de</strong> hoje está diretamente ligada à<strong>Capoeira</strong> Regional e/ou à <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Na Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda, observamos, inicialmente, uma capoeiragem <strong>de</strong>nominada anglo-regional, ouseja, que associava os dois estilos.


464. A <strong>CAPOEIRA</strong>GEM DA LENÇO DE SEDA NAS TRAMAS HISTÓRICAS4.1. Na cida<strong>de</strong> do apito... <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ça: a capoeira na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo.Foi no ano <strong>de</strong> 1977 que Reginaldo Consolatrix chegou à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo einiciou o movimento que hoje é a Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda. Pepinha,um dos membros do grupo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu início, afirma que, até então, a capoeira nãoera conhecida na cida<strong>de</strong>, e que essa experiência afetou a vida da comunida<strong>de</strong>.Nesse período, o grupo iniciou uma pratica <strong>de</strong> capoeira anglo-regional, pois,conforme <strong>de</strong>poimento do mestre Reginaldo Véio, não havia, naquele momento,rivalida<strong>de</strong> entre <strong>Angola</strong> e Regional. Ele <strong>de</strong>staca que, em sua formação comocapoeirista na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte, os ensinamentos <strong>de</strong> seu mestre Paulãopropiciaram a articulação dos dois estilos: uma prática <strong>de</strong> capoeira que <strong>de</strong>mandavauma performance atlética, com movimentos para direita e para a esquerda com amesma intensida<strong>de</strong>, com golpes estilizados e bem acabados, tal qual na prática daRegional, e condizia, simultaneamente, para o domínio do jogo <strong>de</strong> chão, commovimentos característicos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Dessa forma, a capoeira que seinicia em Timóteo, através da prática do Mestre Reginaldo, apresenta característicaspeculiares. Ele ressalta:A gente <strong>de</strong>senvolveu, na verda<strong>de</strong>, uma capoeira <strong>de</strong> muito ritual, umacapoeira show, uma capoeira teatro, uma capoeira lúdica, <strong>de</strong> praça pública,<strong>de</strong> festa, <strong>de</strong> folguedo. Esse lugar da capoeira é um lugar que permitiu oconvívio dos dois estilos. Por exemplo, a <strong>Capoeira</strong> Regional não tem ritual,é jogar e encerrar o jogo. A <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> tem muitos rituais, temchamada, tem brinca<strong>de</strong>iras que são feitas (MESTRE REGINALDO VÉIO) 17 .Dessa forma lúdica, com articulação entre capoeiras Regional e <strong>Angola</strong>, oGrupo <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Quilombo abria rodas e novos espaços <strong>de</strong> expressão nocontexto urbano, produzindo na vadiação um novo ethos guerreiro, em um cenáriono qual coexistiam um estado <strong>de</strong> dominação e tecnologias governamentaisdisciplinares.17 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


47O estado <strong>de</strong> dominação estava colocado em consonância com asconfigurações políticas do País no período da ditadura militar. Em 1964, quando asForças Armadas assumiram o po<strong>de</strong>r político do Brasil, diversos aspectos da vidaforam capturados pela doutrina da segurança nacional, em nome da qual partidospolíticos foram extintos, eleições diretas foram suspensas, o Congresso teve seuspo<strong>de</strong>res limitados, meios <strong>de</strong> comunicação foram censurados, pessoas eram presassem culpa formalizada. Durante esse período, houve censura direta nasuniversida<strong>de</strong>s e escolas, controle rigoroso da imprensa e banimento dos que eramconsi<strong>de</strong>rados inconvenientes à segurança nacional. Esse último fato realizou-setanto pelo exílio quanto pela prisão, tortura ou morte (DOMINGUES; FIUSA, 1996).Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, além da dominação militar que imperava no País,havia a peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> localização na zona metalúrgica, consi<strong>de</strong>rada área <strong>de</strong>segurança nacional, <strong>de</strong>vido à gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> operários e à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>movimentos grevistas. Des<strong>de</strong> 1944, quando se iniciou em Timóteo a instalação daUsina Si<strong>de</strong>rúrgica Aços Especiais <strong>de</strong> Itabira – ACESITA, o <strong>de</strong>senvolvimento dacida<strong>de</strong> sempre esteve articulado à fábrica: a vida da comunida<strong>de</strong> era <strong>de</strong>terminadapelo ritmo da usina si<strong>de</strong>rúrgica, com técnicas <strong>de</strong> governo disciplinares.O espaço da cida<strong>de</strong> foi se configurando a partir <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong> governoque po<strong>de</strong> ser aproximada do que Foucault <strong>de</strong>nominou quadriculamento, ou seja,“(...) cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar, um indivíduo. (...) Procedimento,portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaçoanalítico”. (FOUCAULT, 1987, p.123) Nesse sentido, a configuração do contextourbano efetivou-se a partir da organização hierárquica da fábrica. “Foi a ACESITAque <strong>de</strong> fato iniciou um processo <strong>de</strong> urbanização mais intenso (...), assumindo afrente da estruturação urbana do município” (PREFEITURA MUNICIPAL DETIMÓTEO, 1992, p.55). Inicialmente, os bairros eram rudimentares e abrigavam osoperários que erguiam a fábrica. Havia o bairro Vai Quem Quer, o Vai Quem Po<strong>de</strong>, aVila dos Caixotes, on<strong>de</strong> casas foram erguidas com a ma<strong>de</strong>ira dos caixotes queembalavam os equipamentos da usina. Com a chegada <strong>de</strong> médicos para aten<strong>de</strong>raos funcionários, criou-se o bairro Vila Bromélias; os engenheiros moravam na Vilados Técnicos, construída bem perto da usina; o pessoal administrativo morava naVila dos Funcionários (ACESITA, 1989).Nesse contexto, observamos o surgimento <strong>de</strong> uma biopolítica que extrapolaas ações estatais e inclui outros elementos sociais ligados ao mundo do trabalho.


48Dito <strong>de</strong> outro modo, há “um <strong>de</strong>slocamento do agente das biopolíticas do estado paraas forças produtivas” (FERREIRA NETO, 2004, p.169). Em Timóteo, além oquadriculamento permanente da fábrica, outras formas <strong>de</strong> biopolítica expandiam-se<strong>de</strong> maneira difusa, múltipla e polivalente, com penetração e atravessamentos emtodo o corpo social, como as formas <strong>de</strong> controle da ativida<strong>de</strong> e do tempo. De acordocom os <strong>de</strong>poimentos obtidos no grupo focal, os horários na comunida<strong>de</strong> eram<strong>de</strong>terminados pelo apito da fábrica, que convocava para o trabalho às 6h da manhã,<strong>de</strong>marcava o tempo das refeições às 11h e a hora do repouso às 22h, como umtoque <strong>de</strong> recolher. A vida urbana timotense organizava-se a partir do apito: eranecessário acordar às 6h e, após as 22h, via-se poucas pessoas nas ruas; osnamorados <strong>de</strong>spediam-se ao som do último apito; as mulheres que estivessem fora<strong>de</strong> casa após as 22h eram consi<strong>de</strong>radas “<strong>de</strong>pravadas”, e os homens, “boêmios” e“vadios”.Ser funcionário da Acesita era ser cidadão, sujeito na cida<strong>de</strong>. O uniforme dausina <strong>de</strong>marcava um lugar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na comunida<strong>de</strong>. Eles tinham cores diferentespara os chefes, técnicos e operários braçais ou das empreiteiras. As pessoascirculavam com seus uniformes para visitar as namoradas, fazer compras nocomércio da cida<strong>de</strong>. A vestimenta significava po<strong>de</strong>r aquisitivo e idoneida<strong>de</strong> nopagamento das contas.A penetração e os atravessamentos da empresa no corpo social alcançavampraticamente todos os campos: o atendimento médico era feito no Hospital Acesita;o time <strong>de</strong> futebol era o Acesita Esporte Clube; para formação <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obraespecializada, a empresa criou o Colégio Técnico <strong>de</strong> Metalurgia e, até 1969, “acompanhia funcionava para a cida<strong>de</strong> como Prefeitura e polícia” (ACESITA, 1989,p.81). Essa frase <strong>de</strong>monstra claramente a extensão e a força das biopolíticas nacomunida<strong>de</strong>.As formas <strong>de</strong> resistências aconteciam na obscurida<strong>de</strong> e clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>, ouescamoteadas sob o pretexto <strong>de</strong> ações assistencialistas, principalmente aquelassustentadas por alguns segmentos da Igreja Católica. Conforme Pereira (2001), nadécada <strong>de</strong> 70, os trabalhos das Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base da Igreja Católicapropiciaram articulações políticas significativas em várias instituições da socieda<strong>de</strong>civil. A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo discutia as questões da cida<strong>de</strong> na igreja: durante amissa, o padre abria espaço para membros dos grupos <strong>de</strong> jovens discorrerem sobrea vida na comunida<strong>de</strong>, as formas <strong>de</strong> dominação, as condições <strong>de</strong> trabalho na usina,


49a alta periculosida<strong>de</strong>, os baixos salários, a poluição da cida<strong>de</strong> e outros, engendrandoformas <strong>de</strong> resistências através das <strong>de</strong>núncias e <strong>de</strong>bates.No ano <strong>de</strong> 1977, foi <strong>de</strong>senvolvido em Timóteo um projeto <strong>de</strong> pedagogiapopular comunitária, financiado por uma organização não-governamental holan<strong>de</strong>sa,ligada à Igreja Católica, e implementado através do Centro <strong>de</strong> Documentação eOrganização Comunitária (CEDOC), organização não-governamental brasileira. Oprojeto visava a formação <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças e a consolidação <strong>de</strong> práticas comunitáriasem organização grupal, tendo sido <strong>de</strong>senvolvido pelo grupo <strong>de</strong> jovens ALFA –equipe <strong>de</strong> jovens da comunida<strong>de</strong> indicados pela igreja –, com assessoria dosrepresentantes do CEDOC.Um <strong>de</strong>sses representantes era Reginaldo Consolatrix, que trazia aexperiência em projetos interdisciplinares, associada à militância política e à práticada capoeira. Segundo seu <strong>de</strong>poimento, no bojo da pedagogia comunitária, acapoeira constituía forte instrumento <strong>de</strong> mobilização popular. Além disso, paracontinuar a praticar a capoeira, era necessário ter parceiros. Por isso, ele se reuniacom amigos para brincar <strong>de</strong> capoeira na quadra da igreja, <strong>de</strong> maneira livre eespontânea, na vadiação. Nasce assim o primeiro grupo <strong>de</strong> capoeira da cida<strong>de</strong>,configurando a gênese da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda. Pepinhaexpressa a mobilização social e a resistência que emergiam na capoeira, ao relatar:A capoeira mexia muito com a gente, a gente era meio rebel<strong>de</strong> contra osistema... a polícia não gostava da gente, a gente era muito cabeludo,<strong>de</strong>sempregado... então, na capoeira, a gente encontrou um ambiente muitolegal. A gente consi<strong>de</strong>rava uma coisa importante, fazer aquele joguinho,tocar, mexer com música, cantar e lutar, a gente gostava muito <strong>de</strong> lutar,sabe? (Professor PEPINHA) 18 .Destacamos, aqui, alguns pontos <strong>de</strong> conexão entre o início da capoeira nacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo e a capoeiragem carioca e baiana. Tal como a capoeira urbanado século XIX, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em Timóteo essa experiência inicia-se associada àluta contra processos <strong>de</strong> marginalização, <strong>de</strong> discriminação social. O grupo eraformado, em sua maioria, por pessoas que escapavam ao quadriculamentodisciplinar e estavam, portanto, à margem do sistema. Tal como na capoeiragembaiana, predominava a vadiação: o grupo <strong>de</strong> capoeira reunia-se na praça ou no pátioda igreja para brincar, jogar e vadiar. Constituía-se um espaço <strong>de</strong> encontro e <strong>de</strong>expressão para as pessoas que estavam fora do circuito da empresa,18 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


50potencializando novas formas <strong>de</strong> resistência ao po<strong>de</strong>r instituído, um movimentodiferente naquele contexto.Após ter iniciado a experiência da capoeiragem na praça em frente à igreja, ogrupo criou a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Quilombo, que oferecia aulas <strong>de</strong> forma maissistematizada. Em um espaço fechado, específico, recebia como alunos osadolescentes e jovens da cida<strong>de</strong>. No entanto, somente aqueles que podiam pagaras mensalida<strong>de</strong>s experimentavam a capoeiragem. O grupo, então, <strong>de</strong>cidiu voltarpara as ruas. Na visão <strong>de</strong> mestre Reginaldo Véio 19 “era necessário <strong>de</strong>volver ao povoesse instrumento <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong> construção da própria história”.A cada apresentação nas ruas, novas pessoas participavam da “brinca<strong>de</strong>ira”e iniciavam a prática da capoeiragem. A capoeira expandiu-se na cida<strong>de</strong> eaumentou o número <strong>de</strong> pessoas na Aca<strong>de</strong>mia Quilombo. Nesse processo, quandovoltavam a suas comunida<strong>de</strong>s, os aprendizes da capoeiragem transformavam-se eminstrutores <strong>de</strong> jovens e crianças, constituindo outros pequenos grupos. O<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Pepinha diz <strong>de</strong>sse movimento:Aqui era um lugar que a gente nunca tinha visto capoeira, nunca na vida dagente, acho que a cida<strong>de</strong> inteira. Então a gente apren<strong>de</strong>u pouco e tinha queensinar pros meninos, pra fortalecer o grupo, pra ter uma roda com maisgente. (...) Foi legal, porque a gente foi brincando <strong>de</strong> capoeira com osmeninos. Os meninos foram crescendo rapidinho, daí a pouco eles jáestavam bons <strong>de</strong> capoeira, dando alegria pra gente, surpreen<strong>de</strong>ndo a gente(PROFESSOR PEPINHA) 20 .Destacamos, no <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Pepinha, a dimensão eminentemente coletiva<strong>de</strong>ssa experiência e sua potência <strong>de</strong> mobilização nas comunida<strong>de</strong>s. A capoeiragemsó existe na prática <strong>de</strong> grupo, pois são necessárias diferentes pessoas para tocarinstrumentos, cantar, alternar duplas <strong>de</strong> atores no jogo-luta-dança, criar a ambiênciada roda e articular ritmos, canções, brinca<strong>de</strong>iras, teatralida<strong>de</strong>. Então, praticar acapoeira era também ensinar-apren<strong>de</strong>r a capoeiragem, engendrar processoscoletivos <strong>de</strong> criação, produzir e multiplicar novos grupos. Conforme MestreReginaldo Véio 21 , mediante a irrupção <strong>de</strong> pequenos grupos <strong>de</strong> capoeira <strong>de</strong> maneirainformal e solta, surgiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar esse movimento. As pessoashaviam conhecido a capoeira nas ruas e passaram a ser multiplicadores sem o19 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 18/02/2006.20 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.21 Informação verbal obtida em grupo focal em 18/02/2006.


51conhecimento dos fundamentos <strong>de</strong>ssa experiência. Essa organização foisistematizada com a criação da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda.A capoeira imprimia diferença no cenário da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Em umcontexto atravessado pela lógica disciplinar da fábrica, a capoeiragem trazia à cenaa dimensão da festa. Funcionava como catalisador <strong>de</strong> mobilizações sociais eproduzia um ethos guerreiro na vadiação, com implicações político-i<strong>de</strong>ológicas,conforme po<strong>de</strong>mos observar nos relatos que apresentamos a seguir.O grupo realizava rodas <strong>de</strong> capoeira nos bairros e, após mobilizar as pessoascom a festa, as músicas, o jogo, <strong>de</strong>senvolvia conversas sobre a história da capoeirae sobre a luta por liberda<strong>de</strong>, que, naquele cenário, era a luta contra as condições <strong>de</strong>trabalho, que po<strong>de</strong>riam ser cotejadas à escravização. Após as conversas, eramdistribuídos textos políticos, <strong>de</strong> protesto e <strong>de</strong>núncia: ação <strong>de</strong> resistência pelo viés dacontestação. Um <strong>de</strong>sses textos era o jornal “O Trampo”, com matérias sobre aexploração dos trabalhadores, <strong>de</strong>núncias sobre as condições insalubres <strong>de</strong> trabalho,reivindicações dos operários. Em uma <strong>de</strong>ssas manifestações, no ano <strong>de</strong> 1978,quando se apresentou em uma área da usina <strong>de</strong>nominada Horto Malaquias, o grupofoi expulso pela polícia, que os abordou <strong>de</strong> arma em punho.Ressaltamos que a prática da capoeira do grupo Lenço <strong>de</strong> Seda teve iníciodiretamente articulada aos movimentos sociais e políticos da cida<strong>de</strong>. Observamosaqui outro ponto <strong>de</strong> contato com a capoeiragem urbana carioca do século XIX: aconvivência com a repressão policial. Circunstâncias nas quais os capoeiristas se<strong>de</strong>paravam com oposição armada existiram em outros momentos da Lenço <strong>de</strong> Seda.Um fato que marcou o grupo e foi relatado em todas as entrevistas <strong>de</strong> pesquisarefere-se à morte do capoeirista Rogerinho. Pepinha relata:Depois, outro cara foi o Rogerinho, mataram ele com tiro. Sem sentido... Eraum menino... O cara <strong>de</strong>sceu da casa <strong>de</strong>le cantando – o pessoal conta queele tinha acabado <strong>de</strong> fazer a fiação elétrica da casa <strong>de</strong>le, e foi lá num poçoon<strong>de</strong> o pessoal da comunida<strong>de</strong> da invasão pegava água. O Rogério eramuito famoso, porque ele era um gran<strong>de</strong> capoeirista e ele – como dizem -não pagava pau pra ninguém e tal... era um cara casado e a esposa <strong>de</strong>lemorreu, casou a segunda vez, refez sua vida. Ele foi buscar água, teve umproblema lá, o vigia, não sei se foi por <strong>de</strong>speito, ou por medo, ou que quefoi, encrencou com ele, disse que não podia, e faz e acontece. Num lugaron<strong>de</strong> toda comunida<strong>de</strong> pegava água – era uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> invasão,<strong>de</strong>ntro da companhia, era uma torneira que tinha, mas o vigia, porquecismou com ele, falou:- Você não.- Por que eu não?Aí começou a discussão. O cara armado, <strong>de</strong> dia, <strong>de</strong>u um tiro nele. Elesentiu. O cara abriu o portão e saiu correndo atrás <strong>de</strong>le e <strong>de</strong>u cinco tiros.


52Quer dizer, não <strong>de</strong>u nem tempo pra se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, foi o tempo <strong>de</strong> sair pramatar mesmo; sabe? (PROFESSOR PEPINHA) 22 .Nesse <strong>de</strong>poimento, <strong>de</strong>stacamos a relevância do fato do Rogerinho sercapoeirista na incidência <strong>de</strong> seu assassinato. Ao dizer “ele era uma cara casado”,Pepinha sinaliza que se tratava um “rapaz <strong>de</strong> família”, não um “arruaceiro”. Todospodiam pegar água naquela torneira, naquele local, porém, Rogerinho, capoeiristaforte e famoso, foi vítima dos tiros do “vigia”. Não po<strong>de</strong>mos assegurar que esseepisódio comprova perseguição aos capoeiristas, porém, é contun<strong>de</strong>nte sua força naexperiência da Lenço <strong>de</strong> Seda. Pepinha relata-o como fato importante, o maisvisível, entre tantos outros.A repressão policial, como forma <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, compunha o ritual <strong>de</strong>dominação durante o governo militar no Brasil. Porém, o confronto <strong>de</strong> forças no jogodas dominações produz a emergência <strong>de</strong> novos eventos, que escapam ao exercíciohegemônico do po<strong>de</strong>r. Foucault (1986), ao comentar Nietzsche, afirma que aemergência se produz em <strong>de</strong>terminado jogo <strong>de</strong> forças. É a entrada em cena dasforças, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro.A capoeiragem chega a Timóteo em um momento histórico <strong>de</strong> forças <strong>de</strong>dominação intensas, tanto no âmbito da cida<strong>de</strong> quanto no País. Nesse cenário, aprática da capoeiragem compunha esse jogo <strong>de</strong> forças, no qual emergiamresistências <strong>de</strong> formas diversas: protestos, contestação, movimentos sindicais,invenção <strong>de</strong> novos espaços <strong>de</strong> expressão no contexto da cida<strong>de</strong>.Em todo o Brasil, acirravam-se as críticas à ditadura militar. Os políticossituacionistas não encontravam argumentos capazes <strong>de</strong> justificar o governo perantea opinião pública: iniciava-se a abertura lenta e gradual daquele Estado <strong>de</strong>dominação. Na visão <strong>de</strong> Ferreira Neto (2004) o po<strong>de</strong>r da ditadura militar começou ase <strong>de</strong>sestabilizar na segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 70, através <strong>de</strong> duascontingências históricas. A primeira está relacionada ao encerramento do ciclo domilagre econômico: com a recessão, setores médios e altos da população sofreramsignificativas mudanças em seu modo <strong>de</strong> vida, enquanto as camadas popularestiveram um agravamento das difíceis condições <strong>de</strong> sobrevivência.A segunda contingência refere-se à emergência vigorosa dos movimentossociais no País. De acordo com Pereira (2001), mesmo diante da estrutura militarautoritária, os grupos e organizações <strong>de</strong> base fortaleceram-se como sujeitos22 Informação verbal, obtida em entrevista em 12/04/2006.


53políticos e agentes <strong>de</strong> transformação. O encontro entre o movimento operáriosindical e movimentos populares como os <strong>de</strong> bairro, da Igreja Católica e do negrolutaram contra a precarieda<strong>de</strong> das condições <strong>de</strong> vida.Diante <strong>de</strong>sse contexto, em 1979, foram extintos os Atos Institucionais e ogoverno Geisel baixou a nova lei orgânica, que extinguia o bipartidarismo. Em 1980,a articulação entre a militância sindical do ABC Paulista e os representantes domovimento popular funda o Partido dos Trabalhadores (PT). Os capoeiristas daLenço <strong>de</strong> Seda integravam o grupo que organizou este partido em Timóteo.Durante a campanha eleitoral, no ano 1982, a Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada,composta em sua maioria por capoeiristas da Lenço <strong>de</strong> Seda, lançou um manifestointitulado “Desobe<strong>de</strong>ça”. Como estratégia <strong>de</strong> lançamento, o grupo saiu pelas ruas,durante madrugadas, com tinta e brochas, pintando a palavra “Desobe<strong>de</strong>ça” nosespaços da cida<strong>de</strong>. Em cada bairro, uniam-se a eles moradores que traziampequenos bal<strong>de</strong>s, tinta e pincéis e também saíam pichando muros. Essa açãoextrapolou o universo do grupo Pasárgada, e a palavra “Desobe<strong>de</strong>ça” apareceugrafada nos pontos <strong>de</strong> ônibus, nos muros <strong>de</strong> estabelecimentos comerciais, nosbancos da praça, nas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> igrejas, em praticamente todos os espaços <strong>de</strong>Timóteo.A essa altura, os militantes do Partido dos Trabalhadores temiam que essapichação prejudicasse sua campanha eleitoral. O candidato do partido da situação,representante da elite da cida<strong>de</strong>, tinha certeza <strong>de</strong> que o “Desobe<strong>de</strong>ça” era umapalavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m da oposição, contra sua candidatura. Houve surpresa geralquando o manifesto foi distribuído, pois o mesmo não tinha conteúdo políticopartidário.O Desobe<strong>de</strong>ça conclamava a uma <strong>de</strong>sobediência em relação àmo<strong>de</strong>lização das formas <strong>de</strong> ser e viver e postulava a invenção e a experimentação<strong>de</strong> alternativas <strong>de</strong> vida.Esse episódio marcou a história da cida<strong>de</strong> e, ainda hoje, reverbera nalembrança daqueles que viveram essa experiência. Consi<strong>de</strong>ramos o evento amaterilização <strong>de</strong> uma transformação na experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda: a transição<strong>de</strong> um ethos guerreiro <strong>de</strong> contestação, confronto, do viés político-i<strong>de</strong>ológico, parauma maior intensida<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> resistência pela via da invenção,em conexão com universos da educação e da arte.


544.2. A conexão da capoeiragem com a Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada e aemergência <strong>de</strong> novos acontecimentosRevel (2005) <strong>de</strong>staca que, para Foucault, o acontecimento é um fato que seconstitui como irrupção <strong>de</strong> uma singularida<strong>de</strong> histórica. Na visão <strong>de</strong> Foucault (1986),existem diversos tipos <strong>de</strong> acontecimentos, com diferentes alcances, amplitu<strong>de</strong>cronológica e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir efeitos. Portanto, é importante “distinguir osacontecimentos, diferenciar as re<strong>de</strong>s e os níveis a que pertencem e reconstituir osfios que os ligam e que fazem com que eles se engendrem, uns a partir dos outros”(FOUCAULT, 1986, p.5). A emergência da Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada, emconexão com a capoeira, é uma irrupção singular na história da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo,tendo engendrado outros acontecimentos.Fundada em 1978 por um grupo <strong>de</strong> amigos, entre eles, capoeiristas da Lenço<strong>de</strong> Seda, a Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada configurou-se através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong><strong>de</strong>smultiplicação causal, com múltiplas entradas e conexões <strong>de</strong> diferentes aspectos.Funcionava como vetor que aglutinava ações da comunida<strong>de</strong>, congregava grupos econectava universos heterogêneos. Na se<strong>de</strong> da Pasárgada, localizada no centro dacida<strong>de</strong>, a capoeira era praticada em interação com outras ativida<strong>de</strong>s. O mesmoespaço em que crianças <strong>de</strong> rua, lí<strong>de</strong>res comunitários, trabalhadores e estudantestreinavam os golpes e faziam as rodas <strong>de</strong> capoeira era utilizado por grupos <strong>de</strong>músicos para ensaios, e mais: era uma livraria freqüentada pela elite intelectual efinanceira da cida<strong>de</strong>, uma galeria <strong>de</strong> arte com presença <strong>de</strong> artistas que expunhamseus trabalhos, palco <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates <strong>de</strong> educadores, herbanário, espaço <strong>de</strong> medicinasalternativas. Enfim, a Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada constituiu-se como espaçoaberto, no qual as fronteiras do quadriculamento disciplinar se rompiam e diferentesuniversos se encontravam.Com a conexão Pasárgada – <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, engendraram-semovimentos políticos que articulavam resistência como contra-força, através damilitância político-i<strong>de</strong>ológica a processos <strong>de</strong> criação, resistência positiva.Paulatinamente, os processos <strong>de</strong> criação e invenção intensificaram-se epredominaram sobre as ações <strong>de</strong> militância político-i<strong>de</strong>ológicas ou partidárias. Oacontecimento do “Desobe<strong>de</strong>ça” configurou-se como um dos analisadores históricosque materializam essa transição.


55De acordo com Rodrigues (2002), um analisador histórico é umacontecimento ou movimento social que vem a nosso encontro e con<strong>de</strong>nsa diversasforças até então dispersas, funcionando como catalisador químico e realizandointervenções sem intermediação: basta estar atento para os pontos <strong>de</strong> diferença,nas cenas que emergem.Em se tratando da experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Sedaarticulada à Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada, mil acontecimentos pululavam noslugares e recantos vazios da cida<strong>de</strong>. Recortamos três <strong>de</strong>les, conforme a intensida<strong>de</strong>com que vieram a nosso encontro e a potência <strong>de</strong> intervenção na vida dacomunida<strong>de</strong>: o bloco <strong>de</strong> caricato “Dexeu Falá”, a “Festa da Criança”, e asIntervenções <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> na Escola Estadual Capitão Egídio Lima.4.2.1. Dexeu FaláO bloco caricato “Dexeu Falá” é uma das manifestações que aglomeravam aspessoas em um processo <strong>de</strong> criação coletiva e, no período <strong>de</strong> 1981 a 1992, saiu àsruas no carnaval da cida<strong>de</strong>. O carnaval em Timóteo era um evento estruturado pelaprefeitura municipal, com regulamentos para que escolas e blocos pu<strong>de</strong>ssemparticipar dos <strong>de</strong>sfiles carnavalescos e concorrer a prêmios, conforme requisitos préestabelecidos.Por meio <strong>de</strong> boletim, em 1989, o bloco Dexeu Falá <strong>de</strong>nunciava que o carnavalda cida<strong>de</strong> havia se transformado e se distanciado <strong>de</strong> suas características iniciais:“no princípio era a festa: o povo livre, a praça, a alegria, a vida. Depois, outrosinteresses separaram o povo da festa. Criaram arquibancadas e palcos comexpectadores passivos e atores” (BLOCO CARICATO DEXEU FALÁ, 1989, p.1). Otexto refere-se ao fato do carnaval em Timóteo ter se tornado uma festa queimpossibilitava a participação <strong>de</strong> grupos periféricos, uma vez que as pessoas, para<strong>de</strong>sfilar nas escolas <strong>de</strong> samba, tinham que comprar fantasias. As estrelas da festa<strong>de</strong>sfilavam na alameda, enquanto aqueles que não possuíam condições econômicasficavam como expectadores - mas só tinha acesso às arquibancadas aqueles quepodiam pagar pelos ingressos.O bloco Dexeu Falá, surge nesse contexto, com o intuito <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong>ssaorganização, e produzir, na cida<strong>de</strong>, um carnaval aberto a todos:


56O Dexeu Falá é um bloco sem compromisso com as regras burocráticas queenvolvem todas as escolas, um bloco que vai sair com quantos elementostiver, com a bateria que tiver; aberto para o povão se infiltrar durante toda asua passagem. (...) O que interessa é ver as cores preto e amarelo vestidaspor todos que têm alguma coisa pra falar, aberto aos oprimidos e classesque têm a liberda<strong>de</strong> como meta (...) (DEXEU FALÁ, 1982, p.3).A conexão do bloco <strong>de</strong> carnaval com a capoeira está colocada em diversospontos. O processo <strong>de</strong> formação do bloco era semelhante àquele que acontecia nasrodas <strong>de</strong> capoeira: o grupo estava nas ruas, e os que quisessem participar da festapo<strong>de</strong>riam entrar. Além disso, os sambas-enredos e a bateria do bloco eramcompostos, em sua maioria, por capoeiristas. Os enredos apresentados pelo blocoeram criados coletivamente, em reuniões abertas à população da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteoe circunvizinhas, e ganhavam forma no grupo com as músicas e alegorias.Inicialmente, apresentavam protestos e contestações, numa perspectiva i<strong>de</strong>ológicamarxista, com ênfase na luta <strong>de</strong> classes. Posteriormente, passaram a girar em torno<strong>de</strong> temas diversos, como ecologia, solidarieda<strong>de</strong>, bem comum, valorização da paz.Contudo, a principal diferença que o Dexeu Falá trazia à cida<strong>de</strong> era a invenção <strong>de</strong>um espaço aberto à alegria e à irreverência, no qual todos podiam participar.4.2.2. A capoeira na Escola Estadual Capitão Egídio Lima.Foi no ano <strong>de</strong> 1984 que aconteceu a primeira experiência da capoeira Lenço<strong>de</strong> Seda no contexto escolar. Em uma primeira aproximação, essa conexãocapoeira-escola parece um tanto conflituosa e inusitada. A capoeiragem possui umaforma <strong>de</strong> organização muito diferente da lógica escolar, acontecendo nas ruas <strong>de</strong>Timóteo <strong>de</strong> forma fluida, abrindo processos invenção. A escola, por sua vez, é umainstituição disciplinar, com estrutura e organização arquitetadas para a vigilância e ocontrole dos alunos. Conforme Foucault (1987),(...) principalmente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1762 – o espaço escolar se <strong>de</strong>sdobra; aclasse torna-se homogênea, ela agora só se compõe <strong>de</strong> elementosindividuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob o olhar domestre. A or<strong>de</strong>nação em fileiras, no século XVIII, começa a <strong>de</strong>finir a gran<strong>de</strong>forma <strong>de</strong> repartição dos indivíduos na or<strong>de</strong>m escolar: filas <strong>de</strong> alunos nasala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relaçãoa cada tarefa e a cada prova; colocação que ele obtém <strong>de</strong> semana emsemana, <strong>de</strong> mês em mês, <strong>de</strong> ano em ano; alinhamento das classes <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> umas <strong>de</strong>pois das outras (FOUCAULT, 1987, p.125-126).Se apresentássemos essa <strong>de</strong>scrição da organização da escolar sem a citaçãodo período histórico ao qual se refere, acreditaríamos estar <strong>de</strong>screvendo uma escola


57contemporânea, pois essa estrutura se repete nos dias <strong>de</strong> hoje. A organização dassalas em fileira, a hierarquização do saber e das capacida<strong>de</strong>s em alinhamentosobrigatórios <strong>de</strong> classes e séries, <strong>de</strong> acordo com o nível <strong>de</strong> avanço dos alunos, aida<strong>de</strong>, o comportamento. Um processo <strong>de</strong> reprodução e repetição que fazem daescola uma máquina <strong>de</strong> ensinar e, também, <strong>de</strong> vigiar, hierarquizar, recompensar,discriminar (FOUCAULT, 1987). Contudo, sempre há escapadas, diferenças que nãose enquadram. Nessa perspectiva, uma criança que não obe<strong>de</strong>ce as regras, nãoacata a <strong>de</strong>terminação dos lugares e quer trocar a posição das carteiras da sala abrefendas, pelas quais a diferença escapa e entra em cena. Aquelas que não apren<strong>de</strong>mno tempo e ritmo, <strong>de</strong>marcados <strong>de</strong> acordo com os alinhamentos das séries ehierarquização do saber, produzem uma ruptura no sistema, uma fresta que po<strong>de</strong>suscitar novas formas <strong>de</strong> resistência. Através <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas rupturas, a capoeira daLenço <strong>de</strong> Seda conectou-se à escola em Timóteo.Madrinha Flor era professora na Re<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Ensino, quando se<strong>de</strong>parou com um grupo <strong>de</strong> crianças que não se enquadravam e eram um <strong>de</strong>safiopara a or<strong>de</strong>m escolar. Viu, então, na capoeira, uma ativida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>riapotencializar novos processos <strong>de</strong> criação e produzir a diferença naquele contexto.Eu assumi uma turma em 1984, <strong>de</strong> meninos só repetentes. Eram 30 alunosrepetentes. Realmente era muito difícil, tinha dia que eu saía da sala efalava: “não sei o que eu faço com esses meninos pra gostar <strong>de</strong> estar aqui”.Porque eu estava ali repetindo. Um dia eu pensei: quem sabe a capoeira?Era a oportunida<strong>de</strong> para a criança fazer, <strong>de</strong>ntro da escola, algo mais queestar sentado na sala <strong>de</strong> aula, mas que pu<strong>de</strong>sse ajudar a ser gente também(MADRINHA FLOR) 23 .O <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Flor apresenta importantes elementos paracompreen<strong>de</strong>rmos a experiência da capoeiragem na escola. Primeiramente,<strong>de</strong>stacamos o fato <strong>de</strong> que, também nesse universo, a prática da capoeira acontececom grupos marginalizados: alunos que não se enquadravam à lógica disciplinar eque repetiam as séries, ficando, portanto, em condição <strong>de</strong> discriminação por nãoacompanharem o ritmo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong>terminado na seriação escolar. Namaioria das vezes, essas crianças são estigmatizadas como incapazes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>rou como indisciplinadas.No período relatado por Flor, havia um novo alinhamento, com a criação <strong>de</strong>turmas especiais para essas crianças: eram as turmas dos “atrasados”, dos23 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


58“repetentes”. Porém, os professores também repetiam as mesmas metodologias eintervenções, o que ten<strong>de</strong> a paralisar a criação <strong>de</strong> novos processos <strong>de</strong>aprendizagem. Era necessário experimentar algo diferente. A diferença na cida<strong>de</strong>,naquele momento, emergia com a capoeira. Flor <strong>de</strong>staca que, on<strong>de</strong> havia uma roda,ela chegava para ver, “sem enten<strong>de</strong>r muito, não entendia nada, mas gostava dosom. Acho que o som me chamava muito e as pessoas, que acabavam sendo umgrupo diferente na cida<strong>de</strong>. A forma da roda, uma porção <strong>de</strong> gente jogando...”(MADRINHA FLOR) 24 .Dessa maneira, a partir <strong>de</strong> um saber prático, uma percepção intuitiva nãoelaborada cientificamente ou por meio estudos pedagógicos, a professora Florpropõe à Lenço <strong>de</strong> Seda uma experiência <strong>de</strong> capoeira na escola. Com aconcordância do mestre e autorização da diretora da escola, começou acapoeiragem na Escola Estadual Capitão Egídio Lima, no horário da aula, uma vezpor semana. Participavam das aulas <strong>de</strong> capoeira apenas vinte meninos da turma daprofessora Flor. As meninas faziam aulas <strong>de</strong> bordado naquele horário.Com a capoeiragem na escola, emergiam diferenças quanto a diversosaspectos. Enquanto na escola, na sala <strong>de</strong> aula, a organização dos espaços é linear,em filas, com lugares <strong>de</strong>marcados rigidamente, na capoeira o espaço é circular,flexível, com alternância constante na ocupação dos espaços. Se na sala <strong>de</strong> aula aor<strong>de</strong>m é o silêncio, na capoeira o som, o ritmo, a canção é o que sustenta omovimento, o jogo. Na maioria das vezes, as metodologias <strong>de</strong> aprendizagem na sala<strong>de</strong> aula pressupõem poucos movimentos corporais, com crianças sentadas,ouvintes. Na capoeira, a aprendizagem é eminentemente em movimento, seja paratocar os instrumentos, para apren<strong>de</strong>r os golpes ou para jogar na roda. Enquanto aorganização da sala <strong>de</strong> aula pressupõe elementos individuais sob o olhar doprofessor, com poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, em que cada um éresponsabilizado por seu sucesso ou fracasso, a capoeira produz um campo no qualtodos estão conectados e a capoeiragem só acontece numa construção coletiva. Naopinião <strong>de</strong> Flor, diante da prática da capoeira,A cara da escola muda. Sai <strong>de</strong> uma rigi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> uma organização que émilitar. Pra mim, fica um ambiente mais alegre, os meninos ficam maissenhores <strong>de</strong> si e o entrosamento dos meninos com os colegas é muitomaior. Porque, na própria dinâmica da capoeira, não tem uma ação isolada,que é a capoeira só, um grupinho. Todo movimento que a capoeira faz24 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


59envolve todo mundo. Envolve pra montar a bateria, pra cantar junto, e elafaz com que os meninos se socializem mais entre eles (MADRINHAFLOR) 25 .O acontecimento da capoeira na escola funcionou como catalisador <strong>de</strong>acontecimentos que emergiam na sala <strong>de</strong> aula, no pátio, na comunida<strong>de</strong>, em outrasescolas da cida<strong>de</strong>. Todavia, as diferenças produzidas com a capoeira na escolatambém traziam <strong>de</strong>safios. Havia um preconceito gran<strong>de</strong>, pois muitas pessoas aindaviam a capoeira como coisa <strong>de</strong> malandro, e existia um preconceito com o própriogrupo da Lenço <strong>de</strong> Seda em Timóteo: “tinha colegas <strong>de</strong> trabalho que falavam assim:olha Flor, seus cabeludos estão chegando. Eles tinham muito a característica <strong>de</strong>hippie. Então era muito estranho” (MADRINHA FLOR) 26 .Além do <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> driblar o preconceito, <strong>de</strong>paramo-nos com o perigo <strong>de</strong> que,praticada no espaço escolar, a capoeira per<strong>de</strong>sse sua flui<strong>de</strong>z, sua forma singular <strong>de</strong>organização do tempo e espaço, mediante enquadramentos <strong>de</strong> horários, filas,classes, séries. Porém, mesmo diante <strong>de</strong> tais <strong>de</strong>safios, o que ganhou força noencontro capoeira-escola, na experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, foram astransformações no contexto escolar. Surgiram diferenças no comportamento dosalunos, na maneira <strong>de</strong> se relacionar com os colegas e com o processo <strong>de</strong>aprendizagem. Flor relata:Eu vou pegar um pouco o Jean, porque o Jean é referência. O Jean era ummenino que me dava muito trabalho, falava, falava, falava e não fazia muitacoisa. De repente, ele ficou um menino que participava. Ele tinha uma letraque eu não conseguia i<strong>de</strong>ntificar, a letra <strong>de</strong>le passou a ser legível, sem serletra bordada, uma letra <strong>de</strong> fácil compreensão. Ele ficou um menino muitointeressado com tudo. O Gil pela mesma forma. Porém, com o Gil eu já nãotinha dificulda<strong>de</strong> para ele estar envolvido no processo da sala, porque o Gilera bom nisso. Mas o Gil também, ele já foi sobressaindo, como foi o Itamar,como foi o Osmar... parece que eles sentiram assim: “eu posso algumacoisa”. Eles já estavam ali, a maioria com nove, <strong>de</strong>z anos; tinha meninos até<strong>de</strong> 14 anos na segunda série. E eles se sentiram assim: “não é que eu douconta <strong>de</strong> alguma coisa?” (MADRINHA FLOR) 27 .Po<strong>de</strong>mos dizer que as crianças que compunham o grupo <strong>de</strong> capoeira naescola eram “pessoas-margens”, que não entram nas normas dominantes e sãovítimas <strong>de</strong> segregação, com tendência a ser cada vez mais controladas,classificadas (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 143). De acordo com faixa a etária dosalunos <strong>de</strong>scritos por Flor, observamos que esses estavam repetindo a segunda série25 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006..26 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.27 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


60há algum tempo, pois, naquele contexto, a ida<strong>de</strong> regular para esta série era oitoanos. A presença <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> <strong>de</strong>z e até quatorze anos nessa série remete a umprocesso <strong>de</strong> paralisação no âmbito da escola. Repetição <strong>de</strong> repetências, quesinalizam a uma estagnação dos fluxos <strong>de</strong> aprendizagem escolar. Para Deleuze,Apren<strong>de</strong>r vem a ser tão somente o intermediário entre não-saber e saber, apassagem viva <strong>de</strong> um ao outro. Po<strong>de</strong>-se dizer que apren<strong>de</strong>r, afinal <strong>de</strong>contas é uma tarefa infinita, mas esta não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser rejeitada para o ladodas circunstâncias e da aquisição, posta para fora da essênciasupostamente simples do saber como inatismo, elemento a priori ou mesmoidéia reguladora (DELEUZE, 2000, p.271).Na circunstância escolar vivida pelos alunos <strong>de</strong> Flor, eles eramestigmatizados como incapazes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong> adquirir conhecimentos, pois aaprendizagem estava relacionada à regulação, à progressão nas séries, não aomovimento <strong>de</strong> transformação das ações e pensamentos. A partir da capoeira, entraem cena um universo diferente: as crianças começaram a experimentar práticas nasquais eram capazes <strong>de</strong> realizar a passagem viva do não-saber ao saber, e torna-sepossível algo mais que ser repetente. Esse movimento <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou transformaçõesno processo <strong>de</strong> aprendizagem, na forma <strong>de</strong> lidar com o conhecimento e com asrelações estabelecidas na sala <strong>de</strong> aula, conforme os exemplos citados por Flor emseu <strong>de</strong>poimento. Crianças passaram a acreditar em sua potência <strong>de</strong> criação, <strong>de</strong>aprendizagem, no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fazer “alguma coisa”, abrir espaços <strong>de</strong> diferença.Começaram a surgir meninos <strong>de</strong>monstrando li<strong>de</strong>rança. Essa li<strong>de</strong>rança, queentrou em cena e ganhou força a partir da capoeiragem, extrapolou os momentos daaula <strong>de</strong> capoeira, alcançou outras turmas e séries. No pátio, na hora do recreio,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da presença do professor <strong>de</strong> capoeira, os alunos organizavam rodas,jogavam, cantavam. Com ou sem os instrumentos necessários, a música e a rodaaconteciam e crianças <strong>de</strong> todas as séries participavam daquela irrupção <strong>de</strong> alegria.Para Flor, a capoeira <strong>de</strong>ntro da escola é uma prática “pra dar prazer, pra <strong>de</strong>ixarmenino alegre, pra ter um movimento” (MADRINHA FLOR) 28 .O movimento transbordou o tempo escolar. Começaram a acontecer aulas<strong>de</strong> capoeira aos sábados, para mães <strong>de</strong> alunos e pessoas da comunida<strong>de</strong> quequisessem participar. Os alunos participavam <strong>de</strong> eventos, excursões e rodas <strong>de</strong>capoeira que o grupo Pasárgada e a Lenço <strong>de</strong> Seda faziam, em outros bairros e emcida<strong>de</strong>s circunvizinhas. Essas crianças, que formaram o primeiro grupo <strong>de</strong> capoeira28 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


61da Escola Estadual Capitão Egídio Lima, tornaram-se, oito anos <strong>de</strong>pois, monitoresem outras escolas, <strong>de</strong>ntre elas: Escola Estadual Tenente José Luciano, em 1985;Escola Estadual José Ferreira Maia, em 1992 e 1993; Escola Estadual Ilda Zalza,em 1992 e 1993. Na Escola Estadual Capitão Egídio Lima, a capoeiragem teve lugarmais intensamente nos anos <strong>de</strong> 1984/1985, 1992/1993, reiniciando em 2006.Observando as datas em que a capoeiragem aconteceu nas escolas,percebemos que tal experiência que não se fixa: prolifera-se <strong>de</strong> forma fragmentária,entra pelo meio, e não se cristaliza. Flor fala <strong>de</strong>ssa característica ao dizer: “o que meincomoda um pouco é que a capoeira chega, mas ela não continua. Ela só acontecese tiver alguém lá <strong>de</strong>ntro que tem, historicamente, alguma relação ou que tem muitaconfiança <strong>de</strong> que vale a pena” (MADRINHA FLOR) 29Enten<strong>de</strong>mos que o processo incômodo para Flor é justamente o queintensifica a força da capoeira e possibilita o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong>ssa prática emdiversos segmentos, com poucas capturas <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> invenção. Afragmentação das experiências no encontro capoeira/escola dificulta a captura dacapoeiragem pela disciplina escolar e favorece a emergência da diferença.Ressaltamos que a escapada, o movimento, o contínuo <strong>de</strong>slocamento, o reiniciar,fazem parte da capoeiragem e estão presentes em seu percurso histórico no Brasil,na roda, na ginga e na história da Lenço <strong>de</strong> Seda.4.2.3. A Festa da Criança PasárgadaNo entrelaçamento capoeira-arte-carnaval-crianças-educadores, as criançaspassaram a ser atores principais <strong>de</strong>ssa história e sujeitos da festa. O evento quemelhor expressa essa primazia é a Festa da Criança. Realizada em outubro, comculminância no dia 12, esse evento congregava inúmeros voluntários, educadores,artistas, comerciantes, crianças e adultos <strong>de</strong> todos os bairros da cida<strong>de</strong> emativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> jogos, brinca<strong>de</strong>iras infantis, capoeira, artes, música, cinema, sorteio <strong>de</strong>prêmio, boi-bumbá e outras. A criação do evento iniciava-se com a escolha <strong>de</strong> umtema, que era sempre o mais aberto possível, como, por exemplo: “Hoje Tem!... HojeTem!...”; “Todo dia é dia”; “Era uma vez...”.29 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


62Hoje tem o quê? É dia <strong>de</strong> quê? Era uma vez o quê? Tudo aquilo que épossível <strong>de</strong>sejar. Esses temas eram colocados com a intenção <strong>de</strong> propiciar diversasentradas, abrir um espectro amplo <strong>de</strong> ramificações em múltiplas direções,produzindo e mobilizando <strong>de</strong>sejos coletivamente. Na criação <strong>de</strong> cada Festa daCriança, entrava em funcionamento um tipo <strong>de</strong> “máquina <strong>de</strong>sejante”: a produção <strong>de</strong><strong>de</strong>sejos em conexão com os mais diferentes elementos em seu entorno; cominfinitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> montagem (GUATTARI; ROLNIK, 2005).O tema era informado às escolas da região e corria a cida<strong>de</strong>. A equipeorganizadora da festa, composta pelos capoeiristas da Lenço <strong>de</strong> Seda e membrosda Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada, começava a se reunir meses antes do evento e aaglutinar novas pessoas à equipe. Cada pessoa ou grupo contribuía <strong>de</strong> maneiradiferente: crianças das escolas faziam ban<strong>de</strong>irolas para enfeitar as ruas, gruposfolclóricos apareciam para apresentar danças e brinca<strong>de</strong>iras, professoresorganizavam jogos recreativos, comerciantes doavam prendas para prêmios, eassim a festa ia se configurando.Nunca uma festa era igual à anterior, pois as pessoas que formavam osgrupos mudavam a cada ano, assim como as ativida<strong>de</strong>s propostas. Os grupos <strong>de</strong>trabalho para organização das brinca<strong>de</strong>iras, ornamentação, busca <strong>de</strong> patrocínios eoutros eram fluidos. Tal como no carnaval do Dexeu Falá, quem passasse por alipo<strong>de</strong>ria participar. Gran<strong>de</strong> parte dos grupos era coor<strong>de</strong>nada pelos capoeiristas.No processo <strong>de</strong> execução das tarefas, eram vivenciados episódios diferentes,em relação à or<strong>de</strong>m habitual da vida na comunida<strong>de</strong>. Era comum, por exemplo,professores trabalhando sob a coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> um menino <strong>de</strong> rua, capoeirista daLenço <strong>de</strong> Seda. Essa cena possibilita ver as transgressões que ocorriam nessemovimento <strong>de</strong> criação coletiva. Na cida<strong>de</strong> com espaços tão <strong>de</strong>marcados, on<strong>de</strong> cadaum tinha seu lugar <strong>de</strong>terminado, em relações rigidamente hierarquizadas, comtecnologias disciplinares e biopolíticas que se estendiam e atravessavam todos oscampos da vida, a festa da criança abria fendas em que os diferentes seencontravam, as <strong>de</strong>marcações se rompiam e as posições hierárquicas se invertiam.Alguns dias antes da festa, a trupe da Pasárgada percorria os bairros,fazendo divulgação com rodas <strong>de</strong> capoeira, teatro, palhaços. No dia da festa,crianças e adultos dos bairros periféricos migravam para a praça do centro dacida<strong>de</strong>, nas imediações da Pasárgada. Em alguns anos, a organização contou comônibus financiados pela prefeitura para trazer e levar as crianças. O evento adquiriu


63gran<strong>de</strong>s proporções, chegando a receber mais <strong>de</strong> seis mil pessoas. Na medida emque aumentava, ampliava-se o espectro <strong>de</strong> envolvidos na organização da festa:além dos grupos <strong>de</strong> recreação, teatro, capoeira, educadores e todas as pessoas que<strong>de</strong>sejassem trabalhar, os comerciantes contribuíam com patrocínios e prendas; ausina contribuía financiando lanches; a prefeitura disponibilizava o transporte; enfim,praticamente toda a cida<strong>de</strong> estava, <strong>de</strong> alguma forma, envolvida.O formato final da festa só era conhecido no momento em que ela acontecia,visto que, na hora do evento, novos voluntários se apresentavam para contribuir eproduzir acontecimentos, em pulsações <strong>de</strong> invenção e alegria. Concordamos com ojornalista local que relatou: “se o poeta Manuel Ban<strong>de</strong>ira visse tanta criança junta,virando cambalhotas e ‘pintando o sete’, talvez <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> sonhar com a suaimaginária Pasárgada, construída em versos, para reencontrar a alegria aqui mesmono Vale do Aço” (LACERDA, 1989, p.7).A capoeira do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no início do século XX, constituía espaços daalegria em áreas periféricas, longe da cida<strong>de</strong> burguesa letrada. Em Timóteo,contemporaneamente, isso se invertia: com a capoeira da Lenço <strong>de</strong> Seda, emergia oespaço da alegria no centro da cida<strong>de</strong>, totalmente ocupado por crianças, jovens eadultos das periferias. Esse espaço urbano, cotidianamente <strong>de</strong>stinado a negócios,trabalho, comércio, on<strong>de</strong> está situada a se<strong>de</strong> do escritório central da fábrica,convertia-se em um espaço da alegria, conforme sinalizado por Lacerda (1989).Com brinca<strong>de</strong>iras, capoeira, jogos recreativos, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> artes plásticas,teatro, música e tantas ativida<strong>de</strong>s quanto a imaginação pu<strong>de</strong>sse inventar, ascrianças apropriavam-se e faziam uso completamente inusitado do espaço.Destacamos uma cena que veio ao nosso encontro ao investigarmos o acervodocumental da Lenço <strong>de</strong> Seda e que nos afeta <strong>de</strong> forma singular:


64FIGURA 1 - crianças invadindo o espelho d’água do escritório central da ACESITA durante a Festa daCriança <strong>de</strong> 1992. Arquivo documental da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda.FIGURA 2 - crianças invadindo o espelho d’água do escritório central da ACESITA durante a Festa daCriança <strong>de</strong> 1992. Arquivo documental da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda.


65Nas imagens, vemos crianças banhando-se e brincando em um espelhod’água que compõe a arquitetura do escritório central da Acesita, na praça dacida<strong>de</strong>. Esse prédio po<strong>de</strong> ser visto como materialização arquitetônica das relações<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na cida<strong>de</strong>, local on<strong>de</strong> a diretoria da usina trabalha, espaço formal ocupadopelos que exerciam o po<strong>de</strong>r no mais alto grau hierárquico. O espelho d’água, naentrada do prédio, distancia o escritório central da rua, da praça, como uma<strong>de</strong>marcação da distância, da diferença. Contudo, em uma das Festas, quando o solestava escaldante e o calor era intenso, as crianças invadiram esse espaço etransformaram o mesmo em uma piscina - naquele momento, mais uma opção <strong>de</strong>lazer e alegria.Enfim, a Festa da Criança era um espaço <strong>de</strong> invenção que se abria na cida<strong>de</strong>.Uma experiência que aconteceu por aproximadamente <strong>de</strong>z anos e que mobilizavanúmero cada vez maior <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> classes sociais diferentes, <strong>de</strong> diversosbairros. A última Festa da Criança, realizada em 1992, aglutinou aproximadamente12 mil pessoas em um encontro heterogêneo, que potencializou uma constelação <strong>de</strong>acontecimentos e produziu a abertura <strong>de</strong> inumeráveis possibilida<strong>de</strong>s.4.2.4. Eixos transversaisAlguns aspectos presentes na história da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda e Socieda<strong>de</strong> <strong>Cultural</strong> Pasárgada funcionavam como pontas <strong>de</strong> lança, linhastransversais que abriam novos campos e potencializavam processos <strong>de</strong> invenção.Destacamos três <strong>de</strong>les: a capoeira como experiência propulsora dos movimentos; oprocesso <strong>de</strong> acontecimentalização, com <strong>de</strong>smultiplicação causal; e o exercício <strong>de</strong>cidadania.1 - A capoeira sempre era o movimento propulsor das ações, a experiênciaque reunia as pessoas. Todos os domingos, os capoeiristas encontravam-sena se<strong>de</strong> da Pasárgada para a roda <strong>de</strong> capoeira. Junto a eles, compunham aroda aqueles que queriam assistir, participar, cantar. O momento posteriorconstituía-se como um espaço-tempo <strong>de</strong> conversas, <strong>de</strong>bates, encontros; asidéias fluíam e os eventos começavam a ser engendrados. Mestre ReginaldoVéio ressalta que, na realização das ações, o trabalho dos capoeiristas era agran<strong>de</strong> potência <strong>de</strong> execução.


662 - Na roda <strong>de</strong> capoeira, o jogo, eminentemente coletivo, faz-se no ato <strong>de</strong>jogar e a cada movimento, por meio <strong>de</strong> conexões <strong>de</strong> universos heterogêneos,rompendo evidências e suscitando respostas inusitadas, em invençõescontínuas. Tal como na roda, também as ações e eventos produzidos naconexão Pasárgada-Lenço <strong>de</strong> Seda emergiam em <strong>de</strong>smultiplicação causal,com articulação <strong>de</strong> diferentes processos históricos, que produziam rupturas<strong>de</strong> evidências, abertura <strong>de</strong> infinitas possibilida<strong>de</strong>s em inúmeras direções,materializando diversos acontecimentos históricos (FOUCAULT, 2004).3 - Os eventos que emergiam na conexão Pasárgada-Lenço <strong>de</strong> Seda semprepotencializavam a produção da diferença na vida <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>: com um carnavalmais fluido e aberto, que rompia a estratificação do <strong>de</strong>sfile das escolas <strong>de</strong>samba organizadas, com a capoeiragem na escola, que engendrava novasformas <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> conviver, ou com a festa da criança, que produziafissuras nas relações hierarquizadas e o uso inusitado dos espaços dacida<strong>de</strong>. Essas experiências abriam campos <strong>de</strong> diferença e articulavam abusca do bem-estar pessoal com o bem-estar da comunida<strong>de</strong>. Pepinharessalta: “tinha um sentimento <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> uma coisa legal pra nossa cida<strong>de</strong>.A nossa cida<strong>de</strong> era muito carente <strong>de</strong> tudo. Tinha um sentimento da gentezelar por uma coisa que pu<strong>de</strong>sse ser importante pra nossa cida<strong>de</strong> no futuro”(PROFESSOR PEPINHA) 30 . Observamos, nas práticas da Lenço <strong>de</strong> Seda-Pasárgada, a emergência do exercício da cidadania - na visão <strong>de</strong> Bauman(2001), exercida na medida em que projetos individuais são ligados a ações eprojetos coletivos.Enten<strong>de</strong>mos que os acontecimentos que emergiam na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, emconexão com a capoeiragem da Lenço <strong>de</strong> Seda, constituíam intervenções sóciopolíticase alcançavam um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas em diversos segmentossociais, como uma experiência <strong>de</strong> cidadania que afetava a vida da comunida<strong>de</strong> eproduzia diferenças nas formas <strong>de</strong> ser e viver.30 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


675. A <strong>CAPOEIRA</strong>GEM EM TEMPOS DE MODERNIDADE LÍQUIDAConforme as elaborações apresentadas, observamos que a capoeira surgecomo resistência no contexto brasileiro, engendrando processos <strong>de</strong> invenção, com aassociação <strong>de</strong> diversos aspectos como dança, música, luta, criação das formas <strong>de</strong>viver e lutar por liberda<strong>de</strong>. Na experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda, em um contexto no qual havia um estado <strong>de</strong> dominação associado atecnologias <strong>de</strong> governo disciplinares, a capoeiragem funcionava como catalisador <strong>de</strong>forças e produzia um ethos guerreiro, articulando resistência enquanto contra-força einvenção.Entretanto, ao consi<strong>de</strong>rarmos as transformações na prática da capoeiragem,observamos que as rodas que emergiam nas senzalas, nas ruas, como instrumento<strong>de</strong> luta e <strong>de</strong> ludicida<strong>de</strong>, como “uma das expressões utilizadas pelos negros naconstrução <strong>de</strong> seus espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> suas tradições culturais”(CRUZ, 1996 p. 25) ou como movimento catalisador e propulsor para criação <strong>de</strong>diferenças na vida da cida<strong>de</strong>, acontecem hoje, na maioria das vezes, nasaca<strong>de</strong>mias, escolas, universida<strong>de</strong>s.Na contemporaneida<strong>de</strong>, a capoeira é praticada, muitas vezes como umaopção <strong>de</strong> “ginástica” que possibilita melhor <strong>de</strong>finição corporal, em sintonia commo<strong>de</strong>lizações capitalistas. Diante <strong>de</strong>ssas mudanças, perguntamos: como as práticas<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r hegemônicas atravessam, hoje, a capoeira? Ainda po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rá-lauma prática <strong>de</strong> resistência? Em quais circunstâncias emerge a resistência nacapoeira contemporânea? Para buscarmos respostas a essas questões, énecessário investigar as configurações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na contemporaneida<strong>de</strong> e as formas<strong>de</strong> resistência nos atravessamentos com a capoeiragem.São múltiplas as leituras que se apresentam, assim como são diversas asexpressões utilizadas para <strong>de</strong>nominar o momento contemporâneo. Em nossotrabalho, optamos pelo termo “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> líquida” cunhado por Bauman (2001).Utilizando o adjetivo “líquida” para caracterizar a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> contemporânea, oautor dá ênfase à flui<strong>de</strong>z, ao movimento, às modulações que observamos nessetempo. Os líquidos - varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluidos - não fixam o espaço nem pren<strong>de</strong>m o


68tempo, não mantêm a forma com facilida<strong>de</strong>, estando sempre prontos a mudá-la. Aliquefação ou a flui<strong>de</strong>z é uma das principais características do tempo presente. Noentanto, ao manter o termo mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o autor <strong>de</strong>staca que alguns parâmetros <strong>de</strong>hoje continuam referenciados nas matrizes mo<strong>de</strong>rnas, principalmente o princípio daindividualida<strong>de</strong>, da autonomia.Observamos, na contemporaneida<strong>de</strong>, um processo <strong>de</strong> exacerbação daindividualização, através da transformação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> humana em uma tarefa: osindivíduos são responsabilizados pela realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e por suasconseqüências, convocados para performances contínuas, diante das infinitaspossibilida<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>spontam na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, numa ciranda que nãotem fim. Dito <strong>de</strong> outro modo, as pessoas são convocadas à ação mediantecondições e possibilida<strong>de</strong>s diferentes, responsabilizadas individualmente por seusucesso ou fracasso. Assim, aqueles que não conseguem ingressar no mundo dotrabalho são responsabilizados por não <strong>de</strong>senvolver sua formação contínua; quandose encontram na miséria, são culpados e estigmatizados como incapazes oupreguiçosos.Nessa perspectiva, a individualização aparece como oposição à cidadania, oulenta <strong>de</strong>sintegração <strong>de</strong>la. Partindo do pressuposto <strong>de</strong> que cidadão é aquele quebusca seu bem-estar pessoal articulado ao bem-estar da cida<strong>de</strong>, o indivíduocontemporâneo distancia-se da cidadania na medida em que se ocupa dasperformances individuais e ten<strong>de</strong> a ser cético quanto ao bem-comum. Em tempos <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> líquida, a tarefa <strong>de</strong> construir uma nova or<strong>de</strong>m não está na agenda,pelo menos não na agenda política, pois a situação atual emergiu do <strong>de</strong>rretimentodos sólidos pré-mo<strong>de</strong>rnos, sem a perspectiva <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> novos mol<strong>de</strong>s.Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão<strong>de</strong>rretendo neste momento, o momento da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> fluida, são os elosque entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas - ospadrões <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação entre as políticas <strong>de</strong> vidaconduzidas individualmente, <strong>de</strong> um lado, e as ações políticas <strong>de</strong>coletivida<strong>de</strong>s humanas, <strong>de</strong> outro (BAUMAN, 2001, p.12).Portanto, com a exacerbação do individualismo e o esvaziamento das açõespolíticas coletivas, observamos que as ações revolucionárias já não estão em pautaou não têm a mesma força para mobilizar pessoas dispostas a mudar planosindividuais em favor <strong>de</strong> projetos coletivos. A experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, que seproduzia tendo como eixo fundamental a articulação entre a busca do bem-estar


69pessoal e o bem-estar da comunida<strong>de</strong>, é atravessada diretamente por esse aspecto,conforme relata Jorginho Escorpião:Com uns <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, mais ou menos, tinha festa na rua ea gente procurava movimentar a galera, fazer festa, tudo por conta daassociação - é dia das crianças... - a gente participava. A gente procuravadoar <strong>de</strong> si o máximo pra po<strong>de</strong>r ver acontecer, e hoje em dia a gente procuraas pessoas e elas pouco doam, você enten<strong>de</strong>u? (CONTRAMESTREJORGINHO ESCORPIÃO) 31 .A dificulda<strong>de</strong> que a Lenço <strong>de</strong> Seda enfrenta, hoje, para conseguir mobilizar aspessoas da comunida<strong>de</strong> em função <strong>de</strong> ações coletivas - expressada no <strong>de</strong>poimento<strong>de</strong> Jorginho - foi manifestada em outros <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> capoeiristas que compõemo grupo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fundação. Enten<strong>de</strong>mos que isso reflete uma transformação nasconfigurações grupais e nas formas <strong>de</strong> conexão com as questões sociais. Noperíodo <strong>de</strong>scrito por Jorginho, que compreen<strong>de</strong> os quinze anos iniciais da trajetóriada Lenço <strong>de</strong> Seda, o grupo contava com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> integrantes, queparticipavam efetivamente das ativida<strong>de</strong>s da capoeiragem e da produção coletiva <strong>de</strong>ações sócio-políticas que mobilizavam uma significativa parcela da comunida<strong>de</strong>,conforme <strong>de</strong>scrito anteriormente. Hoje, o grupo da Lenço <strong>de</strong> Seda em Timóteo émenor, e as ações sócio-políticas já não abarcam gran<strong>de</strong>s segmentos dacomunida<strong>de</strong>: são micro e pontuais. Acreditamos que a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizaçãodas pessoas em função <strong>de</strong> projetos coletivos reflete a exacerbação doindividualismo na contemporaneida<strong>de</strong>. Tal exacerbação atravessa também o jogo <strong>de</strong>capoeira, principalmente no universo da Regional.Como sinalizamos anteriormente, a criação da <strong>Capoeira</strong> Regional e seureconhecimento como esporte nacional propiciou, simultaneamente, maior inserçãoda capoeira no contexto social, abertura a novas configurações e maiorsuscetibilida<strong>de</strong> aos atravessamentos e capturas do po<strong>de</strong>r. Nesse processo, acapoeira como prática eminentemente coletiva vai se transformando em show,performances individuais, na medida que incorpora golpes <strong>de</strong> outras lutas emovimentos acrobáticos. Mestre Reginaldo Véio enfatiza que:No jogo <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> nós estamos elaborando uma energia, há um dialogo, eesse diálogo haverá <strong>de</strong> ter uma conclusão. Na Regional eu possointerromper o jogo quando eu quiser. Não se trata <strong>de</strong> um diálogo que vaichegar ao fim, mas um exercício <strong>de</strong> disputa corporal, <strong>de</strong> acrobacia, <strong>de</strong> simesmo. <strong>Angola</strong> é um exercício do coletivo, o exercício <strong>de</strong> diálogo. ARegional é um exercício <strong>de</strong> si mesmo: você precisa <strong>de</strong> um cenário - as31 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.


70rodas, os instrumentos, as baterias, o canto -, mas muito a serviço <strong>de</strong> umaperformance on<strong>de</strong> eu possa dar cinco, seis, oito saltos pra você narrar. Na<strong>Angola</strong>, “nunca <strong>de</strong>i um golpe em vão”, todo golpe que eu dou é umapergunta, tem que te alcançar, você vai ter que respon<strong>de</strong>r pra fazer outrapergunta. Na Regional não, eu salto (MESTRE REGINALDO VÉIO) 32 .Ao estabelecer esse paralelo entre <strong>Angola</strong> e Regional, o mestre aborda oprocesso <strong>de</strong> individualização que atravessa a capoeiragem em relação à formacomo o jogo se <strong>de</strong>senvolve na roda e enfatiza que esse processo ganha força na<strong>Capoeira</strong> Regional. O diálogo corporal transforma-se em exercício <strong>de</strong> performancesacrobáticas individuais. A individualização po<strong>de</strong> ser observada também em relação aoutros fatores, como, por exemplo, a busca da prática da capoeira nas aca<strong>de</strong>miascomo treino, ginástica sem vinculação à formação <strong>de</strong> grupos ou à participação emprocessos coletivos. Tanto nas performances individuais na roda quanto na busca<strong>de</strong> treino nas aca<strong>de</strong>mias, os aspectos coletivos estão sendo dissolvidos, o que nosremete ao <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Jorginho, sobre a dificulda<strong>de</strong>s em relação às açõesgrupais, e às elaborações <strong>de</strong> Bauman (2001), ao dizer da clivagem entre as políticas<strong>de</strong> vida conduzidas individualmente e as ações <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s humanas.Portanto, a capoeiragem transforma-se ao ser atravessada peloindividualismo exacerbado e por outros aspectos que compõem o panorama <strong>de</strong>nosso tempo, no qual emergem novas formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e resistência.Segundo as elaborações foucaultianas sobre o exercício do po<strong>de</strong>r, po<strong>de</strong>mosi<strong>de</strong>ntificar três níveis diferentes <strong>de</strong> sua manifestação: os estados <strong>de</strong> dominação, astécnicas <strong>de</strong> governo ou governamentalida<strong>de</strong> e as relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Ressaltamos que esses níveis não são exclu<strong>de</strong>ntes, aparecendo, muitas vezes,associados, mesmo com a prevalência maior <strong>de</strong> algum sobre os outros.No tempo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> líquida, predominam as relações estratégicas: “ummodo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que agesobre sua própria ação” (FOUCAULT, 1995, p. 243). Essas relações são móveis,reversíveis e instáveis, acontecem entre sujeitos livres, em um exercício flexível. Opo<strong>de</strong>r estabelece-se na medida em que cada um procura dirigir a conduta do outro:(...) é preciso distinguir as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r como jogos estratégicos entreliberda<strong>de</strong>s - jogos estratégicos que fazem com que uns tentem <strong>de</strong>terminar aconduta dos outros, ao que os outros tentam respon<strong>de</strong>r não <strong>de</strong>ixando suaconduta ser <strong>de</strong>terminada ou <strong>de</strong>terminando em troca a conduta dos outros(FOUCAULT, 2004, p.285).32 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


71Enten<strong>de</strong>mos, portanto, que, nas relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, háflexibilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que o po<strong>de</strong>r não se fixe em um sujeito ou em <strong>de</strong>terminadogrupo. No universo da capoeiragem, no cenário do diálogo <strong>de</strong> corpos, quando sejoga lutando e se luta dançando, po<strong>de</strong>mos ver as relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r emsua materialida<strong>de</strong>, em atualização.Para os capoeiristas angoleiros, a roda é o mundo: uma representação micro<strong>de</strong>sse contexto macro, contendo todas as suas nuances, movimentos, relações. Écom esse entendimento que, quando nos colocamos em uma roda <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong>, acompanhando as músicas e as ladainhas, compondo o grupo que circundao espaço, ao presenciar os dois capoeiristas que, ao pé do berimbau, o reverenciame iniciam o jogo, estabelecemos uma analogia entre essa vivência e as relaçõesestratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Recortando <strong>de</strong>sse universo <strong>de</strong> movimento, música, ritmos e sons a cenaespecífica do jogo dos angoleiros, observamos que, ao realizar o primeiromovimento, o capoeira está fazendo uma pergunta corporal, forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar,estrategicamente, o movimento do outro capoeirista, conduzir a sua ação. Quando ooutro capoeirista respon<strong>de</strong>, apresenta não apenas uma resposta àquele movimentoinicial, mas também outra pergunta, que, por sua vez, irá <strong>de</strong>terminar o movimentodaquele que iniciou o jogo. Nessas articulações, além <strong>de</strong> buscar a <strong>de</strong>terminação daconduta do outro, cada angoleiro reinventa continuamente seu jogo, no intuito <strong>de</strong>surpreen<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>safiar também a si mesmo. Assim, sucessivamente, num diálogo <strong>de</strong>perguntas e respostas corporais, o capoeirista exercita relações estratégicas <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r. O lugar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r inverte-se contínua e infinitamente, com imensa, simultâneae constante flexibilida<strong>de</strong>.Passando do mundo da roda para o plano macro do contexto social,acreditamos que, no âmbito das relações entre pessoas ou grupos, ainda não hátamanha flexibilida<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong>mos, porém, negar que as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estãopresentes nos diversos níveis <strong>de</strong> convívio social. De acordo com Lazzarato (2004),as relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r têm extensão extraordinária nas relaçõeshumanas e não <strong>de</strong>vem ser confundidas com uma estrutura política, um governo ouuma classe social dominante. Efetivamente, “os po<strong>de</strong>res que liquefazem passaramdo sistema para a socieda<strong>de</strong>, da política para as políticas da vida – <strong>de</strong>sceram donível macro para o nível micro do convívio social” (BAUMAN, 2001, p.14) Desta feita,


72<strong>de</strong>stacamos que, nas diversas formas <strong>de</strong> relações humanas - sejam amorosas,familiares, grupais, sociais ou outras -, há relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Pereira (2001), pautando-se em elaborações foucaultianas, afirma que taisrelações po<strong>de</strong>m ser entendidas como o exercício do po<strong>de</strong>r através <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s que seinstauram em um espaço polivalente, múltiplo, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res difusos, exercidos <strong>de</strong>forma não-localizada e, conseqüentemente, com multiplicida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong>resistência. Assim, formas <strong>de</strong> resistências também são reinventadas, surgem novosmovimentos sociais que articulam esquemas diferentes, como a cultura, asolidarieda<strong>de</strong>, a produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, a micropolítica, ou seja: as resistênciasdão-se “entre as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos e grupos enten<strong>de</strong>mviver sua existência” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.53).5.1. As técnicas <strong>de</strong> governo contemporâneas: a mo<strong>de</strong>lização <strong>de</strong> sujeitosconsumidores e os atravessamentos no universo da capoeiragem.De acordo com Foucault (2004), entre os estados <strong>de</strong> dominação e as relaçõesestratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, temos as tecnologias governamentais, também chamadas <strong>de</strong>técnicas <strong>de</strong> governo ou governamentalida<strong>de</strong>. Lazzarato (2004) explicita que astécnicas <strong>de</strong> governo eram consi<strong>de</strong>radas por Foucault como ponto central nasrelações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r: através <strong>de</strong>las, relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>m cristalizar-se e fixar-seem estados <strong>de</strong> dominação, ou jogos estratégicos po<strong>de</strong>m ser abertos e fechados.Não preten<strong>de</strong>mos, aqui, perpassar toda a complexida<strong>de</strong> contemporânea, mas refletirsobre as articulações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e resistência, com intuito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar as técnicas <strong>de</strong>governo que predominam nesse tempo e como tais tecnologias atravessam acapoeiragem.Na visão <strong>de</strong> Bauman (1999), as configurações fluidas da contemporaneida<strong>de</strong>foram propiciadas pela maior mobilida<strong>de</strong> espacial e temporal no <strong>de</strong>slocamento daspessoas e das informações. Tal mobilida<strong>de</strong> tornou-se possível a partir do<strong>de</strong>senvolvimento dos meios <strong>de</strong> transporte e <strong>de</strong> comunicação na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scoberta do telégrafo e da máquina a vapor, chegando aos aviõessupersônicos e à internet. Esse <strong>de</strong>senvolvimento muda completamente o conceito<strong>de</strong> distância e torna cada vez mais insustentável a idéia <strong>de</strong> fronteira geográfica,


73principalmente no que diz respeito ao transporte da informação, o que impactadiretamente as formas <strong>de</strong> ser e viver.Milton Santos (2004) cita a tecnologia e a mass media como pilares <strong>de</strong>sseperíodo tecnológico. Sem elas a mundialização da produção e do consumo, dastrocas e do mercado, do capital sob todas as formas e do trabalho não teriamacontecido. De acordo com o autor, foi a partir da revolução tecnológica que setornou possível a flui<strong>de</strong>z nas transações econômicas e no universo da produção, osurgimento das empresas transnacionais, “a coleta <strong>de</strong> royalties a título <strong>de</strong>transferência <strong>de</strong> licenças e venda <strong>de</strong> serviços” (SANTOS, 2004, p. 17). Nessecontexto, com a rápida difusão das inovações, o consumo assume papelfundamental nos processos <strong>de</strong> dominação e acumulação.Destacamos, com Deleuze (1992), que o capitalismo já não é dirigido para aprodução, mas para a sobre-produção, os serviços, os produtos, o mercado. Asvendas passam a ser a alma da empresa, e o marketing o instrumento <strong>de</strong> controlesocial: um controle contínuo e ilimitado, porém <strong>de</strong> curto prazo e constante mudança,pois a socieda<strong>de</strong> contemporânea está organizada em torno do consumo.Consi<strong>de</strong>ramos a emergência da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo um fatorprepon<strong>de</strong>rante no processo <strong>de</strong> produção das formas <strong>de</strong> ser e viver do contextocontemporâneo. De acordo com Bauman (2001), a vida organizada em torno doconsumo é orientada por <strong>de</strong>sejos crescentes e quereres voláteis. O consumidor nãobusca apenas satisfazer suas necessida<strong>de</strong>s, seus <strong>de</strong>sejos, mas vive atormentadopela possibilida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>sejos ainda não percebidos, que irão <strong>de</strong>sabrochar a partirda novida<strong>de</strong> que o mercado vai lançar. Não acumula objetos ou produtos, acumulasensações. Essa ciranda não tem fim e conduz o ser humano a uma constanteinsatisfação, on<strong>de</strong> só o <strong>de</strong>sejar é <strong>de</strong>sejável, em uma corrida sem chegada.De acordo com Mance (1998), o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> é mo<strong>de</strong>lizado para oconsumo <strong>de</strong> produtos: a dimensão estética é universalizada a partir dos padrões dobelo e do feio, da roupa que <strong>de</strong>ve ser usada ou da estrutura física que se <strong>de</strong>ve ter.Tudo isso <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma lógica capitalista, organizada para levar o ser humano aconsumir sempre mais. Dito <strong>de</strong> outro modo, a modulação contínua dos diversosfluxos sociais, articulada ao <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico para regular os fluxos do<strong>de</strong>sejo, compõem as novas técnicas <strong>de</strong> governo. As práticas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r hegemônicasoperam por meio da modulação das ações, comportamentos, jeitos <strong>de</strong> ser, viver e


74conviver, a partir <strong>de</strong> uma lógica capitalista que produz sujeitos consumidores e,como dissemos, têm no marketing o principal instrumento <strong>de</strong> controle social.Bauman (2001) cita o po<strong>de</strong>r que os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massaexercem sobre a imaginação individual e coletiva, estabelecendo os padrões darealida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua avaliação: a vida <strong>de</strong>sejada passa a ser a vida vista na telinha,enquanto a vida real parece ser irreal quando não está em consonância com asimagens expostas nas telas ou nas vitrines.No contexto brasileiro, po<strong>de</strong>mos confirmar tal elaboração: <strong>de</strong> acordo comdados do Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística - IBGE (2004), 90,3% dosdomicílios particulares permanentes têm televisão. Curiosamente, em relação aosserviços essenciais, observamos, por exemplo, que 82,2% têm abastecimento <strong>de</strong>água e apenas 48% têm re<strong>de</strong> coletora <strong>de</strong> esgoto. Portanto:Numa socieda<strong>de</strong> sinóptica <strong>de</strong> viciados em comprar/assistir, os pobres nãopo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sviar os olhos; não há mais para on<strong>de</strong> olhar. Quanto maior aliberda<strong>de</strong> na tela, e quanto mais sedutoras as tentações que emanam dasvitrines , e mais profundo o sentido da realida<strong>de</strong> empobrecida, tanto maisirresistível se torna o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> experimentar, ainda que por um momentofugaz, o êxtase da escolha (BAUMAN, 2001, p.104).Enfim, todos, indiscriminadamente, somos lançados na lógica do consumo,mas apenas alguns possuem as condições <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a esse apelo, enquantooutros não possuem nem as condições básicas <strong>de</strong> subsistência.Sant’Anna (2001) <strong>de</strong>staca que nenhuma das ações humanas po<strong>de</strong> serexperimentada sem a inclusão do consumo, nem mesmo a diversão e a cultura. Aodizer do vínculo entre cultura, lazer e consumo, a autora aponta que o turismotransformou-se no terceiro produto do comércio internacional. No Brasil, é notável o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estruturas <strong>de</strong> lazer <strong>de</strong>stinadas ao acolhimento <strong>de</strong> turistas,contexto no qual a capoeira se insere.Rego (1968) fala <strong>de</strong>sses atravessamentos da lógica do consumo ao discorrersobre a indumentária da capoeira. Relata que o uso <strong>de</strong> trajes e cores padronizadospelos grupos <strong>de</strong> capoeira ganhou nova perspectiva a partir do advento do turismocultural. As aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> capoeira procuram distinguir-se, por meio <strong>de</strong> camisas comcores variadas, visando a atrair a atenção para o grupo, com uma preocupaçãoeminentemente turística: “Esse afetamento, para efeito <strong>de</strong> exibição, para turistas, vai<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a indumentária, comportamento pessoal e jogo” (REGO, 1968, p.45). Deacordo com Cruz (2006) foi na década <strong>de</strong> 80 que os atravessamento da lógica <strong>de</strong>


75consumo se tornaram mais intensos na <strong>Capoeira</strong> Regional. Na opinião do autor,nasce aí uma nova Regional, com ausência completa dos antigos rituais, velocida<strong>de</strong>excessiva na execução dos movimentos, saltos mirabolantes, rapi<strong>de</strong>z, bateriaacelerada sem critérios <strong>de</strong>finidos.Destacamos que emerge nessa nova Regional uma prática bastante técnica eofensiva, propícia a competições <strong>de</strong>sportivas, nas quais o objetivo é vencer e,simultaneamente, apresentar uma capoeira show, com movimento acrobáticos,rápidos e performances que valorizam a formatação corporal e as exibiçõesindividuais. Essa lógica capitalística atravessa também a organização dos grupos,através <strong>de</strong> mudanças na forma das classificações hierárquicas internas.Lembramos que, com as maltas cariocas, emerge no início do século XX umaorganização grupal na capoeiragem com relações hierárquicas com papéisespecíficos a serem cumpridos. Na capoeira Regional e <strong>Angola</strong>, permanece umaforma <strong>de</strong> organização para <strong>de</strong>signar os diferentes níveis <strong>de</strong> aprendizagem egraduação dos capoeiristas. Porém, mediante a expansão da capoeiragem no Brasile no mundo, com a abertura <strong>de</strong> novas aca<strong>de</strong>mias, o processo <strong>de</strong> classificaçãohierárquica na <strong>Capoeira</strong> Regional foi se transformando em função das <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>mercado e <strong>de</strong> consumo. Mestre Reginaldo <strong>de</strong>staca:A Regional tem uma forma <strong>de</strong> classificação que é muito diferente, ela é porcordas, por cordéis, por cores. Ela assimila esse sistema <strong>de</strong> cores queoriginalmente era das lutas orientais; então ela propõe uma série <strong>de</strong> cordéis.Na dinâmica comercial da coisa, a cada ano o aluno quer ir lá e buscar maisum cor<strong>de</strong>l pra ele, ele paga o ano inteiro na expectativa que vai chegar umahora em que ele vai ter um retorno da <strong>de</strong>dicação. Chegou uma hora em queos cordéis eram muito poucos pra alimentar comercialmente, porquerapidinho a pessoa estava chegando na condição <strong>de</strong> contra mestre, <strong>de</strong>mestre, e aí teoricamente foi e abriu um outro espaço pra si, então o quêque os grupos fizeram? Criaram cordéis intermediários, pra po<strong>de</strong>r fazeresse diálogo comercial (MESTRE REGINALDO VÉIO, 2006) 33 .Diante da inserção da capoeira no mercado das aca<strong>de</strong>mias, principalmentecom o estilo Regional, as formas <strong>de</strong> classificação dos níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento doscapoeiristas transformaram-se. Enten<strong>de</strong>mos que tais mudanças ocorreram medianteduas contingências. A primeira está relacionada ao imperativo <strong>de</strong> oferecer aosalunos um elemento representativo <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento na capoeira, como umproduto adquirido no final <strong>de</strong> cada etapa. Os cordéis passam a cumprir essa função.A segunda contingência refere-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atribuir graus mais elevados aos33 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006..


76capoeiristas, para aten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> atuação em novas aca<strong>de</strong>mias. Nesseprocesso, vários capoeiristas po<strong>de</strong>riam alcançar, rapidamente, o grau <strong>de</strong> mestre.Paradoxalmente, esse fato suscitou a criação <strong>de</strong> outras classificaçõesintermediarias, pois, simultaneamente, era necessário tentar limitar a multiplicaçãodas aca<strong>de</strong>mias, a expansão da concorrência.Enfim, a lógica <strong>de</strong> mercado e <strong>de</strong> consumo presente no cenáriocontemporâneo atravessa o universo da capoeira em diferentes aspectos, sendoque a <strong>Capoeira</strong> Regional se tornou mais aberta às capturas do po<strong>de</strong>r nacontemporaneida<strong>de</strong>. Todavia, a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> não está totalmente isenta <strong>de</strong>ssesatravessamentos. Apesar <strong>de</strong> manter as conexões com a tradição, os rituais efundamentos da capoeiragem, um processo <strong>de</strong> diálogo corporal com movimentos egolpes que privilegiam uma prática coletiva, a lógica <strong>de</strong> mercado po<strong>de</strong> serobservada nos eventos promovidos, com a venda <strong>de</strong> camisas, discos, livros. Enfim,com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> formas alternativas para sobreviver no universocapitalístico.Reafirmamos, com Sant’Anna (2001), que praticamente nenhuma açãohumana na contemporaneida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser experimentada sem a inclusão doconsumo. Os agenciamentos 34 capitalistas para a produção do sujeito consumidoratravessam inúmeras dimensões da vida. Porém, quais seriam as formas <strong>de</strong>resistência? Em quais circunstâncias acontecem? Como se configuram?Diante <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r que se exerce <strong>de</strong> maneira difusa, em re<strong>de</strong>s múltiplas ecom tecnologias <strong>de</strong> governo que atravessam diretamente as formas <strong>de</strong> ser e viver,há também inúmeras formas <strong>de</strong> resistência, com a emergência <strong>de</strong> agrupamentosdiversificados, mutantes e circunstanciais, que conseguem, em <strong>de</strong>terminadosmomentos, inverter posições nos jogos estratégicos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no âmbito social.Basta observarmos algumas conquistas do movimento negro, como a legalizaçãodas ações afirmativas; o movimento dos <strong>de</strong>ficientes, com a ampliação dos <strong>de</strong>bates econquistas legislativas que visam garantir (pelo menos em tese) direitos essenciais;o movimento dos idosos, dos homossexuais, e tantos outros.34 O termo “agenciamentos” é utilizado aqui, a partir <strong>de</strong> Deleuze, para <strong>de</strong>signar um conjunto <strong>de</strong>relações materiais e um regime <strong>de</strong> signos que se caracterizam por uma forma relativamente estável eum funcionamento reprodutor. No entanto, a maneira como o indivíduo participa da reprodução<strong>de</strong>sses agenciamentos sociais introduz simultaneamente uma pequena irregularida<strong>de</strong>, o que liberaseu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> afecção e resgata sua potência <strong>de</strong> sentir, pensar, agir, possibilitando a emergência dadiferença (ZOURABICHVILI, 2004).


77Os movimentos sociais conquistaram força nos jogos estratégicos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.No entanto, a <strong>de</strong>scentralização e a flexibilida<strong>de</strong> não eliminam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umprocesso <strong>de</strong> dominação. Nesses mesmos movimentos, coexistem linhas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong> subjetivação e outras. Às vezes, relações estabelecidas po<strong>de</strong>m,inclusive, cristalizar-se, gerando processos <strong>de</strong> reprodução e não <strong>de</strong> resistência.Há também movimentos mais flexíveis, num processo <strong>de</strong> invenção, queemergem nas cida<strong>de</strong>s, por meio das pichações, do grafite, do funk, do rap, dasdanças e da capoeiragem <strong>de</strong> rua, <strong>de</strong>ntre outros.(…) é nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos <strong>de</strong> resistênciados mais conseqüentes ao rolo compressor da subjetivida<strong>de</strong> capitalista, ada unidimensionalida<strong>de</strong>, do equivaler generalizado, da segregação dasur<strong>de</strong>z para a verda<strong>de</strong>ira alterida<strong>de</strong>. (...) A arte aqui não é somente aexistência <strong>de</strong> artistas patenteados, mas também <strong>de</strong> toda uma criativida<strong>de</strong>que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias(GUATTARI, 1992, p.115).Enfim, são infinitas e diversificadas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resistência, mashaveria entre elas um ponto <strong>de</strong> contato, uma linha comum? Na visão <strong>de</strong> Guattari eRolnik (2005), o que caracteriza os novos movimentos sociais não é unicamente aresistência contra um processo geral <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização da subjetivida<strong>de</strong>, mas apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se produzir novos modos <strong>de</strong> subjetivação ou processos <strong>de</strong>singularização subjetiva. Reiteramos esse posicionamento com a direção apontadapor Foucault (1995), ao afirmar que a luta contra as formas <strong>de</strong> submissão dasubjetivida<strong>de</strong> é a batalha mais importante. O modo <strong>de</strong> enfrentamento <strong>de</strong>ve consistirna recusa <strong>de</strong>ssa individualização formatada pelo capitalismo contemporâneo, nainvenção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s singulares, não-submetidas aos sistemas saber/po<strong>de</strong>r.Questionamos, então, como emerge a singularida<strong>de</strong> na experiência da capoeiracontemporânea?5.2. Os processos <strong>de</strong> subjetivação e a emergência da resistência pela via dasingularida<strong>de</strong>.Em nossas elaborações, citamos a produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> a partir dosagenciamentos capitalistas e sinalizamos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenças nesseprocesso com a emergência <strong>de</strong> subjetivações não-submetidas a essa formataçãodominante. No entanto, é necessário esclarecer algumas questões: sob qual


78perspectiva tomamos o termo subjetivida<strong>de</strong>? O que significa subjetivida<strong>de</strong> submetidaou dominada? Como emergem subjetivida<strong>de</strong>s autônomas ou singulares?O termo subjetivida<strong>de</strong>, neste trabalho não se refere a uma dimensãointeriorizada, própria da natureza humana, ou à idéia <strong>de</strong> sujeito constituinte,soberano, universal, mas a uma produção engendrada <strong>de</strong> maneira rizomática.O rizoma é um plano <strong>de</strong> multiplicida<strong>de</strong>s atravessado por linhas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>segmentarida<strong>de</strong>, linhas molares que são endurecidas e diminuem a intensida<strong>de</strong> dosfluxos. Através <strong>de</strong>las, constituem-se estratificações, organizações, territorializações,contornos <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, reprodução <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong> ser, agir e viver -na família, no trabalho, na escola, no clube. Porém, os estratos não esgotam a vidae são rompidos por movimentos e impulsos que conectam o fora. São atravessadospor linhas flexíveis, moleculares, que intensificam os fluxos e possibilitam aemergência da resistência - linhas <strong>de</strong> fuga, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização, que rompem osestratos e po<strong>de</strong>m abrir planos <strong>de</strong> consistência, nos quais é possível a produção donovo, a invenção, a criação <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> conviver, expressar, agir, sonhar, amar.Nos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização, quando as linhas <strong>de</strong> fuga atravessam e seabrem para campos <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong>, os contornos se rompem e novas conexõespo<strong>de</strong>m se atualizar, em movimentos <strong>de</strong> produção com emergência do novo, <strong>de</strong>reprodução com reiteração <strong>de</strong> códigos e sistemas estabelecidos ou até <strong>de</strong> contraprodução,<strong>de</strong>struição, linhas <strong>de</strong> morte.Enfim, os rizomas são multiplicida<strong>de</strong>s nôma<strong>de</strong>s, sem sujeito nem objeto,apenas <strong>de</strong>terminações, gran<strong>de</strong>zas, conexões. Uma re<strong>de</strong> que não tem início nem fim,mas infinitas entradas e comunicações transversais entre aspectos, pontos e linhasdiferenciadas, em movimento contínuo. Na roda <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, a música, osinstrumentos, os movimentos, as palmas, a cantoria daqueles que circundam oespaço, a autorida<strong>de</strong> do mestre, os rituais, os <strong>de</strong>sejos, as memórias, aancestralida<strong>de</strong>, o jeito <strong>de</strong> jogar e os movimentos <strong>de</strong> cada capoeirista no diálogo <strong>de</strong>corpos, tudo po<strong>de</strong> conectar-se <strong>de</strong> diversas maneiras e produzir um campo <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> afetamentos, que engendram simultaneamente reprodução einvenção do novo. Mestre Reginaldo Véio, ao dizer sobre a música, o ritmo e a ginga(movimento básico da capoeira) na roda, oferece um recorte para a visualizaçãorizomática <strong>de</strong>ssa experiência:Na hora em que a bateria tá montada ela tem diferentes marcações <strong>de</strong>freqüência <strong>de</strong> ritmo acontecendo. Ela tem, por exemplo, a base <strong>de</strong> ritmo do


79atabaque, que vai dar sustentação pra ginga, que é em base <strong>de</strong> três. Vocêtem o pan<strong>de</strong>iro, que acrescenta mais uma variação, e você vai ter trêsberimbaus - o gunga, o viola e o violinha, cada um com sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência; além do agogô e do reco-reco. Atravessam aquele universo “n”bases <strong>de</strong> ritmos possíveis. Cada individuo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que mantenha a basetrina da ginga, po<strong>de</strong> entrar em diferentes janelas rítmicas e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cadauma <strong>de</strong>senvolver seu estilo próprio, sua percepção <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço,<strong>de</strong> pergunta e resposta corporal (MESTRE REGINALDO, 2006) 35 .Po<strong>de</strong>mos observar, nessa elaboração, um sistema com conexões múltiplas,que propicia ao capoeirista articular reprodução e criação. Ao manter a base trina daginga, temos uma linha dura, a reprodução <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado movimento formatado,pré-<strong>de</strong>terminado. Porém, ao ser estabelecida a conexão entre a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>instrumentos, os ritmos, os movimentos dos capoeiristas, emerge a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>criação <strong>de</strong> formas diversificadas <strong>de</strong> entrar no jogo, inventar movimentos novos,produzir singularida<strong>de</strong> na maneira <strong>de</strong> gingar. A ginga ganha flexibilida<strong>de</strong>, compontos <strong>de</strong> diferenciações moleculares, conforme as múltiplas percepções e formas<strong>de</strong> expressão presentes em cada subjetivida<strong>de</strong>.Na perspectiva rizomática, a subjetivida<strong>de</strong> (tanto individual quanto coletiva)não assume uma forma <strong>de</strong>finitiva, mas constante transformação. Há figuras <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong>, contornos, territorializações, reprodução <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong>ser, agir e viver - na família, no trabalho, na escola, no clube. No entanto, contornosnão são moldagens fixas, mas mutantes, atravessadas por linhas que abrem para“fora”, rompem os estratos e promovem <strong>de</strong>sterritorializações, em processos <strong>de</strong>subjetivação contínuos. De acordo com Rolnik (1997), nesse processo o “fora” e o“<strong>de</strong>ntro” já não se distinguem: fazem parte <strong>de</strong> um mesmo movimento <strong>de</strong> forças,numa relação <strong>de</strong> atração e repulsa. Somos, a todo tempo, afetados por elementosdo “fora” - pessoas, circunstâncias, objetos, paisagens, sabores, cheiros, ritmos,cores -, que po<strong>de</strong>m nos remeter a novas formas <strong>de</strong> ser e viver. Nesse movimento <strong>de</strong>forças que emana no “fora” e atravessa e constitui o “<strong>de</strong>ntro”, rompendo o perfil <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong> – formado por linhas duras, por i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s -, são abertos campos <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s, que po<strong>de</strong>m engendrar tanto produções singulares quanto reproduçãodas formas anteriormente <strong>de</strong>lineadas.O sistema capitalístico atual opera diretamente nesse processo, rompendocódigos, capturando <strong>de</strong>sejos e fluxos da vida, afetando e promovendo35 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


80<strong>de</strong>sterritorializações para reterritorializar, <strong>de</strong>lineando novos universos existenciaissubmetidos às modulações do consumo.As subjetivida<strong>de</strong>s são múltiplas e mutantes, constituídas e <strong>de</strong>sconstituídasininterruptamente, em uma re<strong>de</strong> complexa, tecida e traspassada por diversasexperiências: políticas, culturais, econômicas, sociais, religiosas, corporais,cibernéticas, animais, musicais, imagéticas, etc. Assim, emergem na experiênciahumana subjetivida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maneira singular e inúmeros sujeitos em cadasingularida<strong>de</strong>, em processos múltiplos e contínuos. Portanto, cabe consi<strong>de</strong>rar asubjetivida<strong>de</strong> não como totalida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária acabada, mas como processos <strong>de</strong>subjetivação, através dos quais são produzidas tanto subjetivida<strong>de</strong>s dominadasquanto possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> liberação, <strong>de</strong> subjetivações autônomas.Foucault (2004) enfatiza esse aspecto ao apontar que a subjetivida<strong>de</strong> éproduzida na trama histórica, em relações <strong>de</strong> produção, significação e po<strong>de</strong>rcomplexas, articuladas através <strong>de</strong> “práticas <strong>de</strong> sujeição ou <strong>de</strong> maneira maisautônoma, através <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> liberação, <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>” (FOUCAULT, 2004, p.291). Em consonância com essa elaboração, lembramos Guattari, quando esteafirma que a subjetivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser vivida <strong>de</strong> dois modos: em uma relação <strong>de</strong>repressão e alienação, submetida a um processo <strong>de</strong> reprodução das mo<strong>de</strong>lizaçõesdominantes, ou em uma relação <strong>de</strong> expressão e criação, na qual “o indivíduo sereapropria dos componentes da subjetivida<strong>de</strong> produzindo um processo <strong>de</strong>singularização” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.42).De acordo com Guattari, a singularização se faz aglomerando e conectandodimensões <strong>de</strong> diferentes espécies: componentes do inconsciente, dos grupos, damass media, do espaço, do tempo, do domínio do corpo, do som, do ritmo, daimagem. É sempre uma criação dissi<strong>de</strong>nte, transindividual, que engendra adiferença na maneira <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> viver, <strong>de</strong> amar, <strong>de</strong> sonhar, <strong>de</strong> agir, <strong>de</strong> se relacionarconsigo mesmo e com o outro (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Enten<strong>de</strong>mos que osprocessos <strong>de</strong> singularização são práticas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. No entanto, tais processos,tanto individuais quanto coletivos, não estão isentos ou imunes aos atravessamentosdominantes. Na verda<strong>de</strong>, em geral, existe uma imbricação entre linhas duras,flexíveis e <strong>de</strong> fuga.O autor cita o candomblé como experiência <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong> e aponta que amesma é, ainda assim, afetada pelas modulações da socieda<strong>de</strong> capitalística.Enten<strong>de</strong>mos que a capoeira também se configura como experiência singular e


81produz, simultaneamente, práticas <strong>de</strong> sujeição e autonomia, reprodução esingularida<strong>de</strong>.Em uma primeira aproximação dos fundamentos da capoeira, tomando suamanifestação mais perceptível e observável, percebemos processos <strong>de</strong> sujeiçãodiante <strong>de</strong> um código próprio, nos movimentos e rituais que <strong>de</strong>vem ser respeitados erepetidos, nas relações hierárquicas fortemente marcadas. O respeito à hierarquia éfundamental para preservar a tradição, principalmente na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>: esten<strong>de</strong>seda relação mestre-discípulo para a relação professor-aluno e a relação entre oscapoeiristas. Durante a participação em um treino, presenciamos o discurso doinstrutor enfatizando a importância da disciplina na capoeira: assim como o instrutor<strong>de</strong>ve acatar as orientações do mestre, o aluno <strong>de</strong>ve respeitar e acatar asorientações do instrutor e cada capoeirista iniciante <strong>de</strong>ve respeitar aquele quepratica a capoeira há mais tempo, pois se pressupõe que esse já tenha alcançadomaior grau <strong>de</strong> conhecimento na arte da capoeiragem.Na roda <strong>de</strong> capoeira, po<strong>de</strong>mos tomar como prática <strong>de</strong> sujeição os códigos erituais que <strong>de</strong>vem ser observados e repetidos: aguardar o toque e a autorização domestre para iniciar o jogo, respeitar a interdição do berimbau gunga 36 , que, nasmãos do mestre, dita o ritmo do jogo e po<strong>de</strong> finalizá-lo quando necessário. Noentanto, nessa mesma roda são produzidas práticas <strong>de</strong> autonomia, exercícios <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong>. Mestre Reginaldo Véio relata que, na roda, os próprios códigos dacapoeira são subvertidos, reinventados:Às vezes, ela quebra, inclusive, os próprios princípios que ela mesmapropõe como estruturantes. Por exemplo: quando eu estou jogandocapoeira, chega um dado momento que eu saio para uma “chamada”. Achamada <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> é o momento em que eu paro para <strong>de</strong>scansar, para mereorganizar. A chamada nos chama. Quando eu faço o gesto da chamadaestou propondo um princípio, um fundamento: é o momento <strong>de</strong> fazer uminterregno. Acontece que, mesmo sendo esse um princípio fundamental, ooutro tem o direito <strong>de</strong> chegar perto <strong>de</strong> mim e me dar uma cabeçada norosto. Então, nós dois sabemos que o princípio é aquele, nós doispraticamos o princípio ali no teatro vivo da coisa, sem os princípios a coisanão funciona, mas é possível se reverter até os princípios, então ela éreinvenção o tempo todo (MESTRE REGINALDO VEIO) 37 .Durante o jogo, no diálogo dos corpos, o mais importante não é a repetição oua sujeição, mas a invenção, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articular os códigos e movimentos36 Na composição da bateria na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> tem-se três berimbaus: o gunga, o médio e oviolinha. O berimbau gunga é o maior e <strong>de</strong>ve ser tocado pelo mestre ou pelo capoeirista <strong>de</strong> maiorgraduação <strong>de</strong>ntre os presentes na roda. O gunga, por sua vez, direciona e <strong>de</strong>marca o ritmo do jogo.37 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


82aprendidos no treino e criar um jeito próprio <strong>de</strong> jogar, surpreen<strong>de</strong>r o contendor.Portando, os fundamentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> articulam reprodução esingularida<strong>de</strong>, sendo compostos no entrelaçamento <strong>de</strong> dimensões atualizadas evirtuais. Há uma cristalização em relação aos fundamentos, porém essesfundamentos possuem linhas moleculares, abrem fendas e escapadas, conectamcampos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, potências, fluxos que engendram a diferença. Rego(1968) observa que capoeiristas antigos e mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong>senvolvem uma maneirapessoal <strong>de</strong> praticar a capoeira, possuem um ou mais golpes ou toques inventadospor eles próprios, além do “(...) golpe pessoal que todo capoeira guarda consigopara ser usado no momento necessário” (REGO, 1968, p.33).Tal qual ocorre na prática da capoeira, há, em todas as experiênciashumanas, processos <strong>de</strong> sujeição e <strong>de</strong> libertação, possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subjetivaçõessubmetidas e autônomas, pois on<strong>de</strong> há po<strong>de</strong>r há resistência, emergem experiênciasou circunstâncias nas quais predominam conexões e encontros que potencializamprocessos <strong>de</strong> criação, <strong>de</strong> invenção, <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>s, que escapam à lógicadominante em um exercício <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.Foucault (2004) assinala que, na Antigüida<strong>de</strong>, no mundo greco-romano, aética constituía-se como prática <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, em torno do cuidado <strong>de</strong> si, da arte daexistência, como(...) práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas<strong>de</strong>terminam para si regras <strong>de</strong> conduta, como também buscam transformarse,modificar-se em seu singular, e fazer <strong>de</strong> sua vida uma obra que sejaportadora <strong>de</strong> certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios<strong>de</strong> estilo (FOUCAULT, 2004, p. 214).Dessa forma, a ética era pensada e vivenciada em conexão com processos<strong>de</strong> subjetivação singulares.A problematização que propomos é: diante da produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>ssujeitadas à lógica capitalística, a experiência da capoeira po<strong>de</strong> ser uma nova forma<strong>de</strong> prática <strong>de</strong> si? Como essa ascese po<strong>de</strong> emergir ou se engendrar na capoeira?


835.3. O corpo: das mo<strong>de</strong>lizações dominantes às maquinações <strong>de</strong> resistênciaFoucault (1987) afirma que o exercício do po<strong>de</strong>r sempre perpassa o corpo. Nasocieda<strong>de</strong> disciplinar, eram utilizadas técnicas minuciosas para o investimento emsua docilida<strong>de</strong>, extorsão <strong>de</strong> sua força e crescimento <strong>de</strong> sua utilida<strong>de</strong>. Com asdisciplinas, nasce uma relação que fabrica corpos submissos, um mecanismo que,ao mesmo tempo, aumenta suas forças em termos <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> econômica e reduzessas mesmas forças em termos políticos e <strong>de</strong> obediência. Ou seja, a disciplina “(...)dissocia o po<strong>de</strong>r do corpo, faz <strong>de</strong>le por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacida<strong>de</strong>’ queela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia que po<strong>de</strong>ria resultar disso efaz <strong>de</strong>la uma relação <strong>de</strong> sujeição estrita” (FOUCAULT, 1987, p.119)Segundo Bauman (2001), a vida, enquanto estava organizada em torno dopapel do produtor, tendia a ser normativamente regulada. Por meio <strong>de</strong> umabiopolítica, a saú<strong>de</strong> tornou-se o padrão que se <strong>de</strong>veria atingir para ser capaz <strong>de</strong><strong>de</strong>monstrar bom <strong>de</strong>sempenho nas relações <strong>de</strong> produção. Na socieda<strong>de</strong> em queemerge o imperativo do consumo, o que está em questão não é o padrão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,mas o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> aptidão, que, segundo Bauman, assume significado diferente nacontemporaneida<strong>de</strong>: “estar apto significa ter um corpo flexível, absorvente eajustável, pronto para viver sensações ainda não testadas (...)” (BAUMAN, 2001, p.91).Nesse sentido, a aptidão, em contraponto à saú<strong>de</strong>, não se refere a um padrãocorporal específico, mas a seu potencial <strong>de</strong> expansão da capacida<strong>de</strong> corporal, <strong>de</strong>quebrar a norma e superar os padrões, em uma busca sem fim, <strong>de</strong> modo que nuncaestaremos suficientemente aptos. Conforme o autor, na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumidoresorganizada pela sedução, <strong>de</strong>sejos e quereres voláteis, sem regulação normativa,não há intenção <strong>de</strong> controle rígido dos comportamentos, das ações, masmodulações nas formas <strong>de</strong> lidar com o corpo.Os estados do corpo, sempre renovados, tornam-se alavanca para inúmeras<strong>de</strong>mandas mercadológicas: intervenções médicas, novos spas, exercícios nasaca<strong>de</strong>mias, mo<strong>de</strong>lizações siliconadas, cápsulas <strong>de</strong> vitaminas, anabolizantes para<strong>de</strong>finir os músculos, dietas saudáveis para emagrecer, roupas conforme astendências da moda, tudo em busca do corpo como o dos mo<strong>de</strong>los da televisão. Emsuma, buscar aptidão requer atitu<strong>de</strong> positiva, ação e, numa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>


84consumidores, quase toda ação tem um custo: requer mecanismos e ferramentasespeciais, que só o mercado po<strong>de</strong> oferecer.Sant’Anna (2001) salienta a relação entre corpo e consumo, principalmentequando os apelos são dirigidos à beleza. Nos dias <strong>de</strong> hoje, a publicida<strong>de</strong> absorve odireito à privacida<strong>de</strong> e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser homem ou mulher, rima com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ser fotogênico para todos e para si mesmo, em todas as circunstâncias. Énecessário ser sensual e belo da cabeça aos pés, todas as horas do dia, todos osdias da semana. O corpo correspon<strong>de</strong> àquilo que sou, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dasconfigurações genéticas ou <strong>de</strong> raça, como um objeto, uma imagem, uma marca, emconsonância com as flutuações do mercado.Por conseguinte, enquanto o corpo é atravessado pelas modulações <strong>de</strong>beleza e aptidão contemporâneas, na medida em que é reconstruído para aten<strong>de</strong>ràs necessida<strong>de</strong>s e vaida<strong>de</strong>s individuais, ten<strong>de</strong> a ecoar exclusivamente para simesmo. “Por vezes homens e mulheres se vêem isolados como se estivessem empleno <strong>de</strong>serto com seus corpos em plena forma” (SANT’ANNA, 2001, p. 69).A experiência da capoeira conecta-se a esse contexto, numa perspectiva <strong>de</strong>reprodução e sujeição à lógica capitalística, praticada com intuito <strong>de</strong> formataçãocorporal, <strong>de</strong>lineamento muscular; com vivências que favorecem a exibição <strong>de</strong>performances individuais. Essas características aparecem principalmente na<strong>Capoeira</strong> Regional, que vem se matizando e ganhando contornos propícios às<strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> consumo, conforme abordamos anteriormente.Constatamos o quanto as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r operam sobre o corpo. Todavia,é também através do corpo que as resistências se constituem, se engendram:(...) sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados domesmo modo que <strong>de</strong>le nascem os <strong>de</strong>sejos, os <strong>de</strong>sfalecimentos e os erros;nele também eles se atam e <strong>de</strong> repente se exprimem, mas nele tambémeles se <strong>de</strong>satam, entram em luta, (...) O corpo superfície <strong>de</strong> inscrição dosacontecimentos, lugar <strong>de</strong> dissociação do Eu, volume em perpétuapulverização (FOUCAULT, 1986, p.22).Nessa perspectiva, o corpo não é apenas o corpo físico, biológico, mas asligações estabelecidas entre superfícies, forças e energias particulares; é o corpoatravés do qual emergem acontecimentos em pulverizações que rompem contornose abrem uma constelação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. De acordo com Rose (2001), em vez <strong>de</strong>“o corpo”, tem-se uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> máquinas possíveis, agenciamentos <strong>de</strong>humanos com outros elementos e materiais; diversas maquinações <strong>de</strong> que o corpo é


85capaz. Maquinações corporais, “(...) cujos elementos, órgãos, forças, energias,paixões, temores são reunidos por meio <strong>de</strong> conexões com palavras, sonhos,técnicas, cantos, hábitos, julgamentos, armas, ferramentas, grupos” (ROSE, 2001,p.172).A partir <strong>de</strong>ssa abordagem, preten<strong>de</strong>mos investigar como a diferença escapa,redimensiona-se e emerge a partir do corpo, na prática da capoeiragem. I<strong>de</strong>ntificarcomo essas experiências corporais diversificadas, conexões em maquinaçõesvariadas - que articulam corpos, música, memória, <strong>de</strong>sejos, terror, força, astúcia,movimentos, ritualida<strong>de</strong> - po<strong>de</strong>m propiciar a emergência <strong>de</strong> processos <strong>de</strong>subjetivação diferentes daqueles modulados na lógica do consumo. Consi<strong>de</strong>ramos acapoeira nessa perspectiva, por constatarmos, ao longo <strong>de</strong> sua história, que aemergência da resistência sempre foi (e ainda é) engendrada através <strong>de</strong>maquinações corporais.A <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> possibilita um diálogo através <strong>de</strong> perguntas e respostascorporais, com movimentos <strong>de</strong> inversão, em articulações inusitadas. Reis (1997), aodiscorrer sobre a roda <strong>de</strong> capoeira, estabelece conexão com o contexto social macroe observa que, para a<strong>de</strong>ntrar nesse espaço, o capoeirista faz sempre um movimento<strong>de</strong> inversão como, por exemplo, um “aú” - movimento no qual as mãos são o suportedo corpo e as pernas ficam soltas no ar. Assim, entra-se no mundo literalmente <strong>de</strong>cabeça para baixo, subvertendo a lógica <strong>de</strong> uma gramática corporal já instituída.Na experiência da capoeiragem, na roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, todos os movimentos econexões são convites à subversão corporal, proposições muito distantes do usohabitual que fazemos do nosso corpo, po<strong>de</strong>ndo propiciar a ruptura dos contornos <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong>.Perguntamos então: as maquinações corporais que se configuram naexperiência da capoeira engendram singularida<strong>de</strong>s nos processos <strong>de</strong> subjetivação?Tais maquinações po<strong>de</strong>m ser tomadas como experiência que produz uma novaforma <strong>de</strong> vivenciar, através do corpo, a arte da existência?Partimos do pressuposto <strong>de</strong> que a experiência da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, ao seconsolidar na trama histórica brasileira no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> aproximadamente trezentosanos, trouxe, até os dias <strong>de</strong> hoje, um processo <strong>de</strong> conexão entre tradição einvenção, que po<strong>de</strong> produzir subjetivações singulares por meio do diálogo corporal.


866. <strong>CAPOEIRA</strong> ANGOLA: TRADIÇÃO E CRIAÇÃO EM UM DIÁLOGO CORPORALQUE POTENCIALIZA A VIDAA experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início,articulou a prática dos estilos Regional e <strong>Angola</strong>. Todavia, <strong>de</strong>vido aosatravessamentos das mo<strong>de</strong>lizações capitalísticas e a captura na lógica do consumo,que afetou <strong>de</strong> forma mais intensa a prática da Regional, o grupo fez a opção pela<strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Destacamos que tal opção não está pautada em um processodualista, que contrapõe os dois estilos ou elimina efetivamente a <strong>Capoeira</strong> Regionaldos grupos que compõem a Lenço <strong>de</strong> Seda.A ênfase na aprendizagem e prática da <strong>Angola</strong> na Lenço <strong>de</strong> Seda aconteceuquando a Regional se acentuava na experiência do grupo e, simultaneamente,ganhava muito espaço no Brasil e no mundo. Na visão do mestre, essa rápidadifusão da Regional <strong>de</strong>u-se mediante uma captura das formas hegemônicas <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r contemporâneas.Esse movimento da Regional é da logística do consumo capitalista, daperformance individual, da vaida<strong>de</strong>, do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> corpo a ser buscado.Então a Regional vem como uma mercadoria útil pra essa lógica mo<strong>de</strong>rnado capitalismo (MESTRE REGINALDO VÉIO) 38 .Diante <strong>de</strong>sse cenário, a Lenço <strong>de</strong> Seda, através do posicionamento <strong>de</strong> seumestre, optou por fazer uma interrupção na Regional e investir predominantementena prática da <strong>Angola</strong>, tendo como foco principal a capoeiragem praticada na se<strong>de</strong> daAssociação, em Timóteo.Esse processo teve início em 1995, com a implementação do projeto Zumbi2000. O projeto <strong>de</strong>senvolveu-se até 1999 e tinha como objetivo resgatar osfundamentos da capoeiragem, sua história e rituais, redirecionando a capoeira daLenço <strong>de</strong> Seda para a prática da <strong>Angola</strong>. Nessa perspectiva, foram realizadoseventos e cursos com a presença <strong>de</strong> alguns dos maiores mestres <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> daBahia: Mestre Moa do Katendê, Mestre Gildo Alfinete, Mestre Bola Sete, MestreJoão Pequeno.38 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


87O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e aperfeiçoamento da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> naLenço <strong>de</strong> Seda <strong>de</strong>u-se tanto com a participação <strong>de</strong> seus capoeiristas em eventos ecursos em Salvador quanto com a presença dos mestres baianos na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Timóteo para participar <strong>de</strong> eventos e oferecer cursos.Essa ênfase na prática da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> engendrou aprendizagem eamadurecimento na capoeiragem da Lenço <strong>de</strong> Seda. Pepinha relata:a gente amadureceu – a Lenço <strong>de</strong> Seda e a cabeça da gente - a gente<strong>de</strong>scobriu a <strong>Angola</strong> mesmo. A gente passou da infância, da adolescência.Agora adulto, a gente enten<strong>de</strong>u mesmo a coisa. Então, tecnicamentefalando as coisas, é difícil (PROFESSOR PEPINHA) 39Quando Pepinha fala do amadurecimento na capoeiragem, diz doaprofundamento e da maior compreensão em relação aos fundamentos da mesma,o que traz dificulda<strong>de</strong>s. Os movimentos e golpes mais próximos ao chão, queexigem maior conexão com o outro no diálogo corporal, são um novo <strong>de</strong>safio. Outradificulda<strong>de</strong> enfrentada nesse processo foi em relação às rupturas, aos grupos que se<strong>de</strong>sligaram da Associação, principalmente na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Na opinião <strong>de</strong>Madrinha Flor, essas rupturas ocorrem <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que:(...) a Regional oferece um marketing maior. Os movimentos são altos,permite dar aqueles saltos. Ela não tem uma or<strong>de</strong>m, o povo corta o jogo nahora que quer. Na <strong>Angola</strong> tem uma disciplina, tem toda uma hierarquia. Porexemplo, na <strong>Angola</strong>, pra jogar, tem umas regras que você tem queobe<strong>de</strong>cer. O berimbau po<strong>de</strong> mandar você sair, você tem que acatar. Quemnão tem amadurecimento ainda, não aceita, recusa mesmo (MADRINHAFLOR) 40 .Além <strong>de</strong> reafirmar a questão do individualismo, que atravessa a prática daRegional, Flor acrescenta alguns elementos que geraram rupturas na AssociaçãoLenço <strong>de</strong> Seda, por ocasião da opção pela <strong>Angola</strong>: as mudanças em relação àforma <strong>de</strong> hierarquia na capoeiragem, a observação dos rituais e a obediência aosfundamentos, como, por exemplo, o comando do berimbau gunga na roda. Naopinião do mestre Reginaldo, são os fundamentos ancorados na tradição que fazemda <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> uma experiência menos capturada pela lógica do consumo, compossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> favorecer, ao capoeirista, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>.Articular tradição e invenção em uma experiência que potencializa a produção <strong>de</strong>39 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.40 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


88singularida<strong>de</strong>, provavelmente, foi o maior ganho da Lenço <strong>de</strong> Seda, e é a principalconquista dos capoeiristas angoleiros na contemporaneida<strong>de</strong>.6.1. <strong>Angola</strong> <strong>de</strong> Pastinha: filosofia e fundamentos baseados na alegria.<strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>!Jogo, luta e disfarce;Tradição, cultura, educação e religiosida<strong>de</strong>;Ritual, música e criativida<strong>de</strong>;Ética, estética, lealda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>;História, filosofia e liberda<strong>de</strong>;Terapia, fraternida<strong>de</strong>, harmonia e agilida<strong>de</strong>;Mandinga, malícia e malandragem;Poesia, folclore, coreografia e arte... (CRUZ, 2006)Na visão <strong>de</strong> Rego (1968), a capoeira é uma só, com ginga, toques e golpesque servem <strong>de</strong> padrão a todos os capoeiristas, enriquecidos com criações novas evariações sutis. Para mestre Reginaldo Véio, a capoeira é uma egrégora, matrizholográfica no plano da imaterialida<strong>de</strong>, centro <strong>de</strong> consciência que po<strong>de</strong> seracessado através <strong>de</strong> diferentes pontos. Essa matriz adquire múltiplas formas <strong>de</strong>expressão no plano real, <strong>de</strong> forma que “a parte contém o todo da mesma maneiraque o todo contém a parte; o que está em cima é o que está embaixo” (MESTREREGINALDO VÉIO) 41 .As elaborações <strong>de</strong> Mestre Reginaldo e <strong>de</strong> Rego remetem à perspectiva damultiplicida<strong>de</strong>, o uno e o múltiplo intrincados numa mesma experiência. A capoeira“é uma só” e é “muitas”, une o único e o heterogêneo ao ser manifestada <strong>de</strong>diferentes formas. Não buscamos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a pureza da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> comoúnica e fiel manifestação da capoeira original, nascida nas senzalas, todaviabuscamos o começo, ou os começos inumeráveis, lugares e recantos <strong>de</strong>acontecimentos emergentes no encontro da tradição com a criação.Ressaltamos que a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> se manifesta <strong>de</strong> diferentes maneiras,todavia, nela “persistem os traços <strong>de</strong> uma ancestralida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> uma ritualida<strong>de</strong>características do modo africano <strong>de</strong> se relacionar com o tempo, com o espaço, emúltima instância - com o mundo” (ABIB, 2004, p.103). Em nosso trabalho,pautaremo-nos na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, conforme Mestre Pastinha, que ensina que:41 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


89(...) a prática <strong>de</strong>sta ciência, meus camaradas, vos mesmos não sabes o quetens em si, se é seu, a natureza te <strong>de</strong>u, procure aperfeiçoá-lo, confiem emsi, (...) e verifique a verda<strong>de</strong>, é uma luta infinita, em resumo, a <strong>de</strong>finiçãoabstrata que caracteriza cada existência, e cada ser (DECANIO FILHO,1996, p.24)No jogo, na roda, aqueles que praticam a capoeiragem exercitam, no diálogocorporal, um processo <strong>de</strong> aperfeiçoamento contínuo em busca da “verda<strong>de</strong>”, quenão é única, mas produzida em cada existência, a partir das conexões e encontrosda vida. Emerge, assim, um conhecimento <strong>de</strong> si que é <strong>de</strong>nominado peloscapoeiristas <strong>de</strong> “malícia”. Uma criação engendrada na luta infinita, que não seexpressa no confronto com o outro, mas na persistência no caminho sonhado, noaperfeiçoamento pessoal produzido em “um agrupamento social regido por umespírito <strong>de</strong> cooperação, integrando o ser humano nos aspectos corporal, espiritual,mental e social” (DECANIO FILHO, 1996, p.23).Portanto, a experiência da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> transborda a roda e suscita ainvenção contínua <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> ser e viver, individuais e coletivas.Perguntamos: como emerge a criação diante da tradição? A tradição pressupõerepetição, manutenção da forma, linhas duras, estratificadas. Como a diferençaemerge diante da ritualida<strong>de</strong>, do respeito à ancestralida<strong>de</strong> manifestada naautorida<strong>de</strong> do mestre? Quais fundamentos atravessam essa prática e como arepetição dos mesmos po<strong>de</strong> propiciar a emergência da singularida<strong>de</strong>?Para respon<strong>de</strong>rmos a essas questões, é fundamental consi<strong>de</strong>rar os planosnos quais a capoeiragem acontece. Há o plano atualizado, apreensível, que seexpressa nos fundamentos, rituais, golpes, ritmos; estratificações, com formas<strong>de</strong>lineadas, contornos. Há também o plano virtual: energias, potencialida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>sterritorializações, maquinações corporais, conexões intensas que unem corpos,movimentos, sons, sonhos, memórias, lutas, <strong>de</strong>sejos. Esses dois planosatravessam-se, fun<strong>de</strong>m-se e pulsam no momento da roda, abrindo um plano <strong>de</strong>consistência que possibilita a invenção.A gente tem pouco pra falar da capoeira. A gente tem mais é que viver acoisa, aí olhar o que tá acontecendo. (...) Você não escolhe o que acapoeira po<strong>de</strong> fazer por você. Você vai caminhando <strong>de</strong>ntro daquelepercurso e a capoeira vai escolher o que você vai ganhar com aquilo navida (PROFESSOR MAIA) 42 .42 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.


90Consi<strong>de</strong>ramos que, com essa elaboração, o professor Maia retrata asconexões que emergem no ato <strong>de</strong> capoeirar e unem o indivíduo ao todo, ao outro,ao movimento, à bateria, à musicalida<strong>de</strong>, ao jogo. Nesse momento, abre-se umplano <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> no qual não é possível escolher, organizar ou codificar, apenasfluir com movimentos da roda. A intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse afeto, <strong>de</strong>sses fluxos, difere-se <strong>de</strong>acordo com o percurso singular <strong>de</strong> cada capoeirista, em um processo iniciático.Conforme mestre Reginaldo Véio, a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é uma escola iniciática,na qual emerge uma forma <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> si e do mundo que não émensurável, nem passível <strong>de</strong> avaliação por meio dos padrões utilizados em outrossaberes dominantes na socieda<strong>de</strong>. Esse conhecimento é a conquista da malíciaque, na capoeiragem, não está vinculada à raiz da palavra, que pressupõe amalda<strong>de</strong>, o mal, mas a um saber conquistado.O exercício do po<strong>de</strong>r, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, está diretamente associado àconquista da malícia. Alcança o lugar <strong>de</strong> mestre aquele que, conquistando essaforma <strong>de</strong> saber, torna-se capaz <strong>de</strong> acompanhar e orientar outro capoeirista nomesmo caminho e, simultaneamente, ser o portador e guardião da memória e datradição <strong>de</strong> seu povo. Cabe ao mestre a preservação e a transmissão dos saberes,rituais, golpes, cantigas, ritmos e história da capoeira (ABIB, 2004). A função domestre na capoeiragem constitui uma linha dura, uma relação hierárquica quepressupõe obediência e respeito dos discípulos, dos aprendizes. Essa autorida<strong>de</strong>,no entanto, estabelece-se mediante a produção <strong>de</strong> uma subjetivação autônoma esingular, com o <strong>de</strong>senvolvimento da malícia.Singularida<strong>de</strong> e tradição encontram-se na capoeiragem, o que engendravariações em sua prática: há diferentes formações <strong>de</strong> bateria, variadas formas <strong>de</strong>interpretar os fundamentos, <strong>de</strong> atribuir graus hierárquicos no processo <strong>de</strong>aprendizagem, no exercício do po<strong>de</strong>r, conforme cada mestre ou a linhagem <strong>de</strong>mestre. Mestre Reginaldo Véio conta que, em conversa com o contramestre Val<strong>de</strong>k,indagou: “quando há mestres falando coisas diferentes daquelas que meu mestreorientou, como saber o que é certo?” Val<strong>de</strong>k respon<strong>de</strong>u: “Certo é o que seu mestrete ensinou.” Essa história manifesta a dimensão do po<strong>de</strong>r do mestre na <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong>.Há, portanto, na preservação da tradição, uma linha <strong>de</strong> reprodução, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,que atravessa a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Pontos <strong>de</strong> cristalização e práticas <strong>de</strong> sujeição noexercício do po<strong>de</strong>r, nesse percurso iniciático. Contudo, permanece um po<strong>de</strong>r em sua


91positivida<strong>de</strong>, para potencializar um processo <strong>de</strong> singularização: a conquista damalícia.Rego (1968) aponta que cada mestre vai transmitindo a seus discípulos aquiloque sabe. O saber produzido na capoeiragem - a malícia –, por ser uma construçãosingular, confere diferenças à forma <strong>de</strong> ensinar em cada grupo, a cada instrutor,professor ou mestre. Todavia, a iniciação na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> apresenta algumaspráticas comuns à maioria dos grupos ou linhagens <strong>de</strong> mestres, como aaprendizagem dos golpes básicos, o jogo baixo, a ênfase na <strong>de</strong>fesa. Ressaltamoscomo principal ponto comum a emergência <strong>de</strong> um saber singular, produzidoeminentemente através do corpo.Mestre Pastinha inicia seus manuscritos dizendo: “amigos, o corpo é umgran<strong>de</strong> sistema <strong>de</strong> razão, por <strong>de</strong>traz <strong>de</strong> nossos pensamentos acha-se um ser,po<strong>de</strong>roso, um sábio, <strong>de</strong>sconhecido;...” (DECANIO FILHO, 1996, p.15) Na capoeira,todo saber e po<strong>de</strong>r emergem eminentemente a partir do corpo. O corpo, nacapoeiragem, não é o corpo físico, biológico, individual, mas o corpo em conexãocom o ritmo, com o outro, em movimento no diálogo corporal.Após pesquisar a forma <strong>de</strong> ensino dos antigos angoleiros, mestre Bola Sete(2003) constatou que eles transmitiam os movimentos para seus alunos por meio <strong>de</strong>treinamento. A aprendizagem acontece pela observação da execução dosmovimentos por outros capoeiristas mais experientes e pelo exercício <strong>de</strong>sses. Naexperiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, o treino inicia-se com o exercício individual dosmovimentos básicos: a ginga, os movimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa - negativas, role e aú - , osmovimentos <strong>de</strong> ataque – rabo <strong>de</strong> arraia, meia lua, ponteira, martelo, cabeçada,chapa <strong>de</strong> frente e <strong>de</strong> costas, e rasteira. Na seqüência, os golpes passam a serexperimentados em duplas, enca<strong>de</strong>ados em seqüências <strong>de</strong> perguntas e respostas.Simultaneamente a cada treino, inicia-se a aprendizagem dos toques <strong>de</strong>instrumentos e cantigas. Uma vez por semana, o treino encerra-se com a realização<strong>de</strong> uma roda com os aprendizes e, aos domingos, acontece a roda da Associação,da qual todos os capoeiristas <strong>de</strong>vem participar.A roda é o espaço que potencializa a aprendizagem da capoeira: é nela queos fluxos se intensificam e acontece a conexão jogo, luta, dança, alegria, ritmo,cantigas, festa. Vamos nos guiar pela experiência da roda, recortando cenas,momentos, movimentos, para discorrermos sobre fundamentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>.


926.2. Na roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, gran<strong>de</strong> e pequeno sou euA igreja diz:O corpo é uma culpa.A ciência diz:O corpo é uma máquina.A publicida<strong>de</strong> diz:O corpo é um negócio.O corpo diz:Eu sou uma festa (GALEANO, 1994, p.138).A roda <strong>de</strong> capoeira constitui-se como um espaço-tempo em que o corpo éintensamente festa. É um espaço-tempo <strong>de</strong> encontros heterogêneos: encontro dosritmos <strong>de</strong> base africana com as cantigas que contam as histórias dos povosbrasileiros; encontros daqueles que circundam o espaço e entoam, em coro, asrespostas musicais. Encontro das mãos que articulam ritmos em palmas; encontrodos corpos que se alternam e jogam no centro da roda, conectados ao ritmo dosinstrumentos, às canções, às palmas, ao grupo, ao outro. Encontro <strong>de</strong> tempos eespaços diferentes que, através dos ritmos, cantigas, movimentos, corpos, rituais,acessam a ancestralida<strong>de</strong> dos povos da África e da diáspora africana em terrasbrasileiras. Encontros e conexões múltiplas, que emergem em todas as direções,atualizam campos virtuais e potencializam a festa do corpo, a emergência <strong>de</strong>ritornelos complexos.“Num sentido geral, chamamos <strong>de</strong> ritornelo todo conjunto <strong>de</strong> matérias <strong>de</strong>expressão que traça um território, e que se <strong>de</strong>senvolve em motivos territoriais, empaisagens territoriais” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.132) Conforme os autores,um território não é um meio, é um ato que afeta os meios e os ritmos, <strong>de</strong> forma queseus componentes <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser direcionais e passam a ser dimensionais, param<strong>de</strong> ser funcionais e tornam-se expressivos.De acordo com Guattari (1992) um ritornelo complexo é um módulo temporalcatalisador que propicia transposições <strong>de</strong> limiar subjetivo, marca a conexão <strong>de</strong>modos heterogêneos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> subjetivação e opera, simultaneamente, emregistros sócio-culturais, biológicos, maquínicos, cósmicos. Os ritornelospotencializam um modo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> polifônica: o rompimento <strong>de</strong>estratificações, <strong>de</strong> contornos <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, abertura e fragmentação mediante aheterogeneida<strong>de</strong>, porém, com a emergência concomitante <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong>


93unicida<strong>de</strong>. Rupturas <strong>de</strong> sentido, cortes, fragmentações, que po<strong>de</strong>m gerar focosmutantes <strong>de</strong> subjetivação.Os acontecimentos engendrados na roda <strong>de</strong> capoeira são ritorneloscomplexos, que catalisam inumeráveis universos <strong>de</strong> referência - universos corporaise incorporais <strong>de</strong> ritmos, cantigas, rituais, movimentos, gestos, corpos, sonhos, lutas,<strong>de</strong>sejos. Um espaço-tempo <strong>de</strong> fluxos intensos, campos <strong>de</strong> energias que são dadosno instante em que são criados e escapam ao plano discursivo. Na visão <strong>de</strong>Pepinha, na capoeira há coisas que não são explicáveis, apenas sentidas:Teve uma vez que a gente tava fazendo uma brinca<strong>de</strong>ira, apresentado acapoeira com os meninos da comunida<strong>de</strong>. Montamos uma rodinha simples,aí nós apresentamos os instrumentos, a bateria pro pessoal. Falamos umpouco da capoeira e começamos logo com a roda: cantamos ladainhas,fizemos louvação e os meninos fizeram um joguinho muito bonitinho. Teveuma hora na bateria que uns camaradas nossos lá da capoeira - tava todosna bateria, os mais antigos, e num momento, eu tava tocando pan<strong>de</strong>iro,esses camaradas todos olharam pra mim com aquela cara <strong>de</strong> máximafelicida<strong>de</strong>. É como se a gente, nesse momento, encontrasse com Deusmesmo (PROFESSOR PEPINHA) 43 .Essa <strong>de</strong>scrição expressa um pouco da dimensão da roda <strong>de</strong> capoeira:experiência em que potências, energias e fluxos se intensificam e escapam àspalavras ou às codificações, o que, quando acontece, constitui um catalisador dacriação <strong>de</strong> novo território existencial coletivo, que nos remete a um clima <strong>de</strong> alegria eanimação. É o corpo em festa, que se liberta da alma.A lógica platônica ensina que o corpo aprisiona a alma. Foucault (1987)inverte essa lógica e afirma que a alma mo<strong>de</strong>rna é que aprisiona o corpo. Ele afirmaque a alma não é ilusão, efeito i<strong>de</strong>ológico ou substância transcen<strong>de</strong>nte, masrealida<strong>de</strong> histórica produzida pelo funcionamento do po<strong>de</strong>r, que busca fixar e/oucontrolar os corpos durante toda sua existência, por meio <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong>punição, <strong>de</strong> coação, <strong>de</strong> vigilância ou <strong>de</strong> modulações contínuas para produção <strong>de</strong>sujeitos consumidores, na contemporaneida<strong>de</strong>. Portanto, a alma real e incorpórea éa engrenagem com a qual as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r engendram saberes quereconduzem e reforçam os efeitos do po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>lineando contornos <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>sdominadas, submetidas. Assim, a alma que habita o Homem é “uma peça nodomínio exercido pelo po<strong>de</strong>r sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento <strong>de</strong> umaanatomia política; a alma, prisão do corpo”. (FOUCAULT, 1987, p. 29)43 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006..


94A roda <strong>de</strong> capoeira, enquanto ritornelo complexo, constitui território-festa queliberta o corpo da alma e po<strong>de</strong> propiciar a produção <strong>de</strong> subjetivações singulares.Contudo, como tal processo emerge? Quais elementos se conectam e como searticulam os universos heterogêneos?A capoeira é uma esfera que tem no seu ponto central seus fundamentos, equem se apropriar daqueles fundamentos consegue caminhar em todas asdireções. (...) A capoeira é uma roda quando você vê no plano, mas quandovocê transcen<strong>de</strong> a lógica do plano, a capoeira é um universo. (...) Você táfazendo a ligação <strong>de</strong> energia do aqui agora com energia do outro plano,você tá abrindo portas através <strong>de</strong> vibração <strong>de</strong> metais, <strong>de</strong> coro, <strong>de</strong> canto, <strong>de</strong>estímulos <strong>de</strong> ritmo. Então, você tá mexendo com um universo complexo. (...)A capoeira é o tempo todo atualizada e re-atualizada. Ela traz consigovários campos <strong>de</strong> manifestação (MESTRE REGINALDO VÉIO) 44 .O <strong>de</strong>poimento do mestre Reginaldo, juntamente com o relato <strong>de</strong> Pepinha,apresentado anteriormente, oferece elementos para melhor compreen<strong>de</strong>rmos aroda. Pepinha apresentou a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma seqüência espaço-temporal <strong>de</strong>ssaexperiência, falando da disposição das pessoas em círculo – “montamos umarodinha simples” - da montagem da bateria, do canto da ladainha, da louvação e, naseqüência, o início do jogo. Nessa elaboração está a <strong>de</strong>scrição básica da roda.Mestre Reginaldo Véio convida-nos a ampliar a visão e alcançar os universosvirtuais que se atualizam nas maquinações corporais e incorporais produzidas naroda. Um campo complexo <strong>de</strong> multiplicida<strong>de</strong>s que contém o bem e o mal conecta aenergia do aqui e agora com energias <strong>de</strong> outros tempos e espaços, por meio davibração dos metais, do coro, do canto, dos estímulos, do ritmo, do movimento, doscorpos. A roda está montada, a<strong>de</strong>ntremos...Começamos com a formação da bateria: os instrumentos e os ritmos. Deacordo com Rego (1968), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios da capoeira até os dias <strong>de</strong> hoje, abateria é composta por berimbau, atabaque, pan<strong>de</strong>iro, caxixi e agogô. Nacontemporaneida<strong>de</strong>, para compor uma bateria <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> completa, são necessáriostrês berimbaus e um exemplar dos outros instrumentos citados. Os três berimbausdiferem-se pelo tamanho e pelo som. São <strong>de</strong>nominados gunga (o <strong>de</strong> som maisgrave, tocado pelo mestre e que <strong>de</strong>marca o ritmo do jogo, da roda), médio (quedobra sobre o ritmo básico do gunga) e violinha (o menor e <strong>de</strong> som mais agudo, quefaz contra-toques e improvisos) (NESTOR <strong>CAPOEIRA</strong>, 1988).44 Dados da entrevista. Pesquisa <strong>de</strong> campo realizada em 04/03/2006.


95Hoje, o berimbau é consi<strong>de</strong>rado o principal instrumento da capoeira. Suaimagem é utilizada como código que simboliza a capoeira em diversas partes domundo. De acordo com Nestor <strong>Capoeira</strong> (1988), é o berimbau que cria o clima ecomanda o jogo. Mestre Reginaldo Véio diz que o toque do berimbau catalisaenergias e abre a conexão entre a virtualida<strong>de</strong> e atualizado. No início da roda, apóso toque do berimbau, há a entrada dos outros instrumentos, o que constitui umuniverso rítmico complexo, que conecta o incorporal aos corpos e produz ritornelos.(...) o atabaque vibra na altura do umbigo. Toda tradição cultural africana,que é em torno dos atabaques, gerou danças on<strong>de</strong> tudo acontece em tornodo umbigo. Os orientais vão dizer, por sua vez, que em torno do umbigo vaiestar o hara. O hara é meu centro físico, geométrico e magnético. Se euestendo essa lógica <strong>de</strong> raciocínio, eu vou ter que o atabaque abre asvibrações no nível do umbigo, que é on<strong>de</strong> tá minha i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O pan<strong>de</strong>irotraz essa vibração um pouco pra cima, on<strong>de</strong> estão meus sentimentos, e oberimbau puxa essa vibração pra cima, on<strong>de</strong> estão os níveis superiores <strong>de</strong>conhecimento. Isso é holográfico. Holográfico no sentido <strong>de</strong> que a parte quecontém um todo também está contida naquela parte ou todo, e aí a gentetem a reprodução do principio trino do atabaque, pan<strong>de</strong>iro e berimbau. Agente tem, no plano superior, o gunga, o médio e o violinha, traduzindo parauma oitava maior a perspectiva do que o atabaque mobilizou vibrando noumbigo das pessoas (MESTRE REGINALDO VÉIO) 45 .A constelação rítmica produzida com essa formação <strong>de</strong> bateria intensifica osfluxos e expan<strong>de</strong> as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, pois, conforme o <strong>de</strong>poimento domestre, o corpo, que é energia, possui pontos que aglutinam campos magnéticos e avibração dos instrumentos afeta esses campos, rompendo estratificações e abrindouniversos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. Como já apontamos antes, cada jogador po<strong>de</strong> acessardiferentes janelas rítmicas e criar formas diversificadas <strong>de</strong> entrar no jogo, inventandomovimentos singulares. Dito <strong>de</strong> outro modo, mediante vibrações que abremcontornos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e favorecem novas formas <strong>de</strong> expressão, emergeminúmeras maquinações corporais, que operam em diversos níveis e propiciam atransposição <strong>de</strong> limiares <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>.Com a bateria montada e o grupo distribuído em espaço circular, o mestrepuxa as cantigas. Conforme Rego (1968), as cantigas <strong>de</strong> capoeira fornecemelementos preciosos para o estudo da vida brasileira. Po<strong>de</strong>m expressarenaltecimento a capoeiristas heróis, narrar fatos da vida cotidiana, usos, costumes,relações sociais, episódios históricos, além <strong>de</strong> serem elo entre o aqui e agora e aancestralida<strong>de</strong>.45 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006..


96A roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> tem início com o canto da ladainha e a chula ou louvação.Essas cantigas compõem um ritual e funcionam como catalisadores da energiapresente na roda, elos <strong>de</strong> espaços-tempos diversos, conexões com os saberes dosmestres, com a ancestralida<strong>de</strong>, com a história da capoeiragem, do grupo ou doscapoeiristas. Conforme Mestre Reginaldo Véio, a ladainha po<strong>de</strong> ser usada paracantar uma dor profunda, para fazer uma piada, para contar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se vem, paradizer quem foi o seu mestre ou para não falar nada: po<strong>de</strong> ser qualquer brinca<strong>de</strong>ira,momento <strong>de</strong> absoluta liberda<strong>de</strong>.No início da roda, as ladainhas e, principalmente, as chulas apresentam oenaltecimento dos gran<strong>de</strong>s capoeiristas, veneração dos mestres. Acionam asmandingas, ou seja, os rituais singulares que cada capoeirista cria para se afinarcom a vibração da roda e buscar proteção:Eh! Maior é Deus Pequeno sou euMaior é Deus pequeno sou euO que tenho foi Deus que me <strong>de</strong>uO que tenho foi Deus que me <strong>de</strong>uNa roda <strong>de</strong> capoeira gran<strong>de</strong> pequeno sou eu... (MESTRE PASTINHA, 1969)Eu sou discípulo que aprendoSou mestre que dou liçãoBerimbau é o meu guiaO meu canto é a oração<strong>Capoeira</strong> minha sinaMinha mãe e protetoraMe governa me iluminaÓ bendita consoladoraQue ilumina meus caminhosE me clareia as veredasQuem gostar <strong>de</strong>ssa mandingaOi passa na Lenço <strong>de</strong> SedaÊh viva meu DeusÊh viva meu mestreAi, ai, ai, viva PastinhaÊh ABCAÊh Lenço <strong>de</strong> Seda (MESTRE REGINALDO VÉIO, 2003)IêQuando eu aqui chegueiQuando eu aqui chegueiA todos eu vim louvarVim louvar a DeusPrimeiroMorador <strong>de</strong>sse lugarAgora eu tô cantandoAgora eu tô cantandoCantando dando louvorTo louvando a Jesus CristoPor que nos abençoouTô louvando e tô rogandoTô louvando e tô rogando


97Ao pai que nos criouAbençoe essa cida<strong>de</strong>Com todos os seus moradoresE na roda <strong>de</strong> capoeiraAbençoe os jogadoresCamaradinha (MESTRE JOÃO PEQUENO, 2003).Na concepção do Mestre Bola Sete, a roda <strong>de</strong> capoeira é um espaço sagrado.Ao pé do berimbau, quando se ouve o canto da ladainha, o angoleiro faz suasorações, e sentimentos heterogêneos convivem e interagem: “o amor e a malda<strong>de</strong>, alealda<strong>de</strong> e a falsida<strong>de</strong>, o sagrado e o profano estão presentes. Tudo po<strong>de</strong>acontecer” (CRUZ, 2006, p.33). Nas três ladainhas citadas acima, observamosdiferentes formas <strong>de</strong> conexão com o sagrado e expressões <strong>de</strong> ritualida<strong>de</strong>. MestrePastinha canta: “maior é Deus, pequeno sou eu. Na roda <strong>de</strong> capoeira, gran<strong>de</strong> epequeno sou eu”. Esse ritual presente no canto expressa o cuidado diante dacomplexida<strong>de</strong>, pois a roda é campo intenso <strong>de</strong> energia, que traz em si o bem e omal. Na ladainha do Mestre Reginaldo Véio, observamos a conexão com aancestralida<strong>de</strong> e a linhagem dos mestres, através da veneração <strong>de</strong> seu mestre e <strong>de</strong>mestre Pastinha, e a presença da oração quando canta a capoeira como mãe eprotetora. Na louvação <strong>de</strong> mestre João Pequeno, também está presente um ritual <strong>de</strong>oração, <strong>de</strong> afinação com a energia do lugar, solicitação <strong>de</strong> proteção a todos oscapoeiristas, no início do jogo.As ladainhas, que abrem a roda e produzem conexão com campos <strong>de</strong>virtualida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m apresentar também fatos históricos, como, por exemplo, aparticipação do Brasil na Segunda Guerra mundial, cantada por mestre Virgílio:O Brasil disse que temO Brasil disse que temO Japão disse que nãoUma esquadra po<strong>de</strong>rosaPra brigar com os alemãoMinha mãe agora eu vou láNo sorteio militarO Brasil está na guerraMeu <strong>de</strong>ver é ir lutar (MESTRE VIRGÍLIO, 2003)Po<strong>de</strong>m relatar experiências do grupo <strong>de</strong> capoeira ou do universo pessoal docapoeirista, conforme criação do mestre Boa Gente:Deram parte pro <strong>de</strong>legadoDeram parte pro <strong>de</strong>legadoQue eu era filho vadioFaz três mêis que eu num trabaioColega veio sustento mulher e fio (...)


98Viva meu DeusIê viva meu mestreAi,ai, ai, que me ensinouAi,ai, ai, a malandragemAi,ai, da capoeira ( MESTRE BOA GENTE. 2003)E po<strong>de</strong>m, ainda, discorrer sobre os fundamentos da capoeira, conforme ocontramestre Jorginho <strong>Capoeira</strong>:Iê.<strong>Capoeira</strong> é disciplinaBerimbau é quem comandaQuem não tem bons fundamentosAi, ai, põe <strong>de</strong> volta lá na cangaSe o jogo é <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>Você tem que angolarSempre com sua mandingaQue é pra nós apreciá... (CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 46 .Após o ritual <strong>de</strong> abertura com a cantoria da louvação e da ladainha, o jogotem início e <strong>de</strong>senvolve-se ao som dos corridos: cantigas que expressam ocotidiano, fatos históricos ou improvisos, que coor<strong>de</strong>nam, alertam, anunciam eacompanham as energias que emergem do jogo, as conexões e maquinações quese formam na roda. Quando um jogador ganha uma rasteira ou outro golpe que ocoloca no chão, po<strong>de</strong>mos ouvir a cantiga: “escorregar não é cair, é um jeito que ocorpo dá” 47 . A canção fala dos altos e baixos no processo contínuo <strong>de</strong> aprendizagemda capoeira, no qual os escorregões não representam o fim do jogo ou a queda<strong>de</strong>finitiva, mas um movimento <strong>de</strong> recomeço. Quando o jogo fica perigoso ou omestre da roda percebe malda<strong>de</strong> nos movimentos <strong>de</strong> algum jogador, a cantiga alertae pe<strong>de</strong> proteção:Oi a cobra me mor<strong>de</strong>Sinhô São BentoMe jogue no chãoA cobra é máSinhô São Bento (REGO, 1968, p.119).Há uma coisa nesse mundo que aperreia e dói o coraçãoÉ ver uma onça malvada comendo o boi do meu patrãoEu falei oia a onçaFica <strong>de</strong> butuca nelaEu falei oia a onçaFica <strong>de</strong> butuca nela (CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 48 .46 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.47 Dados obtidos com a observação participante, em fevereiro <strong>de</strong> 2006.48 Dados obtidos com a observação participante, em fevereiro <strong>de</strong> 2006.


99Ainda com os corridos, os capoeiristas acionam memórias relativas aoexercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no tempo da escravidão:No tempo do cativeiroQuando o senhor me batiaRezava pra nossa senhoraAi meu DeusComo a pancada doíaTrabalha negoNego trabalhaTrabalha negoPra não apanharE trabalhava no algodão, no açúcar e no sisalEu era chicoteadoNum velho tronco <strong>de</strong> pauQuando cheguei na Bahia a capoeira me libertouAté hoje ainda me lembroAntigas or<strong>de</strong>ns do meu senhorTrabalha negoNego trabalhaTrabalha nego. Pra não apanhar (MESTRE VIRGÍLIO, 2003).Os corridos também relatam as relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r presentes nodiálogo dos corpos no momento do jogo, e alertam os jogadores quanto ànecessida<strong>de</strong> do equilíbrio <strong>de</strong> forças na roda:Oi é tu qui é mulequeMuleque é tuMuleque te pegoMuleque é tuTe jogo no chãoMuleque é tuCastiga esse negoMuleque é tuConforme a razãoMuleque é tu (REGO, 1968, p.118).Não bata na criançaQue a criança cresceQuem bate não se lembraQuem apanha não esquece (MESTRE BIGODINHO, 2003).Quebra, quebra gerebaOi você quebra hojeAmanhã quem te quebra (REGO, 1968, p.115).As cantigas acima nos dizem que, no diálogo dos corpos produzido na roda, opo<strong>de</strong>r não se fixa, as posições invertem-se continuamente: “você quebra hoje,amanhã quem te quebra”, então, “não bata na criança que a criança cresce”. Dito <strong>de</strong>outro modo, em <strong>de</strong>terminado momento do jogo po<strong>de</strong> haver condição mais favorávela um jogador, porém, a cada movimento, o outro po<strong>de</strong> reverter e alcançar maiorforça na roda. É necessário estar atento aos movimentos e energias para escapar,


100inverter lugares nas relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Esse jogo não emerge apenasmediante os movimentos dos dois jogadores que estão no centro, mas em todaformação da roda. Mestre Reginaldo aponta:Há a <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> que todo mundo toca e canta pra eu jogar, mas temuma hora eu canto pra um outro jogar. É a sucessão <strong>de</strong> atores principais nocenário da roda. Todo mundo tem o seu momento <strong>de</strong> ser ator principal e oque <strong>de</strong>fine se você tem um espaço maior ou menor enquanto ator é oencantamento que seu jogo tem <strong>de</strong> todo mundo, <strong>de</strong>ntro e fora da roda. Éum teatro vivo. Se o jogo passa a não fascinar ele morre, ele morre porqueele não anima a bateria, ele morre porque a platéia começa a se dispersar,enten<strong>de</strong>u? (MESTRE REGINALDO VÉIO) 49 .Ao discorrer sobre a sucessão dos atores principais no centro da roda, mestreReginaldo diz das relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que se intensificam e alcançam osque compõem aquele universo. Todos po<strong>de</strong>m jogar e ocupar o lugar <strong>de</strong> quem<strong>de</strong>termina as ações dos outros, <strong>de</strong> quem conduz os movimentos, em um exercício<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que não se fixa, mas flui em inúmeros momentos <strong>de</strong> trocas sucessivas.Essas trocas não acontecem somente em relação aos capoeiristas que estãojogando, mas a toda a estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r presente na roda. Durante o jogo, nabateria, aquele que toca o berimbau gunga tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o ritmo.Normalmente, é o mestre quem está com o gunga nas mãos. De acordo com<strong>de</strong>poimento do mestre Reginaldo Véio, somente po<strong>de</strong>m cortar um jogo o gunga ou,eventualmente, outro mestre presente na roda, que encontrou motivo paraesclarecer, na prática, alguma coisa.Nas rodas realizadas aos domingos na se<strong>de</strong> da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong>Lenço <strong>de</strong> Seda, quando o mestre sai da bateria para jogar, ele passa o gunga paraoutro componente do grupo, que, naquele momento, assume a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>comandar o ritmo do jogo, exercer o po<strong>de</strong>r. O mestre entra no círculo, passa acompor a roda e aguarda sua vez <strong>de</strong> jogar. Observamos novamente um exercícioflexível, no qual a prática do po<strong>de</strong>r não se fixa, mas estabelece-se em relaçõesmóveis, reversíveis.No ato do jogo, relações estratégicas intensificam-se: no diálogo corporal,“gran<strong>de</strong> e pequeno sou eu”, estou, simultaneamente, <strong>de</strong>terminando a ação e tendoos movimentos <strong>de</strong>terminados pelo outro. Um exercício flexível, no qual nem sempreo que predomina é a força física, mas a malícia, a atenção, esperteza. Pepinha49 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


101relata um acontecimento que expressa a singularida<strong>de</strong> na relação <strong>de</strong> forças queacontece na roda:Eu vi, por exemplo, um jogo do mestre Virgílio com o contramestre Olhos <strong>de</strong>Anjo. O contramestre Olhos <strong>de</strong> Anjo é uma máquina mortífera, um caraformão, extremamente educado. Olhos <strong>de</strong> Anjo, aquele camarada... (risos)aí você imagina a fera. Mestre Virgílio, pequenininho, entrou na rodabrincando com ele e dando uns martelão, e o Olhos <strong>de</strong> Anjo - aquelegrandão - no chão, só saindo daqui, dali, e <strong>de</strong>ixou o mestre Virgílio ficar...(risos) e acho muito legal isso, muito legal (PROFESSOR PEPINHA) 50 .Na roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, o mais forte, mais ágil, o gran<strong>de</strong>, torna-se pequeno, e opequeno torna-se o maior e mais forte. É o que acontece no jogo <strong>de</strong>scrito porPepinha, pois, na <strong>Angola</strong> o objetivo não é vencer, mas não ser vencido: é apren<strong>de</strong>rcontinuamente no jogo. Por isso, diante do mestre, o que está em cena não é a forçaou <strong>de</strong>streza, mas a reverência ao conhecimento adquirido com experiência nacapoeiragem, a malícia.Há jogos em que essa relação se reverte e o mestre se faz pequeno. Quandodiante <strong>de</strong> um capoeirista iniciante ou <strong>de</strong> uma criança, o mestre, ou capoeirista maisantigo, apresenta perguntas e movimentos que propiciam ao aprendiz a realização<strong>de</strong> ataques, <strong>de</strong>ixando aberturas para entradas e golpes, e o aprendiz que erapequeno se torna gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminando a direção do jogo. Ao mesmo tempo, omestre cria escapadas e entra, por exemplo, com uma cabeçada ou rasteira, queapontam ao aprendiz seus pontos <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong>, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maioraprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento. Nesse movimento, o po<strong>de</strong>r nunca se fixa e ocapoeirista, seja iniciante, instrutor, treinel, professor, contramestre ou mestre, estáem constante aprendizagem, em um processo contínuo <strong>de</strong> equilíbrio <strong>de</strong> forças nodiálogo corporal.Esse diálogo no jogo <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> é o momento em que as forças seintensificam e os universos atual e virtual se fun<strong>de</strong>m. O diálogo corporal produz-seatravés <strong>de</strong> códigos próprios do universo da capoeiragem, que envolvem rituais,ritmos, movimentos, golpes, cantigas, em um processo <strong>de</strong> invenção que tem iníciono treino e se <strong>de</strong>senvolve na roda: “na roda tudo tem que ser ligado, é uma coisa só.Ela entra numa berlinda <strong>de</strong> coisas” (PROFESSOR PEPINHA) 51 .Enten<strong>de</strong>mos que a “berlinda das coisas”, da qual nos fala Pepinha, épossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transposições <strong>de</strong> limiar subjetivo, ou, conforme Guattari (1992), a50 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.51 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


102constituição <strong>de</strong> um ritornelo complexo, um universo no qual tudo está ligado. O jogoproduz-se na conexão <strong>de</strong> ritmos, cantigas, histórias, movimentos, memóriascoletivas, ancestralida<strong>de</strong>, diálogos corporais e incorporais. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>rompimento das estratificações, dos contornos <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, acontece medianteinumeráveis conexões que emergem através do corpo.Como sinalizamos anteriormente, já nos treinos, os movimentos e golpescorporais lançam para uma dimensão inusitada. Invertem a dinâmica corporalcotidiana, com movimentos <strong>de</strong> cabeça para baixo, muito próximos ao chão, usandocomo suporte não apenas os pés, mas também as mãos e a cabeça. MestreReginaldo Véio <strong>de</strong>staca que, além <strong>de</strong> inusitados, os movimentos da capoeiraconectam dimensões heterogêneas da vida.No exercício da capoeiragem você expressa possibilida<strong>de</strong>s estéticas, <strong>de</strong>movimentos que você vai buscar em espécies outras. Primeiro, levando emconta os mamíferos que estão na linhagem evolutiva do homem, capazes<strong>de</strong> experimentar o mundo <strong>de</strong> cabeça para baixo, vem o universo dosmacacos, com toda sua habilida<strong>de</strong>. Um macaco, que é um movimento<strong>de</strong>ntro da capoeira, é um macaco fazendo uma acrobacia, uma gracinha etal. O rabo <strong>de</strong> arraia, o golpe mais mortal que a capoeira tem, vem <strong>de</strong> umoutro animal que é a arraia, que vive <strong>de</strong>ntro do mar. E tem tambémmovimentos que são ponteiras, martelo, gancho, que são movimentos douniverso do trabalho escravo, no início da colonização. (...) Então o homem<strong>de</strong>ntro capoeira tá num lugar on<strong>de</strong> ele, além <strong>de</strong> se <strong>de</strong>leitar com o exercício<strong>de</strong> si mesmo, da dança, da harmonia, consegue, através da capoeira<strong>Angola</strong>, escrever uma trajetória da expressão da vida aqui no planeta(MESTRE REGINALDO VÉIO) 52 .Ao dizer dos golpes e movimentos da capoeira em conexão com as diferentesformas <strong>de</strong> manifestação da vida no planeta e com os movimentos do trabalhoescravo no Brasil, o mestre <strong>de</strong>monstra uma das circunstâncias na qual a experiênciada capoeira se torna módulo temporal catalisador capaz <strong>de</strong> operar,simultaneamente, em registros sócio-culturais, biológicos, maquínicos, cósmicos.Constitui um ritornelo complexo, capaz <strong>de</strong> potencializar a produção <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>em um processo <strong>de</strong> subjetivação polifônico, que emerge numa experiênciaeminentemente coletiva.No diálogo que se produz na roda <strong>de</strong> angola, além da linguagem corporal,com movimentos que nos conectam a outras espécies <strong>de</strong> vida, registros sóciohistóricose universos incorporais, <strong>de</strong>stacamos que cada gesto está diretamenteintrincado ao gesto do outro, à música, ao ritmo, aos instrumentos, aos rituais, a52 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


103cada pessoa que compõe a roda. Esse encontro polifônico produz um campo <strong>de</strong>forças intensas e abre um “limiar a-significante, uma espécie <strong>de</strong> relação <strong>de</strong>apreensão que é da or<strong>de</strong>m do afeto, da or<strong>de</strong>m da comunicação muda” (GUATTARI;ROLNIK, 2005). Então, alcançamos o que mestre Reginaldo sinalizou ao dizer que,para compreen<strong>de</strong>r a capoeira é, necessário experimentar corporalmente essaprática. Ou, <strong>de</strong> acordo com Abib (2004), que a capoeiragem guarda mistérios esegredos que são inapreensíveis aos não-iniciados.Com o intuito <strong>de</strong> tentar expressar como acontece esse afetamento que operanos limiares <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, trazemos aqui um recorte <strong>de</strong> nossa experiência noprocesso <strong>de</strong> participação observante. Quando mestre Reginaldo <strong>de</strong>marcou que,para dizer da capoeira, era necessário experimentá-la corporalmente e, portanto,freqüentar os treinos, algo me <strong>de</strong>slocou do lugar <strong>de</strong> conforto e abriu fendas nocontorno subjetivo. Apesar <strong>de</strong> dialogar com a capoeiragem em diversos momentos<strong>de</strong> minha história pessoal e profissional, ousar praticá-la sempre foi, para mim, um<strong>de</strong>safio.Nos treinos, cada movimento trazia à tona um turbilhão <strong>de</strong> emoçõesheterogêneas: medo, sentimentos <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> diante daquelas posiçõescorporais inusitadas, satisfação e potência criadora ao conseguir realizarmovimentos que pareciam impossíveis, alegria e prazer nos exercícios em dupla,quando os movimentos são enca<strong>de</strong>ados e ganham maior intensida<strong>de</strong>. Contudo,nada se compara à experiência da roda.A primeira vez em que fui convidada a entrar na roda foi ao final <strong>de</strong> um treino,quando o treinel abriu uma roda e todos foram convidados a jogar. Tentei meesquivar, disse que era iniciante, mas a mão estendida em minha direção era umconvite irrefutável. Quando percebi, estava ao pé do berimbau iniciando o jogo. Nãosabia o que fazer. Todos os movimentos que eu havia treinado e aprendidosumiram, como se tivessem dissolvido, evaporado. Fiquei alguns segundospensando, sem solução. Então, parei <strong>de</strong> pensar e simplesmente liberei o corpo e osmovimentos para respon<strong>de</strong>r às questões que o outro corpo me propunha. Nessemomento o jogo aconteceu e tornou-se impossível pensar ou codificar, apenasmovimentar, fluir e inventar saídas, em repostas e perguntas corporais que seconectavam continuamente.Foram intensos e singulares os momentos em que joguei na roda. Osmovimentos e conexões adquiriam formas diferentes a cada jogo. Ora emergia uma


104potência <strong>de</strong> luta que exigia rapi<strong>de</strong>z, movimentos mais agressivos e precisos,agilida<strong>de</strong> nas escapadas e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação rápida para retomar o jogoapós uma rasteira; ora predominava a brinca<strong>de</strong>ira, a ludicida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>mandavammaior teatralida<strong>de</strong> e manha. A cada jogo, pululavam em mim diferentessubjetivações, conforme as diferentes conexões. As potências <strong>de</strong> energia que seintensificavam cada vez que eu jogava na roda produziam uma sensação <strong>de</strong> intensaalegria e potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação, que continuavam ressonando após o jogo e seexpandiam em meu cotidiano, propiciando rompimento <strong>de</strong> contornos, com aemergência <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> maior irreverência e flexibilida<strong>de</strong>.Entrar na roda e jogar é realmente algo insólito: os movimentos inusitados, oato <strong>de</strong> estar literalmente <strong>de</strong> pernas para o ar, <strong>de</strong> quebrar as mo<strong>de</strong>lizações e a rigi<strong>de</strong>zcorporal em um processo <strong>de</strong> conexões múltiplas, nas quais o corpo já não é o “meucorpo”, porém o fluxo, o movimento, um campo <strong>de</strong> forças, uma espécie <strong>de</strong> “unida<strong>de</strong>heterogênea” <strong>de</strong> ritmos, sons, golpes, corpos, que potencializa <strong>de</strong>scobertas, abrenovas possibilida<strong>de</strong>s. Simultaneamente a essa abertura que rompe o contorno <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong> individual, há um processo <strong>de</strong> centramento, do qual emerge apercepção <strong>de</strong> si, dos próprios movimentos, emoções, memórias, estratégias,<strong>de</strong>sejos, forças, que se produzem através do corpo.No jogo, o corpo já não é o corpo biológico, mas uma maquinação corporal –conexão <strong>de</strong> múltiplos afetos que abrem uma constelação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, que seatualizam e re-atualizam a cada segundo. Uma re<strong>de</strong> móvel e instável <strong>de</strong> potências eforças que produzem transformações incorporais e extravasam um corpo semórgãos, “(...) po<strong>de</strong>rosa vida não orgânica que escapa dos estratos, atravessa osagenciamentos, e traça uma linha abstrata” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.223).Essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças, não <strong>de</strong> formas, intervém para a produção <strong>de</strong>intensida<strong>de</strong>s num grau zero, um corpo sem imagem, um estado fluido, através doqual qualquer produção ou organização é abolida. (PELBART, 2000) Um limiar <strong>de</strong>linhas <strong>de</strong> morte que, na capoeiragem, são intensas e constantes, atualizadas a cadamovimento, em golpes mortais. Em <strong>de</strong>terminados jogos, quando a potência <strong>de</strong> lutase intensifica e a velocida<strong>de</strong> dos movimentos aumenta, qualquer distração po<strong>de</strong>permitir a entrada <strong>de</strong> um golpe, que po<strong>de</strong> ser fatal.A experiência da roda vai permitir o exercício <strong>de</strong> uma prática mentaldiferenciada, são graus diferenciados <strong>de</strong> consciência que você vai acessarna medida em que você se solta e se entrega no embalo da roda. Sãodiálogos questionadores, perguntas e respostas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um tempo <strong>de</strong>


105resposta mínima, on<strong>de</strong> pensamentos e ação têm que estar unificados, sobrepena <strong>de</strong> o seu adversário lhe inverter um golpe, um rabo <strong>de</strong> arraia, te pegarno movimento contrário, e te quebrar os <strong>de</strong>ntes, a face, te <strong>de</strong>smaiar. Entãoo espaço da roda é um espaço on<strong>de</strong> intenção e gesto têm que estarunificados. Há a unificação da intenção e do gesto, ou seja, o centramentodo individuo no seu aqui e agora (MESTRE REGINALDO VÉIO) 53 .Consi<strong>de</strong>ramos que esse estado diferenciado <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong>scrito pelomestre consiste na emergência <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> ritornelização, no qual háabertura e fragmentação, porém, com o surgimento concomitante <strong>de</strong> um sentimento<strong>de</strong> unicida<strong>de</strong>. Rupturas <strong>de</strong> sentido, que po<strong>de</strong>m gerar focos mutantes <strong>de</strong> subjetivação(GUATTARI, 2002). Na capoeiragem, a produção contínua <strong>de</strong> focos mutantes <strong>de</strong>subjetivação engendra a construção da malícia, em um processo no qual a tradiçãoé suporte da invenção.Na roda <strong>de</strong> capoeira, diante da aceleração do jogo e da intensificação da luta,quando se abrem corpos sem órgãos, limiares <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> morte, on<strong>de</strong> qualquerprodução seria impossível, é por meio da tradição, dos fundamentos, dos rituais quepotências e energias se con<strong>de</strong>nsam e propiciam a ritornelização. “Eis que as forçasdo caos são mantidas no exterior e o espaço interior protege as forças germinativas<strong>de</strong> uma tarefa a ser cumprida, <strong>de</strong> uma obra a ser feita.” (DELEUZE; GUATTARI,1997, p. 116) A bateria muda o ritmo, o mestre puxa um corrido e o coro respon<strong>de</strong>:“é <strong>de</strong>vagar, é <strong>de</strong>vagar, <strong>de</strong>vagarzinho. É <strong>de</strong>vagar nesse jogo miudinho” 54 . O cantoalerta para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retomar a ludicida<strong>de</strong>, o jogo mais lento, mais gingado.Po<strong>de</strong> haver também a interferência do berimbau gunga para a conclusão do jogo, omovimento <strong>de</strong> uma chamada <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, que paralisa momentaneamente o diálogodos corpos, ou os jogadores po<strong>de</strong>m dar a volta ao mundo.Pra nós, a capoeira é um mundo, nós usamos a expressão: “dar a volta aomundo”, que é circular <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong>terminado pela roda. Com avolta ao mundo a gente faz um interregno no jogo. A gente faz a volta aomundo quando a gente tá cansado, quando a gente tá per<strong>de</strong>ndo o equilíbriointerior. A gente faz volta ao mundo quando é induzido pelo mestre, queestá tocando o berimbau maior e que percebe, a um dado momento,conexões que seguram a estrutura do jogo. Então ele propõe que se dê avolta ao mundo, que é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>nar o universo interno apartir daqueles dois praticantes (MESTRE REGINALDO VÉIO) 55 .53 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.54 Corrido cantado na roda <strong>de</strong> capoeira da Lenço <strong>de</strong> Seda. Pesquisa <strong>de</strong> campo. Observaçãoparticipante realizada em maio <strong>de</strong> 2006.55 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


106Enfim, essas e outras linguagens compõem o universo da tradição, dos rituaise dos fundamentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> e <strong>de</strong>vem ser respeitados para que essaexperiência potencialize a alegria e o prazer, a festa do corpo, a intensida<strong>de</strong> da vidana roda. Na capoeiragem, o que se busca não é a vitória sobre o outro, mas não servencido e possibilitar que o movimento continue em um processo <strong>de</strong> invenção, “umaconjugação ou uma conexão <strong>de</strong> diversos fluxos”, que produz a diferença.(DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 98)Falando no micro universo, do individuo que está praticando a capoeira, ali<strong>de</strong>ntro, o tempo todo, o convite é pra que ele quebre o código. Ele anuncia o códigonuma direção e realiza na outra, ele sinaliza uma cabeçada mais na verda<strong>de</strong> o quevem é uma rasteira. Lá no micro, no momento do jogo singular, a capoeira é umconvite a uma brinca<strong>de</strong>ira, a subverter as expectativas dadas, sempre. Ele trabalhasobre uma cristalização e carrega uma expectativa, a capoeira é um convite parasubverter as expectativas o tempo todo (MESTRE REGINALDO VÉIO) 56 .Na visão <strong>de</strong> Mestre Véio, não há, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, a intenção <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolver uma prática on<strong>de</strong> um se mostre superior com a <strong>de</strong>rrota do outro, com aimobilização do outro: a coisa acontece muito mais no cenário da brinca<strong>de</strong>ira, dadança, do lúdico, do encontro. Cada indivíduo no jogo trabalha sobre umacristalização, um contorno <strong>de</strong> si, uma expectativa dada, que se <strong>de</strong>sfaz, se dilui econecta heterogeneida<strong>de</strong>s no encontro da roda. O mestre acrescenta que, naconstrução do cotidiano, a vida se faz nos encontros que vão acontecendo. Nacapoeira, o encontro mais intenso produz-se no diálogo dos corpos: são doiscontendores se olhando no olho, tentando o máximo <strong>de</strong> disfarce <strong>de</strong> energia, <strong>de</strong> olhare <strong>de</strong> movimento, para surpreen<strong>de</strong>r. Um processo <strong>de</strong> invenção, numa brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ocupar espaços na roda: espaços vazios, espaços do outro.Nesse movimento que abre corpos sem órgãos, transita do lúdico a umapotência guerreira, articula tradição e invenção em conexão com universosheterogêneos, corporais e incorporais, a capoeira converte-se no espaço-tempo emque o corpo, em festa, se liberta da alma. Há a emergência <strong>de</strong> um ritornelocomplexo, que potencializa a produção <strong>de</strong> subjetivações singulares através daconquista da malícia.56 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


1076.3. A produção da malícia e a arte da existência na contemporaneida<strong>de</strong>.Foucault (2004) aborda as artes da existência - também <strong>de</strong>nominadaspráticas <strong>de</strong> si ou técnicas <strong>de</strong> si - como um fenômeno muito importante nassocieda<strong>de</strong>s. No mundo greco-romano, as técnicas <strong>de</strong> si constituíam formas <strong>de</strong>exercícios e práticas por meio das quais os homens <strong>de</strong>terminavam para si mesmosregras <strong>de</strong> conduta e buscavam se elaborar, se transformar para alcançar certo modo<strong>de</strong> ser, fazendo <strong>de</strong> sua vida uma obra <strong>de</strong> arte, portadora <strong>de</strong> certos critérios <strong>de</strong> estilossingulares.Na contemporaneida<strong>de</strong>, diante das formas hegemônicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r queoperam através da produção <strong>de</strong> subjetivações dominadas, capturadas pelasmodulações da lógica do consumo, as experiências que propiciam a singularida<strong>de</strong>, aemergência <strong>de</strong> subjetivações autônomas, são as principais formas <strong>de</strong> resistência.Nessa perspectiva, a arte da existência ou o cuidado <strong>de</strong> si, como experiência que sepo<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> si mesmo, saber que se po<strong>de</strong> produzir <strong>de</strong> si, para se conhecer,colocar-se à prova e transformar-se (FOUCAULT, 1997), compõem formas <strong>de</strong>resistência importantes. A problematização que focamos aqui é: o processo <strong>de</strong>construção da malícia na capoeiragem configura-se como uma das formas <strong>de</strong> arteda existência contemporânea?Para investigar essa questão, preten<strong>de</strong>mos operar por <strong>de</strong>slocamentos,acessar abordagens foucaultianas acerca da arte da existência na Antigüida<strong>de</strong> e<strong>de</strong>slocá-las para o campo da capoeira, utilizando-as como ferramentas para produziro encontro entre as elaborações sobre as práticas <strong>de</strong> si na Grécia Antiga e aexperiência da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> contemporânea, através da Associação <strong>de</strong><strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda.6.3.1. Ocupar-se <strong>de</strong> si é uma prática constante, <strong>de</strong>senvolvida ao longo daexistência.Uma das características das artes da existência no mundo grego-romano éque elas não eram apenas preparação momentânea para a vida, mas uma forma <strong>de</strong>vida, necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ocupar-se <strong>de</strong> si ao longo <strong>de</strong> toda a existência, em uma práticaconstante (FOUCAULT, 1997).


108Na capoeira, a construção da malícia também requer tempo e exercícioconstante ao longo <strong>de</strong> toda a trajetória do capoeirista, na luta infinita peloaperfeiçoamento que caracteriza cada ser (DECÂNIO FILHO, 1996). Na visão doprofessor Maia, a capoeira é uma direção <strong>de</strong> vida, um percurso que o capoeirista vaiescolher, “é um caminho que leva a pessoa a se encontrar consigo mesmo, comseus limites, com as suas vonta<strong>de</strong>s, então a capoeira é um encontro consigomesmo” (PROFESSOR MAIA) 57 . Esse encontro consigo mesmo, produzido nacapoeiragem, emerge mediante a uma prática ininterrupta, processo <strong>de</strong>aprendizagem que nunca se finda. Observamos essa dimensão <strong>de</strong> construçãocontínua nos <strong>de</strong>poimentos dos capoeiristas da Lenço <strong>de</strong> Seda:A capoeira, ela é um livro aberto no qual a gente lê. Lê e sempre táapren<strong>de</strong>ndo, cada dia que passa se apren<strong>de</strong> mais, e nessas páginas dolivro vai acontecendo, com o passar do tempo, mais malícia(CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 58 .Falar da capoeira, pra mim é uma direção <strong>de</strong> vida. (...) É um percurso que ocapoeirista vai escolher, aquele percurso tem um nome que é a capoeira.(...) Porque a capoeira, quanto mais você caminhar, quanto mais vocêpercorrer, ela vai te dando. Mas é ela que vai escolher, com base na suacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, aquilo que você vai adquirir naquele momento.<strong>Capoeira</strong> ensina muito (PROFESSOR MAIA) 59 .O menino entra para capoeira, e entra menino, com o tempo fica adulto.Quando a gente entra pra capoeira a gente é aluno, sabe, e o aluno a gentequer que seja o mais esperto, mas, com certeza, naquele momento ele é omais bobo. Enten<strong>de</strong>? Porque ele não teve tempo ainda <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r umascoisas <strong>de</strong>ntro da capoeira. (...) Passa um tempo, aí você vai enten<strong>de</strong>ndomais a vadiação, vai enten<strong>de</strong>ndo mais a roda, a capoeira, vai enten<strong>de</strong>ndomais o que é isso, e você dá uma graduada, você passa <strong>de</strong> jogador <strong>de</strong>capoeira pra capoeirista, aí o que é contado é outra coisa, não é o que écontado pra aluno, é pra jogador <strong>de</strong> capoeira (PROFESSOR PEPINHA) 60 .A malícia é um conceito que reúne boa parte do saber da capoeira. Amalícia é o que resulta da evolução do capoeirista, numa dimensão mais <strong>de</strong>autoconhecimento. (...) Ela tem uma ambiência na cultura da capoeira, quevem torná-la, na verda<strong>de</strong>, um conjunto dos conhecimentos que o capoeiristaadquire, mediante a prática prolongada da capoeira (MESTRE REGINALDOVÉIO) 61 .A prática da capoeira, como experiência que não se finda e que engendrasempre novas construções e transformações no processo <strong>de</strong> evolução docapoeirista, aparece em todos os <strong>de</strong>poimentos, contudo, <strong>de</strong> formas diferentes.57 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.58 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.59 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.60 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.61 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


109Pepinha fala <strong>de</strong>ssa construção contínua no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento dosalunos, da evolução na aprendizagem, até o aluno tornar-se capoeirista. Esseprocesso po<strong>de</strong> começar bem cedo, se há iniciação na capoeiragem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança.Porém, mesmo quando se inicia adulto, ainda se é criança, aluno em constante<strong>de</strong>senvolvimento na aprendizagem da capoeira, na construção da malícia. MestrePastinha, ao cantar “sou discípulo que apren<strong>de</strong>, sou mestre e dou lição”, reitera essacondição <strong>de</strong> aprendizagem infinita na capoeira. De acordo com Foucault, naspráticas <strong>de</strong> si, “apren<strong>de</strong>r a viver a vida inteira era um aforismo citado por Sêneca eque convida a transformar a existência numa espécie <strong>de</strong> exercício permanente; emesmo que seja bom começar cedo, é importante jamais relaxar” (FOUCAULT,1985, p.54).Na capoeiragem, essa aprendizagem, a construção da malícia, como umaexperiência <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> si para se transformar, uma luta infinita, que não seexpressa no confronto com o outro, mas na persistência no caminho sonhado, noaperfeiçoamento pessoal, exige exercício contínuo (DECÂNIO FILHO, 1996)Quando se é capoeirista, é outra coisa que conta: a capoeira passa a ser, além <strong>de</strong>uma luta-dança–jogo, uma filosofia <strong>de</strong> vida, um percurso que ensina muito e, quantomais é percorrido, mais po<strong>de</strong> ensinar. Mestre Reginaldo ressalta que esse percurso,essa prática prolongada que produz a conquista da malícia, engendra o<strong>de</strong>senvolvimento do autoconhecimento, a conquista <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong>conhecimentos sobre si. Portanto, a experiência <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> como as artesda existência, implica em cuidar <strong>de</strong> si, em “ser para si mesmo e ao longo <strong>de</strong> todasua existência, seu próprio objeto” (FOUCAULT, 1997, p.123).6.3.2. A prática <strong>de</strong> si como uma ocupação regulada, um trabalho comprosseguimentos e objetivos.De acordo com Decanio Filho (1996), mestre Pastinha busca em seusensinamentos dotar a capoeira <strong>de</strong> princípios éticos e pedagógicos. Esses conteúdosestão manifestados nos rituais e fundamentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Pastinha buscouinvestir no aprimoramento técnico, associado a um código <strong>de</strong> honra, pautado noprazer <strong>de</strong> praticar a capoeira, no respeito ao ritual e aos parceiros no jogo. Deacordo com o mestre, “o bom capoeirista nunca se exalta, procura sempre estarcalmo para po<strong>de</strong>r refletir com percisão e acerto; não discute com seus camaradas,


110não toma jogo sem ser sua vez; para não aborrecer o companheiro e daí sair umarixa” (PASTINHA apud DECANIO FILHO, 1996, p. 27).Pastinha diz da necessida<strong>de</strong> da calma para que o capoeirista busque acorreção dos movimentos e mantenha o respeito ao outro jogador, fazendo com quea capoeira seja uma prática bela e segura. Essa elaboração do mestre exemplifica,sucintamente, os diversos princípios e fundamentos éticos e estéticos queatravessam a capoeiragem. A capoeira angola é uma filosofia baseada na liberda<strong>de</strong>individual e na alegria. Conforme Pastinha, todos aqueles que queiram se <strong>de</strong>dicar aessa prática <strong>de</strong>vem procurar minuciosamente suas regras e <strong>de</strong>dicar-se a esse jogo,o que <strong>de</strong>manda tempo e prática. Dito <strong>de</strong> outro modo, o processo <strong>de</strong> aprendizagemda capoeira e a conquista da malícia ocorrem com práticas regulares,fundamentadas em regras, pressupondo persistência e continuida<strong>de</strong> rumo aoobjetivo <strong>de</strong> cultivar o respeito mútuo e auto-confiança (DECÂNIO FILHO, 1996).Foucault (1997) afirma que as técnicas <strong>de</strong> si, no mundo grego, não seconstituíam apenas como uma filosofia, mas uma forma <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, um trabalhocom prosseguimentos e objetivos, que requer mais que uma atitu<strong>de</strong> geral ou umaatenção difusa, mas também exercícios específicos e codificados. Havia umamultiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais que servia <strong>de</strong> suporte para essa experiência econstituía um conjunto práticas, como um treino <strong>de</strong> si por si mesmo (FOUCAULT,1985). Dentre elas, a palavra e a escrita <strong>de</strong>sempenharam papéis importantes: eramo elo entre o trabalho <strong>de</strong> si para consigo e a comunicação com o outro. De acordocom Foucault (2004), as correspondências no mundo greco-romano funcionavamcomo princípio <strong>de</strong> reativação, que propiciava estabelecer a elaboração <strong>de</strong> si mesmona relação com o outro. Escrever era se mostrar, se expor, fazer aparecer seupróprio rosto perto do outro, se oferecer ao olhar do outro.Do mesmo modo, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> há todo um conjunto <strong>de</strong> práticas -exercícios, golpes, ritmos, fundamentos e rituais - que <strong>de</strong>vem ser aprendidos eexercitados nos treinos e nas rodas. Porém, na capoeira, a ligação entre si e o outronão se dá pela palavra escrita, mas através do diálogo corporal. É por meio daconexão ritmo-dança-rituais-corpos-movimentos-luta-jogo, no diálogo corporalestabelecido na roda, que se engendra o exercício <strong>de</strong> se conhecer, se elaborar e setransformar continuamente. Na experiência da roda <strong>de</strong> capoeira,(...) você é o protagonista <strong>de</strong> si mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong>contextualização complexa <strong>de</strong> valores, <strong>de</strong> elementos diversos. Você passa


111a ser o protagonista <strong>de</strong> si mesmo num <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> diálogo <strong>de</strong> corpos on<strong>de</strong>intenção e gesto têm que estar unificados. É nesse sentido, nesseisolamento <strong>de</strong>ntro do todo, por assim dizer, que você, ao longo do tempo,vai fazendo a sua autopoiese, e vai conquistando níveis maiores do cuidar<strong>de</strong> si. No espaço da roda, no cenário da roda, quando eu me proponho a serum dos dois atores principais, (...) eu assumo sem subterfúgios as minhaspossibilida<strong>de</strong>s e os meus limites, eu me <strong>de</strong>snudo na frente dos outros, nafrente da platéia. Existe todo um cenário montado com baterias, comcantigas, com rituais e tal, e nesse cenário eu sou o ator principal. Como eudisse antes, é um cenário on<strong>de</strong> intenção e gesto têm que caminhar juntos,<strong>de</strong> maneira que, naquele momento, eu sou o único responsável por mim, eusou o único intérprete <strong>de</strong> mim, eu sou o único protetor <strong>de</strong> mim mesmo, eusou o exercício, o conhecimento da roda <strong>de</strong> maneira singular (MESTREREGINALDO VEIO) 62 .A experiência da roda propicia a intensificação das forças em um processoem que é necessário unificar intenção e gesto, sem subterfúgios: no encontro com ooutro, nos movimentos <strong>de</strong> perguntas e repostas corporais, há um processo <strong>de</strong>reativação mútua, em que emerge o conhecimento <strong>de</strong> si, a elaboração <strong>de</strong> si <strong>de</strong>maneira singular, que proporciona ao capoeirista uma forma <strong>de</strong> centramento.Na cultura greco-romana, além das correspondências, havia também a escritados hupomnêmatas 63 , que era “uma maneira <strong>de</strong> recolher a leitura feita e <strong>de</strong> serecolher nela” (FOUCAULT, 2004, p.150). Essa escrita consistia numa escolha <strong>de</strong>elementos heterogêneos, que se opunham à agitação da mente, à instabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>atenções, à fragilida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> todos os acontecimentos que se po<strong>de</strong>riam produzir.Na capoeira, o corpo é o arquivo <strong>de</strong> memórias, <strong>de</strong>sejos, experiências, histórias, quesão acessadas e se materializam nos movimentos, golpes, que emergem no jogo.Nesse processo <strong>de</strong> escolha dos golpes, das formas <strong>de</strong> dialogar com o outro, <strong>de</strong>acionar os fundamentos, criar escapadas, acessar a energia da roda, o capoeiristaalcança certo isolamento em conexão com o todo, produz uma forma <strong>de</strong>concentração, atenção, conhecimento <strong>de</strong> si que também se opõe à dispersão damente, à fragilida<strong>de</strong> diante dos acontecimentos que se po<strong>de</strong>m produzir. Pepinharelata que a capoeira “ensina a gente ter confiança na gente em último momento,porque chega uma hora é só você e Deus” (PROFESSOR PEPINHA) 64 .62 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.63 Livro <strong>de</strong> anotações utilizado na cultura grego-romana, que constituía “uma memória material dascoisas lidas, ouvidas ou pensadas”. Continham anotações <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> obras, narrativas <strong>de</strong>fatos vividos, reflexões e pensamentos (FOUCAULT, 2004, p.147).64 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


112Jorginho Escorpião, em seu <strong>de</strong>poimento, acrescentou que esse processo <strong>de</strong>centramento po<strong>de</strong> ocorrer também por meio da musicalida<strong>de</strong>, da conexão com oritmo. Ele afirma:Às vezes, um pouquinho que eu esteja nervoso, eu procuro pegar umberimbau a cantar uma música, pegar um atabaque. Então, esse tipo <strong>de</strong>ritmo vibra juntamente com a pulsação da gente, e a gente procuraesquecer, procura se libertar e <strong>de</strong>ixar a mente mais limpa(CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 65Na capoeiragem, o processo <strong>de</strong> centramento é inerente ao jogo, produçãocontínua, objetivo permanente. Cotejamos a produção do centramento nacapoeiragem à conversão a si na arte da existência. De acordo com Foucault (1985),a conversão a si, que era um objetivo comum das práticas <strong>de</strong> si, <strong>de</strong>ve sercompreendida como modificação da ativida<strong>de</strong> para consagrar-se inteiramente a si.Implica um <strong>de</strong>slocamento do olhar: é preciso que não se disperse em umacuriosida<strong>de</strong> ociosa com as agitações da vida cotidiana. Por meio da conversão a si,torna-se possível escapar das <strong>de</strong>pendências e das sujeições, buscando odistanciamento das preocupações com o exterior, enten<strong>de</strong>ndo que só se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>de</strong> si mesmo. Na roda <strong>de</strong> capoeira, quando naquele cenário “eu sou o únicoresponsável por mim, eu sou o único interprete <strong>de</strong> mim, eu sou o único protetor <strong>de</strong>mim mesmo” (MESTRE REGINALDO VÉIO) 66 , emerge um processo similar àconversão a si, forma <strong>de</strong> pertencer a si mesmo, em um processo no qual “é-se ‘suijuris’, nada limita nem ameaça o po<strong>de</strong>r que se tem sobre si” (FOUCAULT, 2004,p.70). A experiência <strong>de</strong> si que se constitui nessa posse não é <strong>de</strong> uma forçadominada, mas “a <strong>de</strong> um prazer que se tem consigo mesmo” (FOUCAULT, 1985,p.70). Através do acesso a si próprio, torna-se para si um objeto <strong>de</strong> prazer: contentasecom o que se é, aceita-se os próprios limites, mas também se <strong>de</strong>leita consigomesmo.Na roda <strong>de</strong> capoeira, os movimentos exigem <strong>de</strong>streza corporal e força física.Todavia, durante o jogo, cada capoeirista parece encontrar um ponto <strong>de</strong> equilíbrioem seu próprio corpo e, apesar dos movimentos inusitados, do esforço físico, o quese observa, na maioria das vezes, é uma expressão <strong>de</strong> pura alegria, “aquela cara <strong>de</strong>máxima felicida<strong>de</strong>” (PROFESSOR PEPINHA) 67 . Muniz Sodré enfatiza a importância65 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.66 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.67 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.


113dos ritmos e da dança na diáspora africana, como forma <strong>de</strong> transmissão e produção<strong>de</strong> um saber a partir das experiências corporais. O ritmo, a dança, incitam “o corpo avibrar ao ritmo do cosmos, provocando nele uma abertura para o advento dadivinda<strong>de</strong> (o êxtase), a dança enseja uma meditação, que implica ao mesmo temposobre o ser do grupo e do indivíduo, sobre as arquiteturas essenciais da condiçãohumana” (SODRÉ, 1988, p.124). Nessa conexão com a africanida<strong>de</strong>, que provocaaberturas e afeta as estruturas essenciais da condição humana, o capoeirista tornase,para si, objeto <strong>de</strong> prazer, produzindo uma subjetivação singular com aemergência <strong>de</strong> um conhecimento <strong>de</strong> si, experimentação das própriaspotencialida<strong>de</strong>s, uma forma <strong>de</strong> pertencimento a si.Na conquista da malícia, o centramento, pertencimento a si, que é,simultaneamente, aceitação <strong>de</strong> si e potência <strong>de</strong> criação, extravasa a roda e alcançaa vida. Na visão <strong>de</strong> Jorginho,A malícia na vida é você procurar medir as coisas <strong>de</strong> acordo com o quevocê possa alcançar. Aquilo que você procura ultrapassar seu espaço quevocê po<strong>de</strong> atingir, então eu sei que você está sacrificando seu próprio modo<strong>de</strong> ser. A gente tem que procurar conquistar um espaço, <strong>de</strong>pois daqueleespaço, procurar conquistar outros espaços <strong>de</strong> maneira correta, <strong>de</strong> maneiratranqüila. É como subir uma escada, primeiro conhecer os <strong>de</strong>graus <strong>de</strong>poisconhecer os outros e chegar ao seu objetivo. (...) porque cada um tem suamaneira <strong>de</strong> ser, cada um tem sua maneira <strong>de</strong> agir, e a gente tem que estarligado nessas coisas, porque a gente não <strong>de</strong>ve imitar ninguém, a gente temque ser o capoeira que a gente é (CONTRAMESTRE JORGINHOESCORPIÃO) 68 .Jorginho diz <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> aceitação, não <strong>de</strong> sujeição, do que se é. Umaprogressão na conquista da malícia, <strong>de</strong>grau a <strong>de</strong>grau, até alcançar o objetivo: aprodução <strong>de</strong> um conhecimento <strong>de</strong> si, que remete a um contentamento consigomesmo e não permite sacrificar o que se é, porém, produz uma forma <strong>de</strong> respeitar aprópria maneira <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> agir. No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> toda a entrevista, esse tema foirecorrente. Jorginho dizia <strong>de</strong> como convive em diferentes meios sociais - seja notrabalho na usina ou nas comunida<strong>de</strong>s das periferias da cida<strong>de</strong> - sem per<strong>de</strong>r o jeitopróprio <strong>de</strong> ser ou se <strong>de</strong>ixar atordoar pelas diferenças <strong>de</strong>sses contextos. Na ocasião<strong>de</strong> seu <strong>de</strong>poimento, Jorginho havia participado <strong>de</strong> um evento <strong>de</strong> capoeira na Itália.Era sua primeira viagem ao exterior: experiência nova, contexto totalmente diferente,língua <strong>de</strong>sconhecida, culturas, jeitos <strong>de</strong> ser muito distantes daqueles vivenciados porele em seu cotidiano. Perguntamos como foi essa experiência:68 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.


114Sobre a minha experiência no exterior, é que eu me senti em casa nomomento em que cheguei lá. Porque quando a gente vai, a gente acha queé um território estranho. A capoeira ensina tanta malandragem pra gente,tanto modo <strong>de</strong> viver no meio da socieda<strong>de</strong>, saber viver no meio em quevocê está, e eu me senti em casa (CONTRAMESTRE JORGINHOESCORPIÃO) 69 .Enten<strong>de</strong>mos que a maneira como Jorginho <strong>de</strong>screve sua experiência na Itáliase coaduna com seus <strong>de</strong>poimentos anteriores e reitera o centramento que se produzcom o percurso na capoeiragem. Estar na Itália, no Brasil ou em qualquer outraparte é estar em casa, pois, por meio da malícia, é possível conquistar outrosespaços <strong>de</strong> maneira tranqüila, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser o que se é.Madrinha Flor, que acompanhou o percurso <strong>de</strong> vários capoeiristas da Lenço<strong>de</strong> Seda, fala <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> centramento ao relatar histórias sobre asconquistas do capoeirista Jean Taruíra, que iniciou a aprendizagem <strong>de</strong> capoeira nase<strong>de</strong> da Lenço <strong>de</strong> Seda quando criança, há aproximadamente 23 anos. Hoje, écontramestre e coor<strong>de</strong>na, em Curitiba, um dos grupos que integra a Associação:O Jean é uma figura que não tem dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar em lugar nenhum.Ele está tão centrado no que ele é, no que ele almeja, que pra ele, classesocial, isso não o assusta. Ele chega em qualquer meio e ele é o Jean. Euacho que ele construiu a partir <strong>de</strong>ssa vivência que ele teve. A própriacoragem do Jean <strong>de</strong> sair daqui em 1995 e ir para Curitiba e falar que lá “euvou <strong>de</strong>senvolver a capoeira”, eu achei <strong>de</strong>mais. Ele foi para um lugar que éelitista, ele foi morar numa periferia <strong>de</strong> Curitiba e ele, não tenho dúvida,<strong>de</strong>ve ter enfrentado muita coisa, mas o Jean, ele se impôs. Hoje ele é ummenino que está <strong>de</strong>ntro da Petrobrás, ele tem um projeto <strong>de</strong> capoeira naPetrobrás. Ele tem projetos em escola privadas. Então, da mesma formaque ele está em uma escola <strong>de</strong> elite, lá em Curitiba, ele está com osmeninos da creche, da escola pública, e ele é o mesmo Jean nos doislugares. E é um menino respeitado. E olha que ele ainda tem muitos limites(MADRINHA FLOR) 70 .Ao dizer da trajetória <strong>de</strong> Jean, Flor ratifica o processo <strong>de</strong> centramentoengendrado com a prática da capoeiragem: a <strong>de</strong>terminação diante <strong>de</strong> um objetivo ea produção <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> ser que escapa a <strong>de</strong>pendências e sujeições,potencializando, em si, “um porto abrigado das tempesta<strong>de</strong>s” (FOUCAULT, 1985, p.69). Ao se <strong>de</strong>stinar a praticar e <strong>de</strong>senvolver a capoeira em Curitiba, Jean torna-se oúnico responsável por si, tal como no jogo da roda.O conhecimento <strong>de</strong> si engendrado na roda expressa-se no universo macro davida, <strong>de</strong> maneira singular. Para os capoeiristas, a roda é a vida, as aprendizagens eexperiências produzidas na roda constituem, naquele plano micro, as relações que69 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.70 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.


115se estabelecem no plano macro da vida. Dessa forma, falar da capoeira é falar davida, experimentar a capoeira é experimentar a vida. Conforme experiência relatadapor Flor, po<strong>de</strong>mos inferir que a conquista da malícia engendrada na roda se conectaà vida, produzindo uma forma <strong>de</strong> conversão a si, uma posse <strong>de</strong> si mesmo, umdistanciamento das preocupações com o exterior, através do centramento no que seé e no que se almeja.6.3.3. Quem quiser cuidar <strong>de</strong> si <strong>de</strong>ve procurar a ajuda <strong>de</strong> um outro.A ativida<strong>de</strong> consagrada a si mesmo não constitui um exercício <strong>de</strong> solidão. Deacordo com Foucault (2004), as práticas <strong>de</strong> si, tal como vivenciadas na Antigüida<strong>de</strong>,não implicavam em individualismo ou <strong>de</strong>sconexão com o coletivo, pois o postulado<strong>de</strong>ssa ética era: aquele capaz <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> sua vida uma obra <strong>de</strong>arte, seria capaz <strong>de</strong> se conduzir a<strong>de</strong>quadamente em sua relação com os outros.A capoeira é, eminentemente, uma prática coletiva. A roda é produção que sematerializa na conexão com o outro: diferentes pessoas, diferentes linguagenscorporais e incorporais. A conquista da malícia que se engendra no jogo acontecemediante a relação com o outro, por meio <strong>de</strong> movimentos inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,enca<strong>de</strong>ados no diálogo corporal. De acordo com Jorginho,Ela manifesta <strong>de</strong> acordo com a própria ação do seu adversário, porque amalícia tem que estar vindo com todos os movimentos, com todos osataques e no próprio jogo. A gente não precisa <strong>de</strong> muita força pra po<strong>de</strong>raplicar o contra-golpe. Você tem que usar a própria força do adversário parapo<strong>de</strong>r inutilizá-lo e a mínima força que você coloca no jogo, com a energiajá fluida no seu próprio consciente, a gente procura inutilizar o parceiro commaior facilida<strong>de</strong>. Depen<strong>de</strong> do momento, ganha aquele que muitas vezes fazas perguntas e o outro não tem a resposta pra dar. Tem que mostrar suaagilida<strong>de</strong> do modo mais sutil, do modo mais leve, na malandragem, namanha (CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 71Jorginho remete-nos à dimensão <strong>de</strong> luta que atravessa a capoeiragem. Nãouma luta na qual a força <strong>de</strong> um extermina o outro, mas que consiste em utilizar aforça do outro a favor do <strong>de</strong>senvolvimento da manha, da produção da malícia.Diante dos <strong>de</strong>safios produzidos instantaneamente nesse jogo <strong>de</strong> artimanhas, <strong>de</strong>forças que se opõem e se complementam, o capoeirista, em conexão com o outro,experimenta uma prática que o coloca continuamente à prova <strong>de</strong> si mesmo. Na roda,diante das inumeráveis possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, é necessário criar, a cada71 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.


116instante, novas respostas, novas formas <strong>de</strong> elaborar e transformar a si, <strong>de</strong> sesuperar continuamente e criar escapadas, produzir a malandragem <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>rcontinuamente ao outro e a si mesmo.Foucault (1985) afirma que, no exercício da arte da existência, faz-se umapelo ao outro, enten<strong>de</strong>ndo que este possui aptidão para dirigir e aconselhar. Dessaforma, o outro passa a exercer o papel <strong>de</strong> guia, professor, conselheiro. Tal como naspráticas <strong>de</strong> si, no universo da roda, o outro funciona como guia, professor, pois seusmovimentos, sua força, são perguntas corporais que direcionam, <strong>de</strong>safiam,potencializam respostas e constituem novas perguntas. Esses papéis sãointercambiáveis, <strong>de</strong>sempenhados concomitantemente pelos jogadores, pelasintervenções do berimbau gunga, pelas alternâncias <strong>de</strong> ritmo da bateria, pelascantigas entoadas com o coro. Assim, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> o outro não é adversário,mas parceiro <strong>de</strong> aprendizagem. Na opinião <strong>de</strong> Pepinha, a capoeira(...) é uma brinca<strong>de</strong>ira. Quando dois camaradas estão jogando capoeiraninguém quer quebrar o outro, porque são todos irmãozinhos, ali, naquelahora. Querem brincar um com outro pra ver quem é o mais esperto ali,sabe? Então a capoeira é essa brinca<strong>de</strong>ira. (...) você tem que vadiar comseu companheiro, com sua companheira, treinar junto, criar um jeito, sabe?Um inquietar o outro. “Vamos treinar aqui, me ajuda a <strong>de</strong>senvolver isso”. Euacho que é muito esse espírito junto, sabe? (PROFESSOR PEPINHA) 72 .Pepinha enfatiza a dimensão do jogo, da ludicida<strong>de</strong>, da vadiação nacapoeiragem, que se torna um encontro <strong>de</strong> irmãos, companheiros, parceiros emprocesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Essa analogia entre as relações estabelecidas nogrupo <strong>de</strong> capoeira e as relações familiares apareceu em todas as entrevistas. Emnosso entendimento, a recorrência da expressão “nova família” no universo dacapoeiragem enfatiza a cumplicida<strong>de</strong> nas relações estabelecidas no grupo.Cumplicida<strong>de</strong> e confiança tornam-se fundamentais para que um possa ser para ooutro o inquietar constante que potencializa a transformação e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>si.No mundo greco-romano, as artes da existência também se efetivavam pormeio <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> relações habituais, como as <strong>de</strong> parentesco e amiza<strong>de</strong>.Não obstante, frequentemente compunham estruturas mais ou menosinstitucionalizadas, com o reconhecimento <strong>de</strong> uma hierarquia, que “atribuía àquelesque estavam mais avançados, a tarefa <strong>de</strong> dirigir os outros (quer individualmente,72 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006


117quer <strong>de</strong> modo mais coletivo)” (FOUCAULT, 1985, p. 57). Também na capoeiragem,há o reconhecimento <strong>de</strong> uma hierarquia, pois, com a conquista da malícia, emerge anecessida<strong>de</strong> e o compromisso <strong>de</strong> iniciar e orientar outros. Na visão <strong>de</strong> MestreReginaldo,A gente vai praticando a capoeira e vai conquistando um monte <strong>de</strong>conhecimento, até que um dia a gente <strong>de</strong>scobre que existia um outroconceito, um outro ganho, uma outra conquista, que estava sendosedimentada o tempo todo, mas a qual o próprio praticante não tinhaconhecimento, a não ser quando adquire o grau <strong>de</strong> entendimento. Esseconceito é a malícia. (...) A malícia é o conceito mais rico, por isso mesmo,<strong>de</strong> alguma maneira, é difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir. Fala <strong>de</strong> conquistas que o capoeiristafez no plano iniciático, e que não tem como dividir, a não ser ensinando aum outro capoeirista a percorrer o mesmo caminho, para que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>quinze a vinte anos - ou mais, o novo praticante alcance também oconhecimento <strong>de</strong>sse conceito (MESTRE REGINALDO VÉIO) 73 .Mestre Véio, ao dizer da construção da malícia como processo iniciático,ressalta que essa produção só se efetiva por meio da experimentação, em umexercício <strong>de</strong> si mesmo. Por ser singular, a malícia não po<strong>de</strong> ser ensinadadiretamente ou dividida, a não ser pelo acompanhamento e orientação <strong>de</strong> outrocapoeirista nesse percurso.Na visão do mestre Véio, a malícia(...) reúne, em última instância, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> jogar na roda, <strong>de</strong> conhecer aenergia que se manifesta no universo da roda, <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a intençãoque tem por trás do disfarce, <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as inversões <strong>de</strong> ritmo, <strong>de</strong>base <strong>de</strong> movimentação que o adversário faz para surpreen<strong>de</strong>r (MESTREREGINALDO VÉIO) 74 .Dito <strong>de</strong> outra forma, o <strong>de</strong>senvolvimento do capoeirista e a conquista damalícia envolvem, além do conhecimento <strong>de</strong> si, o conhecimento dos movimentos,fundamentos, regras, rituais, cantigas, histórias, enfim, <strong>de</strong> todo universo dacapoeiragem, para compreen<strong>de</strong>r a energia que se manifesta no universo da roda.Na medida em que o capoeirista vai <strong>de</strong>senvolvendo a conquista da malícia, assumecompromissos <strong>de</strong> maior responsabilida<strong>de</strong> no grupo, alcançando novos graus nahierarquia da capoeiragem. Professor Maia afirma que, na capoeiragem,grau é muito relativo. O grau que você assume no momento é relativo àcapacida<strong>de</strong> que você tem <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r às responsabilida<strong>de</strong>s da capoeira.[...] O grau que a gente tem é aquilo que a gente assume pessoalmente,né? O grau que eu assumi é aquele que me dá a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter osmeus alunos, e aquele grau não é um só. É o grau <strong>de</strong> uma pessoa que73 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/200674 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006


118ensina, apren<strong>de</strong> e procura repassar pras pessoas que estão apren<strong>de</strong>ndojunto com ele (PROFESSOR MAIA) 75 .Professor Maia reitera que a aprendizagem do capoeirista se dá no encontrocom o outro e se amplia na medida em que se assume a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>orientar outros naquele percurso. Uma forma <strong>de</strong> cuidado <strong>de</strong> si que comporta apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um jogo <strong>de</strong> trocas com o outro e <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> obrigaçõesrecíprocas (FOUCAULT, 1985). Dessa forma, o grau hierárquico, na capoeira, estárelacionado diretamente às funções assumidas no grupo e às conquistas singularesno percurso <strong>de</strong> cada capoeirista. Assim, a hierarquia na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> estápautada muito mais na funcionalida<strong>de</strong>, na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciar e orientar outros naconquista da malícia do que numa estruturação cristalizada e hierárquica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Mestre, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é aquele que, conhecendo os fundamentos dacapoeiragem, visa, acima <strong>de</strong> tudo, o auto-aperfeiçoamento e o aspecto filosófico <strong>de</strong>sua arte, não apenas um exímio <strong>de</strong>sempenho no jogo, na luta (CRUZ, 2003). Éaquele que, baseado no que apren<strong>de</strong>u, assume a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduziroutros no caminho do conhecimento e transformação <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> autoaperfeiçoamento.Para alcançar o grau <strong>de</strong> mestre, “os capoeiristas menosexperientes <strong>de</strong>vem procurar os mais antigos, <strong>de</strong> comprovado saber, para que maistar<strong>de</strong> se tornem capacitados para exercerem o seu ofício com a sabedoria que ocargo exige” (CRUZ, 2003, p.135).Na visão do Professor Maia 76 , o discípulo <strong>de</strong>ve respeitar os ensinamentos domestre, ter paciência, estar sempre atento, pronto para fazer, para apren<strong>de</strong>r. Muitasvezes, a relação mestre-discípulo implica em uma disciplina rígida, uma relaçãohierárquica com endurecimentos, principalmente no jogo, com rasteiras, tombos,intimidações. Contudo, esse exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r do mestre é praticado parapotencializar inquietações que propiciem o conhecimento <strong>de</strong> si para transformar,superar e propiciar a conversão a si, o centramento, a conquista da malícia.Na medida em que um discípulo alcança novos níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento ereconhecimento no universo da capoeiragem e se aprimora continuamente naconquista da malícia, ele po<strong>de</strong>rá alcançar o título <strong>de</strong> mestre. Dessa forma,estabelece-se a tessitura das linhagens <strong>de</strong> mestres. Através dos fios <strong>de</strong>ssaslinhagens, que ligam os mestres através do tempo, conecta-se a ancestralida<strong>de</strong> que75 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/200676 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.


119compõe a capoeiragem. Em nosso trabalho, por exemplo, discorremos sobre a<strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> a partir do mestre Pastinha, que apren<strong>de</strong>u a capoeira com TioBenedito, um escravo alforriado. Pastinha, no exercício da maestria, <strong>de</strong>ixou comodiscípulos, <strong>de</strong>ntre outros, João Gran<strong>de</strong> e João Pequeno, que hoje são mestres <strong>de</strong>referência em relação à capoeira <strong>Angola</strong> e já formaram outros mestres. Assim, <strong>de</strong>forma similar às escolas estritas, que se constituíam em torno das artes daexistência no mundo greco-romano, também na capoeira vão se formando diferentesescolas, através das diferentes linhagens <strong>de</strong> mestres, com formas singulares <strong>de</strong>ensinar e praticar a capoeira.6.3.4. As artes da existência abrem campos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>subjetivações autônomas e singulares.Na Antiguida<strong>de</strong>, a articulação do código moral com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>uma relação consigo mesmo propiciava a <strong>de</strong>terminação para si <strong>de</strong> certo modo <strong>de</strong>ser, no qual o indivíduo agia sobre si mesmo para se conhecer, se controlar, seaperfeiçoar e se transformar, sendo que, ao agir, não operava apenas como agente,mas como sujeito da ação. Uma ação, para ser moral, não <strong>de</strong>veria se reduzir a umasérie <strong>de</strong> atos conforme regras, leis ou valores sociais, pois há diferentespossibilida<strong>de</strong>s nas formas <strong>de</strong> elaboração do trabalho ético realizado sobre si mesmo.A ênfase estava nos exercícios através dos quais se propõe a si mesmo como umobjeto a conhecer, nas práticas que propiciam a transformação e criação <strong>de</strong> seupróprio modo <strong>de</strong> ser (FOUCAULT, 2004). Nesse exercício em que a liberda<strong>de</strong>individual foi pensada como ética, as artes da existência constituíam processos <strong>de</strong>subjetivação <strong>de</strong> maneira autônoma, engendrando singularida<strong>de</strong>s.Nas práticas <strong>de</strong> si, a escrita do hupomnêmatas, por exemplo, não erarepetição ou reprodução, mas escolha singular, articulação heterogênea <strong>de</strong>fragmentos <strong>de</strong> textos lidos, em um exercício <strong>de</strong> escrita pessoal, uma forma <strong>de</strong>“combinar a autorida<strong>de</strong> tradicional da coisa já dita com a singularida<strong>de</strong> da verda<strong>de</strong>que nela se afirma e a particularida<strong>de</strong> das circunstâncias que <strong>de</strong>terminam seu uso”(FOUCAULT, 2004, p. 151).Na prática da capoeira, os golpes, as cantigas aprendidas ou os ritmosentoados continuamente também não são repetições ou reproduções. Em cadaroda, em cada jogo, esses elementos adquirem e expressam particularida<strong>de</strong>sconforme as circunstâncias que <strong>de</strong>terminam seu uso. Conforme dissemos


120anteriormente, cada capoeirista tem um jeito próprio <strong>de</strong> jogar, uma forma particular<strong>de</strong> gingar, <strong>de</strong> utilizar os golpes aprendidos, além <strong>de</strong> criar novos movimento e golpes,novas cantigas, novas histórias. Nas palavras <strong>de</strong> Pepinha,Na capoeira não tem como você fazer o mesmo jogo, a mesma coisa. Vocênão consegue repetir nada, nada, nada. Não é a mesma coisa, não é amesma coisa, sabe como? Porque quando você vai amadurecendo você vaiconhecendo a luta, você vai conhecendo o jogo, a dança, então o mesmomovimento, se você dá um rabo <strong>de</strong> arraia agora, hoje, daqui a um ano, elevai ser diferente. É o mesmo rabo <strong>de</strong> arraia. Rabo <strong>de</strong> arraia é rabo <strong>de</strong>arraia. O fazer é que é diferente, porque tem outras coisas incorporadas aí<strong>de</strong>ntro daquela consciência que você tem (PROFESSOR PEPINHA) 77 .Com o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Pepinha, observamos que, além do espectro <strong>de</strong>diferenças produzidas pela forma singular <strong>de</strong> cada capoeirista acessar os códigos dacapoeiragem, o processo <strong>de</strong> transformação e invenção produz-se também nopercurso particular <strong>de</strong> cada um, que, ao praticar a capoeira, vai alcançando níveis <strong>de</strong>compreensão diferentes. Então, aquele mesmo golpe que se praticou há um tempoadquire novas formas e significações, conforme a circunstância e o estágio <strong>de</strong>conquista da malícia. Ressaltamos, ainda, que a singularida<strong>de</strong> se manifestoutambém nas entrevistas: observamos, nos <strong>de</strong>poimentos apresentados no <strong>de</strong>correr<strong>de</strong>ste texto, que cada capoeirista tem uma forma singular <strong>de</strong> discorrer sobre o que éa malícia.Essa singularida<strong>de</strong>, que emerge na medida em que se progri<strong>de</strong> na conquistada malícia, é acompanhada, quase sempre, da responsabilida<strong>de</strong> e do compromisso<strong>de</strong> criar e conduzir outros no mesmo percurso, produzindo assim, novos grupos. Aemergência <strong>de</strong> novos grupos po<strong>de</strong> ocorrer sem a ruptura com a associação. Ocapoeirista conquista espaços, forma grupos sem per<strong>de</strong>r o vínculo com seu mestre,e esses grupos passam também a integrar a associação. Vinculados à Associação<strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda temos, por exemplo, o Grupo Lenço <strong>de</strong> Seda emCuritiba, criado e acompanhado pelo contramestre Jean Taruíra, e o Grupo Maltados Zoavós, na Itália, fundado e conduzido pelo Professor Maia. Todavia, algunscapoeiristas, nesse processo <strong>de</strong> conquista <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>, rompem com aassociação e criam grupos completamente <strong>de</strong>svinculados dos ensinamentos eorientações do mestre, inclusive com emergência <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong>s. Na <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong>, a ruptura com o mestre não é prática bem aceita, visto que a manutenção e77 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006


121o respeito à linhagem <strong>de</strong> mestres é fundamental na conservação da tradição e naconexão com a ancestralida<strong>de</strong>.Contudo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da forma como se processa a emergência <strong>de</strong> novosgrupos, observamos, na se<strong>de</strong> da Associação Lenço <strong>de</strong> Seda, que o grupo sempreestá em transformação e renovação. Durante o período em que <strong>de</strong>senvolvemos apesquisa, dois capoeiristas se <strong>de</strong>svincularam do grupo, capoeiristas que estavamafastados retornaram, novos alunos ingressaram, iniciou-se um novo projeto <strong>de</strong>capoeira na escola, o que traz novas crianças para compor o grupo da se<strong>de</strong>. Enfim,um processo <strong>de</strong> movimento e pulsação constantes, com a emergência <strong>de</strong> encontrosentre adultos e crianças, capoeiristas <strong>de</strong> Timóteo, <strong>de</strong> Curitiba e da Itália, entrecapoeiristas formados que compõem o grupo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem e aqueles queiniciam agora a capoeiragem. Encontros heterogêneos, engendrando singularida<strong>de</strong>sindividuais e coletivas.6.3.5. A prática <strong>de</strong> si como uma ação política.As práticas <strong>de</strong> si po<strong>de</strong>m ser erroneamente compreendidas como exercícioindividual, todavia, <strong>de</strong> acordo com Foucault (2004) no mundo grego o cuidado <strong>de</strong> siaparece como condição ética para o governo da polis: “constituir-se como sujeitoque governa implica que se tenha se constituído como sujeito que cuida <strong>de</strong> si”(FOUCAULT, 2004, p. 278). Portanto, além das práticas <strong>de</strong> si constituírem-se comoprocesso coletivo por meio da relação com o outro, a história das artes da existênciatem evi<strong>de</strong>nte articulação com a política.A experiência da capoeira também se efetiva conectada a aspectos sóciopolíticos.No percurso dos 29 anos da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda emTimóteo, observamos que a capoeiragem não apenas engendrou novos grupos,como esteve diretamente articulada à vida da cida<strong>de</strong> e funcionou como elementocatalisador <strong>de</strong> acontecimentos históricos. Conforme <strong>de</strong>screvemos, a capoeiragem daLenço <strong>de</strong> Seda constituiu-se como irrupção singular na história <strong>de</strong> Timóteo,engendrando outros acontecimentos, com diferentes alcances no contexto social.


1227. <strong>CAPOEIRA</strong> E ATUALIDADEUtilizamos o termo “atualida<strong>de</strong>” para <strong>de</strong>signar uma análise do presente, tarefacomplexa, pois estamos imersos nas experiências humanas, nos movimentoshistóricos e contextuais, no tempo em que acontecem. Conseqüentemente, há a<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> um distanciamento, um <strong>de</strong>sprendimento em relação a esse tempo, umprocesso <strong>de</strong> reflexão histórica enten<strong>de</strong>ndo que a “história do presente é história feitano presente sobre um presente... que já não somos” (RODRIGUIS, 2005, p.20).De acordo com Foucault (2004), colocar a questão da atualida<strong>de</strong>, ou seja,problematizar a comunida<strong>de</strong> da qual fazemos parte, no tempo em que vivemos,pressupõe uma atitu<strong>de</strong> histórico-crítica: um trabalho realizado no limite <strong>de</strong> nósmesmos, que <strong>de</strong>ve abrir um domínio <strong>de</strong> pesquisas históricas e colocar-se à prova darealida<strong>de</strong>, para apreen<strong>de</strong>r os pontos em que a mudança é possível e <strong>de</strong>sejável.Consiste em analisar o presente para buscar a diferença que se introduz hoje emrelação ao ontem, tentando i<strong>de</strong>ntificar as alternativas que se apresentam.Com intuito <strong>de</strong> refletir sobre a capoeira e a atualida<strong>de</strong>, buscamos naexperiência da Lenço <strong>de</strong> Seda alguns pontos que, no presente, constituemdiferenças, sinalizam mudanças. Um <strong>de</strong>sses pontos refere-se à forma <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong>entre os grupos. Tal como no período das maltas cariocas, na contemporaneida<strong>de</strong>há disputas entre grupos por território e reconhecimento, porém, essas rivalida<strong>de</strong>sadquirem novas formas.Destacamos, a partir da experiência da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong>Seda, algumas manifestações que <strong>de</strong>monstram diferenças nas formas <strong>de</strong> disputaentre os grupos. A primeira diz respeito à <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> espaços e <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong>força do grupo na cida<strong>de</strong>. Certo dia, no início do treino, o instrutor falou aos alunos ecapoeiristas da associação a importância <strong>de</strong> todos participarem da roda <strong>de</strong> domingo,pois alguns capoeiristas <strong>de</strong> outros grupos estariam visitando as rodas da Lenço <strong>de</strong>Seda e seria, assim, fundamental a presença dos capoeiristas da Associação para<strong>de</strong>fesa do seu território, para lutar e <strong>de</strong>marcar a força do grupo diante dos outrosgrupos da comunida<strong>de</strong>. No contexto das maltas cariocas, essa disputa engendravaconfrontos que po<strong>de</strong>riam ocasionar a morte daqueles que invadiam o território <strong>de</strong>


123uma malta rival. Na contemporaneida<strong>de</strong>, a força dos grupos <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>monstradano diálogo <strong>de</strong> corpos, no jogo, na luta <strong>de</strong>ntro da roda.A segunda manifestação <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> nos dias <strong>de</strong> hoje é relativa ao estilo <strong>de</strong>capoeira praticada, se <strong>Angola</strong> ou Regional. Mestre Reginaldo Véio relata que(...) hoje, quando a gente fala que é angoleiro, alguns ainda exigem que agente nem freqüente uma roda regional. (...) Tem angoleiros que contamhistórias, que há quinze, vinte anos atrás, os regionais falavam assim:“angoleiro a gente tem que chutar a cara <strong>de</strong>les pra eles apren<strong>de</strong>r a ficarralando bunda no chão”. Eu já escutei muita gente narrando essa citação(MESTRE REGINALDO VÉIO) 78 .No <strong>de</strong>poimento do mestre, observamos a hostilida<strong>de</strong> dos capoeiristasregionais em relação à <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Por outro lado, os angoleiros respon<strong>de</strong>m,afirmando que a verda<strong>de</strong>ira capoeira é a praticada por eles. De acordo comPepinha, “a <strong>Capoeira</strong> <strong>de</strong> <strong>Angola</strong> que é a capoeira <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da senzala, dosescravos, não é, com todo respeito, essa capoeira transformista que tá acontecendoaí” (PROFESSOR PEPINHA) 79 .Portanto, a disputa atual entre os grupos <strong>de</strong> capoeira po<strong>de</strong> emergir pordiversas entradas e com diferentes formas <strong>de</strong> manifestação que, muitas vezes, sãosimultâneas, articuladas e complementares. Envolvem a <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> força<strong>de</strong>ntro da roda, a disputa pela ocupação dos espaços da cida<strong>de</strong>, a rivalida<strong>de</strong> emrelação ao estilo <strong>de</strong> capoeira praticada, a rivalida<strong>de</strong> entre grupos, e mais: nocontexto contemporâneo, há também uma disputa por mercado <strong>de</strong> trabalho.Segundo Pepinha, “tem essa frente <strong>de</strong> trabalho, que é uma guerrinha que tápintando aí pra turma, pro pessoal <strong>de</strong> capoeira” (PROFESSOR PEPINHA) 80 .A inserção no mercado capitalístico produz uma diferença significativa naprática da capoeira contemporânea. Conforme sinalizamos anteriormente, acapoeiragem está atravessada pelas modulações do consumo. Principalmente naexperiência da <strong>Capoeira</strong> Regional, constatamos um processo <strong>de</strong> reprodução,conforme a or<strong>de</strong>m contemporânea: o diálogo corporal é substituído porperformances acrobáticas individuais que privilegiam a competitivida<strong>de</strong>, a forma <strong>de</strong>atribuição dos graus muitas vezes está organizada em função da lógica <strong>de</strong> consumo,com eventos anuais e a titulação <strong>de</strong> capoeiristas para abertura <strong>de</strong> novas aca<strong>de</strong>mias.78 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/200679 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/200680 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006


124Mestre Reginaldo 81 observa que, na prática da Regional, se abandona os rituais, sepreserva o ritmo, a música e se acrescenta movimentos altos, performancesestilizadas, compondo uma forma <strong>de</strong> sedução maior, que tornam essa capoeira maiscomercial. A capoeiragem passa a ser exercício para mo<strong>de</strong>lização corporal ouprática acrobática, inclusive, presente em diferentes mídias. Pepinha afirma que[...] essa capoeira a gente consi<strong>de</strong>ra - particularmente, com todo respeito -uma capoeira transformista. Eles falam que é evolução, mas a genteacredita que é <strong>de</strong>scaracterização do que é a capoeira. A mídia ajuda a criaressa imagem <strong>de</strong>svirtuada da capoeira. Então, eu acho que é por falta <strong>de</strong>compreensão, mas eu acho especialmente que é falta <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>,ou muita responsabilida<strong>de</strong> com o capitalismo <strong>de</strong>les (PROFESSORPEPINHA) 82 .Certamente, a <strong>Capoeira</strong> Regional tem maior inserção no mercado,principalmente por ser mais aberta às capturas do consumo. Porém, apesar darivalida<strong>de</strong> entre esses estilos, mestre Reginaldo Véio aponta que a relação entre acapoeira <strong>Angola</strong> e a Regional não é tão dicotômica ou controversa. Ele afirma que,principalmente no exterior,[...] todo mercado que a Regional abre passa a ser um mercado potencialda <strong>Angola</strong>. Quando a Regional abre uma frente em um território novo, umacultura nova, num país novo, e no segundo momento, pelo encantamentoda Regional, as pessoas querem conhecer <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio isso, como é quesurgiu, abriu espaço para <strong>Angola</strong>. Então, se existe uma tensão, essadialética da <strong>Angola</strong> com a regional é <strong>de</strong>limitada no espaço e no tempo; elasugere que haverá um momento que vai se processar uma síntese. Isso agente vai compreen<strong>de</strong>r daí pra frente (MESTRE REGINALDO VÉIO) 83 .Na visão do mestre, uma alternativa que emerge na capoeira nos dias <strong>de</strong> hojerefere-se a uma síntese entre os estilos Regional e <strong>Angola</strong>, com a passagem <strong>de</strong>uma relação <strong>de</strong> dicotomia e rivalida<strong>de</strong> para uma relação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong>. Nãoé possível projetar como se dará essa síntese, contudo, na experiência da Lenço <strong>de</strong>Seda po<strong>de</strong>mos vislumbrar alguns sinais. A opção pela prática da <strong>Angola</strong> não foicolocada em uma perspectiva dualista ou exclu<strong>de</strong>nte. Os grupos <strong>de</strong> Curitiba e doexterior praticam os dois estilos. Muitos alunos iniciam seduzidos pela Regional e,pouco <strong>de</strong>pois, experimentam também a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Os eventos e encontrosrealizados tanto em Curitiba quanto na Itália contam com a presença <strong>de</strong> mestres <strong>de</strong>Regional e <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>.81 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/200682 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/200683 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006


125No cruzamento dos diferentes aspectos que produzem essa síntese, emergea possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior disseminação da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> no Brasil e no mundo. Acapoeira <strong>Angola</strong>, por <strong>de</strong>mandar maior envolvimento, comprometimento epersistência do capoeirista, em um processo eminentemente coletivo e <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>senvolvimentocontínuo, torna-se menos sedutora para os iniciantes e maisseletiva. De acordo com Mestre Reginaldo Véio, a Regional po<strong>de</strong> ser entendidacomo “uma mandinga” da capoeiragem, uma forma <strong>de</strong> sedução e conquista <strong>de</strong>novos praticantes que, a partir <strong>de</strong>ssa experiência, vão buscar os fundamentos <strong>de</strong>ssaprática, que serão encontrados na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Dessa forma, ocorre umenca<strong>de</strong>amento estratégico, que propicia à <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> a conquista <strong>de</strong> novospraticantes, <strong>de</strong> novos territórios. Um jogo <strong>de</strong> forças que, tal como no diálogo corporalda roda, conecta pontos diferentes e, através dos movimentos do outro, engendranovas respostas.Todavia, mediante essa possível síntese, emergem também novos perigos,<strong>de</strong>ntre eles a contingência <strong>de</strong> maior abertura da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> às capturascapitalísticas. Professor Maia <strong>de</strong>staca que, na Europa, po<strong>de</strong>mos observarcapoeiristas que praticam uma <strong>Angola</strong> quase matemática: no diálogo corporal, osmovimentos são tão precisos e calculados que travam os fluxos <strong>de</strong> energia do jogo.Dessa forma, per<strong>de</strong>-se a característica da vadiação, do exercício livre e prazerosodo corpo, do diálogo corporal que potencializa o conhecimento <strong>de</strong> si no encontrocom o outro, nas conexões <strong>de</strong> universos corporais e incorporais. Emerge, então,uma competitivida<strong>de</strong>, na qual o objetivo principal é vencer o outro, <strong>de</strong>monstrar suaagilida<strong>de</strong>, sua força individual. Enten<strong>de</strong>mos que esse processo po<strong>de</strong> ser minimizadona medida em que os capoeiristas, professores ou instrutores se <strong>de</strong>dicamcontinuamente à aprendizagem e prática dos fundamentos, ao exercício do diálogocorporal, em jogos nos quais haja espaço para a vadiação, para encontros queproduzam a conquista da malícia. Destacamos que essa conquista, além doexercício da experiência da roda, <strong>de</strong>manda tempo, trabalho contínuo e persistênciano universo da capoeiragem.Nesse sentido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1994, somente a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é praticada eensinada na se<strong>de</strong> da Associação. Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, além dos treinos e práticasdo grupo focarem a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, são promovidos encontros e oficinas comgran<strong>de</strong>s mestres baianos e com capoeiristas angoleiros <strong>de</strong> Salvador, no intuito <strong>de</strong>fortalecer esse estilo: alcançar os campos mais sutis e complexos da capoeiragem e


126simultaneamente, buscar diminuir a vulnerabilida<strong>de</strong> da tradição da capoeira e dogrupo, diante dos enfrentamentos e atravessamentos da lógica capitalística, pormeio da produção <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>.Outra diferença que emerge na contemporaneida<strong>de</strong> é o fato <strong>de</strong> que aexperiência da capoeira tem se tornado cada vez mais institucionalizada, nãoapenas por meio <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mias, mas também com práticas em escolas e projetosassociados a empresas e/ou programas vinculados às políticas públicas. Naassociação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, são diversos os atravessamentos <strong>de</strong>institucionalização.Na ilha <strong>de</strong> Sar<strong>de</strong>ngna, na Itália, o grupo <strong>de</strong> capoeira Malta do Zoavós,coor<strong>de</strong>nado pelo professor Maia, <strong>de</strong>senvolve projetos junto a instituições públicas dogoverno italiano. Em parceria com outras entida<strong>de</strong>s - como prefeituras,universida<strong>de</strong>s, associações culturais –, o grupo encaminhou projetos ao FundoSocial Europeu, da União Européia, com o intuito <strong>de</strong> captar recursos para financiarações na área <strong>de</strong> inclusão social.No Brasil, o grupo da se<strong>de</strong> da Associação implementou, junto à PrefeituraMunicipal <strong>de</strong> Coronel Fabriciano, o projeto Arte Sempre, realizado no período <strong>de</strong>2002 a 2004. Esse projeto, <strong>de</strong>ntre outras ativida<strong>de</strong>s, propiciou a prática da <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong> em escolas, creches e outras instituições do município, <strong>de</strong> formasistematizada, com abrangência <strong>de</strong> aproximadamente 3.200 crianças. Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Timóteo, Pepinha atua como capoeirista contratado pela Prefeitura para ministraraulas <strong>de</strong> capoeira nas escolas da Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> Ensino. No ano <strong>de</strong> 2006, ogrupo buscou e captou recursos para um trabalho <strong>de</strong> recuperação e conservação doacervo histórico da Associação, com o encaminhamento <strong>de</strong> um projeto ao FundoEstadual <strong>de</strong> Cultura <strong>de</strong> Minas Gerais. Em Curitiba, o contramestre Jean Taruíra éprofessor contratado para ministrar aulas <strong>de</strong> capoeira em escolas particulares <strong>de</strong>educação infantil e <strong>de</strong>senvolve um projeto <strong>de</strong>ntro da empresa Petrobrás.Esses fatos <strong>de</strong>monstram que a institucionalização na capoeira se intensifica eadquire novas configurações. Esse processo po<strong>de</strong> ser entendido como uma novacaptura, efetivada por meio <strong>de</strong> atravessamentos das biopolíticas contemporâneasque têm como agentes não somente o Estado, como também outros elementosligados a outras forças sociais (FERREIRA NETO, 2004). Contudo, observamos queos atravessamentos das formas hegemônicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nem sempre são negativos.Mediante as capturas, emergem também novas possibilida<strong>de</strong>s, pois, conforme


127Foucault (1986) o po<strong>de</strong>r não é exercido apenas <strong>de</strong> modo negativo, por meio <strong>de</strong>impedimento ou exclusão, mas é também positivo, na medida em que produz efeitosem nível do <strong>de</strong>sejo, do saber, da ação. Tendo como pressuposto as elaboraçõesfoucaultianas, reiteramos que po<strong>de</strong>r e resistência compõem um mesmo universo <strong>de</strong>forças, que se atravessam e se conectam continuamente. Na visão <strong>de</strong> Guattari, nãohá contradição entre institucionalização e capacida<strong>de</strong> criadora (GUATTARI;ROLNIK, 2005).Mestre Reginaldo enfatiza que, nos últimos anos, a capoeira tem propiciadonovas possibilida<strong>de</strong>s ao capoeirista, permitindo, inclusive, maior mobilida<strong>de</strong> social:“tem muitos capoeiristas que seu exercício <strong>de</strong> cidadania maior, ou seja, suaoportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social melhor, foi ter aprendido capoeira” 84 . A ladainhado Mestre Boca Rica diz <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong>, da diferença que emerge em sua vida apartir do universo da capoeiragem:An<strong>de</strong>i o Brasil inteiroPassei na televisãoE sou um gran<strong>de</strong> mestreGran<strong>de</strong> cidadãoServente <strong>de</strong> pedreiroPor não ter a profissãoAgora sou um guerreiroTo sendo divulgado, ô meu bemAté lá no estrangeiro (MESTRE BOCA RICA, 2002).O mestre <strong>de</strong> capoeira alcança novos horizontes, diferentes daqueles queseriam possíveis ou previsíveis diante <strong>de</strong> sua condição social, muitas vezesmarginalizada, no contexto capitalístico <strong>de</strong> nosso tempo. Mestre Boca Rica, porexemplo, diz <strong>de</strong> seu valor maior como cidadão e do reconhecimento social, no Brasile no estrangeiro, alcançado por ser um gran<strong>de</strong> mestre na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, inclusivecom momento <strong>de</strong> projeção na mídia televisiva. Destacamos que, apesar doreconhecimento do valor dos mestres <strong>de</strong> capoeira em diferentes contextos, isso nãosignifica ascensão financeira: muitos morreram na miséria, como, por exemplo,Mestre Pastinha.Na contemporaneida<strong>de</strong>, simultaneamente ao processo <strong>de</strong> maiorinstitucionalização na capoeiragem, surgem novas formas <strong>de</strong> profissionalização.Para Pepinha, os projetos culturais, nas escolas ou em parceria com instituições eempresas constituem formas <strong>de</strong> sobrevivência da capoeiragem contemporânea.84 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006


128Segundo ele, a capoeira “precisa sobreviver do ponto <strong>de</strong> vista do capoeirista terremuneração pra po<strong>de</strong>r ensinar, pra po<strong>de</strong>r administrar suas aulas, mas ela tambémtem que cuidar muito pra não se <strong>de</strong>scaracterizar por causa disso” (PROFESSORPEPINHA) 85 .Em relação à profissionalização no universo da capoeira, uma tendência quese fortalece na contemporaneida<strong>de</strong> é sua inserção no contexto escolar. MadrinhaFlor <strong>de</strong>staca:Não tenho dúvida que a gente não vai formar capoeirista com aula só naaca<strong>de</strong>mia. [...] A gente vai formar capoeirista se for pra <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> escolapública. [...] eu acho que a malandragem está é lá, na periferia. O meninotem que ser malandro pra ser bom capoeira. Uma malandragem positiva,que é o gosto <strong>de</strong> estar numa roda <strong>de</strong> capoeira, o gosto <strong>de</strong> tocar uminstrumento, é o gosto <strong>de</strong> fazer um jogo bonito. Acho que o menino daclasse popular, ele é mais solto pra isso. Ele é <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> coisas pré<strong>de</strong>terminadas.Ele é muito ele. Tem mais a malandragem (MADRINHAFLOR).Na experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, a conexão com a escola efetiva-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1984. A diferença que emerge na contemporaneida<strong>de</strong> refere-se ao fato <strong>de</strong> que acapoeira nas escolas passa a ser oficialmente financiada pelas políticas públicas oupelas instituições particulares <strong>de</strong> ensino. Esse novo campo po<strong>de</strong> ocasionar novosriscos. Mestre Reginaldo aponta o perigo <strong>de</strong> uma “pedagogização” da capoeira. Dito<strong>de</strong> outro modo, uma prática que enquadre a capoeiragem conforme o tempo e adinâmica escolar, com objetivo <strong>de</strong> utilizá-la somente “como instrumento <strong>de</strong>socialização, como instrumento <strong>de</strong> lazer, como mecanismo para queimar a energiados meninos mais agressivos” (Mestre Reginaldo Véio) 86 . Outro risco, apontado porPepinha, é <strong>de</strong> que a capoeira regional ganhe cada vez mais espaço, inclusive <strong>de</strong>ntrodas escolas, e, assim, crianças e adolescentes tenham acesso somente a umprocesso <strong>de</strong> reprodução na capoeiragem, em <strong>de</strong>trimento dos aspectos <strong>de</strong> tradição,ancestralida<strong>de</strong>, criação coletiva, presentes na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>.Madrinha Flor sinaliza também algumas dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pelacapoeira no espaço escolar. Ela observa que, ainda hoje, a capoeiragem é vista poralguns familiares das crianças como prática pejorativa, estigmatizada comovadiagem. Além disso, Madrinha Flor e Professor Pepinha relatam histórias <strong>de</strong> paisque proíbem seus filhos <strong>de</strong> freqüentar as aulas <strong>de</strong> capoeira por questões religiosas,85 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.86 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006


129por associarem a capoeira ao pecado, ao candomblé. Esse episódio <strong>de</strong>monstra quea capoeiragem, ainda hoje, é atravessada por preconceitos.Outra dificulda<strong>de</strong> que emerge com a capoeira no contexto escolar é relativa àdiferença em relação aos processos <strong>de</strong> aprendizagem. Conforme <strong>de</strong>screvemosanteriormente, a capoeira, principalmente a <strong>Angola</strong>, introduz no espaço escolardiferenças metodológicas nas formas <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> saberes, comemergência <strong>de</strong> maior movimento, ludicida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>, em uma práticaeminentemente corporal e coletiva. Essas diferenças constituem resistências nasescolas, fazendo emergir processos <strong>de</strong> criação que extravasam as aulas <strong>de</strong>capoeira e alcançam outros espaços e tempos. Provavelmente por engendrarresistências, “a capoeira ainda não foi incorporada diante da escola. Ela não estáintroduzida na visão dos educadores como um todo” (MADRINHA FLOR) 87 .Fundamentando-nos nas elaborações <strong>de</strong> Guattari e Rolnik (2005), po<strong>de</strong>mosconsi<strong>de</strong>rar que, mesmo com maior institucionalização, em <strong>de</strong>terminadascircunstâncias, a capoeira ainda é uma prática-margem, na medida em que não seenquadra nas normas dominantes e engendra novas formas resistências.Destacamos que os aspectos que sinalizamos como pontos <strong>de</strong> diferençarelativos à inserção da capoeira no mercado capitalístico, nova formas <strong>de</strong>institucionalização e profissionalização da atuação dos capoeiristas, constituem-seem tramas múltiplas e complexas, com alguns pontos <strong>de</strong> cristalização, em processosainda instituintes. Na experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, observamos que os projetosassociados às políticas públicas são pontuais. São poucos os capoeiristas inseridosno mercado como profissionais da capoeira, em ações institucionalizadas, comoficialização <strong>de</strong> contratos <strong>de</strong> trabalho. As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> capoeira nas escolas seefetivam tanto <strong>de</strong> maneira institucionalizada, com profissionais contratados, quantopor iniciativa <strong>de</strong> parcerias informais, com atuação voluntária dos capoeiristas. Osefeitos <strong>de</strong>sses processos no contexto da capoeiragem e os diferentesacontecimentos que emergem sugerem novas investigações em outras pesquisas.87 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 28/09/2006


1308. CONSIDERAÇÕES FINAISA<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>usBoa viagemA<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>us,Boa viagemEu vou-me embora,Boa viagemEu vou com Deus,Boa viagemNossa SenhoraBoa viagem(MESTRE BOCA RICA, 2002)Iniciamos esse trabalho com o intuito <strong>de</strong> investigar como se produziu aresistência na capoeiragem, mediante diferentes configurações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, focandoprincipalmente o contexto contemporâneo.Por meio <strong>de</strong> uma breve abordagem histórica, observamos que, no percursodo <strong>de</strong>senvolvimento da capoeira no Brasil, os entrelaçamentos entre po<strong>de</strong>r eresistência sempre estiveram presentes. Mesmo diante dos atravessamentos dasformas hegemônicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, engendram-se na capoeiragem novas escapadas,em um processo <strong>de</strong> transformações e invenção contínuas, tal como a ginga na roda.A ginga é o movimento-base na capoeira, que, ao absorver a forma do andar,transforma-o em dança capaz <strong>de</strong> comportar elementos necessários para estardançando, lutando e jogando. Um movimento <strong>de</strong> absoluta flexibilida<strong>de</strong>, quepotencializa inversões, mudanças <strong>de</strong> direção, <strong>de</strong>fesas, ataques, escapadas. Ao<strong>de</strong>senvolver diferentes formas <strong>de</strong> resistência no contexto brasileiro, diante dasdiferentes formas <strong>de</strong> configuração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a capoeira parece gingar nas tramashistóricas.Fez-se luta diante do estado <strong>de</strong> dominação presente no contexto escravocratado Brasil-colônia. Uma potência guerreira, um movimento <strong>de</strong> libertação, que semanifestava não apenas por meio da contra-força, dos golpes que faziam do corpoum arquivo-arma, mas, principalmente, pela potência <strong>de</strong> invenção, pela criação <strong>de</strong>novos espaços <strong>de</strong> encontro e <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> diferentes parcelas marginalizadasda população, como, por exemplo, a emergência das maltas no século XIX, no Rio<strong>de</strong> Janeiro. Com grupos heterogêneos organizados, as maltas conectavam afetos


131diversos. Suas apresentações lúdicas em praças, festas e folguedos da cida<strong>de</strong>envolviam cantigas <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, brados <strong>de</strong> guerra, <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> <strong>de</strong>streza evalentia, atos <strong>de</strong> violência, dramatizações, coreografias, malabarismos,transgressões <strong>de</strong> normas e regras socialmente instituídas. Um ethos guerreiro que,<strong>de</strong> forma hibrida e difusa, se articulava aos homens do Estado, à polícia, ao jogo dobicho, aos operários, não se pren<strong>de</strong>ndo a ninguém.A dança, o jogo, intensificaram-se na capoeira quando as tecnologiasdisciplinares passaram a compor novas formas <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A vadiação, aalegria <strong>de</strong> experimentar o corpo com liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento, em conexão com oritmo, com o rito, com outros corpos, ativa-se com maior força. Por meio da festa, daluta, da dança e do jogo, os capoeiristas ampliam sua potência e alcançam maiorpo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> realização. A intensificação da vadiação na capoeiragem sinaliza adiferença na forma <strong>de</strong> resistência, pois é uma maneira <strong>de</strong> brincar com a serieda<strong>de</strong>da vida, subverter a or<strong>de</strong>m e criar espaços da alegria. O exercício livre do corpo nabrinca<strong>de</strong>ira, no jogo, contraria a lógica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, escapando às repressões policiaise às técnicas <strong>de</strong> governo disciplinares.Na fase inicial da experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo,observamos a força da conexão luta-dança-jogo. Em um cenário no qual coexistiaum estado <strong>de</strong> dominação e uma biopolítica que buscava gerenciar a vida na cida<strong>de</strong>,as rodas <strong>de</strong> capoeira produziam na vadiação um novo ethos guerreiro epotencializavam acontecimentos no contexto da cida<strong>de</strong>, abrindo fendas, diferenças,resistências.Enfim, constatamos que a capoeira, em seu percurso histórico no contextobrasileiro e na experiência da Lenço <strong>de</strong> Seda, engendrou diferentes formas <strong>de</strong>resistências, potencializando a criação, funcionando como catalisador paraemergência da diferença na vida das cida<strong>de</strong>s. Contudo, na contemporaneida<strong>de</strong>,mediante novas configurações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a capoeiragem por vezes é consi<strong>de</strong>radauma prática capturada. Na visão <strong>de</strong> Melo,A capoeira ganha cada vez mais os salões e praças, se acalma, se pacifica(...). Hoje ela é ensinada para crianças ricas e pobres, meninos e meninas,homens e mulheres, contando-se saudosamente a história <strong>de</strong> uma origemguerreira que embala a anêmica revolta <strong>de</strong> nossa atualida<strong>de</strong> (MELO, 2001,p.186).Essa elaboração direciona-se para a perspectiva <strong>de</strong> que, nacontemporaneida<strong>de</strong>, a capoeira per<strong>de</strong>u sua potência como resistência. Porém, uma


132análise mais minuciosa <strong>de</strong>ssa elaboração provoca diferentes consi<strong>de</strong>rações sobre acapoeira contemporânea.Enten<strong>de</strong>mos que, ao dizer que a capoeira “se pacifica e embala a anêmicarevolta <strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong>”, a autora aborda a resistência pelo viés da contestação,da contra-força, posicionamento do qual discordamos. Ressaltamos que emerge nacapoeira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu surgimento no Brasil, não apenas uma resistência como contraforça,luta, mas, sobretudo, uma resistência positiva, processo <strong>de</strong> criação, produçãodo novo, do diferente, constituição <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> produzidos na conexãodança-luta-jogo, com atravessamentos <strong>de</strong> música, ritmos, rivalida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sejos,culturas, ritualida<strong>de</strong>s. Corpos, movimento e ritmos, abrindo campos <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s para invenção <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> viver e conviver.Contudo, esse processo <strong>de</strong> singularização não significa imunida<strong>de</strong> diante dasformas hegemônicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou da produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> capitalística.Guattari alerta que toda criativida<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a ser esmagada e todo microvetorsingular ten<strong>de</strong> a ser recuperado, capturado pelas modulações dominantes.(GUATTARI; ROLNIK, 2005). Portanto, como dissemos anteriormente, há nouniverso da capoeiragem práticas <strong>de</strong> resistência e <strong>de</strong> reprodução.Ratificamos que, na contemporaneida<strong>de</strong>, experiências que propiciam acriação, a produção <strong>de</strong> subjetivações singulares, são as principais formas <strong>de</strong>resistência. A experiência da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, ao engendrar a conexão <strong>de</strong> aspectosheterogêneos, universos corporais e incorporais, rompe contornos subjetivos e abreinfinitos campos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. Assim, a roda <strong>de</strong> capoeira funciona como umritornelo complexo, que potencializa a produção <strong>de</strong> subjetivações singulares.Na roda <strong>de</strong> <strong>Angola</strong>, cada participante, em conexão heterogênea com ritmos,movimentos, corpos, rituais, é atravessado por múltiplos afetos que <strong>de</strong>sterritorializame propiciam uma reterritorialização, com emergência da diferença. No universo microda roda, é possível intensificar o equilíbrio <strong>de</strong> forças nas relações estratégicas eproduzir subjetivações singulares, o que vai potencializar a diferença, processos <strong>de</strong>singularização nas formas <strong>de</strong> ser e viver do capoeirista.A produção <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>, tanto numa perspectiva individual como coletiva,dá-se com a conquista da malícia, que requer prática contínua da capoeiragem,aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento infinito, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando um processo similaràquele presente nas artes <strong>de</strong> existência no mundo greco-romano: por meio doencontro com o outro, do diálogo corporal, em conexões heterogêneas, o capoeirista


133coloca-se continuamente à prova <strong>de</strong> si mesmo, acessando um processo <strong>de</strong>conhecimento <strong>de</strong> si e transformação contínua, que produz singularida<strong>de</strong> nas formas<strong>de</strong> ser e viver, em um exercício <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. De acordo com Pepinha,A capoeira não tem como não ser um movimento <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, (...) Na rodavocê tá apren<strong>de</strong>ndo - e brincando - como é que se liberta <strong>de</strong>sse sistema. Alié lugar disso, por que ali você equilibra o mais forte com o mais fraco e todomundo mostra a sua beleza, botando as coisas nos lugares. Mas a genteequilibra isso ali <strong>de</strong>ntro... Ali você consegue cuidar da energia da roda. Édifícil, você com a bateria, mudar a energia do mundo... uai, só Jesus Cristo(risos). (...) Com certeza você reproduz isso na roda gran<strong>de</strong> da vida: vocênão vai tomar rasteira <strong>de</strong> <strong>de</strong>scuidado... enten<strong>de</strong> como é que é o negócio?(PROFESSOR PEPINHA) 88A capoeira produz um movimento <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, pois, no jogo <strong>de</strong> relaçõesestratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se engendra na roda, há um processo <strong>de</strong> equilíbrio <strong>de</strong>forças e cada um tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar, mostrar sua beleza, criarnovas formas <strong>de</strong> escapar. Com a experiência <strong>de</strong>sse equilíbrio <strong>de</strong> forças e <strong>de</strong> energiana roda, o capoeirista, à medida que conquista a malícia, alcança um centramento,uma forma <strong>de</strong> pertencimento a si, <strong>de</strong> maneira que o po<strong>de</strong>r que se tem sobre simesmo se intensifica. A experiência da capoeira funciona como catalisador para queo capoeirista possa se conhecer, se transformar e alcançar certo modo <strong>de</strong> ser, umaforma singular <strong>de</strong> lidar com a vida. Emerge um processo <strong>de</strong> similar à conversão a si,a produção <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> ser que escapa a <strong>de</strong>pendências e sujeições.Consi<strong>de</strong>ramos que o processo <strong>de</strong> conquista da malícia na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>tem diversos pontos <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong> com as artes da existência vivenciadas nomundo greco-romano. A produção da malícia é uma prática infinita, um processoque potencializa o conhecimento <strong>de</strong> si para se transformar continuamente,engendrando singularida<strong>de</strong>. Essa produção não é uma experiência individual, masconstituída na relação com o outro, em um processo eminentemente coletivo. Namedida em que são alcançados maiores níveis na conquista da malícia, acentua-seo compromisso <strong>de</strong> orientar e acompanhar novos capoeiristas nesse percurso, o quepropicia a invenção, tanto no âmbito individual quanto coletivo. Como nas artes daexistência, também na capoeiragem há articulações com a política. Na experiênciada Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> Lenço <strong>de</strong> Seda, observamos a emergência <strong>de</strong>intervenções micropolíticas em Timóteo, com a irrupção <strong>de</strong> acontecimentos queproduzem diferenças na vida <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong>.88 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006


134Os acontecimentos que emergem hoje articulados à capoeiragem em Timóteosão diferentes daqueles produzidos nas décadas <strong>de</strong> 80 e 90, principalmente emrelação à sua abrangência, pois não abarcam gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas, comofazia, por exemplo, a Festa das Crianças que chegou a ter a participação <strong>de</strong>aproximadamente 12 mil pessoas. Contemporaneamente os acontecimentos sãopontuais e menores, mas nem por isso menos potentes: tal como antes, emergemem campos <strong>de</strong> <strong>de</strong>smultiplicação causal, com rompimento das evidências em umprocesso <strong>de</strong> produção coletiva que produz abertura <strong>de</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s. Asresistências continuam a pulular nos recantos vazios, seja no contexto das escolas,do grupo ou da cida<strong>de</strong>.Durante o período <strong>de</strong> nossa pesquisa foi possível presenciar e participar <strong>de</strong>alguns <strong>de</strong>sses acontecimentos, como o Encontro <strong>de</strong> Pesquisadores e o Projeto <strong>de</strong>Recuperação e Conservação <strong>de</strong> Acervo Histórico da Associação, financiado peloFundo Estadual <strong>de</strong> Cultura. Ambos funcionaram no grupo como catalisador <strong>de</strong> novasintervenções na comunida<strong>de</strong>. Tomando como exemplo o Projeto <strong>de</strong> Recuperação eConservação <strong>de</strong> Acervo Histórico, po<strong>de</strong>mos observar que, para sua implementação,foi ativado o processo <strong>de</strong> criação coletiva para organizar os documentos do grupo,coletar novos documentos e relatos das pessoas da comunida<strong>de</strong>. Os capoeiristas daLenço <strong>de</strong> Seda organizaram e realizaram um encontro com convidados <strong>de</strong> diferentessegmentos, para discutir a importância da recuperação <strong>de</strong>sse acervo para a cida<strong>de</strong>.Novas conexões começaram a se produzir: com professores do curso <strong>de</strong> História docentro universitário local, com representantes <strong>de</strong> alguns movimentos sociais,educadores e outros.Assim, inicia-se um novo processo <strong>de</strong> intervenção sócio-política, que tem nacapoeiragem um vetor <strong>de</strong> criação coletiva, nos quais emergem diferentes formas <strong>de</strong>análise e ação, cujos acontecimentos futuros não po<strong>de</strong>mos prever. Tais processosfuncionam com um tipo <strong>de</strong> auto-gestão, organização sem um ponto central paradispor os elementos ou esquadrinhar as ações, ao contrário: possibilitandodiferentes conexões com <strong>de</strong>sdobramentos rizomáticos. (GUATTARI; ROLNIK, 2005)Ressaltamos que é impossível mensurar o efeito <strong>de</strong>sses acontecimentos queemergem com a experiência da capoeira contemporânea da Lenço <strong>de</strong> Seda nacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo, nem é esse nosso intuito. Contudo, enten<strong>de</strong>mos que eles po<strong>de</strong>mfuncionar como “uma pedra minúscula que provoca no pára-brisa um impacto


135microscópico, o qual, no entanto, po<strong>de</strong> fazer com que o conjunto do vidro arrebente”(GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 310).Enfim, consi<strong>de</strong>ramos que as resistências na capoeira contemporâneaemergem com o processo <strong>de</strong> conquista da malícia engendrada na roda, on<strong>de</strong> ocorpo em festa produz ritornelos complexos e são abertos campos <strong>de</strong> infinitaspossibilida<strong>de</strong>s, que po<strong>de</strong>m alcançar dimensões sócio-políticas, “nas voltas que omundo <strong>de</strong>u, nas voltas que da” 89 . Quando finda uma roda <strong>de</strong> capoeira, oscapoeiristas entoam o canto <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida movimentando-se coletivamente emcírculo. Nesse momento, as duplas po<strong>de</strong>m ainda fazer um último jogo,simultaneamente encontro e <strong>de</strong>spedida no diálogo corporal. Trazemos oscapoeiristas da Lenço <strong>de</strong> Seda para tentar encerrar este trabalho como se encerraa roda, ensejando novos diálogos:A<strong>de</strong>usBoa viagemA<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>usBoa viagemSer um bom capoeirista é manter a tradição, que sempre está renovandocom um movimento. É a gente procurar criar as coisas porque, muitasvezes, certos movimentos eu faço e ninguém consegue fazer igual.(CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 90 .Mas eu acho que antes <strong>de</strong> tudo ele é um cuidador. Ele é um educador, nãoum educador <strong>de</strong> discípulo, mas um cuidador <strong>de</strong> pessoas (PROFESSORPEPINHA) 91 .A<strong>de</strong>usBoa viagemA<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>usBoa viagemA capoeira é uma luta que nasce na dança, e é um jogo também. Umprocesso <strong>de</strong> jogo entre as pessoas, <strong>de</strong> aprendizagem que o outro é capazjunto comigo, que eu sou capaz junto com o outro (PROFESSOR MAIA) 92 .A capoeira representa sabedoria pra vida. Não tem uma criança que façacapoeira que não fique mais centrada; ela amadurece. (...) Ocomportamento muda. O menino fica até mais aberto na relação, mas elefica também mais centrado e mais maduro (MADRINHA FLOR) 93 .A<strong>de</strong>usBoa viagem89Corrido cantado na roda. Informação verbal obtida em observação participante90 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.91 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006.92 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.93 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 28/09/2006.


136A<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>usBoa viagemA roda é a roda do mundo mesmo. Ali tá tudo, estão as pessoas, <strong>de</strong> váriascida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> sexo diferente, e tá muito mais do que essas pessoas. Ali é umacoisa maior que nós. É como se a gente estivesse num lugar em quefôssemos mais (PROFESSOR PEPINHA) 94 .A capoeira <strong>de</strong>vagarzinho vai chegando com tanta cultura diferente, em tantasocieda<strong>de</strong> diferente, então, no final, vai colocar uma socieda<strong>de</strong> na frente daoutra: é o brasileiro na frente do russo, é o russo na frente do americano, éo americano na frente do israelense, <strong>de</strong>ntro daquela linguagem que é acapoeira; <strong>de</strong>ntro daquela linguagem <strong>de</strong> corpos (PROFESSOR MAIA) 95 .A<strong>de</strong>usBoa viagemA<strong>de</strong>us, a<strong>de</strong>usBoa viagemEu acho que a capoeira é, o tempo todo, uma reinvenção. Ela é na verda<strong>de</strong>a subversão do aqui e agora. Subversão da expectativa dada, da préexpectativa,ela é a subversão da pós-expectativa. Ela é a recriação docorpo, em todo momento, numa linguagem que necessariamente vai sernova, surpreen<strong>de</strong>nte e provocadora (MESTRE REGINALDO VÉIO) 96 .Eu vou m’embora,Boa viagemEu vou com Deus,Boa viagemNossa SenhoraBoa viagemIê.94 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.95 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.96 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.


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