levando o balde da água e vinagre na outra mão. Foi isto o que se passou e não qualquer outra história que venha a contar-se no futuro, como se o sofrimento de quem foi condenado a morrer na cruz não fosse já bastante para encher o livro. Talvez a alguém se lhe ocorra escrever, e por todos os modos repetir, que quiseram dar-me vinho misturado com fel ou com mirra. Não é verdade. E agora, Deus, Pai, Senhor, peço-te um último favor. Que não faças esperar este homem até ao dia do Juízo Final, que o chames a ti no preciso momento em que morrer, e que tu mesmo o vás receber à porta do paraíso. Reconhecê-lo-ás facilmente. Leva uma cana ao ombro e um balde com água e vinagre na outra mão. SEXTA PALAVRA Deus, Pai, Senhor, tudo está cumprido. A cruz em que me pregaram não tardará a ter um cadáver nos seus braços, tal como, desde o princípio do mundo, foi por ti decidido que haveria de suceder. Será, por ser a minha, suficiente esta morte para a salvação da humanidade? Para salvá-la de quê ou de quem? De si mesma? Do inferno que tu mesmo fabricaste, uma vez que não havia mais ninguém que o pudesse fazer? Sou eu o cordeiro que Abel te sacrificava, ao mesmo tempo que desprezavas o trigo e o centeio que Caim te oferecia? Porquê? Não terás sido tu, Deus, Pai, Senhor, quem armou a mão de Caim para que na primeira página da história dos homens se anunciasse já o futuro que lhes estava guardado, sangue, morte, destruição e tortura desde esse dia e para sempre? E porquê ficou o crime de Caim sem castigo? Porquê teve Abel de morrer? Conhecerás tu, Deus, Pai, Senhor, o sentimento do remorso? Porquê, contra a simples justiça, prosperou o assassino, ao ponto de fundar uma cidade e ter descendência como qualquer homem comum, com as mãos limpas de sangue alheio? Sem querer faltar ao respeito, foste e serás sempre um deus dúplice, com duas caras, dois pesos e duas medidas. Não creio que a minha morte vá servir para que os homens se salvem nem que, sem ela, se perdessem mais do que já estão. Não imaginas, Deus, Pai, Senhor, como os seres humanos são complicados e difíceis de entender. Seja como for, fiz tudo o que tinhas ordenado. Por isso está morrendo um homem nesta cruz. SÉTIMA PALAVRA Deus, Pai, Senhor, nas tuas mãos entrego o meu espírito, que a carne que o continha, essa, ficará agarrada a este madeiro enquanto o que de mim resta não for levado ao túmulo, donde ao terceiro dia ressuscitarei, se foram certas as palavras que puseste na minha boca para que as ouvissem os que me seguiam. Censurou-mas Pedro, que me chamou de parte e disse: “Deus te livre de tal. Uma coisa assim nunca te há-de suceder.” E eu respondi-lhe: “Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho, porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens.” Foi isto o que eu lhe disse, mas agora, Deus, Pai, Senhor, agora que o meu espírito já deve ter chegado às tuas mãos, permite-me que procure, também eu, entender as coisas à maneira dos homens. Poderá o meu corpo, sem um espírito que o anime, levantar-se e sair do sepulcro, arredando a pedra que lhe tapa a entrada? E outra pergunta mais. Que sucederá comigo durante esses três dias? Apodrecerei? Será já com os primeiros sinais de podridão na cara e nas mãos que me apresentarei diante de Maria Madalena? Vivi no mundo como homem durante trinta anos, primeiro criança, depois
adolescente, depois adulto, até este dia. Se te digo coisas que estás farto de saber, é para que compreendas por que razão aparecerei a Maria Madalena antes que a qualquer outro. Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. O futuro dirá se o espectáculo valeu a pena. E agora, Deus, Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?
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