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na palma da minha mão

Na palma da minha mao_ temas afro-brasileiros e ... - RI UFBA

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<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong>


Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> BahiareitorDora Leal Rosavice-reitorLuiz Rogério Bastos LealEditora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> BahiadiretoraFlávia Goullart Mota Garcia Rosaconselho editorialtitularesAngelo Szaniecki Perret SerpaAlberto Brum NovaesCaiuby Álves <strong>da</strong> CostaCharbel Niño El HaniDante Eustachio Lucchesi RamacciottiJosé Teixeira Cavalcante FilhosuplentesEveli<strong>na</strong> de Carvalho Sá HoiselCleise Furtado MendesMaria Vi<strong>da</strong>l de Negreiros Camargo


VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIOR<strong>na</strong><strong>palma</strong><strong>da</strong><strong>minha</strong><strong>mão</strong>temas afro-brasileiros equestões contemporâneasIlustrações de Rodrigo SiqueiraEDUFBASalvador, 2011


©2011 by Vilson Caetano de Sousa JuniorDireitos para esta edição cedidos à Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia.Feito o depósito legal.Projeto Gráfico, Editoração e Arte Fi<strong>na</strong>lGabriela NascimentoIlustração <strong>da</strong> CapaRodrigo SiqueiraRevisãoEduardo RossSistema de Bibliotecas - UFBASousa Junior, Vilson Caetano de.Na <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> : temas afro-brasileiros e questões contemporâneas / VilsonCaetano de Sousa Junior ; ilustrações de Rodrigo Siqueira. - Salvador : EDUFBA, 2011.166 p. : il.ISBN 978-85-232-0796-01. Candomblé - Rituais. 2. Cultos afro-brasileiros. 3. Religião e sociologia. 4. Antropologia.5. Modernismo. I. Siqueira, Rodrigo. II. Título.CDD - 299.67Editora filia<strong>da</strong> àEditora <strong>da</strong> UFBARua Barão de Jeremoabos/n - Campus de Ondi<strong>na</strong>40170-115 - Salvador - BahiaTel.: +55 71 3283-6164Fax: +55 71 3283-6160www.edufba.ufba.bredufba@ufba.br


A nossos pais e mães de quem ouvimosas primeiras histórias...A todos que estão nos aju<strong>da</strong>ndo a sonharo Projeto Brasil com Artes.


sumário9 • Prefácio13 • Introdução19 • Candomblé e moderni<strong>da</strong>de23 • As religiões de matriz africa<strong>na</strong> como lugar deconstrução de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia29 • A ciência e a tecnologia que os africanos(as)inventaram37 • A <strong>na</strong>tureza como ser de deus41 • Africanos, seus descedentes e economia <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de desalvador45 • Ancestrali<strong>da</strong>de afro-brasileira53 • Candomblé e destino entre a advinhação e a divi<strong>na</strong>ção59 • Em torno <strong>da</strong> noção de sacrifício <strong>na</strong>s religiõesafro-brasileiras67 • Candomblé para além do bem e do mal75 • Candomblé e saúde79 • Territoriali<strong>da</strong>des afro-brasileiras87 • Odé, o dono <strong>da</strong> carne


93 • Os gêmeos e a inversão <strong>da</strong> mesa99 • Comi<strong>da</strong> de santo e comi<strong>da</strong> de branco107 • Ao rei do mundo…113 • Quem vai salvar oyá do fogo?121 • A artista do universo127 • Yemanjá, a mãe dos orixás133 • Iya agba yin, a mãe mais velha141 • O ano bom para as religiões de matriz africa<strong>na</strong>147 • A guerra e a paz, a fome e a abudância, o pilão e oinhame <strong>na</strong> terra de elegigbô151 • Orixá ilu e orixá igbô159 • À lider <strong>da</strong>s mulheres163 • Referências


prefácioAo lado de uma marcante produção intelectual, a exemplo de livroscomo: O Banquete Sagrado e Nagô: a <strong>na</strong>ção de ancestrais itinerantes,Vilson Caetano de Sousa Júnior, professor <strong>da</strong> Escola de Nutrição <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal <strong>da</strong> Bahia (Ufba), dissemi<strong>na</strong> o conhecimento sobre aspopulações afro-brasileiras, no jor<strong>na</strong>l A Tarde, de Salvador <strong>da</strong> Bahia. Assim,reúne, nesta publicação, muitas dessas comunicações, que tenho asatisfação de introduzir com uma palavra de sau<strong>da</strong>ção.A formação universitária tanto <strong>na</strong> Bahia, especialmente com oprofessor Vivaldo <strong>da</strong> Costa Lima, como, igualmente, <strong>na</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong>deCatólica de São Paulo (PUC/SP) e <strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de EstadualPaulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), possibilitou sua capacitaçãoem investigar temas e problemas do fenômeno religioso do candomblé.Além do conhecimento discursivo sobre a matéria, Vilson tem participadobastante em núcleos temáticos, a exemplo do Centro de Estudos <strong>da</strong>sPopulações Afro e Indíge<strong>na</strong>s America<strong>na</strong>s (Cepaia), onde foi diretor, e <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de do Estado <strong>da</strong> Bahia (Uneb), uma universi<strong>da</strong>de que já <strong>na</strong>sceucomprometi<strong>da</strong> com a cor e com o semi-árido baiano. Na sua uni<strong>da</strong>deacadêmica atual, a Escola de Nutrição <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahia,Vilson participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação eCultura (NEPAC). O estudo sobre a alimentação, a comi<strong>da</strong>, tem sido uma<strong>da</strong>s suas áreas prediletas de investigação científica.Vilson acompanhou a implantação <strong>da</strong> Lei 10.639, de 2003, integrao Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia e assessorou a Fun<strong>da</strong>çãoCultural Palmares, particularmente no que concerne ao reconhecimen-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 9


to de terreiros como patrimônio material e imaterial afro-brasileiro. Omagistério superior, incluindo as ativi<strong>da</strong>des de ensino e pesquisa, e a participaçãoem enti<strong>da</strong>des volta<strong>da</strong>s para a compreensão <strong>da</strong> fenomenologiaafrica<strong>na</strong> no Brasil, marcam o esforço intelectual de Vilson, que induz ostemas publicados em A Tarde.O presente volume encerra um conjunto qualitativo de contribuições<strong>da</strong> maior importância para o conhecimento <strong>da</strong>s religiões afro-brasileirasreorganiza<strong>da</strong>s <strong>na</strong> comuni<strong>da</strong>de baia<strong>na</strong>. Destaco a maneira como esteestudioso baiano sabe transmitir ao escrever com clareza a comunicação,explicando o que se passa e o que permanece <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros.Ressalte-se o seu caráter didático. Como professor e conhecedor <strong>da</strong> matéria,sabe informar com manifesta vontade de fazer o leitor conhecer oscomponentes <strong>da</strong>s religiões africa<strong>na</strong>s. Predomi<strong>na</strong> em todo o texto o caráterdidático de dissemi<strong>na</strong>dor do conhecimento antropológico <strong>da</strong>s religiõesafrica<strong>na</strong>s inseri<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s circunstâncias <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção baia<strong>na</strong>.Conforme a diretriz didática a que se propôs, explica inicialmenteo titulo <strong>da</strong> publicação: Tudo <strong>na</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> passa pelas<strong>mão</strong>s, a começar pelo jogo de búzios arremessado pelo sacerdote por ocasiãodo primeiro contato do cliente com a sua ancestrali<strong>da</strong>de. É beijandoas <strong>mão</strong>s que os iniciados trocam a benção. É através <strong>da</strong> imposição <strong>da</strong>s<strong>mão</strong>s que sua cabeça é adora<strong>da</strong> durante a iniciação. E prossegue no uso<strong>da</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong>s <strong>mão</strong>s, quando passa a considerar a comi<strong>da</strong> e muitos outrossegmentos.No temário, inclui questões e contestações como a moderni<strong>da</strong>dedo candomblé, sua atualização e mu<strong>da</strong>nça, o desconfortável e polêmicosincretismo religioso afro-católico. É preciso, entretanto, não esquecerque a Bahia é uma formidável mistura! Ressalta a contribuição africa<strong>na</strong>para a ciência, a tecnologia e para a origem <strong>da</strong>s práticas médicas. Com oressurgimento do interesse pela cultura afro-brasileira, atenção merece aciência e a tecnologia. A noção integra<strong>da</strong> do corpo, a imagem emblemática<strong>da</strong> cobra, que é o símbolo de crescimento, <strong>da</strong> prosperi<strong>da</strong>de, como tudo10 • vilson caetano de sousa júnior


que é alongado ou cresce para cima. A cobra, chama<strong>da</strong> Dan, é símbolo <strong>da</strong>ciência africa<strong>na</strong> que se movimenta em círculos no sentido anti-horário,como a ro<strong>da</strong> nos terreiros de candomblé, observa.Os africanos quando vieram para o Brasil já conheciam o uso do ferroem contraste com o desconhecimento dos indíge<strong>na</strong>s que aqui viviam.A ideia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como um todo integrado, o conhecimento <strong>da</strong>s curas e doenças,o uso nutricio<strong>na</strong>l do inhame, o pilão e a tecelagem, a alta consideração<strong>da</strong>s árvores são muitos dos universais <strong>da</strong> cultura do pleno conhecimentodos africanos. A distinção entre oferen<strong>da</strong> e sacrifício. Oferen<strong>da</strong>é troca, recordem-se que aos noivos cabiam alianças e brindes. Pois bem,existem muitos outros conceitos, significados, símbolos, práticas e situações<strong>da</strong> civilização africa<strong>na</strong> que o nosso autor Vilson vai escrevendo eexplicando para nutrir o leitor.Vilson insiste <strong>na</strong> concepção básica <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de. Concepção devital importância para as religiões de origem africa<strong>na</strong> que foram reorganiza<strong>da</strong>sno Brasil. Antes que um conceito, a ancestrali<strong>da</strong>de é a origem deum povo. Compara-o à concepção grega do arké. Ancestrali<strong>da</strong>de é começo:Ele remete ao início de um determi<strong>na</strong>do grupo, não a qualquer início,mas aos primórdios, momento fun<strong>da</strong>nte, tempo mítico imemorial, perdido(ou achado) no tempo cronológico, revivido no rito que cria todosos tempos, nos conduzindo a fazer uma experiência de um momento tãohumano que só poderia ser divino. Continua com meridia<strong>na</strong> clareza a explicação<strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de que se expressa nos velhos e velhas, chamadosde tios e tias. Compreen<strong>da</strong>-se porque os anciãos e anciãs sejam consideradoscomo patrimônio em uma comuni<strong>da</strong>de de terreiro. Eles zelam pelatradição, aju<strong>da</strong>m a mantê-la. Ancestrali<strong>da</strong>de vai além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, manifesta--se <strong>na</strong> morte entendi<strong>da</strong> não como aniquilamento, mas como continui<strong>da</strong>deno mundo dos antepassados que sempre estarão presentes através <strong>da</strong>noção de família, reinventados pelas comuni<strong>da</strong>des-terreiro”.Ao lado <strong>da</strong> escrita, os visuais do artista plástico amazonense RodrigoSiqueira, inúmeras vezes premiado e testado em car<strong>na</strong>vais, emerge <strong>na</strong><strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 11


cultura afro-baia<strong>na</strong> com uma criação diferencia<strong>da</strong>. Interpreta a cosmogoniae a liturgia do candomblé com uma inovadora interpretação emblemáticaque muito enriquece o texto. Parabéns ao autor e ao ilustradorpela oferen<strong>da</strong> <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> pintura.Salvador, 1 de junho de 2011.Dia <strong>da</strong> instalação <strong>da</strong> Academia de Ciências <strong>da</strong> BahiaEdivaldo M. BoaventuraProfessor Emérito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Bahiae Diretor-Geral de A Tarde12 • vilson caetano de sousa júnior


introduçãoTudo <strong>na</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> passa pelas<strong>mão</strong>s, a começar pelo jogo de búzios arremessadopelo sacerdote por ocasião do primeiro contato do“cliente” com a sua ancestrali<strong>da</strong>de. É beijando as<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 13


<strong>mão</strong>s que os iniciados trocam a bênção. É através <strong>da</strong> imposição <strong>da</strong>s <strong>mão</strong>sque sua cabeça é adora<strong>da</strong> durante a iniciação. É ain<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong>s <strong>mão</strong>sabertas que o povo de candomblé recebe os chamados axés, elementosrituais que incluem as insígnias dos ancestrais e algumas sementesleva<strong>da</strong>s à boca para serem mastiga<strong>da</strong>s. É pelas <strong>mão</strong>s que passa to<strong>da</strong> comi<strong>da</strong>e não há oferen<strong>da</strong> que não passe por ela. É <strong>na</strong>s <strong>mão</strong>s de ca<strong>da</strong> pessoa nomomento <strong>da</strong> iniciação que a comuni<strong>da</strong>de imprime a sua marca através detatuagens rituais ou linhas que ora se encontram, ora ca<strong>minha</strong>m lado alado, ou formam círculos.As <strong>mão</strong>s especificamente, como a cabeça, o tronco, os braços, as costase os pés, recebe culto especial <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros e a elas sãodedica<strong>da</strong>s sacrifícios. Em alguns rituais, o gesto lustral de lavar as <strong>mão</strong>sequivale a todo corpo, talvez uma evidência <strong>da</strong> boa relação dessas religiõescom os cristãos novos. Sem falar no fato de que no auge <strong>da</strong> perseguiçãocontra o candomblé <strong>da</strong> Bahia, o Xangô de Per<strong>na</strong>mbuco, o Batuque doRio Grande do Sul e outras expressões <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong>, a<strong>palma</strong> <strong>da</strong>s <strong>mão</strong>s produziu o “candomblé rezado baixo”, substituindo osatabaques e outros instrumentos de percussão.Se é ver<strong>da</strong>de a afirmação de que as linhas que formam as <strong>mão</strong>s é umaespécie de linguagem sobre a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> pessoa, é digno de nota que para asreligiões de matriz africa<strong>na</strong>, todos os caminhos se encontram <strong>na</strong> <strong>palma</strong><strong>da</strong> <strong>mão</strong> para de lá partir. Por isso, tudo passa por elas. As <strong>mão</strong>s, com seusrespectivos tracejados, são uma ver<strong>da</strong>deira encruzilha<strong>da</strong> que somente aentende quem as toma como ponto de parti<strong>da</strong>. Este é o primeiro sentidodesse trabalho intitulado: Na <strong>palma</strong> de <strong>minha</strong> <strong>mão</strong>: temas afro-brasileirose questões contemporâneas. Significa dizer que todos temos uma ver<strong>da</strong>de,ou melhor, que não há ver<strong>da</strong>des fecha<strong>da</strong>s, ou ain<strong>da</strong> que determi<strong>na</strong>dosconteúdos, por mais distantes que pareçam estar de nossas concepções,estão ao contrário, ao nosso alcance.Este livro é fruto, assim, de pesquisas realiza<strong>da</strong>s há quase de vinteanos em comuni<strong>da</strong>des-terreiros. Durante este período, no qual foram14 • vilson caetano de sousa júnior


utilizados referenciais <strong>da</strong>s Ciências Sociais, em particular <strong>da</strong> Antropologia,podemos ouvir mitos e histórias muitas vezes fragmenta<strong>da</strong>s <strong>na</strong> memóriade anciãos e anciãs, chamados tios e tias, presentes em algumascomuni<strong>da</strong>des que insistem em manter uma espécie de pacto de silênciochamado segredo, a fim de proteger os conteúdos de sua religião. Estetema, nos últimos anos, entrou <strong>na</strong> pauta de alguns estudos que acabaramdesautorizando ou minimizando suas funções dentro do grupo religioso.O contato com estes tios e tias, como alguém inserido no contextoreligioso me permitiu reforçar a ideia de que, ao menos no mundo afro--brasileiro, nem tudo o que se fala corresponde ao que realmente é. Emoutras palavras, há uma espécie de faz de conta, utilizado muitas vezespara se livrar dos cientistas sociais. Mas o trabalho está aí. Ele, além detratar de assuntos específicos <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> através debreves artigos, demonstra a capaci<strong>da</strong>de destas religiões de dialogar comquestões contemporâneas relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s à saúde, à nutrição, à tecnologia,à economia, à ética, à filosofia, e mesmo à própria ciência, aquela esboça<strong>da</strong>no século XIX que não foi capaz de reconhecer os múltiplos saberesafricanos.Assim, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, este trabalho é fruto de conversas e observações<strong>da</strong>s práticas cotidia<strong>na</strong>s de grupos sociais onde as palavras pronuncia<strong>da</strong>sde forma correta são vistas como principal elemento de transmissão doconhecimento e o meio mais eficaz de se restabelecer a ordem num mundoonde se entrelaçam elementos políticos, sociais, culturais, econômicose religiosos, como uma espécie de teia onde <strong>na</strong><strong>da</strong> acontece fora dessaideia de sistema. Ele é resultado <strong>da</strong> escuta atenta motiva<strong>da</strong>, às vezes, pelaqueixa, ou pela mágoa de um “velho” ou “velha” de ter sido constrangidopor ser negro, pobre e de candomblé, mas também <strong>da</strong> escuta de falasostensivas de um orgulho negro reconstruído <strong>na</strong> diáspora, como o relatoque ouvimos sobre a frase de uma sacerdotisa, filha de Yemanjá, MãePastora do tradicio<strong>na</strong>l terreiro do Bonocô, fun<strong>da</strong>do pela sua mãe consanguíneaem 1943, que fazia questão de lembrar: “Sou Alaketu, e Alaketu<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 15


não dá para trás.” Ou do relato de histórias conta<strong>da</strong>s pela célebre GaiakuLuíza, que, do Alto <strong>da</strong> Leva<strong>da</strong>, um dos bairros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cachoeira,após duas horas de entrevista falando sem parar, nos afirmou: “A noitepode voltar por volta <strong>da</strong>s 5 horas <strong>da</strong> tarde. Esse horário não tem ninguémaqui. Fico aqui em cima sozinha e aí eu posso falar mais”. Foi dessa sacerdotisa,que faleceu com 96 anos de i<strong>da</strong>de, que ouvimos: “os vodus mu<strong>da</strong>mporque o mundo mudou.” A partir dessa fala começamos a pensar <strong>na</strong>dinâmica <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong>, no significado de seu diálogoe inserção no mundo moderno e contemporâneo como garantia de suaprópria continui<strong>da</strong>de, e, sobretudo, <strong>na</strong> consciência que as lideranças religiosas,ao menos as mais antigas que tivemos contato, tinham sobre isso.Consciência que não significa abrir <strong>mão</strong> dos conceitos ancestrais e nemdos procedimentos litúrgicos e ritualísticos.No decorrer desses anos tivemos acesso a histórias de tias descendentesde africanos que insistiam que algumas rezas e partes de rituaiscomplexos de sua religião fossem registrados em folhas de papel, posteriormenteorganiza<strong>da</strong>s em cadernos. Isso aju<strong>da</strong>-nos a demonstrar que, aocontrário do que se afirma, o registro nunca constitui problema para osafricanos e seus descendentes, afi<strong>na</strong>l eles próprios desenvolveram múltiplasformas de fazer isso, dentre elas o desenho. Assim, não poucas são asvezes que alguns desses tios ou tias pedem que se traga um papel, sobre oqual, com a aju<strong>da</strong> de um lápis, eles mesmos vão produzindo formas, oupedem que a pessoa que está diante dele o faça. Desta maneira, além dotexto escrito a partir <strong>da</strong>s falas, explicações e vivências que ouvimos, estelivro traz outro tipo de linguagem: a ilustração. Os desenhos abrem, assim,ao leitor um leque de possibili<strong>da</strong>des de interpretações, aju<strong>da</strong>ndo-oa entender o conteúdo do texto mesmo antes de uma leitura prelimi<strong>na</strong>ratravés de uma <strong>da</strong>s construções mais antigas que se tem notícia <strong>na</strong> história<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.É digno de nota que os primeiros grupos humanos acreditavam <strong>na</strong>possibili<strong>da</strong>de de encantar e trazer presente a caça lhe desenhando. Ideia16 • vilson caetano de sousa júnior


semelhante não poderia estar por trás <strong>da</strong> leitura que procura <strong>da</strong>r sentido àvi<strong>da</strong> através dos traços que formam desenhos <strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>mão</strong>? As ilustraçõesentão estão aí e ao nosso alcance. Basta mergulharmos nelas paradescobrirmos que os conteúdos <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> não sãotão estranhos e não estão muito longe de nossa reali<strong>da</strong>de, ao contrário,estão ao nosso alcance como as linhas que formam os pontos cardeais;como as linhas que se juntam <strong>na</strong> encruzilha<strong>da</strong> de onde partem novamente;como as linhas imaginárias que nos permitem perceber as rotas doscorpos celestes; como as linhas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que demonstra que tudo é cíclico;como as linhas que formam uma grande teia, base por excelência do pensamentoafricano; como as linhas <strong>da</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> nossa <strong>mão</strong>. Basta assimsegui-las para, se não encontramos ver<strong>da</strong>des sobre o mundo, encontrarmosparte dessa ver<strong>da</strong>de em nós mesmos.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 17


candomblé e moderni<strong>da</strong>deO tema “candomblé e moderni<strong>da</strong>de” reabre adiscussão em torno de algo de vital importânciapara a manutenção <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong>no Brasil: a tradição. Conceito erroneamente<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 19


entendido como algo que “resiste ao tempo” e às mu<strong>da</strong>nças. Já houve autoresque nos anos 50 consideraram estas religiões como uma espécie de“ilha” e desse isolamento dependia a sua sobrevivência. Fato é que, <strong>na</strong>scomuni<strong>da</strong>des-terreiros, o tema <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, embora não apareça deforma sistematiza<strong>da</strong>, está presente o tempo todo e é utilizado em váriossignificados. Para alguns tios e tias, a afirmação: “hoje o candomblé estámoderno”, de um lado soa como crítica aos mais “novos” que, ignorandoo aspecto secreto e iniciático destas religiões, criam seus próprios modelosrituais, ignorando o tempo, mestre por excelência destas religiõesonde nunca cessa o aprendizado. Por outro lado, esta fala também significanão ape<strong>na</strong>s as mu<strong>da</strong>nças pelas quais estas religiões passaram, mas tambémaos “novos tempos”, quando se é mais preciso passar, por exemplo,pelo constrangimento <strong>na</strong> Delegacia de Jogos e Costumes para se tirar uma“licença” para bater candomblé. Ou ain<strong>da</strong> pode significar a visibili<strong>da</strong>deque estas religiões alcançaram <strong>na</strong> mídia, resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as críticas à mesma,que teima em lhes apresentarem como algo exótico. Fato é que desdecedo africanos e africa<strong>na</strong>s e seus descendentes expostos à escravidão, ao sedepararem com universos simbólicos diversos ao invés de fecharem-se,foram capazes de abrir uma série de diálogos, pois sabiam que disso dependiaa manutenção de suas religiões tradicio<strong>na</strong>is. O resultado foi a construçãode modelos ritualísticos acerta<strong>da</strong>mente chamados pelo ProfessorDoutor Vivaldo <strong>da</strong> Costa Lima de “<strong>na</strong>ções de candomblé”, espécie de modeloonde questões étnicas reforça<strong>da</strong>s como motivo de separação dentreos diversos grupos africanos aqui entrados, foram prescindi<strong>da</strong>s por questõesritualísticas sem perder suas referências, ao contrário, no processo deconstituição <strong>da</strong>s religiões afro-brasileiras, elementos congo, angola, jeje,malês e <strong>na</strong>gôs se aju<strong>da</strong>ram mutuamente. O resultado foi a construção deuma religião que, se <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>s vezes abriu <strong>mão</strong> <strong>da</strong> organização clânica,não abdicou, por exemplo, do conceito de família para manter-seviva no Novo Mundo. Assim, estes homens e mulheres foram capazes depreservar rituais de iniciação, o “espaço mato” de vital importância para20 • vilson caetano de sousa júnior


os terreiros, rios, uma língua ritual, cantigas, palavras de encantamento,uma culinária ritual, dentre outros elementos. O que falar do diálogoestabelecido com o catolicismo português vindo <strong>da</strong> península ibérica jáenriquecido pelos vários contatos ali realizados?Isso vale também para asérie de diálogos realiza<strong>da</strong> com os povos indíge<strong>na</strong>s, sem falar nos judeuse ciganos. Assim, aos poucos a velha teoria <strong>da</strong> dissimulação onde os santoscatólicos ganhavam máscaras africa<strong>na</strong>s foi substituí<strong>da</strong> pela imagemde um catolicismo negro e ao mesmo tempo de uma religião onde estesmesmos santos são cultuados ao lado dos orixás, vodus e ninkices, fatoeste que, contrariando o discurso antissincretista, não tor<strong>na</strong> estas religiõesmenos tradicio<strong>na</strong>is, mas ilustra a capaci<strong>da</strong>de que reis, príncipes, princesas,rainhas, sacerdotes e sacerdotisas tiveram de exercer a sua liber<strong>da</strong>dedentro dos limites possíveis. Isso nos aju<strong>da</strong> a pensar a tradição como algoaberto ao tempo e contemporâneo à moderni<strong>da</strong>de. É essa abertura que faz<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros espaços de diálogo e <strong>da</strong> tradição manti<strong>da</strong> pelosmais velhos algo dinâmico que resiste até às previsões que apostam no desaparecimentodessas religiões ante aos modismos e tendências que nãoparam de surgir. Ante a redução do tempo <strong>na</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des, um agradoque deman<strong>da</strong> tempo para ser cultuado continua presente, reinventando--se e inventando-se a todo momento, não por ter perdido algo, nem pormedo de afastar-se de seus princípios mantenedores de identi<strong>da</strong>de, maspor entender que a melhor forma de estar no mundo é inserindo-se nelecomo sempre fez desde o início, sendo capaz de construir algo contemporâneoe <strong>da</strong>r respostas a questões huma<strong>na</strong>s através de uma leitura sagra<strong>da</strong>,cumprindo, assim, uma de suas maiores funções: estreitar os laços entre ahumani<strong>da</strong>de e o divino.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 21


as religiões dematriz africa<strong>na</strong> comolugar de construçãode ci<strong>da</strong><strong>da</strong>niaO tema <strong>da</strong> memória é um dos que nos últimosanos vem ganhando destaque, seja no âmbito <strong>da</strong>sCiências Huma<strong>na</strong>s, seja no <strong>da</strong>s Ciências Sociais.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 23


Fato é que para o chamado “povo de santo”, ou “gente de candomblé”,também chamado pelo nome “povo de axé”, isto diz respeito a algo bastanteamplo, diretamente ligado à vi<strong>da</strong> dos ancestrais e antepassados,homens e mulheres, profun<strong>da</strong>mente conhecedores de suas culturas deorigem que organizaram as chama<strong>da</strong>s religiões de matrizes africa<strong>na</strong>s noBrasil, aqui entendi<strong>da</strong>s como uma plurali<strong>da</strong>de que engloba o Xambá e oXangô do Recife, o Jarê <strong>da</strong> Chapa<strong>da</strong> Diamanti<strong>na</strong>; os candomblés <strong>na</strong>gôsdo Recôncavo, o Batuque do Rio Grande do Sul, o Tambor de Mi<strong>na</strong> doMaranhão, o Nagô Per<strong>na</strong>mbucano, e o afamado candomblé baiano.Já há algum tempo vários autores se ocuparam em demonstrar a importânciados espaços terreiros como mantenedores de uma identi<strong>da</strong>de,não necessariamente fragmenta<strong>da</strong> pelo drama que representou a escravidãoaos povos africanos, mas também uma identi<strong>da</strong>de reconstruí<strong>da</strong> deforma criativa a partir dos vários elementos simbólicos fornecidos pormatrizes culturais diversas que desde cedo marcaram a formação de nossacultura.Fato é que nos espaços reconstruídos por homens negros e mulheresnegras, essa memória constitui uma referência para pensar to<strong>da</strong> a históriado grupo social a que se refere. Desta maneira, ela aparece articula<strong>da</strong> coma ideia de patrimônio, entendido também como um conceito dinâmicoque, como a memória, está arraigado em to<strong>da</strong>s as pessoas. Desta maneira,a memória é um patrimônio <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des, e nestas, o maiorpatrimônio são as pessoas, homens e mulheres marcados por estigmase preconceitos que desde cedo marcaram aqueles que trazem no corpocaracterísticas que a partir do século XIX lhes permitiram ser identificadoscomo incapazes, conduzindo-os a vários tipos de imobili<strong>da</strong>de, dentreelas a econômica e social. São, pois, estes indivíduos que nos últimosanos, a frente de comuni<strong>da</strong>des, vêm ca<strong>da</strong> vez mais se organizando, sejapara combater a intolerância, seja para pensar políticas de sobrevivência,ou ain<strong>da</strong> para captar recursos, este último um dos maiores problemas queaflige as religiões de matrizes africa<strong>na</strong>s.24 • vilson caetano de sousa júnior


As religiões de matrizes africa<strong>na</strong>s são, assim, lugar de reconhecimentoe construção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia ao menos para homens e mulheres negras.Certamente estas comuni<strong>da</strong>des podem cumprir papéis semelhantes paraos não negros. Com isso não estou dizendo que estes grupos sejam específicosdo homem e <strong>da</strong> mulher negra, ao contrário. Sei de sacerdotisasafro-brasileiras que no fim <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> tor<strong>na</strong>ram-se contritas fiéis <strong>da</strong> IgrejaMessiânica; assim como conheço descendentes de japoneses que estão àfrente de terreiros. O debate não é este, to<strong>da</strong>via há quase que um silêncioe isso tem se tor<strong>na</strong>do uma constante que ca<strong>minha</strong> para o esquecimentode uma questão diretamente liga<strong>da</strong> ao exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia: o ser negroe ser de candomblé. Diante do crescimento alarmante <strong>da</strong>s religiõesde matriz africa<strong>na</strong>, quando já se fala até em sua trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização, osilêncio sobre tal assunto está diretamente ligado às relações conflitivasque marcam a nossa socie<strong>da</strong>de entre os que se representam como brancose aqueles representados pelo grupo anterior como não branco. Relaçãoconflitiva escamotea<strong>da</strong> através de nossa dissimula<strong>da</strong> cordiali<strong>da</strong>de e harmoniasocial sobre a qual não gostamos nem sequer de falar. O silênciosobre esta relação, se no campo ideológico iguala brancos e não brancosatravés do discurso <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de, no plano político continua cimentandorelações de desigual<strong>da</strong>de no mundo do trabalho, educação, saúde, moradiae cultura. Em outras palavras, ser negro(a) e ser de candomblé, ou dequalquer outra religião de matriz africa<strong>na</strong>, e não ser negro e ser de candomblé,têm significados diferentes, porque, para os primeiros, este espaçocumpre a função de manter uma identi<strong>da</strong>de nega<strong>da</strong> cotidia<strong>na</strong>mentepelo racismo que acompanhou desde cedo a formação <strong>da</strong> cultura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.Isso se faz através de um sentimento de pertença à comuni<strong>da</strong>de, ondeo mito é parte do cotidiano. Na pesquisa realiza<strong>da</strong> <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Cachoeiraencontramos várias passagens onde isso aparece. Tratam-se de memóriasde tios e tias capazes de estar em dois lugares ao mesmo tempo; mulheresque tinham o poder de encantar-se <strong>na</strong> forma de pássaros, passar <strong>na</strong> chuvae não se molhar, e assim por diante.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 25


São, pois, estas memórias que continuam mantendo viva a chama <strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de dentro de homens e mulheres que desde cedo foram capazes deintervir no processo de aniquilamento de suas memórias representadopelo tráfico africano, e mais do que isso, capazes de construir respostascontemporâneas a partir de suas tradições, através de um diálogo abertocom tantas outras, produzindo a varie<strong>da</strong>de de modelos aqui chamadosde religiões de matrizes africa<strong>na</strong>s. Em qualquer um destes, é salutar observaro papel <strong>da</strong> memória como mantenedora de identi<strong>da</strong>de e, assim,garantia de luta pela ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia através de experiências de homens e mulheresnegros que trouxeram dentro de si a força que ain<strong>da</strong> hoje os fazemos maiores mantenedores <strong>da</strong> memória negra <strong>da</strong> diáspora <strong>na</strong>s Américas.26 • vilson caetano de sousa júnior


ogun


a ciência e a tecnologia queos africanos(as) inventaramPe<strong>na</strong> que a ideia tardia de ciência reelabora<strong>da</strong> noséculo XIX não foi capaz de incluir as contribuiçõeslega<strong>da</strong>s pelas diversas civilizações africa<strong>na</strong>s. Aocontrário, ao mesmo tempo em que se construía<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 29


uma ideia de saber baseado <strong>na</strong> comprovação através <strong>da</strong> experiência,também se produzia um discurso depreciativo sobre o homem e a mulhernegra, baseado em teorias que desautorizavam, dentre outras coisas,os seus corpos. Assim se afirmava que o continente africano não tinhahistória, por exemplo, ou reservava a este palavras preconceituosas,como primitivismo, ou pensamento infantil desprovido de qualquerveraci<strong>da</strong>de quando se referia ao saber <strong>da</strong>s religiões tradicio<strong>na</strong>is.No Brasil, a constituição <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> é contemporâneaa este episódio que, se outrora empurrava para o mundo do diaboas práticas africa<strong>na</strong>s, agora, através de uma falsa ciência, conde<strong>na</strong>va-seafricanos(as) e seus descendentes a viver num mundo construído à margemde um pensamento que acabava de se reinventar no fi<strong>na</strong>l do séculoXIX. A história <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> é assim, uma história deenfrentamentos constantes de discursos que desde cedo se silenciaramsobre o legado, continui<strong>da</strong>de ou mesmo reinvenção dos universos africanosfragmentados pela escravidão.Comecemos pelo Egito, que durante muito tempo foi representadoou fora do continente africano, ou como uma população branca. É bemcerta a ideia de que o pai <strong>da</strong> medici<strong>na</strong> é certamente africano, e não o gregoHipócrates. Os egípcios tinham uma visão integra<strong>da</strong> do corpo. Em outraspalavras, a mumificação só era possível graças não ape<strong>na</strong>s à crença <strong>na</strong>continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> após a morte, mas ao conhecimento de que o corpoforma um organismo, conjunto de partes integra<strong>da</strong>s. Isso perpassa amaioria do pensamento africano. É aquela ideia <strong>da</strong> teia a qual sempre nosreferimos. Talvez dos africanos e dos povos vizinhos com os quais desdecedo se relacio<strong>na</strong>ram ape<strong>na</strong>s restou a imagem <strong>da</strong> cobra como símbolo<strong>da</strong> medici<strong>na</strong>, interpreta<strong>da</strong> posteriormente como figura de traição. Paraalguns grupos africanos entrados no Brasil, por exemplo, ao contrário, acobra, chama<strong>da</strong> Dan, não é simplesmente um ser, mas famílias agrupa<strong>da</strong>ssob tal nome: o povo <strong>da</strong> cobra. A cobra é símbolo de crescimento, prosperi<strong>da</strong>de,como tudo que é alongado ou cresce para cima. O Antigo Reino30 • vilson caetano de sousa júnior


do Dahomé, Abomé ou Danxomé, atual República de Benin, acreditavaque estava assentado sobre o corpo de Dan, <strong>da</strong>í a origem do nome. Vamosencontrar a mesma imagem <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de São Luís do Maranhão, “ailha que vive circula<strong>da</strong> por uma grande cobra que morde a sua cau<strong>da</strong>.” Nodia em que Dan deixar de fazer esse movimento, a ilha desaparece. Dané símbolo <strong>da</strong> ciência africa<strong>na</strong> que se movimenta em círculo no sentidoanti–horário, como a ro<strong>da</strong> nos terreiros de candomblé.Várias vezes tenho lembrado sobre o profundo conhecimento <strong>da</strong>tecnologia do ferro que os povos chegados ao Brasil, chamados genericamentede angolas/congos, possuíam. Não precisamos nem relembrara mu<strong>da</strong>nça <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s civilizações quando o arado de madeira foi substituídopela enxa<strong>da</strong>. E aqui lembramos do ancestral Ogun, literalmente:o ferro. Ogun representa uma ver<strong>da</strong>deira revolução no mundo <strong>da</strong> tecnologiae do desenvolvimento, talvez tenha sido por isso que desde cedo osferreiros foram considerados mágicos. Ogun trouxe o fogo para dentrode sua casa e, graças a ele, pode forjar os instrumentos cirúrgicos.Para os grupos africanos chegados ao Brasil, o cordão umbilical reveste-sede significado. Afirmava-se ain<strong>da</strong> que, de acordo como a criançachegasse ao mundo e dos cui<strong>da</strong>dos que se tinha com o cordão umbilical,era possível prever ou mesmo interferir em acontecimentos, como doençase morte, por exemplo. Em outras palavras, o cordão umbilical eratratado como uma síntese <strong>da</strong> pessoa. Pe<strong>na</strong> que a ideia de DNA chegoutarde demais para a ciência. Ain<strong>da</strong> hoje este pensamento continua vivo<strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros.E a ideia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como um todo integrado? Para o “pensamento africano”,o Mundo faz parte do princípio vital, por isso ele é vivo, assimcomo tudo que pertence a ele. Como lembra a tradição bakongo: NgangaZambi, também chamado Kalunga, fez tudo junto, como um pacote, edentro desse pacote colocou de tudo, estava criado o ciclo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Emoutras palavras, a separação veio depois, mas estar no mundo é fazer parte<strong>da</strong> Kanga que Kalunga amarrou to<strong>da</strong>s as coisas, <strong>da</strong>ndo início a tudo que<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 31


tem princípio, mas não tem fim, pois a vi<strong>da</strong> é um eterno re<strong>na</strong>scimento.Graças a isso, o todo é maior do que a soma <strong>da</strong>s partes, mas a menor partecontém o Todo, <strong>da</strong>í o cui<strong>da</strong>do com tudo aquilo que sai do corpo e com asextremi<strong>da</strong>des.E como não falarmos <strong>da</strong> matemática? Não dos números, mas deideias como: precisão, infinito, grandeza, etc. Basta prestarmos atenção<strong>na</strong>s linhas que se encontram traça<strong>da</strong>s no corpo dos iniciados, ou <strong>na</strong>s linhasparalelas, os círculos que demarcam dias, baseados onde o sol <strong>na</strong>scee onde ele se põe.E a escrita? Outro legado africano <strong>da</strong>s populações presentes nos limitesdo deserto do Saara e do Sudão. Pe<strong>na</strong> que desde cedo se criou a oposiçãoentre esta e a chama<strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, que venho insistindo que não podeser compreendi<strong>da</strong> desta maneira. Há várias formas de linguagem, há atéaquelas que incluem o não dito e o silêncio. Mais uma vez o exemplo é ocorpo dos iniciados. O corpo dos iniciados é um texto, somente compreendidopelo grupo religioso que está constantemente lhe reescrevendo.Gostaria ain<strong>da</strong> de lembrar <strong>da</strong>s várias técnicas de adivinhação desenvolvi<strong>da</strong>spelos africanos e manti<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> hoje nos terreiros de candomblé.Como dizer que esse saber não é científico? Ou por que sempre seestá procurando desautorizar estes conhecimentos em nome de uma ciência?Não estamos nos referindo a práticas que apreciamos no cotidianoou em ocasiões especiais, como no fi<strong>na</strong>l de ano, quando alguns sacerdotesaceitam ser expostos pela mídia transformando um constituinte dosaber ancestral em algo no mínimo exótico e curioso. Refiro-me a saberescomplexos, elaborados, guar<strong>da</strong>dos por poucos sacerdotes e sacerdotisasque, ao invés de adivinhar, divinizam; tor<strong>na</strong>m as situações vivi<strong>da</strong>s pelaspessoas, divi<strong>na</strong>s. Em outras palavras, interpretam o divino que está <strong>na</strong>spessoas através dos chamados “caminhos”; caminhos múltiplos que seencontram <strong>na</strong> encruzilha<strong>da</strong>.Não poderia deixar de mencio<strong>na</strong>r o conhecimento diverso elaboradodesde cedo pelos africanos sobre as curas e doenças. Isso reaparece <strong>na</strong>s32 • vilson caetano de sousa júnior


eligiões de matriz africa<strong>na</strong>, onde o mais importante não é a doença, masconduzir o doente à cura. Se junta a isso o valor atribuído à comi<strong>da</strong>. Nosterreiros “tudo come”, recebe tratamento especial. Sem comi<strong>da</strong> não hávi<strong>da</strong>. As inovações introduzi<strong>da</strong>s pela chama<strong>da</strong> “era <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de” <strong>na</strong>alimentação talvez seja um dos maiores desafios para as comuni<strong>da</strong>des--terreiros nos próximos 100 anos. Aqui, saúde e comi<strong>da</strong> estão interliga<strong>da</strong>s.Esse é um tema que merece uma reflexão à parte. Certo que <strong>na</strong>scomuni<strong>da</strong>des-terreiros não se come ape<strong>na</strong>s iguarias que resistem a estasintervenções, isso é observado ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s chama<strong>da</strong>s “comi<strong>da</strong>s ritual”,embora aos poucos esse fato venha se modificando. Ver<strong>da</strong>de é que, desdecedo, os terreiros adotaram em uma alimentação à base de inhame, porexemplo, reconhecido ape<strong>na</strong>s hoje como algo que reúne várias funções,dentre elas a de ser preventivo contra o câncer.E o pilão? A tecelagem? Contribuições africa<strong>na</strong>s que reaparecem nosterreiros de candomblé onde a ideia de fiar é muito importante. Uma redeé constituí<strong>da</strong> de fios. Mais uma vez a ideia <strong>da</strong> teia. É o entrelaçamentodos fios que sustentam a teia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, lhe <strong>da</strong>ndo equilíbrio. Essa é a razãopela qual em algumas tradições se diz que Yemanjá é a do<strong>na</strong> <strong>da</strong> cabeça,cabeça que representa todo o corpo. Yemanjá não segura ape<strong>na</strong>s as nossascabeças, mas está presente em tudo que se combi<strong>na</strong>, nos fios de conta,por exemplo, outra imagem bastante ilustrativa do que estamos falando.Ogun inventou a forja trazendo ao mundo a ciência, e junto com Yemanjá,sua mãe, criou-se a tecnologia, entendi<strong>da</strong> como um modo de fazersempre aperfeiçoado, ou um fazer sistemático sempre aprimorado. Querentender mais? Observe atentamente os fios que “enfeitam” o pescoçodos iniciados; por mais que as contas possam ser diferentes, elas compõemum conjunto, formam um sistema, garantido por Yemanjá, quenão permite que as linhas que formam o mundo se partam, garantindoassim o equilíbrio de tudo que tem vi<strong>da</strong>. Talvez este seja um dos maioresdesafios para o próximo saber cientifico que está para se constituir.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 33


ossain


que ignoram tal significado. Acredita-se nos terreiros que os Caboclos,Caboclas ao lado do orixá Ossain, também chamado de Ossanha, os vodusAgué e Loko, ao lado dos ninkices Tempo e Katendê, são a própria<strong>na</strong>tureza. Natureza recria<strong>da</strong> a todo instante em ca<strong>da</strong> broto que re<strong>na</strong>sceou arrebenta <strong>da</strong>s sementes. Estes ancestrais, entendidos em linhas geraiscomo princípio que circula como uma seiva em tudo que tem vi<strong>da</strong>, sãoresponsáveis pela nossa continui<strong>da</strong>de no mundo. Ver<strong>da</strong>de é que isso valetambém para os demais ancestrais. Fato é que este pensamento sobre aNatureza não impede que nós, povo de candomblé, reflitamos sobre asrelações que nós mesmos viemos estabelecendo com esta. Se assim fizermos,<strong>da</strong>remos um passo a frente do que foi colocado por ocasião <strong>da</strong> Eco92, ao repensarmos sobre práticas que dizem respeito à relação direta entrenós e a Natureza. Se for ver<strong>da</strong>de, como afirmamos <strong>na</strong>quele momento,que para as comuni<strong>da</strong>des-terreiros a ecologia não podia ser trata<strong>da</strong> comoum departamento à parte, pois sem folha não há orixá; se é digno de notaressaltar que ain<strong>da</strong> <strong>na</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des somos os que mais preservamos,mantemos e protegemos as poucas reservas que restaram ou resistemao crescimento desorde<strong>na</strong>do <strong>da</strong>s metrópoles, vale também acrescentarque também não temos sido os mais ecológicos. Em outras palavras,precisamos rever a utilização de materiais como vidros, plásticos ou atémesmo a utilização do fogo em alguns desses espaços. Isso me trouxe àmemória um Iroko centenário que existia <strong>na</strong> entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> de SãoLázaro, no bairro <strong>da</strong> Federação. Os consecutivos incêndios provocadospelas velas acesas o levou a morte e poucos sabem o que isso significapara o patrimônio afro-brasileiro. Na ocasião, chegou-se até a “ventilar”que o incêndio teria sido criminoso e poderia ter sido provocado por algumadenomi<strong>na</strong>ção religiosa. Não obstante a isso, temos que admitir quenão poucas foram as pessoas de candomblé que acenderam velas nos pés<strong>da</strong>quela árvore. Hoje temos uma nova árvore, replanta<strong>da</strong> pelo terreirodo Bogun. Pe<strong>na</strong> que não poderemos vê-la após cem anos. Temos, de fato,que superar algumas afirmações e começar a refletir e falar sobre nós mes-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 39


mos, a fim de ver<strong>da</strong>deiramente afirmarmos que o Sagrado está no mundomanifestado <strong>na</strong> Natureza e em ca<strong>da</strong> homem e mulher, como a porção deterra individualiza<strong>da</strong> pela morte no momento em que Oxalá precisava deuma matéria-prima para modelar os seres vivos. Assim somos terra, uma<strong>da</strong>s imagens mais bonitas que os diferentes grupos humanos elaboraramem tempos históricos diferentes. Afirmar que somos terra significa dizerque fazemos parte desta Natureza. É dizer que somos Natureza e que nãohá outra forma de existirmos sem participarmos dela. Participando doDivino através do chão que pisamos e <strong>da</strong> água que bebemos, por exemplo,participamos do ser de Deus dividindo com Ele a responsabili<strong>da</strong>dede sustentar, manter, garantir e promover a vi<strong>da</strong> como algo que se prolongaaté a eterni<strong>da</strong>de, recria<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> instante que qualquer ser recebeo sopro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.40 • vilson caetano de sousa júnior


af r icanos ,seus descedentese economia <strong>na</strong>ci<strong>da</strong>de de salvadorAfricanos e africa<strong>na</strong>s desde cedo influenciarama economia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador e do Recôncavobaiano. Um trabalho realizado nos arquivos<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cachoeira, por exemplo, foicapaz de nos revelar ocupações mais varia<strong>da</strong>s.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 41


Certo é que muito antes <strong>da</strong> economia entrar em declínio no século XIX,homens e mulheres negras transitaram <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des com gamelas e tabuleiros,ver<strong>da</strong>deiros altares an<strong>da</strong>ntes onde iguarias africa<strong>na</strong>s alter<strong>na</strong>vam--se o tempo todo com comi<strong>da</strong>s, ora de origem indíge<strong>na</strong>, portuguesa, oramoura, africaniza<strong>da</strong>s pelos sentimentos e modos de preparar que faziamreferência a um passado que a escravidão não foi capaz de apagar. Autorescomo Pierre Verger e Roger Bastide nos legaram trabalhos bastanteilustrativos sobre a importância <strong>da</strong> arte de mercar e do mercado para osdiversos grupos que nos constituíram. Mercado este atravessado de sacrali<strong>da</strong>de,fato que levou alguns autores à confusão entre a comi<strong>da</strong> rituale as vendi<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s ruas. É bem certo que muito antes <strong>da</strong> constituição doscultos descritos a partir do século XIX, as ruas sempre conheceram “comi<strong>da</strong>safrica<strong>na</strong>s”. O professor de grego Vilhe<strong>na</strong>, <strong>na</strong>s suas famosas cartas,nos informa sobre algumas destas iguarias, pe<strong>na</strong> que poucas delaspermaneceram no tabuleiro, não cedendo espaço aos modismos e invençõesque <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de acompanham a cozinha afro-brasileira. Comoesquecer <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s “carambolas”, mulheres cita<strong>da</strong>s por Vilhe<strong>na</strong> queregulavam, se não a economia, parte dela, impondo seus preços aos peixescomercializados numa <strong>da</strong>s portas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Chama<strong>da</strong>s de atravessadoras,estas libertas foram motivo de atenção. E como não falar sobre asmulheres que vendiam <strong>na</strong>s suas gamelas carnes como mocotó, fato, sarapatele outras iguarias ain<strong>da</strong> hoje conde<strong>na</strong><strong>da</strong>s pelo “nutricionismo”, oraamparado pelo discurso higienista, ora pela busca de comi<strong>da</strong>s mais saudáveis.Gosto muito de uma tela de Debret que retrata a ven<strong>da</strong> <strong>na</strong>s ruas <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de antiga do Rio de Janeiro. Vale a pe<strong>na</strong> contemplar os tachos de angujustapostos, denotando que tal iguaria já havia caído no gosto popular.E o vatapá, aclamado <strong>na</strong>s mesas parisienses, segundo Câmara Cascudo?Outro exemplo de iguaria afro-brasileira no mundo. Não podemos deixarde citar o velho Gilberto Freyre, que atento chamou a atenção para osdoces dos tabuleiros que <strong>na</strong>s ruas de Recife rivalizavam com os que saíamdos conventos. Falando em doces, onde foi parar a “amo<strong>da</strong>”, será que42 • vilson caetano de sousa júnior


as doceiras “perderam o ponto”, ou a mistura de rapadura com farinha demandioca e gengibre não sobreviveu aos novos gostos? E o aberém? SegundoManuel Querino, transformado em refresco? Este sim ain<strong>da</strong> podemosencontrar em alguns terreiros de candomblé como comi<strong>da</strong> litúrgica.Talvez a sua permanência se explique por fazer parte de iguarias queninguém tem acesso à sua feitura, que não se vê nem a panela, nem o fogoe muito menos a fumaça. É comi<strong>da</strong> sobre a qual ninguém fala, ou nãoestá autorizado a falar pelo “segredo”. Aberém também já foi comi<strong>da</strong> derua. Hoje a mo<strong>da</strong> é o akarajé, não o akará, bem parecido com os que ain<strong>da</strong>hoje podem ser encontrados <strong>na</strong>s ruas de algumas ci<strong>da</strong>des africa<strong>na</strong>s, maso semelhante ao hambúrguer, acompanhado com o refrigerante de cola.Resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as críiticas, que bom que ele permaneceu, juntamente como abará, a passarinha e o bolinho de estu<strong>da</strong>nte. Até a pimenta ficou menospicante, respeitando a exigência <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> turística. Não podemos deixarpassar as “mulheres do mingau”. Mingaus de milho, tapioca, carimã,que continuam presentes, <strong>da</strong>ndo “sustança” aos fregueses, sem falar nomungunzá e no cuscuz de tapioca que nunca deixaram de ser itinerantes.Hoje transitam nos carrinhos empurrados pelos “meninos”, resistindoa todo e qualquer “discurso higienista” que insiste sobre os perigos <strong>da</strong>contami<strong>na</strong>ção através <strong>da</strong>s “comi<strong>da</strong>s de rua”. Bom mesmo foi que estascomi<strong>da</strong>s deram visibili<strong>da</strong>de nos últimos anos à inserção do homem negroe <strong>da</strong> mulher negra <strong>na</strong> economia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador, os tirando do anonimatoe <strong>da</strong> classificação <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>s vezes preconceituosa do mercadoinformal, o que para nós é excelente, pois traz a memória de Mariade São Pedro, Cecília do Bonocô, Aninha e tantas outras mulheres queatravés do comércio de elementos rituais ou iguarias, reforçaram os laçosentre partes do continente africano, <strong>da</strong> Ásia e do Brasil. Estas “mulheresde saia” merecem mesmo o título de “mulheres do partido alto”, ou “homensde elite”, como Martiniano Eliseu do Bonfim e Felisberto Sowzer,exímio conhecedor de inglês, conhecido como Benzinho, descendentedireto <strong>da</strong> família Bangboxé. Homens e mulheres com seus balangandãs,<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 43


que acumularam riquezas, retraçaram a própria ci<strong>da</strong>de, que mesmo estigmatizadosnos legaram a maior fortu<strong>na</strong>; o orgulho de nos sentirmos seusdescendentes quando descobrimos que somos negros.44 • vilson caetano de sousa júnior


ancestrali<strong>da</strong>deafro-brasileiraO conceito de ancestrali<strong>da</strong>de é algo de vital importânciapara as religiões de matriz africa<strong>na</strong> reorganiza<strong>da</strong>sno Brasil a partir <strong>da</strong>s diferentes visões demundo trazi<strong>da</strong>s por reis, rainhas, sacerdotes,<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 45


sacerdotisas, artistas, africanos e africa<strong>na</strong>s chegados às Américas, particularmenteao Brasil. Mais uma vez vamos evocar uma história. Conta-seque em certa ocasião o povo igbo, grupo étnico que atualmente ocupa osudeste <strong>da</strong> Nigéria, se viu encurralado por seus vizinhos. Obrigados a fugirde suas terras, chegaram a uma espécie de bosque nunca antes ocupado.Seus inimigos, to<strong>da</strong>via, marchavam em sua direção. Durante váriosmeses, os igbos se viram acuados e sitiados pelos seus inimigos. As váriasfamílias que ali estavam assistiam acabar, sobretudo, a comi<strong>da</strong>. O grupo,to<strong>da</strong>via, não desistiu, ao contrário, assim que encontrou uma raiz com aqual se percebeu que os homens, logo que a comiam, aumentavam a suaforça e as mulheres o seu poder de gerar filhos e filhas, sadias e fortes.Enfim, o igbos foram capazes de derrotar o inimigo. Com o passar dotempo, as famílias alimenta<strong>da</strong>s pelo inhame, ora comido cru, depois cozido,em forma de farinha, massa, papas ou mingaus, foram crescendo etor<strong>na</strong>ram-se capazes de construir um grande reino capaz de enfrentarqualquer estrangeiro. Todos os anos ain<strong>da</strong> hoje a origem desse grupo érelembra<strong>da</strong> com “a festa dos inhames”. Ela rememora a resistência e acontinui<strong>da</strong>de dos povos igbos graças a esta raiz. Este é, pois, o sentido <strong>da</strong>ancestrali<strong>da</strong>de e talvez nenhuma história seja tão ilustrativa quanto esta.Antes mesmo de um conceito, a ancestrali<strong>da</strong>de é a origem de um povo,desta maneira, assemelha-se ao conceito grego de arké. Ela remete ao iníciode um determi<strong>na</strong>do grupo, não a qualquer início, mas aos primórdios,instante de fun<strong>da</strong>mento, tempo mítico imemorial, perdido no tempocronológico, revivido no rito que cria todos os tempos, nosconduzindo a fazer uma experiência de um momento tão humano que sópoderia ser divino. Desta maneira, gosto muito <strong>da</strong> ideia de que os ancestraissão princípios universais. Podem ser comparados aos chamados“elementos civilizatórios”, patrimônios universais expressos de múltiplasformas através <strong>da</strong>s culturas. Assim devem ser entendidos os orixás,os ninkices e os vodus. Algumas destas ideias estão resumi<strong>da</strong>s <strong>na</strong> palavraninkice, literalmente “remédio”, mas não o remédio que cui<strong>da</strong> ape<strong>na</strong>s de46 • vilson caetano de sousa júnior


uma parte do corpo, mas do corpo todo, entendido como uma centelhade luz retira<strong>da</strong> do Universo. Assim, os ancestrais não podem ser entendidoscomo “espíritos”, muito menos seres humanos transformados emdeuses, confusão que acredito ter sido inicia<strong>da</strong> pelos missionários quetiveram contato com algumas partes do continente africano a partir doséculo XV, depois segui<strong>da</strong> por alguns antropólogos. Acho que esta confusãopode ser esclareci<strong>da</strong> chamando a atenção para o fato de, <strong>na</strong>s chama<strong>da</strong>sreligiões tradicio<strong>na</strong>is africa<strong>na</strong>s, o movimento ser humano/divin<strong>da</strong>deacontece ao contrário. Em outras palavras. Não é o ser humano queprocura chegar até o Sagrado através de uma série de exercícios bem conhecidospor alguns de nós, haja vista a convivência com o Cristianismo eoutras religiões como o Islamismo, mas é o Sagrado que vem até nós. Essanoção vai reaparecer <strong>na</strong>s religiões afro-brasileiras. No mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> participamosigualmente como tudo que tem vi<strong>da</strong>. Nos últimos tempos, algunsbiólogos, juntamente com a física quântica, têm chamado a atençãopara isso. Para nós, descendentes de africanos e africa<strong>na</strong>s, basta prestarmosmais atenção aos mitos. Assim, dizemos que os orixás, vodus e ninkicesse manifestam <strong>na</strong> Natureza, por exemplo. Quando falamos Natureza,não estamos nos referindo ape<strong>na</strong>s a tudo que é verde como se costumaassociar, mas a tudo que tem vi<strong>da</strong> e a tudo que está para viver, porque avi<strong>da</strong> nunca acaba. Foi essa filosofia que preconceituosamente foi chama<strong>da</strong>de animista ou primitiva. Nas comuni<strong>da</strong>des-terreiros, os ancestrais sevestem de <strong>na</strong>tureza, ora são a terra, o sol, a lua, as estrelas, as árvores, omar, os rios, os raios, a tempestade, assim por diante. A ancestrali<strong>da</strong>de,to<strong>da</strong>via, não pode ser resumi<strong>da</strong> a esta. Ela se expressa também <strong>na</strong>s pessoas,<strong>na</strong> comuni<strong>da</strong>de, visivelmente em seus corpos. Isso acontece em váriosmomentos, mas nenhum é mais especial do que o <strong>da</strong> iniciação. No processode iniciação, ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de-terreiro, de acordo com a sua tradição,reconstrói o divino negado quando homens e mulheres negras foramtransformados em “coisas”, “peças”, pela escravidão, ou ain<strong>da</strong> hoje quandoestes recebem uma série de quali<strong>da</strong>des negativas basea<strong>da</strong>s em suas ca-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 47


acterísticas físicas. Na iniciação recebemos marcas rituais que nos permitemnão somente recuperar o nosso corpo, mas também ganharconsciência de que somos <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de uma manifestação do divino. Assim,os orixás, ou qualquer outro ancestral, “não sobe”, “nem baixa” emninguém, pois somos parte desses princípios criativos. Talvez a melhorexpressão, hoje pouco ouvi<strong>da</strong>, seja mesmo “cair no santo”. No sentido dedeixar-se levar pelo Sagrado. Pe<strong>na</strong> que a expressão está manifesta<strong>da</strong>, ganhouum sentido tão pejorativo. Estar no santo, aqui no sentido não desanto católico, mas de Sagrado, permite a ca<strong>da</strong> membro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>defazer a sua experiência juntamente comigo que estou pleno do Sagrado.“Cair no santo” é uma ver<strong>da</strong>deira hierofania, manifestação do Divino.Esse pensamento conduz em alguns momentos a considerar algumaspessoas como manifestação viva de um ou outro ancestral. Várias vezesse podem ouvir nos terreiros, “você é um orixá vivo.” De fato, este é odesafio que recebemos <strong>na</strong> iniciação, tor<strong>na</strong>rmos vodunsi, ou ain<strong>da</strong> muzenza,ou yawô, esposa. Na iniciação tomamos consciência de nossa ancestrali<strong>da</strong>de,do Sagrado que está em nós, nos apropriando de nossa humani<strong>da</strong>de.Além <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza, <strong>da</strong>s pessoas, a ancestrali<strong>da</strong>de se manifesta<strong>na</strong>s mulheres, capítulo que deve ser escrito à parte, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua importânciapara entender a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de através dos antepassados.Estes são nossos pais e nossas mães biológicas que representam famíliasextensas referencia<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> expressão “Baba mi, meu Pai” ou“Ya mi, <strong>minha</strong> mãe”. As mulheres são responsáveis pelo “Baba tundê”,expressão que significa o retorno dos pais através dos filhos, o que somenteé possível graças ao poder dividido por to<strong>da</strong>s as mulheres com asGrandes Mães. Representa<strong>da</strong> pela terra, a mulher foi o único ser humanoque, segundo um mito yorubá, acompanhou os ancestrais no momentode compor o Universo. A ancestrali<strong>da</strong>de se expressa ain<strong>da</strong> de forma muitoparticular <strong>na</strong>s múltiplas linguagens que desde cedo africanos e africa<strong>na</strong>s,juntamente com seus descendentes, reelaboraram no Brasil. Estasdizem respeito a palavras ditas <strong>na</strong> hora certa, pronuncia<strong>da</strong>s corretamen-48 • vilson caetano de sousa júnior


te, ou simplesmente balbucia<strong>da</strong>s no ouvido de uma pessoa. Ela inclui nãoape<strong>na</strong>s o dito, mas também o não dito e o segredo, além <strong>da</strong>quela escritadiferente <strong>da</strong> convencio<strong>na</strong>l que estamos acostumados a ver. A ancestrali<strong>da</strong>dese expressa nos velhos e velhas, chamados de tio ou tia. Os anciãose anciãs constituem o maior patrimônio numa comuni<strong>da</strong>de-terreiro.Cabe a eles manter, zelar, proteger ou mesmo atualizar a chama<strong>da</strong> tradição.Por fim, a ancestrali<strong>da</strong>de se manifesta <strong>na</strong> morte, entendi<strong>da</strong> não comoaniquilamento, mas como continui<strong>da</strong>de no mundo dos antepassados quesempre estarão presentes através <strong>da</strong> noção de família, reinventados pelascomuni<strong>da</strong>des-terreiros. Assim quis Olodumaré, quando diante <strong>da</strong> imensidãode águas foi arrancando partes de seu corpo, que caindo sobre estasforam formando os caminhos, o princípio <strong>da</strong> comunicação, a tecnologia,a força que faz brotar os grãos, os remédios, a fertili<strong>da</strong>de, a fecundi<strong>da</strong>de,a justiça, a guerra, entre outros princípios. Desta maneira, os orixás, voduse nkices não têm sexo. Somos nós que falamos destas experiências apartir de nossas reali<strong>da</strong>des. A isso chamamos de projeção religiosa. To<strong>da</strong>sas religiões fazem isso. Sabemos, no entanto, que o Sagrado extrapola atudo que possamos falar dele. Talvez seja melhor nos contentarmos como fato de que é por isso que ele é Mistério e somente assim nos atiraremosnele.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 49


ewá


candomblé e destino entrea advinhação e a divi<strong>na</strong>çãoJá há algum tempo se estabeleceu uma relação entredestino e religiões de matriz africa<strong>na</strong>s. Há atéalguns autores que afirmam ser tal conceito uma<strong>da</strong>s maiores preocupações <strong>da</strong>s religiões em geral,<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 53


pelo menos as mais antigas. O certo é que ao longo <strong>da</strong> história essa concepçãorecebeu diferentes significados, ora através <strong>da</strong> filosofia, ora <strong>da</strong> religião,ora mesmo <strong>da</strong> própria ciência, pelo menos a gesta<strong>da</strong> no séculoXIX, como a arte de prever para controlar. Desta maneira, ao falarmossobre o destino abrimos um diálogo com vários saberes e certamente hávárias ver<strong>da</strong>des sobre este, a começar pela ideia de previsão que vai dosonho à ciência. O fato é que estamos sempre querendo antecipar umacontecimento para prevenirmos. Há grupos que concebem o destinocomo algo relacio<strong>na</strong>do às “forças ocultas”, que hora podem ser as forças<strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza, ou algum ser sobre humano. Outros acreditam ser o destinoalgo traçado, determi<strong>na</strong>do, que acompanha a vi<strong>da</strong> de pessoas ou de gruposinteiros. Em ambos os casos, o destino é visto como um fim, ou umaforça exterior, que em algumas vezes fun<strong>da</strong> a experiência com o sagrado.Como exemplo, temos o entendimento <strong>da</strong> morte pela maioria <strong>da</strong>s pessoas.Tema que já tivemos a oportuni<strong>da</strong>de de abor<strong>da</strong>r. Para as civilizaçõesafrica<strong>na</strong>s a vi<strong>da</strong> é sempre uma continui<strong>da</strong>de, é algo que não há fim. Continuamos<strong>na</strong> família, <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza, no grupo ao qual pertencemos, <strong>na</strong>scrianças e no saber ancestral. Continuamos porque fomos concebidosnão para estar no mundo, mas sermos o mundo. Daí a ideia de que tudoque há no “mundo visível” existe no “mundo invisível.” Em outras palavras,aquilo que os nossos olhos alcançam ou aquilo que os sentidos nosinformam não se esgota no que vemos ou no que sentimos. Para o pensamentoafricano, que influenciou profun<strong>da</strong>mente as religiões reorganiza<strong>da</strong>sno Brasil, o destino liga-se diretamente à questão ética/moral, aquiutiliza<strong>da</strong> como sinônimo. Inexistindo a noção de predesti<strong>na</strong>ção, conceitoemprestado por algumas culturas, mas de difícil compreensão para osocidentais que vêem o mundo de forma fragmenta<strong>da</strong>, não há lugar parase pensar o destino como um fim. Isso não significa que esta preocupaçãoesteja ausente. Certa ocasião, presenciei a resposta de um africano a umjovem muito preocupado com a morte, que a maioria acredita ser a únicacerteza, ou o destino de todos. O velho africano disse: “não se preocupe54 • vilson caetano de sousa júnior


com a morte, mas em viver a vi<strong>da</strong>. Quando ela chegar, se entregue a ela.Uma coisa eu lhe garanto, ela não lhe matará duas vezes”. A resposta, soa<strong>da</strong>como pia<strong>da</strong> pela plateia que ouvia, trazia dentro de si uma sabedoriaque resumia parte <strong>da</strong> filosofia africa<strong>na</strong>. É comum algumas pessoas procuraremas religiões de matriz africa<strong>na</strong> para fazer previsões. Há até algunsprogramas que fazem uma lista dos acertos e dos desacertos, estes mesmospoderiam se ocupar com as “ver<strong>da</strong>des científicas”. Por que não agemdessa maneira? Resposta: porque o chamado saber ocidental, representadopela filosofia, pelo cristianismo e pela ciência, se construíram e se sustentamdesconstruindo outros saberes. O que é uma per<strong>da</strong>. Infelizmenteain<strong>da</strong> podemos assistir à exposição de alguns sacerdotes, ora <strong>na</strong> televisão,ora no rádio, ultimamente <strong>na</strong> internet, por telefone, ou mesmo <strong>na</strong> imprensaescrita, fazendo previsões. Respeito o direito de ca<strong>da</strong> um, mas temosque refletir até que ponto esta exposição à mídia fortalece a nossaancestrali<strong>da</strong>de. A arte de previsão tornou-se desde cedo algo altamentelucrativo, sobretudo para aqueles que vivem do comércio do sagrado,isso pode ser também estendido para algumas cristãs. Não vamos entrarnesse debate. Queremos reforçar neste primeiro momento que esta é,pois, a concepção que a maioria <strong>da</strong>s pessoas possui sobre as comuni<strong>da</strong>des-terreiros.Lembro de um estu<strong>da</strong>nte universitário que levei a umadessas comuni<strong>da</strong>des para “olhar”, expressão utiliza<strong>da</strong> para referir-se àconsulta aos ancestrais. Após uma conversa com o sacerdote, o estu<strong>da</strong>ntevoltou-se para mim e disse: “é somente isso?” Achei que ele iria me dizeralgo diferente, alguma coisa que iria acontecer. Respondi-lhe afirmando:“que bom que o sacerdote não falou <strong>na</strong><strong>da</strong> de diferente, ou melhor, dissetudo que você já sabia, assim, você não ocupa mais ele”. De fato, entendia sua queixa, o inesperado nos fasci<strong>na</strong>, <strong>da</strong>í estarmos sempre atrás do “milagre”.Enquanto persistirmos nesta ideia, o milagre, entendido comoexperiência com o sagrado, passará despercebido por nós. Os diversosgrupos africanos elaboraram ao longo de gerações, a exemplo de outrospovos, o que foi chamado de “técnicas de adivinhação.” Não gosto muito<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 55


desse termo, pois foge ao significado do destino ao qual estamos nos referindo.Não se trata, pois, de adivinhar, no sentido de fazer previsõesque depois podem ser julga<strong>da</strong>s, mas de uma divi<strong>na</strong>ção. O jogo de búzios,por exemplo, difundido em longa escala pelo Brasil, é resultado de umconjunto de técnicas que antes de adivinhar tentam divinizar quem estáfazendo a consulta. Há outras técnicas de consulta, há até mesmo algumasque ficaram restritas às famílias descendentes de africanos. Quandofalamos em divinizar estamos nos referindo a <strong>da</strong>r consciência, entendimento,conhecimento ao indivíduo <strong>da</strong>s suas possibili<strong>da</strong>des. Assim, a noçãode destino pode ser traduzi<strong>da</strong> como “possibili<strong>da</strong>des”. Por isso queinicialmente estabelecemos uma relação entre este conceito e as questõeséticas/morais. O ato moral é imprevisível, ele ape<strong>na</strong>s só pode ser julgadodepois que aconteceu. O seu acontecimento, to<strong>da</strong>via, não implica numarepetição, mesmo se pudéssemos expor o indivíduo às mesmas condiçõesque lhe origi<strong>na</strong>ram. Lembremos do provérbio: “o raio não cai duasvezes no mesmo lugar”, ou seja, o ser humano é imprevisível. Isso valetambém para o mundo <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza. Certa ocasião li no trabalho de umpsiquiatra acometido por um câncer que “<strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza não existe nenhumaregra fixa que se aplique igualmente a todos. A variação é a própriaessência <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza.” É o mesmo que dizer que, se a <strong>na</strong>tureza se comportassesegundo as leis que construímos para expressá-la, viveríamossempre em meio ao Caos. Assim, quando falamos em destino estamosnos referindo a caminhos, possibili<strong>da</strong>des, não do outro, mas <strong>da</strong>s <strong>minha</strong>spossibili<strong>da</strong>des. A experiência do destino é algo individual. É a <strong>minha</strong> experiência.E se prestarmos mais atenção, estamos nos deparando com eleo tempo todo. Quando não acertamos, quando agimos sem levarmos emconsideração o nosso destino, as <strong>minha</strong>s possibili<strong>da</strong>des, quando não conhecemosos nossos caminhos, ou se conhecemos o ignoramos. Há ummito yorubá que precisa ser muito bem interpretado para não cairmos <strong>na</strong>armadilha <strong>da</strong> predesti<strong>na</strong>ção. Aquele que conta a história que, após os corposserem modelados <strong>da</strong> terra, Ajalá, o incansável oleiro que mol<strong>da</strong> os56 • vilson caetano de sousa júnior


seres vivos, no sentido bem amplo <strong>da</strong> palavra, atribui aleatoriamente aca<strong>da</strong> ser uma cabeça. Para estes grupos a cabeça é a síntese do destino. Daío culto à cabeça pelas religiões de matriz africa<strong>na</strong>. Cabeça que é o tempotodo “enfeita<strong>da</strong>”, or<strong>na</strong><strong>da</strong>, adora<strong>da</strong>, através do culto a Olori, literalmenteo “Senhor <strong>da</strong> cabeça”. Isso porque “ori” significa “o corpo todo”. To<strong>da</strong> avi<strong>da</strong>, as possibili<strong>da</strong>des, os caminhos trazidos por ca<strong>da</strong> indivíduo. Caminhoque não pode ser mu<strong>da</strong>do porque é individual e particular, mas podeser dirigível, orientado. Esse culto à cabeça é tão importante que em algumascomuni<strong>da</strong>des-terreiros não se aceita “enfeites”, modificações, “coisasque estão <strong>na</strong> mo<strong>da</strong>” e que nos últimos anos vêm atingindo vertiginosamenteo culto aos ancestrais. Chega-se a afirmar veementemente que acabeça antecede aos próprios orixás. Concepção talvez tira<strong>da</strong> <strong>da</strong> observaçãodo feto que se desenvolve dentro <strong>da</strong> bolsa de água. De fato, é como setudo se formasse a partir <strong>da</strong> cabeça. Assim, o “sistema adivinhatório”coloca o indivíduo diante de suas possibili<strong>da</strong>des. Nesse sentido, o indivíduoconfronta-se com os seus caminhos e a partir <strong>da</strong>li cabe a ele tomarconsciência que as respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s ou as saí<strong>da</strong>s busca<strong>da</strong>s devem ser compreendi<strong>da</strong>sa partir desses caminhos. Ideia semelhante surgiu <strong>na</strong> filosofiapós-guerra de alguns filósofos chamados existencialistas, pe<strong>na</strong> que talreflexão conduzia-os à negação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de significar. Ver<strong>da</strong>de é queafricanos e africa<strong>na</strong>s só conseguiram reconstruir o mundo fragmentadoou posto a prova pela escravidão, porque se deram conta desde cedo desuas potenciali<strong>da</strong>des. Deram-se conta de suas possibili<strong>da</strong>des, de seus caminhos,de seu destino. Para ilustrar mais essa concepção vou trazer aimagem <strong>da</strong> cobra, símbolo <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des, símbolo <strong>da</strong> sabedoria africa<strong>na</strong>.Podemos evocar ain<strong>da</strong> o camaleão, ancestral que primeiro percorreua terra segundo um dos mitos yorubás, a fim de certificar se a mesmaestava firme para que o criador do universo pudesse pisá-la. Podemosain<strong>da</strong> evocar o ancestral Ewá, identifica<strong>da</strong> por algumas tradições como “ameni<strong>na</strong> dos olhos”. Ewá corresponde, dentre tantas coisas, à íris, quealém de controlar as imagens, as informa ao cérebro e aju<strong>da</strong> <strong>na</strong> conversão<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 57


dessas imagens que recebemos inverti<strong>da</strong>s. Aí está Ewá. Daí a sua relaçãocom to<strong>da</strong>s as artes. O que faz o artista? Trabalha com possibili<strong>da</strong>des otempo todo. Daí ser a obra de arte algo único e particular. Acredita-se queEwá são os olhos de Deus. Dan a teria emprestado a Olodumaré <strong>na</strong> ocasiãoem que este ficou cego. Possibili<strong>da</strong>de ape<strong>na</strong>s concebível pelo pensamentoafricano que retirou do sagrado duas noções: a onisciência, o sabertudo, e a onipotência, o poder tudo. Acredita-se que há muitas ver<strong>da</strong>dese o mundo criado participa o tempo todo do ser Divino. Dele ema<strong>na</strong>mos.Graças à possibili<strong>da</strong>de de dissimulação, conta uma história que Ewá confundiuaté a morte, salvando Orumilá, ancestral que preside os sistemasdivi<strong>na</strong>tórios. Ewá tem o poder de se transformar em qualquer coisa,como tudo que é alongado. Ewá são as nossas possibili<strong>da</strong>des. Por issoacredita-se que quanto mais escuras estejam as águas, mais ela enxerga.Ewá transforma o breu <strong>da</strong> noite em dia claro e a clari<strong>da</strong>de <strong>na</strong> total escuridão.Em outras palavras, se agirmos conscientes do nosso destino, denossas possibili<strong>da</strong>des, de caminhos que se abrem e se fecham o tempotodo, encontraremos sempre uma saí<strong>da</strong>. Este conhecimento pode serfornecido através <strong>da</strong>s técnicas divi<strong>na</strong>tórias, mas a decisão sobre qual caminhodevemos percorrer sempre é uma escolha individual, afi<strong>na</strong>l, comochama a atenção o provérbio: “ca<strong>da</strong> cabeça é um mundo.” Conhecer estescaminhos para enfrentá-los tor<strong>na</strong>-se, assim, o maior desafio, pois desteconhecimento depende a permanência de nossas vi<strong>da</strong>s no mundo <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>. Se estivermos sempre atentos a ele, com certeza a morte não noslevará duas vezes.58 • vilson caetano de sousa júnior


em torno <strong>da</strong> noção de sacrifício<strong>na</strong>s religiões afro-brasileirasNão poucas são as vezes que ouvimos inúmerascríticas sobre o sacrifício <strong>na</strong>s religiões de matrizafrica<strong>na</strong>. Se por um lado esse desconfortopode ser explicado a partir de alguns preconceitos<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 59


elacio<strong>na</strong>dos a estas religiões, essa aversão ao sacrifício também é algohistoricamente construído. Vale ain<strong>da</strong> fazermos a distinção entre o sacrifícioe a oferen<strong>da</strong>, embora o primeiro possa fazer parte do segundo emalguns momentos. Em linhas gerais, a oferen<strong>da</strong> é um presente. Presente étudo aquilo que serve como moe<strong>da</strong>, troca. Tomemos um mito <strong>da</strong> tradiçãojeje para explicar o sentido <strong>da</strong> oferen<strong>da</strong>. Conta-se que Xangô, o quartorei <strong>da</strong> di<strong>na</strong>stia de Oyó, após vários dias de viagem chegou à terra de Dan,reino do Dahomé. Vendo o cansaço do viajante, Dan recebeu Xangô commuita comi<strong>da</strong> e bebi<strong>da</strong>. Xangô recebeu com as duas <strong>mão</strong>s a gentileza deDan e aceitou a hospe<strong>da</strong>gem do povo do Dahomé. Xangô e Dan conversarammuito, fizeram amizade e perceberam que havia muita coisa emcomum <strong>na</strong> história dos seus antepassados. Quando chegou a hora deXangô deixar a “terra <strong>da</strong> cobra”, ele disse que partiria, mas em retribuição,todos os anos o seu povo viria reverenciar o povo de Dan. Assim,Xangô recebeu o nome de Sobô <strong>na</strong> terra de Dan e constituiu no reino deDahomé uma grande família, a família de Heviossô. Para as civilizaçõesafrica<strong>na</strong>s, o presente, a troca, é muito importante porque o valor <strong>da</strong>s coisasvai além do que está se ofertando, assim tudo é uma troca. Trocam--se coisas materiais e, com elas, bens simbólicos. Em outras palavras, oprincípio vital que está <strong>na</strong>s coisas. Outro exemplo de oferen<strong>da</strong> é aquelafeita quando entramos no mato para colher uma folha, to<strong>da</strong>via, talvez oexemplo mais ilustrativo <strong>da</strong>quilo que estamos querendo falar seja o tradicio<strong>na</strong>lpresente que anualmente as religiões de matriz africa<strong>na</strong> fazemàs águas. Oferen<strong>da</strong> é assim, tudo que se troca. No dia-a-dia, os noivostrocam as alianças, os recém-casados entrelaçam os braços para brin<strong>da</strong>ra felici<strong>da</strong>de, trocamos presentes o tempo todo e os retribuímos também.Em simples gestos, como “bom dia”, “como vai”, “sua benção”, estamostrocando gentilezas. O presente é bom para quem dá e bom para quemrecebe com as duas <strong>mão</strong>s, sem olhar o valor material. Assim, retribuir fazparte <strong>da</strong> dinâmica que move o ciclo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.60 • vilson caetano de sousa júnior


Vamos agora falar sobre o sacrifício. Historicamente, esse ato presente<strong>na</strong> maioria dos modelos religiosos construídos pelos povos mais antigos,a partir do Cristianismo, ganhou uma conotação de algo violento ecruel. Sacrifício tornou-se sinônimo de derramamento de sangue, outroelemento simbólico que desde cedo fascinou a humani<strong>da</strong>de e encheu--se de significados. Isso vai ser sistematizado <strong>na</strong> teologia elabora<strong>da</strong> peloapóstolo Paulo, a fim de explicar a gregos e romanos a relação entre a crucificaçãode Jesus de Nazaré e o fato deste ser Deus ao mesmo tempo. Sacrifíciotor<strong>na</strong>-se sinônimo de dor, sofrimento, <strong>na</strong> I<strong>da</strong>de Média utilizadopara se chegar até Deus e posteriormente evocado como único meio queos africanos e africa<strong>na</strong>s tinham para salvar suas almas do inferno, justificando,assim. a escravidão.Para compreendermos o significado do sacrifício <strong>na</strong>s religiões de matrizafrica<strong>na</strong>, em primeiro lugar temos que abando<strong>na</strong>r estes preconceitose ampliarmos o sentido <strong>da</strong>quilo que estamos falando. Gosto muito<strong>da</strong> ideia que entende o sacrifício como um ato através do qual uma coisaperde a sua forma individualiza<strong>da</strong>, voltando às suas origens. Vamos explicar.Na Grécia, havia uma deusa chama<strong>da</strong> Gastéria. Gastéria era a deusado gosto, <strong>da</strong>í a palavra gastronomia. Todos os anos, pães feitos de trigo eceva<strong>da</strong> eram levados ao seu templo onde eram partidos e depositados aosseus pés. O gesto de partir o pão era o maior sacrifício para aquela deusa.Observe que trouxemos o exemplo de uma comi<strong>da</strong>. Se entendermos osacrifício como um ato mais amplo, tudo se tor<strong>na</strong> um sacrifício. O sacrifícioé um ato de retorno. Nunca imagi<strong>na</strong>mos a força que a mãe terra gastapara parir os grãos, raízes, verduras e legumes, e hoje menos ain<strong>da</strong>, talvezporque acreditamos mais <strong>na</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s novas tecnologias criaremesses alimentos em laboratórios. Para que o ciclo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> continue é precisoque tudo retorne a sua origem, o que é feito através do sacrifício. Sóentendemos essa lógica se retor<strong>na</strong>rmos à ideia <strong>da</strong> teia, do fio de conta, eagora vou evocar outra imagem: o pirão, ou o angu, comi<strong>da</strong>s conheci<strong>da</strong>spor todos. Inicialmente temos uma massa uniforme. O que acontece<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 61


quando as pessoas vão se servindo? Vão se abrindo buracos <strong>na</strong> massa queantes era uniforme, vão surgindo vazios. A função do sacrifício é entãopreencher estes vazios para que a comi<strong>da</strong> nunca falte, a teia não se desequilibree o fio de contas nunca se parta. Assim, o sacrifício cumpre váriasfunções. Uma <strong>da</strong>s funções mais antigas cumpri<strong>da</strong>s pelo sacrifício é oagradecimento. Em to<strong>da</strong>s as civilizações há notícias de festas organiza<strong>da</strong>spara os antepassados em agradecimento pela fartura, <strong>da</strong>í o culto à terraser um dos mais antigos, e desde cedo os mortos foram enterrados <strong>na</strong> posiçãode <strong>na</strong>scimento. Há ain<strong>da</strong> o sacrifício que tem a função de consagraralgo, tor<strong>na</strong>r alguma coisa sagra<strong>da</strong>. O simples gesto <strong>da</strong> baia<strong>na</strong> de akarajéantes de armar o seu tabuleiro, varrendo o espaço de onde vai presidir assuas ven<strong>da</strong>s, é um bom exemplo. Essa aparente “limpeza” está <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>desacralizando o local. Isso vale também quando depositamos comi<strong>da</strong>ssobre alguns objetos do culto. Há ain<strong>da</strong> aquele sacrifício que visa restabelecero equilíbrio, no caso, quando uma pessoa está doente, ou a relaçãocom a sua ancestrali<strong>da</strong>de está abala<strong>da</strong>. Outra função que cumpre o sacrifícioé pedir algo. Aqui ele funcio<strong>na</strong> ao contrário <strong>da</strong> promessa – que é umtrato que se faz com o sagrado, só cumprido depois que a coisa acor<strong>da</strong><strong>da</strong>é alcança<strong>da</strong>. O sacrifício nesse sentido é uma espécie de projeto, pois sesabe que “é <strong>da</strong>ndo que se recebe”. Assim podem ser entendi<strong>da</strong>s festasque se desenrolam durante dias e <strong>na</strong>s quais se gasta muito. Outra funçãoque cumpre o sacrifício é a proteção. Numa <strong>da</strong>s pragas que recaiu sobre opovo africano no Egito, o Deus de Israel ape<strong>na</strong>s poupou a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quelesque tinham a marca do sangue de um cordeiro sobre a porta. Gosto maisdo mito que diz que Ogun, após ter vencido várias batalhas, marchou emdireção a um povo que logo se apressou para saber como acalmar aqueleorixá. Sabendo que Ogun adorava vinho de <strong>palma</strong>, trouxeram para assuas casas as folhas novas do dendezeiro e lhes desfiaram, colocando-asem to<strong>da</strong>s as entra<strong>da</strong>s de suas casas. Ogun se agradou tanto com aquilo quenão feriu ninguém e nem permitiu que nenhuma gota de sangue fossederrama<strong>da</strong>. Há, por fim, uma <strong>da</strong>s funções do sacrifício mais conheci<strong>da</strong>s,62 • vilson caetano de sousa júnior


a expiatória. É quando a coisa sacrifica<strong>da</strong> substitui a comuni<strong>da</strong>de que estáofertando. Aqui temos o famoso exemplo do bode expiatório, do cordeiroimolado, muito conhecido dentre os povos do Mediterrâneo. No antigoIsrael, por exemplo, um animal percorria a ci<strong>da</strong>de e depois era largadobem distante. Foi a partir dessa imagem que o sacrifício ganhou umaconotação cruenta, embora esteja presente como elemento constituinte<strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s religiões. Nem o próprio Cristianismo conseguiu se livrardela. Pe<strong>na</strong> que as pessoas que se perguntam sobre o porquê do sacrifício<strong>na</strong>s religiões afro-brasileiras, não fazem a mesma interrogação quandochegam num açougue ou no frigorífico dos grandes supermercados. Talveza diferença esteja mesmo no significado do sacrifício, pois sabemosque o sacrifício não pode ser resumido ao derramamento de sangue enem ao tamanho <strong>da</strong> coisa ofereci<strong>da</strong>. Ao contrário, a medi<strong>da</strong> do sacrifício éo coração, centro <strong>da</strong> inteligência africa<strong>na</strong>, símbolo do discernimento quealguns orixás levam amarrados como uma bolsa inseparável no seu corpo.Sabe-se, por exemplo, que o maior sacrifício é a água, sangue <strong>da</strong> terra,joga<strong>da</strong> no chão três vezes, evocando os ancestrais, ou a água simplesmentederrama<strong>da</strong> <strong>na</strong> terra com a <strong>mão</strong> bem baixa a fim de fazer lama, chamandoas nossas origens, os antepassados. Quer melhor exemplo <strong>da</strong> lógicado sacrifício? Ele nos faz retor<strong>na</strong>r à lama, princípio originário entreguea Oxalá pela Morte. Daí a água está presente em todos os rituais e semela <strong>na</strong><strong>da</strong> se inicia. Isso vale também para o sangue <strong>da</strong>s folhas, adquiridoquando as esmagamos, desfiamos ou maceramos a fim de extrair a seiva.Sem elas também <strong>na</strong><strong>da</strong> se inicia. Outro exemplo do ver<strong>da</strong>deiro significadodo sacrifício para as religiões de matriz africa<strong>na</strong> é a comi<strong>da</strong>. Comi<strong>da</strong> ésacrifício, pois <strong>na</strong><strong>da</strong> no mundo vive sem ela. Assim, quando esmagamosos grãos, trituramos, amassamos as raízes, ou simplesmente cortamosuma fruta, estamos fazendo aquilo a que inicialmente nos referimos, tirandoa individuali<strong>da</strong>de de algo para lhe reintegrar <strong>na</strong> massa originária.Se compreendermos essa explicação, tudo é sacrifico. Não há como fugirdele. Por fim, gostaria de contar mais uma história que nos aju<strong>da</strong> a enten-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 63


der a relação sacrifício/oferen<strong>da</strong>. Conta-se que no início, os Babalawôstravaram uma disputa com Ossain. Os primeiros, adivinhos, representadospor Orunmilá, constituíam uma classe à parte, gozavam de prestígiojunto ao rei graças aos seus estudos e técnicas aprendi<strong>da</strong>s desde crianças.Ossaim reunia um grupo mais simples que saía pelas ci<strong>da</strong>des e curavaatravés de “remédios de folhas”. Era chamado pelos primeiros de simples“feiticeiros”. Orunmilá fez o seguinte desafio a Ossaim. A fim de provarqual saber era mais importante, os dois enterrariam seus únicos filhose no quarto dia a criança que permanecesse viva serviria como prova desuperiori<strong>da</strong>de e importância. Ossaim aceitou. Foram abertas duas covas,uma ao lado <strong>da</strong> outra. Numa foi coloca<strong>da</strong> Oferen<strong>da</strong>, o filho de Orumilá,e <strong>na</strong> outra Remédio, o filho de Ossain. Durante os dias a ci<strong>da</strong>de acompanhouatentamente a fim de que não houvesse trapaça. Enterrado umaao lado do outra, as crianças fizeram um pacto: durante aqueles dias umaaju<strong>da</strong>ria ao outro a sobreviver. No quarto dia, a cova onde foi enterrado ofilho de Orunmilá foi aberta e lá estava Oferen<strong>da</strong> com vi<strong>da</strong>, os Babalawôsfestejaram de alegria, estava provado que o saber <strong>da</strong>s folhas de <strong>na</strong><strong>da</strong> valia.Para surpresa de todos, ao abrir a cova onde estava o filho de Ossain,Remédio também estava vivo. Depois as crianças explicaram o acordoque fizeram e todos compreenderam que não há saber mais importantedo que o outro. No Universo vale mais aquilo que soma. É por isso quese diz que Sacrifício não deixa Oferen<strong>da</strong> morrer. Está, assim, explicado oporquê de to<strong>da</strong>s as oferen<strong>da</strong>s se iniciarem com folhas que são, ora macera<strong>da</strong>s,ora comi<strong>da</strong>s pelo presente <strong>da</strong>do aos ancestrais. A partir desse acontecimentoas pessoas começaram a fazer músicas que falam do princípiovital que circula <strong>na</strong>s folhas e nos dá vi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> oferen<strong>da</strong>.64 • vilson caetano de sousa júnior


esu .


candomblépara além do beme do malO problema do mal é difícil e complicado de serentendido, um mistério que ain<strong>da</strong> hoje está paraser desven<strong>da</strong>do. Em linhas gerais, quando nosreferimos ao mal, nos remetemos logo à figura do<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 67


Diabo, entendido como adversário de Deus, espírito sedutor, enga<strong>na</strong>dore aniquilador de almas. Se não podemos prever o momento do surgimento<strong>da</strong> noção do mal, a imagem do Diabo, ao contrário, é algo historicamenteconstruído, fruto do encontro de crenças antigas vin<strong>da</strong>s, ora doJu<strong>da</strong>ísmo, ora <strong>da</strong> Grécia, ora de Roma, ora dos persas, ora dos iranianos,ora do Cristianismo, que a partir do século XVIII recorreu à imagem doDeus grego Pã, dos campos, dos camponeses, com chifres, cascos, rabo,orelhas e partes inferiores do corpo pelu<strong>da</strong>s. O tridente teria vindo deNetuno, dos mares. Não vamos, to<strong>da</strong>via, nos deter nesta discussão quecontemporaneamente foi abando<strong>na</strong><strong>da</strong> pelos seus principais difusoresdentre nós, à exceção <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s neo-pentecostais, onde tal figuraaparece com “to<strong>da</strong> força”, provocando desgraça <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas ouaté mesmo se apoderando do corpo delas, <strong>da</strong>í a importância do chamadoexorcismo, termo que ao passar do tempo sede lugar para a palavra “expulsão”,esta certamente mais forte. Desde a Antigui<strong>da</strong>de, o que mu<strong>da</strong>quando nos referimos ao mal é ape<strong>na</strong>s a sua concepção. Em outras palavras,há momentos em que o mal faz parte <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza do sagrado, e outroonde ele é personificado. Esta última abre uma série de problemas, acomeçar pela ideia de que se o Diabo não foi criado por Deus, então ele seautocriou, logo ocupando o mesmo nível <strong>da</strong> Divin<strong>da</strong>de do Bem. Aqui paramosesta discussão, pois tanto os povos ameríndios quantos os povosafricanos não conheciam estas ideias, embora nunca tivessem ignorado anoção do mal. Pe<strong>na</strong> que quando esse mal personificado atravessou o OceanoAtlântico com os missionários católicos ele ganhou a aparência denossos índios e africanos, ele foi colocado no nosso corpo, legitimado pelasnossas características físicas. Ain<strong>da</strong> hoje, as religiões de matriz africa<strong>na</strong>são associa<strong>da</strong>s ao mal. Eu mesmo cresci ouvindo que “candomblé eracoisa do Diabo”. Não poucas vezes sou interrogado: “por que o candombléfaz o mal para as pessoas?”, sem contar a série de artifícios <strong>na</strong>rradospor alguns para justificar a falta de dinheiro, doença, separação, até mesmoa morte, realiza<strong>da</strong> pelos chamados “candomblezeiros”, em outros es-68 • vilson caetano de sousa júnior


tados, “macumbeiros”, “catimbozeiros”, “juremeiros”, assim por diante.Nestas ocasiões, antes mesmo de irmos ao embate com a pessoa, é melhorouvir. Quem sabe não aprendemos alguma coisa? Fato é que vivemosno mundo do medo. O medo no mundo moderno é uma reali<strong>da</strong>de,sem falar do fato que historicamente demonizamos sempre o diferente,aquilo que achamos feio. Demonizamos para domi<strong>na</strong>r. É bem certo quese não tivéssemos o desejo de impor as nossas ver<strong>da</strong>des, o Diabo comouma personificação do Mal não existiria, e esse último seria visto nomundo como contingente, passageiro, algo com o que não nos ocuparíamosnem com a sua origem, nem com o seu começo, mas infelizmentetemos que enfrentá-lo. Vários autores se debruçaram a fim de <strong>da</strong>r umaexplicação sobre a associação <strong>da</strong> figura do Diabo ao orixá Exu, ou aoninkice Nzila, ou ao Vodun Elegbara. Como não sou especialista em demonologia,estudo sobre as representações do demônio, vou me limitar afalar sobre estes princípios de comunicação, pois esta é a função que estesancestrais cumprem dentro <strong>da</strong>s religiões afro-brasileiras. Quer imagemmais bonita do que a de Nizila, literalmente o “caminho”, mas não qualquercaminho, “todos os caminhos”, caminhos que formam as linhas,demarcam os pontos cardeais, caminhos que se atravessam, se recortam,se redefinem, se criam, recriam-se o tempo todo, caminhos que se encontramno centro de todos os caminhos para <strong>da</strong>li partirem novamentepara o mundo, a encruzilha<strong>da</strong>. Geralmente quando vou falar especialmentesobre o ancestral Exu, utilizo a seguinte imagem: quando você enviauma carta para alguém, há um remetente e um desti<strong>na</strong>tário. Exu é ocaminho imaginário entre estes dois, sem Exu a carta nunca chegaria aoseu destino, mas é Ele mesmo que nos faz an<strong>da</strong>r, pular, saltar, ter êxito,vontade, alegria, falar, <strong>da</strong>í um de seus nomes: Elegbara, senhor do corpo,corpo negro e negra, que <strong>da</strong>nça, samba, ginga, é lugar de oração, mas é otempo todo estigmatizado porque é negro. “Bara” significa corpo, caminhos.Exu é tudo isso. Sem esse princípio <strong>na</strong><strong>da</strong> se concretiza. Infelizmentealgumas pessoas ain<strong>da</strong> concebem esses ancestrais como a personifica-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 69


ção do mal, sugeri<strong>da</strong> pelos missionários católicos e atualmente pelasneo-pentencostais. Assim são chamados de “escravos dos orixás”. É dignode nota que no contexto <strong>da</strong> escravidão, momento onde as religiões dematriz africa<strong>na</strong> foram reelabora<strong>da</strong>s, o medo também foi utilizado pelosafricanos como defesa e, certamente, acaba<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as esperanças, ape<strong>na</strong>slhe restaram estes ancestrais cuja concepção estava liga<strong>da</strong> ao própriocorpo. Num período mais adiante, quando os ancestrais foram concebidospor uma religião brasileira que acabava de <strong>na</strong>scer, a Umban<strong>da</strong>, Exu foide fato identificado com o Diabo, mas não como a personificação do mal.Se de um lado ganhava-se, como alguns acreditam, com a valorização dealgumas classes margi<strong>na</strong>liza<strong>da</strong>s, deixava-se de lado parte de uma <strong>da</strong>smaiores contribuições <strong>da</strong>s religiões tradicio<strong>na</strong>is africa<strong>na</strong>s às religiõesafro-brasileiras ao incorporar velhas dicotomias como bem/mal; luz/trevas; dia/noite; espírito/matéria. E a chama<strong>da</strong> Pombagira? Na<strong>da</strong> maisé do que a expressão Npombo Nizila mal ouvi<strong>da</strong>, o que chamamos decorruptela do nome, o que <strong>na</strong><strong>da</strong> tem a ver com a sua representação, umamulher de saia que exibe sensuali<strong>da</strong>de. Maria Padilha é outra imagem àparte. Essa sim, ora é portuguesa, ora é espanhola. No romance surgidono século XIX, aparece como uma <strong>da</strong>s amantes do rei de Castela. Foi trazi<strong>da</strong>ao Brasil <strong>na</strong> memória <strong>da</strong>s órfãs ou mulheres degre<strong>da</strong><strong>da</strong>s que tiveramcontato com o imaginário que inspirou o escritor a escrever a obra chama<strong>da</strong>Carmem, que conta a paixão de um homem por uma ciga<strong>na</strong> quearruí<strong>na</strong> a sua vi<strong>da</strong>. São ape<strong>na</strong>s dois exemplos de “santos que a África nãoviu”, ao lado de tantos outros que são associados ao Diabo porque estãomais próximos dos seres humanos. Mas voltemos à questão do mal. Emlinhas gerais, ele não é personificado, o que não nega a sua existência.Como se ouve em alguns terreiros, “a tentação está no mundo”. Devemosfugir dela. Devemos passar pelo mundo sempre fazendo o bem, fazendoo bem a tudo e todos. Diante de algumas situações devemos demonstrarfraqueza, para assim irmos levando a vi<strong>da</strong>. Mas o que é o bem?O bem também está no mundo, devemos buscá-lo sempre. Se estiver-70 • vilson caetano de sousa júnior


mos sempre em busca do bem, o mal nunca chegará até nós, nunca nosenxergará, pois eles an<strong>da</strong>m um ao lado do outro. O bem está ligado a tudoque junta, ou como se ouve dos tios e tias, “que ajunta”. O bem é tudoque mantém o universo integrado, pois fomos feitos para compor o Universo.É o ajô, por exemplo, a união, integração, tudo que faz retor<strong>na</strong>r àcomuni<strong>da</strong>de. O contrário é o ejó, o que separa, o que rompe, o que desintegra.Se somos parte <strong>da</strong> teia, o princípio é que devemos sempre procurarestar agarrados a ela. Há um provérbio que nos aju<strong>da</strong> a entender um poucomais esta visão: “Não há bem que seja puro bem e não há mal que sejapuro mal”. Ou ain<strong>da</strong> aquele que diz: “não há mal que sempre dure, não hábem que sempre perdure”. Talvez isso nos ajude também a entender ahistória de um viajante que atravessou dois continentes para chegar atéuma casa de candomblé para “colocar uma mesa”, como se falava anteriormenteantes <strong>da</strong> expressão “jogar búzios” entrar <strong>na</strong> mo<strong>da</strong>. Antes mesmodo viajante chegar até o local onde se realizavam as consultas, a sábiaIyalorixá, profun<strong>da</strong>mente conhecedora e respeitadora de suas tradições,já havendo sido alerta<strong>da</strong> pelos orixás, após ter submetido o viajante a algumashoras de espera a fim de “descansar o corpo <strong>da</strong> rua”, ou mesmofazê-lo desistir <strong>da</strong> intenção, saiu rapi<strong>da</strong>mente, olhou para a pessoa e comvoz forte altiva falou: “Estava mesmo lhe esperando, já chegou até aqui,veio de tão longe, descansou o corpo, esfriou a cabeça, agora vá em paz,meu filho, você já encontrou a resposta que queria, nesta casa não tem oque você veio buscar, pois eu não conheço segredo para o mal”. A pessoabaixou a cabeça, lacrimejou e entendeu que caminho semelhante ele poderiater feito para buscar o bem. Entendeu também que o mal <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>deve ser visto como contingente, ele é o que menos importa, ele servemuito mais para quem acredita que pode realizá-lo, do que para quem écapaz de receber. Na dúvi<strong>da</strong>, era melhor retor<strong>na</strong>r ou sair pelo mundo àprocura do bem, pois somente este garante a nossa permanência <strong>na</strong> teia<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 71


obaluaiyê


candomblé e saúdeO tema <strong>da</strong> saúde permeia o cotidiano <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros.Comuni<strong>da</strong>des estas, em suamaioria, constituí<strong>da</strong>s como culto organizado emfi<strong>na</strong>is do século XIX, ocasião em que tal tema eraemergente para se pensar as ci<strong>da</strong>des que se queriaconstruir a partir do modelo europeu e <strong>da</strong> novaciência emergente, que desautorizava práticasantigas arraiga<strong>da</strong>s <strong>na</strong> população negra, indíge<strong>na</strong>,<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 75


portuguesa e mestiça. Isso fez com que, ao longo de suas histórias, estesterreiros enfrentassem o discurso racista que, amparado <strong>na</strong> “legali<strong>da</strong>de”,além de transformar lideranças religiosas negras em margi<strong>na</strong>is, lhes enquadravamno artigo do código pe<strong>na</strong>l de “falsa medici<strong>na</strong>.” Não vamos, to<strong>da</strong>via,pela brevi<strong>da</strong>de do tempo e complexi<strong>da</strong>de dessa questão, abordá-ladiretamente, mas antes refletir sobre a importância que possui o “corposadio”, “o corpo o<strong>da</strong>ra”, para as religiões de matriz africa<strong>na</strong>. Em linhas gerais,é tabu falar em doença nos terreiros. Evitar chamá-las constitui uma<strong>da</strong>s principais medi<strong>da</strong>s de prevenção. Entendi<strong>da</strong> como desordem, ela éevita<strong>da</strong> o tempo todo através de inúmeros rituais a que são submetidosos iniciados, bem como os “clientes”, pessoas que procuram o tratamentomágico religioso dos terreiros esporadicamente. Assim a saúde está diretamenteliga<strong>da</strong> à relação que o indivíduo possui com a sua ancestrali<strong>da</strong>de.Ter saúde é ter axé, este princípio que nos faz correr, an<strong>da</strong>r, conversar,ter sucesso, sermos dinâmicos e nos manter vivos no mundo. Assim, noUniverso tudo é uma troca de axé. É o axé que dá sentido às coisas. Sendoo corpo uma miniatura do universo, é sobre ele que recaem os si<strong>na</strong>is dedesequilíbrio. Si<strong>na</strong>is que exteriorizam algumas vezes os laços fragilizadoscom o Sagrado. Dentro <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros, a doença recebevárias interpretações, mas em to<strong>da</strong>s elas é a noção de ancestrali<strong>da</strong>de queé evoca<strong>da</strong> para que o equilíbrio possa ser restabelecido. Outro fato quemerece destaque é que a doença nunca é vista como um fato isolado, ouseja, quando alguém adoece todos os que estão a sua volta participam dealguma maneira dela, a começar pela sua casa. Daí alguns rituais devemser estendidos a ela também. E quanto às doenças que ain<strong>da</strong> não possuemcura? As chama<strong>da</strong>s “doenças do tempo”? A estas as comuni<strong>da</strong>des-terreiros,de forma enérgica, combatem também com a mesma força e tentam,ao menos, fazer com que o doente conviva com elas, enten<strong>da</strong>-as, pois piordo que qualquer enfermi<strong>da</strong>de é viver uma vi<strong>da</strong> sem sentido, onde se deixade viver. Uma vi<strong>da</strong> que, no momento <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>, não há <strong>na</strong><strong>da</strong> para sentirsau<strong>da</strong>de. Certa ocasião me perguntaram se quando eu ficava doente pro-76 • vilson caetano de sousa júnior


curava um médico. Confessei a <strong>minha</strong> dificul<strong>da</strong>de com a medici<strong>na</strong> tradicio<strong>na</strong>l,que vê o corpo de forma fragmenta<strong>da</strong> e tem medo de tocar <strong>na</strong>s pessoas,mas afirmei que sim, pois, de acordo com as comuni<strong>da</strong>des-terreiros,o tratamento mágico-religioso não dispensa o outro tratamento, e nemmuito menos o saber médico desautoriza nem concorre com as diferentesmaneiras de restabelecer o equilíbrio utilizado pelas comuni<strong>da</strong>des--terreiros. Algumas vezes ouvi dizer que tal oferen<strong>da</strong> que estava sendorealiza<strong>da</strong> servia muito mais para o médico especialista do que para quemestava se submetendo a ela, porque em algumas ocasiões os especialistas“ficam cegos”, não conseguem enxergar a enfermi<strong>da</strong>de. Há ain<strong>da</strong> aquelasdoenças reinterpreta<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros como partes do divino.Conheci comuni<strong>da</strong>des em que pessoas <strong>da</strong><strong>da</strong>s como loucas tinham seulugar bastante definido. Isso nos aju<strong>da</strong> a pensar no fato de que a socie<strong>da</strong>detambém produz certas doenças e, juntamente com elas, espaços onde estesindivíduos são separados dos sãos. É, pois, a partir <strong>da</strong> noção de comuni<strong>da</strong>de,<strong>da</strong> grande ro<strong>da</strong> que gira no sentido anti-horário, que as religiõesde matriz africa<strong>na</strong> não ape<strong>na</strong>s procuram significar a doença, restabelecendoo equilíbrio, mas também buscam de forma inclusiva agregar aquelese aquelas colocados à margem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Nas comuni<strong>da</strong>des-terreirosde matriz jeje-<strong>na</strong>gô, Omolu/Obaluaiyê é considerado o ancestral por excelência.Omolu/Obaluaiyê teria <strong>na</strong>scido doente e tornou-se um grandemédico. Omolu/Obaluaiyê é o dono <strong>da</strong> terra. Segundos os seus mitos,este princípio ancestral preside a germi<strong>na</strong>ção, assim todos os grãos lhespertencem. Omolu/Obaluaiyê também é o sol. Ver<strong>da</strong>de é que ele tem opoder de transforma-se em qualquer coisa. Outro ancestral ligado ao sistemade classificação de curas e doenças é Ossain. Acredita-se que Ossainé o princípio ativo que circula em todos os vegetais. To<strong>da</strong>via, todos osancestrais participam do chamado sistema de classificação de curas e doenças.Por exemplo, Exu cui<strong>da</strong> <strong>da</strong> parte reprodutiva, juntamente com asentra<strong>da</strong>s e saí<strong>da</strong>s; Oxun, de tudo que forma um sistema; Oxalá é responsávelpelos ossos; Oyá pelo aparelho respiratório; Oxumaré toma conta<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 77


do aparelho urinário; Odé é responsável pelos tecidos e assim por diante.Como ouvi de uma sacerdotisa, “ca<strong>da</strong> um tem a sua parte.” É graças à nossaparticipação em ca<strong>da</strong> uma dessas partes do Divino, que nos mantemossaudáveis.


territoriali<strong>da</strong>desafro-brasileirasAo lado <strong>da</strong> noção de ancestrali<strong>da</strong>de, outro conceitofun<strong>da</strong>mental para compreendermos as religiões dematriz africa<strong>na</strong> é o de território, melhor entendidono plural. Esta palavra, <strong>na</strong> sua concepção mais simples,tem a ver com a terra, que extrapola o chão quepisamos para significar todo o mundo, tudo que é<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 79


extenso, tem forma, é visível a nossos olhos. Essa é, pois, a concepção deaiyê, por exemplo. Ela inclui a <strong>na</strong>tureza num sentido bem amplo, e as ci<strong>da</strong>des,fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s “sobre os ancestrais” através dos antepassados. Numtrabalho realizado no Recôncavo Baiano, especificamente <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des deCachoeira, São Félix, Muritiba, Santo Amaro e São Gonçalo, publicadosob o título: Nagô, a <strong>na</strong>ção de ancestrais itinerantes, numa entrevista presentenesta obra, recolhi a valiosa fala de um informante. Perguntado sobreos africanos, ele diz a seguinte frase: “a ci<strong>da</strong>de de Cachoeira é to<strong>da</strong>conde<strong>na</strong><strong>da</strong>.” Parei e fiquei olhando para ele, que prosseguiu: “essas casasque você vê aí são to<strong>da</strong>s de africanos. Por exemplo, quando uma pessoaaluga ou compra um casarão desses, muitas vezes elas começam a passarmal. Quando se vai olhar é o espírito de um africano que está ali cobrandopara ser cultuado. Tudo aqui é africano, eles nunca abando<strong>na</strong>ram as suascasas”. Essa revelação me fez pensar <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong> <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>svezes, por alguns discursos arquitetônicos, como algo vazio ou que podeser simplesmente reduzido a “cal e pedra”. Isso equivale dizer que a noçãode território está diretamente relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> com conceitos como espaço,lugar e, consequentemente, com o de identi<strong>da</strong>de. Identi<strong>da</strong>des negrasreconstruí<strong>da</strong>s <strong>na</strong> diáspora a partir dos universos fragmentados pela escravidão.Sobre o conceito de espaço é digno de nota acrescentar que é elequem nos permite representar, por exemplo, o mundo de outra maneira.O lugar diz respeito ao local onde estamos, falamos, construímos a nossaidenti<strong>da</strong>de, sendo assim um conceito também político. O impacto representadopela escravidão aos mais diversos povos africanos ain<strong>da</strong> está paraser avaliado, sem falar nos <strong>da</strong>nos causados ao patrimônio material e imaterialnegro-africano, ao ferir conceitos básicos ligados à identi<strong>da</strong>de,como a terra. Nos últimos anos, alguns estudos vêm afirmando que afragmentação <strong>da</strong>s culturas africa<strong>na</strong>s, sua multiplici<strong>da</strong>de, ao lado de fatoresexternos, constituíram impedimentos para se pensar <strong>na</strong>s religiõesafro-brasileiras ao lado de outras construções de origem africa<strong>na</strong>s noBrasil, como uma espécie de permanência negro-africa<strong>na</strong> no Novo Mun-80 • vilson caetano de sousa júnior


do. Não é de se esperar que as múltiplas vivências trazi<strong>da</strong>s com os africanosignorassem outras aqui encontra<strong>da</strong>s. Ao contrário, homens e mulheresnegras estabeleceram relações com os universos simbólicos que sedepararam, ora em condições de desigual<strong>da</strong>de, ora de prestígio, ora desoli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. A noção de casa é um bom exemplo disso. Esta casa ondese realiza o culto pode possuir dimensões amplas, mas também correspondera um espaço doméstico que num determi<strong>na</strong>do momento vai servircomo local de celebração. É muito provável que, inicialmente, africanose africa<strong>na</strong>s cultuaram os ancestrais em lugares bastante modestoscomo aqueles onde eles transitavam, era um culto discreto, realizado emalguns lugares <strong>da</strong>s vias públicas, sob algumas árvores, em alguns altaresimprovisados ao lado de santos católicos, ou mesmo levados no seu própriocorpo dentro de bolsas, etc. Quando puderam, em algumas regiõesdo país, adquiriram, em locais afastados do perímetro urbano, extensõessignificativas de terras, chama<strong>da</strong>s de roças. Ou mesmo foram obrigados ase distanciar do centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, quando o culto feito através de <strong>palma</strong>s,tocado com as <strong>mão</strong>s, não era suficiente para não despertar a polícia, quede forma enérgica reprimia qualquer manifestação cultural de origemafrica<strong>na</strong>. Enquanto a expressão “terreiro”, em alguns lugares, serve paradesig<strong>na</strong>r tanto a casa onde se realiza o culto, quanto a área exter<strong>na</strong>, a palavra“roça” diz respeito a algo mais amplo. Os terreiros, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, sãoespaços simbólicos construídos à luz de culturas provenientes de grandescivilizações, como Angola, Congo, Daomé, Oyó, e outras, destruí<strong>da</strong>spela escravidão. Outra palavra que nos aju<strong>da</strong> a entender isso é a noção de<strong>na</strong>tureza. Os orixás dos <strong>na</strong>gôs, os nikise dos angola/congo e os vodunsdos <strong>da</strong>omeanos, ao lado de ancestrais indíge<strong>na</strong>s têm a terra como umagrande referência. Acredita-se que os ancestrais moram <strong>na</strong> terra ao ladode outros que são a própria terra, como o vodun Ajunsum, o nikise Kavungoe o orixá Obaluaiyê. Ao lado <strong>da</strong> terra, as árvores possuem significadoespecial. A expressão que aparece em alguns mitos: “No tempo emque o mundo era habitado pelas árvores” ilustra um período considerado<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 81


primordial. Alguns orixás e nkise são cultuados em algumas árvores. Elassão, to<strong>da</strong>via, lugar por excelência dos voduns. Há voduns que são cultuadossob determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s árvores e há também aqueles que são representadospor elas próprias. Algumas casas de tradição jeje contam o seguintemito: Certo dia, o céu e a terra entraram numa disputa sem fim. A terrapassou a zombar do céu e vice-versa. A primeira gabava-se que lhe sustentava,era a superfície onde se erguiam as grandes ci<strong>da</strong>des, o local de i<strong>da</strong>e vin<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas e, por fim, mora<strong>da</strong> dos ancestrais. Por sua vez, o céunão deixava por menos. Urdia que ele era a garantia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; era nele quepasseavam os astros, moravam as estrelas, pla<strong>na</strong>vam as aves, controlavamas estações e era através dele que a humani<strong>da</strong>de se guiava. Um dia, océu muito aborrecido resolveu <strong>da</strong>r um castigo à terra. Assim, durante umlongo período, a chuva não caiu mais sobre a terra. A terra seca não pôdemais garantir o sustento <strong>da</strong>s plantas, os rios começaram a secar, os animaiscom o passar dos dias iam morrendo de sede, as doenças passaram aassolar o mundo, tudo passou a perecer. Restou ape<strong>na</strong>s uma árvore, Loko.Loko é um ancestral muito antigo. É uma grande árvore (Ficus dolares)que desde cedo, com sua copa, aprendeu a respeitar o céu e com suas raízesprofun<strong>da</strong>s, amar a terra. Durante um longo período, muitos animaise até mesmo as pessoas se protegeram sob a copa de Loko. Na falta d´água,e de vento, Loko garantia o frescor, às vezes a própria alimentação. O céutambém ficou triste, a humani<strong>da</strong>de nem sequer mais olhava para ele. Antesque tudo fosse destruído, Loko mostrou ao céu e à terra que ambospossuíam a mesma importância e salvou a humani<strong>da</strong>de <strong>da</strong> extinção. Asplantas, em linhas gerais, possuem enorme significado para as religiõesde matriz africa<strong>na</strong>. São delas que são extraídos os remédios e venenos. Asfolhas fornecem também a seiva, sangue que circula dentro de todos osseres vivos, e também as combi<strong>na</strong>ções que compõem os banhos que visamrestabelecer o equilíbrio do ser humano. Nos terreiros as folhas aparecem<strong>na</strong> forma do orixá Ossain, do Nkice Katendê, do vodun Agué, oumesmo dos caboclos, ancestrais indíge<strong>na</strong>s presentes <strong>na</strong>s religiões afro-82 • vilson caetano de sousa júnior


-brasileiras. Ao lado <strong>da</strong>s folhas, ganham destaque as raízes, as sementes,os grãos, os frutos e as flores. Não podemos falar do universo <strong>da</strong>s religiõesafro-brasileiras sem mencio<strong>na</strong>rmos a água. Estas são primordiais.Muitos ancestrais trazidos para o Brasil <strong>na</strong><strong>da</strong> mais são do que rios, cachoeirase lagos, que além do sustento, garantem as i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s de pessoase dão proteção a grupos inteiros. Todos estes elementos são reunidos noconceito de territoriali<strong>da</strong>de, ameaçado constantemente, ora pela especulaçãoimobiliária, ora pelo abandono dos órgãos públicos de alguns espaçossagrados. Ain<strong>da</strong> hoje o povo de candomblé luta para garantir algunsdesses espaços fun<strong>da</strong>mentais para a manutenção de seus rituais, fato quenão somente nos aju<strong>da</strong> a pensar <strong>na</strong> intolerância religiosa, mas também <strong>na</strong>ci<strong>da</strong>de que os africanos e africa<strong>na</strong>s traçaram a partir de locais como a Jaqueirado Carneiro, Ladeira do Cabula, bairro <strong>da</strong> Saúde e outros. Nos aju<strong>da</strong>ma pensar a ci<strong>da</strong>de de Salvador, por exemplo, não ape<strong>na</strong>s como a maisnegra <strong>da</strong> diáspora, mas o lugar onde homens e mulheres negras reelaboraramvisões de mundo a partir de conceitos que não lhes colocavamcomo centro, mas ponto de parti<strong>da</strong> de povos que “desde o início do mundo”marcharam para to<strong>da</strong>s as partes <strong>da</strong> terra.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 83


odé


odé, o dono <strong>da</strong> carneConta-se que as primeiras civilizações foram lidera<strong>da</strong>spor caçadores e caçadoras. Em busca de comi<strong>da</strong>estes homens e mulheres saíram do continenteafricano e seguiram em direção à Ásia, ao Oriente<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 87


Médio e à Austrália. Depois foram à Europa e fi<strong>na</strong>lmente chegaram àAmérica do Sul. Estas comuni<strong>da</strong>des desde cedo aprenderam a observara <strong>na</strong>tureza, a marcar as estações, acompanhar as fazes <strong>da</strong> lua e de outrosastros. Havia caçadores de todos os tipos. Uns conheciam bem o caminhopor terra e outros conheciam pelo mar, sobre as placas de gelo. Sediz nos terreiros de candomblé de tradição jeje-<strong>na</strong>gô que Oxossi é Odé,literalmente “caçador”. Na ver<strong>da</strong>de, Odé, a exemplo de outros conceitosque remetem aos primórdios <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, diz respeito a um conjuntode famílias agrupa<strong>da</strong>s em torno dessa figura que reunia em si múltiplasfunções. O caçador cumpria, dentro do seu grupo, funções políticas,econômicas, sociais, culturais e religiosas. Politicamente, o caçadorera o chefe, ou a chefe. Eles lideravam o grupo, orientando-o por ocasião<strong>da</strong>s decisões e o representando. Eles percorriam to<strong>da</strong>s as partes <strong>da</strong> terrae conduziam com segurança as famílias que lhes acompanhavam. Cabiatambém ao caçador estabelecer relações de troca, fortalecendo ca<strong>da</strong> vezmais o grupo. Além disso, o caçador mantinha a coesão do mesmo e faziaas mediações entre a comuni<strong>da</strong>de que liderava e outras encontra<strong>da</strong>s aolongo <strong>da</strong>s ca<strong>minha</strong><strong>da</strong>s. Por fim, os caçadores eram ver<strong>da</strong>deiros médicos.Eles se situavam entre a fronteira <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte, assim eles tinhamo poder de transitar entre estes dois mundos. É, pois, esta memória queas comuni<strong>da</strong>des-terreiros guar<strong>da</strong>m em torno <strong>da</strong> figura de Odé, que nãonecessariamente diz respeito ao orixá Oxossi. Fato é que tal ancestral ganhoupopulari<strong>da</strong>de no Brasil graças a presença significativa de africanosprovenientes do reino de Ketu a partir do fi<strong>na</strong>l do século XVIII, ocasiãoem que estes povos foram devastados por seus vizinhos <strong>da</strong>omeanos e enviadoscomo escravos para o Brasil. Na ci<strong>da</strong>de de Salvador, a história doTerreiro Ile Mariolage, <strong>da</strong> saudosa Olga do Alaketu, confunde-se com ahistória <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> força<strong>da</strong> desses grupos. Sua mãe seria descendente <strong>da</strong>princesa africa<strong>na</strong> Otampé Ojarô, chega<strong>da</strong> escrava para o Brasil e aqui liberta<strong>da</strong>.Oxossi é a origem do povo de ketu. Ele é o ver<strong>da</strong>deiro Araketu.Ara significa corpo, mas pode também significar sombra. A palavra ain<strong>da</strong>88 • vilson caetano de sousa júnior


pode ser utiliza<strong>da</strong> para evocar uma longa descendência, o povo. O povode ketu. Assim se afirma que todos somos de Oxossi. Oxossi é a terra virgeme não o mundo vegetal como se tem afirmado nos últimos anos. Naver<strong>da</strong>de, Oxossi é to<strong>da</strong>s as terras. As que foram pisa<strong>da</strong>s, as que estão ain<strong>da</strong>cobertas e também aquelas que nunca pisaremos. Por isso esse ancestralfoi associado desde cedo ao corpo. Odé é o dono do corpo. É o dono<strong>da</strong> carne. Ele é a carne que reveste os nossos ossos. Assim está explica<strong>da</strong>a expressão: todos somos de Odé. Ele é o princípio, se não de to<strong>da</strong>s as comuni<strong>da</strong>des,ao menos <strong>da</strong>quelas saí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Ketu, ou do buraco dedentro do fundo de um rio chamado Ibualama. Há um mito que diz queos primeiros povos saíram desse buraco e ganharam to<strong>da</strong>s as direções domundo. Num dos rituais mais complexos reelaborados no Brasil pelasreligiões de matriz africa<strong>na</strong>, o axexê, festa organiza<strong>da</strong> <strong>na</strong> ocasião em queuma pessoa inicia<strong>da</strong> parte para o mundo dos antepassados, se rememoraalgumas dessas histórias e canta-se: “ode arole lo bi ewa”, ou seja, <strong>na</strong>scemose voltamos para o caçador. Desta maneira, Odé acompanha to<strong>da</strong>sas etapas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pois ele significa o eterno <strong>na</strong>scimento e re<strong>na</strong>scimento.Talvez por este motivo, desde cedo se associou esse princípio ancestral à<strong>na</strong>tureza, local do qual os primeiros grupos humanos tiraram a ideia deque tudo é cíclico e por isso retor<strong>na</strong>. Assim, nos terreiros, Oxossi apareceliderando outros caçadores, ao lado do orixá Ogun, o caçador que manipulouo fogo, trazendo-o para casa e fundindo o ferro, Exu, o caçador queorganizou a linguagem, tor<strong>na</strong>ndo-se princípio de comunicação, e Ossain,também outro an<strong>da</strong>rilho que elaborou o complexo sistema de classificaçãodos vegetais, atribuindo-lhes funções. Na mitologia afro-brasileira,Oxossi aparece como filho de Yemanjá. Ele teria abando<strong>na</strong>do suamãe e partido pelo mundo. Mas ele também aparece como filho de umagrande feiticeira – representação <strong>da</strong>s grandes mães ancestrais –, que terialhe aju<strong>da</strong>do a matar um grande pássaro enviado para destruir a ci<strong>da</strong>de deKetu. Há quem afirme que Oxossi confunde-se com a sua própria mãe equando isso acontece o seu altar é consagrado embaixo de uma jaqueira<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 89


(Artocarpus heterophyllus) chama<strong>da</strong> Opa oká. Oxossi liga-se à fartura, àriqueza, à descendência, <strong>da</strong>í lhe ser associado os frutos e grãos. É o dono<strong>da</strong> comi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> carne, de to<strong>da</strong>s as carnes. Talvez tenha sido por isso que algunsterreiros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador o celebrem no dia de Corpus Christi,criado no século XIII pelo Papa Urbano IV com o objetivo de realçar apresença de Cristo no pão eucarístico, <strong>na</strong> comi<strong>da</strong>. A festa tinha como objetivocelebrar o corpo de Cristo em forma de carne viva. Não precisamosbuscar explicações mais distantes para entender a releitura que algunsafricanos fizeram dessa celebração. Isso fez com que o próprio Cristo fossereverenciado dentro do corpo místico dos caçadores representados porOxossi. Oxossi, que em algumas comuni<strong>da</strong>des-terreiros aparece vestidoa semelhança de um índio, faz também referência às inúmeras relaçõesque povos indíge<strong>na</strong>s e africanos estabeleceram desde cedo para garantira sua sobrevivência. Oxossi é ain<strong>da</strong> reverenciado como começo. Oxossitambém é lembrado como orixá <strong>da</strong> alegria. Oxossi é representado comocaçador e caçadora, mesmo quando estas imagens caíram em desuso emalgumas ci<strong>da</strong>des do continente africano, pois se acreditava não ter maissentido falar num rei-caçador. Oxossi, dono do corpo, ver<strong>da</strong>deiramentenegro e indíge<strong>na</strong>, sempre a caminho de desven<strong>da</strong>r novos mundos, renovaras relações a fim de nos manter como os tecidos que agrupam as célulasque juntamente com os corpos celestes formam o entrelaçado quesustenta o Universo e explica a dinâmica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.90 • vilson caetano de sousa júnior


ibeji


os gêmeos e a inversão<strong>da</strong> mesaPara compreendermos o culto a Ibeji é preciso entendera importância do <strong>na</strong>scimento e <strong>da</strong> mortepara os grupos africanos chegados ao Novo Mundo,particularmente ao Brasil. Ancestral de cultocercado de silêncios e mistérios, está presente emtodos os padrões rituais reorganizados no Brasil,<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 93


chamados de “<strong>na</strong>ção”. Tobossi, para algumas tradições jeje, Mabaço paraos angola/congo, Ibeji para a tradição ketu, ao menos aquelas presentes<strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador, ou simplesmente “dois dois”, “os meninos”, comosão chamados carinhosamente pela maioria <strong>da</strong>s pessoas.O culto a tal ancestral nos terreiros de candomblé aparece ligado àscrianças, <strong>na</strong> <strong>na</strong>ção angola/congo, onde é chamado de Nvunji, e <strong>na</strong>s de tradiçãoyorubá, erê. To<strong>da</strong>via, o culto a “dois dois”, ou ain<strong>da</strong> aos “meninos”,não pode ser confundido ou restrito a estas.No continente africano, o <strong>na</strong>scimento, como a morte, reveste-se departiculari<strong>da</strong>des, pois remete a um dos conceitos mais importantes desua filosofia: a ancestrali<strong>da</strong>de. Em linhas gerais, a ideia é de que somosum deslocamento de matérias ancestrais, ou seja: ca<strong>da</strong> criança que <strong>na</strong>sceé um Baba Tundê, um antepassado que retornou para a comuni<strong>da</strong>de;não no sentido de uma reencar<strong>na</strong>ção cíclica, mas como uma semente, quecarrega as informações <strong>da</strong> nova planta. Observando a <strong>na</strong>tureza, africanose africa<strong>na</strong>s elaboraram primeiro esta noção, que mais tarde vai aparecercom o nome de “genética”. Neste sentido, não a criança, mas o <strong>na</strong>scimentoe o duplo são algo particular. Há grupos vizinhos aos yorubás onde não<strong>na</strong>scem gêmeos. Ou seja, ape<strong>na</strong>s uma criança fica no mundo. Não vamosentrar aqui nesta discussão, pois também temos outras formas de descartarnossos recém-<strong>na</strong>scidos.Fato é que Ibeji, ou o Mabaço, possui enorme significado para os grupos,os quais nos referimos anteriormente. Tal ideia chega ao Brasil comos africanos e africa<strong>na</strong>s e aqui se populariza a ponto de interferir <strong>na</strong> própriarepresentação de santos católicos, como Cosme e Damião, sem esquecerde Crispim e Crispiniano. Eji, <strong>na</strong> língua yorubá, significa “dois” ebi é o verbo “<strong>na</strong>scer”. Desta maneira, a própria formação do nome explicao seu sentido. Ibeji é “<strong>na</strong>scer” ou “o <strong>na</strong>scimento de dois”. Certamente osmabaços sempre foram invocados, ora para proteger as famílias africa<strong>na</strong>sfragmenta<strong>da</strong>s e escraviza<strong>da</strong>s, ou mesmo para garantir às crianças a Leido Ventre Livre, por exemplo, uma <strong>da</strong>s mais difíceis de ser concretiza<strong>da</strong>,94 • vilson caetano de sousa júnior


pois não libertava a sua mãe. O <strong>na</strong>scimento dos gêmeos é tão importanteque estabelece uma ordem <strong>na</strong> família, assim, o terceiro filho para os yorubásé chamado Doun, “o terceiro”, ou aquele que veio após os gêmeos.As mulheres africa<strong>na</strong>s, em linhas gerais, eram muito férteis, assimtanto a mortali<strong>da</strong>de infantil quanto a mortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mãe era vista comoalgo particular e recebia tratamento especial. Certo é que o momentode <strong>da</strong>r a luz era visto como algo cercado de cui<strong>da</strong>do, isso também valiapara os primeiros dias do recém-<strong>na</strong>scido, que em algumas culturas só eraapresentado à comuni<strong>da</strong>de após o décimo sétimo dia, quando esta ouviaatentamente o seu nome. Nome que lhe acompanharia durante to<strong>da</strong> umavi<strong>da</strong> que não tem fim, afi<strong>na</strong>l “os que <strong>na</strong>scem nunca morrem”. A per<strong>da</strong> deuma criança vai ser assim re-significa<strong>da</strong> pela comuni<strong>da</strong>de que luta o tempotodo para superar a morte, como ain<strong>da</strong> hoje a humani<strong>da</strong>de através <strong>da</strong>sreligiões. Acredita-se, por exemplo, que quando uma mulher perde umacriança no parto ou quando esta morre ain<strong>da</strong> jovem, ou mesmo no momentoem que está <strong>da</strong>ndo a luz, trata-se de uma criança concebi<strong>da</strong> parapassar pouco tempo <strong>na</strong> terra, ou que está “brincando” com a sua mãe,“vindo e retor<strong>na</strong>ndo”, são os chamados pelos yorubás de abiku. Maisuma vez, temos o verbo “<strong>na</strong>scer” e iku, a morte. São os <strong>na</strong>scidos paramorrer. Este termo ganhou outra concepção no Brasil, para alguns, trata--se de pessoas que não precisam passar pelo processo de iniciação estabelecidopor ca<strong>da</strong> tradição religiosa. To<strong>da</strong>via, abiku são também criançasque, no momento do parto, experimentam de perto a morte, a exemplo<strong>da</strong>quelas que <strong>na</strong>scem com o cordão umbilical enrolado, ora no pescoço,ou em todo corpo. Estas, ao <strong>na</strong>scer, recebem nomes especiais e são submetidosa ritos específicos para continuarem no mundo. Sem falar que ocordão umbilical sempre recebeu tratamento especial entre os africanos eafrica<strong>na</strong>s, pe<strong>na</strong> que a ciência oficial só tenha reconhecido tal importância<strong>na</strong> contemporanei<strong>da</strong>de, mas foram os nossos antepassados os primeirosa dizer que ele é uma espécie de síntese <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> pessoa. Assim, Ibejiliga-se diretamente aos <strong>na</strong>scidos para morrer, sobre os quais pouco se fala<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 95


no universo afro-brasileiro, justificando, de certa maneira, a confusãoentre estes e as crianças.O culto aos gêmeos está ligado à ideia de continui<strong>da</strong>de e descendência,como o quiabo, comi<strong>da</strong> real dos faraós do Egito Antigo. Assim comoa cebola representava o mundo através <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s que a compõem, oquiabo estava ligado à continui<strong>da</strong>de. Podemos fazer esta experiência, colocandonuma vasilha com água e sementes de quiabo. Com o tempo elasvão se juntando, formando a teia, ou o futu, tão lembrado pela MakotaValdi<strong>na</strong>, uma espécie de pacote que Nganga Zambi fez no início do mundo,onde colocou de tudo. Agora entende-se o porquê de uma <strong>da</strong>s iguariasmais aprecia<strong>da</strong>s pelos gêmeos ser o chamado “caruru”. Na ver<strong>da</strong>de,os gêmeos comem de tudo. “Comem tudo o que a boca come”, como osancestrais <strong>da</strong> terra. Isso exemplifica a antigui<strong>da</strong>de de seu culto. Emboraapareçam ligados à morte, os gêmeos são filhos do orixá Oxun. Pois vi<strong>da</strong>e morte an<strong>da</strong>m juntas. Oxun foi o ancestral <strong>na</strong>gô que, segundo um deseus mitos, no momento em que Deus distribuiu os poderes aos orixás,através de uma chuva, enquanto alguns se esforçavam para pegar o ferro,a terra e outros elementos, Ela agarrou com as duas <strong>mão</strong>s o ovo, chamadode eyn. A partir <strong>da</strong>í ela passou a garantir a permanência de tudo que formaum sistema. Oxun regula, assim, o ciclo menstrual, mas também ociclo <strong>da</strong> terra que garante os frutos. Tempos atrás, este fato era relembrado<strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador no mês de Dezembro quando se oferecia as chama<strong>da</strong>s“frutas do ano” em frente à igreja de nossa Senhora <strong>da</strong> Conceição<strong>da</strong> Praia. Oxun também cui<strong>da</strong> do intestino e de tudo que é “de dentro”.Assim ela garante a permanência dos os gêmeos e to<strong>da</strong>s as crianças.Um trabalho sobre o significado destes ain<strong>da</strong> está para ser realizado,embora o Professor Vivaldo <strong>da</strong> Costa Lima já nos tenha presenteado comum livro sobre “os meninos”. Talvez isso seja explicado pelas dimensõestoma<strong>da</strong>s pelo culto. O culto aos mabaços extrapola as religiões de matrizafrica<strong>na</strong>. Eles estão em todos os oratórios católicos de famílias que tiveramgêmeos.96 • vilson caetano de sousa júnior


Aos meninos é ofereci<strong>da</strong> uma mesa, “arruma<strong>da</strong> no chão”, à maneiraafrica<strong>na</strong>. Neste dia, são as crianças que comem primeiro e tem o consentimentoaté de brin<strong>da</strong>rem à saúde de todos com taças de vinho. Algumasvezes, elas recebem pratos individuais, em outras, a comi<strong>da</strong> é coloca<strong>da</strong>numa grande gamela e todos comem e têm o direito de se “lambuzarem”.Nas duas maneiras come-se com as <strong>mão</strong>s. Há casos em que as <strong>mão</strong>s <strong>da</strong>scrianças são limpas <strong>na</strong> saia <strong>da</strong> do<strong>na</strong> <strong>da</strong> casa. É a inversão <strong>da</strong> mesa, ondeos rígidos códigos ocidentais, como: não conversar, “comportar-se”, usartalheres, comer com a boca fecha<strong>da</strong>, são suspensos a fim de garantir a alegriae a vi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 97


comi<strong>da</strong> de santo e comi<strong>da</strong> de brancoEmbora algumas pessoas reajam à expressão“comi<strong>da</strong> de santo”, aqui ela será toma<strong>da</strong> comoo mesmo que comi<strong>da</strong>s rituais dedica<strong>da</strong>s, <strong>na</strong>scomuni<strong>da</strong>des-terreiros, aos nikices, vodus eorixás. Num trabalho publicado em forma delivro,intitulado: Banquete Sagrado, notas sobre“os de comer” em terreiros de candomblé, já tive a<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 99


oportuni<strong>da</strong>de de demonstrar a importância, o papel e o significado <strong>da</strong>scomi<strong>da</strong>s votivas dedica<strong>da</strong>s aos ancestrais <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des/terreiros. Emlinhas gerais, no candomblé costuma-se dizer que “tudo come”, recebealimentos especiais, preparados para ca<strong>da</strong> ocasião. Come desde a cumeeira,ao chão, este último principalmente. Isso é explicado através <strong>da</strong> concepçãode que <strong>na</strong><strong>da</strong> se mantém vivo sem a comi<strong>da</strong>. Por outro lado, já demonstramosno texto em que abor<strong>da</strong>mos o sacrifício <strong>na</strong>s religiões dematriz africa<strong>na</strong> que esta comi<strong>da</strong> é, ao mesmo tempo, força vital, axé, mastambém um “contra-dom”, uma espécie de contra-presente que as primeirascivilizações estabeleceram com o Sagrado, pois desde cedo se acreditouque “a fertili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra dependia dos antepassados, tor<strong>na</strong>ndo-seestes os primeiros seres com os quais as civilizações foram obriga<strong>da</strong>s atrocar”. Alguns trabalhos já se debruçaram sobre a origem destas comi<strong>da</strong>srituais que nos terreiros aparecem como africa<strong>na</strong>s, ou de origem africa<strong>na</strong>.Há, to<strong>da</strong>via, outros que insistem ser esta comi<strong>da</strong> elabora<strong>da</strong> a partir de ingredientes<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. A falta de tempo não nos permite entrar neste debate,mas gosto sempre de afirmar que o que tor<strong>na</strong> a “comi<strong>da</strong> de santo” africa<strong>na</strong>é muito menos os ingredientes que entram <strong>na</strong> sua preparação, masum conjunto de técnicas transmiti<strong>da</strong>s de forma iniciática e secreta, soma<strong>da</strong>sàs visões de mundo evoca<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> comi<strong>da</strong>, os significados, ossentidos, os sentimentos, o Sagrado construído e reconstruído a todo momentoa partir <strong>da</strong> experiência histórica de ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Assim, seaceitarmos que esta cozinha ritual é afro-brasileira, fugimos ao menos <strong>da</strong>busca pela pureza e nos tor<strong>na</strong>mos mais abertos para entender a dinâmicado pensamento africano, di<strong>na</strong>mismo este que permitiu, ao lado de permanênciasafrica<strong>na</strong>s no Brasil, recriações e invenções feitas não de formaaleatória, mas fiéis a visões de mundo postas a prova em ca<strong>da</strong> indivíduo <strong>na</strong>diáspora negra pelo mundo. Já no fi<strong>na</strong>l do século XIX, autores como ManoelQuerino já faziam uma distinção entre as comi<strong>da</strong>s que consideravam“puramente africa<strong>na</strong>s”, do “sistema alimentar <strong>da</strong> Bahia”. É, to<strong>da</strong>via, <strong>na</strong>déca<strong>da</strong> de 30, sobretudo a partir do pensamento de Arthur Ramos, que100 • vilson caetano de sousa júnior


surge uma má interpretação sobre a origem, presença e popularizaçãodestas comi<strong>da</strong>s <strong>na</strong>s ruas, por alguns autores. Ora, o velho Ramos, atentoàs modificações de algumas iguarias afro-brasileiras, sugeriu que nos afamadoscandomblés ain<strong>da</strong> podiam ser encontra<strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s de “origemafrica<strong>na</strong>” num estado mais origi<strong>na</strong>l, constatação que acredito valer atéhoje. A partir desta ideia, alguns autores que lhe seguiram entenderamque a comi<strong>da</strong> comercializa<strong>da</strong> <strong>na</strong> rua desde fi<strong>na</strong>is do século XVIII teria umaorigem sagra<strong>da</strong>. Certa ocasião fui questio<strong>na</strong>do por uma jovem jor<strong>na</strong>listasobre a relação que existia entre o akarajé vendido pelas nossas tradicio<strong>na</strong>isbaia<strong>na</strong>s e o akarajé de Yansã. Seus olhos saltaram quando afirmei quenão existe relação nenhuma. Primeiro, porque Yansã não come akarajé,mas akará, bem diferente dos hambúrgueres que encontramos <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>dede Salvador acompanhados com o refrigerante de cola, e jé é o verbo “comer”,expliquei. A jovem, to<strong>da</strong>via, insistiu: “mais antigamente não erauma comi<strong>da</strong> vendi<strong>da</strong> ape<strong>na</strong>s pelas filhas do orixá Oyá?”. Lhe desaponteimais uma vez. “Antigamente” é uma temporali<strong>da</strong>de que não conheço, depois,é bem provável que africanos e africa<strong>na</strong>s, conforme informações doProfessor de grego Vilhe<strong>na</strong>, no fi<strong>na</strong>l do século XVIII, vendiam, além deakará, também lelê, abará, ekó, ekuru, mungunzá, efó, aberém, mocotó eoutras iguarias, ao lado de bebi<strong>da</strong>s como o aluá. Fato é que o akarajé está <strong>na</strong>mo<strong>da</strong>, foi eleita a comi<strong>da</strong> para representar a baiani<strong>da</strong>de, outra construçãoproblemática. Porém não deixei de mencio<strong>na</strong>r a sacrali<strong>da</strong>de do mercado e<strong>da</strong> arte de mercar que não foram inventa<strong>da</strong>s pelos africanos. Para compreendermosisso basta prestarmos atenção à bolsa de valores, ela é imprevisível.Mesmo assim realcei que acumular capital ain<strong>da</strong> hoje continua sendoum dos maiores desafios para as comuni<strong>da</strong>des-terreiros e seusiniciados; para os negros(as) em geral é mais provável que os filhos de algunsorixás ligados ao azeite de dendê tivessem mais “cabeça de ven<strong>da</strong>”para comercializar certas iguarias, o que não é uma regra, como <strong>na</strong><strong>da</strong> é regrageral no candomblé. Eu mesmo conheci, <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Cachoeira, umasenhora já faleci<strong>da</strong>, filha de Oxalá, que nunca abdicou de suas vestes bran-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 101


cas, que construiu a sua família, formou todos os seus filhos vendendoakarajé. É preciso ter, de fato, “cabeça de ven<strong>da</strong>”, em outras palavras, sairpara a rua e voltar com dinheiro para casa. Resumindo, ser empreendedor,fazer freguesia. Embora se tenha esquecido, o mesmo vale para os mingaus,iguarias que ain<strong>da</strong> hoje resistem <strong>na</strong>s ruas, contrariando o discurso“higienista”. Ver<strong>da</strong>de é que africanos e africa<strong>na</strong>s, e hoje seus descendentes,mercaram tudo que podiam, pois disso dependia a sua economia, asua sobrevivência, a formação de seus filhos(as), o custeio de um ritualque se pagava durante anos. Ver<strong>da</strong>de é que quando isso era realizado, estesmomentos eram atravessados de sacrali<strong>da</strong>de, onde em algumas vezes osistema de troca tradicio<strong>na</strong>l era alter<strong>na</strong>do pelo inspirado nos universosafricanos. Mas o que difere a comi<strong>da</strong> de santo <strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s comercializa<strong>da</strong>s<strong>na</strong>s ruas? Gosto muito <strong>da</strong> explicação do professor Vivaldo <strong>da</strong> CostaLima, que sempre lembra: “os santos comem o que os homens comem;ape<strong>na</strong>s estes recebem comi<strong>da</strong>s mais elabora<strong>da</strong>s”. Assim, é diferente umfeijão de azeite de um “omolocum” oferecido ao orixá Oxun, este requermais atenção no seu preparo, exige pessoas especiais, pois varia até a texturados grãos obti<strong>da</strong> através do cozimento, sem falar <strong>na</strong>s palavras de encantamentoe orações evoca<strong>da</strong>s antes, durante e <strong>na</strong> hora do oferecimentoao ancestral. Lembro de um sacerdote que disse: “se fosse assim, eu escreviaa nota para o cliente e ele fazia <strong>na</strong> casa dele”. Orixá não tem cardápio,menu, receita. Isso é menos uma preocupação para os chefs, assim não terãoque concorrer com a Yabassé, “a velha que cozinha”, sacerdotisa <strong>da</strong> comi<strong>da</strong>,única autoriza<strong>da</strong> a informar sobre estas. Como sempre são escolhi<strong>da</strong>sentre as que menos falam, a comi<strong>da</strong> sagra<strong>da</strong> está resguar<strong>da</strong><strong>da</strong> .Esclareci<strong>da</strong> esta parte, vamos falar agora <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s “comi<strong>da</strong>s de branco”,o que não é o mesmo que “comi<strong>da</strong>s brancas”, de acordo com o sistemade classificação <strong>da</strong>s coisas comestíveis e não comestíveis do povo decandomblé. Esta última expressão reserva-se às comi<strong>da</strong>s que não levamazeite de dendê. São iguarias votivas que remetem aos primeiros gruposhumanos que saíram para povoar a terra. Comi<strong>da</strong>s a base de raízes e grãos,102 • vilson caetano de sousa júnior


conserva<strong>da</strong>s <strong>na</strong> forma de farinhas que se transformam em papas, massas emingaus. A primeira expressão é reserva<strong>da</strong> às comi<strong>da</strong>s do cotidiano,como, por exemplo, o tradicio<strong>na</strong>l feijão com arroz. As “comi<strong>da</strong>s de branco”não são novi<strong>da</strong>de nos terreiros de candomblé, ao contrário, estão presentecomo constitutivas de momentos especiais, como o café oferecidoem dias festivos, ou <strong>na</strong> ocasião de rituais fúnebres quando se come aquiloque o morto gostava. A novi<strong>da</strong>de é que estas comi<strong>da</strong>s estão paulita<strong>na</strong>mentesubstituindo as comi<strong>da</strong>s de santo nos dias de festa. Não obstante obom gosto e requinte com que estas comi<strong>da</strong>s são apresenta<strong>da</strong>s ao público,acompanham este fato a reação de algumas pessoas contra as chama<strong>da</strong>s“comi<strong>da</strong>s de azeite”, ora evocando que fazem mal, ou porque não gostam,sem nenhuma justificativa. Ain<strong>da</strong> bem que não surgiu a palavra “saudável”,outra expressão que está em mo<strong>da</strong>. Isso acontece, sobretudo, entre osmais jovens. Esse fato abre uma série de questio<strong>na</strong>mentos. Na<strong>da</strong> contraaos buffets organizados por alguns terreiros, afi<strong>na</strong>l, a máxima de que a comi<strong>da</strong>exibe prestígio, poder e status social vale também para o candomblé.O questio<strong>na</strong>mento está no desaparecimento <strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s de santo em detrimento<strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s de branco. Na maioria <strong>da</strong>s vezes, as primeiras ficamrestritas aos orixás “que comem sozinhos”, e acabam fazendo desaparecerrituais realizados no dia seguinte. Será que a populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s “comi<strong>da</strong>sde azeite”, em dias como a sexta-feira, ou mesmo a presença dos restaurantesde “comi<strong>da</strong>s típicas”, explicariam a não apreciação do gosto pelascomi<strong>da</strong>s votivas, nos terreiros, por algumas pessoas? Lembro que algumasdessas comi<strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s “baia<strong>na</strong>s” eram reserva<strong>da</strong>s a ocasiões especiais,como aniversários, por exemplo. Com o tempo foram desaparecendo,tor<strong>na</strong>do-se inicialmente “comi<strong>da</strong>s de pobre” e depois comi<strong>da</strong>s quefazem mal por conta de problemas, ou outras “doenças que estão <strong>na</strong>mo<strong>da</strong>”, e que por isso devemos evitá-las antes mesmo de passarmos pelosprofissio<strong>na</strong>is de saúde que decidem o que devemos comer, a quanti<strong>da</strong>de ea hora. Refletir sobre este aspecto é interessante, pois abre discussões pertinentesà preservação do universo afro-brasileiro legado por homens e<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 103


mulheres que, desafiando o seu tempo, deram respostas a partir de suastradições às situações e desafios que foram expostos. Isso não significa dizerque entendemos a tradição como algo imutável, ao contrário, a recriaçãoem alguns momentos se dá não para recompor algo fragmentado, maspara exibir prestígio. Depois do “desaparecimento <strong>da</strong> pedra de ralar”, suasubstituição pelo moinho, que depois foi motorizado, seguido do liquidificadore do multiprocessador, que graças aos diferentes cortes conferemàs massas texturas diferentes, assistimos algumas comi<strong>da</strong>s rituais sendofeitas a partir do refi<strong>na</strong>mento de grãos, ofereci<strong>da</strong>s pelas indústrias de alimentos.Mesma indústria que deu origem ao xarope de milho, um tipo deaçúcar que o nosso organismo não é capaz de dissolver, gerando, entre outrasdoenças, o diabete melittus tipo II. Mesmo respeitando a frase sábiade uma sacerdotisa que nos disse que “os vodus mu<strong>da</strong>m porque as pessoasmu<strong>da</strong>m”, temos que refletir como as comi<strong>da</strong>s votivas estão dialogandocom os ingredientes produzidos por esta indústria que com certeza não osfez para atender a deman<strong>da</strong> dos orixás. Adoro os buffets nos terreiros, masé bom ver também a comi<strong>da</strong> dos orixás dividi<strong>da</strong> entre as pessoas. Certaocasião deparei-me com uma comuni<strong>da</strong>de-terreiro que não sabia maisenrolar o akassá, chamado de ekó. Tal iguaria representa o corpo, uma porçãode massa individualiza<strong>da</strong> <strong>na</strong> folha de ba<strong>na</strong><strong>na</strong>. A massa era despeja<strong>da</strong>numa bandeja ou sobre uma pedra de mármore e corta<strong>da</strong> de forma triangular.Se nós, povo de candomblé, ain<strong>da</strong> não estamos preparados para entendero processo químico que envolve os alimentos durante o seu cozimento,ao menos temos que atentar para o fato de que quando umacomi<strong>da</strong> “desaparece”, segue também com ela visões de mundo. Na<strong>da</strong> contraa introdução de eletrodomésticos <strong>na</strong>s cozinhas rituais, diálogo que opovo de candomblé já vem fazendo muito bem já há algum tempo. A preocupaçãomaior deve ser: que vai restar <strong>da</strong> nossa ancestrali<strong>da</strong>de? O quepassaremos e quais histórias contaremos aos nossos filhos quando as comi<strong>da</strong>sde santo cederem lugar de uma vez por to<strong>da</strong>s às comi<strong>da</strong>s de branco?E os ancestrais, será que mu<strong>da</strong>rão de gosto?104 • vilson caetano de sousa júnior


xangô


ao rei do mundo…Xangô é rei. É rei no Batuque do Rio Grandedo Sul, é rei no Xambá de Per<strong>na</strong>mbuco, estadoonde o seu nome é evocado para desig<strong>na</strong>r asreligiões de matriz africa<strong>na</strong>, é rei nos candomblés<strong>na</strong>gôs do Recôncavo baiano, é rei no Tambor<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 107


de Mi<strong>na</strong>, no Maranhão, e é rei nos candomblés jeje <strong>na</strong>gô, <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de deSalvador. Não vamos entrar no mérito de suas histórias, falar sobre osvários mitos sobre a sua origem, mas sobre o significado <strong>da</strong> figura do reipara a consoli<strong>da</strong>ção de identi<strong>da</strong>des negro-africa<strong>na</strong>s fragmenta<strong>da</strong>s através<strong>da</strong> escravidão. Em algumas cantigas, Xangô é reverenciado como rei domercado, e rei do mundo, Obá aiyê. Mercado, coração <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des yorubás,onde se alter<strong>na</strong>vam o tempo todo bens materiais com simbólicos.Ver<strong>da</strong>de é que no Brasil, essa figura foi fun<strong>da</strong>mental no processo de reconstruçãoe manutenção dos elementos civilizatórios negro-africanosno Novo Mundo. Não poderia ser diferente, manifestação do Divino, afigura do rei representa continui<strong>da</strong>de, a permanência <strong>da</strong> grande famíliaafrica<strong>na</strong> inclusiva, que com o passar do tempo foi amplia<strong>da</strong> a fim de agregarnovos membros, agora descendentes de portugueses, índios, judeus,ciganos e tantos outros. O culto a Xangô é assim o culto à continui<strong>da</strong>de,à descendência, à família manti<strong>da</strong> viva graças às mulheres e às crianças.Daí a sua relação com os antepassados e o porquê de Xangô ser o ancestralmais festejado <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de secreta de Egungum, ou <strong>na</strong> ocasião dosrituais fúnebres, ocasião em que os iniciados levam no pescoço umaconta em sua home<strong>na</strong>gem. Ao contrário do que se diz, o culto a Xangôpossui relações estreitas com a morte, com o culto aos antepassados,pois ele mesmo representa to<strong>da</strong> a sua descendência. Mas de onde surgiua ideia de que “Xangô tem medo <strong>da</strong> morte”? Talvez <strong>da</strong> má compressão<strong>da</strong> simbologia do rei, associado a outras leituras. Explicando: ao contráriodo que muitas pessoas afirmam, o elemento de Xangô é a terra. Seuculto rememora às civilizações que desde cedo foram estabeleci<strong>da</strong>s pelosafricanos. Xangô é dono de tudo que existe em cima <strong>da</strong> terra. Graças aessa relação, desde cedo esse ancestral foi evocado como pedra, e tudoque estas significam, numa edificação. Desta maneira, este princípio ancestralestá presente nos corpos celestes. Essa relação entre as pedras e ocorpo é muito antiga e pode ser encontra<strong>da</strong> em algumas regiões do Mediterrâneoe em partes do continente africano. O fogo, assim, e tudo que108 • vilson caetano de sousa júnior


ele representou para a humani<strong>da</strong>de, era então obtido através <strong>da</strong> fricçãodestes dois corpos. Porém, anterior a esse momento, é bem provável quea humani<strong>da</strong>de já utilizasse as pedras para reter o calor, aproveitando paraconservar os alimentos. Já demonstramos em outro momento que a temperaturaé algo fun<strong>da</strong>mental para os seres vivos. Quando o corpo perdeo seu calor, princípio de vitali<strong>da</strong>de, acredita-se que ele está morto. Nãopodemos confundir esse momento com os Antepassados. Estes, comoXangô, são muito quentes, pois estão vivos, continuam sob as tiras depano que separam de nossos olhos o mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte. Assim,quando evocamos o Rei nos rituais fúnebres, estamos afirmando queacreditamos <strong>na</strong> nossa ancestrali<strong>da</strong>de e que ela é a garantia de nossa permanênciapara sempre no mundo. Quanto ao corpo, devolvemos à terra,pois como já comentamos, dessa devolução depende a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> dos que virão, afi<strong>na</strong>l, tudo não é cíclico? Tudo não é uma manifestaçãodo Sagrado? A partir dessa explicação podemos pensar várias coisas.É certo que africanos e africa<strong>na</strong>s tinham em mente a concepção de que aspedras deveriam estar juntas para poder produzir calor a fim de manterem-sevivas. E assim fizeram. Assim, uma <strong>da</strong>s características do cultoao rei, preserva<strong>da</strong> no Brasil, foi a presença de muitas pessoas. O culto aXangô requer muitas pessoas. Como se diz: Xangô adora gente. E o queé o mercado? Na<strong>da</strong> mais do que indivíduos que rompem suas fronteiras,quebram tabus. O rei também adora festas, comi<strong>da</strong>s e bebi<strong>da</strong>s. Não foi atoa que, quando os africanos organizaram os primeiros afoxés, o rei ia àfrente, que diga os maracatus de Per<strong>na</strong>mbuco, e falando em Maracatu,como não falar <strong>da</strong> Kalunga, a boneca que diviniza nossos antepassados?Falando sobre esse ancestral, no Brasil não podemos deixar de mencio<strong>na</strong>ro nome de Tio Bangboxé. Ele teria chegado ao Brasil para aju<strong>da</strong>r <strong>na</strong> constituiçãode alguns terreiros de candomblé que se formavam <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de deSalvador no século XIX, onde o culto a Xangô era elemento central. Fiela sua missão, Bangboxé Obitikó, constituiu no Brasil longa descendênciaatravés <strong>da</strong> família consanguínea que formou, e <strong>da</strong> religiosa que desde<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 109


cedo constituiu através de suas viagens a Porto Alegre, Rio de Janeiro eRecife. Ain<strong>da</strong> hoje, membros <strong>da</strong> família Bangboxé vêm <strong>da</strong> Nigéria visitarseus descendentes brasileiros. Da família consanguínea, destacamosa figura de sua filha, chama<strong>da</strong> de Tia Júlia, e <strong>da</strong> família religiosa, EugêniaAn<strong>na</strong> dos Santos, a inesquecível Mãe Aninha, que há cem anos atrás fundouo Ilê Axé Opô Afonjá. No terreiro fun<strong>da</strong>do por Tia Júlia no Matatu,está à frente, ain<strong>da</strong> hoje, Irenea Sowzer, a última bisneta do Tio Bangboxé,também de Xangô. Xangô que é rei, que gosta de coisa bonita e é muitovaidoso, não no sentido pejorativo que utilizamos a palavra. Vai<strong>da</strong>deno sentido <strong>da</strong> autoestima. O culto a Xangô nos faz olhar para dentro denós mesmos, nos faz perceber que quando permanecemos unidos comopedras que formam o alicerce de uma construção, somos fortes. Ele ain<strong>da</strong>nos impulsio<strong>na</strong> a lutar contra todos aqueles que não se alegram com anossa alegria.110 • vilson caetano de sousa júnior


oyá


quem vai salvar oyá do fogo?Vamos começar este artigo de forma bem imperativa:Oyá é água. Ela é o rio Níger que corta, comsuas águas escuras, vários estados que atualmentecompõem a Nigéria. Assim conta-se a sua origem:após vários dias cercado por inimigos, o rei de Ijebuconsultou os ancestrais e estes determi<strong>na</strong>ramque uma oferen<strong>da</strong> deveria ser feita: “Um pano<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 113


escuro deveria ser rasgado por uma virgem.” O rei escolheu a sua própriafilha e após alguns procedimentos lhe entregou o pano que, assim que erarasgado, as tiras que caíam iam transformando-se em correntes de água,que juntando-se formaram o rio Níger, rodeando o reino de Ijebu que, apartir de tal episódio, passou a ser uma ilha circun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelas águas chama<strong>da</strong>sde Oyá. História semelhante vamos encontrar para <strong>da</strong>r explicaçãoao culto do orixá Oxun no rio que leva o mesmo nome e atravessa Oxogbo,e até mesmo o culto a Yemanjá, <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Abeokutá. Retomar essahistória que até já foi registra<strong>da</strong> no trabalho de Siriku Salamim King, intitulado:Os orixás africanos, publicado pela editora Oduduwa, é muitoimportante num momento em que tal ancestral enfrenta uma acelera<strong>da</strong>mu<strong>da</strong>nça de concepção. Se é ver<strong>da</strong>de, como sugeriu Roger Bastide, que aescravidão impões às religiões trazi<strong>da</strong>s pelos africanos a seleção dos ancestraiscultuados no Brasil, ora reforçando algumas características, resultandono desaparecimento ou o fortalecimento de outros, é digno de notatambém que, <strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de, a representação desses ancestrais recebem“acréscimos” que <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>s vezes visam atender as expectativas <strong>da</strong>“moderni<strong>da</strong>de”, <strong>da</strong> “globalização” e <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> turística. Se no início osmissionários católicos, juntamente com os traficantes, tiveram participação<strong>na</strong> construção de algumas concepções confusas sobre alguns ancestrais,<strong>na</strong> atuali<strong>da</strong>de isso fica por conta particularmente dos antropólogosou outros simpatizantes que, se antes haviam confundido os ancestraiscom “deuses divinizados”, agora os tratam como “arquétipos universais”,uma espécie de tipologia, imagem, resumindo, “formas de classificação.”Se por um lado isso atrai um público que vê as religiões afro-brasileirascomo algo que vai além <strong>da</strong> preservação e afirmação dos elementos negro--africanos, tal fato não deixa de causar <strong>da</strong>nos às matrizes culturais que formaramestas religiões. No caso de Oyá, as imagens oscilam entre a sensuali<strong>da</strong>de,sendo reduzi<strong>da</strong> à sexuali<strong>da</strong>de e à vulgari<strong>da</strong>de, depravação,estereótipos que desde cedo acompanharam a mulher negra. Não sei emque momento padronizou-se que a cor de Oyá é o vermelho. Venho insis-114 • vilson caetano de sousa júnior


tido que orixá não tem cor, exceto para os órgãos de turismo que atualmentevêm organizando festas religiosas <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador. GilbertoFreyre, por exemplo, nos vai informar o significado do uso do “encar<strong>na</strong>do”para a cultura portuguesa e espanhola. Era a cor <strong>da</strong>s paixões, <strong>da</strong> atração,que inflamava os corações, utiliza<strong>da</strong> pelas cortesãs no século XVI. Overmelho também era utilizado <strong>na</strong> prevenção ou combate de algumas enfermi<strong>da</strong>des.Diferentemente, a “cor de coral” remete à terra, representa<strong>da</strong>pelo cobre ou outros metais. Fato é que esse apelo à sensuali<strong>da</strong>de no orixáOyá acontece em detrimento <strong>da</strong> retira<strong>da</strong> desta de orixás como Oxun e Yemanjá,ancestrais guerreiros, que graças à sua aproximação com imagenstoma<strong>da</strong>s empresta<strong>da</strong>s do Cristianismo, perdem também as suas características.Certa ocasião presenciei a comparação entre Oyá e a deusa roma<strong>na</strong>Dia<strong>na</strong>, caçadora, guerreira, que possuía várias formas. Lhe chamei aatenção afirmando que “Oyá ficaria mais contente” se fosse compara<strong>da</strong> aIsis, a deusa africa<strong>na</strong> <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de, que emprestou à Imacula<strong>da</strong> Conceiçãoo título de Mater Dei, mãe de Deus. Assim como Mitra, o Deus Sol,celebrado no dia 25 de dezembro, cedeu lugar para os cristãos comemoraremno seu dia o <strong>na</strong>scimento de Jesus. Oyá é, de fato, o ancestral <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de.Como Isis, ela é responsável pela continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Se compararmosos dois mitos, Isis, através dos bálsamos e perfumes, garante acontinui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> mumificação e Oyá <strong>da</strong> mesma maneira,reunindo os pertences de seu pai, o velho caçador, após vários dias de festa,garante a sua memória. Mais uma vez o seu elemento é água, pois elasgarantem a continui<strong>da</strong>de. Lembremos que o ar <strong>na</strong><strong>da</strong> mais é do que águacondensa<strong>da</strong>, e os ventos são este ar fazendo movimentos rápidos. ComoIsis, que aju<strong>da</strong>-nos <strong>na</strong> travessia sobre o mundo dos mortos, Oyá leva comovento o último suspiro de ca<strong>da</strong> um de nós, entregando-o a Olodumaré.Além disso, ela espalha as sementes como a borboleta que distribui o pólenentre as flores, misturando as cores, mantendo a vi<strong>da</strong>. Oyá relacio<strong>na</strong>--se diretamente com os olhos, os mesmos que nos separam do mundo dosantepassados. Destes ape<strong>na</strong>s podemos enxergar tiras de pano que balan-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 115


çam graças à força empresta<strong>da</strong> por Oyá. Esse fato é lembrado num mitoque conta que, certa ocasião, o povo do Dahomé, ou povo <strong>da</strong> cobra, marchoucontra o seu reino a fim de destruí-lo. Em pleno dia claro, Oyá apareceuto<strong>da</strong> vesti<strong>da</strong> de cobre e o reflexo do sol sobre suas vestes foi de tal maneiraque cegou o exército e o fez recuar. Oyá liga-se ao mercado. Ela é oprincípio ancestral <strong>da</strong> troca, <strong>da</strong> moe<strong>da</strong>. Esta característica é evoca<strong>da</strong> emvários mitos onde ela aparece como uma búfala ou um leopardo. Certamentepor este motivo, desde cedo africanos e africa<strong>na</strong>s lhe evocaram nomomento <strong>da</strong>s ven<strong>da</strong>s. Oyá, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, surge de várias formas. Ela estáem todos os lugares, <strong>da</strong>í um de seus títulos: Ya mesan Orun. Aquela queestá em todos os espaços que nossos olhos não alcançam. Mas como o elementofogo aparece ligado a Oyá? Ora, tal elemento reveste-se de significadoparticular <strong>na</strong>s civilizações mais antigas. Enquanto as águas remetemà continui<strong>da</strong>de, o fogo diz respeito à transformação, mu<strong>da</strong>nça, movimento.Inã, fogo, é atributo por excelência do orixá Exu. Como lembra o provérbio:“Um corpo que possui calor está vivo, quando ele esfria, está morto”.Já tivemos a oportuni<strong>da</strong>de de explicar como Exu “anima” o corpo. Izôsão as chamas, labare<strong>da</strong>s. Esfregando uma pedra <strong>na</strong> outra, ou dois gravetos,temos a faísca. Em segui<strong>da</strong>, aba<strong>na</strong>ndo, por exemplo, temos as labare<strong>da</strong>s.Izô significa encontro, disputa, tudo que a fogueira, o fogareiro, o fogãode lenha, o moquém representou para a humani<strong>da</strong>de. Há ape<strong>na</strong>s ummito onde aparece a relação de Oyá com o fogo, o qual já trabalhamos,com o nome: O dia que o mundo pegou fogo. Trata-se <strong>da</strong> história que falaque Xangô pediu a Oyá que fosse à terra dos Baribas buscar algo que fariatodos os reinos dobrarem-se diante de sua presença. Porém, Oyá não deveriaabrir a encomen<strong>da</strong>. Assim Oyá fez. Retor<strong>na</strong>ndo, to<strong>da</strong>via, diante <strong>da</strong>recomen<strong>da</strong>ção de seu esposo, Oyá abriu a caixa e provou a “fórmula mágica”que estava conduzindo. Ao entregar ao Rei, este se apressou logo emexperimentar. Para sua surpresa, “Oyá mal podia abrir a boca, pois ela eraum fogo só”. Graças a sua “ousadia”, todos os reinos estavam salvos, poispassariam a dividir com o Rei o principio <strong>da</strong> transformação. Conta-se ain-116 • vilson caetano de sousa júnior


<strong>da</strong> que Xangô, não satisfeito com este feito, procurou o local mais alto doreino e começou a manipular a fórmula trazi<strong>da</strong> por Oyá. Fogo, então, passoua descer do céu como chuva, sob a forma de meteoros e raios, incendiandoOyó. Após o desaparecimento do Rei, as lágrimas de Oyá deramorigem ao rio onde hoje ela é cultua<strong>da</strong>. Com isso, encerramos nosso textoexplicando que o título: “Quem vai salvar Oyá do fogo”, é uma provocaçãopara que reflitamos sobre como estamos nos apropriando <strong>da</strong>s imagensproduzi<strong>da</strong>s ora pela academia, ora pela mídia. A descaracterização do orixáOyá é ape<strong>na</strong>s um exemplo. Este tem me incomo<strong>da</strong>do muito. Salvar dofogo significa procurar ir além <strong>da</strong>s leituras que reduzem este orixá a talelemento, afi<strong>na</strong>l, “o fogo não queima Oyá, Inã ki joya. Não queimou <strong>na</strong>presença de Xangô, não queimou quando as labare<strong>da</strong>s desceram do céucontra o seu reino, porque ela é água, é continui<strong>da</strong>de, garanti<strong>da</strong> pela bocaque comeu o fogo, como Exu, que comeu tudo e depois devolveu as coisas,agora, cheias desse princípio divino transformador.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 117


oxun


a artista do universoNos primórdios, Oxalá criou os sons, mas tudocontinuava ain<strong>da</strong> confuso. Oxun combinou osdiferentes sons, criou as notas musicais e acabouinventando a música.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 121


O culto ao orixá Oxun, no Brasil, confunde-se com o de Yemanjá,sua mãe. De acordo com o mito, Oxun teria <strong>na</strong>scido após a imposição<strong>da</strong>s <strong>mão</strong>s de todos os orixás sobre a sua mãe. Oxun é o principio ancestral<strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de, conceito que nos últimos anos passou a ser contestadopor algumas correntes do movimento feminista, mas que ain<strong>da</strong> gozadentre os africanos valor fun<strong>da</strong>mental. Enquanto alguns ancestrais sãochamados de Ye, mãe, Oxun é chama<strong>da</strong> de Yeye, mamãe. Acredita-se queno momento <strong>da</strong> divisão dos poderes, enquanto alguns ancestrais brigavampela terra, outros pelo ferro, Oxun apressou-se e pegou eyn, o ovo.A partir desse fato ela passou a acompanhar todos os acontecimentos.Oxun está em tudo, pois ela regula tudo que é cíclico. Ela não somentecoman<strong>da</strong> o ciclo menstrual, mas também as estações e o próprio movimentodos planetas. Oxun regula as marés, cui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s crianças e presidedesde a fecun<strong>da</strong>ção ao amadurecimento dos frutos. A esse princípio ancestralsão consagra<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as frutas. Há trinta anos atrás, quando ain<strong>da</strong>“a ci<strong>da</strong>de de Salvador era um pomar”, no mês de dezembro, por ocasião<strong>da</strong> festa de Nossa Senhora <strong>da</strong> Conceição, barracas eram espalha<strong>da</strong>s emtorno <strong>da</strong> Igreja para celebrar as “frutas do ano.” Oxun foi a primeira pediatrado Universo. Ela auxiliava as crianças <strong>na</strong> hora de vir ao mundo ouretor<strong>na</strong>r deste. Oxun assim acompanha os ritos de iniciação no mundodos antepassados, pois ela está a frente de todos os <strong>na</strong>scimentos. Desdecedo se associou esse princípio ancestral às águas, Oxun, de fato, é to<strong>da</strong>sas águas, sobretudo o líquido que preenche a placenta. Na ver<strong>da</strong>de, esteprincípio coman<strong>da</strong> “to<strong>da</strong>s as coisas de dentro”. Oxun garante o funcio<strong>na</strong>mentodo nosso organismo. Assim, seu domínio vai além do sistemagastrointesti<strong>na</strong>l. Fato este que a fez desde cedo ser associa<strong>da</strong> à comi<strong>da</strong>.Se diz nos terreiros que Oxun é a do<strong>na</strong> <strong>da</strong> panela. Se a panela representao mundo, depois de tudo que explicamos, podemos dizer que Oxundá sentido ao mundo, por isso é atribuí<strong>da</strong> a ela a invenção <strong>da</strong> linguagem.Como a costureira, Oxun une partes diferentes e o resultado é a quebrade fronteiras, a mesma observa<strong>da</strong> no mercado. Falando sobre o merca-122 • vilson caetano de sousa júnior


do, antes mesmo dos anos 60, referencial do momento em que algumasmulheres foram reinvindicando a sua independência, as socie<strong>da</strong>des yorubásjá conheciam, além de mulheres no mercado de trabalho, sem abrir<strong>mão</strong> de sua materni<strong>da</strong>de, a figura <strong>da</strong> Yalodê, literalmente a “mãe que vaipara a rua”, ou a mãe que está <strong>na</strong> rua. Ain<strong>da</strong> hoje podemos encontrar aYalodê entre os yorubás. Trata-se de uma mulher desig<strong>na</strong><strong>da</strong> pelas outrasmulheres para tomar assento em decisões “fora de casa”. A Yalodê fala noconselho por to<strong>da</strong>s as mulheres e acredita-se que assim foi “desde o princípiodo mundo”, quando Oxun foi convi<strong>da</strong><strong>da</strong> para acompanhar os orixáscaçadores por todos os cantos <strong>da</strong> terra. Outra imagem vincula<strong>da</strong> à Oxun éo pássaro. Ver<strong>da</strong>de é que to<strong>da</strong>s as aves pertencem a Oxun. Oxun cui<strong>da</strong> domundo como a galinha cui<strong>da</strong> dos pintinhos embaixo de suas asas. As históriassobre este princípio ancestral confunde-se com as histórias sobrea própria ci<strong>da</strong>de de Salvador, ci<strong>da</strong>de a beira-mar onde se canta em coroque “todo mundo é de Oxun”. Três mulheres de Oxun coman<strong>da</strong>ram aci<strong>da</strong>de no século passado: Maria Bibia<strong>na</strong>, Senhora de Oxun; Maria Escolástica,Menininha do Gantois, a Oxun mais canta<strong>da</strong> pelo mundo afora;e Caeta<strong>na</strong> América Sowzer, a saudosa Yá Caeta<strong>na</strong> Bagbosé. Mãe Caeta<strong>na</strong>era filha de Felizberto Sowzer, conhecido como Benzinho, filho de JúliaAndrade, filha de Tio Bangboxé. Benzinho era filho de Ogun e foi o responsávelpela organização do jogo de búzios, conhecido como merindilogunno Brasil. No terreiro Pilão de Prata, fun<strong>da</strong>do em 1961 por seu sobrinhoconsangüíneo, Air José Souza de Jesus, a festa de Oxun é uma <strong>da</strong>smais concorri<strong>da</strong>s. Nesta comuni<strong>da</strong>de, Oxun recebe o título de Yalê, mãe<strong>da</strong> casa. Caeta<strong>na</strong> América Sowzer ain<strong>da</strong> hoje é referencia<strong>da</strong> pelas pessoasque tiveram o privilégio de conviver com ela como mestra. Seu pai teria“traduzido” um dos sistemas adivinhatórios africanos mais complexos.Como as outras mulheres de Oxun, coube a ela zelar com determi<strong>na</strong>çãopelos princípios fun<strong>da</strong>mentais para a consoli<strong>da</strong>ção dos elementos civilizatóriosnegro-africanos no Brasil através <strong>da</strong> religião dos orixás, mantendo-osvivos dentro de ca<strong>da</strong> um de nós.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 123


yemanjá


yemanjá, a mãe dos orixásSem sombra de dúvi<strong>da</strong>, Yemanjá é o orixá maispopular no Brasil, e talvez isso valha tambémpara outros países costeiros, ou a beira-mar, comoCuba, onde esta é considera<strong>da</strong> a rainha <strong>da</strong> ilha pelos<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 127


santeiros. Como outros ancestrais <strong>na</strong>gôs, o culto a tal orixá, realizado <strong>na</strong>ci<strong>da</strong>de de Abeokutá e no rio Ogun, sofreu um processo significativo dereinterpretação simbólica no Novo Mundo. O exemplo mais ilustrativodisso é a per<strong>da</strong> de características guerreiras em detrimento <strong>da</strong> exacerbaçãode elementos como virgin<strong>da</strong>de, pureza e docili<strong>da</strong>de, ideais por excelência<strong>da</strong> figura <strong>da</strong> Virgem Maria que desde cedo recebeu atributos <strong>da</strong>s deusasafrica<strong>na</strong>s, a exemplo de Isis, de quem herdou o titulo de Mater Dei, e deoutras deusas gregas e roma<strong>na</strong>s. Diferente <strong>da</strong> ideia de humil<strong>da</strong>de e submissão,características espera<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres pelos gregos como a terraque sustenta o céu, Yemanjá está no começo <strong>da</strong> criação do Mundo. Acredita-seque ela forma um par criativo com Oxalá. Isso explica a sua profun<strong>da</strong>relação com o elemento água, cheio de significados <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>scivilizações. Por exemplo, algumas mulheres indíge<strong>na</strong>s do litoral se lavavam<strong>na</strong> praia, pois acreditavam que a espuma do mar as tor<strong>na</strong>vam férteis.Yemanjá é o princípio criativo <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong>de. Ela está <strong>na</strong> terra, nos grãos,nos rios, nos mares, em to<strong>da</strong>s as mulheres e em todos os seus filhos, queco-participam desse poder graças à força conferi<strong>da</strong> pelas Grandes Mães.As representações desse orixá, que desde cedo foi associado às sereias,ao longo <strong>da</strong> história recebeu elementos que lhe afastam <strong>da</strong> representaçãoafrica<strong>na</strong>. Em algumas dessas, para se falar <strong>da</strong> noção de beleza, se fez usode características não negras, desta maneira, a representação <strong>da</strong> mulhercom seios volumosos e formas arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>s cedeu lugar para a imagemde uma mulher branca, cabelos lisos e corpo magro e esguio. Não estamoscom isso contestando a capaci<strong>da</strong>de do devoto fazer a sua experiência religiosanessas representações, mas chamando a atenção para o fato de queas imagens do sagrado vinculam visões de mundo e expressam valores <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de que lhe está produzindo o tempo todo, o problema está quandonão nos <strong>da</strong>mos conta disso. Sobre isso, as mulheres do movimentonegro iniciaram já há alguns anos uma crítica, e tem se avançado muito. Ea sereia? Sempre disse que é o contrário do princípio <strong>da</strong> Grande Mãe, portratar-se de seres que carregam a “maldição” de não poderem ter filhos, o128 • vilson caetano de sousa júnior


contrário de Yemanjá, mãe dos orixás, menos <strong>da</strong>queles ligados a di<strong>na</strong>stiade Oyó, como Ogun, Odé, Xangô e Oxun. Da sereia grega, o símboloque estabelece melhor diálogo com Yemanjá é a imagem do peixe que,como o pássaro, o leque e as águas, são considerados “princípios femininos”que não podem ser compreendidos em contraposição a outros.Dessa maneira, o atributo por excelência <strong>da</strong> Grande Mãe é a guerra. Segundoum de seus mitos, ela teria ensi<strong>na</strong>do a Ogun forjar as “pencas”,depois transforma<strong>da</strong>s nos famosos balangandãs que, mais do que enfeites,cumprem funções de proteção, além <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> para defender o seureino. Outra história conta como Yemanjá venceu alguns inimigos quemarchavam em direção ao seu reino. Ela teria se enfeitado e levantado oseu leque que, em contato com o sol, multiplicou o seu exército. Sobre aorigem dos presentes oferecidos às águas, já explicamos no texto sobreas oferen<strong>da</strong>s. Trata-se de uma prática antiga que pode ser encontra<strong>da</strong> emvárias civilizações. A sua origem esta <strong>na</strong> concepção do valor <strong>da</strong> troca depresentes com os ancestrais ver<strong>da</strong>deiros responsáveis pela manutenção<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des. Nos últimos anos, grupos ambientalistas têm aberto adiscussão sobre o nível de poluição representado pelos presentes à basede produtos não degradáveis, como plásticos, vidros e outros. Claro queo povo de candomblé não pode ser responsabilizado pela poluição dosmares, talvez isso valha para as indústrias e empreendimentos imobiliáriosque poluem as águas todos os dias a to<strong>da</strong> hora. Temos, to<strong>da</strong>via, queestar atentos àquilo que oferecemos, afi<strong>na</strong>l, nossos antepassados não conheceramalguns presentes que hoje teimamos em colocar <strong>na</strong>s águas, e setivessem conhecido, sem sombra de dúvi<strong>da</strong> não colocariam, pois sabiamque o maior presente são os grãos, as flores e a nossa vi<strong>da</strong>. Nos terreirosde tradição <strong>na</strong>gô, diz-se que ela cui<strong>da</strong> de nossas cabeças e de tudo quese relacio<strong>na</strong> ao equilíbrio. Nas tradições angola/congo, este princípio éevocado como o nome de Kaia, mas há também tradições que o chamamde Aziri Tobossi, como a jeje. Mais do que a desig<strong>na</strong>ção, ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>depossui estórias próprias para falar desse ancestral <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong>de que<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 129


não pode ser encerrado <strong>na</strong> concepção <strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de, afi<strong>na</strong>l, há váriasmaneiras de conceber. Vale mesmo não se afastar <strong>da</strong> ideia de que ca<strong>da</strong> servivo que <strong>na</strong>sce é um ancestral que se faz presente através <strong>da</strong> constituiçãode longas famílias. Assim, Yemanjá, Kaya, Aziri Tobossi e mesmoYara, estão em tudo. Talvez no início tal princípio tenha sido associado àságuas graças a importância que estas cumpriam <strong>na</strong>s civilizações responsáveispor tal representação. O princípio de fertili<strong>da</strong>de está, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de,em tudo. Ele garante o equilíbrio <strong>da</strong>s coisas, as mantendo entrelaça<strong>da</strong>scomo escamas, nos fazendo peixes filhos de uma mãe cujo filhos são peixes.Ye/ Omo/ Ejá.130 • vilson caetano de sousa júnior


<strong>na</strong>nã


iya agba yin,a mãe mais velhaDentre os estudos afro-brasileiros, muito já se escreveusobre os orixás Oyá, Oxun e Yemanjá. Emcontraparti<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> pesa sobre Nanã um silênciopelo desconhecimento, se não de suas histórias,<strong>da</strong> sua importância como figura que em algunsmitos confunde-se com o próprio Universo.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 133


Das poucas histórias sobre Nanã, a mais conheci<strong>da</strong> é a que fala do abandonopor ela de um de seus filhos, Obaluaiyê, por este ter <strong>na</strong>scido doente.Em outro mito, Nanã teria tido duas crianças, uma feia e a outra bonita.Quando pergunta<strong>da</strong> sobre seus filhos, Nanã teria escondido Omolu, “ofilho feio”, e apresentado Oxumarê, o mais bonito. Há também a históriaque fala <strong>da</strong> sua disputa com Ogun pela antigui<strong>da</strong>de no mundo. Perdendo abriga, Nanã decide rejeitar todos os instrumentos que passam pelas <strong>mão</strong>sdo filho mais novo de Oduduwa. Por fim, encontramos ain<strong>da</strong> o mito quefala sobre a disputa entre Yemanjá e Nanã, a primeira descrita como joveme bonita e a segun<strong>da</strong> feia e velha. Ganhou a primeira, após induzir a velhaa tomar um banho de lama.Não precisamos ir muito longe para demonstrar que se trata, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de,de fragmentos de mitos, a maioria re-significados quando as religiõesde matriz africa<strong>na</strong> se constituíram no Brasil.Do primeiro, podemos chamar atenção para a relação entre Nanã,Obaluaiyê e as doenças. No segundo, a relação que alguns grupos queformaram o Reino do Danxomé estabeleceram desde cedo entre Nã, chama<strong>da</strong>de Mino<strong>na</strong>, literalmente “nossa Mãe Nã”, <strong>na</strong> língua Fon, e os gêmeos.A disputa entre Nanã e Ogun atesta a antigui<strong>da</strong>de de comuni<strong>da</strong>desdo Oeste do Danxomé, que teriam migrado para as várias regiões antes<strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do grupo liderado por Oduduwa, ancestral mítico do povoyorubá que organizaram-se em torno dos “ancestrais <strong>da</strong> terra.”Um estudo mais elaborado sobre alguns desses fatos foi realizadopela antropóloga Claude Lepine e apresentado em forma de livro, intitulado:Os dois reis do Danxomé. Neste trabalho a autora registra que em IléIfé, Obaluaiyê teria chegado antes de Oduduwa, juntamente com Buku,ancestral responsável pela varíola. De Oyó, Obaluaiyê migrou para o paísMahi, e Buruku seguiu com a mesma representação. Em Iba<strong>da</strong>n, Sapa<strong>na</strong>ne Buruku chegaram juntos do Danxomé, ou do Togo, e lá foram cultuadosjuntos, confundido-se o guerreiro e a varíola. Isso valeu também134 • vilson caetano de sousa júnior


para Abeokuta, onde acreditava-se que Buruku teria vindo de Savé eOmolu do Danxomé.Se é difícil determi<strong>na</strong>r com precisão a <strong>da</strong>ta do aparecimento <strong>da</strong> varíola,uma vez que ela recebia, até o século XVII, a denomi<strong>na</strong>ção genérica de“peste”, é consenso, se não a <strong>da</strong>ta, a ideia de que a primeira epidemia teriaocorrido em Meca, em 568 ou 572. O mesmo vale para o outro lado docontinente, <strong>na</strong> Índia e <strong>na</strong> Chi<strong>na</strong>, nos séculos VI e VII A.C, há descriçõespareci<strong>da</strong>s com a doença e a menção à deusa <strong>da</strong> varíola.A varíola chegou ao Brasil com o tráfico e desde cedo assolou a vi<strong>da</strong> demuitas pessoas. Edison Carneiro, no texto: Omolu, o médico dos pobres,ao fazer uma breve descrição <strong>da</strong> situação <strong>da</strong> saúde <strong>da</strong> população negra epobre <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador – população que resiste a ir aos hospitais, e seentregar à sorte de morrer a míngua, abando<strong>na</strong><strong>da</strong> –, resume a função queNanã ocupava no universo destas populações. Ele escreveu: “Obaluaiyêé a varíola e Nanã é literalmente a vaci<strong>na</strong>, a Ya agba yin, a que cura, a quecui<strong>da</strong>, a que toma conta”.Nã, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, é um título utilizado para desig<strong>na</strong>r uma senhora venerável,princesa, rainha. Estaríamos assim diante de um princípio ancestralbastante antigo cujo culto de Buruku foi associado. Nã constituimatéria primordial, semelhante àquela que encontramos num mito yorubáque fala <strong>da</strong> lama como matéria entregue a Obatalá para este modelaros seres vivos. Nanã é o espírito que gover<strong>na</strong> o Mundo.Segundo um de seus mitos, depois de Nanã ter criado o mundo, eladeu à luz a gêmeos, Mawu e Lisa. Não seria o fragmento desta históriaque aparece no mito que mencio<strong>na</strong> a presença de dois filhos ligados a Ela?Não saberíamos dizer de onde teria saído a oposição feio/bonito. Diz omito que depois apareceu Aizan, a morte. Em segui<strong>da</strong> Nanã criou Azomadonu,o ar. Depois, os Voduns e as famílias de Heviosô, Dan e Sapata.Da família de Heviosô, Sogbô, o rei; Possu, o mais velho; Loko, omais novo filho de Sobô; Badé, o menino; Averequete, o pescador do rei;Agbé, o que mora com os astros; Aziri e Tobossi, voduns do mar e outros.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 135


Da família de Dan, Azomadonun, o mais velho; Bessem, filho deDan. Kwenkwen, a cobra fêmea velha e Ojicu, a nova. Bessem se une aOjicu e faz <strong>na</strong>scer Bafonô, Toquem, Doquem, Frequem, etc.Da família de Sapatá: Azoani, Avimaje, Azansu, Poli Boji, AtoluNa língua fon, a expressão “Mino” significa, literalmente, “NossaMãe Na”. Esta tradução nos remete a outro mito interessante.Depois <strong>da</strong> criação do mundo, quando Mawi resolveu morar <strong>na</strong>s alturas,Nã preferiu ficar <strong>na</strong> terra. Ela residiu <strong>na</strong> floresta e passou a ser protetora<strong>da</strong>s mulheres que a invocam to<strong>da</strong>s as vezes que querem ter filhos. Estahistória nos apresenta o inverso do mito do abandono.Parece que com o passar do tempo, diante do impacto, ora fruto doscontatos internos entre os grupos, ora externos, a noção de Nanã comocriadora caiu no esquecimento. Isso fez com que, no século XIX, Mawufosse identificado com o Deus católico e Lissa como Jesus Cristo. Processosemelhante teria passado este ancestral no Brasil. Isso vai aparecer norelato <strong>da</strong> disputa entre Nanã e Yemanjá.Este mito em particular é um dos mais emblemáticos. Ele retoma aoposição entre aquilo considerado belo e o seu contrário. Não precisamosir longe para demonstrar que estas concepções culturais estão diretamentevincula<strong>da</strong>s a ideias econômicas, políticas e sociais. Claro que taloposição não foi elabora<strong>da</strong> pelos africanos, ao contrário, anciãos e anciãsgozam de grande prestígio <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreiros, pois são responsáveispela manutenção <strong>da</strong>s tradições e considerados enciclopédias vivas.Desconstruir algumas dessas imagens é muito importante ao menospara a afirmação <strong>da</strong> matriz cultural negro-africa<strong>na</strong> e fortalecimento denossa autoestima.Para fi<strong>na</strong>lizar, quero retomar um mito que já há algum tempo nãoescuto. O que reafirma a ideia de que Nanã cui<strong>da</strong> do mundo.Conta-se que, uma certa vez, os caçadores realizaram uma longa caça<strong>da</strong>.Se empolgaram tanto que saíram matando indiscrimi<strong>na</strong><strong>da</strong>mente.Depois que acabaram com os bichos de pe<strong>na</strong>s, deram fim aos animais de136 • vilson caetano de sousa júnior


quatro patas. Odé teria enlouquecido. Entrava nos reinos e matava até ascrianças que estavam engatinhando. O único orixá que pôde intervir foiNanã, restabelecendo a ordem. A humani<strong>da</strong>de agora estava salva, graças aIya agba yin, a mãe mais velha.Nanã é o princípio criativo que se cobre com to<strong>da</strong>s as cores, que vesteto<strong>da</strong>s as roupas. Nanã é um celeiro que, além de recolher todos os grãos,é a do<strong>na</strong> <strong>da</strong> providência. Ela nunca se ausentou do mundo e não há filhoórfão, pois ela participa de nossas vi<strong>da</strong>s em tudo.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 137


oxalufan


o ano bom para as religiõesde matriz africa<strong>na</strong>Ao contrário do Natal, festa de influência cristã,ocasião em que acontece também <strong>na</strong>s comuni<strong>da</strong>des-terreirosa “troca de presentes”, o ano novo,chamado de “ano bom”, reveste-se de grandesignificado para o povo de candomblé. Como os<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 141


demais momentos de passagem, nesta ocasião se aproveita para reforçaros laços entre os iniciados(as) e seus ancestrais, <strong>da</strong>í a observância dealguns ritos como o de trocar as águas <strong>da</strong>s quartinhas dos orixás, voduse nikices. Este gesto, dentre outros, possui a função de evocar <strong>na</strong> comuni<strong>da</strong>deque a vi<strong>da</strong> deve ser vista como continui<strong>da</strong>de, expressa através dogrupo reunido em torno do sagrado para celebrar e pedir pelo novo anoque se inicia. Desta maneira ele é recebido com muita alegria. Para isso sãorealiza<strong>da</strong>s algumas oferen<strong>da</strong>s e todo “espaço-terreiro”, juntamente comas pessoas que o compõem são preparados através de banhos rituais que,mais do que “limpar o corpo”, visam afirmar e estreitar os laços entre osindivíduos e a sua ancestrali<strong>da</strong>de, garantindo, assim, a permanência doschamados “elementos civilizatórios negro-africanos” no Novo Mundo.É também o momento em que os ancestrais são consultados e o babalorixáou yalorixá traz, através dos ancestrais, uma explicação para o novoano. Ca<strong>da</strong> vez mais, até para atender as expectativas <strong>da</strong> mídia, ou mesmoresguar<strong>da</strong>r o momento secreto, ou reservado a poucos iniciados, tem sepopularizado a ideia de que o orixá associado ao dia <strong>da</strong> sema<strong>na</strong> em quese inicia o ano terá a regência sobre o mesmo. Na ver<strong>da</strong>de, todos os dias<strong>da</strong> sema<strong>na</strong> pertencem aos orixás, mas não vamos entrar nesse debate atémesmo para não frustrarmos a mídia ou os órgãos de turismo, sobre osquais estamos sempre nos referindo pela capaci<strong>da</strong>de de criar expectativas<strong>na</strong>s pessoas, ao menos <strong>na</strong>quelas que buscam um contato pela primeira vezcom as religiões de matriz africa<strong>na</strong>. Ver<strong>da</strong>de é que ca<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de realizaa sua consulta. É ela quem dirá, através do jogo de búzios, qual ancestralrei<strong>na</strong>rá sobre o ano, ou melhor, <strong>na</strong>quela casa. Isso, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, serve maiscomo uma home<strong>na</strong>gem ao ancestral, pois queremos mesmo é que todosreinem durante todos os dias do ano. Dito isso, vale chamar a atenção parao fato de que o mês de janeiro <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador é muito especial, poismuitos terreiros de candomblé iniciam suas festas com o chamado Ciclo<strong>da</strong>s Águas.142 • vilson caetano de sousa júnior


O Ciclo <strong>da</strong>s Águas, especialmente nos terreiros reelaborados a partirde elementos vindos dos antigos Reinos Africanos de Ifé, Ketu e Oyó,aqui somados a outros, inicia-se com uma <strong>da</strong>s celebrações mais complexas,conheci<strong>da</strong> como Águas de Oxalá, e dura dezesseis dias. Oxalá estáligado à criação. É ele quem ain<strong>da</strong> hoje continua atribuindo formas aoscorpos celestes, às pedras, enfim, a tudo que tem vi<strong>da</strong>. Este é, pois, umdos significados <strong>da</strong>s águas de Oxalá: a continui<strong>da</strong>de. Afi<strong>na</strong>l, as primeirascomuni<strong>da</strong>des que saíram pelo mundo, segundo um dos mitos, eram<strong>na</strong><strong>da</strong> mais do que pe<strong>da</strong>ços do corpo do princípio criativo, chamado Olodumaré,que foi se espalhando sobre o mundo, ou, retomando o mito,ganhando formas sobre a imensidão <strong>da</strong>s águas. Somos, assim, partes deDeus, pe<strong>da</strong>ços do Divino, individualizados por Oxalá. Daí as águas. Elasrepresentam, dentre muitas coisas, um dos momentos mais desafiantespara estes primeiros ancestrais, pais e mães, que saíram mundo aforapara <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de à presença do ser de Olodumaré no Mundo.No Ciclo <strong>da</strong>s Águas são lembrados vários grupos, dentre eles o lideradopor Oduduwa. Segundo as histórias, ele teria criado a ci<strong>da</strong>de sagra<strong>da</strong>de Ilê Ifé. Em outras palavras, Oduduwa é o Universo criado, <strong>da</strong>í a predominânciano seu culto de roupas de algodão, fazendo memória a uma <strong>da</strong>stécnicas mais antigas desenvolvi<strong>da</strong> no continente africano, a tecelagem.Oduduwa criou o Universo como a aranha, por isso vivemos numa teiaonde tudo está entrelaçado.Além de Oduduwa, outro ancestral rememorado no Ciclo <strong>da</strong>s Águasé Orixalá, popularmente conhecido como Oxalufan, representado porum cajado que sustenta, <strong>na</strong> parte superior, os astros, <strong>na</strong> parte do meio,as coisas de cima <strong>da</strong> terra, e <strong>na</strong> parte inferior, as coisas que existem debaixo<strong>da</strong> terra, <strong>na</strong>s águas, por exemplo. Pe<strong>na</strong> que tal simbologia esteja seperdendo, ora pela falta de conhecimento, ora pela criativi<strong>da</strong>de de algunsartesãos.Por fim, há ain<strong>da</strong> outro momento, quando se rememora dificul<strong>da</strong>descomo a peste, a fome, a seca e a guerra que estes grupos enfrentaram para<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 143


sobreviver. Neste dia, a cor branca, símbolo do começo, cede lugar, emparte, para o azul, cor <strong>da</strong> guerra. É a festa do pilão dedica<strong>da</strong> ao ancestralfun<strong>da</strong>dor do imponente Reino de Elegjibô, Oxoguiã. Nesta celebração,os passos lentos são substituídos por ca<strong>minha</strong><strong>da</strong>s mais firmes. Tudo sedesenrola em torno de um pilão. Ele é o símbolo maior de manutenção<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. O grupo que antes exercia uma ativi<strong>da</strong>de coletora agorapode processar seu próprio alimento, como o i nhame, por exemplo.Na ver<strong>da</strong>de foram muitos os ancestrais que lideraram os primeirosgrupos humanos. Estes povos tomaram várias direções, fun<strong>da</strong>ram ci<strong>da</strong>des,construíram ver<strong>da</strong>deiras civilizações. Nos terreiros aos quais estamosnos referindo, estes ancestrais fun<strong>da</strong>dores recebem a desig<strong>na</strong>ção genéricade Oxalá. To<strong>da</strong>via, a forma de evocação que mais lhes representamé orixá n´lá, traduzindo literalmente, “orixá <strong>da</strong>s alturas”, não no sentidodo céu cristão, uma reali<strong>da</strong>de a ser alcança<strong>da</strong>, mas no sentido de que estãoem to<strong>da</strong>s as partes, em todos os seres, em tudo que tem vi<strong>da</strong>, comoa lagartixa que nunca abando<strong>na</strong> a casa. Oxalá está em tudo e em todos.Através dele participamos do ser de Deus e Deus participa do nosso ser.Todos somos de Oxalá, pois eles nos ligam aos momentos iniciais de consoli<strong>da</strong>ção<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> terra através dos antepassados que partiram e se espalharampor todo mundo.144 • vilson caetano de sousa júnior


oxoguiã


a guerra e a paz,a fome e a abudância, o pilão eo inhame <strong>na</strong> terra de elegigbôO chamado “Ciclo <strong>da</strong>s Águas”, ocasião em quealguns terreiros rememoram os ancestrais fun<strong>da</strong>dores,se encerra no décimo sexto dia coma celebração dos inhames. Neste dia, os passoslentos dos ancestrais são alter<strong>na</strong>dos por passos<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 147


mais rápidos e o toque compassado dos atabaques cede lugar ao “toque deguerra”. É a festa do pilão. Sem sombra de dúvi<strong>da</strong>, para os grupos que ca<strong>minha</strong>vamsem parar, tal utensílio significou uma ver<strong>da</strong>deira revoluçãotecnológica, semelhante à descoberta do fogo, <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> e do ferro. Agora sepodiam conservar os alimentos através de farinhas transforma<strong>da</strong>s posteriormenteem papas. Tal celebração se desenvolve em torno de um ancestralsobre o qual não se fala muito nos terreiros, não se chama o nomee possui culto cercado de significações e mistérios: Oxoguiã, fun<strong>da</strong>dordo reino de Egigbô. Acredita-se que Oxoguiã seja a própria guerra. Elerepresenta as dificul<strong>da</strong>des e desafios que os primeiros grupos humanosenfrentaram para consoli<strong>da</strong>r as civilizações. Se Oduduwa é o universo eOxalufan, a criação, Oxoguiã é o princípio universal que mantém as coisasvivas. Daí ele se confundir com a própria comi<strong>da</strong> servi<strong>da</strong> neste dia. Játivemos a oportuni<strong>da</strong>de de lembrar que a comi<strong>da</strong> é fonte de axé, transmitevitali<strong>da</strong>de, calor e quando o calor cessa, o corpo morre. De acordocom alguns mitos, Oxoguiã teria inventado a <strong>mão</strong> de pilão e garantido asobrevivência e o esplendor do reino de Egigbô. Ain<strong>da</strong> hoje em tal regiãose comemora tal festa. Segundo algumas histórias, alimenta<strong>da</strong>s durantevários anos por tal raiz, homens e mulheres se fortaleceram e foramconsoli<strong>da</strong>ndo as civilizações. Este é, pois, um dos sentidos <strong>da</strong> “festa doinhame”, ou “festa do pilão”, quando os terreiros de candomblé são invadidospor tempos míticos que se alter<strong>na</strong>m num mesmo momento: avi<strong>da</strong> e a morte, a guerra e a paz, a fome e a abundância, as doenças e asaúde. Tudo acontece de forma muito rápi<strong>da</strong> em torno de um pilão, protegidopor um pano branco, o mesmo que representa a criação. Ao mesmotempo em que a comi<strong>da</strong> é servi<strong>da</strong>, varas rituais, as mesmas utiliza<strong>da</strong>spara evocar os antepassados e chamar a chuva, garantindo a fertili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>terra, são distribuí<strong>da</strong>s entre algumas pessoas que dão início a uma guerraritual, batendo uma <strong>na</strong>s outras e nos presentes. Este ritual se reveste detal significado que é proibido ficar parado. É preciso correr, <strong>da</strong>r voltas afim de não afrontar tal orixá. Diz-se também que é um momento de “tirar148 • vilson caetano de sousa júnior


as pragas”, e o povo africano bem sabe o que isso significa <strong>na</strong> sua vi<strong>da</strong>.Assim sendo, há algumas pessoas que acreditam ser este também umritual de purificação. Conceito que certamente alguns grupos africanosreceberam do islamismo. Após esse ritual, a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s primeirascivilizações está garanti<strong>da</strong>, pode-se assim viver um novo momento, otempo do “povo do azeite”, dos ancestrais filhos, representados por Exu,Ogun, Odé e Ossain, ancestrais que em alguns momentos confundem--se com o próprio Oxoguiã, pois ele está <strong>na</strong> fronteira <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte,do dia e <strong>da</strong> noite. Com Oxoguiã os elementos que compõem o universonão possuem definições rígi<strong>da</strong>s. Ele nos ensi<strong>na</strong> que não podemos olharpara trás, mas que é preciso seguir sempre em frente, pondo fim, assim,à noção de passado. Em outras palavras, não há o que aconteceu, mas ofuturo próximo eternizado em ca<strong>da</strong> momento presente vivido em plenitude.Oxoguiã é o ancestral do coração, símbolo <strong>da</strong> inteligência africa<strong>na</strong>.Conta um mito que para ele percorrer todos os cantos <strong>da</strong> terra, alternoua cor branca, símbolo <strong>da</strong> criação, pela azul, tor<strong>na</strong>ndo-se invisível. O símbolomaior dessa festa é o inhame amassado, comido também às pressasprotegido pelo pano branco suspenso sobre nossas cabeças, para ganharforça, afi<strong>na</strong>l a guerra não espera. Precisamos estar fortalecidos para vencê-lasempre. Comer tal iguaria fora desse pano acredita-se que provocaefeito contrário. Para um orixá sobre o qual não se fala muito, acreditamosque já dissemos o suficiente. Para concluir, vamos fazer memóriade alguns filhos e filhas desse ancestral, presentes <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador.Iniciemos por Tia Massi, uma <strong>da</strong>s sacerdotisas mais lembra<strong>da</strong>s pelos terreirosde tradição ketu. Tia Massi era filha de Oxoguiã e liderou o Candomblédo Engenho Velho por muitos anos, falecendo com mais de cemanos. Ela foi a iniciadora de grandes lideranças religiosas, como Mãe Tatá,atual Yalorixá <strong>da</strong> Casa Branca. Gostaríamos também de lembrar <strong>da</strong> Mametade nikice Xagui, que neste ano celebrou setenta anos de iniciação. Étambém de Oxoguiã, Mãe Carmem, filha consanguínea de Mãe Menininhado Gantois e atual Yalorixá. Por fim, há ain<strong>da</strong> Air José, descendente<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 149


consanguíneo de Tio Bangboxé, que há mais de quarenta anos lidera o IlêOdô Ojê, popularmente conhecido como Pilão de Prata. A todos eles, eain<strong>da</strong> àqueles que deixamos de mencio<strong>na</strong>r, o nosso respeito e admiraçãopor encar<strong>na</strong>rem <strong>na</strong> sua vi<strong>da</strong> a determi<strong>na</strong>ção e o desejo, como Oxoguiã,de ver continua<strong>da</strong> a obra de nossos fun<strong>da</strong>dores, i<strong>na</strong>ugurando um novotempo, um tempo onde não se é permitido ficar parado, onde é possívelmanter relações com outros povos. Parar ape<strong>na</strong>s para comer a massa deinhame pila<strong>da</strong>, ou fazer o mingau, a papa, a polenta, mesmo assim deolhos e corpos inteiros atentos, afi<strong>na</strong>l o tempo não para, o amanhã é ummomento eternizado no hoje. Na dúvi<strong>da</strong> de compreender o provérbio, émelhor optar por ser um guerreiro e ir à luta.150 • vilson caetano de sousa júnior


orixá ilue orixá igbôNeste texto vamos abor<strong>da</strong>r o desconfortável temado sincretismo afro-católico. Desconfortável nãopor ser algo revisitado suficientemente por outrosautores, mas pela série de estigmas que, ao longo<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 151


<strong>da</strong> história <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> no Brasil, este conferiu a estasreligiões. Desta maneira, gostaríamos de iniciar esta reflexão retomando aafirmação de que o fenômeno do sincretismo é universal e por isso acompanhaos grandes modelos religiosos do início de sua formação aos dias dehoje. Pe<strong>na</strong> que tal tema, nos estudos afro-brasileiros, ao aparecer <strong>na</strong> déca<strong>da</strong>de 30, serviu, dentre outras coisas, para legitimar a ideia <strong>da</strong> suposta inferiori<strong>da</strong>dedo pensamento africano, elabora<strong>da</strong> no século XIX a partir <strong>da</strong>steorias racistas. Assim, por muito tempo, tal assunto, quando apareceunos estudos afro-brasileiros, sugeriu leituras preconceituosas que desautorizavamas visões de mundo africa<strong>na</strong>s, graças à relação que estes, desdecedo, estabeleceram com o catolicismo português. As leituras limita<strong>da</strong>sde tais relações se deram a partir <strong>da</strong> concepção de uma teoria conspiratória.Em outras palavras, alguns estudos apresentam as relações entre negros ebrancos no Brasil colônia a exemplo de um campo de futebol, de um ladoos negros, do outro lado os brancos. É certo que <strong>na</strong> colônia, como ain<strong>da</strong>hoje, as relações entre os não brancos e os que autodesig<strong>na</strong>ram-se brancosain<strong>da</strong> continuam sendo algo predefinido. Atentar-se a isso talvez seja oprimeiro passo para desmascarar o racismo brasileiro, racismo sutil, silencioso,cordial, camara<strong>da</strong>, que empurra o homem e a mulher negra parao mundo do “deixa disso”, do “para com isso”, mas que sempre está aliconstituindo as relações mais “familiares”. Essa suposição <strong>da</strong> teoria conspiratória,ou <strong>da</strong> ação dos indivíduos a partir de “um lugar”, sugeriu a teoria<strong>da</strong> dissimulação, que seria uma espécie de “faz de conta”. Desta maneira,as relações estabeleci<strong>da</strong>s desde cedo entre o universo religioso africanocom outros grupos seriam explica<strong>da</strong>s a partir desse faz de conta, onde, porexemplo, os santos católicos, através de um jogo de correspondências, dea<strong>na</strong>logias exter<strong>na</strong>s, seriam uma espécie de máscara branca no rosto de ancestraisafricanos. Tal ideia, nos anos 80, a partir <strong>da</strong> ca<strong>minha</strong><strong>da</strong> de quasevinte anos de movimentos negro e <strong>da</strong> presença de alguns intelectuais nosterreiros, provocou uma espécie de mal estar no universo afro-brasileiro,ao menos para os participantes <strong>da</strong> II Conferência Mundial <strong>da</strong> Tradição152 • vilson caetano de sousa júnior


Orixá e Cultura, realiza<strong>da</strong> <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador. Quando se refletia sobrea o retorno à África, foi elaborado um documento, <strong>na</strong> forma de manifesto,que afirmava que, a fim de garantir a África mítica e pureza africa<strong>na</strong>, eranecessário romper com o sincretismo afro-católico, expresso através <strong>da</strong>correspondência entre santos católicos e orixás, <strong>da</strong> i<strong>da</strong> <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des--terreiros ao recinto católico por ocasião de algumas festas, e <strong>da</strong> presençade altares católicos no barracão dos terreiros. Não estamos bem certos seo objetivo do documento produzido no encontro era mesmo desconstruiras relações entre o candomblé e catolicismo, a fim de legitimar o primeirocomo religião, mas com certeza, quando algumas lideranças religiosas assi<strong>na</strong>ramtal texto, transformado pela mídia num manifesto, era a defesa desuas tradições como religião que tinham em mente. Esse fato foi abor<strong>da</strong>dopela Prof. Dra. Josildeth Gomes Consorte que estudou tal documento durantedez anos. A partir <strong>da</strong>s contribuições de seu trabalho realizamos umapesquisa publica<strong>da</strong> sob forma de livro, intitulado: Orixás Santos e Festas,onde chamamos atenção para o fato de, diferentemente de como se apresenta,o fenômeno do sincretismo é sentido de forma diversa pelas pessoas.Em outras palavras, ao contrário <strong>da</strong> ideia de “faz de conta”, de mistura,de jogo de correspondências, de a<strong>na</strong>logias, de confusão, dentre outras, ofenômeno do sincretismo tem a ver mesmo com atribuição de significados,com sentimentos. Desta maneira, a menos <strong>na</strong>s religiões de matrizafrica<strong>na</strong>, deve ser entendido como algo além <strong>da</strong>s máscaras e disfarces, atémesmo porque não se reduz ape<strong>na</strong>s a vivências exter<strong>na</strong>s, ao contrário, emalguns momentos chega a ser constituidor de ritos específicos reconstruídosno Brasil, como fez o próprio Cristianismo quando se deparou com asreligiões antigas, contemporâneas à sua formação. Dizer que o sincretismoafro-católico não pode ser reduzido a relações exteriores, nem ao fazde conta, explicado a partir <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> dissimulação, é, ao mesmo tempo,reconhecer a capaci<strong>da</strong>de que homens e mulheres negros tiveram de, contrariandoa teoria conspiratória, romper com os lugares impostos a estes<strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de e intervir a partir de seus lugares, tor<strong>na</strong>ndo-os livres para<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 153


criar, reinventar e <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de a universos fragmentados pela escravidãoque não foram destruídos graças à capaci<strong>da</strong>de de diálogo com elementossimbólicos com os quais se depararam numa ver<strong>da</strong>deira colônia.O viver em colônia facilitou o diálogo entre africanos, ameríndios, portugueses,mouros, ciganos, cristãos novos, espanhóis, holandeses e muitosoutros povos. O resultado foi a produção de modelos religiosos ondesímbolos provenientes de várias matrizes culturais não ape<strong>na</strong>s circulamexter<strong>na</strong>mente, mas dentro do corpo dos próprios iniciados. É interessantetambém observar que tais relações só foram possíveis graças à dinâmicade juntar do pensamento africano somado à proximi<strong>da</strong>de do universo católicoportuguês. Em outras palavras, o catolicismo chegado <strong>da</strong> PenínsulaIbérica, ao contrário do que havia se afirmado no século XIX, era, porexemplo, tão sensual quanto o pensamento africano, basta olharmos paraos santos barrocos que, se não choravam <strong>na</strong>s igrejas, lamentavam a másorte em alguns oratórios ao serem submetidos a um ver<strong>da</strong>deiro ritual detortura pelos devotos. Depois, como chamou atenção em certa ocasião aYalorixá Olga do Alaketu, orixás e santos <strong>da</strong> igreja no Brasil eram estrangeiros.Isso no seu entender significava o primeiro passo para o diálogoe entendimento de relações que não podiam ser reduzi<strong>da</strong>s a algo superficiale externo. Em alguns terreiros de candomblé de tradição jeje-<strong>na</strong>gô,guar<strong>da</strong>-se ain<strong>da</strong> a expressão igbô para desig<strong>na</strong>r os não negros. Tal palavratambém era utiliza<strong>da</strong> por alguns povos de língua yorubá para chamar osseus vizinhos, os estrangeiros, aqueles vistos como “de fora”, categoriabem entendi<strong>da</strong> pelas ciências sociais. Quanto às relações que desde cedoos universos africanos estabeleceram com os “estrangeiros”, é algo queain<strong>da</strong> está para ser melhor estu<strong>da</strong>do. Fato é que se não foram confundidos,desde cedo estes estrangeiros submetidos também à distância de suasterras de origem, foram incorporados no universo religioso reconstruídono Brasil como estrangeiros, à semelhança dos ancestrais africanos. Talvezesse fato comece a explicar a presença não somente de altares católicos emlocais públicos onde se realizam as festas de candomblé, como também a154 • vilson caetano de sousa júnior


tradução de rezas católicas para as línguas africa<strong>na</strong>s, sem falar <strong>na</strong> evocaçãode orações católicas e alguns santos em momentos rituais protegidosdos olhares até mesmo <strong>da</strong>queles que elaboraram a teoria do faz de conta.Ver<strong>da</strong>de é que até mesmo os santos católicos apresentados aos africanosno contexto <strong>da</strong> escravidão não foram vistos por eles como seus senhores.Isso deu a possibili<strong>da</strong>de destes serem invocados ao lado dos orixás Ilu. Ilu,a terra distante, aquela deixa<strong>da</strong> para trás, trazi<strong>da</strong> ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> memória e <strong>na</strong>slembranças. Foram essas terras, o sentimento de fideli<strong>da</strong>de a elas, que possibilitouàs religiões de matriz africa<strong>na</strong> juntarem num mesmo sentimentoreligioso os orixás Ilu com os orixás Igbô, transformando essa experiênciaem algo que ain<strong>da</strong> hoje continua desafiando o pensamento ocidentalgreco-romano-cristão, acostumado a dividir as coisas, a vi<strong>da</strong> e o mundo.<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 155


obá


à lider <strong>da</strong>s mulheresHoje vamos falar sobre um dos “orixás femininos”sobre a qual recaiu uma espécie de esquecimento.To<strong>da</strong>via, não obstante este fato, goza de enormesignificado no universo <strong>da</strong>s religiões de matrizafrica<strong>na</strong>: Obá. Muito pouco se tem escrito sobre a<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 159


mesma, talvez por ela nos remeter a um mito origi<strong>na</strong>l que se repete emvárias culturas que fala “de um tempo em que o mundo era gover<strong>na</strong>dopelas mulheres.” Em alguns terreiros de candomblé que ain<strong>da</strong> preservama figura desse princípio ancestral, Obá aparece como uma caçadora.Este fato faz alusão aos primórdios dos grupos humanos que tinham aativi<strong>da</strong>de coletora como principal meio de sustento. Pe<strong>na</strong> que ain<strong>da</strong> hoje,quando retomamos esta imagem, logo nos vêm à mente figuras masculi<strong>na</strong>s,contrariando alguns mitos afro-brasileiros que trazem enfaticamentea presença de mulheres à frente de grupos que mais tarde <strong>da</strong>rão origemàs grandes civilizações. Em todos os mitos preservados no Brasil, Obáapresenta-se como caçadora ao lado de outras, como Oyá e Iewá, <strong>da</strong>í asua ligação direta com Odé, o caçador. Outra imagem que reforça a antigui<strong>da</strong>dedo seu culto é a de que tal orixá também é um rio do mesmonome, que ain<strong>da</strong> hoje corta uma parte do território iorubá. Conta-se que,após vários dias de batalha, estando os orixás liderados por Ogum e Oxalá,fragilizados pela guerra, Obá, não se contentando em reunir ape<strong>na</strong>s asmulheres de seu tempo, convocou to<strong>da</strong>s as fêmeas do mundo animal. Aover Obá chegar rodea<strong>da</strong> de animais, aquela guerra foi venci<strong>da</strong> porque osinimigos fugiram de seus postos. Afirma-se nos terreiros que Obá mantémrelações profun<strong>da</strong>s com os animais, outra imagem antiga preserva<strong>da</strong>do tempo em que os primeiros grupos humanos acreditavam encantá--los através de seus desenhos. O tempo em que os caçadores e caçadorasconfundiam-se com a própria caça. O culto a Obá é ain<strong>da</strong> hoje cercadode mistério. Mistério velado pelas cores escuras, representa<strong>da</strong>s pelo vermelhoencar<strong>na</strong>do que compõem seus elementos rituais <strong>na</strong>s poucas vezesem que aparece. Em alguns terreiros de tradição jeje <strong>na</strong>gô, a cantiga quediz “Obá, líder <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de Elekô coman<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as mulheres guerreiras”,inicia a sequência de músicas que, dentre outras coisas, lembra a suaimportância como representante <strong>da</strong>s mulheres, como caçadora, chamandopara si funções sociais, políticas, culturais e religiosas. Em outras palavras,Obá, além de desempenhar um papel como desbravadora, cabia a160 • vilson caetano de sousa júnior


ela defender o grupo, o protegendo em todos os sentidos, fomentandoseu sustento e garantindo a sua integri<strong>da</strong>de política. Os caçadores eramain<strong>da</strong> médicos, mágicos, ver<strong>da</strong>deiros entes divinos que sabiam que <strong>da</strong>relação de sua comuni<strong>da</strong>de com os ancestrais dependia a sua permanênciano mundo. Daí a expressão: “Obá Elekô”. Elekô, a exemplo de muitasoutras socie<strong>da</strong>des secretas, era uma espécie de “maço<strong>na</strong>ria de mulheres”,que dentre outras funções, zelava pela preservação <strong>da</strong> relação entre estase a terra, para alguns grupos humanos, a grande mãe ancestral. Pe<strong>na</strong> queape<strong>na</strong>s persistiu dentre nós fragmentos de uma história que diz ter sidoObá enga<strong>na</strong><strong>da</strong> por uma <strong>da</strong>s mulheres de Xangô, que a teria induzido acortar uma de suas orelhas. Acho mesmo que a imagem <strong>da</strong> orelha corta<strong>da</strong>por Obá neste mito é menos importante do que aquilo que considero otema principal: o amor. Obá é símbolo do amor, esse princípio universalque, por mais esforço que já se tenha feito para traduzi-lo através <strong>da</strong>spoesias, <strong>da</strong>s filosofias, <strong>da</strong>s religiões e, recentemente, <strong>da</strong> ciência, ain<strong>da</strong> éum mistério, talvez por ser ele um dos mais divinos. Gosto muito <strong>da</strong> históriaque diz que certa ocasião, muito triste por ter perdido um de seusfilhos, uma mulher adentrou-se <strong>na</strong> mata e pediu a Obá que o trouxessede volta. Adormeci<strong>da</strong> <strong>na</strong> floresta, a jovem sonhou com sementes que lheseram trazi<strong>da</strong>s por um enorme pássaro. Acor<strong>da</strong><strong>da</strong> do sono, a mulher foiprocurá-las. Chegando à beira de um rio, mal pôde conter a sua alegria aodeparar-se com as sementes que à noite havia sonhado, ao mesmo tempoem que se deu conta de que era ela mesma o pássaro que à noite haviavisto em sonho. Das sementes planta<strong>da</strong>s pela mulher, arrebentou umaplanta que se transformou numa árvore de tronco escuro, a partir <strong>da</strong> quala humani<strong>da</strong>de melhor podia se representar, trazendo presente <strong>na</strong> formade esculturas um dos seus antepassados: o ébano. Obá, dessa maneira, éa “ver<strong>da</strong>deira deusa do ébano”, não somente <strong>da</strong> madeira escura, de brilho<strong>na</strong>tural que tanto nos representa através <strong>da</strong>s <strong>mão</strong>s dos artistas africanos,mas a ver<strong>da</strong>deira “deusa negra” presente em to<strong>da</strong>s as mulheres, nossasirmãs e mães que hoje mais do que nunca vão ao enfrentamento para de-<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 161


fender a sua digni<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> garantia <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de de seus filhos.Mulheres que, embora tenham conquistado espaços <strong>na</strong>s socie<strong>da</strong>des contemporâneas,ain<strong>da</strong> são aquelas mais estigmatiza<strong>da</strong>s, violenta<strong>da</strong>s e quetêm seus direitos menos respeitados. Mulheres que como Obá amam, epor isso vão à luta pelos seus sonhos e são capazes não ape<strong>na</strong>s de liderarquilombos, revoltas arma<strong>da</strong>s, greves, movimentos sociais, mas gruposinteiros, pois assim foi desde o início, quando Obá saiu à frente convocandoto<strong>da</strong>s as mulheres para reconquistar o mundo.162 • vilson caetano de sousa júnior


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Textos publicados no Jor<strong>na</strong>l A TARDEComi<strong>da</strong> de santo e comi<strong>da</strong> de branco – A TARDE, 04 de abril de 2009. p.4.Os Gêmeos e a inversão <strong>da</strong> mesa – A TARDE, 25 de setembro de 2009. p.4.A ciência e a tecnologia que os africanos inventaram – A TARDE, 04 de outubrode 2009.p.4.Ancestrali<strong>da</strong>de Afro-Brasileira - A TARDE, 30 de outubro de 2009, p. 4.Candomblé para além do bem e do mal- A TARDE, 06 de novembro de2009.p.4.Candomblé e destino, entre a adivinhação e a divi<strong>na</strong>ção - A TARDE, 20 denovembro de 2009.p.4.Africanos, seus descendentes e economia <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador - A TARDE, 21de novembro de 2009. p.4.Territoriali<strong>da</strong>des afro-brasileiras - A TARDE, 18 de dezembro de 2009. p.2.Quem vai salvar Oyá do fogo - A TARDE, 08 de janeiro de 2010. p.2.O ano bom para as religiões de matriz africa<strong>na</strong> - A TARDE, 15 de janeiro de2010. p.2.A guerra e a paz, a fome e a abundância, o pilão e o inhame <strong>na</strong> terra de Elegigbô-A TARDE, 29 de janeiro de 2010. p.2.Yemanjá, a mãe dos orixás – A TARDE, 05 de fevereiro de 2010. p.6.Ao rei do mundo - A TARDE, 26 de fevereiro de 2010. p.4.A artista do Universo - A TARDE, 05 de março de 2010. p.3.Iya Agba Iyn, a mãe mais velha – A TARDE, 19 de março de 2010. p.4.Candomblé e saúde - A TARDE, 2 de abril de 2010. p.2.Candomblé e moderni<strong>da</strong>de – A TARDE, 30 de abril de 2010. p. 4.A líder <strong>da</strong>s mulheres – A TARDE, 25 de março de 2011. p.4.166 • vilson caetano de sousa júnior


Esta obra foi publica<strong>da</strong> no formato 192 x 234mmutilizando a fonte DTL DocumentaImpressa <strong>na</strong> Gráfica Centauro, em Recife.Papel Pólen Bold 90 g/m 2 para o miolo ePapel Triplex 350 g/m 2 para a capa.Tiragem de 600 exemplares

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