Virgo - A Era dos Homens - Roberto Laaf
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<strong>Virgo</strong><br />
A era <strong>dos</strong> homens<br />
<strong>Roberto</strong> <strong>Laaf</strong><br />
2003<br />
2
Copyright © 2003 por Robert <strong>Laaf</strong><br />
Título Original: <strong>Virgo</strong> – A era <strong>dos</strong> homens<br />
Editor<br />
Tomaz Adour<br />
Editoração Eletrônica<br />
Luciana Figueiredo<br />
Capa<br />
Renata Moraes<br />
PAPEL VIRTUAL EDITORA<br />
Avenida das Américas, 3.120 sala 201 – Bloco 5<br />
Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22.640-102<br />
Telefone: (21) 3329-2886<br />
E-mail: editor@papelvirtual.com.br<br />
Endereço Eletrônico: www.papelvirtual.com.br<br />
3
Ao meu amado filho Renan, que<br />
acendeu em meu coração a mais bela<br />
chama de amor que conheci na vida!<br />
4
Sumário<br />
Dedicatória ...................................................................... 04<br />
Prefácio ............................................................................. 07<br />
I. Sob a sombra do medo ............................................... 10<br />
II. As chamas da traição ................................................. 26<br />
III. Muitas revelações ..................................................... 41<br />
IV. Uma visão inesperada ............................................. 57<br />
V. O arauto do rei ........................................................... 71<br />
VI. Surpresas agradáveis ............................................... 96<br />
VII. Novos rumos, novos tempos ................................. 108<br />
VIII. A longa peregrinação ............................................ 120<br />
IX. Um novo despertar ................................................... 127<br />
X. Nouvelle Amiens ....................................................... 138<br />
XI. Encontros e separações ............................................ 150<br />
XII. Alvorecer de uma nova amizade .......................... 163<br />
XIII. Pedra sobre pedra .................................................. 181<br />
XIV. Reencontros e compromisso ................................ 195<br />
XV. A tempestade se aproxima .................................... 208<br />
XVI. Mensagem de Guttin ............................................. 219<br />
XVII. Uma viagem para o leste ..................................... 227<br />
XVIII. O Colóquio de Plarionthil .................................. 242<br />
XIX. Mar de acampamentos .......................................... 252<br />
XX. Explode a guerra ..................................................... 266<br />
XXI. Demonstração de poder ........................................ 284<br />
XXII. Nas mãos do destino ............................................ 298<br />
XXIII. Cicatrizando feridas ............................................ 308<br />
XXIV. Nouvelle Lyon ..................................................... 320<br />
XXV. Honras e lembranças ............................................ 330<br />
Apêndices<br />
A. As raças superiores ................................................... 355<br />
5
A.1. Vangis ................................................................. 355<br />
A.2. Elfos ..................................................................... 360<br />
A.3. Anões .................................................................. 365<br />
B. As raças selvagens ..................................................... 367<br />
B.1. Orcs ...................................................................... 367<br />
B.2. Goblins ................................................................. 373<br />
B.3. Grabbers .............................................................. 377<br />
B.4. Trolls .................................................................... 383<br />
B.5. Vutuks .................................................................. 387<br />
B.6. Ogros e gojos ...................................................... 392<br />
B.7. Druzos ................................................................. 400<br />
C. Dragões ....................................................................... 405<br />
C.1. Laithans ............................................................... 407<br />
C.2. Greenos ............................................................... 408<br />
C.3. Blukhos ................................................................ 409<br />
C.4. Redhes ................................................................. 410<br />
C.5. Goldhest .............................................................. 411<br />
C.6. Darkhos ............................................................... 412<br />
D. Mapas .......................................................................... 414<br />
D.1. Mapa da França ................................................. 415<br />
D.2. Mapa de <strong>Virgo</strong> ................................................... 416<br />
E. <strong>Era</strong>s de <strong>Virgo</strong> .............................................................. 417<br />
E.1. <strong>Era</strong> Oculta ............................................................ 418<br />
E.2. <strong>Era</strong> Gênesis .......................................................... 419<br />
E.3. <strong>Era</strong> Trevas ............................................................ 427<br />
E.4. <strong>Era</strong> Nova .............................................................. 428<br />
F. Reinos e tribos ............................................................. 431<br />
G. Glossário ..................................................................... 435<br />
6
Prefácio<br />
A busca do homem pelo desconhecido é como uma inefável<br />
mistura de prazer e ansiedade que sempre permitiu à<br />
humanidade conquistar, século após século, novos horizontes.<br />
Desde o seu surgimento na Terra, no holoceno, há pouco<br />
mais de doze mil anos aproximadamente, os homens já<br />
começavam a dar seus primeiros passos a caminho de uma<br />
evolução que poderíamos qualificar como, “evolução<br />
meteórica”. Nunca existiu na natureza uma espécie que tenha<br />
evoluído tanto e em tão pouco tempo como o Hommo<br />
Sapiens. Que inspiração teria atiçado os corações <strong>dos</strong><br />
primeiros homens? Teria sido, verdadeiramente, uma semente<br />
divina? Teriam os homens, à Luz do seu tempo, surgido com<br />
uma pré-destinação desconhecida que os tornariam os donos<br />
do universo? O que, exatamente, os teria despertado para que<br />
se tornassem incansáveis em sua apaixonante busca pelo<br />
desconhecido?<br />
Talvez estas perguntas e muitas outras jamais possam ser<br />
respondidas, mas há algo que podemos suscitar, o<br />
combustível que moveu to<strong>dos</strong> os nossos ancestrais e que move<br />
constantemente a humanidade. Que combustível fabuloso foi<br />
esse que nos impulsionou para chegarmos tão longe na<br />
história de to<strong>dos</strong> e mais distintos espécimes que habitam o<br />
planeta azul? Não foi nenhum alimento especial que tornou os<br />
homens inteligentes, fortes e vigorosos, permitindo-os a esta<br />
façanha, mas sim, seus corações. Do coração <strong>dos</strong> homens<br />
surge o combustível que os leva invariavelmente às mais<br />
fantásticas aventuras.<br />
É da natureza humana, como to<strong>dos</strong> sabemos, o espírito<br />
aventureiro de ir ao encontro do desconhecido, de conquistar<br />
espaços, desvendar os mistérios do universo e até mesmo o<br />
7
mistério que envolve a sua própria criação. Surgem em nossos<br />
corações, os desejos, as paixões, os me<strong>dos</strong> e as dúvidas. De<br />
onde viemos, o que somos e para onde vamos? Esta pergunta<br />
sempre esteve presente ecoando em cada um de nós, e muitos<br />
filósofos famosos também se detiveram diante deste enigma.<br />
Muitas dúvidas ainda pairam sobre a humanidade como<br />
uma densa nuvem de poeira que parece insistir em não<br />
assentar. A própria questão da existência, ou não, de outras<br />
vidas inteligentes, mexe muito com a imaginação <strong>dos</strong> homens.<br />
A humanidade foi, pouco a pouco, conquistando seus<br />
espaços. Tudo começou, imagina-se, com a busca por novas<br />
terras. Depois a conquista <strong>dos</strong> mares e outros continentes, até<br />
os confins da Terra. Ainda insatisfeitos, começamos a<br />
vasculhar o fundo do mar e o espaço. Hoje já conquistamos a<br />
Lua e estamos partindo para pisar também, em solo marciano.<br />
Todas essas descobertas levaram os homens a se deparar<br />
com coisas maravilhosas, lugares fantásticos, que jamais<br />
imaginariam conhecer, criaturas incríveis, de diversas formas,<br />
tamanho e fisiologia. Ao longo do tempo, distantes e perdi<strong>dos</strong><br />
em sua própria evolução desenfreada, encontraram traços e<br />
ruínas de civilizações inteiras que ficaram para trás, ocultas<br />
pelo tempo. Civilizações que não conseguiram evoluir além de<br />
seus limites e sucumbiram inteiras, no decorrer <strong>dos</strong> milênios.<br />
A aventura que vos ofereço não se distancia desta<br />
realidade, a incrível forma como os corações <strong>dos</strong> homens os<br />
conduz. Entre amizades e alegria, nos deparamos com inveja,<br />
cobiça e traição. Ao conhecer o amor, estamos fada<strong>dos</strong> a, mais<br />
cedo ou mais tarde, ficar face a face com o ódio.<br />
Insatisfação! Esta é a palavra chave para que, muitas<br />
vezes, o curto pavio do lado sombrio de nossos corações possa<br />
rapidamente inflamá-los e, se estamos diante de uma situação<br />
que nos sufoca ou nos esmaga, não tardamos a reagir com<br />
todas as nossas forças para sobreviver. Quantas vezes em<br />
nossa história, um povo oprimido já foi levado a uma<br />
8
insurreição, despojando seus governantes do poder devido a<br />
situações insustentáveis? Embora, em algumas situações não<br />
seja possível usurpar o poder <strong>dos</strong> tiranos, mas neste caso, os<br />
corações oprimi<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> homens não os permitem à<br />
subjugação e acabam impelindo-os a buscar um novo<br />
horizonte.<br />
Justamente a busca por um lugar seguro, onde se possa<br />
viver com paz e tranqüilidade, é o que levará um homem e<br />
seus seguidores, em pleno século XIV, na pequena cidade<br />
francesa de Amiens, a descobrir um lugar extraordinário, onde<br />
nenhum ser humano jamais esteve antes e sequer soube de sua<br />
existência. Um lugar tão magnífico e agradável, quanto hostil<br />
e perigoso, um lugar mágico, um lugar cheio de vida.<br />
Nesta nova terra, os homens enfrentarão um duro período<br />
de adaptação e edificarão os alicerces de seus reinos. Passarão<br />
a viver com a difícil missão de compartilhar a terra com outras<br />
raças semelhantes, entrementes, criadas à luz de outros<br />
tempos. Uma nova terra onde será preciso aceitar e conviver,<br />
durante um longo período de tempo, com a realidade de não<br />
serem mais os únicos donos da casa.<br />
9
F<br />
CAPÍTULO I<br />
Sob a sombra do medo<br />
rança, cidade de Amiens, ano de 1342 D.C. O inverno<br />
estava rigoroso como não se via há muitos anos. Nesta<br />
época do ano, era comum a realização da Grande Festa de<br />
Inverno, onde se reuniam pessoas que vinham de diversos<br />
vilarejos e cidades vizinhas. Chegavam de todas as partes, de<br />
Havre, Calais, Abbeville, Beauvais e até mesmo de Paris. <strong>Era</strong><br />
uma festa famosa e muito comentada. Diversas barracas eram<br />
armadas e podia ser encontrado todo o tipo de vinho, queijo,<br />
carne e artesanato. O rei da França, Philipe VI, sempre<br />
comparecia com sua família para prestigiar a mais famosa<br />
festa regional do norte francês. Também era comum ver um<br />
pequeno contingente da cavalaria passando entre as pessoas,<br />
para evitar que confusões acontecessem em meio à festa.<br />
Muitas vezes ocorreu de pessoas se excederem na bebida e<br />
acabarem por encontrar encrenca.<br />
Entretanto, este ano transcorria bem diferente <strong>dos</strong><br />
anteriores. <strong>Era</strong> um ano marcado por medo e dúvidas. O rei<br />
estava preocupado com as informações que lhe chegavam,<br />
to<strong>dos</strong> os rumores e boatos indicavam a possibilidade de uma<br />
invasão inglesa à França. Esta situação fez com que Philipe VI<br />
enviasse uma mensagem ao senhor de Amiens, Martin<br />
Lacroix, ordenando-o a interromper os preparativos do evento<br />
e advertindo-o também para que o mesmo não fosse realizado.<br />
Martin, muito a contragosto, cumpriu seu dever através de um<br />
pronunciamento a seu povo, proibindo qualquer manifestação<br />
festiva, sem maiores explicações. To<strong>dos</strong> ficaram muito<br />
insatisfeitos, pois já haviam elaborado muitos <strong>dos</strong><br />
preparativos para a festa e não gostaram nada da proibição.<br />
10
Os dias se tornaram frios, sombrios e silenciosos. A<br />
alegria esfuziante, que antes pairava no ar, desaparecera. Cada<br />
vez mais a nuvem de dúvidas se adensava sobre a cidade de<br />
Amiens. Os boatos, que antes fervilhavam apenas nas cidades<br />
litorâneas, passaram a chegar em Amiens, principalmente de<br />
Calais, que ficava voltada para o país inglês e que, to<strong>dos</strong><br />
acreditavam, seria o primeiro território francês a sofrer uma<br />
invasão.<br />
Martin Lacroix era um homem alto, de cabelos grisalhos e<br />
olhos negros. Seu olhar era penetrante como a lâmina fria de<br />
um punhal. Possuía uma pequena cicatriz do lado esquerdo<br />
do rosto, um corte não muito profundo. <strong>Era</strong> um homem de<br />
expressão severa, que assustava a to<strong>dos</strong> que o encarassem.<br />
Sempre trajando roupas negras, muitas vezes Martin<br />
cavalgava solitário até as margens do rio Somme e refletia<br />
sobre os acontecimentos e notícias que lhe chegavam de fora.<br />
Sabia que a ameaça de invasão inglesa estava se concretizando<br />
cada vez mais. Embarcações eram vistas além das costas de<br />
Havre e Calais. Paris estava racionando os alimentos. Muitos<br />
cidadãos das cidades litorâneas passavam em direção ao sul<br />
com seus familiares, fugindo da guerra que parecia ser<br />
inevitável. Deserções em massa deixavam as fileiras francesas<br />
mais precárias. Seu próprio povo já pensava em abandonar os<br />
lares e fugir para o sul, em busca de lugares seguros e longe<br />
da guerra que se avizinhava.<br />
Havia duas semanas, Martin enviara secretamente a Paris<br />
um grupo de mensageiros, pedindo apoio militar ao rei<br />
Philipe VI e levando informações sobre o medo que seu povo<br />
estava sentindo. Muitas pessoas da região já diziam que Paris<br />
havia tombado e logo todo o território francês se transformaria<br />
num enorme feudo inglês. To<strong>dos</strong> aguardavam ansiosamente<br />
qualquer notícia proveniente de Paris, mas o mais interessado<br />
de to<strong>dos</strong>, sem dúvida alguma, era o próprio Martin, pois<br />
soubera que um grupo de pessoas andava se reunindo<br />
secretamente, preparando uma fuga em massa de sua cidade.<br />
11
E este fato ele sabia ser verdadeiro, pois quem lhe dissera fora<br />
um mercenário que contratou como informante, o senhor<br />
Gallard Gellion, um homem sinistro que nunca fora visto em<br />
companhia de Martin e, por isso, seria muito difícil que<br />
desconfiassem dele. <strong>Era</strong> astuto, paciente, eloqüente e também<br />
dissimulado.<br />
Pensando em to<strong>dos</strong> estes fatos ao mesmo tempo, num<br />
final de tarde, Martin cavalgou até bem próximo às margens<br />
do rio Somme, como de costume, desmontou de seu cavalo e<br />
sentou sobre uma pequena rocha, com uma expressão de<br />
dúvida. Pensava o que seria feito de tudo o que conseguira<br />
durante to<strong>dos</strong> aqueles anos, se realmente seu povo fosse<br />
embora. Quem pagaria seus tributos e como poderia manter o<br />
seu luxo e bem-estar sem a contribuição de seu povo. Martin<br />
olhou à frente e observou a correnteza, que naquele ponto não<br />
era tão forte como a alguns quilômetros mais abaixo,<br />
chegando a vislumbrar pequenas embarcações inglesas<br />
descendo o rio e invadindo sua cidade. Ficou ali parado,<br />
pensando em muitos acontecimentos que estariam por vir.<br />
Depois de um longo tempo, percebeu que a luminosidade do<br />
dia estava enfraquecendo, mas continuou fitando o horizonte,<br />
ainda muito pensativo. Percebeu também que um pouco mais<br />
a oeste, onde estava mais escuro, densas nuvens negras se<br />
formavam e que muito em breve uma forte chuva cairia.<br />
Quando o último raio de sol não pôde mais transpor a<br />
montanha, levantou de súbito, jogou sua capa para trás,<br />
montou em seu corcel negro e partiu velozmente em direção a<br />
seu pequeno castelo.<br />
Lá chegando, sua esposa, Catherine Lacroix, veio recebêlo<br />
como sempre fazia, to<strong>dos</strong> os dias. — Boa noite, meu senhor!<br />
Gallard o esperou até há pouco, estava muito ansioso para<br />
falar-lhe. — Então Martin olhou para Catherine, e com um<br />
olhar vacilante perguntou:<br />
— Ele disse sobre o que se tratava?<br />
12
— Não, mas deixou esta mensagem lacrada. — Catherine<br />
estendeu a mão mostrando um pequeno pedaço de papel<br />
dobrado e com um lacre derretido em seu redor, de forma que<br />
não pudesse ser visto pelos la<strong>dos</strong>. Martin pegou a mensagem<br />
da mão de Catherine e, sem dizer mais uma palavra, subiu<br />
apressadamente as escadas para seu aposento. Catherine<br />
ainda perguntou-lhe se desejava comer algo, mas o silêncio foi<br />
sua resposta.<br />
Martin, depois de trancar a pesada porta de seu quarto,<br />
sentou-se em uma pequena mesinha que ficava próxima a<br />
uma janela e, com a ajuda de uma adaga, quebrou o lacre e<br />
abriu a mensagem. Estava escuro, pois o sol já havia se posto<br />
completamente. Puxou o luxuoso castiçal de prata que<br />
sustentava uma vela comprida para perto e leu atentamente a<br />
mensagem de Gallard. A mensagem estava escrita, com letras<br />
corridas e borradas.<br />
Senhor Lacroix, esperei-o ansiosamente para lhe relatar os<br />
últimos fatos que se tornaram de meu conhecimento, mas não pude<br />
aguardar muito tempo. Hoje à noite haverá um encontro entre os<br />
conspiradores, onde to<strong>dos</strong> estarão presentes, e esta será minha<br />
grande oportunidade de conhecer aqueles que ainda não me foram<br />
apresenta<strong>dos</strong>.<br />
Acredito que depois desta noite poderemos destruir este<br />
movimento muito antes do que pensávamos. Espero que tudo corra<br />
bem e amanhã, antes do nascer do sol, passarei em nosso ponto de<br />
encontro secreto, para lhe revelar todas as novidades que eu<br />
descobrir.<br />
13<br />
Gallard Gellion.<br />
Martin então levantou a cabeça, deu um suspiro e mais<br />
uma vez se perdeu em seus pensamentos, encarando a chama<br />
da vela, que bruxuleava à sua frente. Ficou neste transe por<br />
alguns segun<strong>dos</strong>, até que foi interrompido por três batidas<br />
suaves em sua porta. Levantou-se abruptamente levando uma
das pontas do bilhete à chama da vela, que o consumiu<br />
lentamente, transformando-o em cinza e fumaça. Andou até a<br />
porta e a destrancou. <strong>Era</strong> Catherine! Segurava uma bandeja de<br />
prata com uma pequena jarra com água, pedaços de bolo e<br />
frutas frescas.<br />
<br />
Na saída sul da cidade de Amiens, existia uma grande<br />
taberna, ponto de encontro para to<strong>dos</strong> aqueles que partiam ou<br />
que chegavam. Uma espécie de última parada para os que<br />
saíam de Amiens, e de descanso para os que chegavam de<br />
Beauvais, uma pequena cidade que ficava um pouco mais<br />
para o sul. Esta taberna estava sempre cheia de gente, era um<br />
lugar muito agradável, onde se podia beber o mais saboroso<br />
vinho daquela região.<br />
O dono da taberna, o senhor Dízier, era um homem alto,<br />
forte, com um rosto severo, mas era uma pessoa amável e<br />
muito comunicativa. Muitas pessoas se enganavam ao vê-lo a<br />
primeira vez, pensando que se tratasse de mais um taberneiro<br />
grosso e estúpido, mas logo percebiam que estavam<br />
completamente engana<strong>dos</strong>. À direita da taberna havia um<br />
enorme celeiro, onde as pessoas que desejassem pernoitar<br />
podiam guardar seus cavalos com toda a segurança. O celeiro<br />
era muito amplo, possuía ainda um segundo pavimento, onde<br />
eram estendidas diversas esteiras que serviam de cama para<br />
os viajantes.<br />
Pelo lado de fora, do lado direito, existia uma escada que<br />
ficava oculta por uma árvore baixa, de rica folhagem. Esta<br />
escada dava acesso a uma portinhola, também oculta pela<br />
folhagem da árvore, de maneira que ninguém percebia sua<br />
existência, nem mesmo de dia, com o sol a pino. Esta<br />
portinhola dava numa pequena sala, sem acesso interno. Só<br />
quem conhecia o caminho pela árvore podia chegar até lá. Esta<br />
pequena sala de reuniões era o ponto de encontro daqueles<br />
homens conheci<strong>dos</strong> como os Conspiradores. A sala não tinha<br />
14
mobília, a não ser uma pequena mesa onde ficavam dois<br />
castiçais e que muitas vezes servia de apoio para anotações e<br />
desenhos de mapas.<br />
Nessa noite, enquanto Martin Lacroix lia a mensagem do<br />
senhor Gallard, os Conspiradores se encontravam para mais<br />
uma reunião de cúpula, na qual importantes assuntos sobre a<br />
preparação da fuga de Amiens, antes da guerra estourar,<br />
seriam discuti<strong>dos</strong>. Nunca houvera, antes, um encontro com<br />
to<strong>dos</strong> os membros do Conselho, pois tinham medo de que se<br />
um dia fossem descobertos, to<strong>dos</strong> fossem captura<strong>dos</strong> de uma<br />
só vez. Entretanto, a necessidade e a proximidade da guerra<br />
fez com que desta vez to<strong>dos</strong> estivessem presentes na mesma<br />
reunião, com exceção de Dízier, que tinha que ficar na taberna<br />
para atender as pessoas e, ao mesmo tempo, despistar<br />
possíveis suspeitas acerca do que acontecia ali perto. Dízier<br />
fora um <strong>dos</strong> fundadores do Conselho e construíra o local de<br />
encontro em seu celeiro.<br />
À noite, o frio aumentara e to<strong>dos</strong> estavam dentro da<br />
taberna, em meio ao tumulto de vozes, gargalhadas e baques<br />
de canecas comemorando brindes à saúde de to<strong>dos</strong> e ao rei da<br />
França. Faziam piadas e chacotas acerca <strong>dos</strong> ingleses e se<br />
divertiam muito com isso. Parecia mais uma noite comum de<br />
inverno. Do lado de fora, ao lado do celeiro e próximo à<br />
pequena árvore, um vulto de homem podia ser visto de<br />
tempos em tempos, e depois não mais. Ninguém na taberna<br />
notara qualquer coisa estranha, pois não imaginavam que<br />
poderia haver algo do lado de fora que não fossem o frio e o<br />
forte vento do rigoroso inverno. To<strong>dos</strong> já haviam bebido<br />
bastante e não estavam se importando com os acontecimentos<br />
lá de fora.<br />
Entretanto, na pequena sala oculta do celeiro, os homens<br />
do Conselho iam chegando um a um. À medida que<br />
chegavam, se cumprimentavam e resmungavam acerca do<br />
mau tempo. Logo, to<strong>dos</strong> já se encontravam no local. O líder do<br />
grupo era Michel Montbard, que tinha como principais alia<strong>dos</strong><br />
15
seu braço direito Leon Troujard e seu irmão mais novo<br />
Etiènne Montbard. Os outros integrantes eram os irmãos Gien<br />
e Gourdon Ballec, camponeses de Amiens, homens muito<br />
fortes e prestativos, e também o lenhador Paul Drassarc.<br />
To<strong>dos</strong> estes homens tinham noção do perigo que o povo<br />
estava correndo e pretendiam organizar a fuga bem antes da<br />
guerra estourar.<br />
Após os devi<strong>dos</strong> cumprimentos, Michel fez um gesto com<br />
as mãos para que to<strong>dos</strong> se sentassem. Como de praxe,<br />
sentaram-se em círculo. Quando Michel ia começar a falar,<br />
ouviu-se o som de batidas na portinhola. To<strong>dos</strong> se<br />
entreolharam assusta<strong>dos</strong> e levaram as mãos ao cabo de suas<br />
espadas e macha<strong>dos</strong> de batalha. Etiènne estendeu seu braço<br />
olhando para Michel e disse:<br />
— Calma! Deve ser Grassac. É um homem muito valoroso<br />
que conheci e convidei-o para que se unisse a nós. — To<strong>dos</strong><br />
ficaram olhando para Etiènne espanta<strong>dos</strong>.<br />
— Como é que você pôde fazer uma coisa dessas? Nem ao<br />
menos comunicou-nos! — disse Michel, com um olhar severo<br />
e reprovador em direção a Etiènne. — Lembre-se de que isto é<br />
um Conselho e que decisões não podem ser tomadas<br />
individualmente! Será que você nunca vai criar juízo? —<br />
continuou falando asperamente para Etiènne, enquanto to<strong>dos</strong><br />
continuavam olhando assusta<strong>dos</strong>.<br />
— Meu irmão, eu não faria nada que pudesse pôr em risco<br />
a vida de qualquer um de nós. — disse Etiènne, com um tom<br />
de voz sereno. — Sei que meu ato foge completamente às<br />
regras deste Conselho, mas não tive tempo hábil para falar de<br />
Grassac com os senhores. — concluiu Etiènne.<br />
Neste momento, mais uma vez se ouviram as batidas na<br />
portinhola, desta vez com um pouco mais de força.<br />
— Já que o convidou e ele está à porta de nosso<br />
esconderijo, faça-o entrar de uma vez por todas antes que ele<br />
ponha este maldito celeiro abaixo com estas batidas! — gritou<br />
Michel, que estava ainda mais furioso.<br />
16
Etiènne dirigiu-se até a portinhola, abaixou-se e puxou o<br />
trinco. Ao abri-la, recebeu uma rajada forte de vento frio e<br />
olhou para fora. Observou que Grassac, após ter esperado que<br />
alguém o atendesse logo, já estava descendo a escada, indo<br />
embora. Etiènne fez então uma concha com a mão esquerda<br />
levando-a à boca e sussurrou:<br />
— Grassac! Grassac! — Grassac ouviu a voz de Etiènne e<br />
levantou a cabeça, percebendo o vulto de um homem na<br />
portinhola.<br />
— Sou eu, Etiènne! Desculpe a demora. Sobe aqui<br />
depressa! — disse Etiènne, fazendo gestos com a mão para que<br />
Grassac subisse rapidamente. Grassac olhou em volta e tornou<br />
a subir as escadas. Passou pela portinhola com um pouco de<br />
dificuldade, apertou a mão de Etiènne e se aproximou <strong>dos</strong><br />
outros, que o olhavam assusta<strong>dos</strong>. Michel olhou Grassac de<br />
cima a baixo.<br />
— Boa noite, meu nome é Michel Montbard, sou irmão de<br />
Etiènne. — disse Michel.<br />
— Boa noite, cavalheiro, Grassac Geneville às suas ordens.<br />
— Quero que saiba que não é do agrado de ninguém entre<br />
estas pessoas a sua presença aqui. Etiènne não nos havia<br />
consultado sobre esta possibilidade. Entretanto, agora que<br />
veio e conhece nosso esconderijo, diga-me: o que o trouxe até<br />
nós? Que tipo de assunto você conversou com meu<br />
irresponsável irmão, para que ele o convidasse tão<br />
rapidamente a fazer parte deste Conselho? — questionou<br />
Michel, encarando severamente o convidado de seu irmão.<br />
Grassac olhou-os um por um e retornou o olhar a Michel.<br />
— Bem, se minha presença não é do agrado de ninguém<br />
nesta sala, eu posso partir e voltar para o lugar de onde venho.<br />
Mas sou um guerreiro errante e manejo muito bem uma<br />
espada. Posso ser muito útil em vossa missão. — respondeu<br />
Grassac, com um ar sereno e tranqüilo, sem demonstrar<br />
qualquer nervosismo.<br />
17
— Ah! Então está tudo muito claro agora! Meu querido<br />
irmão nos trouxe um mercenário, que vai nos prestar um<br />
serviço em troca de dinheiro e comida, e irá nos vender por<br />
qualquer punhado de moedas no próximo vilarejo.<br />
Etiènne, percebendo que seu irmão estava ficando cada<br />
vez mais furioso, a ponto de sacar a espada e partir para cima<br />
de Grassac, caminhou até o centro do círculo, colocou sua mão<br />
direita sobre o ombro de Grassac e falou a to<strong>dos</strong>:<br />
— Senhores, por favor! Não precisamos deste tipo de<br />
discussão. Eu trouxe este homem até aqui porque confiei nele<br />
e vi sinceridade em tudo o que me falou. Mas se os senhores<br />
estão temerosos e com os corações aflitos, eu me<br />
responsabilizo e me comprometo a ficar na companhia de<br />
Grassac dia e noite, até que os senhores também tenham<br />
confiança nele. Grassac irá ficar em minha própria casa até<br />
que to<strong>dos</strong> os nossos planos estejam concluí<strong>dos</strong> e sejam<br />
coloca<strong>dos</strong> em prática.<br />
Então Michel passou a mão sobre a testa para limpar o<br />
suor pois, apesar do frio que fazia, os ânimos haviam se<br />
exaltado demasiadamente e o sangue corria mais quente do<br />
que de costume.<br />
— Que assim seja! Meu irmão Etiènne e Grassac serão<br />
unha e carne até que tudo esteja preparado. — Michel virou o<br />
olhar para seu irmão e fitou-o demoradamente. — Espero que<br />
você não esteja errado, meu irmão, pois se este homem for um<br />
traidor, estará pondo em risco tua própria vida.<br />
Havia um ar de preocupação muito grande no semblante<br />
de Michel, e to<strong>dos</strong> na sala podiam perceber facilmente.<br />
— Alguém mais tem algo a dizer? — Assim que Michel<br />
deu esta abertura, os membros do Conselho mais uma vez se<br />
entreolharam e Paul, o lenhador, dando um passo à frente em<br />
direção a Grassac, olhou-o de cima a baixo, perguntando:<br />
— Perdoe-me, senhor Grassac, mas ainda não ficou muito<br />
claro de onde vem e qual é o seu interesse em nossa missão. O<br />
que pode querer ganhar, um valoroso guerreiro errante, de<br />
18
camponeses que querem refugiar-se com suas famílias da<br />
guerra que se aproxima? — Paul, com um sorriso sarcástico,<br />
abriu os braços, olhando para seus companheiros e continuou<br />
a falar. — Há pouco este cavalheiro disse ser um excelente<br />
espadachim, entretanto nossa missão é de fuga e não de<br />
confrontos. O que o senhor me diz a este respeito, Sr. Grassac?<br />
Desta vez o próprio Michel interrompeu a discussão e<br />
acabou com o tumulto que já estava se estendendo por um<br />
tempo demasiado longo.<br />
— Chega! Isto aqui não é um julgamento da Corte, nem<br />
este homem é acusado de crime algum. Meu irmão já está<br />
responsável por ele e sua palavra é suficiente. Alguém<br />
discorda do que estou dizendo? — Fez-se silêncio por alguns<br />
instantes na pequena sala. Então, Grassac encarou Paul e<br />
soltou um pequeno sorriso sarcástico pelo canto da boca, com<br />
o objetivo de irritá-lo, depois se voltou para Michel e assentiu<br />
com a cabeça, em forma de agradecimento.<br />
Em seguida, Michel fez gestos para que to<strong>dos</strong> se<br />
sentassem novamente, como haviam feito antes de serem<br />
interrompi<strong>dos</strong>, e logo começaram a tratar <strong>dos</strong> desígnios que<br />
deveriam ser toma<strong>dos</strong> em função <strong>dos</strong> últimos acontecimentos<br />
e das últimas informações que Michel trouxera consigo, da<br />
viagem que fez a Paris. Foi revelado aos membros do<br />
Conselho que Martin havia enviado mensageiros secretos a<br />
Paris, com um pedido de ajuda ao rei Philipe VI. De que tipo<br />
de ajuda se tratava ele não sabia. Entretanto, to<strong>dos</strong> sabiam<br />
que, se fosse ajuda militar, os planos do Conselho ficariam<br />
seriamente prejudica<strong>dos</strong>, pois não poderiam coordenar a fuga<br />
do povo com um contingente da cavalaria real dando voltas<br />
pela cidade.<br />
— Bem, cavalheiros, tudo o que eu sabia, agora é de seu<br />
conhecimento. Gostaria, então, que os senhores refletissem<br />
sobre a situação, a fim de tomarmos as decisões necessárias à<br />
finalização de nossos planos. — Concluiu Michel, deixando a<br />
to<strong>dos</strong> muito pensativos.<br />
19
Surgiram, de to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>, várias idéias acerca do que<br />
deveria ser feito. O próprio Michel sugeriu que aguardassem<br />
mais dois dias, para que soubessem da resposta que trariam os<br />
mensageiros envia<strong>dos</strong> a Paris por Martin. A maioria, no<br />
entanto, mostrou-se contrária a esta idéia, alegando que dois<br />
dias seria demais para se esperar, tendo em vista os rumores<br />
que chegavam das cidades litorâneas, to<strong>dos</strong> muito ruins. Já se<br />
ouvia dizer que embarcações inglesas podiam ser avistadas ao<br />
longo da costa francesa.<br />
Grassac pediu a palavra, para dar sua opinião, e Michel<br />
consentiu. Grassac disse então que esperar notícias em<br />
Amiens seria muito ruim, tendo em vista que os<br />
acontecimentos estavam se desenrolando longe dali, nas<br />
cidades litorâneas. Ele aconselhou Michel a enviar alguns<br />
homens de confiança do Conselho para estas cidades, a fim de<br />
espreitar a invasão inglesa e trazer notícias confiáveis, ao<br />
invés de ficar se baseando em rumores. Michel franziu a testa,<br />
ficou pensativo, com uma expressão de dúvida, como se uma<br />
sombra o tivesse abatido por um instante, até que Paul<br />
interrompeu seu pensamento e se colocou contra a opinião de<br />
Grassac, dizendo que não existia a menor possibilidade de<br />
enviar pessoas para longe de Amiens, o que aumentaria ainda<br />
mais o risco de traição. Na verdade, Paul seria contra qualquer<br />
opinião de Grassac, devido à antipatia que sentira por ele<br />
desde o primeiro momento.<br />
Michel concordou com Grassac e ignorou os argumentos<br />
de Paul, fato que o deixou mais irado ainda, ruborizado e com<br />
um brilho de ódio nos olhos. Porém Paul calou-se e não falou<br />
mais uma palavra até o final da reunião.<br />
Na opinião de Gourdon Ballec, o Conselho devia se<br />
revelar a Martin e tentar pedir sua adesão à empreitada que<br />
estavam dispostos a realizar. A esta idéia, não só Michel, mas<br />
até mesmo Gien, irmão de Gourdon, foram totalmente<br />
desfavoráveis. Michel ainda os lembrou de como Martin era<br />
um homem inescrupuloso.<br />
20
— Cavalheiros, não se deixem levar pelo desespero e<br />
jamais esqueçam quem é Martin Lacroix. Ele é um homem<br />
ambicioso e sem escrúpulos. Mora em seu castelo, que acredita<br />
ser uma fortaleza, e também confia muito em sua guarda.<br />
Pensa que está bem protegido, e mesmo que Amiens seja<br />
sitiada e tomada pelos ingleses, ele é capaz de jurar, de<br />
joelhos, fidelidade ao rei da Inglaterra e pagar os tributos que<br />
quiser. Não se esqueçam de que este crápula entregou sua<br />
própria filha Lourdes ao senhor de Abbeville por um punhado<br />
de moedas de ouro e um pedaço de terra naquela região.<br />
To<strong>dos</strong> concordaram imediatamente, pois logo se<br />
lembraram desta e de muitas outras barbaridades de que<br />
Martin fora capaz.<br />
— Realmente, meu irmão tem razão. Não podemos de<br />
forma alguma nos revelar a Martin. E se ele souber que<br />
pretendemos evacuar a cidade levando os pagadores de seus<br />
impostos, é bem capaz que acabemos dependura<strong>dos</strong> por uma<br />
corda, no centro da praça principal. — Concluiu Etiènne e<br />
to<strong>dos</strong> mais uma vez concordaram.<br />
A noite fria já avançava pela madrugada, e a todo<br />
momento alguém bocejava demonstrando sinais de cansaço. A<br />
reunião chegava ao final, to<strong>dos</strong> os assuntos haviam sido<br />
exaustivamente debati<strong>dos</strong>.<br />
Ficou decidido que Gien e seu irmão Gourdon iriam para<br />
Calais, a fim de espreitar os acontecimentos naquela cidade<br />
litorânea. Quando ocorresse qualquer sinal de invasão inglesa,<br />
eles imediatamente retornariam a Amiens para que então os<br />
planos de fuga fossem coloca<strong>dos</strong> em prática.<br />
To<strong>dos</strong> foram se despedindo e se retirando um a um, de<br />
forma silenciosa, para que não chamassem a atenção <strong>dos</strong><br />
homens que estavam na taberna. Por fim, ficaram Michel e seu<br />
braço direito, Leon. Michel sempre confiou muito em Leon,<br />
foram cria<strong>dos</strong> no mesmo vilarejo, cresceram juntos e passaram<br />
muitos momentos difíceis na infância e adolescência. Sempre<br />
21
que Michel precisou de ajuda, Leon estava pronto para acudilo,<br />
sem nunca cobrar nada em troca.<br />
Michel segurou a mão de Leon e com o coração aflito lhe<br />
pediu que cuidasse de Etiènne, pois ele temia por sua vida e<br />
ainda não confiava em Grassac. Leon disse ao amigo que não<br />
se preocupasse, pois seguiria os dois para onde quer que<br />
fossem e cuidaria para que nada de ruim acontecesse a<br />
Etiènne, pois gostava muito dele e o considerava também<br />
como se fosse seu irmão. Michel deu, então, um forte abraço<br />
em Leon e agradeceu. Leon virou-se e saiu rapidamente pela<br />
portinhola.<br />
Sentado sozinho na pequena sala de reuniões do<br />
Conselho, Michel pensou alto, falando consigo mesmo:<br />
— Deus te proteja e a meu irmão. Espero que ele não<br />
tenha cometido um grande erro.<br />
<br />
Etiènne e Grassac cavalgavam juntos, cortando a<br />
madrugada fria. Mais à frente iam Gien, Gourdon e Paul.<br />
Estavam a cavalgar na direção do Grande Bosque, por onde<br />
pretendiam cortar caminho até o centro da cidade. De repente,<br />
Grassac puxou as rédeas de seu cavalo com força, fazendo-o<br />
parar repentinamente. Etiènne, assustado, olhou por sobre os<br />
ombros, parou também seu cavalo fazendo uma meia lua, e<br />
voltou trotando lentamente até Grassac.<br />
— O que foi, Grassac? Aconteceu alguma coisa? —<br />
Grassac fitou Etiènne com uma expressão austera.<br />
— Preciso que confies em mim mais uma vez. Sei que<br />
prometeu ficar a meu lado todo o tempo, mas tenho que fazer<br />
algo urgente, e que não pode ficar para outro momento.<br />
— O que pode ser tão urgente para ser feito no meio da<br />
madrugada?<br />
O frio estava penetrando em seus corpos até os ossos, e os<br />
cavalos não paravam de bufar, expelindo uma fumaça<br />
resultante do ar quente de suas respirações em contato com o<br />
22
ar gélido. Etiènne aguardava a resposta de Grassac, que havia<br />
baixado a cabeça.<br />
— Sinto muito, Etiènne, mas não posso falar. Ou você<br />
confia em mim, ou não. Prometo que depois não sairei um só<br />
momento de seu lado, mas agora eu lhe imploro que confie na<br />
minha palavra e me deixe fazer o que preciso.<br />
Etiènne baixou a cabeça e respirou fundo. Sabia que seu<br />
irmão não aprovaria isso e, agora, até mesmo ele sentia-se<br />
receoso de que pudesse ser traído por Grassac.<br />
— Está bem! — respondeu Etiènne — Mas com uma<br />
condição. Você terá que me acompanhar até minha casa. Vai<br />
entrar comigo e então você poderá ir.<br />
— Está bem, mas vamos correr, porque senão eu não<br />
conseguirei fazer o que preciso a tempo.<br />
Os dois partiram numa velocidade desesperada,<br />
lembravam até as grandes corridas a cavalo que aconteciam<br />
em Paris, nas épocas de festa.<br />
Ao chegarem à casa de Etiènne, desmontaram e entraram<br />
apressadamente pela porta. Os cavalos estavam exaustos e<br />
ofegantes.<br />
À espreita da casa de Etiènne já se encontrava Leon, atrás<br />
de uns arvore<strong>dos</strong> a cerca de trinta metros de distância. Leon<br />
observava atentamente os movimentos que aconteciam no<br />
interior da casa, através de uma janela lateral. Viu quando<br />
uma ou duas velas foram acesas, iluminando pouco o<br />
ambiente e prejudicando sua observação.<br />
Começou a cair uma chuva torrencial, prejudicando ainda<br />
mais sua visão, devido à distância. De súbito, a luz que vinha<br />
de dentro da casa se apagou, deixando-o apreensivo. Notou<br />
um vulto saindo da casa, mas como a visibilidade estava<br />
muito prejudicada, não pôde distinguir quem era. Ficou<br />
irritado e tentou forçar a vista, mas era impossível enxergar<br />
nas condições em que estava. O vulto contornou rapidamente<br />
os cavalos, montou e saiu em disparada na direção do<br />
arvoredo onde ele estava escondido. Leon se agachou e puxou<br />
23
um ramo de folhagens, para se esconder ainda mais. Foi então<br />
que pôde ver o cavalo branco de Grassac passar velozmente, a<br />
apenas 2 metros de onde se escondera.<br />
Leon correu até seu cavalo, que havia deixado amarrado<br />
alguns metros mais para trás, montou e foi atrás de Grassac,<br />
desesperado, pensando como Etiènne podia deixar que ele<br />
saísse assim, no meio da madrugada, ou ainda, se Grassac não<br />
teria causado algum mal a Etiènne, e estava agora a fugir.<br />
Quando Leon entrou no bosque, temia não conseguir<br />
alcançar Grassac, pois apesar de ter se apressado, perdeu<br />
muito tempo ao correr até seu cavalo. Porém, após ter<br />
cavalgado alguns metros dentro do bosque, Leon observou<br />
que o cavalo de Grassac estava amarrado a uma árvore e que<br />
Grassac estava sentado em um tronco velho caído. Leon<br />
surgiu como que do nada, e numa agilidade incrível, tão logo<br />
deteve sua montaria, desmontou desembainhando sua espada,<br />
levando a ponta da lâmina ao peito de Grassac, que estava de<br />
cabeça baixa, coberta por seu capuz.<br />
— Então, seu verme, o que você fez com Etiènne!? Vamos!<br />
Diga suas últimas palavras antes de perder o pescoço!<br />
Foi então que o capuz foi jogado para trás, revelando que<br />
não era Grassac, e sim Etiènne, usando as roupas dele.<br />
— Degolaria o irmão mais novo de seu melhor amigo? —<br />
Leon ficou estupefato. Tamanha foi sua surpresa, que até<br />
deixou cair sua espada, como se ela tivesse ficado pesada<br />
demais para que ele a segurasse.<br />
— Mas, mas, Etiènne... Por quê? O que está havendo?<br />
— Nada de mais, meu amigo Leon. Simplesmente eu<br />
conheço meu irmão o suficiente para saber que ele o mandaria<br />
atrás de mim, como já o fez outras vezes, o que eu percebi,<br />
mas não falei nada. Afinal, não é ruim ter um anjo da guarda<br />
que use tão bem uma espada como você.<br />
Etiènne explicou a Leon que Grassac precisava resolver<br />
um problema urgente, e que não poderia ser acompanhado.<br />
Sabendo que seria seguido, resolveu levá-lo até sua casa, para<br />
24
que trocassem de roupas e de cavalos. Assim, enquanto Leon<br />
seguiu Etiènne, Grassac conseguiu sair da casa sem ser visto<br />
por Leon e foi fazer o que precisava. Leon ficou furioso e disse<br />
a Etiènne que Michel não iria gostar nem um pouco de saber o<br />
que tinha acontecido. Etiènne, muito irreverente, deu de<br />
ombros e disse que sabia o que estava fazendo.<br />
<br />
Pela manhã, quando os primeiros indícios de que o dia<br />
iria começar apareceram no céu, pois as pesadas nuvens<br />
negras que cobriam Amiens já estavam clareando um pouco,<br />
num lugar próximo ao castelo de Martin, o senhor de Amiens<br />
se encontrava com Gallard Gellion, seu agente secreto. Martin<br />
estava com um ar apreensivo e com um aspecto horrível de<br />
quem não dormira bem. Talvez pela ansiedade de saber quem<br />
eram os membros do Conselho, momento que há muitos dias<br />
vinha esperando.<br />
Assim que Gallard chegou, desceu de sua montaria e veio<br />
cumprimentar Martin. — Bom dia, senhor Martin. Trago<br />
excelentes informações. Creio que o Conselho de<br />
Conspiradores chegou a seu fim.<br />
25
M<br />
CAPÍTULO II<br />
As chamas da traição<br />
artin e Gallard conversaram demoradamente sobre as<br />
novas informações obtidas na fria madrugada que<br />
passara. Agora que to<strong>dos</strong> os membros do Conselho haviam<br />
sido revela<strong>dos</strong>, começaram a planejar uma forma rápida e<br />
eficaz de destruí-los. O dia estava claro quando Martin deixou<br />
Gallard e retornou a seu castelo. As próximas horas seriam<br />
decisivas.<br />
Logo que chegou ao castelo, ordenou que o chefe da<br />
guarda viesse à sua presença. Alain Dumas era seu nome. <strong>Era</strong><br />
um homem alto, de cabelos negros, cavanhaque e muito<br />
musculoso, o mais alto de toda a guarda. Tinha uma expressão<br />
forte e uma voz rouca que impunham respeito.<br />
Alain Dumas servia a Martin já fazia mais de oito anos.<br />
<strong>Era</strong> como um cão de guarda fiel ao dono. Desde que chegou a<br />
Amiens e se apresentou ao serviço de Martin, conquistou a<br />
confiança de seu senhor e a obediência <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>. Dono de<br />
um carisma sem igual, to<strong>dos</strong> os seus subordina<strong>dos</strong> o<br />
respeitavam e admiravam. O seguiriam onde quer que fosse,<br />
pois possuía um enorme poder de liderança.<br />
Assim que Alain chegou à presença de Martin, foi<br />
ordenado que o acompanhasse até as salas subterrâneas do<br />
castelo. Desceram as escadas de acesso ao subterrâneo e<br />
chegaram a uma pequena porta de madeira escura. Há muitos<br />
anos que esta porta estava fechada. O próprio Alain nunca<br />
havia descido até esta parte do castelo. Martin destrancou a<br />
porta e a empurrou com um pouco de dificuldade. Um<br />
rangido alto ecoou pelo comprido e escuro corredor além da<br />
porta.<br />
26
Quando passaram pela porta e a tocha iluminou o<br />
corredor, Alain pôde perceber que, além de muitas teias de<br />
aranha, havia, ao longo do corredor, outras três portas, todas à<br />
direita da entrada.<br />
Martin foi à frente desviando-se das enormes teias de<br />
aranha que haviam se formado ao longo <strong>dos</strong> anos, e Alain o<br />
seguiu. Após terem passado em frente às três portas, ao final<br />
do corredor, Martin ergueu o braço e segurou uma tocha que<br />
estava presa à parede, puxando-a violentamente para baixo.<br />
Ao fazer isto, um forte clangor soou, provocando ecos por<br />
todo o corredor, e a parede de rochas se deslocou para frente.<br />
<strong>Era</strong> uma passagem secreta.<br />
Alain estava admirado com tudo o que via e também<br />
muito ansioso em saber por que Martin o levara até aquele<br />
lugar. Tentou imaginar o que estaria esperando atrás daquela<br />
parede de rochas.<br />
Martin empurrou um pouco mais a parede, para que<br />
ambos pudessem entrar. Os dois ultrapassaram a porta secreta<br />
e a tocha iluminou o lugar. Alain ficou ainda mais<br />
impressionado. Nunca, em toda sua vida, havia visto tantos<br />
mecanismos de tortura reuni<strong>dos</strong> em um só lugar, como os que<br />
ele estava vendo naquele momento.<br />
Martin percebeu a fisionomia de espanto em Alain, que<br />
estava boquiaberto.<br />
— Não se assuste, meu amigo, este lugar já não é usado<br />
há mais de vinte anos. Você pode perceber isto pela<br />
quantidade de poeira e teias de aranha.<br />
— Eu nunca imaginei que meu senhor possuísse uma<br />
câmara de torturas tão completa aqui no castelo. — disse<br />
Alain, ainda com um ar de surpresa.<br />
— Este lugar foi muito útil para conseguir tudo o que<br />
tenho hoje. Numa época onde havia mais homens rebeldes e<br />
valentes aqui em Amiens, o controle do povo era mais difícil e<br />
fui obrigado a usar meios convincentes para arrancar<br />
informações das pessoas, além de manter a ordem.<br />
27
— Nossa! — suspirou Alain. — Foi meu senhor quem<br />
construiu tudo isto?<br />
— Não, quer dizer, um ou outro método foi criado pelo<br />
meu pai, anos atrás, mas a maior parte eu consegui negociar<br />
com a Santa Inquisição. A Igreja também possui méto<strong>dos</strong><br />
bastante convincentes de diálogo com os hereges e infiéis.<br />
— E aqui neste lugar meu senhor matou muitos homens<br />
desta cidade, arruaceiros e infiéis, por assim dizer? — indagou<br />
Alain com um sorriso cínico.<br />
Martin olhou em volta com um ar irônico e deu um forte<br />
suspiro, andando vagarosamente entre as peças de tortura.<br />
— Meu fiel amigo, nós não temos o poder de tirar a vida<br />
de ninguém. Isto fica a cargo de Deus. Torturei muitas pessoas<br />
naquela época, mas nem todas morreram, porque Deus foi<br />
misericordioso e não as chamou, permitiu que continuassem<br />
vivas. Ele é quem decide quem vai e quem fica, não eu, nem<br />
você. Somos isentos de qualquer culpa. — Alain deu um<br />
sorriso displicente, como quem ri de algo absurdo. — Sei que<br />
sempre foi um homem fiel aos meus serviços, e sei também<br />
que sempre foi um grande e verdadeiro cavaleiro, respeitando<br />
a ordem <strong>dos</strong> cavaleiros com muita dignidade, mas quando um<br />
homem assume determinadas posições na vida, como a que<br />
fui instado a assumir, ele é obrigado a usar méto<strong>dos</strong><br />
alternativos, que nem sempre são de seu agrado, mas<br />
infelizmente são necessários.<br />
Martin fazia-se de vítima. Sempre teve Alain como um fiel<br />
guardião, e lhe confiara o comando de toda a guarda, mas não<br />
sabia se ele compactuaria com seus méto<strong>dos</strong> desumanos e com<br />
a prática de pequenas atrocidades. Ele sabia que Alain era um<br />
homem muito poderoso, e precisava dele a seu lado. Contava<br />
com sua liderança para capturar Michel Montbard e os demais<br />
membros do Conselho de Conspiradores.<br />
Com muita astúcia, Martin tentava manter o apoio de<br />
Alain, fingindo ser um homem bom, que simplesmente fora<br />
vítima das circunstâncias e tivera que usar estes méto<strong>dos</strong> para<br />
28
manter a ordem na cidade. — Meu amigo Alain, por muitos<br />
anos fui obrigado a sacrificar várias pessoas para manter a<br />
ordem e a paz em Amiens. Você mesmo é testemunha de que<br />
estas salas subterrâneas estão fechadas há anos e eu já estava<br />
até com idéia de vender todas estas peças de volta à Igreja. —<br />
Martin tentava convencer Alain na expectativa de que seu<br />
melhor homem não o abandonasse. Seria desastroso perder<br />
Alain num momento tão crucial como aquele.<br />
— Por que meu senhor me trouxe até aqui? Deve haver<br />
algum motivo especial, ou não? — Martin assentiu com a<br />
cabeça, passou o braço pelos ombros de Alain e o conduziu<br />
lentamente até uma porta no lado oposto da câmara de<br />
torturas.<br />
— Sim, é verdade! Eu tenho um motivo para trazê-lo até<br />
aqui. Por diversas vezes pensei fazer isso antes, mas a<br />
vergonha me impedia. Agora, a necessidade me obrigou a isto.<br />
Mais do que nunca preciso de seus serviços, meu amigo.<br />
Exatamente para não ser obrigado a voltar ao passado, preciso<br />
de apoio e ajuda. — Com uma voz mansa e tranqüila, Martin<br />
tentava manter o controle e persuadir Alain. — Você sabe<br />
muito bem <strong>dos</strong> boatos que vêm chegando a Amiens, sobre<br />
uma possível invasão inglesa à França, não sabe?<br />
— Sim, todo o povo comenta e está muito temeroso.<br />
— Pois é, estes malditos boatos fizeram com que um<br />
grupo de idiotas criasse um Conselho cujos propósitos não<br />
interessam ao rei da França, muito menos à cidade de Amiens.<br />
O seu líder é Michel Montbard e precisamos dar um fim a este<br />
Conselho.<br />
— E de que tipo de assunto estes homens estão tratando?<br />
Já ouvi falar deste Michel Montbard, e ele é um homem muito<br />
querido entre as pessoas de Amiens. Está sempre disposto a<br />
ajudar a to<strong>dos</strong>.<br />
— Eu sei, mas ele é um traidor de Amiens. Está tramando<br />
uma fuga em massa da cidade. Onde já se viu? Um<br />
desgraçado como este levar o povo de uma cidade inteira a<br />
29
deixar seus lares por causa de um boato! Vê agora porque<br />
quero acabar com este Conselho!? Para que ele não acabe com<br />
minha cidade e não leve desgraça a centenas de famílias. —<br />
Martin estava sendo muito convincente, mas na verdade ele<br />
pensava em manter seu luxo e riqueza através <strong>dos</strong> altos<br />
impostos que cobrava àquelas pessoas.<br />
— Estou entendendo agora, este Michel se aproximou das<br />
pessoas como uma pessoa bon<strong>dos</strong>a, prestativa e amiga,<br />
conseguindo assim a confiança deles, para que possa levar<br />
adiante seu plano de retirá-los de Amiens.<br />
— Isso, é exatamente isso! — afirmou Martin.<br />
— Mas o que é que ele tem a ganhar com isso, por que ele<br />
levaria tantas pessoas embora daqui, e para onde?<br />
— Não sei, talvez queira explorá-las, tirar dinheiro delas,<br />
mas isso não importa, o meu dever é impedir que meu povo<br />
seja iludido por falsas idéias de um lunático!<br />
— E o que meu senhor pretende fazer?<br />
Alain, convencido de que Martin realmente tinha boas<br />
intenções, já estava disposto a ajudá-lo. Não sabia que o povo<br />
guardava grande ódio a Martin, por tudo que ele lhes fizera<br />
no passado. Alain nunca foi de conversar com as pessoas do<br />
povo, sempre manteve a postura de capitão da guarda, não se<br />
misturando aos habitantes da pequena Amiens. Sempre que<br />
fazia uma visita à taberna com seus homens, as pessoas, por<br />
sua vez, também o evitavam e faziam comentários aos<br />
cochichos, que ele nunca teve curiosidade de saber sobre o que<br />
seriam. A grande verdade, que ele nunca fora capaz de<br />
perceber, é que Amiens sempre fora uma cidade oprimida. No<br />
passado, por torturas e sacrifícios, e agora, pelo medo imposto<br />
por sua própria presença e a de seus solda<strong>dos</strong>.<br />
— Atrás desta porta existe um grande corredor que vai<br />
dar muito além do castelo. — Martin continuou a falar — É<br />
por onde os mortos eram leva<strong>dos</strong> e também pode servir para<br />
uma fuga, caso seja necessário.<br />
— Fuga!? Fuga de quem?<br />
30
— Nossa fuga. Estou muito preocupado com Michel. Ele é<br />
capaz de incitar o povo não só a fugir de Amiens, mas a<br />
invadir e destruir este castelo. — Martin tentava retratar<br />
Michel, para Alain, como um homem extremamente perigoso.<br />
— Isto jamais vai acontecer enquanto eu estiver no<br />
comando da guarda, meu senhor, e honestamente não acredito<br />
que o povo fosse tão ousado a ponto de tentar uma coisa<br />
dessas. — mais uma vez Alain soltou aquele sorriso<br />
displicente.<br />
— Confio muito em você, Alain, mas cuidado com o<br />
excesso de confiança, ele pode ser sua ruína. — Martin falou<br />
isto com uma expressão séria.<br />
Continuaram conversando ainda por cerca de duas horas<br />
dentro da câmara de torturas. Martin e Alain traçaram juntos<br />
o que seria o plano de captura de to<strong>dos</strong> os membros do<br />
Conselho. Ficou decidido que o primeiro a ser capturado seria<br />
o taberneiro, pois a taberna ficava muito afastada e não<br />
poderiam esperar até a noite, hora em que estaria muito cheia,<br />
dificultando a prisão. Guardas seriam espalha<strong>dos</strong> pelo bosque<br />
para que ninguém pudesse ir até a taberna e, se alguém<br />
tentasse passar à noite, seria capturado.<br />
Os demais membros do Conselho seriam captura<strong>dos</strong> em<br />
seus próprios lares, assim que a noite caísse. A ordem era<br />
trazer to<strong>dos</strong> aprisiona<strong>dos</strong> e com vida, e incendiar suas casas<br />
por traição à França.<br />
Martin disse a Alain que to<strong>dos</strong> seriam julga<strong>dos</strong> perante o<br />
povo e ficariam presos no castelo mas, na verdade, tencionava<br />
torturá-los e decapitá-los em praça pública.<br />
Assim que Alain saiu, Martin ordenou que alguns<br />
homens limpassem e colocassem em funcionamento todas as<br />
peças de tortura. As três portas ao longo do corredor eram<br />
prisões, que também já estavam sendo preparadas para seus<br />
futuros habitantes, os membros do Conselho.<br />
Pela passagem secreta da câmara de torturas, Alain saiu<br />
com cerca de quarenta homens, fortemente arma<strong>dos</strong>. Foram<br />
31
em busca de Dízier, o taberneiro. Logo em seguida, saíram<br />
mais trinta homens para fazer a guarda e preparar as<br />
armadilhas no bosque, por onde a maioria <strong>dos</strong> freqüentadores<br />
da taberna costumava passar.<br />
Dentro do castelo, to<strong>dos</strong> os outros guardas estavam de<br />
prontidão. To<strong>dos</strong> os postos de segurança foram reforça<strong>dos</strong> e as<br />
trancas, todas verificadas.<br />
Catherine, vendo todo aquele alvoroço, começou a ficar<br />
assustada. Procurou por Martin, que foi encontrado nas<br />
despensas do castelo, coordenando uma nova arrumação<br />
pessoalmente.<br />
— Meu senhor, desculpe o incômodo, mas estou muito<br />
apreensiva. O que está acontecendo? Por que todo este<br />
movimento? Os ingleses estão chegando?<br />
Martin estava muito suado e ofegante, um pouco por<br />
cansaço e um pouco por euforia e ansiedade, pelos<br />
acontecimentos que estariam por vir.<br />
— Não diga isso! — Martin repreendeu-a com uma voz<br />
forte. — Essa história de ingleses não passa de um maldito<br />
boato, eles nunca vão invadir a França, muito menos Amiens e<br />
as cidades vizinhas. O rei Philipe VI jamais permitiria que isso<br />
acontecesse. — Respondeu com muita firmeza e confiança.<br />
— Então por que todo este movimento dentro do castelo,<br />
por que tantos guardas arma<strong>dos</strong> por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>? Meu<br />
senhor está estocando provisões na despensa?<br />
— Não! Tudo o que está acontecendo é apenas para<br />
garantir o nosso luxo e riqueza por mais um bom tempo.<br />
Agora chega de perguntas idiotas e vá ordenar às serviçais<br />
que preparem um grande banquete para o almoço. Hoje será<br />
um dia histórico para Amiens.<br />
— Sim, meu senhor! — Catherine virou-se e saiu das<br />
despensas cheia de cólera. Já não agüentava mais ser tratada<br />
com indiferença e grosseria por Martin. Em seu íntimo, ela<br />
sempre pensava que um dia ele pagaria por todo o mal que<br />
fizera a ela e a todas as pessoas de Amiens.<br />
32
Há muitos anos que Catherine sofria secretamente um<br />
medo e angústia muito grandes. Certa vez, foi surrada por<br />
Martin, quando descobriu que ele procurava serviçais no meio<br />
da madrugada para satisfazer seu insaciável desejo por sexo.<br />
Houve uma ocasião em que uma delas havia ficado grávida, e<br />
quando Martin descobriu, deu sumiço na pobre mulher.<br />
Catherine tinha quase certeza de que ele a matara, pois o<br />
seguira na noite em que levou a serviçal até as salas<br />
subterrâneas e, depois de longo tempo, retornou só.<br />
<br />
Quando Alain chegou com seus homens à taberna de<br />
Dízier, ainda faltavam cerca de duas horas para o almoço. O<br />
lugar encontrava-se completamente deserto, a não ser por um<br />
homem que aparentava estar embriagado, sentado em uma<br />
das mesas do canto da taberna, segurando uma caneca de<br />
vinho.<br />
Alain entrou acompanhado por quatro homens, enquanto<br />
os demais cercavam todo o lugar.<br />
Dízier estava atrás do balcão, enxugando algumas canecas<br />
que acabara de lavar. — Bom dia, Dízier — disse Alain —<br />
estamos aqui para levá-lo até o castelo do senhor Martin.<br />
Dízier, apreensivo, levou a mão lentamente ao cabo de<br />
sua espada que estava debaixo do balcão, dizendo: — E por<br />
que deveria ir até o castelo? Fiz algo que fosse contra as leis<br />
tirânicas de seu senhor? É quase hora do almoço e muitas<br />
pessoas vêm comer em minha taberna. — Alain percebeu que<br />
Dízier tentava pegar algo sob o balcão.<br />
— Se eu estivesse em seu lugar colocaria as mãos<br />
novamente sobre o balcão e aceitaria meu convite sem criar<br />
problemas. Neste momento, existem mais de trinta homens<br />
em torno desta taberna. Você não venceria a to<strong>dos</strong>. Lutar<br />
cansa e depois, nem to<strong>dos</strong> estão arma<strong>dos</strong> apenas com espadas.<br />
Guardas! — quando Alain gritou, chamando a atenção de seus<br />
homens, três <strong>dos</strong> quatro solda<strong>dos</strong> que o acompanhavam<br />
33
dentro da taberna armaram suas bestas e apontaram na<br />
direção de Dízier.<br />
O homem bêbado assustou-se com o grito de Alain e com<br />
a presença <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> arma<strong>dos</strong>, levantando-se bruscamente<br />
e deixando cair no chão a pesada caneca de vinho, o que fez<br />
um enorme estardalhaço. Assusta<strong>dos</strong> com o barulho, to<strong>dos</strong><br />
voltaram-se rapidamente para o homem bêbado e dois <strong>dos</strong><br />
guardas dispararam suas bestas simultaneamente, cravando<br />
suas setas no peito do homem, que tombou para trás, caindo<br />
sobre os bancos de madeira.<br />
Tudo se passou muito rápido e Dízier, aproveitando a<br />
situação, correu para a porta <strong>dos</strong> fun<strong>dos</strong> da taberna. To<strong>dos</strong><br />
perceberam e, quando o terceiro guarda com a besta mirou<br />
Dízier, Alain o empurrou no momento do disparo, soltando<br />
um grito de repreensão. Foi o que desviou a pontaria e fez<br />
com que a seta atingisse a perna esquerda de Dízier, ao invés<br />
do tórax, o que provavelmente o teria matado. Dízier tombou<br />
gritando de dor, enquanto Alain ainda repreendia seu<br />
soldado. — Está louco!? Quer que o senhor Martin nos<br />
enforque a to<strong>dos</strong>? Ele foi bem claro em suas ordens! Devemos<br />
levar to<strong>dos</strong> os animais e alimentos da taberna, e também o<br />
taberneiro, vivo! — Alain ficara furioso com a imprudência de<br />
seu soldado.<br />
— Perdoe-me, capitão, foi tudo muito rápido e perdi o<br />
controle, por favor, perdoe-me! Não acontecerá novamente.<br />
Alain prezava muito seus homens e tinha um grande<br />
poder de liderança, sabia que uma punição ou repreensão<br />
muito rígida perante os outros seria humilhante, e ele jamais<br />
envergonhara um homem perante outros.<br />
— Mais tarde falaremos sobre isso, vamos continuar com<br />
a missão. Mandem os outros homens entrarem e carreguem as<br />
carroças com os alimentos. — concluiu Alain.<br />
Em pouco tempo, todo o estoque de provisões da taberna<br />
estava pronto para ser levado ao castelo de Martin. Passado<br />
pouco mais de meia hora, um soldado veio até Alain.<br />
34
— Capitão, está tudo preparado para partirmos. O que<br />
faremos com o homem morto dentro da taberna?<br />
— Nada, queimem tudo.<br />
— Mas, capitão...<br />
— Queimem! — gritou asperamente Alain, que montou<br />
em seu cavalo e cavalgou até a carroça onde estava Dízier,<br />
ferido e todo amarrado. Alain o fitou e, com um sorriso na<br />
face, afastou-se e ordenou a partida <strong>dos</strong> homens.<br />
— Veja pela última vez tudo o que você construiu na vida<br />
e não soube preservar, por ter escolhido juntar-se a um bando<br />
de traidores imun<strong>dos</strong>. — falou em voz alta para que Dízier<br />
ouvisse, enquanto cavalgava para a frente da comitiva. Dízier,<br />
por sua vez, cheio de dores, com a seta ainda cravada na<br />
perna, fez um esforço e virou a cabeça, para olhar sua taberna<br />
e celeiro sendo consumi<strong>dos</strong> por enormes labaredas. Sentiu<br />
grande angústia e teve muito medo.<br />
<br />
Em sua pequena casa, Michel, sem imaginar o que<br />
acontecia do outro lado da cidade, estava assando um<br />
suculento peixe, que havia pescado pela manhã às margens do<br />
rio Somme, quando Leon chegou, batendo a sua porta.<br />
Trocaram cumprimentos, e Michel logo o convidou para o<br />
almoço. O peixe já estava exalando um cheiro muito<br />
agradável, quase pronto para ser saboreado, e Leon aceitou o<br />
convite de muito bom grado. Sentaram-se à mesa e<br />
começaram a conversar.<br />
Leon relatou os fatos que haviam ocorrido no final da<br />
madrugada anterior, acerca de Etiènne e seu novo amigo,<br />
Grassac. Michel ficou furioso quando soube que seu<br />
imprudente irmão deixara Grassac sair de sua vigilância logo<br />
após a reunião. Deu um violento murro na mesa,<br />
resmungando bastante.<br />
Leon prosseguiu, dizendo que ficaram durante toda a<br />
manhã providenciando os utensílios para a fuga, e até então<br />
35
Grassac não havia retornado. Por fim, disse que Etiènne<br />
também estava muito preocupado e fora até a casa <strong>dos</strong> irmãos<br />
Ballec, para apressar-lhes a partida para as cidades litorâneas,<br />
pois afirmara estar com um pressentimento muito ruim e<br />
temia que, se esperassem mais tempo, algo pudesse sair<br />
errado.<br />
— Então, mais uma vez aquele inútil tomou decisões por<br />
sua conta e risco!? — exclamou Michel, ainda mais furioso. —<br />
Espero que os irmãos Ballec tenham a sensatez de não dar<br />
ouvi<strong>dos</strong> a meu irmão, sem antes nos consultar.<br />
— Mas Michel, eu mesmo apoiei esta idéia, não podemos<br />
nos arriscar. Se algo de ruim acontecer, é bom que Gien e<br />
Gourdon estejam longe daqui. — Leon falou com um certo ar<br />
de arrependimento, pois viu que Michel estava muito<br />
descontente com tudo o que acontecera.<br />
— Claro, Leon, mas minha idéia agora é outra. Se este<br />
Grassac não aparecer até a noite, vamos dar início à fuga<br />
amanhã bem cedo. — explicou Michel — Dízier disse que já<br />
armazenou provisões suficientes para uma viagem de até<br />
quarenta dias.<br />
— E as outras pessoas, amigo? Não podemos deixá-los!<br />
Muitas famílias gostariam de nos acompanhar e deixar este<br />
lugar. Ninguém suporta mais a tirania daquele louco, que se<br />
diz dono da cidade. Vamos deixá-los entregues à guerra que<br />
se aproxima? Sinceramente não sei o que poderia ser pior,<br />
viver sob as leis de Martin Lacroix ou enfrentar uma guerra.<br />
— Não, levaremos to<strong>dos</strong> que queiram nos acompanhar.<br />
Afinal, este sempre foi o nosso propósito, tirar daqui todas as<br />
pessoas de bem, que queiram construir um lugar novo, um<br />
lugar bom, sem maldade e sem guerras. Para isso criamos o<br />
Conselho, mas primeiro precisamos levar todas as provisões e<br />
os equipamentos para um lugar seguro. Depois que<br />
estivermos acampa<strong>dos</strong> e organiza<strong>dos</strong>, viremos buscar as<br />
outras pessoas, aos poucos. — Leon assentiu com a cabeça.<br />
Michel tinha razão, jamais poderiam sair de Amiens com uma<br />
36
enorme caravana de centenas de pessoas, como se fosse um<br />
passeio pelo bosque, sem chamar a atenção. Depois, seria<br />
muito melhor levar as pessoas aos poucos, evitando assim<br />
riscos desnecessários.<br />
— O que vamos fazer então, meu amigo? — perguntou<br />
Leon, com um ar triste, sentindo-se culpado por ter apoiado<br />
Etiènne.<br />
— Vamos comer o meu peixe antes que ele queime! De<br />
barriga cheia, pensaremos melhor. — Michel levantou e foi<br />
buscar o almoço. Serviu uma caneca de vinho a Leon e<br />
dividiram o peixe. Enquanto se deliciavam, Michel combinou<br />
com Leon de ir à casa <strong>dos</strong> irmãos Ballec ao anoitecer, para<br />
verificar se realmente haviam partido.<br />
Após almoçarem, passaram o resto da tarde decidindo<br />
pequenos detalhes da fuga, definindo as tarefas que cada um<br />
deveria executar quando todas as pessoas fossem reunidas.<br />
Acreditavam que, dentro de no máximo dez dias, tudo estaria<br />
preparado. As horas foram passando até que o dia começou a<br />
escurecer, prenunciando a chegada da noite.<br />
Tinham começado a se preparar para a visita aos irmãos<br />
Ballec, quando perceberam o som de muitos cascos batendo<br />
no chão, do lado de fora. A casa de Michel ficava num lugar<br />
afastado do movimento da cidade e não era comum ver<br />
pessoas na região, àquela hora. Michel correu até uma das<br />
janelas e viu espantado, por uma fresta, muitos solda<strong>dos</strong> de<br />
Martin cercando sua casa. Correu até a mesa, onde sua espada<br />
estava e a pegou, com uma grande ira estampada em seu<br />
rosto.<br />
— Aquele desgraçado do Grassac deve ter nos traído! Os<br />
homens de Martin estão lá fora, por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>! — disse<br />
Michel a Leon, com um brilho de ódio nos olhos.<br />
— Será!? Não pode ser! Que faremos agora!?<br />
Leon demonstrava um grande espanto e surpresa, além<br />
de estar muito mais assustado que Michel. Pareciam estar<br />
atordoa<strong>dos</strong>, perdi<strong>dos</strong> e sem saber o que fazer. Andavam sem<br />
37
parar de um lado para o outro da casa, não acreditando no que<br />
estava acontecendo. Depois de tantos meses de segredo, tantos<br />
planos, e agora estavam prestes a enfrentar a Guarda de<br />
Amiens.<br />
— Daqui só me tiram morto! — Michel estava<br />
ensandecido, segurava firme sua espada e de vez em quando<br />
batia com seus copos na pesada mesa de madeira.<br />
— Calma! — gritou Leon. — Não devemos nos precipitar!<br />
Ainda não sabemos o que está acontecendo, ou o que pode ter<br />
acontecido aos outros.<br />
— Devem ter sido captura<strong>dos</strong>, talvez até estejam mortos<br />
— resmungava Michel. Ouviram-se batidas na porta e, logo<br />
em seguida, uma voz se pronunciou:<br />
— Em nome de Martin Lacroix, senhor de Amiens,<br />
viemos buscar Michel Montbard, acusado de traição ao rei<br />
Philipe VI, da França! Abram a porta ou queimaremos a casa!<br />
Reconheceram a voz de Alain Dumas, capitão da Guarda<br />
de Amiens, que falava altivamente. Michel dirigiu-se até a<br />
porta. Leon percebeu sua intenção e segurou-o a tempo.<br />
— Meu Deus, Michel! Está louco!? — a idéia de Michel era<br />
abrir a porta e cravar sua espada no peito do primeiro soldado<br />
que aparecesse à sua frente, mas Leon sabia que isso<br />
acarretaria a morte certa para ambos. — Calma, amigo, não<br />
sejamos precipita<strong>dos</strong>. Não é o momento certo para heroísmos<br />
e sim de sensatez.<br />
Por um momento, Leon pensou que seria difícil convencêlo<br />
a se entregar, mas era a única saída que tinham. Pelo<br />
menos, iriam durar mais algumas horas.<br />
Do lado de fora havia muita agitação, cavalos de um lado<br />
para outro, homens correndo para cima e para baixo, muitas<br />
vozes se misturando, parecia que estavam se organizando<br />
para uma verdadeira guerra. Alain era o mais agitado, sabia<br />
que não seria tão fácil pegar Michel Montbard como foi com<br />
Dízier. Alain estava preparando um esquema especial para<br />
tentar capturá-lo sem que houvesse luta. <strong>Era</strong> uma grande<br />
38
chance de melhorar seu conceito perante Martin, levar Michel<br />
Montbard vivo.<br />
— Atenção, homens! — gritou aos seus solda<strong>dos</strong>. —<br />
Estejam prepara<strong>dos</strong> e vejam como é que se arranca um rato de<br />
seu buraco. — Alain, segurando um arco armado, baixou-o até<br />
que a ponta de sua seta tocasse a chama da tocha que um de<br />
seus homens segurava, de pé a seu lado. A seta, que já estava<br />
preparada para se incendiar, rapidamente ficou em chamas.<br />
Alain levantou o arco e apontou para o telhado da casa,<br />
disparando a seta flamejante, que cruzou o ar fazendo um arco<br />
até atingir a palhoça que cobria a casa de Michel. Lentamente<br />
a casa começou a se incendiar, mas, a cada minuto que<br />
passava, o fogo se alastrava com mais rapidez. Em poucos<br />
instantes, a fumaça causada pelas labaredas começou a<br />
dominar o interior da casa, fazendo com que Michel e Leon<br />
começassem a tossir sufoca<strong>dos</strong>, praguejando contra Martin.<br />
Ambos estavam com os olhos ardendo e lacrimejando muito.<br />
Quase sem ar, já não tinham mais opção, sequer podiam<br />
pensar em alguma saída. Pedaços de madeira em chamas<br />
começavam a cair do telhado em fogo. Precisavam de<br />
oxigênio, ar puro, precisavam respirar. Abriram a porta e<br />
correram para fora da casa cambaleantes, sem enxergar<br />
absolutamente nada em meio à nuvem de fumaça que os<br />
cercava.<br />
Quando completaram cinco ou seis passos, dois cavaleiros<br />
saíram da lateral da casa, lado a lado, com uma distância de<br />
três metros aproximadamente entre eles, segurando uma<br />
grande rede trançada. Vieram cavalgando em grande<br />
velocidade com aquela rede esticada. Ao passarem por Michel<br />
e Leon, largaram-na, fazendo com que os dois caíssem e se<br />
enroscassem na rede, como dois peixes captura<strong>dos</strong>.<br />
Enquanto ainda rolavam presos à rede, devido ao<br />
violento impacto causado pelos cavaleiros em alta velocidade,<br />
os solda<strong>dos</strong> soltavam urras de alegria.<br />
39
— Verifiquem quem estava com Michel! — ordenou<br />
Alain.<br />
Um soldado aproximou-se <strong>dos</strong> dois cuida<strong>dos</strong>amente e<br />
observou o rosto <strong>dos</strong> prisioneiros.<br />
— Capitão! O outro é Leon Troujard!<br />
— Então, hoje é nosso dia de sorte! Pegamos dois ratos<br />
grandes na mesma ratoeira! — Todas deram altas gargalhadas<br />
e zombaram <strong>dos</strong> prisioneiros.<br />
Alain ordenou que um pequeno destacamento fosse até a<br />
casa de Leon fazer uma vistoria e queimar tudo. Preparou o<br />
retorno ao castelo de Martin, para onde conduziria o líder do<br />
Conselho e seu melhor amigo. Já estava bem escuro quando<br />
partiram, mas fizeram uma cavalgada tranqüila de regresso. A<br />
única preocupação de Alain era saber como Martin reagiria,<br />
sabendo que os outros membros do Conselho não haviam sido<br />
captura<strong>dos</strong>.<br />
40
N<br />
CAPÍTULO III<br />
Muitas revelações<br />
o final da noite, Alain retornava trazendo seus solda<strong>dos</strong> e<br />
os prisioneiros. Chegaram à beira do enorme fosso que<br />
circundava o castelo e se identificaram. Os homens que<br />
guardavam a entrada baixaram lentamente a ponte levadiça e<br />
suspenderam a treliça, para que Alain pudesse entrar com<br />
seus solda<strong>dos</strong>. Passaram em fila dupla, segurando tochas para<br />
iluminar o caminho.<br />
Quando Martin soube que seus homens haviam<br />
retornado, foi rapidamente ao encontro de Alain para saber<br />
como fora a missão.<br />
Encontraram-se na torre de armas do castelo, onde os<br />
solda<strong>dos</strong> depositavam seus pertences de combate, como<br />
espadas, bestas, aljavas, escu<strong>dos</strong> e lanças, antes de descansar.<br />
Alain percebeu que Martin entrara agitado e tenso.<br />
— Boa noite, senhor — Alain olhou rapidamente para<br />
Martin, desviando o olhar em seguida, e continuou se<br />
despojando de seu armamento.<br />
— Conseguiu pegá-los? Estão to<strong>dos</strong> presos? — indagou<br />
Martin, demonstrando grande ansiedade.<br />
Alain estava cônscio de que Martin ficaria furioso ao<br />
saber que nem to<strong>dos</strong> haviam sido captura<strong>dos</strong>. Despiu a cota<br />
de malha, jogando-a sobre os outros objetos, e mais uma vez<br />
olhou para Martin.<br />
— Não, apenas Leon e Michel, os irmãos Ballec...<br />
— O quê!? — Martin deu um grito de espanto e ódio ao<br />
mesmo tempo, interrompendo as explicações de Alain, que<br />
por sua vez, baixara a cabeça. Martin ficou encolerizado, seus<br />
olhos faiscavam de ira ao ouvir que o capitão de sua guarda<br />
41
fracassara numa missão tão importante. — Seu idiota! Como é<br />
que pôde falhar numa missão tão importante como essa?<br />
Ordenei que capturasse sete homens e você só me traz três! E<br />
ainda assim quase matou Dízier pela manhã!<br />
Alain estava nervoso, nunca recebera uma reclamação<br />
sequer de seu senhor, e agora estava ali, sendo<br />
implacavelmente acusado de um fracasso pelo qual na<br />
verdade não era culpado.<br />
— Senhor, ninguém nos escapou — mais uma vez Alain<br />
tentava explicar o que acontecera. — O fato é que os outros<br />
homens que buscávamos prender não foram encontra<strong>dos</strong> em<br />
parte alguma. Procuramos por to<strong>dos</strong> os cantos da cidade, eles<br />
não estão em Amiens.<br />
— Eu ordeno que as buscas sejam redobradas. Quero estes<br />
homens presos em meu castelo até amanhã, antes do<br />
anoitecer. Onde estão os dois prisioneiros que trouxeste<br />
agora? Não os quero junto de Dízier, ficarão to<strong>dos</strong> separa<strong>dos</strong>.<br />
— Já foram leva<strong>dos</strong> para as salas subterrâneas, senhor.<br />
Foram coloca<strong>dos</strong> em salas separadas, mas há outra pessoa com<br />
Leon. Quando fomos prendê-lo, encontramos uma senhora,<br />
que diz ser a tia dele. Seu nome é Claudia. Não podíamos<br />
queimar a casa de Leon com ela dentro.<br />
Martin deu um sorriso sarcástico.<br />
— Não vejo porque não, mas isso não é problema. Talvez<br />
ela possa ter alguma utilidade. Agora verei como estão meus<br />
nobres convida<strong>dos</strong>. Quanto a você, Alain, junte seus homens e<br />
reinicie as buscas, imediatamente!<br />
— Meu senhor, os homens estão exaustos, precisam<br />
descansar um pouco!<br />
— Não interessa! — mais uma vez Martin bradou<br />
asperamente. — Quero aqueles traidores presos! Agora vá!<br />
— Sim, senhor. — Alain assentiu com a cabeça e ficou<br />
observando Martin retirar-se sem dizer nem mais uma<br />
palavra. Sabia que, se não encontrasse os irmãos Ballec,<br />
Etiènne e o outro homem, as coisas iriam ficar ainda piores.<br />
42
Alain pensava em como chegar até seus homens para pedir<br />
algo tão absurdo. Tinham acabado de chegar esgota<strong>dos</strong> e<br />
teriam de sair mais uma vez, madrugada afora, em busca <strong>dos</strong><br />
homens que já haviam procurado cansativamente desde a<br />
madrugada anterior.<br />
Alain ficou refletindo algum tempo e decidiu que seria<br />
melhor chamar apenas aqueles em que mais confiava e tinha<br />
certeza de que o acompanhariam, mesmo cansa<strong>dos</strong>. Pensou<br />
que sair com um pequeno grupo de homens de confiança seria<br />
muito melhor do que com toda a companhia, certamente<br />
repleta de solda<strong>dos</strong> descontentes com a situação, podendo lhe<br />
causar ainda mais problemas.<br />
No início da madrugada, Alain saiu com mais três<br />
homens de sua confiança, e foram à caça.<br />
<br />
Martin, ao chegar às salas subterrâneas, foi ter com<br />
Michel, que estava na última sala do sombrio corredor. Pediu<br />
para que o guarda abrisse a tranca da porta. Um forte clangor<br />
ecoou pelo corredor e a porta abriu-se. Martin entrou em<br />
companhia de mais dois guardas, que seguravam tochas para<br />
iluminar o local. A sala não era grande, de modo que, quando<br />
entraram, o lugar ficou muito bem iluminado. Com uma<br />
expressão de contentamento, Martin observou Michel<br />
acorrentado nas rochosas paredes do fundo da pequena sala.<br />
Seu aspecto era horrível, parecia ter saído de um linchamento,<br />
todo sujo, arranhado, com alguns hematomas pelos braços e<br />
rosto, além de estar com as roupas em trapos. Lentamente,<br />
com as mãos para trás, Martin se aproximou de Michel. Ficou<br />
parado à sua frente, pensativo. Michel, por sua vez, ao<br />
perceber que alguém se aproximara, com um pouco de<br />
dificuldade e sentindo muitas dores, levantou a cabeça e<br />
encarou-o. Martin deu um sorriso.<br />
— Então, caro traidor, como está se sentindo agora,<br />
acorrentado como um marginal molambento!?<br />
43
Com ironia, Martin iniciou uma pequena provocação:<br />
— Guardas, providenciem água fresca para meu nobre<br />
hóspede, parece-me que ele está com muita sede!<br />
Michel limitava-se a ouvir as palavras de seu inimigo.<br />
— Diga-me uma coisa, pobre infeliz, não está arrependido<br />
de ter tramado planos contra o representante legal do rei<br />
Philipe aqui nesta cidade? Você faz idéia do que irá lhe<br />
acontecer?<br />
Neste momento, Michel quebrou seu silêncio e, com<br />
algum esforço, revidou com palavras.<br />
— Vá para o inferno, seu porco asqueroso!<br />
Martin sacou uma adaga afiada que pendia de seu cinto e<br />
levou a lâmina fria ao pescoço de Michel, forçando-a com<br />
cuidado, apenas para intimidá-lo.<br />
— Escuta aqui, seu verme, cuidado com o que fala, pois se<br />
está vivo até agora é por minha vontade! Mais uma ofensa e<br />
lhe arranco a cabeça aqui mesmo!<br />
Martin forçou ainda mais a lâmina e Michel esticou-se<br />
mais, tentando evitar o corte em sua garganta.<br />
Um guarda se aproximou, trazendo uma caneca na mão.<br />
— Senhor, a água que pediu.<br />
Martin tomou a caneca da mão do guarda e bebeu um<br />
grande e demorado gole.<br />
— Ótimo, a água está fresca como pedi. Água é algo que<br />
não falta em meu castelo, nem mesmo para os prisioneiros. Ao<br />
terminar de pronunciar estas palavras, Martin atirou o<br />
restante da água no rosto de Michel. — Entretanto, não é<br />
necessária a um futuro cadáver. Guardas! Vamos embora! —<br />
gritou Martin. — O cavalheiro precisa descansar.<br />
To<strong>dos</strong> se retiraram da pequena sala, deixando Michel<br />
solitário em meio à escuridão, cheio de dúvidas e medo,<br />
perguntando-se por quantos dias mais ele teria que passar por<br />
aquilo, até que fosse executado. Teve um calafrio ao pensar<br />
que poderia ir para a guilhotina. Como seria ficar ajoelhado,<br />
44
com a cabeça no cepo, aguardando o momento da lâmina<br />
impie<strong>dos</strong>a cortar-lhe o pescoço?<br />
De repente lembrou-se de seu irmão Etiènne. O que<br />
poderia ter-lhe acontecido? Tentou organizar as idéias e teve<br />
certeza de que, no fundo, a culpa do que estava acontecendo<br />
deveria ser atribuída ao tal Grassac, e claro, ao próprio<br />
Etiènne, por ter levado aquele traidor para a reunião do<br />
Conselho na noite anterior. Eu sabia que isto acabaria<br />
acontecendo, concluiu.<br />
Michel sentiu saudade do tempo em que era criança e<br />
brincava na vila, junto ao seu amigo Leon, correndo para<br />
to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>, fingindo que eram honra<strong>dos</strong> cavaleiros do rei,<br />
e que defendiam o grande castelo de Paris.<br />
Só, na escuridão, Michel sentiu-se muito fraco e<br />
impotente. Começou a chorar com grande agonia, temeroso<br />
do que teria que enfrentar, nos próximos dias, ou até mesmo<br />
nas próximas horas.<br />
Na sala ao lado estavam Leon e sua tia Claudia. Assim<br />
como Michel, Leon estava acorrentado à parede do fundo. Sua<br />
tia Claudia, que já não tinha mais idade e nem saúde para<br />
ficar se cansando, estava sentada em um pequeno banco de<br />
madeira, posto ao lado de Leon, limpando-lhe as feridas com<br />
um pedaço limpo de tecido que rasgara de sua própria roupa.<br />
Leon percebeu o olhar triste e cheio de lágrimas de sua tia<br />
e tentou acalmá-la.<br />
— Titia, a senhora não deve ter medo. Nada vai lhe<br />
acontecer, não irão lhe fazer mal algum. Só a trouxeram para<br />
aumentar o meu sofrimento. Depois que me torturarem, irão<br />
deixá-la em paz. Um pouco de compaixão deve existir neste<br />
idiota do Martin.<br />
— Querido, este homem não sabe o que é compaixão,<br />
piedade ou carinho. Ele não tem escrúpulos, não tem coração.<br />
Tudo o que lhe importa é riqueza e poder. Sempre foi assim.<br />
Desde que assumiu a cidade, sua ambição só cresceu.<br />
45
— Mas titia, ele jamais faria mal à senhora, veja sua idade.<br />
Ele pode ser egoísta, prepotente e ambicioso, mas ele ainda é o<br />
senhor da cidade, e não sujaria as mãos com o sangue de uma<br />
mulher com a idade da senhora.<br />
— Leon, meu querido, há muitas coisas que você precisa<br />
saber sobre este homem terrível. Talvez você venha a me odiar<br />
por não ter lhe contado antes, mas sinto que se eu não o fizer<br />
agora, não terei outra oportunidade.<br />
Leon, por um segundo, ficou espantado e com medo.<br />
— Pare com isso, tia Claudia! Está falando como uma<br />
pessoa que está prestes a morrer! Não estou gostando desta<br />
conversa, é melhor ficarmos cala<strong>dos</strong>.<br />
— Não, não há mais tempo para silêncio e você terá que<br />
me escutar com muita atenção. Por mais que seja horrendo,<br />
tudo que lhe direi agora é a mais pura verdade. Talvez você<br />
tenha oportunidade de confirmar tudo, algum dia. — Claudia<br />
falava com uma seriedade que nunca usara antes para<br />
conversar com seu sobrinho, nem mesmo nas vezes em que<br />
chamava sua atenção. Leon ficou ainda mais apreensivo. —<br />
Antes de começar a falar, colocarei isto em seu pescoço. —<br />
Claudia levantou-se, tirou um cordão de prata que estava em<br />
torno do próprio pescoço e passou-o para Leon. Do cordão<br />
pendia um pequeno amuleto que Leon não conseguiu ver<br />
bem. — Este cordão foi de seu pai.<br />
— Do meu pai!? O que a senhora sabe sobre meu pai? Por<br />
que não me entregou este cordão antes? — Por um momento,<br />
Leon ficou furioso com sua tia e cheio de dúvidas.<br />
— Preste atenção no que irei lhe dizer, depois poderá me<br />
julgar como achar mais conveniente. Quero apenas que saiba<br />
que eu e sua mãe fomos as irmãs mais unidas de toda a<br />
família. Tudo que fiz, foi a pedido dela e para sua proteção.<br />
Leon tinha pouquíssimas lembranças de sua mãe e<br />
nenhuma de seu pai. Tentou adivinhar o que se passava, mas<br />
realmente não conseguia fazer idéia. Logo agora, à beira do<br />
extermínio, saberia algo sobre suas origens. Seja lá qual fosse a<br />
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história que sua tia iria lhe contar naquele momento, fora<br />
muito bem escondida durante to<strong>dos</strong> estes anos em que vivera<br />
com ela.<br />
— Sempre cuidei de você como se fosse meu próprio<br />
filho. E acredito que, se minha irmã pudesse vê-lo hoje,<br />
sentiria orgulho por tudo o que fiz por ti. Mas não temos<br />
tempo para saudades, devo lhe contar tudo que sei agora,<br />
antes que não haja mais tempo.<br />
Leon já estava ficando irritado novamente.<br />
— Fale de uma vez, titia, seja lá o que for, já estou curioso<br />
demais. E quero saber tudo sobre este cordão e meu pai.<br />
— Martin Lacroix é seu pai!<br />
— O quê!? — Leon deu um gritou e fez uma expressão de<br />
espanto e ódio, misturado com repulsa. — Ficou louca, tia<br />
Claudia? Como pode dizer uma coisa dessas? Minha mãe<br />
jamais teria se envolvido com um pústula desses! Como ousa<br />
falar isto!? Saia de perto, tia Claudia, eu não quero mais<br />
escutar uma palavra, pelo amor de Deus, saia daqui, saia! —<br />
Leon se debatia desesperadamente, acorrentado à parede.<br />
Talvez, se estivesse solto, tivesse agredido violentamente sua<br />
tia.<br />
— Não, não sairei coisa nenhuma. Ficarei a seu lado e<br />
falarei tudo que eu sei. Terá que ouvir cada palavra, já disse<br />
antes, depois julgue-me como quiser, mas irá me ouvir agora,<br />
entendeu? O que estou falando não é mentira, e sim verdade.<br />
Por que teria eu motivos para lhe contar uma mentira destas?<br />
— Leon baixou a cabeça e cerrou as mãos quase que cravando<br />
as unhas nas palmas, tamanha era a fúria que o dominava. —<br />
Há muitos e muitos anos atrás sua mãe era serviçal no castelo<br />
de Martin. <strong>Era</strong> uma das mulheres mais bonitas de todo o<br />
castelo. Martin nunca se satisfez com sua esposa, na verdade<br />
ele só se casou com Catherine por causa de sua herança, que<br />
na época era uma verdadeira fortuna. Pois bem, Martin<br />
sempre teve o hábito de ir ao quarto das serviçais à noite e<br />
levá-las para outros aposentos, para satisfazer seus desejos e<br />
47
fantasias. A maioria das serviçais gostava desta aventura, até<br />
se ofereciam, mas não sua mãe, ela sempre o recusou. Como<br />
eu disse, ela era a mais bela do castelo. Numa noite de festa no<br />
castelo, Martin havia bebido demais e foi atrás de sua mãe.<br />
Com a ajuda de três guardas a levou e a obrigou a satisfazê-lo.<br />
Foram os piores dias da vida de sua mãe. — Leon estava<br />
ouvindo tudo aquilo e seus olhos injeta<strong>dos</strong> faiscavam ainda<br />
mais de ódio, a cada palavra de sua tia. — As semanas foram<br />
se passando e sua mãe descobriu que estava grávida. Tentou<br />
esconder de Martin porque tinha consciência de que, se por<br />
acaso ele descobrisse, mandaria matá-la. O segredo não durou<br />
muito tempo, pois as outras serviçais também sabiam do<br />
acontecido e logo a notícia se espalhou. Até mesmo as aias de<br />
Catherine souberam e logo contaram para sua senhora. Numa<br />
noite, Martin desceu atrás de sua mãe e a levou para a câmara<br />
de torturas. Lá, alguns guardas a espancaram até que ela<br />
ficasse inconsciente. Foi uma dádiva ela não ter perdido você<br />
naquela noite. Os guardas a levaram para a floresta e<br />
amarraram-na nua a uma árvore, esperando que as criaturas<br />
da noite viessem famintas atrás dela, atrás do cheiro de seu<br />
sangue, que lhe escorria pelo corpo. Sua mãe só foi salva<br />
porque um <strong>dos</strong> guardas que participou daquela barbárie<br />
retornou na madrugada e a trouxe para casa enrolada em sua<br />
capa. Foi quando pude cuidar dela. Ficou escondida até teu<br />
nascimento, confinada entre as paredes de minha casa. Do<br />
guarda, nunca mais tive notícias. Talvez ele não quisesse se<br />
arriscar mais do que o fez e não apareceu mais. Sua mãe<br />
morreu quando você completou cinco anos. Ela ficou doente<br />
com uma peste que afetou quase a metade <strong>dos</strong> habitantes de<br />
Amiens. Não me pergunte por quê, mas nem eu nem você<br />
fomos contamina<strong>dos</strong>, ainda que debaixo do mesmo teto.<br />
Talvez não fosse a nossa hora. Deus foi misericordioso<br />
conosco, e nos poupou.<br />
Claudia parou de falar por um momento e olhou para<br />
Leon, que estava com os olhos cheio de lágrimas.<br />
48
— Este cordão 1, como disse, fora de seu pai, Martin. Sua<br />
mãe arrancou-lhe do pescoço no momento em que conseguiu<br />
soltar um <strong>dos</strong> braços das mãos de um <strong>dos</strong> guardas que a<br />
seguravam. Ela tentou atingir o rosto de Martin com suas<br />
unhas, mas ele se esquivou e ela rasgou-lhe o peito,<br />
arrancando-lhe o amuleto, que caiu ao chão. Após saciar seu<br />
desejo, Martin a deixou chorando, abandonada no aposento.<br />
Depois do pranto, ela recolheu os restos de suas roupas<br />
rasgadas, apanhou o cordão caído e retirou-se, ferida e<br />
humilhada, em direção a seu quarto. Sua mãe sofreu muito<br />
naquela época, Leon. Eu me recordo bem o quanto ela ficou<br />
amargurada. Sempre que pegava o amuleto que guardara, as<br />
lembranças da noite terrível voltavam a sua mente e ela<br />
chorava sem cessar.<br />
— Por quê!? — Interrompeu Leon, com voz trêmula,<br />
mordendo os lábios já banha<strong>dos</strong> de sangue, tamanha era a<br />
força com que pressionava seus dentes.<br />
— O que, meu querido? O que você disse? — Claudia não<br />
entendera o que seu sobrinho lhe falara.<br />
— Por que ela guardou o cordão?<br />
— Bem, no início ela pretendia mostrar para Catherine,<br />
contando-lhe tudo o que havia sucedido, mas o pavor a<br />
impedia. Pavor de Martin, pavor de perder a vida. Depois,<br />
quando percebeu que havia ficado grávida, resolveu guardálo<br />
para seu filho. Sua mãe sempre rogou a Deus que a criança<br />
que se formava em seu ventre fosse um menino, um menino<br />
que ao crescer pudesse reivindicar seus direitos à herança do<br />
senhor de Amiens, e que assumisse seu devido lugar, na<br />
esperança de que Amiens se tornasse um lugar decente para<br />
se viver. Ela depositava todas as esperanças nisso.<br />
1 Este cordão de prata, que pertencera a Martin Lacroix e é entregue a Leon por sua<br />
tia Claudia, possui um pequeno amuleto pendurado com a figura de uma águia com as asas<br />
abertas, sobre duas cabeças de dragão, e fora achado por Martin nas proximidades da<br />
Montanha Serena, nas cercanias da cidade de Amiens, há muitos anos.<br />
49
— Como um bastardo pode ser o governante de uma<br />
cidade, minha tia, como? — Leon sentia uma mistura de<br />
revolta, vergonha e indignação.<br />
— Não diga isso, meu filho! Você é um homem bom,<br />
forte, cheio de vida, bonito. Toda esta cidade seguiria um líder<br />
como você, Leon, acredite!<br />
Por alguns instantes fez-se um silêncio sepulcral dentro<br />
da pequenina sala. Claudia pensava o quanto seu sobrinho<br />
querido não estaria sofrendo com aquela revelação cruel e o<br />
que ele poderia estar pensando naquele momento de dor e<br />
silêncio. Será que sua ira seria tão grande a ponto de matar o<br />
próprio pai? Não, ela não podia acreditar nisso. <strong>Era</strong> mais<br />
crível que Leon tentasse converter o cretino do pai em um<br />
homem bom e honesto. Apesar de tudo, também Martin não<br />
sabia que tinha um filho vivo. Seria uma surpresa para ele e a<br />
chave seria o cordão. O que aconteceria? Estes pensamentos<br />
dominavam Claudia, que não tirava os olhos um só segundo<br />
de seu sobrinho amado.<br />
— O que Michel irá dizer!? — Quebrou-se o silêncio. —<br />
Um grande amigo, que tem sido um verdadeiro irmão, tem<br />
por inimigo mortal o meu p... esta criatura infeliz que agora<br />
descubro ser meu pai. Por que me contou isto, tia Claudia?<br />
— Meu querido, eu havia guardado segredo e desistido<br />
de lhe contar tudo o que disse hoje sobre seu pai, mesmo<br />
porque, você sempre falava sobre aquelas histórias doidas de<br />
deixar Amiens e encontrar um novo lugar para construir<br />
casas, apenas com boas pessoas.<br />
— Não são histórias doidas, minha tia, iremos sair deste<br />
lugar horroroso muito antes do que a senhora imagina.<br />
— Leon, meu querido, está na hora de acordar para a<br />
realidade. Por isso lhe revelei este segredo que guardo há<br />
tantos anos, mesmo antes de você nascer. Você e Michel estão<br />
acorrenta<strong>dos</strong> neste calabouço e não podem fazer mais nada.<br />
Você precisa convencer seu pai a libertá-lo para que possa<br />
interceder por seu amigo.<br />
50
— De forma alguma! Não estamos sós nesta empresa,<br />
minha tia! Outros homens de bondade também estão<br />
envolvi<strong>dos</strong> e irão logo nos tirar daqui.<br />
— Que Deus seja misericordioso conosco uma vez mais,<br />
caso seus amigos não apareçam para nos salvar. — Mais uma<br />
vez fizeram um breve silêncio até que Claudia continuou a<br />
falar. — Viste, foi por isso que nunca lhe contei nada, para não<br />
atrapalhar seus planos, pois você estava muito longe de<br />
realizar os desejos de sua mãe. Eu não podia e nem queria<br />
interferir em seus planos e ideais. Mas agora... agora as coisas<br />
mudaram muito. Estamos aqui presos em um lugar que já foi<br />
ocupado por muitas pessoas que saíram daqui para a morte.<br />
Não podia morrer sem antes lhe revelar toda a verdade sobre<br />
seu pai.<br />
— Já pedi para a senhora não falar assim, tia Claudia! —<br />
Leon, apesar do medo, tentava manter a fé em seus amigos e<br />
mais uma vez repreendia sua tia.<br />
— Sei bem o que estou dizendo, mas vou mudar de<br />
assunto e falarei mais sobre sua infância.<br />
A tia de Leon continuou narrando ainda vários fatos<br />
acerca da infância e da mãe dele. Leon, aturdido, estava ainda<br />
em estado de choque e não mais balbuciou uma palavra<br />
sequer. Limitou-se a ouvir tudo o que sua tia tinha para<br />
contar-lhe. Ao final, depois de umas duas horas, Claudia,<br />
sentada no pequeno banco de madeira crua, recostou a cabeça<br />
no corpo do sobrinho que, devido a tudo o que passara e lhe<br />
fora revelado, agora estava apoiado sobre as frias rochas com<br />
a cabeça enterrada no peito, entregue ao cansaço, dormindo.<br />
<br />
Em uma pequena restinga do litoral de Calais, Gien e<br />
Gourdon se aqueciam perto de uma fogueira que fizeram logo<br />
ao cair da noite. O fogo crepitava e iluminava a pequena<br />
clareira aquecendo-os com certa dificuldade. O lugar estava<br />
muito úmido, pois chovera o dia inteiro e fazia um frio<br />
51
implacável. Mal podiam se mexer de tanta friagem. Olhavam<br />
para as bruxuleantes chamas da fogueira e conversavam sobre<br />
como fora rápida e tranqüila a viagem que fizeram de<br />
Abbeville até aquele local. Os caminhos estavam vazios e com<br />
uma estranha serenidade a viagem inteira fora silenciosa e<br />
quase não se viu ninguém, contrastando com o caminho que<br />
haviam percorrido entre Amiens e Abbeville. Na única parada<br />
que fizeram em toda a viagem, na cidade de Abbeville,<br />
encontraram um povo desesperado, com muita agitação e<br />
desordem em toda a cidade.<br />
Logo descobriram que o pavor da iminente invasão<br />
inglesa não assolava apenas a cidade de Amiens. Muitas<br />
famílias em Abbeville estavam deixando o lugar e fugindo<br />
para o sudeste, com destino à cidade de Reims, ou para o sul<br />
do país, às cidades de Paris e Versalhes, por medo da guerra.<br />
Viram carruagens de to<strong>dos</strong> os tipos, cheias de baús, mobílias e<br />
pessoas com olhares assusta<strong>dos</strong>.<br />
Procuraram saber sobre a filha de Martin Lacroix e<br />
descobriram que até seu casamento, que estava marcado para<br />
o final daquele rigoroso inverno com o senhor de Abbeville,<br />
havia sido adiado. Nem mesmo tão importante acontecimento<br />
era superior à ameaça da perigosa invasão inglesa que<br />
atormentava os corações <strong>dos</strong> cidadãos de Abbeville.<br />
Após algumas horas, quando a madrugada já avançava<br />
silenciosa e a fogueira já se transformara apenas em gravetos<br />
avermelha<strong>dos</strong> em pura brasa, Gourdon jogou um pouco mais<br />
de lenha para alimentar o fogo e se aproximou de Gien. Os<br />
dois irmãos puxaram uma coberta adicional e deitaram-se<br />
para descansar. Decidiram que, numa madrugada fria<br />
daquelas, não valeria a pena ficar de vigia, acorda<strong>dos</strong> à noite<br />
toda. Nem os demônios teriam coragem de sair naquela noite.<br />
Aos primeiros sons da alvorada, com vários pássaros<br />
cantarolando e anunciando uma efêmera melhora no tempo,<br />
Gien Ballec foi o primeiro a acordar, espreguiçando-se<br />
lentamente e levantando meio corpo, ainda enrolado no<br />
52
cobertor. Após um longo bocejo, ao virar-se e dar uma olhada<br />
ao redor, quase morreu de susto ao ver um terceiro cavalo<br />
amarrado próximo aos dele e de seu irmão. Levantou-se<br />
rapidamente e da tranqüilidade passou ao medo e à incerteza.<br />
Quem chegara sorrateiramente? Onde estaria o dono do<br />
misterioso cavalo? Com o coração na boca e sentindo intenso<br />
calor, apesar da fria manhã, Gien, nervoso e suarento, sacudiu<br />
seu irmão bruscamente, fazendo com que levantasse<br />
assustado, censurando-o com uma série de impropérios. Mas,<br />
logo que percebeu do que se tratava, também ficou perplexo e<br />
temeroso.<br />
Perguntavam-se como não haviam se apercebido da<br />
presença de um estranho durante a fria madrugada, mas o que<br />
mais os intrigava era porque o misterioso intruso não os<br />
incomodara, simplesmente ignorando-os. Logo a resposta foi<br />
dada. Inesperadamente um vulto irrompeu de um <strong>dos</strong><br />
inúmeros arbustos que cercavam a clareira, quase os matando<br />
de susto. Com suas espadas em punho e mais trêmulas que<br />
um sino após a badalada, alinharam-se lado a lado, em<br />
posição de defesa. Se bem, que no estado de nervos em que se<br />
encontravam, bastava que o suposto inimigo emitisse um grito<br />
de ataque que os dois camponeses tivessem desfalecido no<br />
mesmo instante.<br />
Para fortuna <strong>dos</strong> irmãos Ballec, o misterioso homem era<br />
Grassac, o mesmo que lhes fora apresentado na última reunião<br />
do Conselho. Tão logo notaram a presença do amigo,<br />
começaram a relaxar. Largaram as espadas e deixaram-se cair<br />
senta<strong>dos</strong>, recuperando a respiração e os batimentos cardíacos.<br />
Grassac aproximou-se lentamente, trazendo duas gordas<br />
lebres abatidas, que serviriam de desjejum naquela manhã fria<br />
e já agitada para os pobres irmãos. Saudou-os e sentou-se com<br />
eles, desejando-lhes bom dia.<br />
— Desculpem, vejo que os assustei. Não era minha<br />
intenção, apenas não quis incomodar o sono de vocês.<br />
53
— Você deve ter percebido que não temos nada de<br />
lutadores ou grandes guerreiros. — Falou Gien, ainda um<br />
pouco nervoso. Ainda que Grassac fosse uma pessoa<br />
conhecida há dois dias, não sabiam o suficiente para confiar<br />
nele.<br />
— Sim, para ser honesto, percebi isso no mesmo dia que<br />
os vi naquela reunião. Nem mesmo Etiènne é um grande<br />
espadachim, ainda que já saiba manusear uma espada.<br />
Conheço guerreiros ao olhar dentro <strong>dos</strong> olhos deles, e só vi<br />
dois naquele grupo. Leon e Michel.<br />
— Mas Etiènne usa macha<strong>dos</strong> de batalha como ninguém!<br />
É capaz de alvejar um inimigo mesmo a vinte metros de<br />
distância. — Retrucou Gourdon, a favor de seu amigo.<br />
— Acha que poderia nos ensinar a lutar como grandes<br />
guerreiros? Será que aprenderíamos? — Gien se empolgara<br />
com as palavras de Grassac e já o tirava por grande guerreiro.<br />
— Sim, meus amigos, eu poderia lhes ensinar a arte da<br />
espada e to<strong>dos</strong> os seus segre<strong>dos</strong>. Mas daí a se tornarem<br />
grandes guerreiros vai depender de até onde vocês estarão<br />
dispostos a ir, pois um grande guerreiro não teme por sua<br />
vida e, agindo assim, vence to<strong>dos</strong> os temerosos. Mas isto não<br />
pode ser agora. O que me traz aqui são os últimos<br />
acontecimentos em Amiens. Muitas coisas aconteceram no<br />
mesmo dia em que vocês deixaram a cidade.<br />
Os irmãos ficaram apreensivos e imaginaram o pior.<br />
Notaram que a fisionomia de Grassac ficara séria, com um ar<br />
severo.<br />
— O que sucede, amigo, conte-nos! — pediu Gourdon.<br />
— Houve um imprevisto. O amigo de vocês chamado<br />
Paul na verdade se chama Gallard e não tem nada de<br />
lenhador. Este cretino é um mercenário cruel, que infiltrou-se<br />
no grupo de vocês, provavelmente para receber algo em troca<br />
de revelar seus nomes a Martin Lacroix. — Os dois irmãos<br />
sobressaltaram-se, e ficaram receosos do que estavam<br />
ouvindo, afinal Paul já os acompanhava há dois anos. —<br />
54
Calma! Tudo o que estou lhes falando poderá ser provado, tão<br />
logo cheguemos a Amiens. E devemos retornar o quanto<br />
antes, porque senão as coisas podem piorar ainda mais. Tenho<br />
certeza de que, a estas alturas, Martin já sabe quem são os<br />
membros de vosso Conselho, pois antes de sair da cidade de<br />
Amiens, presenciei ocultamente o encontro entre Martin e<br />
Gallard.<br />
— Mas não pode ser! Não posso acreditar nisso!<br />
— Mantenha a calma. Estou atrás deste Gallard já faz seis<br />
longos anos. Ele é o culpado pela morte de meus pais. Fez com<br />
que eles fossem condena<strong>dos</strong> por traição ao senhor da cidade<br />
onde vivíamos e sentencia<strong>dos</strong> à forca. Mas isto é uma longa<br />
história e não podemos perder tempo. O que importa é que o<br />
encontrei e agora vingarei meus pais. De certa forma também<br />
estarei ajudando vocês.<br />
— O que faremos? Não sei o que pensar, nem como agir.<br />
Precisamos examinar o litoral e levar notícias a Michel.<br />
— Eu também sei disso. Portanto, comeremos estas lebres<br />
e partiremos tão logo tenhamos verificado a orla. Gien,<br />
prepare a lenha e o assado, enquanto eu e seu irmão vamos<br />
fazer a inspeção do litoral. Ao entardecer sairemos deste lugar,<br />
e amanhã, em torno da hora média estaremos chegando a<br />
Amiens. Lá encontraremos Michel e ele nos dirá o que fazer.<br />
Ele também precisa saber urgentemente qual a verdadeira<br />
identidade do lenhador, para se prevenir.<br />
Rapidamente começaram a faina de organizar as coisas no<br />
acampamento. Apesar de muito desconfiado, Gien concordou<br />
com o planejado e aceitou a ordem de Grassac. O medo de<br />
fazer algo errado e desagradar aos demais membros do<br />
Conselho, era muito maior do que o medo de ser traído por<br />
Grassac. Os irmãos Ballec sempre foram considera<strong>dos</strong> como<br />
grandes amigos e fiéis ao grupo.<br />
Logo em seguida, Grassac e Gourdon partiam em direção<br />
à beira da restinga, para fazer a vistoria de grande parte da<br />
orla de Calais. Gien, como combinado, ficara a preparar a<br />
55
comida de to<strong>dos</strong>. Naquele mesmo dia, ao entardecer, após<br />
comprovarem que várias embarcações inglesas podiam ser<br />
avistadas ao longe, retornariam às pressas à cidade de<br />
Amiens, sem sequer imaginar o caos que lá encontrariam.<br />
56
N<br />
CAPÍTULO IV<br />
Uma visão inesperada<br />
os dois últimos dias, Etiènne ficara escondido na<br />
montanha Serena, em Amiens. Tivera a grande sorte de<br />
perceber toda a movimentação de Alain e seus solda<strong>dos</strong> nas<br />
proximidades de sua casa, no dia em que capturaram Michel e<br />
Leon. Presenciou, oculto atrás de uma das inúmeras árvores à<br />
beira do rio Somme, o trágico desenlace do encarceramento de<br />
seu irmão e seu amigo, os líderes do Conselho. Apavorado,<br />
Etiènne, sem saber o que fazer, tentou encontrar Paul, o<br />
lenhador, por toda a cidade, esgueirando-se <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>.<br />
Não conseguiu encontrá-lo e, após aguardar por várias horas,<br />
presumiu que este pudesse ter se rendido aos homens de<br />
Martin Lacroix, ou ter sido igualmente capturado. Quando<br />
retornou à casa <strong>dos</strong> irmãos Ballec, o desespero foi completo. A<br />
casa de seus queri<strong>dos</strong> amigos também estava completamente<br />
em cinzas.<br />
Etiènne ainda tentou atravessar o bosque e buscar o apoio<br />
de Dízier, sem imaginar que o taberneiro já havia sido<br />
capturado. De qualquer forma, este objetivo também foi<br />
frustrado logo que chegou à entrada do bosque. O lugar<br />
estava repleto de solda<strong>dos</strong> por toda parte. Os homens de<br />
Martin Lacroix haviam fechado todas as passagens e não<br />
havia como contornar o bosque, a menos que encontrasse um<br />
caminho alternativo pela montanha Serena.<br />
Em seu desespero, Etiènne procurou, de alguma forma, se<br />
livrar das garras <strong>dos</strong> homens de Martin. A única saída era<br />
refugiar-se nas montanhas, ou na casa de Paul, que ficava um<br />
pouco mais distante do centro de Amiens. Talvez até pudesse<br />
encontrar o lenhador, já que não o havia encontrado pela<br />
57
cidade. Lá chegando, verificou que o lugar estava vazio.<br />
Agora mais do que nunca, acreditava que ele também devia<br />
ter sido capturado, e permanecer em sua casa seria uma<br />
grande estupidez.<br />
Após incontáveis minutos de tensão tentando encontrar<br />
uma solução inteligente, Etiènne convenceu-se de que não<br />
tinha mais escolha. Devia de fato subir a montanha Serena e<br />
aguardar alguns dias, até que pudesse retornar à cidade e<br />
verificar se a movimentação diminuíra. O maior inconveniente<br />
seria conseguir abrigo nas perigosas entranhas da sinistra<br />
montanha, e ainda, conseguir provisões para garantir sua<br />
alimentação. Com o espírito destruído e grande amargura no<br />
coração, Etiènne subiu a montanha, sentindo-se derrotado,<br />
humilhado e incapaz. Tudo que tinha na vida era seu irmão<br />
Michel, que lhe dera a alegria de participar de um movimento<br />
fraterno tão importante. De uma união que tentaria levar todo<br />
um povo à felicidade, estabelecendo-se em uma terra nova,<br />
onde não haveria injustiças.<br />
Naquela noite, Etiènne dormiu ao relento, onde o frio e a<br />
solidão o cobriram silenciosos, em meio a uma vegetação<br />
sombria, que parecia rir e zombar de sua desgraça. Passou a<br />
madrugada inteira inquieto, com pesadelos e sobressaltos<br />
repentinos em seu perturbado sono.<br />
No dia seguinte, ao amanhecer cheio de orvalho sobre o<br />
corpo fazendo com que ficasse com as roupas úmidas, Etiènne<br />
levantou assustado, e por um momento pensou que havia<br />
sonhado, ou melhor, havia tido um enorme pesadelo. Mas<br />
uma simples olhada ao redor fez com que encarasse a dura<br />
realidade. Tudo era verdade, tinha realmente acontecido.<br />
Diante da triste situação, começou a vagar pela mata,<br />
procurando alguma caça e, ao mesmo tempo, tentando<br />
organizar as idéias, para agir de forma ligeira e eficaz. Passou<br />
muitas horas caminhando e não conseguiu encontrar nada,<br />
58
nem caça, nem idéias. Sabia da existência de uma grande<br />
gruta, próxima ao topo do lado oeste da montanha, e resolveu<br />
descansar um pouco antes de procurá-la para o novo pernoite.<br />
Já abatido pela péssima noite e pela incômoda fome que se<br />
pronunciava, ficou ali um bom tempo, preso num labirinto de<br />
pensamentos, que não o levavam a lado algum.<br />
<br />
Os dias em Amiens foram se tornando cada vez mais<br />
agita<strong>dos</strong>, principalmente depois <strong>dos</strong> incêndios na taberna de<br />
Dízier e nas casas de Michel Montbard, <strong>dos</strong> irmãos Ballec e de<br />
Leon Troujard. Apesar da carência de provas concretas, to<strong>dos</strong><br />
na cidade atribuíram tais incêndios aos supostos invasores<br />
ingleses. O rebuliço que se seguiu foi incomensurável. Já se<br />
ouviam pessoas comentando sobre massacres nas cidades<br />
vizinhas, que teriam sido totalmente incendiadas.<br />
O que inicialmente parecia ser uma excelente estratégia<br />
para aniquilar os membros do Conselho, acabou se<br />
transformando em uma grande desgraça para Martin Lacroix.<br />
Muitas famílias, apavoradas com a iminente invasão <strong>dos</strong><br />
ingleses, começaram a abandonar seus lares e fugir da cidade.<br />
A desordem era completa pelas ruas de Amiens.<br />
Martin Lacroix, sem o controle da situação, vendo que as<br />
coisas haviam saído muito mal, enviou dois terços de suas<br />
tropas para os limites da cidade, na tentativa de impedir que<br />
os moradores a abandonassem.<br />
O caos era completo, com muitos moradores presos em<br />
sua própria cidade, acampa<strong>dos</strong> em grandes grupos, próximos<br />
ao limite sul de Amiens, sendo vigia<strong>dos</strong> pelas tropas de<br />
Martin.<br />
Aproveitando a oportunidade da maioria <strong>dos</strong> habitantes da<br />
cidade ter se dispersado, Martin ordenara que fosse preparada<br />
a execução de seus prisioneiros. Havia decidido que a punição<br />
59
para os traidores de Amiens seria a tortura, seguida de<br />
decapitação. Executaria os principais membros do Conselho<br />
em público, como demonstração, para os poucos habitantes<br />
que ainda estavam na cidade, do que acontecia com os<br />
inimigos do rei Philipe. Claro que a acusação era ilícita e<br />
infundada, criada por Martin como desculpa para eliminar<br />
seus inimigos, de acordo com os preceitos da França. Uma<br />
acusação de traição à França era, logicamente, algo muito<br />
sério, mas conduzida de forma mais cautelosa. Na verdade,<br />
acusa<strong>dos</strong> e acusadores deveriam apresentar-se em Paris, o fato<br />
deveria ser apresentado ao rei, e somente este poderia julgar e<br />
condenar, conforme os preceitos de seu reinado.<br />
Em algumas vilas, povoa<strong>dos</strong> e cidades francesas,<br />
aconteciam torturas, execuções e abuso de poder por parte de<br />
seus governantes diretos, mas isto, até certo ponto, era sabido<br />
e “permitido” pelo rei. Afinal, para manter a ordem e o<br />
respeito em tempos tão conturba<strong>dos</strong>, de vez em quando era<br />
preciso força, e disso o rei Philipe entendia bem. O problema é<br />
que nem tudo era permitido. Usar o nome do rei para<br />
condenar e executar cidadãos franceses por traição à França,<br />
sem o conhecimento de sua majestade, era algo inaceitável.<br />
<strong>Era</strong> como se fosse um desaforo, ou melhor, passar por cima da<br />
autoridade maior. Este seria o segundo grande erro de Martin.<br />
Começava a se afundar em seus próprios planos, e logo estaria<br />
cometendo mais erros graves. Os carrascos, animadíssimos<br />
com a decisão de Martin, logo se puseram a trabalhar na<br />
montagem do macabro cenário de execução.<br />
Martin Lacroix estava indócil, não acreditava que enfim o<br />
grande dia chegara. Iria eliminar de uma vez por todas o<br />
maldito Conselho que tanto atormentara suas noites de sono<br />
durante meses. Havia decidido que tão logo fossem<br />
executa<strong>dos</strong> seus prisioneiros, as fronteiras de sua cidade<br />
seriam liberadas, pois nada mais teria a temer. Os moradores<br />
60
de Amiens acabariam retornando a seus lares sem a orientação<br />
eficaz que Michel e seu grupo poderiam lhes oferecer.<br />
<br />
Etiènne, com aparência horrível e ainda mais abatido,<br />
após um longo descanso, continuou perambulando através da<br />
Montanha Serena, ainda sem encontrar o rumo certo da gruta.<br />
Faminto e cansado, tropeçava a todo momento em pedras e<br />
enormes raízes de carvalho, que se enroscavam pelo chão.<br />
Pensava se não estaria perdido, pois acreditava estar passando<br />
pelo mesmo lugar várias vezes.<br />
Mais um dia estava se acabando e as trevas começavam a<br />
cobrir a floresta da montanha. Etiènne explodia de dor de<br />
cabeça e sentia-se tonto. Cambaleante, recostou-se em uma<br />
grande rocha e, por sorte, percebeu uma fenda quase que<br />
oculta no lado direito da rocha, na parte anterior. <strong>Era</strong> a<br />
entrada de uma gruta escura como breu. Tentava olhar através<br />
da escuridão, procurando um possível dono da gruta, talvez<br />
um animal feroz, mas não conseguia enxergar nada. Forçava a<br />
vista, mas era impossível vencer a escuridão. Lentamente,<br />
apoiando-se com uma das mãos à fria rocha, e com a outra<br />
estendida à frente, foi avançando em direção ao desconhecido.<br />
De súbito, surgiu um clarão, e Etiènne viu algo que parecia<br />
estar se aproximando vagarosamente. Parecia ser alguém<br />
andando em sua direção, mas não ouvia passos. Havia um<br />
profundo silêncio. Ficou apreensivo, temeroso. O suor lhe<br />
escorria pelas têmporas e seu batimento cardíaco se acelerou,<br />
rompendo o silêncio que imperava no interior da gruta. Podia<br />
ouvir seu próprio coração retumbando e ecoando por toda<br />
parte.<br />
Quando aquilo ou, aquele, como explicar aquela<br />
aparição... Chegou perto de Etiènne, ele simplesmente<br />
desfaleceu, ao ouvir uma voz suave e melodiosa — O que<br />
61
procuras neste lugar ? — O baque seco do corpo de Etiènne<br />
contra o solo da gruta foi o último som que ecoou naquela<br />
escuridão, até que ele despertasse novamente.<br />
<br />
Grassac e Gien, ao chegarem às praias mais ermas de<br />
Calais, avistaram as embarcações inglesas se aproximando e<br />
perceberam que a situação iria esquentar antes do que<br />
imaginavam. Devem ter contado cerca de quarenta enormes<br />
galeões, fora as embarcações de menor porte. Pela experiência<br />
de Grassac, aquela frota devia trazer no mínimo uns cinco mil<br />
solda<strong>dos</strong> ingleses. Considerando que o rei inglês, Eduardo IV,<br />
era um excelente estrategista de guerra, no mínimo mais duas<br />
frotas deste porte deveriam estar aportando em praias<br />
próximas às cidades vizinhas a Calais. Não imaginavam estar<br />
presenciando o início de uma guerra que se tornaria famosa<br />
na história da humanidade, a Guerra <strong>dos</strong> Cem Anos.<br />
Juntaram seus pertences apressadamente e partiram mais<br />
rápido do que nunca, retornando a Amiens, para levar a<br />
informação aos membros do Conselho. Passaram pelo<br />
acampamento e Gourdon mal teve tempo de arrumar suas<br />
coisas, sendo praticamente obrigado a largar vários utensílios<br />
para trás.<br />
No caminho, apesar da velocidade em que galopavam,<br />
desviando-se de galhos e pedras pelo acidentado percurso que<br />
faziam, Grassac, sem dar muita atenção aos obstáculos, ia<br />
sempre mais à frente que os camponeses, refletindo em algo<br />
que vinha há alguns dias ocupando sua mente: o falso<br />
lenhador, cujo verdadeiro nome era Gallard Gellion.<br />
Gallard era um verdadeiro mercenário, daqueles que, ao invés<br />
de usar a espada, usava a língua ferina. Entregava pessoas<br />
procuradas, inocentes ou não, fazia intrigas entre pessoas<br />
poderosas, usava o dom da palavra com sabedoria, e<br />
62
principalmente, era uma pessoa que não tinha nada nem<br />
ninguém a que se prender, o que tornava o seu trabalho muito<br />
mais fácil, pois assim deixava de ser uma pessoa vulnerável.<br />
Há alguns anos, Gallard teria entregue o pai de Grassac à<br />
Santa Inquisição, pois era procurado como herege, por um <strong>dos</strong><br />
maiores inquisidores da época. Por isso, Grassac tivera que<br />
mentir aos irmãos Ballec, com medo de suas reações ao vê-lo<br />
envolvido em um assunto como heresia. Como saber se iriam<br />
acreditar em sua versão da história? Decidiu que revelaria a<br />
verdade numa outra ocasião.<br />
Grassac aprendeu muitas lições com seu pai, e a mais<br />
importante foi a de honrar seus compromissos e palavra e,<br />
sobretudo, amar e respeitar a vida e as pessoas. Seu pai, assim<br />
como seu avô, foram Cavaleiros Templários (Cavaleiros do<br />
Templo de Salomão), e fizeram muitas obras em nome de<br />
Deus. Sabia que seu pai não era herege, e que fora queimado<br />
vivo injustamente pelos loucos que, sob a bandeira da justiça e<br />
de Deus, faziam o que queriam para satisfazer a própria<br />
vontade e alimentar o ego. Desde aquele dia fatídico, a vida de<br />
Grassac nunca mais fora a mesma. É fato que os Templários<br />
tinham sido declara<strong>dos</strong> hereges pela Igreja e a maioria deles<br />
fora capturada e executada. Mas nem to<strong>dos</strong> haviam se<br />
desvirtuado do verdadeiro caminho da doutrina de sua<br />
Ordem. Seu pai era um homem bom e honesto, seguia a<br />
verdadeira doutrina com fidelidade, mas cedeu, tanto quanto<br />
seu avô, aos encantos femininos e às tentações do amor,<br />
abandonando a Santa Ordem, para formarem suas famílias.<br />
Atônito, viu seu amado pai sucumbir em chamas,<br />
gritando alucinado de dor, uma cena que jamais sairia de sua<br />
mente enquanto vivesse. Tentou acudi-lo e logo foi preso e<br />
levado a intenso interrogatório. Os acusadores queriam a todo<br />
custo encontrar evidências de que ele também era herege,<br />
assim como seu pai. Apesar das astutas investidas, nada<br />
63
conseguiram provar e Grassac teve de ser libertado. No<br />
interrogatório, acabou por conhecer o delator de seu pai, e a<br />
partir deste dia jurou não morrer antes de vingá-lo.<br />
Não sabia ainda como iria se comportar frente a Gallard<br />
quando estivessem a sós, mas ansiava por este momento mais<br />
do que qualquer coisa na vida. E com estes pensamentos,<br />
sobre seu pai e sobre Gallard, continuava seu galope<br />
desvairado, fazendo com que o pobre cavalo de Etiènne<br />
praticamente voasse, devorando quilômetros e mais<br />
quilômetros, distanciando-se ainda mais <strong>dos</strong> irmãos<br />
camponeses. O que Grassac não esperava era encontrar a<br />
situação calamitosa que ocorria em Amiens, muito menos que<br />
praticamente metade <strong>dos</strong> membros do Conselho estivessem<br />
presos no castelo de Martin Lacroix. Teriam que pensar em<br />
algum plano rápido e eficaz para reverterem a dramática<br />
situação.<br />
Quando já se aproximavam de Abbeville, viram inúmeras<br />
colunas de fumaça ao longe que, pela direção, só poderiam ser<br />
provenientes de Amiens. Gourdon e Gien trocaram olhares, já<br />
presumindo o pior. Teriam momentos difíceis pela frente.<br />
<br />
Ao despertar, Etiènne viu-se num lugar cheio de cristais<br />
reluzentes por toda a sua volta. Estava deitado sobre um<br />
enorme cristal liso, envolto por um comprido manto prateado,<br />
cujo material era de difícil identificação. Uma mistura entre<br />
seda e cetim, que fazia o manto reluzir tanto quanto o resto do<br />
ambiente. Seus olhos estavam incomoda<strong>dos</strong> com a<br />
luminosidade do lugar, e com a mão protegendo a vista,<br />
tentava se acostumar à claridade. À medida em que sua visão<br />
ia se acostumando, aos poucos ia tentando identificar os<br />
objetos que ali se encontravam, to<strong>dos</strong> muito estranhos e<br />
desconheci<strong>dos</strong>. Não sabia onde estava e muito menos há<br />
64
quanto tempo estivera desacordado. Tentava lembrar como foi<br />
parar ali e não conseguia. A única coisa de que se lembrava<br />
era da floresta e da fome que, por sinal, estava ainda mais<br />
agressiva agora.<br />
Confuso, Etiènne tentou sair do cristal em que estava<br />
deitado. Cobriu-se com a manta, pois fazia frio onde estava, e<br />
colocou um pé no chão. Percebeu que estava descalço. Aí se<br />
deu conta de que não usava suas vestes, e sim uma comprida<br />
túnica branca, de tecido fino e leve.<br />
Ao levantar-se, ouviu uma voz suave — Não devias se<br />
levantar ainda, precisa se alimentar. — Etiènne virou-se<br />
bruscamente, assustado, e viu uma cena inesquecível. Uma<br />
mulher, se é verdade que aquilo era uma mulher, de pele<br />
branca como a neve, vestida com uma túnica parecida com a<br />
que estava trajando, de cabelos longos e lisos, negros como o<br />
ébano, lustrosos como a mais fina seda da Pérsia, vindo em<br />
sua direção. A criatura possuía um par de asas não muito<br />
grandes, revestidas de plumas brancas, cinzas e prateadas, e<br />
segurava uma tigela de cristal, quase que invisível, cheia de<br />
morangos enormes.<br />
Mudo, sem forças para emitir uma palavra sequer, Etiènne<br />
ficou ali, congelado. Não movia um músculo de seu corpo.<br />
Apesar da enorme fome, nem deu muita atenção aos<br />
suculentos morangos da tigela. Simplesmente não conseguia<br />
tirar os olhos de tão bela imagem. Apesar de temeroso, não<br />
podia acreditar que aquele ser celestial fosse capaz de alguma<br />
maldade, tamanha era a sua beleza e suavidade, ao falar e ao<br />
caminhar.<br />
— Trouxe estes dramos para ti, sei que estás faminto e<br />
precisas te alimentar. Não tenhas medo, são muito nutritivos.<br />
Etiènne estendeu a mão e pegou a tigela. Não sabia muito<br />
bem como agir e apenas falou seu nome:<br />
65
— Meu nome é Etiènne Montbard, e sou da cidade de<br />
Amiens. Estou à procura de um abrigo...<br />
— Não precisas me falar nada, apenas alimente-se para que<br />
não adoeça. — Com estas palavras pegou um <strong>dos</strong> enormes<br />
morangos e levou-o à boca de Etiènne, que não teve coragem<br />
de recebê-lo desta forma e tomou-o em sua própria mão. —<br />
Meu nome é Sindazel e, como podes perceber, não sou uma<br />
mulher comum. Na verdade, apesar de sermos muito<br />
parecidas, não sou como as mulheres de tua raça.<br />
Etiènne a interrompeu — Como assim da minha raça!? Não<br />
é humana? O que é, então? E que lugar é este? Por acaso estou<br />
morto? Isto é o Paraíso? — De repente, Etiènne começou a<br />
fazer inúmeras perguntas sem parar, até que Sindazel falou<br />
novamente.<br />
— Calma! Não fique assustado, posso te revelar algumas<br />
coisas e tentar esclarecer tudo. Sou da raça <strong>dos</strong> Vangis, e<br />
habitamos este lugar há milênios. Tu não estás morto, e meu<br />
lar não é o Paraíso que pensas. — Sindazel aproximou-se de<br />
Etiènne e colocou a mão em seu rosto. Nunca em toda a sua<br />
vida Etiènne experimentara tal sentimento, a mão macia de<br />
Sindazel em seu rosto e a proximidade daquela criatura<br />
perfumada o deixaram em êxtase. Apesar de não deixar<br />
transparecer, Sindazel estava na verdade consultando a mente<br />
de Etiènne, pois tinha este poder.<br />
Com a proximidade, Etiènne não resistiu e passou um olhar<br />
pelo corpo de Sindazel, tentando identificar se era perfeito<br />
tanto quanto seu rosto e cabelo. Mas, neste mesmo instante,<br />
Sindazel afastou-se rapidamente e virou-se envergonhada. —<br />
Sei que és um homem bom, e não devia pensar nisso. Já disse<br />
como somos muito diferentes, e acrescento, somos muito<br />
distantes também.<br />
Sem saber o que dizer diante da constrangedora situação<br />
que criara, Etiènne não sabia se devia desculpar-se ou deixar o<br />
66
assunto de lado, mas continuava admirando Sindazel, que<br />
agora de costas mostrava as maravilhosas asas e, a essa<br />
distância, o belo corpo que a túnica tentava ocultar. Os cabelos<br />
negros escorrendo entre as asas atingiam quase a cintura de<br />
Sindazel. Etiènne estava vidrado em sua anfitriã.<br />
— Meu pai pode ajudar-te em teu objetivo, mas somente tu<br />
poderás libertar o teu irmão. — Bastaram estas palavras e o<br />
encanto quebrou-se. Etiènne, como que voltando a si,<br />
esqueceu-se de contemplar Sindazel e voltou sua atenção para<br />
o que ela acabara de falar. — Há muitos anos esperávamos por<br />
este dia, e eu fico feliz por ter sido a primeira Vangi a conhecer<br />
um homem, um ser humano. Meu pai o conduzirá até as terras<br />
onde teu povo iniciará uma nova vida.<br />
Interrompendo o discurso de Sindazel, Etiènne questionou<br />
como ela sabia tanto sobre sua vida e missão.<br />
— Como soubeste que procuro um novo lar? E como soube<br />
que meu irmão está preso? Por acaso estava me vigiando?<br />
— Não! Quer dizer, em parte sim! — desta vez foi Sindazel<br />
quem ficou constrangida e ruborizada. Como dizer que<br />
invadiu a mente de Etiènne? — Eu o acompanhei de longe<br />
durante os dois últimos dias e noite, e acabei descobrindo<br />
algumas coisas porque falaste dormindo, em teus pesadelos.<br />
— apesar de não ser nada comum um Vangi mentir, Sindazel<br />
viu-se encurralada e não encontrou outra alternativa. Como<br />
no primeiro encontro entre Vangis e <strong>Homens</strong> já revelar um<br />
trunfo, mostrando um <strong>dos</strong> seus mais importantes poderes?<br />
Etiènne, que era forte o suficiente para vencer tentações,<br />
decidido resolveu ignorar as explicações da mulher Vangi e<br />
retirar-se do lugar.<br />
— Não importa! Quero ir embora! Agradeço a comida e<br />
hospitalidade, mas preciso resolver meus problemas e tentar<br />
resgatar meu irmão. Agradeça a seu pai, mas posso me virar<br />
sozinho na busca de um lugar para habitar. Não tenho mais<br />
67
tempo a perder, não tenho a vida toda para ficar aqui! Então,<br />
vai me mostrar a saída ou terei que encontrá-la sozinho? —<br />
Sindazel não esperava esta atitude de Etiènne e ficou confusa.<br />
Na verdade, também estava experimentando sensações que<br />
nunca sentira antes. Estaria se envolvendo com Etiènne, por<br />
ele ser tão diferente de seu povo, impulsivo e tempestuoso.<br />
Havia trocado sua roupa, examinado seu corpo em detalhes,<br />
invadido a privacidade de seus pensamentos e,<br />
principalmente, quando ele falou em não ter a vida toda, isto a<br />
comoveu e mexeu verdadeiramente com seus sentimentos.<br />
Teve compaixão por ele, carinho e afeto. Os Vangis são eternos<br />
até que suas vidas sejam tiradas por assassinato ou acidente.<br />
Não adoecem e não morrem do cansaço da vida.<br />
— É necessário que eu o apresente a meu pai. Pois tu vens<br />
para que uma antiga profecia seja realizada! Enquanto vestes<br />
tuas roupas, irei chamá-lo.<br />
— Minhas roupas, Humpf! Quem tirou minhas roupas?<br />
— Estão ali sobre aquele cristal, irei chamar meu pai, ele lhe<br />
revelará sobre os desígnios que o aguardam — sem responder<br />
o óbvio a Etiènne, Sindazel saiu apressadamente por uma<br />
fenda que dificilmente ele imaginaria ser uma passagem. O<br />
jovem ficou solitário por alguns instantes. Perdido em seus<br />
pensamentos, tentando encontrar uma razão para estar ali<br />
naquele estranho lugar. Teria sido um chamado de Deus? Por<br />
um momento deixou suas dúvidas de lado e tornou a pensar<br />
em Sindazel, naquela criatura linda, deliciosamente<br />
perfumada.<br />
Essa criatura pensa que é esperta. Vou deixá-la numa<br />
situação complicada. Não vou colocar roupa nenhuma, quero<br />
ver a reação dela diante de seu pai, pensou Etiènne, querendo<br />
deixá-la constrangida diante de seu pai. Mas já tinha um plano<br />
em mente para reverter a situação constrangedora. Mesmo<br />
68
porquê, deveria estar preparado para a reação do papai Vangi,<br />
também.<br />
Passa<strong>dos</strong> alguns instantes, Sindazel retornou acompanhada<br />
de um Vangi que devia ter quase dois metros de altura. Ao<br />
contrário das asas dela, as de seu pai eram maiores e ainda<br />
mais exuberantes. Alto sim, porém forte, com músculos bem<br />
distribuí<strong>dos</strong> por todo o corpo. Cabelos doura<strong>dos</strong> e<br />
encaracola<strong>dos</strong> que lhe escorriam pelos ombros como uma<br />
cascata de ouro reluzente, os olhos grandes e verdes como<br />
uma esmeralda. Apresentava uma face austera, mas jovial e<br />
bela ao mesmo tempo. Parecia um arcanjo do Senhor. Ao<br />
contrário da túnica que Sindazel usava, aquele Vangi vestia<br />
uma túnica curta, com uma espécie de cordão prateado<br />
dividindo-a em parte inferior e superior, sem mangas. Ao<br />
olhar para Etiènne, o Vangi deu uma estridente gargalhada,<br />
revelando dentes belíssimos, brancos como pérolas, perfeitos.<br />
Etiènne, sem entender o motivo da graça, ficou quieto,<br />
observando aquele ser esplendoroso.<br />
— Filha, destes roupas femininas para nosso hóspede!? — e<br />
o pai de Sindazel continuava sorrindo. Como dizem, o feitiço<br />
virou contra o feiticeiro, pois agora era Etiènne o<br />
constrangido. E Sindazel riu-se com a galhofa de seu pai.<br />
— Meu nome é Granuzael! Minha filha já havia me falado<br />
sobre ti e eu esperava ansiosamente para poder conversar<br />
alguns instantes contigo. — O Vangi colocou a mão no ombro<br />
de Etiènne, esperando uma reação positiva. Quase que<br />
intimidado, Etiènne sentou-se novamente no grande cristal<br />
onde estivera deitado.<br />
Quebrando um pouco o clima, Etiènne questionou como os<br />
Vangis, pelo menos Granuzael e Sindazel, falavam tão bem e<br />
fluentemente a língua francesa. E teve que se contentar com a<br />
resposta óbvia, pois não estavam também na França? A única<br />
diferença é que viviam dentro de profundas cavernas.<br />
69
Etiènne, insistiu em afirmar que tratavam-se de anjos do<br />
Senhor, e que estava no Paraíso, mas como Sindazel,<br />
Granuzael dissuadiu-o dessa idéia, ratificando o que a filha<br />
revelara anteriormente. <strong>Era</strong>m apenas de uma raça muito<br />
parecida com a <strong>dos</strong> seres humanos, todavia, com muitas,<br />
muitas distinções.<br />
Granuzael revelou a Etiènne sobre a profecia existente na<br />
terra para onde deveria conduzir seu povo, afirmando que<br />
seria a semente de uma nova era, num lugar maravilhoso que<br />
abrigara todas as raças superiores que já existiram no mundo,<br />
antes mesmo da era <strong>dos</strong> homens. Segundo a Profecia e, na<br />
interpretação <strong>dos</strong> Vangis, acreditavam que seriam eles, os<br />
Vangis, que levariam os homens para a nova terra.<br />
Etiènne ouviu a tudo incrédulo, mas sentia-se ao mesmo<br />
tempo maravilhado. <strong>Era</strong>, sem a menor sombra de dúvida, uma<br />
dádiva de Deus, estar entre os eleitos que povoariam aquela<br />
nova terra da qual Granuzael lhe contava. Não poderia ser<br />
apenas uma mera coincidência, o fato de estarem buscando<br />
novas terras, e estar ali diante daquele criatura fantástica,<br />
falando-lhe sobre uma Antiga Profecia. Tinha de ser algo<br />
especialmente divino o que estava vivenciando.<br />
Granuzael contava maravilhas sobre a nova terra que<br />
esperava por Etiènne, e este o ouvia cada vez mais<br />
entusiasmado. Alertou-o, contudo, sobre perigos que ele<br />
desconhecia, pois também encontraria muitos obstáculos, <strong>dos</strong><br />
quais se absteve de falar, pois não queria assustar o homem,<br />
ou mesmo deixá-lo temeroso de conhecer a nova terra.<br />
70
A<br />
CAPÍTULO V<br />
O arauto do rei<br />
o retornar de sua segunda patrulha, Alain informou a seu<br />
senhor que infelizmente não fora possível encontrar os<br />
demais membros do Conselho e que era óbvio, que eles já não<br />
estavam mais na cidade. Martin irritou-se com a situação e<br />
lamentou muito não estar com to<strong>dos</strong> captura<strong>dos</strong>.<br />
Transtornado, decidiu executar os que já estavam presos<br />
imediatamente, e ordenou que os preparativos da execução<br />
fossem concluí<strong>dos</strong> com brevidade. Gallard Gellion, mais<br />
calmo e não envolvido tão emocionalmente ao caso quanto<br />
Martin, orientou-o a não executar to<strong>dos</strong> os prisioneiros de<br />
uma só vez, para evitar que havendo uma possível fuga, não<br />
lhe escapassem to<strong>dos</strong>. <strong>Era</strong> mais prudente ir eliminando-os um<br />
a um. Apesar de Martin detestar concordar com as idéias de<br />
outras pessoas, teve que admitir que o sugerido pelo<br />
mercenário era mais prudente, e assim ordenou que fosse.<br />
Após uma longa e ansiosa espera, os carrascos apareceram<br />
trazendo Michel Montbard arrastado pelos braços. Estava<br />
muito fraco, pois mal se alimentara nos últimos dois dias de<br />
cativeiro. Os demais preparativos continuavam a ser<br />
providencia<strong>dos</strong> e se tudo corresse de acordo com o planejado<br />
pelo perverso senhor de Amiens, no final da tarde estaria se<br />
vendo livre para sempre do pobre Michel. As horas passavam<br />
e cada vez mais a situação se complicava para os<br />
Conspiradores.<br />
A notícia da execução não fora divulgada bem cedo para o<br />
povo, como era o costume nos casos de condenação, então a<br />
71
execução fora reprogramada para aquele dia ao final da tarde.<br />
Mas ainda assim, poucas pessoas compareceram ao castelo<br />
para presenciar o fato, pois muitas estavam nas regiões<br />
limítrofes com Beauvais, ao sul de Amiens. Em outras<br />
ocasiões, este tipo de programação contava com a presença de<br />
praticamente um terço da população de Amiens.<br />
Um sol cálido banhava o cenário de execução, mantendo o<br />
clima frio que lembrava a permanência do rigoroso inverno.<br />
De pé, com as mãos atadas por trás do corpo e um capuz<br />
escuro ocultando sua cabeça, Michel aguardava seu destino<br />
manifestar-se. Medo e angústia o dominavam com mais<br />
intensidade naquele momento, que antecedia sua morte.<br />
Sentia um nó apertando sua garganta e ficou imaginando o<br />
quanto foi bom viver naquela cidade e tudo o que poderia ter<br />
realizado por aquele povo sofrido se os planos tivessem saído<br />
de acordo com o que havia planejado.<br />
Chegara o momento! Seus amigos, Leon e Dízier,<br />
permaneciam encarcera<strong>dos</strong> como aconselhou Gallard, sem<br />
saber que Michel já estava prestes a ser executado. Do lado de<br />
fora, no pátio central do castelo, Martin subiu ao cadafalso<br />
para confirmar que seu prisioneiro estava devidamente<br />
amarrado. Após certificar-se de que tudo estava preparado<br />
como havia ordenado, esticou um papiro que trazia enrolado<br />
em sua mão, dirigiu-se aos poucos curiosos que estavam<br />
presenciando a condenação e começou a pronunciar a<br />
acusação de Michel Montbard. Enquanto Martin falava, os<br />
irmãos Ballec seguindo o plano traçado por Grassac,<br />
chegavam às portas do castelo com uma grande carroça<br />
abarrotada de feno. Vieram dissimulando não saber o que se<br />
passava, para fazer queixa do incêndio ocorrido em suas<br />
casas. Na verdade, o objetivo era introduzir Grassac no castelo<br />
para que ele tentasse libertar os prisioneiros e atrasar ao<br />
72
máximo a execução de Michel, com a esperança de também<br />
libertá-lo.<br />
Alain, o capitão da guarda, sempre atento a tudo, percebeu<br />
a agitação com seus solda<strong>dos</strong> à entrada do castelo e alertou<br />
seu senhor, que interrompeu o discurso desviando o olhar<br />
para a contenda. Aos poucos, os empurrões e troca de<br />
impropérios foram dando lugar a agressões mais violentas de<br />
ambas as partes aumentando ainda mais o tumulto. Agora<br />
vários curiosos já chegavam perto incitando os envolvi<strong>dos</strong> na<br />
briga.<br />
Não demorou muito e outros solda<strong>dos</strong> juntaram-se aos<br />
sentinelas da entrada. Chegaram de espadas em punho<br />
acertando os irmãos camponeses com a lateral das lâminas,<br />
dando lambadas em seus braços e pernas. Gien sofreu um<br />
pequeno corte em uma das pancadas desferidas pelos<br />
solda<strong>dos</strong>. Cederam à pressão <strong>dos</strong> guardas e se renderam, mas<br />
ainda clamavam por justiça e aos bra<strong>dos</strong> culpavam Martin<br />
pela situação da cidade e pelos incêndios ocorri<strong>dos</strong> nos<br />
últimos dias. A situação não estava de todo resolvida e o<br />
tumulto ainda permanecia, porém em direção ao centro do<br />
pátio principal do castelo.<br />
A carroça foi imediatamente confiscada pela guarda e<br />
conduzida ao estábulo, mas..., Gallard, com um tom de voz<br />
incisivo, ordenou que os solda<strong>dos</strong> parassem onde estavam.<br />
Martin olhou surpreso para Gallard sem saber o motivo de<br />
tamanha insolência. Afinal, como podia um estranho dar<br />
ordens a seus homens?<br />
— Senhor, perdoe-me a precipitação, mas aquela carroça<br />
pode nos trazer surpresas desagradáveis, se me permite<br />
explicar?<br />
— Não é preciso! — retrucou Martin com um olhar de<br />
desprezo. Entendera exatamente o que o mercenário e espião<br />
queria dizer, pois era um homem sagaz, ordenando na mesma<br />
73
hora que seus solda<strong>dos</strong> verificassem o enorme monte de feno<br />
com suas lanças.<br />
— O que está me intrigando muito é ver estas duas<br />
criaturas surgirem às portas de meu castelo, depois de tantas<br />
buscas infrutíferas realizadas por meus homens. — Comentou<br />
Martin, referindo-se aos irmãos camponeses.<br />
Neste momento, os irmãos Ballec apesar do frio,<br />
começaram a transpirar muito devido a tensão. Temiam que o<br />
plano fosse por descoberto e acabassem to<strong>dos</strong> presos. Já<br />
haviam se acalmado, mas ao ver as incessantes estocadas de<br />
lança no monte de feno começaram a perder o controle<br />
novamente, mas agora haviam vários solda<strong>dos</strong> ao redor.<br />
Gallard, ao ver o nervosismo <strong>dos</strong> irmãos camponeses, teve<br />
uma nova idéia e a revelou a Martin.<br />
— Senhor, não vamos perder tempo e correr riscos<br />
desnecessários. Que tal incendiar esta carroça. Assim teríamos<br />
certeza de que qualquer possível risco se transformará em<br />
cinzas. — e deu um ligeiro sorriso ao concluir a frase.<br />
A insatisfação de Martin aumentava cada vez mais com os<br />
incessantes palpites do mercenário. Mas teve que concordar<br />
mais uma vez com a ilustre idéia de Gallard e ordenou que<br />
ateassem fogo à carroça.<br />
Neste momento, os Ballec não agüentaram mais e o<br />
desespero, enfim, venceu o medo. Os dois se agitaram como<br />
loucos e escaparam aos guardas, começando uma correria<br />
desvairada. Esta atitude fugia completamente do plano<br />
original traçado por Grassac. De certa forma, acabaram<br />
ajudando. Devido à fuga e ao corre-corre, as atenções<br />
voltaram-se para os dois camponeses proporcionando uma<br />
excelente oportunidade para Grassac. Ao contrário do que<br />
muitos podiam imaginar, o forasteiro vinha agarrado aos<br />
eixos da carroça, oculto na parte inferior, por baixo do estribo.<br />
Nenhuma lança o atingiria neste ponto, mas do fogo não teria<br />
74
como escapar. Rápido e sorrateiro como uma raposa, soltou-se<br />
e rolou para o lado oposto ao tumulto, ficando escondido atrás<br />
da carroça. Um soldado mais desgarrado do grupo ouviu um<br />
baque seco quando o corpo de Grassac caiu ao solo.<br />
Desconfiado, contornou a carroça cautelosamente, mas foi<br />
surpreendido pela agilidade do forasteiro que com um golpe<br />
rápido e certeiro, desacordou o soldado. Arrastou-o para<br />
próximo de si, e aos poucos, mas sempre agitado e com muita<br />
atenção, foi se compondo com as vestes do soldado<br />
desmaiado. Quando finalmente ficou pronto, colocou suas<br />
próprias roupas na carroça, pegou uma tocha que estava<br />
pendurada próxima a entrada lateral <strong>dos</strong> aposentos da guarda<br />
e incendiou a carroça. Arrastou o soldado desacordado que<br />
estava perto da carroça em chamas, e o recostou sobre a<br />
parede, deixando-o em segurança. Chegou a olhar a correria<br />
de longe, mas não deu muita atenção, pois tinha que agir com<br />
muita rapidez. Tudo parecia perfeito para seu plano de<br />
penetrar no Castelo, até o triste desenlace da situação.<br />
Gourdon, percebendo o fogo, parou de correr e ficou<br />
amargurado observando a carroça. Parecia estar hipnotizado<br />
pelas chamas. Teve uma terrível sensação de perda. De<br />
repente, uma lança surgiu-lhe peito a fora. Uma fisgada<br />
terrível e o ar lhe faltou no mesmo instante em que, de olhos<br />
arregala<strong>dos</strong>, segurou o pedaço de lança que brotara de seu<br />
peito. Caiu de joelhos ao solo, tombando para o lado em<br />
seguida. Ainda agonizou por alguns segun<strong>dos</strong> antes de dar<br />
seu último suspiro.<br />
Gien, aos prantos, correu em direção a seu querido irmão<br />
sem acreditar no que acabara de presenciar. Todas as pessoas<br />
que estavam achando graça da correria de Gourdon e <strong>dos</strong><br />
guardas, ficaram em murmúrios. A grande maioria, curiosos,<br />
não sabia nem o que se passava.<br />
75
A carroça em chamas ficou esquecida por preciosos<br />
minutos, ajudando a Grassac, que alheio ao triste desfecho da<br />
situação com seus amigos, havia entrado apressadamente no<br />
estábulo, cumprimentando alguns solda<strong>dos</strong> que lá estavam.<br />
Como a guarda de Martin era muito numerosa, muitos nem se<br />
conheciam, o que facilitou ainda mais o plano de Grassac.<br />
<br />
Uma morte e um incêndio. Dois acontecimentos que não<br />
estavam planeja<strong>dos</strong> por Martin. Pelo menos não a morte de<br />
Gourdon, ele esperava liquidar Michel. De certa forma, estes<br />
fatos acabaram atrapalhando os planos de execução <strong>dos</strong><br />
demais membros do Conselho. Pareciam ser o prenúncio de<br />
grandes problemas. Martin caminhava inquieto de um lado<br />
para outro, como se pensasse indefinidamente que decisões<br />
deveria tomar diante de tais circunstâncias. Ergueu a cabeça a<br />
procura de Alain que havia se afastado, mas não o encontrava.<br />
As pessoas começavam a deixar o local da tragédia,<br />
reprovando a atitude do soldado assassino. Gien<br />
inconformado com a morte do irmão, fora capturado e<br />
arrastado aos gritos, pela guarda do castelo. Gallard também<br />
demonstrava apreensão e estava impaciente. Sabia que<br />
enquanto to<strong>dos</strong> os membros do Conselho não fossem<br />
executa<strong>dos</strong>, não receberia a quantia que havia sido combinada<br />
com o senhor de Amiens, pelos seus serviços de informante.<br />
— Senhor Martin, creio que a execução de Michel não<br />
dependa de platéia, podemos matá-lo agora mesmo! —<br />
comentou Gallard, simulando um ar de serenidade.<br />
Martin fitou-o por alguns segun<strong>dos</strong>, como que reprovando<br />
a idéia apenas com seu olhar penetrante para logo em seguida<br />
deixar Gallard só, sem resposta alguma. Martin dirigiu-se para<br />
alguns guardas que ainda estavam por perto e indagou-os<br />
sobre Alain. Um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>, respondeu e gesticulou com as<br />
76
mãos, mostrando o caminho do estábulo a seu senhor.<br />
Quando tomou o caminho do local indicado pelo soldado,<br />
mais uma vez foi interrompido, desta vez por dois cavaleiros<br />
de sua guarda, que entraram no castelo a uma velocidade<br />
incrível. Assustado, Martin parou e aguardou que os<br />
cavaleiros se aproximassem. Mal os cavaleiros chegaram perto<br />
e já sofreram a ira de Martin, que os reprimiu sem piedade.<br />
— O que pensam estar fazendo!? Querem ser castiga<strong>dos</strong>!?<br />
Isto aqui não é local de baderna!! Exijo já uma explicação!!! —<br />
Realmente o dia não estava sendo <strong>dos</strong> melhores para Martin.<br />
Sempre manteve ordem dentro do castelo, mas não era o que<br />
acontecia nas últimas horas. Os cavaleiros chegaram a se<br />
ajoelhar pedindo perdão a Martin, e logo em seguida se<br />
explicaram. Disseram a Martin que o motivo de tanta afobação<br />
era trazer com rapidez a informação de que um arauto do rei<br />
Philipe havia chegado a Amiens trazendo uma mensagem<br />
importante, e que em pouco tempo ele chegaria ao castelo.<br />
Martin ficou espantado com a notícia. Com certeza este era um<br />
acontecimento inesperado e sabia que as coisas iriam se<br />
complicar. Teve um péssimo pressentimento. Ordenou que<br />
levassem Michel novamente para sua prisão e que<br />
desmontassem o cadafalso o quanto antes. Gallard se<br />
aproximara mais uma vez, com o intuito de forçar Martin a<br />
eliminar Michel enquanto havia tempo, mas foi reprimido<br />
severamente e ordenado que ficasse em seus aposentos até<br />
que ele resolvesse a situação com o arauto do rei. Gallard<br />
ainda insistiu em ficar ao lado de Martin durante a visita do<br />
arauto, se oferecendo como conselheiro já que possuía<br />
bastante conhecimento em Paris e talvez até pudesse<br />
identificar melhor as intenções do rei.<br />
— Claro que não! — foi a resposta de Martin. — Já<br />
esqueceu que enviei dois mensageiros a Paris e não tive<br />
nenhuma informação? Sequer regressaram a Amiens. Não<br />
77
quero que um estranho interfira nos assuntos políticos de<br />
minha cidade com Paris. Saberei resolver as necessidades do<br />
rei sem atrapalhar meus planos. Agora vá para seus aposentos<br />
e não me incomode mais!! Você está ficando cada vez mais<br />
desagradável e costumo fazer coisas “desagradáveis” com<br />
quem me incomoda.<br />
Gallard entendera exatamente o recado e com um cinismo<br />
teatral, fez uma mesura, pediu licença e retirou-se para seus<br />
aposentos. Já duvidava que fosse receber o pagamento <strong>dos</strong><br />
serviços presta<strong>dos</strong> ao asqueroso Martin Lacroix. Começava a<br />
pensar se não era hora de mudar o rumo <strong>dos</strong> acontecimentos e<br />
deixar a cidade. Mas uma coisa era certa, se não recebesse seu<br />
dinheiro, mataria o arrogante senhor de Amiens, estava<br />
decidido.<br />
Em poucos instantes a paz voltou a reinar no castelo de<br />
Martin, e tudo estava novamente em seu lugar, exceto um<br />
pequeno incidente que acontecia no grande estábulo. Alain se<br />
afastara do tumulto por desconfiar do incêndio na carroça e<br />
perceber que o soldado que a incendiara, se afastou<br />
estranhamente para dentro do estábulo, deixando para trás<br />
todo o tumulto que ocorria no pátio central.<br />
Ao se aproximar da carroça em chamas e examiná-la<br />
atentamente, não teve mais dúvidas, algo muito errado estava<br />
acontecendo. Após contornar a carroça, identificou um de seus<br />
solda<strong>dos</strong> encostado à parede, praticamente desnudo. Correu<br />
até o infeliz e verificou sua respiração. Um alívio repentino. O<br />
homem vivia e estava apenas desmaiado. Alain correu para o<br />
estábulo em busca do misterioso homem que havia feito<br />
aquilo. Ao entrar em grande velocidade com espada em<br />
punho, to<strong>dos</strong> que estavam no estábulo descansando se<br />
sobressaltaram e levantaram assusta<strong>dos</strong>. Indagaram a Alain o<br />
que estava acontecendo e ele apenas perguntou se passou<br />
alguém estranho por ali naquele momento. Um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong><br />
78
afirmou que havia passado um guarda novo por eles. Alain<br />
ordenou que os solda<strong>dos</strong> o acompanhassem na busca do<br />
homem misterioso, pois se tratava de um invasor.<br />
Apressaram-se em se compor e se armar, para logo em<br />
seguida seguir Alain. Espalharam-se e iniciaram a caçada ao<br />
invasor.<br />
Perdido em meio aos corredores do castelo, Grassac<br />
procurava inutilmente pelos membros do Conselho<br />
aprisiona<strong>dos</strong>. Mas já considerava tolice seu próprio plano e<br />
estava com pouca esperança de encontrá-los. Por desígnio do<br />
destino, calhou de encontrar-se não com os prisioneiros, mas<br />
com Gallard Gellion, o culpado pela morte de seu pai, ao<br />
entrar em mais um <strong>dos</strong> diversos corredores do castelo.<br />
Gallard, a exemplo da fria noite em que viu Grassac na<br />
reunião do Conselho, não imaginava que Grassac o procurava.<br />
Na verdade, sequer lembrava do inquérito em que fez parte<br />
da acusação e morte do pai de Grassac há seis anos. Ao se<br />
encontrarem, ambos vacilaram por alguns instantes. Nenhum<br />
<strong>dos</strong> dois podia mais enganar um ao outro. Gallard que se<br />
passara por Paul o lenhador, encontrado livre e solto nos<br />
corredores do castelo de Martin, num momento em que toda a<br />
guarda de Amiens procurava os membros do Conselho e<br />
Grassac por sua vez, que para Gallard, fazia parte do<br />
Conselho, ali a sua frente, composto com as vestes da Guarda<br />
de Amiens. Apesar da situação ridícula, os instantes vacilantes<br />
passaram e logo Grassac empunhou sua espada de forma<br />
ameaçadora para Gallard, que recuou assustado.<br />
— Cretino! — gritou Grassac. — Pelo visto continua<br />
vagando pelas cidades e ganhando dinheiro com a morte de<br />
gente inocente! — Continuou com a espada em punho e<br />
andando na direção de Gallard.<br />
— De que estás falando? Nem lhe conheço direito! Você me<br />
vê e já me insulta com acusações infundadas!? — Gallard<br />
79
tentava ganhar tempo e raciocinar, mas estava<br />
demasiadamente nervoso e acuado.<br />
— Você mata tanta gente que nem lembra das vítimas ou<br />
da dor que causa aos parentes delas, mas isso irá acabar. Hoje<br />
terminam seus dias de mercenário e tenho certeza que estarei<br />
poupando a vida de muitos inocentes que ainda iriam morrer<br />
por sua causa. Mas antes de acabar contigo quero que saibas<br />
quem sou eu.<br />
— Você está equivocado, deve estar procurando a pessoa<br />
errada. Eu não sou lenhador! Tenha calma, vamos conversar<br />
pacificamente, tenho certeza de que poderemos chegar a um<br />
acordo, se é que me entende. — Gallard, falava gaguejando e<br />
sem ordenar as palavras. Estava muito tenso. Já não sabia se o<br />
estranho procurava por ele ou pelo falso lenhador que ele<br />
fingia ser. Procurava explicações, mas não as encontrava.<br />
Numa coisa o estranho havia acertado, de fato muitas pessoas<br />
inocentes morreram para aumentar sua fortuna.<br />
Gallard, possuidor de uma sorte sem igual, foi salvo pela<br />
chegada de Alain e mais três solda<strong>dos</strong>. Quando Alain entrou<br />
no corredor onde estava ocorrendo a confusão, Grassac virouse<br />
assustado e teve uma grande surpresa, pois reconhecera<br />
alguém que não via há muitos anos. Alain, também surpreso,<br />
reconheceu o homem que salvara sua vida anos atrás, em uma<br />
enchente ocorrida na cidade de Chinon. Naquela época, Alain<br />
ficara preso entre as lascas de madeira destroçadas da carroça<br />
que o conduzia e despencara de uma ribanceira devido à força<br />
da enxurrada. Apesar de muito forte, por causa da altura<br />
Alain não conseguia mexer-se e, não fosse o aparecimento<br />
providencial de Grassac, teria morrido afogado. Por muitos<br />
meses Alain acompanhou Grassac procurando recompensá-lo<br />
pelo feito e acabaram se tornando grandes amigos. Mais tarde,<br />
porém, quando Grassac seguiu seu pai em uma viajem a Jafa,<br />
para acompanhar uma caravana de peregrinos à Jerusalém,<br />
80
eles se separaram e jamais haviam encontrado-se novamente,<br />
até aquele momento.<br />
Aquela interminável troca de olhares foi o suficiente para<br />
que Gallard tentasse dar um empurrão em Grassac e passar<br />
para o lado de Alain. Como o intruso era muito forte, o<br />
encontrão que o mercenário tentara não funcionou e Gallard<br />
acabou caindo ao chão, bem à frente de Grassac. No mesmo<br />
instante, levou a ponta de sua espada à garganta do<br />
mercenário.<br />
— Maldito seja! Pensa que vai escapar? — Grassac estava<br />
furioso e confuso ao mesmo tempo. Mantinha Gallard sob a<br />
espada, mas novamente virou o rosto para falar com Alain. Os<br />
solda<strong>dos</strong> já apontavam suas bestas para Grassac, aguardando<br />
a ordem de seu capitão.<br />
— Grassac, meu amigo. Tenha calma. Não sei o que está se<br />
passando, mas quero ajudá-lo a sair deste lugar com vida.<br />
Mesmo que você esteja envolvido com estes Conspiradores,<br />
intercederei por você junto a meu senhor, — Alain jamais<br />
esqueceria que foi salvo por um amigo — mas preciso que<br />
você colabore e se entregue agora. — Alain usava um tom de<br />
voz amigável, para não dar a impressão de que o pedido fosse<br />
uma ordem arrogante, o que poderia complicar as coisas.<br />
Grassac, envolvido demais com sua vingança naquele<br />
momento, recusou a oferta de seu amigo, insistindo que<br />
cumpriria a promessa de matar o culpado pela morte de seu<br />
pai.<br />
— Não seja tolo, você estará me obrigando a fazer o que<br />
não quero. Somos amigos e não gostaria de ter que presenciar<br />
sua morte. Eu lhe imploro, em nome de nossa amizade, se<br />
entregue e evite o pior...<br />
Enquanto Alain falava mansamente, a ira de Grassac<br />
aumentava e, de súbito, ergueu a espada violentamente para<br />
desferir um golpe fatal em seu inimigo. Gallard, aterrorizado,<br />
81
encolheu-se todo e colocou a mão nos olhos, como se isso fosse<br />
adiantar alguma coisa. Alain então arregalou os olhos e deu<br />
um grito desesperado. O que falou aos berros foi o suficiente<br />
para por fim a difícil situação. — Não faça isso! Uma pessoa já<br />
morreu lá fora! Não quero que você também morra, somos<br />
amigos! Ao ouvir estas palavras, Grassac sustentando sua<br />
espada no alto, pronto para com toda sua força acabar com a<br />
vida de Gallard, titubeou e, com um olhar espantado, virou-se<br />
pela terceira vez para seu antigo amigo, baixando lentamente<br />
a espada. Lembrou de seus amigos camponeses, que haviam<br />
ficado no pátio.<br />
— O que você está dizendo? Alguém morreu lá fora?<br />
Como? — sem acreditar no que acabara de ouvir, Grassac<br />
perguntou sobre o que acabara de ser falado por Alain.<br />
Pensou no pior. Quem morrera? Gien ou Gourdon? Por alguns<br />
instantes chegou a pensar que podia ser precipitação de sua<br />
parte concluir sobre o assunto. Talvez não fosse nenhuma<br />
pessoa conhecida.<br />
Gallard, mais uma vez tentando se aproveitar da distração<br />
de Grassac, rastejou silenciosamente como um réptil para além<br />
do corredor. Estava muito suarento e seu coração parecia até<br />
estufar o peito, tamanho era seu desespero. Talvez em toda<br />
sua vida nunca estivera tão próximo da morte como naquele<br />
episódio.<br />
— Infelizmente a balbúrdia acabou em morte.<br />
— Mas quem morreu!? Indagou grosseiramente Grassac.<br />
— Um camponês chamado Gourdon Ballec. Você o<br />
conhecia, não? — Ao ver a expressão de angústia de seu<br />
amigo, percebeu que a resposta seria positiva. Grassac<br />
limitou-se a baixar a cabeça. Ficou pensativo. Havia<br />
simpatizado muito com os camponeses Ballec, sobretudo com<br />
Gourdon, que o acompanhara dias atrás até as praias ermas de<br />
Calais.<br />
82
— Vejo que o plano de vocês, seja lá qual for, não foi muito<br />
feliz. Agora por favor, largue a espada e vamos conversar. —<br />
Grassac novamente levantou o olhar e encarou Alain. Olhou<br />
para trás e percebeu que Gallard fugira. Indignado, triste e<br />
decepcionado, assumindo como sua a culpa pela morte do<br />
amigo camponês, estendeu a espada vagarosamente e a<br />
entregou a Alain. Tão logo o capitão da guarda reteve em suas<br />
mãos a espada de Grassac, os demais solda<strong>dos</strong> que estavam<br />
atrás de Alain, avançaram e agarraram brutalmente os braços<br />
do intruso. Alain os repreendeu e disse que conduziria o<br />
prisioneiro pessoalmente, não sendo necessária aquela atitude.<br />
— Vocês podem se retirar! — Entregando a espada de<br />
Grassac a um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>, fez com que saíssem de sua<br />
presença. — Agora me diga, amigo, o que você está fazendo<br />
aqui em Amiens e envolvido com esta gente? — Alain queria<br />
juntar as peças do quebra-cabeça que se formara. Estava<br />
curioso principalmente pelo fato de ter vasculhado cada<br />
centímetro de Amiens e ver que os camponeses surgiram<br />
como que do nada, às portas do castelo. Sabia que seu senhor<br />
iria exigir explicações detalhadas.<br />
Aos poucos, Alain foi descobrindo alguns fatos que ainda o<br />
intrigavam, como por exemplo o aparecimento de Grassac<br />
sem que ninguém percebesse, e até mesmo o <strong>dos</strong> camponeses.<br />
Na verdade, quando os três chegaram a Abbeville, logo<br />
souberam <strong>dos</strong> últimos acontecimentos em Amiens e<br />
elaboraram o plano para chegar até o castelo de Martin com<br />
segurança. Negociaram o cavalo de Gien em Abbeville e<br />
conseguiram a velha carroça com feno. Grassac entrou em<br />
Amiens se passando por um camponês daquela cidade,<br />
trazendo os irmãos ocultos por baixo do feno. Uma vez em<br />
Amiens, próximos ao castelo trocaram de posição, mas<br />
Grassac, ao invés de oculto pelo feno da carroça, agarrado por<br />
baixo <strong>dos</strong> estribos. Para passar a fronteira era tranqüilo ficar<br />
83
sob o feno, mas não para entrar no castelo de Martin. De fato,<br />
foi melhor ter ficado por baixo da carroça.<br />
Alain, também descobriu que o envolvimento de Grassac<br />
com os camponeses havia sido mero acaso, destinos cruza<strong>dos</strong>,<br />
pois sua intenção era na verdade, vingar a morte de seu pai.<br />
Grassac mentiu e não revelou nenhum detalhe pertinente ao<br />
Conselho, limitava-se a dizer que participou apenas de um<br />
encontro com seus membros, com o intuito de encontrar<br />
Gallard, a quem já seguia os passos há um bom tempo.<br />
Conduzindo Grassac até as salas subterrâneas, o encarcerou<br />
na mesma cela de Dízier. Prometeu-lhe interceder junto a seu<br />
senhor por sua liberdade e disse que voltaria a falar com ele<br />
ainda naquele dia.<br />
Grassac percebeu que Dízier estava ferido e se aproximou<br />
dele para verificar seu estado. Diferentemente <strong>dos</strong> outros<br />
prisioneiros, Grassac não ficara acorrentado. Dízier, com uma<br />
aparência muito sofrida, apontou para o fundo da cela.<br />
Grassac virou-se e viu Gien, acorrentado à parede rochosa.<br />
Deu dois tapinhas de leve no ombro de Dízier e se aproximou<br />
do amigo camponês. Estava cheio de escoriações. Olhou para<br />
o amigo, aproximou-se e recostou a cabeça dele<br />
confortavelmente em seu ombro. — Seja forte, amigo! — ao<br />
ouvir estas palavras Gien mais uma vez não se conteve e caiu<br />
em lágrimas. Sentia muita dor pela perda inestimável. Tudo<br />
que fizera na vida sempre teve a presença de seu irmão<br />
Gourdon. Grassac passou o resto da tarde e a noite inteira em<br />
vigília, confortando seu amigo com muitas palavras de fé que<br />
aprendera com seu falecido pai.<br />
<br />
Mais um dia findava e Martin aguardava com grande<br />
ansiedade a chegada do arauto do rei. Sua agitação era tanta<br />
que nem conseguira fazer sua visita rotineira às margens do<br />
84
io Somme, no final da tarde. Continuava inconformado com<br />
tudo que acontecera durante a tarde em seu castelo. Por duas<br />
vezes Alain tentou abordá-lo para falar sobre os fatos que<br />
haviam ocorrido nos corredores do castelo, mas não obteve<br />
êxito. Martin, que até o momento ignorava o episódio entre<br />
Grassac e Gallard, estava evitando falar com to<strong>dos</strong>, tentava<br />
apenas concentrar-se para receber o arauto do rei com<br />
tranqüilidade, sem deixar transparecer que muitos problemas<br />
estavam assolando Amiens.<br />
Trajando uma vistosa roupa negra com detalhes em cinza e<br />
prata e, também de luvas negras, apareceu no pátio para<br />
verificar se a ordem já havia se restabelecido. Ficou satisfeito<br />
com o que viu. Tudo estava em seu devido lugar e todas as<br />
tochas estavam acesas como ordenado. A imagem do castelo<br />
de Amiens à noite, com todas as suas tochas acesas, era algo<br />
extraordinário. Difícil acreditar como tamanha beleza, podia<br />
abrigar tanta maldade.<br />
Quando a noite já estava bastante adiantada, o impaciente<br />
Martin resolveu dirigir-se à Torre de Vigia de seu castelo, com<br />
a intenção de tentar avistar os envia<strong>dos</strong> de Paris. Subiu os<br />
degraus de pedra polida da imponente torre, uma das maiores<br />
em toda a região norte francesa, e ficou a observar ao longe a<br />
estrada principal que conduzia à entrada do castelo. Via<br />
praticamente toda a cidade. Amiens ficava sempre muito<br />
iluminada, mas naquela noite, poucas casas estavam com suas<br />
lanternas e tochas acesas. Nunca em toda sua vida presenciara<br />
a cidade tão apagada como naquela noite.<br />
Desceu as escadas da torre e pediu que chamassem um <strong>dos</strong><br />
solda<strong>dos</strong> que lhe informaram sobre a presença do arauto em<br />
Amiens. Já não acreditava que a uma hora daquelas alguém<br />
ainda pudesse chegar. O soldado que lhe trouxera a<br />
informação já não se encontrava mais de serviço, mas o outro<br />
85
que lhe acompanhara estava dobrando seu turno e<br />
apresentou-se prontamente.<br />
— Diga-me bom rapaz, você chegou a ver se o arauto de<br />
Nossa Majestade, o rei Philipe VI, vinha em direção a Amiens?<br />
Martin, apesar da tensão, estava falando serenamente com<br />
seu soldado. Procurava obter informações que esclarecessem o<br />
mistério. Por quê, afinal de contas, o homem não havia<br />
chegado? A dúvida estava consumindo Martin em<br />
curiosidade.<br />
— Meu senhor, na verdade nós vimos que o arauto do rei,<br />
acompanhado de três cavaleiros de elite, trazia um estandarte<br />
real de Paris e, a cada grupo de cidadãos que encontravam,<br />
paravam seus cavalos e conversavam com as pessoas.<br />
— O que conversavam exatamente? — indagou Martin.<br />
— Difícil dizer, meu senhor, mas sempre gesticulavam<br />
muito e apontavam para as casas de Leon, Gien e Gourdon.<br />
Ao ouvir esta última declaração, Martin franziu a testa,<br />
ergueu a cabeça e esfregou o queixo com sua mão, como se<br />
tivesse mergulhado em um pensamento profundo. Mas nem<br />
teve tempo de refletir sobre estas preciosas informações, pois<br />
ouvira o sentinela da torre anunciar a chegada de pessoas pela<br />
entrada principal. Sua breve meditação foi interrompida e,<br />
mais uma vez encheu-se de ansiedade. To<strong>dos</strong> os guardas<br />
ficaram de prontidão. — Suspendam a treliça! — gritou o<br />
homem da torre.<br />
Os guardiões da entrada então, começaram a rodar o pivô<br />
da engrenagem que fazia suspender a treliça. Enquanto a<br />
treliça subia lentamente, outros responsáveis pela descida da<br />
ponte levadiça, que fazia as vezes de portão, foram descendoa.<br />
— Senhor, é uma guarnição da fronteira sul que está<br />
chegando! Comunicou o homem da torre.<br />
86
Martin dispensou o soldado que estava a seu lado e<br />
apressou-se em encontrar seus homens que chegavam da<br />
fronteira. Os homens entraram a trote, e foram desmontando<br />
um a um de seus exaustos cavalos. Alguns escudeiros<br />
apareceram e vieram conduzir os cavalos ao estábulo do<br />
castelo. Os recém chega<strong>dos</strong> cumprimentaram os guardas da<br />
entrada e vieram na direção de Martin. Na verdade, eram<br />
apenas seis solda<strong>dos</strong>. To<strong>dos</strong> baixaram a cabeça em reverência<br />
a seu senhor e, o soldado que vinha mais a frente esticou o<br />
braço entregando um papiro enrolado e amarrado por uma<br />
fita cor de ocre, com o selo do reino. Martin olhou apreensivo<br />
para o papiro, tomou-o da mão do soldado e perguntou sobre<br />
o que se tratava. Sabia que era um documento oficial do reino.<br />
— Meu senhor, o arauto do rei pediu que este documento<br />
chegasse em vossas mãos. Viemos o mais rápido possível.<br />
— Há quanto tempo vocês estão com este documento? Por<br />
que não trouxeram isto mais cedo? Martin começava a se<br />
enfurecer novamente.<br />
— Mas senhor, recebemos este documento no início da<br />
noite. Os cavaleiros e o arauto ficaram na fronteira sul durante<br />
toda a tarde interrogando os grupos de acampa<strong>dos</strong>. — o pobre<br />
soldado tentava explicar a situação ao incompreensível<br />
senhor.<br />
— Isto não pode ser coisa boa! — exclamou em tom severo.<br />
— Podem descansar, irei verificar o conteúdo deste papiro. —<br />
Com um gesto de desprezo, ordenou que os solda<strong>dos</strong> se<br />
retirassem.<br />
— Senhor, tem mais uma coisa — o soldado continuou a<br />
falar. — O arauto do rei nos indagou sobre o cerco que<br />
fazíamos em nossa própria cidade.<br />
— O quê!? Ele perguntou sobre isso? E o que vocês<br />
responderam? — neste momento Martin mais uma vez<br />
87
perdera o controle e falava aos gritos. — Espero que não<br />
tenham complicado ainda mais a situação!<br />
— Dissemos que o cerco era para a captura de perigosos<br />
assassinos, que estavam amedrontando o povo da cidade, mas<br />
ele fez pouco caso da informação. Não creio que tenha<br />
acreditado. Martin estava sério, ouvindo as palavras de seu<br />
soldado e, ao mesmo tempo tentando imaginar quais seriam<br />
os passos do misterioso arauto.<br />
— Tem algo mais que queira falar? — indagou Martin.<br />
— Sim, meu senhor. Preciso falar ainda sobre algo muito<br />
desagradável. — O soldado baixou a cabeça por um momento<br />
e continuou a falar. — Muitos solda<strong>dos</strong> estão deixando seus<br />
postos nas fronteiras e juntando-se a seus familiares.<br />
— O que!? Deserções nas minhas fileiras? Não vou tolerar<br />
isto! Quero que estes malditos covardes sejam presos e<br />
puni<strong>dos</strong> imediatamente! — A fúria de Martin chegava a seu<br />
limite. Transtornado, retirou-se gritando uma série de<br />
impropérios desqualificando seus solda<strong>dos</strong>, deixando a to<strong>dos</strong><br />
estupefatos em ver tamanha ira.<br />
Ao entrar no pórtico principal, dirigiu-se à sala de<br />
audiências e ordenou que procurassem Alain, para que viesse<br />
a sua presença. Sentou em uma das inúmeras cadeiras que<br />
ficavam dispostas em semicírculo dentro do salão, e abriu o<br />
documento que lhe fora entregue pelo soldado.<br />
Leu atentamente cada frase do papiro, mas não conseguia<br />
acreditar no que estava lendo. Uma mensagem onde o próprio<br />
rei Philipe VI ordenava que ele assumisse o comando da 6ª<br />
infantaria que seria enviada a Calais, nas próximas três<br />
semanas. Outras surpresas ainda mais desagradáveis estavam<br />
no documento real.<br />
Caríssimo,<br />
88
Como sabes estamos atravessando um momento difícil<br />
perante nossos vizinhos ingleses. O insaciável desejo de conquistas<br />
do rei Eduard IV nos coloca mais uma vez à beira da guerra. Estou<br />
recrutando os melhores estrategistas para combater esta ameaça<br />
inglesa.<br />
Apresente-se à 6ª Infantaria na cidade de Calais dentro de três<br />
semanas. A tropa já foi despachada. O Duque Gilles de Guanion irá<br />
assumir o comando da cidade de Amiens no período em que estiver<br />
fora. Ele chegará nos próximos dias.<br />
Prepare metade <strong>dos</strong> suprimentos da cidade para que sejam<br />
envia<strong>dos</strong> às tropas em Calais. Estes suprimentos devem ser<br />
entregues sem falta na próxima semana, ao Duque Labouche.<br />
O papiro, ao invés de uma assinatura, possuía uma marca<br />
de prensa do anel real para garantir sua autenticidade. Depois<br />
de tanto trabalho, como permitir que outra pessoa assumisse<br />
seu lugar na cidade. Martin não iria aceitar isso tão facilmente.<br />
Não se cansava de ler o documento, principalmente as frases<br />
“apresente-se à 6ª Infantaria...” e a outra “O Duque Gilles de<br />
Guanion irá assumir o comando da cidade de Amiens...”<br />
Levantou-se bruscamente e deu grito que ecoou por todo o<br />
salão de audiências: — Jamais! — justamente quando Alain<br />
chegava.<br />
— O que houve, meu senhor? — assustado, perguntou a<br />
Martin o que se passava. O senhor de Amiens entregou o<br />
documento a Alain e fez um gesto com a cabeça para que ele o<br />
lesse. Alain leu rapidamente os três parágrafos que<br />
compunham o texto real, e também não conseguiu acreditar.<br />
— E agora, meu senhor, o que será feito?<br />
— Nada! Vou ignorar este documento. Ele nunca chegou às<br />
minhas mãos! — tomou o documento das mãos de Alain e o<br />
rasgou em vários pedaços.<br />
— Meu senhor?<br />
89
— Cale-se! Agora sei porque o astucioso arauto não quis<br />
me entregar pessoalmente este maldito papiro. Mas isso não<br />
fica assim! Ele conhece bem o costume traiçoeiro <strong>dos</strong> nobres<br />
do norte. Prepare seus melhores homens imediatamente!<br />
Vamos atrás deste safado e garantir que as informações de<br />
Amiens não cheguem a Paris.<br />
— Mas senhor, estaremos indo contra a vontade do rei?<br />
Alain estava surpreso com a atitude de Martin, afinal, acabara<br />
de capturar meia dúzia de homens por traição ao rei, e estava<br />
prestes a trair o mesmo rei por ordem de seu insano senhor.<br />
— Estou cansado do rei. Não consegue dirigir nem seu<br />
próprio território, e agora quer manipular as cidades a seu bel<br />
prazer? A França já está dividida há muitos anos, e os fiéis ao<br />
rei é que devem pagar o preço da guerra? Chega! Amiens<br />
agora será independente, como tantos outros territórios. Ele<br />
que lute sua guerra.<br />
— Mas senhor isso vai acabar mal...<br />
— Alain! Não há tempo para lamúrias, ou está comigo, ou<br />
pode ir a Paris se juntar ao rei. Mas se estiver comigo, vá e<br />
prepare os homens agora!<br />
— Sim senhor! — Alain saiu confuso com tudo que estava<br />
acontecendo. Na verdade, nem sabia ao certo o que fazer. Mas<br />
uma coisa era verdade, por longos oito anos fora Martin que<br />
lhe dera uma condição na vida, não o rei de Paris. Então<br />
seguiria Martin. Não o deixaria naquele momento. Sabia que<br />
as coisas iriam piorar muito, pois acabaria no meio de duas<br />
guerras, uma entre a própria França, e outra com os ingleses<br />
que se passassem por Calais, avançariam sobre Abbeville e<br />
Amiens.<br />
Em menos de meia hora, saíram em disparada pelo portão<br />
do castelo, Martin em uma suntuosa armadura de guerra, e<br />
sua vistosa cota de malha, acompanhado de Alain que<br />
sustentava um estandarte de Amiens e uma dúzia de seus<br />
90
melhores guerreiros. A maioria deles excelente no manuseio<br />
de macha<strong>dos</strong> de guerra. Uma arma muito usada pelos<br />
franceses quando em meio a um combate. Alguns franceses<br />
chegavam a usar três ou quatro macha<strong>dos</strong> de combate, pois os<br />
arremessavam e à medida que avançavam, podiam ir<br />
recolhendo novamente suas armas. Martin não sabia que<br />
novas surpresas o aguardavam durante a fria madrugada.<br />
<br />
Seguindo Granuzael, Etiènne passou por diversos<br />
corredores de cristal, até encontrar uma espécie de patamar<br />
rebaixado, que só podia se chegar após descer um pequeno<br />
lance de escadas, com degraus também lapida<strong>dos</strong> em puro<br />
cristal, que passava por uma pequena brecha em um <strong>dos</strong><br />
corredores. Ficou chocado ao ver o que lhe cercava, e o mais<br />
impressionante, o que estava abaixo de seus olhos, ao<br />
debruçar em uma longa amurada, tão reluzente quanto tudo<br />
que o cercava.<br />
Ao olhar para frente, em qualquer direção, podia<br />
contemplar um teto de cristais que se perdia no horizonte, não<br />
importando qual ponto cardeal admirasse. <strong>Era</strong> como um mar<br />
de cristais sobre sua cabeça, numa cor avermelhada, mas bem<br />
fraca, tendendo ao rosa. As depressões em determina<strong>dos</strong><br />
pontos daquele teto esplendoroso, se é que se podia chamar<br />
aquilo de teto e, a seu modo de ver, infinito, pois não<br />
conseguia ver os limites, faziam parecer raios de luz,<br />
acentuando a cor <strong>dos</strong> cristais em suas extremidades. <strong>Era</strong> uma<br />
visão de riscos luminosos por todo o céu de cristais sobre sua<br />
cabeça. Hipnotizado por tamanha beleza, foi desperto de seu<br />
transe pela forte voz de Granuzael.<br />
— Lá embaixo, vós podereis começar a nova vida que<br />
esperam. — falava a respeito de seus companheiros e do povo<br />
que queriam conduzir a uma nova terra — Já esperávamos por<br />
91
isso há muito tempo! — levou Etiènne até a frente do patamar,<br />
e lhe mostrou a surpreendente imagem. Aproximadamente a<br />
uns quinze mil metros abaixo, em direção ao centro da Terra,<br />
ele pôde ver uma enorme floresta, que se estendia por<br />
quilômetros. Pôde observar também que havia montanhas,<br />
rios, planícies, enfim, havia todo tipo de terreno e tudo parecia<br />
muito sereno. Pensou se não seria ali o Paraíso, o Éden, onde<br />
encontrariam os anjos do Senhor.<br />
— Não! Não penses que este lugar é o Paraíso que os<br />
homens tanto sonham um dia herdar. Na verdade, vós ireis<br />
começar uma nova vida neste lugar, e encontrareis muitos<br />
obstáculos até conseguirem se estabelecer definitivamente e<br />
viver dias de paz. — o comentário de Granuzael fora austero e<br />
intimidador.<br />
— Que tipo de obstáculo poderemos encontrar em um<br />
lugar tão belo como este? — questionou Etiènne.<br />
— Os obstáculos que o próprio destino vos revelará. Agora<br />
vamos voltar, tu tens uma missão importante.<br />
— Que missão seria essa? — indagou.<br />
— Tens que buscar teu irmão. Ele precisa de tua ajuda neste<br />
momento. Vamos! — Granuzael encolheu suas enormes asas e<br />
passou a frente de Etiènne, acenando para que ele o seguisse.<br />
Retornando ao salão principal, por onde haviam descido as<br />
escadas até o fabuloso patamar, Granuzael pediu a sua filha<br />
que conduzisse Etiènne até a floresta. O francês estava ansioso<br />
em poder voltar e reencontrar seu irmão. Queria contar-lhe<br />
tudo o que vira e preparar a viagem o quanto antes. Granuzael<br />
despediu-se de Etiènne com um carinhoso abraço. Sentiu-se<br />
alegre e verdadeiramente feliz, com aquele reconfortante<br />
abraço de um ser tão sobrenatural. Sentiu o perfume no ar,<br />
uma enorme paz caiu sobre ele. Estava admirado com aquele<br />
Vangi esplendoroso. Apertou-lhe a mão, e deixou-o, com certa<br />
relutância.<br />
92
Sindazel acompanhou Etiènne pelas rochosas paredes de<br />
cristal. Andaram bastante até que aos poucos, as brilhosas e<br />
alvas pedras de cristal foram dando lugar às cinzentas e<br />
escuras rochas da gruta por onde ele havia entrado.<br />
Ainda andaram por longo tempo entre fendas enormes e<br />
sombrias até chegarem à entrada da gruta. <strong>Era</strong> como se fosse<br />
um gigantesco labirinto. Voltar sozinho até a aquele lugar, o<br />
qual Sindazel o informara que se chamava Vangilla, seria<br />
impossível. Jamais conseguiria se lembrar por onde passar<br />
dentro de toda aquela escuridão. Pensava como Sindazel<br />
podia se movimentar com tanta facilidade naquele jogo de<br />
paredes rochosas. Ao chegarem bem próximos à saída da<br />
gruta, Sindazel segurou a mão de Etiènne, e fez com que ele<br />
olhasse dentro de seus olhos. A beleza dela era descomunal.<br />
Fitando os olhos da bela Vangi, ele falou com palavras<br />
entrecortadas:<br />
— Nunca mais iremos nos ver, não é verdade?<br />
— Nossas vidas são muito diferentes. Conhecê-lo foi uma<br />
honra muito grande para mim. Tu não imaginas o quanto meu<br />
povo esperou por este momento, e justo eu, tive este<br />
maravilhoso privilégio.<br />
— Responda-me, por favor... Eu poderei vê-la novamente?<br />
— Não creio! Mas quero que saibas, quando estiveres em<br />
tua nova morada, estarei te acompanhando to<strong>dos</strong> os dias de<br />
tua vida. — Sindazel estendeu seus braços a Etiènne,<br />
entregando-lhe um reluzente cordão prateado, porém, não de<br />
uma prata comum, mas de algum material desconhecido para<br />
ele. O cordão trazia um amuleto exatamente igual ao que<br />
Claudia, a tia de Leon, havia dado a seu sobrinho na noite em<br />
que foram encarcera<strong>dos</strong>. —Aceite este presente, é a insígnia de<br />
nosso povo. Leve-o sempre com você, junto a seu peito. Estarei<br />
presente em cada momento, onde quer que vá, lá estarei eu,<br />
acompanhando-o em espírito.<br />
93
— Eu aceito! — Etiènne ficara emocionado. — Levarei não<br />
só o presente, mas também seu belo rosto e sua doce voz,<br />
eternamente em meu coração. Não importa o que diga agora,<br />
Sindazel. Mas eu prometo que iremos nos ver novamente,<br />
antes do que possa imaginar! — Exclamou com uma certeza<br />
de que somente ele era capaz. Estava encantado com a Vangi,<br />
e imaginar que não a reencontraria futuramente era algo que<br />
não podia aceitar. Por que teria o destino o levado até aqueles<br />
seres? Apenas para que indicassem uma nova terra? Não,<br />
certamente o seu encontro com Sindazel ocultava algo mais.<br />
Seu peito arfava com uma emoção inexplicável. Sempre fora<br />
muito espontâneo com suas novas amizades, se entregando de<br />
todo o coração, mas diante de Sindazel, não era apenas sua<br />
peculiar espontaneidade que lançava seu coração em<br />
abrasadoras chamas de desejo, que o consumiam enquanto<br />
caminhavam. Que tipo de feitiço teria aquela criatura lançado<br />
sobre ele, para que se sentisse tão atraído? Como explicar?<br />
Estava amando Sindazel!<br />
— Não diga isso, como podes prometer algo que não está a<br />
teu alcance? Como podes prometer me reencontrar? Tu, a<br />
quem encontrei pelas mãos do destino. Não pode controlar o<br />
destino. Vou considerar tuas palavras como um sau<strong>dos</strong>o<br />
desejo em meu coração. — ao dizer estas palavras, mais uma<br />
vez Sindazel aproximou-se de Etiènne e passou sua suave mão<br />
no rosto dele, fazendo-o desfalecer. Etiènne acordaria minutos<br />
mais tarde, em segurança, próximo a entrada da gruta<br />
recostado em uma pedra lisa. Teria retrucado, se houvesse<br />
chance, dizendo que Deus era o verdadeiro Caminho e destino<br />
de to<strong>dos</strong>, sendo bon<strong>dos</strong>o e cari<strong>dos</strong>o com seus devotos servos,<br />
e por Sua mão Santa, iria reencontrá-la. No fundo, Etiènne<br />
acreditava que Sindazel e seu pai eram verdadeiros anjos do<br />
Senhor.<br />
94
Sindazel voltou para seu lar e procurou seu pai<br />
imediatamente. Estava eufórica com o que acontecera e queria<br />
muito conversar com ele. O fato de ter excitado Etiènne mexeu<br />
muito com Sindazel, pois as vangis, ao contrário de como<br />
acontece com as mulheres humanas, só conseguem estimular<br />
os homens de sua raça quando estão em período de<br />
fertilidade. E nenhuma Vangi em toda Vangilla, ficou fértil<br />
nos últimos quarenta anos. Isto já vinha preocupando o povo<br />
Vangi há muito tempo.<br />
Quase não se continha de alegria, acreditando que estivesse<br />
fértil, mas descobriria mais tarde, que tudo não passara de um<br />
mal entendido. Descobriria que na verdade, os homens<br />
ficavam estimula<strong>dos</strong> a qualquer momento, não dependendo<br />
da fertilidade de suas mulheres. Ficaria decepcionada por um<br />
tempo, mas depois sua estima e paixão por Etiènne cresceriam<br />
de uma forma incontrolável. Granuzael conversou<br />
demoradamente com sua filha, e temeu que pudesse ter de<br />
enfrentar problemas sérios entre seu povo por causa das novas<br />
sensações de Sindazel. Em breve seu receio se tornaria<br />
realidade.<br />
Enquanto os problemas não apareciam, toda a Vangilla<br />
estava em festa, porque a velha profecia do Dragão Dourado<br />
enfim estaria se concretizando.<br />
Os Filhos da Luz<br />
Serão trazi<strong>dos</strong> pelas Asas da Eternidade!<br />
Os Filhos da Floresta<br />
Testemunharão o alvorecer de seus últimos dias!<br />
Tudo será renovado, e uma nova era eclodirá!<br />
95
D<br />
CAPÍTULO VI<br />
Surpresas agradáveis<br />
urante a fria madrugada em que o senhor de Amiens<br />
estava fora da cidade, fato que não ocorria há muitos<br />
meses, os prisioneiros amarguravam mais uma noite de<br />
sofrimento e tensão. Alguns com sérios ferimentos e outros<br />
com o orgulho destruído. Restava apenas a esperança de mais<br />
um dia de vida ou, quem sabe, um milagre que os pudesse<br />
salvar.<br />
Grassac aproximou-se de Dízier para verificar seu grave<br />
ferimento, como vinha fazendo desde que fora levado por<br />
Alain Dumas àquele cárcere. Sentou perto do taberneiro e<br />
ficou conversando acerca <strong>dos</strong> últimos acontecimentos.<br />
Principalmente pelos momentos vivi<strong>dos</strong> entre ele e os irmãos<br />
camponeses na cidade de Calais. Confirmara a veracidade das<br />
informações que chegavam diariamente das cidades<br />
litorâneas. A invasão inglesa era iminente. Dízier aproveitou o<br />
momento de prosa e também contou ao forasteiro como fora<br />
capturado. Confessou que o julgava culpado pelo<br />
encarceramento de to<strong>dos</strong> e, ficou decepcionado ao saber que o<br />
verdadeiro traidor do grupo era Paul Drassarc, o lenhador, ou<br />
melhor, Gallard Gellion, seu verdadeiro nome. Como<br />
puderam conviver com um traidor durante tanto tempo sem<br />
nada perceberem, pensou Dízier. <strong>Era</strong> difícil aceitar essa<br />
lamentável falha. <strong>Era</strong>, na verdade, imperdoável! Não estariam<br />
agora prestes a pagar com suas próprias vidas pelo erro de
julgamento, de alguém que sequer confirmaram, em nenhum<br />
momento, a história de seu passado? Quantos homens que se<br />
diziam isola<strong>dos</strong> e solitários, praticamente vivendo em reclusão<br />
em seu próprio lar, seriam falsos como aquele Gallard Gellion,<br />
dizendo que sonhavam com uma nova terra, para viver longe<br />
de tiranos como Martin Lacroix? A culpa lhe caía com um<br />
peso ainda maior e insuportável, pois fora ele mesmo quem<br />
decidira aceitar o falso lenhador como membro do Conselho,<br />
numa noite em que Etiènne o havia levado à sua taberna. Não<br />
obstante, teria de dividir essa culpa com o próprio Etiènne,<br />
que conheceu Gallard, pelo nome de Paul Drassarc, numa de<br />
suas longas caçadas pela montanha Serena e foi facilmente<br />
convencido por aquele homem eloqüente e sedutor, a<br />
acreditar em suas falsas histórias e desejos. Comovido,<br />
acreditando que aquele homem era como seu próprio irmão<br />
ou seu fiel amigo Leon Troujard, caiu no ardil e levou-o até<br />
Dízier.<br />
Grassac e o taberneiro ficaram conversando durante horas.<br />
<strong>Era</strong> como se fosse a última conversa de suas vidas. Apesar do<br />
rigoroso frio e da umidade do calabouço, os dois se perderam<br />
na prosa e depois <strong>dos</strong> malfada<strong>dos</strong> acontecimentos, falaram<br />
ainda de vários assuntos sobre suas vidas.<br />
Já estava praticamente amanhecendo e os dois exaustos<br />
haviam decidido descansar, quando ouviram o barulho de<br />
correntes e chaves. Ficaram apreensivos. Grassac afastou-se<br />
ligeiramente para uma das paredes e ficou sentado, de costas<br />
para a rocha e pernas esticadas. Com a cabeça abaixada e<br />
olhos semicerra<strong>dos</strong>, fingia dormir. Porém, muito atento. Dízier<br />
também fingia dormir, mas o medo era superior a sua atenção.<br />
Ferido, fraco e com muitas dores, nada podia fazer a não ser<br />
esperar pelo pior a cada vez que a porta de seu cativeiro se<br />
abria.<br />
Um último estalar metálico soou antes que o sinistro som<br />
do ranger da porta ecoasse dentro da cela. O incômodo<br />
barulho não durou mais do que dois segun<strong>dos</strong>. A porta não<br />
97
havia se aberto totalmente, concluiu Grassac. Abriu<br />
lentamente um <strong>dos</strong> olhos e percebeu um vulto entrando na<br />
cela. Trajava roupas escuras e usava um capuz cobrindo a<br />
cabeça. Ficou ainda mais atento à situação. De qualquer forma,<br />
não estava acorrentado e ainda podia se defender, ainda que<br />
fosse apenas com suas próprias mãos. O misterioso indivíduo<br />
se aproximou primeiramente de Gien, que estava acorrentado<br />
na parede do fundo. Grassac não perdia um movimento<br />
sequer do visitante noturno. Observou que se curvara para<br />
identificar o camponês e logo em seguida se afastou. Olhou ao<br />
redor da escuridão. Percebeu Dízier deitado no meio do fétido<br />
ambiente. Outra olhada para o lado e, por um instante Grassac<br />
pensou que o misterioso homem pudesse ter percebido que ele<br />
o estava espiando. O estranho parou na direção de Grassac e<br />
ficou observando de longe. Parecia decidir-se sobre avançar<br />
ou não. Logo a dúvida de Grassac terminara, pois o homem<br />
veio cautelosamente em sua direção. Apesar de sua<br />
experiência, Grassac estava nervoso com as circunstâncias.<br />
Afinal, estava muito escuro e ele desarmado. O homem ao se<br />
aproximar de Grassac tirou a mão de dentro da roupa escura<br />
com um objeto pequeno. Grassac percebeu o movimento mas<br />
não pôde identificar o que era. Seu nervosismo aumentava a<br />
cada passo do desconhecido. Quando faltavam apenas dois<br />
passos para chegar a Grassac, segurou o objeto com as duas<br />
mãos levando-o sobre a cabeça, agachou-se e desferiu um<br />
golpe na direção do peito de Grassac.<br />
Quando percebeu o movimento <strong>dos</strong> braços do atacante,<br />
Grassac recolheu rapidamente as duas pernas e de um só<br />
golpe, atingindo-o no peito, atirou longe o homem de capuz.<br />
A violência com que os pés de Grassac atingira o homem fora<br />
tão grande que ele deixou cair o objeto que carregava. O som<br />
pesado de um metal batendo ao solo era inconfundível.<br />
Tratava-se de um punhal, adaga ou outro tipo de lâmina que<br />
agora, estava perdido no breu. Grassac levantou-se<br />
desesperado atrás do possível punhal. O misterioso homem<br />
98
correu em direção a porta, mas trombou com o guarda que ao<br />
ouvir o barulho, tentava entrar abruptamente na cela. O<br />
choque entre o sombrio homem e o carcereiro fora<br />
providencial. Grassac, que rapidamente se pôs de pé após o<br />
duro golpe desferido em seu atacante, aproveitou a<br />
oportunidade da patética cena e avançando sobre o soldado<br />
tirou-lhe a espada e encurralou os dois homens. Não pôde<br />
conter sua satisfação após identificar, à luz das tochas no<br />
corredor, que o homem que havia tentado lhe matar era o<br />
próprio Gallard Gellion.<br />
— Mas que grande surpresa! Tentaste me matar e agora<br />
será a vítima, pobre coitado! — Grassac falava e ao mesmo<br />
tempo intimidava com a espada Gallard e o carcereiro. O<br />
mercenário, apavorado, procurava ficar atrás do carcereiro,<br />
fazendo-o de escudo humano.<br />
— Calma, você está cometendo um erro! Eu posso tirá-los<br />
daqui, pense bem... como irão sair do castelo? Eu tenho um<br />
esquema perfeito, você precisa me ouvir... — Gallard, a<br />
despeito de sua bela voz e eloqüência, mais uma vez falava<br />
nervosamente e sem parar, tentando dissuadir Grassac de<br />
matá-lo, o que a esta altura parecia ser impossível.<br />
— Não importa! — respondeu — Chegaste ao dia de teu<br />
Juízo Final. Não viverá para ver a próxima aurora. Que Deus<br />
seja pie<strong>dos</strong>o com você, víbora! Pois de mim, não terás piedade,<br />
assassino amaldiçoado!<br />
Dízier, que arrastou-se até a porta da cela, chamou a<br />
atenção de Grassac sobre os outros companheiros e, que ele<br />
estaria trocando a oportunidade de salvar a to<strong>dos</strong> por uma<br />
vingança pessoal, que já havia o consumido por anos.<br />
— Pense amigo, o que lhe é mais importante no momento?<br />
Tirar a vida de um homem que nunca teve escrúpulos, ou<br />
salvar a vida de vários amigos que sempre quiseram o bem<br />
aos outros. — Dízier falava em tom de imploração — Sabes<br />
que não temos muito tempo de vida aqui. Provavelmente<br />
amanhã já irão matar um ou dois de nós. Pense em Gien, o<br />
99
irmão dele morreu pela nossa causa, por tentar nos salvar.<br />
Faça com que a morte dele seja compensada. Nos ajude a sair<br />
daqui!<br />
— Sim, ouça seu amigo — interrompeu Gallard — afinal,<br />
minha morte não irá modificar o passado, se é que me<br />
entende...<br />
— Cale-se! — gritou Grassac — Não quero ouvir mais a sua<br />
maldita voz, a não ser para nos dizer como sairemos daqui!<br />
Após isso decidirei o que fazer contigo!<br />
— Mas como saberei que não me matará!?<br />
— Não interessa! De qualquer modo não tem muita<br />
escolha, ou nos ajuda, ou morre agora mesmo!<br />
Grassac obrigou o carcereiro a abrir todas as celas e<br />
destrancar os grilhões que prendiam seus amigos. To<strong>dos</strong><br />
ficaram admira<strong>dos</strong> ao ver Grassac com um uniforme da<br />
guarda de Amiens, os tirando do cativeiro. Estavam esgota<strong>dos</strong><br />
e não questionaram nada naquele momento, apenas<br />
limitaram-se a seguir as instruções de Grassac.<br />
Com uma das tochas, Grassac retornou à cela onde estivera<br />
preso e procurou o objeto metálico que havia caído durante a<br />
confusão. Encontrou um pequeno punhal e o guardou na<br />
cintura, travando-o entre o cinto de couro do uniforme que<br />
estava usando e abdômen.<br />
Com voz firme, ordenou que Gallard os mostrasse o<br />
caminho da saída. Michel estava intrigado com a aspereza<br />
com que Grassac falava com seu amigo lenhador, o suposto<br />
Paul. Teria uma grande decepção ao saber do verdadeiro<br />
nome e objetivo do traidor.<br />
Gallard os conduziu até o final do corredor e puxando a<br />
tocha-alavanca, que já era de seu conhecimento, abriu a<br />
passagem secreta para os ex-prisioneiros, que ao entrarem na<br />
oculta sala de torturas, ficaram horroriza<strong>dos</strong> com os<br />
equipamentos ali escondi<strong>dos</strong>. Enquanto Gien vigiava a<br />
passagem do corredor para a sala de torturas, um a um saíam<br />
os membros do Conselho, a exceção de Leon, que apoiava sua<br />
100
tia Claudia pelo braço. To<strong>dos</strong> foram atravessando a macabra<br />
sala até chegarem à porta que dava para a saída secreta que os<br />
levaria ao bosque.<br />
Antes de deixarem o castelo, Grassac ainda prendeu o<br />
carcereiro a uma das tenebrosas máquinas de tortura.<br />
Certificou-se de que o homem ficara bem amarrado e<br />
devidamente amordaçado.<br />
Aos empurrões, conduziu Gallard através do túnel pelo<br />
qual seus amigos já haviam passado. O túnel era muito escuro<br />
e com a pouca luminosidade produzida pela tocha que<br />
carregava, podia perceber que as rochosas paredes estavam<br />
recobertas por muito lodo. O cheiro era horrível e haviam<br />
incontáveis ratos ziguezagueando pela passagem. Chegando<br />
ao final do túnel, passaram pela abertura que saía por trás de<br />
uma folhagem densa. A esta altura, to<strong>dos</strong> já estavam<br />
conversando e tentando esclarecer tantas dúvidas que<br />
pairavam no ar. Dízier, extremamente abatido, estava deitado<br />
na relva, muito ofegante. Seu ferimento piorara bastante.<br />
Para surpresa de to<strong>dos</strong>, Grassac tão logo surgiu das<br />
folhagens, desferiu um violento soco na face de Gallard,<br />
desacordando-o. Michel, mesmo abatido e muito ferido,<br />
esboçou uma reação e partiu na direção de Grassac, mas foi<br />
seguro por Gien instintivamente.<br />
Grassac, então aproveitou a oportunidade e esclareceu os<br />
fatos a to<strong>dos</strong>, que ouviam estupefatos tudo que o forasteiro<br />
revelava. Parte da conversa era do conhecimento de Gien, que<br />
concordava com o que Grassac ia dizendo assentindo com a<br />
cabeça, olhando para seus amigos.<br />
Ao final do discurso, Michel de cabeça baixa, aproximou-se<br />
do forasteiro e repousando sua mão direita no ombro de<br />
Grassac, levantou a cabeça encarando-o nos olhos e pediu-lhe<br />
desculpas pelo mal juízo que fizera dele. Sentiu imensa alegria<br />
em saber que seu irmão Etiènne, no fundo, tinha razão.<br />
Grassac percebeu que naquele momento, nascia grande<br />
confiança nele e, sentindo compaixão pelo irmão de seu<br />
101
amigo, puxou-o contra seu peito e deu-lhe um forte abraço, em<br />
sinal de que o perdoava pela dúvida a seu respeito.<br />
Preocupado com a segurança de to<strong>dos</strong>, Gien chamou a<br />
atenção para que saíssem logo do local onde estavam, pois em<br />
breve iriam descobrir sobre a fuga deles.<br />
Os convidou para que o acompanhassem até a casa de um<br />
tio seu, que era dono de uma das mais famosas ferrarias<br />
daquela região da França.<br />
— Meu tio não irá se importar em nos esconder até que<br />
tudo se acalme novamente. Lá estaremos protegi<strong>dos</strong>.<br />
— Gien tem toda a razão — concordou prontamente<br />
Grassac — Vocês devem seguí-lo para que se salvem. Eu irei<br />
atrás de Etiènne e o levarei até vocês. Gien me ensinará o<br />
caminho até a ferraria. To<strong>dos</strong> estão de acordo com isto?<br />
Michel, apesar de seu coração pedir para que<br />
acompanhasse Grassac na busca de seu irmão, sabia que não<br />
estava em condições físicas e acabaria o atrapalhando. Olhou<br />
para os outros amigos incitando a aprovação de to<strong>dos</strong>. Dízier e<br />
Gien assentiram com a cabeça. Michel voltou-se para Leon e<br />
percebeu que seu grande amigo estivera mergulhado em<br />
profunda conturbação. <strong>Era</strong> como se houvesse uma pesada<br />
sombra sobre seu semblante. Estava muito sério e cabisbaixo.<br />
Estranhou, mas voltou-se para Grassac e concordou.<br />
— Sim, to<strong>dos</strong> estão de acordo. Mas... o que vai fazer com<br />
Paul... quero dizer, com este salafrário?<br />
— Eu pensava em tirar-lhe a vida mas, Dízier tem razão. Já<br />
perdi muito tempo com esta loucura e mesmo que eu o mate,<br />
não me livrarei das terríveis lembranças e nem trarei meu pai<br />
de volta à vida. — Grassac por um momento fitou Gallard<br />
desacordado no solo e continuou falando — Talvez eu devesse<br />
cortar-lhe a língua ferina? Não! Vou amarrá-lo e o deixarei<br />
preso atrás destes arbustos. Quem sabe os ratos venham fazer<br />
amizade com ele. Afinal, não são da mesma laia? Talvez até<br />
sejam parentes, mas temo estar ofendendo aos pobres ratos.<br />
102
Agora vão, o dia já está clareando e logo teremos companhia.<br />
Deixem que cuido do traidor.<br />
Gien deu as instruções para Grassac de como ele deveria<br />
fazer para chegar à ferraria de seu tio e, logo após juntou-se<br />
aos demais companheiros e partiram.<br />
<br />
Os primeiros raios solares começaram a traspassar as finas<br />
nuvens em mais uma das belas auroras de Amiens. O tempo já<br />
não estava tão sombrio e o canto <strong>dos</strong> pássaros podia ser<br />
ouvido com clareza em to<strong>dos</strong> os recantos da Montanha Serena.<br />
Etiènne acordou assustado, olhou ao seu redor tentando<br />
identificar onde estava. A lembrança de Sindazel ainda era<br />
muito forte em sua mente. Não conseguia esquecer tão bela<br />
imagem. Deu um forte suspiro e recostando-se novamente à<br />
rocha sobre a qual dormira, ficou imaginando como faria para<br />
reencontrar aquele maravilhoso ser, por quem estava<br />
perdidamente apaixonado em seu coração.<br />
Estava em seu transe contemplativo quando, de repente,<br />
percebeu assustado que uma raposa avançava velozmente em<br />
sua direção pelo seu flanco esquerdo, emitindo um rosnado<br />
louco e exibindo suas afiadas presas. Sem ação, aguardou<br />
boquiaberto o ataque da feroz criatura que, ao saltar sobre ele,<br />
foi atingida por uma enorme seta. A raposa simplesmente<br />
despencou sobre Etiènne, mas o violento impacto foi a única<br />
contusão sofrida por ele. A seta havia atingido um ponto vital<br />
da fera. Muito assustado, desvencilhou-se do animal morto e<br />
levantou, procurando com muita curiosidade, e ainda com o<br />
coração quase à boca, o autor de tão precisa pontaria.<br />
Vagarosamente caminhava em sua direção, um homem<br />
trajando uma indumentária já conhecida pelos franceses. O<br />
uniforme <strong>dos</strong> arqueiros de elite do reino bretão.<br />
Instintivamente agarrou sua acha de arremesso num<br />
movimento de defesa, encostando-se sobre a rocha na qual<br />
estivera descansando há pouco e sonhando com Sindazel.<br />
103
Procurando demonstrar amistosidade, o arqueiro agachouse<br />
e largou a seus pés, o longo arco que trazia nas mãos, e<br />
ainda deixou também a pequena arcobalista que vinha<br />
pendurada em sua cintura. Exibindo suas mãos vazias e<br />
falando um “francês” impecável, o inglês tentou um pacífico<br />
contato com Etiènne.<br />
— Amigo, não tenha medo! Estou aqui em paz. — sua voz<br />
era tranqüila, e ganhou suavidade ao misturar-se com o<br />
cantarolar matinal <strong>dos</strong> pássaros. Mesmo assim, Etiènne não<br />
estava nada tranqüilo, e questionou ao inglês como alguém<br />
trajando tal uniforme poderia estar em paz?<br />
— Muito engraçado, não consigo imaginar como um<br />
maldito arqueiro inglês aparece aqui, na França, vestindo um<br />
uniforme de guerra, possa estar falando de paz!?<br />
— Sei que é difícil imaginar, ou melhor, acreditar. Mas será<br />
que não mereço crédito? Acabei de livrar-te das presas de uma<br />
raposa. Se quisesse poderia ter acertado seu coração, mas não<br />
o fiz. Ou mesmo poderia apreciar como mero espectador, a<br />
conclusão do ataque da fera. Não quero feri-lo, muito pelo<br />
contrário, sou apenas um desertor precisando ser acolhido na<br />
terra de minha falecida mãe, que Deus a tenha em seus<br />
misericordiosos e acalentadores braços.<br />
O estrangeiro continuou conversando calmamente com<br />
Etiènne, que estava atento a qualquer movimento suspeito que<br />
o inglês viesse a fazer.<br />
— Não me julgue como um idiota. Sei que a esta altura já<br />
estaria com uma seta em meu peito. Porém, o que me intriga, é<br />
o fato de querer se aproximar. Por qual motivo seria tua<br />
deserção? — Etiènne fez a primeira de uma série de perguntas<br />
que faria ao estranho.<br />
Possuía um hábito que se irmão Michel considerava um<br />
defeito muito grande. Se envolvia com qualquer estranho com<br />
uma facilidade impressionante. Em menos de uma hora<br />
Etiènne já estaria se tornando espontaneamente amigo do<br />
inglês. Apesar desta atitude, sendo a única exceção o falso<br />
104
lenhador, Etiènne jamais errara na escolha de suas amizades e,<br />
todas elas sempre lhe foram muito úteis na vida.<br />
Após uma série de explicações e depois de responder a<br />
inúmeras e incansáveis perguntas de Etiènne, o arqueiro<br />
bretão finalmente conquistou a confiança do francês. Afinal,<br />
era impossível imaginar que alguém pudesse inventar uma<br />
estória com tantos detalhes como a que o estrangeiro havia<br />
contado a ele.<br />
O nome do inglês era Peter Wells, o qual seria<br />
carinhosamente substituído num futuro próximo, pelo apelido<br />
de Pete (Pit). De cabelos claros e franzino, Peter não negava<br />
ser um arqueiro. Não precisava ser muito musculoso para<br />
utilizar seu longo arco, ou sua arcobalista.<br />
Peter Wells, era filho de uma francesa chamada Jacqueline,<br />
com um lorde bretão. Ainda muito nova, fora levada para a<br />
Inglaterra e obrigada a viver como escrava deste lorde. A<br />
jovem francesa havia sido entregue como tributo por um<br />
corrupto senhor feudal de Lyon, tirando-a do seio de sua<br />
família.<br />
Peter falou a Etiènne sobre algumas histórias bizarras que<br />
sua mãe sempre lhe contava a respeito <strong>dos</strong> ingleses. Seu sonho<br />
sempre fora voltar à terra de origem de sua mãe e viver uma<br />
vida por ela, uma vida que ela sempre sonhara e lhe tiraram a<br />
oportunidade de ter.<br />
Para isso e, seguindo orientações de sua sau<strong>dos</strong>a mãe,<br />
Peter, desde cedo conquistou a confiança de seu severo pai.<br />
Dedicou-se muito na academia para tornar-se arqueiro de elite<br />
e esperou com grande ansiedade o dia em que seria enviado à<br />
França. Já havia participado de duas batalhas, mas ambas<br />
ocorridas no sul da Escócia. Agora, finalmente teve sua grande<br />
oportunidade e, na primeira noite em território francês, fugiu<br />
do acampamento rumando o mais rápido que podia para o<br />
sul, vindo parar acidentalmente à frente de Etiènne. Mas digase<br />
de passagem, um acidente que se tornou uma agradável<br />
105
surpresa, pois Peter salvara a vida de Etiènne e encontrara a<br />
pessoa que mudaria para sempre sua vida.<br />
Passaram o dia inteiro conversando muito. Peter contou a<br />
Etiènne sobre as batalhas na Escócia, das quais havia<br />
participado. Narrou como os arqueiros ingleses, centenas,<br />
direcionavam suas setas para o exército inimigo, que perdiam<br />
muitos guerreiros e ficavam com a disposição reduzida. O<br />
inimigo ficava horrorizado ao ver o céu escurecer com as<br />
hastes das centenas de setas-punhal que vinham zunindo<br />
alucinadamente em sua direção. Este tipo de seta, conseguia<br />
mesmo perfurar até as armaduras do inimigo. Etiènne não<br />
podia imaginar naquele momento, mas seus compatriotas<br />
iriam testemunhar num futuro próximo, com o preço de suas<br />
próprias vidas nas cidades de Crecy, Poitier e Agincourt, o<br />
poder de que Peter acabara de relatar, durante a Guerra <strong>dos</strong><br />
Cem Anos.<br />
<br />
No dia seguinte, Etiènne acordou e ficou surpreso. Peter<br />
havia acordado bem antes e conseguido alimento suficiente<br />
para os próximos três dias. <strong>Era</strong> um arqueiro experiente e os<br />
vários anos que passou na academia, o tornariam um<br />
sobrevivente mesmo nos mais inóspitos pontos das florestas,<br />
se um dia precisasse. Sabia onde encontrar alimento seguro,<br />
raízes nutritivas, diversos frutos silvestres e animais de caça.<br />
Passaram quase uma semana juntos, se conhecendo,<br />
trocando informações valiosas sobre técnicas de combate e<br />
sobrevivência na floresta.<br />
Ao passar uma semana, Etiènne teve grande felicidade.<br />
Grassac subiu a montanha Serena com um pequeno grupo de<br />
homens e mulheres, foragi<strong>dos</strong> da própria cidade de Amiens.<br />
Etiènne não reconheceu nenhum <strong>dos</strong> amigos entre os que<br />
chegaram com Grassac. O encontro <strong>dos</strong> dois amigos foi<br />
marcado por um forte abraço, e Etiènne logo apresentou Peter<br />
a Grassac. Houve uma certa resistência no início por parte do<br />
106
grupo em aceitar o inglês, mas Grassac colaborou bastante<br />
para que a aceitação do estrangeiro fosse breve. O próprio<br />
Peter, durante os dias que ficou com os novos conheci<strong>dos</strong>, deu<br />
muitas provas de lealdade e que realmente era um desertor do<br />
exército inglês.<br />
— Sabe, estou surpreso! Você nem conhecia o inglês e me<br />
ajudou para que as pessoas o aceitassem! — Exclamou<br />
Etiènne.<br />
— Confio em você, isso me basta. E depois, não há nada<br />
que ele possa fazer de errado que eu não venha a perceber.<br />
Fique tranqüilo.<br />
Grassac, no fundo, confiava muito mais em sua própria<br />
experiência do que nos julgamentos precipita<strong>dos</strong> de Etiènne.<br />
Sabia que podia dar conta do inglês caso fosse necessário, por<br />
isso preferiu terminar prematuramente com a polêmica do<br />
grupo de pessoas, para evitar maiores problemas.<br />
Etiènne, havia perguntado com aflição a Grassac sobre o<br />
paradeiro de seu irmão Michel e os outros amigos. Ficou<br />
muito contente ao saber que to<strong>dos</strong> haviam escapado do castelo<br />
e estavam bem na ferraria do tio de Gien. Lamentou<br />
profundamente a morte de Gourdon Ballec, pois gostava<br />
muito do divertido camponês, sempre alegre e cheio de vida.<br />
Enquanto conversavam sobre o Conselho e as<br />
possibilidades de fuga, Peter ia conquistando a amizade das<br />
pessoas do grupo de foragi<strong>dos</strong>, com suas histórias sobre a<br />
Inglaterra e suas batalhas, além é claro, de procurar estar<br />
sempre servindo aos novos conheci<strong>dos</strong>, mostrando-se<br />
prestativo a todo o momento.<br />
107
A<br />
CAPÍTULO VII<br />
Novos rumos, novos tempos<br />
pós três semanas e, ainda sem notícias de Martin Lacroix,<br />
Catherine, muito apreensiva, ordenou que quase todas as<br />
patrulhas envolvidas no bloqueio de Amiens regressassem ao<br />
castelo para organizar uma busca a seu marido e senhor.<br />
No fundo de seu coração, sentia um certo alívio e até<br />
desejava que ele tivesse sido detido pela guarda do rei Philipe,<br />
mas precisava ter certeza do que realmente havia acontecido.<br />
Se ele estivesse preso e impossibilitado de governar Amiens,<br />
acreditava que com um novo líder na cidade, ela talvez<br />
pudesse tomar as decisões que há muito tempo maquinara, de<br />
mudar-se para Roma, onde vivia seu irmão mais velho. Já<br />
começava a imaginar que poderia levar uma vida tranqüila,<br />
feliz e sem me<strong>dos</strong>.<br />
Por outro lado, se Martin regressasse ou fosse encontrado<br />
pela patrulha que ela estava imaginando preparar para a sua<br />
busca, sabia que iria passar por maus momentos. A fuga <strong>dos</strong><br />
prisioneiros e o fim do bloqueio à cidade iriam irritá-lo<br />
profundamente. Com certeza, estava pondo em risco sua<br />
própria integridade física, mas preferiu prosseguir com seus<br />
planos de desvendar o que realmente havia acontecido com<br />
seu marido. Pior aconteceria a ela se fugisse para Roma e ele<br />
conseguisse interceptá-la antes de completar a fuga.<br />
Catherine, já há muito tempo, temia por sua vida dentro<br />
do castelo, e estava disposta a fugir de Amiens na primeira
oportunidade, mas desconfiava de quase to<strong>dos</strong> à sua volta,<br />
por isso resistia a esta tentação. Já havia despachado<br />
secretamente uma boa quantidade de roupas e utensílios<br />
pessoais, através de uma de suas aias de confiança, para além<br />
das fronteiras de Amiens.<br />
Estava tudo preparado para sua fuga, que seria amparada<br />
por outra de suas aias, caso esta necessidade viesse a se<br />
confirmar.<br />
<br />
Com o fim do bloqueio ocasionado pelo reagrupamento<br />
de patrulhas ordenado por Catherine, muitas pessoas saíram<br />
da cidade. Os membros do Conselho tiveram sua grande<br />
oportunidade de fuga nestes dias. Foram rápi<strong>dos</strong> e planejaram<br />
tudo da ferraria do tio de Gien. Mesmo sem os suprimentos<br />
que foram reti<strong>dos</strong> pelo senhor de Amiens, decidiram que a<br />
partida deveria ser imediata. O único e enorme problema<br />
ainda a resolver, era encontrar Etiènne, que continuava<br />
desaparecido. Ninguém obteve qualquer notícia do irmão<br />
mais novo <strong>dos</strong> Montbard. Mesmo Grassac, que havia saído em<br />
busca do irmão de Michel, ainda não retornara com alguma<br />
novidade, estando também desaparecido nos últimos vinte<br />
dias.<br />
Mal sabiam eles, Grassac já havia encontrado Etiènne com<br />
seu novo conhecido, o inglês Peter. Ele não retornou logo para<br />
a ferraria porque não achou muito prudente levar o inglês com<br />
eles, apesar de Peter falar a língua francesa tão bem como<br />
qualquer nativo de Amiens.<br />
Grassac achou melhor preparar a estrutura de fuga a<br />
partir do acampamento na montanha, que já contava com um<br />
enorme grupo de pessoas. Durante as últimas duas semanas,<br />
havia conseguido um bom número de fugitivos apesar do<br />
bloqueio. Agora, sem o bloqueio, planejava buscar em<br />
segurança os outros membros do Conselho.<br />
109
Os três senta<strong>dos</strong> ao redor de uma fogueira, acertavam os<br />
últimos detalhes da busca aos demais companheiros. Etiènne,<br />
a despeito da incredulidade <strong>dos</strong> amigos quando mencionara<br />
pela primeira vez sobre a Vangilla, resolveu contar aos dois<br />
amigos, desta vez com to<strong>dos</strong> os detalhes de que era capaz de<br />
lembrar-se, sobre o que lhe acontecera na gruta, e sobre<br />
Sindazel. Ouviram a tudo com muita paciência e ficaram<br />
maravilha<strong>dos</strong> com a história. De vez em quando se<br />
entreolhavam, como que buscando apoio um no outro para<br />
acreditar naquela fantasia toda. Peter, mais cético que Grassac<br />
quanto ao que Etiènne narrava, questionava vários detalhes.<br />
Etiènne foi explicando tudo pacientemente, mas por fim<br />
exibiu aos amigos o cordão que Sindazel lhe dera. O brilho do<br />
estranho material emudeceu os companheiros de Etiènne.<br />
— Eu nunca vi nada igual a isso! — comentou surpreso,<br />
Peter, olhando em seguida para Grassac.<br />
— Posso pegar? Indagou Grassac.<br />
— Claro, mas não irei tirar do pescoço. Ajoelhou-se<br />
próximo ao amigo, colocando o cordão ao alcance das mãos de<br />
Grassac.<br />
Peter, também, louco de curiosidade, esticou o braço e<br />
segurou o cordão, admirando-o.<br />
Os dois ficaram com os olhos arregala<strong>dos</strong>, ainda<br />
incrédulos de que tudo o que ouviram pudesse ser verdade.<br />
— Agora chega! Acreditam em mim?<br />
Os dois se entreolharam e assentiram com a cabeça.<br />
— Mas Etiènne, você tem que concordar que é uma<br />
história absurda e impossível de acreditar! — Comentou<br />
Grassac.— Por Deus! Terei ingerido a mesma erva<br />
alucinógena que você? Mas creio em sua história, amigo.<br />
— Sim, eu sei! É difícil acreditar, mas é a mais pura<br />
verdade e será nossa salvação. Agora temos realmente uma<br />
nova terra para buscar e viver! — Etiènne falava com fervor e<br />
com um intenso brilho nos olhos. E sempre pensava em rever<br />
Sindazel, em seus desejos mais secretos.<br />
110
Ficou até difícil de se concentrarem novamente no<br />
planejamento para a busca <strong>dos</strong> demais membros do Conselho,<br />
mas algumas horas a mais foram suficientes para que tudo<br />
fosse acertado.<br />
Se desfizeram das roupas do inglês e conseguiram junto<br />
às outras pessoas do grupo, roupas mais adequadas para Peter<br />
que, trajando roupas civis, desceu à cidade com Grassac para<br />
buscar Michel Montbard e os outros.<br />
Na ferraria, to<strong>dos</strong> estavam ainda muito apreensivos com<br />
os tumultos nas ruas de Amiens. Já sabiam que o bloqueio<br />
havia terminado, mas temiam por suas vidas. Tentavam<br />
organizar suprimentos através do tio de Gien, e aos poucos<br />
foram conseguindo bastante alimento e roupas.<br />
Leon continuava mergulhado em profun<strong>dos</strong><br />
pensamentos, ao lado de sua tia Claudia. Praticamente não<br />
participou de nenhuma ação ou decisão junto a Gien, Michel e<br />
Dízier.<br />
De tudo que fora conversado, organizado e decidido, com<br />
toda certeza a mais incômoda situação resolvida fora a<br />
exclusão de Dízier do grupo, devido ao estado grave de sua<br />
saúde. Seus ferimentos não permitiriam que ele fizesse uma<br />
longa jornada, porque além de colocar em risco sua própria<br />
vida, atrasaria demasiadamente a grande caravana que estava<br />
se pensando em fazer para sair de Amiens. Ficou decidido que<br />
ele ficaria na ferraria, aos cuida<strong>dos</strong> do tio de Gien, já que não<br />
tinha parentes e sua taberna havia sido totalmente incendiada.<br />
— Amigo, não se preocupe! Eu voltarei para buscá-lo<br />
assim que estivermos estabeleci<strong>dos</strong> num local seguro. É uma<br />
promessa! — Afirmou Michel, vendo que seu amigo estava<br />
profundamente abatido com a decisão, pois era um <strong>dos</strong> líderes<br />
e mentor do movimento. Depositara todas as esperanças de<br />
sua vida nessa empreitada, e agora estava ficando de fora.<br />
Mas Dízier sabia que esta era a decisão mais sensata. Não<br />
havia como negar isso. Não podia ser egoísta a ponto de<br />
colocar em risco to<strong>dos</strong> os outros amigos por causa de seu<br />
111
desejo de sair de Amiens. Até certo ponto, achou merecido o<br />
seu destino, por ter aceito o falso lenhador entre eles, outrora.<br />
<br />
<strong>Era</strong> bem cedo, quando ouviram-se fortes batidas na porta<br />
da ferraria. To<strong>dos</strong> acordaram assusta<strong>dos</strong>, mas antes mesmo<br />
que pudessem começar com as elucubrações, novas batidas<br />
vieram seguidas de identificação.<br />
— Podem abrir, sou eu, Grassac, vosso amigo!<br />
— Estamos abrindo, aguarde um momento. — respondeu<br />
Michel em tom grave, como que querendo espantar o susto.<br />
Mais tranqüilos, os homens se encaminharam em direção<br />
à porta, mas antes de abri-la, procuraram certificar-se de que<br />
Grassac estava só.<br />
— Quem está o acompanhando?<br />
— É um foragido de Calais, uniu-se a nós. Estamos com<br />
Etiènne na montanha Serena. Já temos dezenas de seguidores<br />
e to<strong>dos</strong> aguardam ansiosos o momento de partirmos!<br />
Michel abriu a porta e os fez entrar apressadamente. Por<br />
alguns instantes a alegria dominou o semblante de to<strong>dos</strong> que<br />
entre sorrisos, se abraçavam como se fosse um reencontro de<br />
meses de separação. Grassac, apresentou Peter aos amigos e<br />
em seguida iniciaram os preparativos para que se<br />
transferissem da ferraria para o acampamento na montanha.<br />
Antes do meio-dia, os amigos partiram da ferraria do<br />
amigável e atencioso tio do camponês Gien, para o agitado<br />
acampamento onde se encontravam os futuros peregrinos,<br />
cheios de esperança, mas ainda receosos de serem captura<strong>dos</strong><br />
pelos guardas de Amiens.<br />
Despediram-se de Dízier e de Gien com uma enorme<br />
tristeza em seus corações. Estava sendo difícil para eles<br />
encarar Dízier, com seus olhos mareja<strong>dos</strong>, sendo obrigado a<br />
ficar de fora de seu sonho.<br />
112
Michel reforçou ao amigo com veemência que o viria<br />
buscar assim que estivessem em local seguro, e<br />
definitivamente estabeleci<strong>dos</strong>.<br />
Saíram e em pouco mais de duas horas chegavam ao<br />
acampamento na montanha. A alegria de Michel e Etiènne ao<br />
se reencontrarem foi comovente. Após tanto sofrimento, após<br />
estar a um passo da morte, Michel estava ali, abraçado a<br />
Etiènne como se este fosse um filho amado. Sentiu os joelhos<br />
fraquejarem e caiu aos pés de seu irmão mais novo, com as<br />
lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto. Mais uma vez estavam<br />
juntos os irmãos Montbard.<br />
Apesar de todas as atitudes irresponsáveis de Etiènne, o<br />
amor que Michel sentia por seu irmão era imenso, e o fazia<br />
perdoá-lo por to<strong>dos</strong> os seus erros.<br />
Mas desta vez, Michel sabia em seu íntimo que ele, e não<br />
Etiènne, fora o errado em não ter acreditado no julgamento<br />
quanto ao errante Grassac, quanto à sua sinceridade e<br />
prestabilidade, que por fim e certamente com a ajuda de muita<br />
sorte, acabou os salvando das masmorras do castelo de Martin<br />
Lacroix.<br />
Os preparativos para a partida da grande caravana foram<br />
prontamente assumi<strong>dos</strong> por Michel, Etiènne e Grassac, que<br />
contaram com a ajuda de Peter, já que Leon continuava com o<br />
comportamento estranho e insistia em manter-se isolado do<br />
grupo, apenas na companhia de sua tia Claudia.<br />
Os dias foram passando e quase tudo estava pronto para a<br />
partida, até que chegou o momento em que Etiènne<br />
compartilhou com seu irmão as novidades e as informações<br />
sobre a gruta, Sindazel, Vangilla e a revelação das novas<br />
terras.<br />
Foram momentos difíceis porque Michel não acreditou<br />
em nada de que seu irmão relatara. Grassac mais uma vez se<br />
envolveu na contenda <strong>dos</strong> irmãos Montbard, tentando fazer<br />
com que Michel se acalmasse.<br />
113
— Amigo, a princípio eu também não acreditei na história<br />
de seu irmão, mas a riqueza <strong>dos</strong> detalhes e o cordão que ele<br />
agora carrega no peito me fizeram mudar de idéia. Considero<br />
que Etiènne mereça um crédito.<br />
— Grassac! Eu não posso colocar em risco a vida de<br />
centenas de pessoas, acreditando nesta história absurda de<br />
Etiènne, de visões de criaturas com asas e cidades fantásticas<br />
de cristal!<br />
— Sabe, Michel, nos conhecemos muito pouco ainda, mas<br />
já é o suficiente para ver que você se acha muito superior ao<br />
seu irmão. Isto o cega para as coisas boas de que ele é capaz de<br />
conquistar e o torna uma pessoa arrogante!<br />
— Ora, não se trata disso!<br />
— Claro que sim! Já notei o seu ar de superioridade. Você<br />
acha que por ser mais velho é o mais sábio, o mais experiente.<br />
Não dá oportunidades a seu irmão para que ele desenvolva<br />
suas próprias buscas, fica por perto o inibindo a todo tempo.<br />
Obrigando-o a sentir-se como uma sombra sua!<br />
Grassac estava sério, falava de forma austera e dura com<br />
Michel. A conversa era definitiva. Estava decidido a<br />
conquistar a liberdade de idéias para seu amigo Etiènne,<br />
dando um corte decisivo em Michel, que de fato, passou a<br />
vida podando as idéias e desejos de seu irmão mais novo,<br />
como se fosse sempre o dono da verdade.<br />
Custou, mas Grassac convenceu Michel de que ele deveria<br />
dar mais crédito a seu irmão, e parar de a todo momento<br />
condenar suas idéias, ao invés de analisá-las com mais<br />
seriedade e credulidade.<br />
Mais dois dias se passaram e tudo estava preparado para<br />
a saída da enorme caravana, contando com centenas de<br />
pessoas, não só de Amiens, mas a esta altura, de vários pontos<br />
da região norte da França.<br />
Já estava ficando demasiadamente arriscado esperar mais<br />
tempo, devido a enorme quantidade de pessoas reunidas no<br />
acampamento da montanha. Várias colunas de fumaça subiam<br />
114
por entre as árvores diariamente, provenientes das dezenas de<br />
fogueiras que realizavam para se esquentarem e preparar seus<br />
assa<strong>dos</strong>.<br />
<br />
As coisas não iam bem ao norte, na região de Calais.<br />
Milhares de solda<strong>dos</strong> do exército inglês já ocupavam as praias,<br />
com centenas de tendas. Arqueiros de elite, campeões,<br />
piqueiros e escaramuçadores se espalhavam como um mar de<br />
homens por toda a parte. Os comandantes se reuniam em<br />
concílios para decidir os últimos detalhes da invasão.<br />
Apesar de terem desembarcado numa região mais erma<br />
de Calais, já se sentiram vitoriosos por não encontrarem<br />
qualquer embarcação inimiga defendendo a costa. Seria uma<br />
questão de tempo para dominar as cidades vizinhas e<br />
subjugar os franceses.<br />
Muitos já haviam abandonado seus lares. O rei Philipe VI<br />
já havia enviado uma força para guarnecer Beauvais, e<br />
contava ainda com dois exércitos da Picardia, que estavam em<br />
Boulogne.<br />
Mas a maior força estava concentrada em Troyes, com<br />
uma cavalaria de quatrocentos paladinos aproximadamente e<br />
cerca de mil homens de infantaria. Esta força seria mantida<br />
fora de qualquer combate, pois destinava-se à proteção de<br />
Paris, caso as tropas inglesas conseguissem chegar tão longe.<br />
Todo esse movimento militar, somado às fracassadas<br />
articulações diplomáticas do rei Philipe, que já havia apelado<br />
ao Papa por uma intervenção, através <strong>dos</strong> monges da Abadia<br />
de Saint-Michel, colocou o povo franco em desespero.<br />
Finalmente os boatos passaram à realidade. A guerra era<br />
inevitável e com isso, não iria demorar muito para que<br />
descobrissem a rota de fuga do Conselho de Conspiradores de<br />
Amiens, e centenas de pessoas a fossem procurar como<br />
alternativa para fugir desesperadamente <strong>dos</strong> tempos incertos<br />
que se avizinhavam.<br />
115
Na véspera da partida, o alvoroço entre as pessoas do<br />
acampamento na montanha era enorme. Vários grupos de<br />
velhos e novos amigos haviam se formado, famílias inteiras<br />
reunidas, diversos animais arrebanha<strong>dos</strong> que serviriam como<br />
alimento durante a jornada que os esperava, debatiam-se<br />
alucina<strong>dos</strong>, em meio a tanta movimentação.<br />
Michel, convocou Etiènne para que fossem até a gruta,<br />
tentar fazer contato com a suposta criatura que seu irmão<br />
havia descrito, a fim de definir como e por onde passariam<br />
com cerca de quase duas mil pessoas. Nem mesmo Michel<br />
acreditou que conseguiriam reunir tantas pessoas. Não era<br />
mais possível esperar, tinham de partir.<br />
Juntos, os irmãos Montbard subiram até a fenda rochosa<br />
que dava acesso à gruta. Até este ponto, os detalhes narra<strong>dos</strong><br />
por Etiènne estavam precisos, mas Michel continuava<br />
incrédulo de que tal ser de descrições celestiais pudesse<br />
realmente existir.<br />
Entraram na gruta silenciosamente. Michel, seguia<br />
Etiènne que levava um archote à frente, iluminando de<br />
maneira parca o sombrio local. Na verdade, uma escuridão<br />
terrível os envolvia. Michel já imaginava a reação de<br />
inquietação <strong>dos</strong> peregrinos ao passar por tal lugar, e<br />
secretamente malograva a idéia da gruta ser uma passagem<br />
para uma saudável terra desconhecida.<br />
Andaram cerca de quinze metros além da entrada<br />
rochosa. Etiènne parou e voltando-se para Michel, levou o<br />
dedo indicador aos lábios, sinalizando a seu irmão que ficasse<br />
em silêncio. As batidas do coração de Etiènne podiam ser<br />
ouvidas por seu irmão. A situação era inquietante e ao mesmo<br />
tempo ridícula, aos olhos de Michel. Então Etiènne gritou com<br />
força o nome da Vangi.<br />
— Sindazel! Sindazel!<br />
A voz de Etiènne correu pelas obscuras entranhas da<br />
montanha, mas a única resposta foi o eco de sua própria voz<br />
116
etumbando várias vezes dentro da gruta. Repetiu o chamado<br />
algumas vezes, e sempre a resposta era o eco de sua voz.<br />
Michel deu dois tapinhas no ombro de seu irmão, e pediu-lhe<br />
que encerrassem as tentativas. Sindazel não aparecera!<br />
Etiènne olhou para seu irmão com uma enorme tristeza. A<br />
parca luminosidade que o archote produzia foi suficiente para<br />
que Michel visse os olhos mareja<strong>dos</strong> de seu irmão. Talvez<br />
estivesse se sentindo humilhado e completamente<br />
desacreditado. Viu que apertava com força, o amuleto que<br />
agora tornara-se inseparável de seu irmão mais novo, e que ele<br />
mordia os lábios tentando conter suas lágrimas e agonia.<br />
Comovido em ver seu irmão sofrendo daquela forma, pela<br />
primeira vez, Michel foi solidário com a causa de Etiènne.<br />
— Já que sua amiga não vem, vamos nós procurar os<br />
caminhos da gruta!<br />
Ao ouvir isso, Etiènne abraçou seu irmão com grande<br />
alegria, nem podia acreditar no que tinha acabado de ouvir.<br />
— Irmão! Você não imagina o quanto isso é importante<br />
para mim! Vamos, vamos encontrar o caminho!<br />
Michel correspondeu com um sorriso, mas no fundo de<br />
seu coração não acreditava que fossem encontrar algo. Apenas<br />
não queria deixar Etiènne arrasado, e resolveu encorajá-lo a<br />
seguir com sua idéia, que particularmente, achava absurda.<br />
Passaram horas na gruta, cobrindo as extensões de ponta<br />
a ponta, tateavam e forçavam as rochas à procura de possíveis<br />
entradas falsas, mas nada encontravam. Já estavam exaustos e<br />
a ponto de desistir, quando Michel encontrou algo muito<br />
significativo, que possivelmente estava ali para indicar o<br />
caminho a Etiènne.<br />
Havia percebido uma mancha clara em contraste com o<br />
negrume da gruta, e intrigado aproximou o archote da rocha<br />
manchada. Para seu espanto, havia uma inscrição na parte<br />
superior da escura rocha, dizendo:<br />
Seja bem-vindo!<br />
117
A julgar pelo brilho que emanava das cintilantes palavras<br />
estampadas na fria rocha, Michel, percebeu que nenhuma<br />
espécie de tintura conhecida fora usada para escrever aquela<br />
frase, que por sinal, tinha cada letra desenhada precisamente!<br />
Olhou maravilhado e boquiaberto para seu irmão, esperando<br />
que ele se pronunciasse. Etiènne, deu um sorriso, suspirou<br />
aliviado, e limitou-se a dizer — Eis o caminho!<br />
Os dois avançaram, sentiram um estranho vento frio<br />
sobre suas cabeças, e o archote deu visão a uma enorme<br />
passagem, que descia levemente, como se fosse um túnel sem<br />
fim. <strong>Era</strong> largo o suficiente para que passassem duas dúzias de<br />
bois lado a lado, e bastante alto.<br />
— A não ser pela escuridão, a caravana não terá<br />
problemas para passar por este largo túnel. — disse Michel. —<br />
mas onde será que isso termina?<br />
— Não tema meu irmão! Termina em nossas novas terras.<br />
Em nosso paraíso, onde viveremos felizes e sem opressão! —<br />
retrucou Etiènne, muito confiante.<br />
Decidiram então, que a partida da caravana seria no dia<br />
seguinte, e voltaram para o acampamento, que a essa altura<br />
mais parecia uma cidade, tamanha era a quantidade de<br />
barracas, pessoas e animais.<br />
<br />
Na manhã seguinte, no dia em que os líderes do Conselho<br />
resolveram partir pelo caminho de Etiènne, através da gruta<br />
onde conhecera Sindazel, a alegria do enorme grupo de<br />
peregrinos que já estava reunido era indescritível. To<strong>dos</strong> se<br />
abraçavam, sorriam e apertavam as mãos uns <strong>dos</strong> outros.<br />
Seguiram anima<strong>dos</strong>, para um mundo desconhecido, sem saber<br />
sobre os perigos e aventuras que os aguardavam. Não tardaria<br />
para que a euforia se transformasse em medo e discórdia.<br />
Antes do final da tarde, toda a caravana já havia entrado<br />
pela gruta, e já avançava pelos sombrios e rochosos corredores<br />
da montanha. Mas para aflição de Michel e Etiènne, antes<br />
118
mesmo que to<strong>dos</strong> os peregrinos tivessem passado sob a<br />
misteriosa inscrição “Seja bem vindo!”, o descontentamento e<br />
os questionamentos já dominavam a maior parte <strong>dos</strong><br />
peregrinos, que não se conformavam com a escuridão, apesar<br />
de dezenas de tochas garantirem uma boa visibilidade dentro<br />
do espaçoso túnel.<br />
As primeiras horas pareciam intermináveis, e alguns já<br />
começavam a dizer que estavam perdi<strong>dos</strong>, ou que aquela<br />
descida os levaria incontestavelmente para o inferno. Mas<br />
muitos continuavam firmes e mantinham sua fé sobre a busca<br />
das novas terras, apesar de também incomoda<strong>dos</strong> com a<br />
interminável descida e com a escuridão.<br />
Os que seguiam à frente e puxavam a caravana, a cada<br />
hora pareciam diminuir o ritmo da marcha, sempre fazendo<br />
um enorme esforço com suas vistas para tentar enxergar uma<br />
luz no fim do túnel.<br />
119
A<br />
CAPÍTULO VIII<br />
A longa peregrinação<br />
constante caminhada sem descanso, não tardaria a<br />
aumentar o descontentamento por parte <strong>dos</strong> peregrinos.<br />
O cansaço começava a se manifestar até mesmo nos mais<br />
fortes, que já vinham apoiando i<strong>dos</strong>os e crianças como<br />
podiam.<br />
O ar parecia ficar mais escasso a cada metro que<br />
avançavam. A agonia aumentava a cada minuto. Grassac, a<br />
esta altura, era o único a manter um semblante sério, isento de<br />
medo ou sofrimento. Vinha escoltando a enorme caravana, ao<br />
lado de Etiènne e Peter.<br />
De repente, to<strong>dos</strong> pararam a caminhada. Um murmúrio<br />
percorreu as fileiras até chegar ao final da caravana. Grassac,<br />
mantendo sua serenidade, partiu em galope pelo flanco direito<br />
da enorme caravana, em direção aos que iam à frente.<br />
Ao chegar, encontrou uma roda de pessoas, e no centro<br />
estavam Michel e um <strong>dos</strong> peregrinos, trocando empurrões e<br />
uma vergonhosa série de impropérios. O motivo da discussão<br />
era justamente a calamitosa situação em que to<strong>dos</strong> se<br />
encontravam, praticamente esgota<strong>dos</strong> de cansaço em uma<br />
interminável descida para o inferno! Grassac chegou numa<br />
boa hora, pois outros peregrinos já se uniam ao violento e<br />
descontente senhor que tentava atingir Michel com seu cajado,<br />
aos gritos. Grassac desmontou rapidamente de seu corcel e foi
abrindo passagem pelos que se amontoavam para assistir a<br />
contenda. Ao chegar no meio da confusão, Grassac postou-se<br />
ao lado de seu amigo Michel e pediu calma aos furiosos<br />
companheiros de jornada. Michel tentava explicar a Grassac o<br />
motivo da fúria das pessoas, mas sua voz era abafada pelos<br />
gritos da descontente multidão. Não há nada mais perigoso a<br />
um indivíduo do que o descontentamento das massas.<br />
Grassac, sacou sua espada e em voz alta desafiou a to<strong>dos</strong><br />
que ali estavam, convidando-os para acabar de vez com o<br />
sofrimento. Sem hesitar ou demonstrar qualquer sinal de<br />
nervosismo, continuava austero, encarando um a um os<br />
peregrinos revoltosos.<br />
— Muito bem! Se for briga o que querem, aqui estou!<br />
Venham! Vamos acabar logo com isso! Mas garanto-lhes que<br />
seria mais sensato nos organizarmos e pensar em algo mais<br />
construtivo do que ficarmos nos matando!<br />
— Nós já estamos mortos! — gritou um <strong>dos</strong> peregrinos.<br />
— É isso mesmo — vociferou outro, — nós estamos indo<br />
direto para nossas sepulturas no fundo da terra! — concluindo<br />
tomado de revolta.<br />
— Eu quero lhes fazer uma proposta! Irei sozinho daqui<br />
por diante, e se eu não voltar até que a chama desta tocha se<br />
apague, vocês devem retornar à floresta, o que me dizem?<br />
Ninguém precisa dar mais um passo sequer. Eu irei sozinho, à<br />
frente!<br />
Um novo murmúrio percorreu os peregrinos. Michel<br />
olhou para Grassac incrédulo. Não obstante, disse que<br />
pretendia acompanhá-lo.<br />
— Não, você tem que ficar com Leon e manter as coisas<br />
em ordem. Não podemos arriscar depois de tanta caminhada.<br />
Imagino que estejamos perto do lugar que teu irmão falou.<br />
Ainda há pouco, senti uma brisa fresca vinda lá da escuridão.<br />
121
— Também senti, mas achei que era alucinação. Nem<br />
mesmo eu acredito mais no tal paraíso de Etiènne. Não sei por<br />
que, mas acho que logo agora que resolvi lhe dar ouvi<strong>dos</strong>,<br />
sinto ter errado.<br />
— Nada disso! Não se preocupe, Etiènne está certo!<br />
Confio nele!<br />
— É amigo, espero que esteja certo.<br />
— E estou, pode ter certeza! E Leon, o que há com ele?<br />
Grassac percebeu que Leon estava alheio à contenda,<br />
isolado, taciturno, próximo a uma carroça. Nem mesmo se<br />
prontificou a socorrer Michel com os peregrinos revolta<strong>dos</strong>.<br />
— Não sei Grassac. Desde o início da caminhada ele tem<br />
se mantido calado e sério. Tentei conversar com ele várias<br />
vezes, mas logo ele se afastava, com respostas curtas e<br />
evasivas.<br />
— Não se preocupe, irei falar com ele antes de partir. —<br />
Grassac então, virou-se novamente para a multidão e<br />
perguntou: — Então, já decidiram? Continuamos a caminhada<br />
juntos, nos matamos aqui e agora, ou devo ir adiante, em<br />
busca de respostas?<br />
A multidão se entreolhava sem responder ao<br />
questionamento de Grassac. O peregrino que agredira Michel<br />
então resolveu se pronunciar.<br />
— Que você vá sozinho ao inferno! Tenho certeza de que<br />
não voltarás!<br />
Ao ouvir estas palavras, os demais peregrinos<br />
concordaram com o velho e começaram a gritar para que<br />
Grassac fosse só.<br />
— Como queiram!<br />
Grassac deu dois tapinhas nos ombros de Michel,<br />
embainhou sua espada e foi em direção a Leon.<br />
Ao se aproximar do companheiro, Grassac estendeu a<br />
mão, oferecendo ajuda a Leon, que acabara de tropeçar e cair<br />
122
ao chão. Leon, por sua vez, ignorou a mão de Grassac e pôs-se<br />
de pé, limpando suas mãos batendo uma na outra, mas sequer<br />
se dignou a olhar para Grassac.<br />
— Algum problema amigo? — questionou Grassac.<br />
— Não, nenhum problema. — respondeu secamente ao<br />
amigo, deu as costas e saiu caminhando em direção ao seu<br />
cavalo, que estava amarrado a uma das carroças. Grassac,<br />
nada satisfeito com a atitude de Leon, foi atrás do<br />
companheiro e lhe segurou pelo braço, insistindo em<br />
conversar com ele.<br />
— Espera, não terminei de falar com você!<br />
— Pois eu já! Se me der licença, estou de partida! —<br />
respondeu Leon.<br />
— Partida!? Achei que estávamos indo juntos buscar a<br />
realização de um mesmo ideal? Onde vais!?<br />
— Não, meu ideal não é mais o mesmo que o de vocês.<br />
Irei me posicionar ao centro da caravana!<br />
Leon montou em seu cavalo e partiu ligeiramente, em<br />
direção oposta à descida, buscando posicionar-se longe <strong>dos</strong><br />
amigos para que pudesse continuar suas reflexões sem mais<br />
importunações como a que Grassac, inadvertidamente,<br />
acabara de lhe fazer. Nem mesmo se despediu de Michel,<br />
partiu a um galope ligeiro, voando como uma seta!<br />
Grassac ficou estupefato com a atitude de Leon, sacudiu a<br />
cabeça e voltou para conversar com Michel sobre tais atitudes.<br />
Os dois ficaram alguns minutos discutindo o assunto, sem<br />
chegar a grandes conclusões.<br />
Grassac, então despediu-se de Michel e pediu para que ele<br />
mantivesse, na medida do possível, os peregrinos uni<strong>dos</strong> até<br />
seu retorno. Michel assentiu com a cabeça e deu um forte<br />
abraço no amigo, esperançoso de que seu retorno fosse breve e<br />
favorável.<br />
123
Etiènne e Peter, alheios ao que havia ocorrido na frente do<br />
grupo, percebendo que a caravana estacionara, resolveram<br />
recostar-se às rochosas paredes do enorme túnel para<br />
descansar. Muitos peregrinos fizeram o mesmo, pois to<strong>dos</strong><br />
estavam exaustos. A escuridão parecia ajudar a esgotar suas<br />
energias com incrível eficiência.<br />
— Então, Peter, como acha que irá acabar essa jornada. —<br />
indagou Etiènne.<br />
— Não sei meu nobre amigo, não sei, mas temo por<br />
nossas vidas se isso aqui terminar numa alcova sem saída!<br />
— Acredite-me, chegaremos a uma terra maravilhosa.<br />
— Sim, sim, Deus queira!<br />
— Diga-me nobre arqueiro, o que sente quando atira uma<br />
seta num homem, à distância.<br />
— Depende muito da situação, Etiènne — respondeu<br />
Peter franzindo a testa, um tanto constrangido com a<br />
pergunta. — Estás me tirando por covarde, por certo. Achas<br />
que somente tem coragem o homem que porta um machado<br />
de batalha, ou uma espada? Não, cada um nasce com um Dom<br />
distinto, e isso nos difere.<br />
— Não o estou julgando, Peter. Apenas gostaria de matar<br />
minha curiosidade em relação aos arqueiros. Mas se esta<br />
conversa o incomoda, mudemos de assunto!<br />
— Nem sempre ficamos perfila<strong>dos</strong> aguardando uma<br />
ordem para lançarmos nossas setas a esmo em direção às<br />
hostes inimigas além de trezentos metros à nossa frente.<br />
Existem ocasiões, em que somos convoca<strong>dos</strong> para eliminar<br />
alvos seleciona<strong>dos</strong>, mesmo entre nosso próprio meio. —<br />
pigarreou duas ou três vezes e continuou — Certa vez, fui<br />
convocado para eliminar um nobre escocês, que era aliado fiel<br />
ao nosso reino, que entretanto, devido a um jogo de interesses,<br />
teve sua morte encomendada. Cumpri meu dever de militar!<br />
Obedeci ordens superiores, mas deplorei aquela atitude.<br />
124
Quando um homem está num campo de batalha, está armado<br />
e consciente de que pode tombar a qualquer momento ou no<br />
primeiro descuido, seja pela lâmina sedenta de sangue de um<br />
oponente corpo-a-corpo, seja por uma seta, perdida ou<br />
direcionada. Mas um homem desarmado, sem qualquer<br />
proteção, e que sequer era um militar inimigo. Isso me<br />
perturbou por um longo tempo!<br />
Etiènne prestava atenção ao amigo inglês, desejoso de<br />
conhecer mais profundamente sua natureza.<br />
— A partir desta data, todas as noites antes de uma<br />
batalha, ao colocar as setas que seleciono para carregar em<br />
minha aljava, eu as rezo, uma a uma. Rezo para que Deus seja<br />
misericordioso com as almas que elas Lhe encaminharam<br />
durante a batalha.<br />
— Mesmo para as almas <strong>dos</strong> francos?<br />
— Ora, vamos! Jamais estive num conflito direto com seu<br />
povo, Etiènne! Conterrâneos de minha amada e sau<strong>dos</strong>a mãe,<br />
que Deus a tenha. Mas lhe asseguro, que rezo, sim, para to<strong>dos</strong><br />
os inimigos, pois to<strong>dos</strong> são filhos de Deus.<br />
— Acredito nisso, mas não creia que inimigos venham a<br />
ter misericórdia por você, se um dia cair nas mãos deles!<br />
— Não espero misericórdia, e não creio que isso venha a<br />
acontecer um dia, pois não estamos a caminho de uma nova<br />
terra, onde vosso objetivo é instaurar uma cidade pacífica?<br />
Não me vanglorio do dom do arco, de forma que não terei<br />
dificuldades em trocá-lo por uma vida de paz. Também tenho<br />
meus sonhos. — Nesse momento, baixou os olhos e, mesmo à<br />
escuridão, Etiènne pôde notar o sorriso sonhador de Peter. —<br />
Sonho em casar-me cedo, e criar muitos filhos. Desejo ter uma<br />
família feliz, para compensar a infância sombria que fui<br />
obrigado a viver.<br />
— Não se preocupe, amigo. To<strong>dos</strong> nós realizaremos<br />
nossos sonhos na nova terra, lhe prometo!<br />
125
126
A<br />
CAPÍTULO IX<br />
Um novo despertar<br />
sofreguidão com que os peregrinos se esforçavam para<br />
aguardar o retorno de Grassac era incomensurável. Após<br />
mais algumas discussões, chegaram à conclusão de que<br />
deveriam continuar a jornada, para não perder mais tempo,<br />
mesmo antes de Grassac retornar. E assim, apesar de uma<br />
minoria demonstrar-se irritada e totalmente desfavorável a<br />
essa idéia, o desejo da maioria prevaleceu e retomaram a<br />
vagarosa marcha. Alguns simplesmente cambaleavam com<br />
seus pés errantes, como verdadeiros zumbis, e quase<br />
permitiam-se levar pela inclinação da descida, muito mais do<br />
que por suas próprias pernas. Quase to<strong>dos</strong> estavam<br />
desanima<strong>dos</strong> e cabisbaixos, com uma profunda tristeza<br />
constante no olhar. Ninguém mais do grupo de descontentes<br />
ousava exaurir suas últimas energias com reclamações<br />
exasperadas. Agora, havia um medo e descontentamento<br />
vela<strong>dos</strong>, que cada um carregava dentro de si como se fosse um<br />
enorme e insuportável fardo.<br />
O ar parecia ficar mais escasso a cada metro que<br />
avançavam. A agonia continuava aumentando a cada minuto<br />
dentro daquela escuridão sufocante.<br />
Mais de quarenta horas haviam se passado desde o início<br />
eufórico na floresta da Montanha Serena, à entrada da gruta<br />
onde Etiènne havia se encontrado com Sindazel, quando algo<br />
inesperado ocorreu. Uma forte lufada de vento atingiu os
peregrinos que iam à frente da caravana, inclusive Michel. Os<br />
archotes se apagaram e inúmeras folhas de árvores atingiam<br />
as pessoas, que assustadas, pensando que pudessem ser<br />
enormes morcegos, corriam no breu desordenadamente aos<br />
gritos de pavor, temendo pelo que restava de suas vidas.<br />
Em vão, Michel tentou acalmar a multidão de peregrinos<br />
desespera<strong>dos</strong>, que se alastrava por toda a caravana como uma<br />
enorme onda de terror, fazendo com os que vinham mais atrás<br />
se apavorassem sem saber sequer as razões do alvoroço que se<br />
havia desencadeado.<br />
A confusão parecia incontrolável, mas uma idéia surgiu à<br />
mente de Michel, e este num ato desesperado de tentar<br />
controlar a desordem, anunciou que haviam chegado ao local<br />
prometido por seu irmão Etiènne. Os peregrinos se acalmaram<br />
diante daquela declaração e caminharam aos tropeços em<br />
direção a Michel, que subitamente se arrependera do que<br />
falou, pois sabia que desta vez lhe tirariam a vida quando<br />
descobrissem que havia mentido. Mas para a fortuna de<br />
Michel, e de to<strong>dos</strong> os peregrinos, Grassac irrompeu de repente<br />
do breu, erguendo uma solitária tocha acesa em sua mão.<br />
— Povo de Amiens! Encontrei a terra maravilhosa que<br />
procuramos! É verdade, estamos a menos de duas milhas!<br />
Os peregrinos escutaram aquela notícia com grande<br />
entusiasmo. Alguns caíram de joelhos, cheios de lágrimas nos<br />
olhos, agradecendo a Deus por terem sido salvos.<br />
Michel suspirou aliviado, e em silêncio, também<br />
agradeceu a Deus por seu irmão Etiènne não ter se enganado,<br />
levando-o a conduzir aquelas pessoas para um trágico fim.<br />
<br />
No castelo de Martin Lacroix, a rotina estava<br />
completamente alterada. As aias de Catherine solidarizaramse<br />
vendo o desespero de sua senhora, e esbaforidas,<br />
continuavam organizando incansavelmente as coisas que<br />
128
Catherine havia ordenado que separassem e arrumassem para<br />
sua viagem à Roma.<br />
Ansiosa para partir, temendo o regresso a qualquer<br />
momento de seu cruel senhor, Catherine conduzia<br />
pessoalmente a arrumação.<br />
O entardecer já começava a ceder seu lugar às trevas da<br />
noite quando uma comitiva originária de Abbeville adentrou<br />
no castelo. Alguns cavaleiros escoltavam a bela carruagem,<br />
enfeitada com as flâmulas daquela cidade, e um portaestandarte<br />
anunciava que alguém de grande importância fazia<br />
parte daquele grupo.<br />
Catherine foi interrompida por um <strong>dos</strong> guardas do<br />
castelo, que anunciava a presença da comitiva de Abbeville.<br />
Assustada, apressou-se em verificar de sua janela, a fim de<br />
tentar identificar quem poderia ser a uma hora tardia<br />
daquelas, já caindo a noite. Seria alguma trágica notícia a<br />
respeito de sua sofrida filha, que fora a seu contragosto<br />
oferecida por Martin, ao senhor daquela cidade?<br />
Chamou uma de suas aias e ordenou que lhe trouxessem<br />
uma bacia com água fresca e uma toalha. Rapidamente<br />
refrescou o rosto, lavou as mãos e dirigiu-se ao átrio principal<br />
do castelo, onde a carruagem estava estacionada.<br />
Quebrando to<strong>dos</strong> os protocolos, Lourdes já havia<br />
descido da carruagem, e aguardava sua mãe com grande<br />
entusiasmo, afinal, algo de bom o medo da guerra trouxe, pois<br />
Lourdes estava de volta à Amiens. O casamento com o senhor<br />
de Abbeville fora adiado, pois o nobre governante preferiu<br />
aguardar os acontecimentos à distância.<br />
Lourdes parecia estar ainda mais bela do que nunca,<br />
vinha com seus longos cabelos doura<strong>dos</strong> e ondula<strong>dos</strong>, soltos<br />
ao vento. Algo tinha feito com que a jovem de apenas<br />
dezesseis anos tivesse amadurecido rapidamente nos últimos<br />
meses. Os olhos com uma cor de mel, quase amarelos,<br />
combinavam com seus cabelos, mas seu olhar estava mais<br />
triste do que Catherine estivera acostumada a contemplar.<br />
129
Teria sofrido ela alguma injúria ou mau trato em Abbeville?<br />
Não, na verdade, sua mãe descobriria mais tarde que o<br />
desgosto da filha a havia endurecido.<br />
O reencontro de mãe e filha foi uma enorme emoção.<br />
Entre lágrimas e sorrisos, as duas se abraçavam como se<br />
estivessem longe uma da outra há anos, quando apenas<br />
poucos meses as haviam separado.<br />
— Minha filha, que alegria vê-la novamente! Estava tão<br />
amargurada, pois estou de partida para Roma e temia não<br />
encontrá-la por longos anos!<br />
— Minha mãe, o que está dizendo!? Por quê vocês irão<br />
para Roma? Não me enviaria ao menos um aviso?<br />
— Depois que você partiu minha filha, muitas coisas<br />
aconteceram por aqui. O senhor da cidade está<br />
enlouquecendo, e com sua loucura e tirania irá trazer<br />
sofrimento a muita gente. Eu não agüento mais essa vida de<br />
servidão e maus tratos. Estou angustiada minha querida, eu<br />
preciso, eu quero ir para Roma e lá viverei com meu tio Brian.<br />
— Mas e meu pai!? Ele não irá permitir isso! A senhora<br />
poderá sofrer uma séria punição por tentar abandoná-lo!<br />
— Por isso não tenho muito tempo, meu anjo. Quero<br />
aproveitar enquanto ele está fora da cidade para fugir o<br />
quanto antes. Pretendo sair amanhã bem cedo. Foi uma<br />
dádiva de Deus sua vinda justamente hoje, antes de minha<br />
partida. Há muita coisa que precisamos conversar, minha<br />
querida, muita coisa. Vamos subir.<br />
— Claro minha mãe, claro.<br />
As duas deram as mãos e subiram as escadas da entrada<br />
principal, que conduz ao interior do grande salão, onde<br />
geralmente Martin costumava despachar suas ordens à guarda<br />
de sua cidade.<br />
Catherine e Lourdes ficaram conversando durante<br />
horas. A madrugada já avançava quando escutaram o som de<br />
diversos cascos do lado de fora. Catherine, sobressaltou-se.<br />
Não podia acreditar que Martin pudesse ter regressado a<br />
130
poucas horas antes de sua fuga. Correu aflita até a janela para<br />
ver o que estava acontecendo, mas, à pouca luz <strong>dos</strong> archotes<br />
que iluminavam parcamente o átrio principal, não pôde<br />
identificar Martin em meio aos homens que estavam lá fora.<br />
Percebeu um certo alvoroço entre os solda<strong>dos</strong>, que pareciam<br />
cercar alguém que falava e gesticulava muito.<br />
Voltou até a cama onde Lourdes estava sentada.<br />
— Minha filha, alguma coisa está acontecendo,<br />
precisamos ir embora, já! Não há mais tempo, temo que seu<br />
pai esteja de volta antes do amanhecer. Estou com um<br />
pressentimento ruim.<br />
— Minha mãe, eu tenho medo! Tenho medo da<br />
desolação e fúria que podem se abater sobre meu pai. Ele irá<br />
atrás de nós, e nos punirá severamente!<br />
— Se não partirmos já, temo que de qualquer forma<br />
venhamos a sofrer em suas mãos!<br />
— Não minha mãe! Eu não posso fazer isso! Não posso,<br />
tenho muito medo!<br />
Catherine entristeceu-se. Seus olhos se encheram de<br />
lágrimas e ela abraçou a filha com ternura.<br />
— Você saberá onde estou, e se um dia puder ir à Roma,<br />
te acolherei com o amor e o carinho que sempre tive por você<br />
minha querida. Rezarei todas as noites pelo seu bem estar.<br />
Lourdes se agarrou com força à sua mãe e, chorando,<br />
implorou por seu perdão por não ter coragem de acompanhála.<br />
As duas desceram juntas, e várias aias acompanhavam<br />
Catherine, trazendo seus utensílios, roupas e jóias. Uma<br />
carruagem estivera de prontidão para partir durante os<br />
últimos dois dias, e agora, era chegada a hora.<br />
Catherine estava muito apreensiva, o frio cortante da<br />
madrugada lhe fazia doer to<strong>dos</strong> os ossos do corpo. Estava<br />
ofegante, esfregava as mãos com força e seu olhar vasculhava<br />
por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong> a procura do cocheiro que a conduziria. O<br />
homem não estava próximo à carruagem. Catherine ordenou a<br />
131
uma de suas aias que o procurasse, enquanto dava suas<br />
últimas recomendações à filha.<br />
Não tardou para que a serviçal voltasse com o cocheiro,<br />
que estivera em calorosa discussão com a guarda do castelo.<br />
Sucedeu que, homens fiéis ao Duque Gilles de Guanion que<br />
fora designado para assumir a posição de Martin Lacroix,<br />
haviam chegado ao castelo, e as ordens eram para que<br />
ninguém deixasse o castelo até sua chegada, que se daria<br />
ainda em uma semana.<br />
O desespero de Catherine foi imediato! Dirigiu-se<br />
pessoalmente para falar com os homens do Duque, exigindo<br />
que sua carruagem pudesse deixar o castelo, mas sua<br />
intervenção foi inútil.<br />
— Senhora, não podemos abrir exceções, as ordens do<br />
Duque foram bem claras! Não queira colocar nosso pescoço<br />
em perigo. Imploro para que tenha paciência, logo tudo estará<br />
resolvido!<br />
— Mas isto é um absurdo! Como podem manter-me<br />
presa em minha própria casa!?<br />
— Esta propriedade pertence ao rei Philipe VI e à<br />
França. Apenas cumpro meu dever!<br />
— O meu dever é saber onde está meu marido, o<br />
verdadeiro senhor de Amiens!<br />
— Seu marido é um traidor da França e está sendo<br />
procurado como criminoso! O novo e único senhor de Amiens<br />
é o Duque Gilles de Guanion!<br />
Furiosa e horrorizada, Catherine deu as costas ao<br />
soldado e voltou para a carruagem. Precisava pensar em algo.<br />
Talvez alguém da guarda de Amiens pudesse ajudá-la, mas<br />
qual <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> agiria contra a vontade, do futuro senhor de<br />
Amiens? O pior havia acontecido, de alguma forma, Martin<br />
Lacroix havia falhado em sua tentativa de silenciar o arauto do<br />
rei, e agora era procurado como criminoso. Será que seus<br />
homens se voltariam contra ele? Quantos lhe seriam fiéis<br />
depois de tanta arrogância como senhor da cidade?<br />
132
Uma coisa era certa, ele não iria deixar sua cidade nas<br />
mãos de outro nobre sem tentar reavê-la, pela força. Mas o que<br />
isso importava agora para Catherine? Precisava descobrir um<br />
meio de fugir daquela loucura toda antes que fosse tarde<br />
demais.<br />
Catherine sabia que, em último caso, poderia escapar<br />
pela passagem secreta <strong>dos</strong> calabouços. Mas mesmo que saísse,<br />
como iria para Roma sem levar todas as suas roupas e<br />
pertences?<br />
Enquanto não conseguia encontrar uma solução para<br />
sua fuga, o tempo ia passando, e o perigo do retorno de<br />
Martin aumentava a cada dia, à mesma proporção que<br />
aumentava sua angústia.<br />
Já haviam se passado cinco dias, além da data prevista<br />
para a chegada do Duque Gilles de Guanion, quando uma<br />
enorme quantidade de solda<strong>dos</strong> chegou à Amiens, sob o<br />
comando do próprio Martin Lacroix.<br />
Seu semblante era austero, não conseguindo disfarçar<br />
seu ódio ao ver o caos que reinava em sua cidade. A maior<br />
parte <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> que o acompanhavam, seguiam em direção<br />
ao castelo, ao passo que alguns pequenos grupos, por<br />
determinação do próprio Martin Lacroix, haviam se<br />
dispersado pela cidade, em busca de informações, além de<br />
manter os homens de sua guarda, os que haviam ficado na<br />
cidade para segurança do povo, fiéis a ele.<br />
Seu regresso fora triunfal pois Alain Dumas, seguido por<br />
alguns solda<strong>dos</strong> de sua confiança, entrou no castelo pela<br />
passagem secreta, e uma vez dentro, não foi difícil com seu<br />
poder de liderança convencer os homens a se manterem fiéis a<br />
Martin. Os solda<strong>dos</strong> do Duque Gilles de Guanion foram<br />
imediatamente feitos prisioneiros, e antes do anoitecer<br />
daquele dia, Martin Lacroix estava mais uma vez no centro de<br />
sua ambição, dentro de seu castelo, do qual coordenava o<br />
destino de Amiens e seu povo.<br />
133
Martin estava exausto, pois estivera em constantes<br />
combates nos ermos da França. Eliminou com grande<br />
dificuldade o arauto do rei, lutou contra grupos de<br />
mercenários que tentavam saquear os diversos peregrinos em<br />
fuga de várias cidades francesas, e até mesmo seu grupo de<br />
solda<strong>dos</strong>. Rechaçou todas as investidas com grande<br />
determinação. Recrutou novos homens que vagavam sós,<br />
cujas habilidades com espadas e macha<strong>dos</strong> de batalha<br />
puderam ser comprovadas nos combates que foram<br />
necessários durante as várias tentativas de seu<br />
aprisionamento, por grupos de solda<strong>dos</strong> de Paris, fiéis ao rei<br />
da França.<br />
Pensava em to<strong>dos</strong> estes recentes acontecimentos<br />
enquanto despia sua maltratada armadura, quando foi<br />
interrompido por batidas em sua porta. Com um forte grito,<br />
solicitou que o visitante se identificasse. <strong>Era</strong> Alain Dumas.<br />
— Entre, Alain, a porta está aberta!<br />
— Meu senhor, perdoe-me incomodá-lo, mas trago<br />
informações inquietantes.<br />
— Do que se trata? Conseguiu saber o motivo de<br />
tamanha desordem na cidade? Conseguiu saber o motivo pelo<br />
qual os solda<strong>dos</strong> liberaram as fronteiras da cidade? Executarei<br />
pessoalmente o culpado por esta traição e desordem!<br />
— Meu senhor, os problemas são ainda maiores do que<br />
esperava.<br />
Martin era um sujeito tão arrogante quanto impaciente, e<br />
bastou lançar seu olhar fulminante para que Alain se<br />
apressasse a esclarecer os problemas.<br />
— Quando entramos no castelo, pela passagem do<br />
calabouço, encontramos o cadáver de Gallard Gellion no<br />
túnel. Estava desfigurado, com dezenas de ratos sobre o que<br />
ainda restava de sua carcaça.<br />
Martin ficou surpreso, e pensativo. Essa, na verdade, lhe<br />
era uma boa notícia, pois não precisaria mais pagar pelos<br />
serviços do linguarudo. Mas quem o teria matado?<br />
134
— Alguma pista de quem fez isso?<br />
— To<strong>dos</strong> os Conspiradores fugiram! Eles devem ter<br />
assassinado Gallard Gellion!<br />
— O quê!? — A cólera apoderou-se instantaneamente de<br />
Martin, que levantou de forma brusca de onde estava sentado<br />
ouvindo o capitão de sua guarda. Segurou Alain com força<br />
pelos braços, e espumando de raiva perguntou como uma<br />
tragédia assim poderia ter acontecido. — Como!? Como<br />
puderam escapar daquelas celas!?<br />
Um sombrio pensamento passou pela mente de Alain.<br />
Teria a fuga ocorrido por causa de seu velho amigo Grassac?<br />
A esta altura, ele não poderia saber, mas arrependeu-se em<br />
seu íntimo de não ter ordenado que ele fosse acorrentado<br />
como os demais prisioneiros.<br />
— Meu senhor, iremos apurar com brevidade o que<br />
aconteceu. O carcereiro foi encontrado desfalecido, amarrado<br />
e amordaçado na câmara de torturas. Neste momento ele está<br />
se recuperando do estado precário em que se encontra.<br />
— Não! Ele precisa ser interrogado imediatamente!<br />
Precisamos saber de tudo com urgência. Quando e como<br />
aconteceu a fuga!? Ele precisa dizer isso já! — Martin andava<br />
de um lado para o outro, alimentado por um ódio crescente<br />
em seu coração. — Eles devem ter algo a ver com o caos que<br />
está na cidade!<br />
— Meu senhor, o homem não é capaz de falar, está entre<br />
a vida e a morte. Está há dias sem água e comida, talvez não<br />
sobreviva. Não podemos colher seu depoimento agora.<br />
— Mas que desgraça!! E quando este infeliz poderá<br />
falar!? Quem está cuidando dele!?<br />
— Está nas mãos do médico do castelo, mas as<br />
esperanças são remotas — Alain estava nervoso, pois ainda<br />
não tinha terminado de dizer tudo. — As fronteiras, meu<br />
senhor.<br />
— Sim! Precisamos saber o que aconteceu!<br />
135
— A senhora Catherine... ela ordenou que os guardas<br />
deixassem as fronteiras e fossem à vossa procura.<br />
— O quê! Ela cometeu um enorme erro, um enorme erro,<br />
Alain! E ela terá de pagar por ele! Agora deixe-me só, irei<br />
refletir sobre uma punição adequada para ela. Será um bom<br />
exemplo para mostrar ao que resta do povo, que a lei em<br />
Amiens é cumprida, mesmo que tenha de se punir os meus<br />
familiares. — Martin dissimulou um pequeno sorriso, mas por<br />
dentro, dava gargalhadas. Adorava maltratar Catherine, e<br />
agora, uma oportunidade de ouro se apresentava para isso.<br />
— Há mais uma questão envolvendo a senhora<br />
Catherine, meu senhor.<br />
— Diga-me!<br />
— Ela pretendia fugir. Há uma carruagem à disposição<br />
dela, com to<strong>dos</strong> os seus pertences, jóias e roupas. Segundo o<br />
cocheiro, já há dias ela tentava partir. Será que ela não<br />
esperava mais que meu senhor estivesse vivo? Talvez ela<br />
estivesse com medo da guerra que se aproxima.<br />
— Não, Alain. Não creio que ela estivesse fugindo da<br />
guerra, mas logo saberei a verdade.<br />
— Ela está trancada em seu quarto. Quais são suas<br />
ordens, meu senhor?<br />
— Vigiem-na! Ela não deve deixar este castelo antes de<br />
ser julgada por seus atos!<br />
— Sim, meu senhor!<br />
Alain curvou-se diante de Martin e caminhou em<br />
direção à porta, mas antes de sair, ainda tinha mais uma<br />
informação a dar. — Sua filha Lourdes está com ela no quarto,<br />
meu senhor.<br />
Martin olhou para Alain, e com o braço esticado<br />
gesticulou a mão, indicando-lhe que ele devia retirar-se.<br />
Mergulhou em pensamentos sombrios, procurando encontrar<br />
uma opção divertida para punir e torturar Catherine. Afinal,<br />
ela teria que pagar pelos problemas que causou. Fosse ela uma<br />
mulher amada, e ele teria esquecido tudo, mas desde o<br />
136
nascimento de Lourdes, ele passou a odiá-la mortalmente.<br />
Sempre maltratou as duas, mas muito mais a filha do que sua<br />
esposa, porque ele sabia que Lourdes não era sua filha<br />
legítima. Pensava ter se livrado dela definitivamente com a<br />
negociação em Abbeville, mas ela estava de volta. Pensou se<br />
não poderia se livrar das duas de uma única vez, mas como, e<br />
por quê, condenaria sua filha? De que crime ela seria julgada?<br />
Não, ele teria que pensar em outra forma de se livrar da<br />
pequena bastarda. Assim ele sempre pensava nela,<br />
secretamente, pois nunca a amara ou sentira qualquer afeto<br />
pela menina.<br />
137
O<br />
CAPÍTULO X<br />
Nouvelle Amiens<br />
clima do local em que se encontravam os peregrinos de<br />
Amiens era bem mais agradável do que o impie<strong>dos</strong>o frio<br />
que assolava a cidade que deixaram. <strong>Era</strong> um clima fresco e<br />
reconfortante. O ar que respiravam era suave, de uma pureza<br />
nunca antes experimentada por nenhum deles. Passaram duas<br />
semanas tranqüilas, conhecendo as belezas daquele novo e<br />
aprazível lugar. Tudo era belo e muito diferente do que<br />
conheciam. As árvores, as folhagens, as flores, o céu de<br />
coloração rosada, até mesmo a terra que pisavam parecia ser<br />
incrivelmente estranha.<br />
Etiènne, Michel, Grassac e Peter, conversavam próximos<br />
a uma fogueira crepitante que haviam acendido, sobre o<br />
destino de todas aquelas pessoas. Michel, e to<strong>dos</strong> os outros<br />
concordaram, era favorável que continuassem a caminhada<br />
até encontrarem um lugar mais distante da saída da enorme<br />
caverna que haviam atravessado. A proximidade da saída da<br />
caverna era demasiadamente perigosa, porque temiam que<br />
Martin Lacroix pudesse descobrir a rota, e viesse como um<br />
feroz cão de caça atrás deles.<br />
Isso, de fato, aconteceria muito antes do que<br />
imaginavam. Em parte devido ao ódio cego e inesgotável<br />
desejo de encontrá-los, para matá-los a to<strong>dos</strong>, e em parte,<br />
porque muitos <strong>dos</strong> próprios peregrinos, uma vez acostuma<strong>dos</strong><br />
com a passagem da caverna, não tardariam a ir e vir através
dela, transformando-a numa rota comum para várias<br />
finalidades, como visitas de parentes que haviam ficado em<br />
Amiens, na tentativa de também trazê-los para o novo lugar,<br />
ou o reabastecimento de produtos que certamente não<br />
encontrariam na nova terra, mas sabiam que haveria em<br />
Amiens com abundância. Assim, ele acabaria por descobrir<br />
onde entravam as pessoas, mas isso ainda levaria muito tempo<br />
para acontecer e, Sindazel, usando de seus poderes, retardaria<br />
ainda mais este acontecimento, fazendo com que as tropas de<br />
Martin Lacroix, ou ele próprio, não encontrassem o caminho<br />
através da gruta. De fato, em várias incursões, a parede de ar<br />
havia impedido a passagem <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> de Amiens. Mas o<br />
destino se mostraria indiferente aos poderes <strong>dos</strong> Vangis, e<br />
numa surpreendente virada <strong>dos</strong> acontecimentos, Martin<br />
Lacroix acabaria por conseguir atravessar a passagem, seguido<br />
por dezenas de solda<strong>dos</strong>.<br />
Mas não nos adiantemos tanto no curso da história,<br />
porque muita coisa ainda acontece antes da chegada de<br />
Martin Lacroix, ao lugar que os homens haviam batizado de<br />
<strong>Virgo</strong>. Batizaram assim a nova terra, por acreditarem que<br />
haviam chegado a um local completamente virgem, jamais<br />
pisado antes por outras pessoas.<br />
Ao redor da fogueira, no momento em que discutiam o<br />
rumo que deveriam tomar, Leon aproximou-se lentamente, e<br />
pôs fim ao seu silêncio, deixando a to<strong>dos</strong> perplexos com o que<br />
acabara de pronunciar de forma altiva.<br />
— Tomei uma decisão! Irei erguer aqui, neste lugar onde<br />
estamos, uma cidade chamada Nouvelle Amiens!<br />
Os companheiros de Leon, até aquele momento,<br />
ignoravam sua opinião, uma vez que por si só, havia escolhido<br />
o silêncio e a solidão durante dias, mas ficaram choca<strong>dos</strong> ao<br />
ouvir estas palavras, enunciadas de forma eloqüente e<br />
decidida. Olharam-se uns aos outros, e tentaram perscrutar o<br />
pensamento de cada um a respeito desta atitude inusitada.<br />
Michel, como era o mais chegado a Leon, desde tempos<br />
139
emotos de quando ainda eram crianças, contestou a decisão<br />
do amigo.<br />
— Leon, é uma opção perigosa, meu amigo. Estamos<br />
aqui justamente questionando sobre esta possibilidade.<br />
Leon virou-se para Michel, e com um olhar quase<br />
glacial, respondeu de forma enfática. — Não é uma opção a<br />
ser considerada por vocês! É a minha decisão, e apenas a estou<br />
comunicando face à amizade que sempre tivemos. Se<br />
quiserem partir, como planejam, não me incomodarei e<br />
tampouco farei qualquer oposição. — Ao terminar de<br />
pronunciar estas palavras, Leon deu as costas aos amigos e<br />
caminhou em direção ao lugar onde estivera em profunda<br />
reflexão, desde o dia em que os peregrinos se estabeleceram<br />
naquele local.<br />
Michel, sempre um pavio curtíssimo, encolerizou-se<br />
imediatamente com a atitude de Leon, considerando uma<br />
enorme arrogância de sua parte, e já levantava-se com o<br />
intuito de exigir de Leon, no mínimo, maior consideração<br />
pelos que ali estavam, por tudo que haviam passado juntos<br />
nos últimos meses. Mas desta vez, foi seu irmão Etiènne o<br />
primeiro a impedi-lo de fazer isso, com a ajuda de Grassac.<br />
Custou, mas os dois conseguiram dissuadi-lo da idéia de<br />
interpelar Leon naquele momento.<br />
Difícil julgar se os dias que sucederam esta inesperada<br />
noite foram mais difíceis do que a própria travessia da<br />
passagem pela enorme gruta da Montanha Serena, mas o fato<br />
é que Leon não só quebrou o silêncio como tomou para si, de<br />
uma forma estranhamente soberba, a liderança do grupo,<br />
discutindo calorosamente com Michel em várias<br />
oportunidades sobre a questão de não estabelecer naquele<br />
local a nova morada de seus seguidores.<br />
Após quase três semanas instala<strong>dos</strong> em <strong>Virgo</strong>, e depois<br />
de muitas discussões sem que houvesse qualquer<br />
entendimento entre Michel e o novo e transtornado Leon,<br />
aconteceu a inevitável fissura na amizade <strong>dos</strong> dois. Michel<br />
140
euniu-se com seus companheiros que ainda lhe eram fiéis, e<br />
informou que partiriam em dois dias, sem a companhia de<br />
Leon, que havia se tornado extremamente desagradável nos<br />
últimos dias.<br />
Leon, por sua vez, não se fez de rogado com a decisão de<br />
Michel, e não tardou a fazer sua campanha para que os<br />
peregrinos não seguissem os irmãos Montbard, e optassem<br />
por ficar ali, com ele, onde ergueriam juntos a cidade de<br />
Nouvelle Amiens.<br />
Não demorou muito para que um enorme rebuliço<br />
tomasse conta <strong>dos</strong> peregrinos que se dividiam entre as<br />
possibilidades apresentadas. Ficar perto de Amiens, ou partir<br />
para ainda mais longe, através de caminhos ainda<br />
desconheci<strong>dos</strong>, para manter a maior distância possível do<br />
tirano Martin Lacroix? O fato é que muitos ali ainda não<br />
conseguiam aceitar a idéia de se distanciar de Amiens e<br />
muitos haviam aceitado o infortúnio desta fuga apenas para se<br />
livrar do jugo de Martin, mas tinham desejo de um dia poder<br />
retornar à Amiens.<br />
Foi assim, sem saber as razões pelas quais seu amigo<br />
Leon havia mudado tanto, que Michel, seu irmão Etiènne, e os<br />
amigos Peter e Grassac, deixaram para trás uma parte do<br />
sonho de estabelecerem to<strong>dos</strong> juntos uma nova morada.<br />
Leon, por sua vez, sentia que ainda não podia dizer a<br />
verdade para Michel, mas no fundo de seu coração, ele queria<br />
uma chance de poder mudar seu pai, o tirano Martin, para<br />
depois disso esclarecer tudo. Ele sabia que Michel não<br />
concordaria com nada disso, e principalmente, jamais<br />
acreditaria ou aceitaria Martin Lacroix tão facilmente. Não<br />
conseguiu, contudo, esconder sua amargura no dia em que o<br />
amigo o deixava. Aproximou-se de Michel, e falou com<br />
serenidade: — Obscuros são os caminhos que escolhemos, mas<br />
tenho certeza de que os rumos que as coisas tomam a partir de<br />
hoje, mostrar-se-ão apropria<strong>dos</strong>, muito em breve.<br />
141
— As coisas não precisavam ter chegado a este ponto,<br />
Leon. Parto com uma única certeza em meu coração. Você não<br />
é mais nada em minha vida! — enfatizou Michel.<br />
— Um dia você entenderá. Cuide-se, e cuide de Etiènne,<br />
ele ainda é muito afoito.<br />
— Ele vai sobreviver, pois escolheu seguir a opção mais<br />
sensata. Apesar de tudo, desejo-lhe paz, e espero que um dia<br />
se reencontre, e se arrependa de toda esta tolice. Adeus!<br />
Michel deu as costas e montou em seu cavalo, para em<br />
seguida assumir a dianteira da nova caravana que o<br />
aguardava para partir. Dois terços <strong>dos</strong> peregrinos optaram por<br />
seguir viagem junto ao que restara do Conselho formado por<br />
Michel, e assim, aquela multidão pôs-se mais uma vez a trilhar<br />
caminhos desconheci<strong>dos</strong>.<br />
<br />
Faziam apenas algumas horas que Michel e to<strong>dos</strong> os que<br />
haviam optado segui-lo partiram quando os peregrinos fiéis a<br />
Leon ouviram um barulho crescente que se assemelhava ao de<br />
inúmeros cavalos se aproximando e, de fato, puderam<br />
constatar que ao longe uma enorme nuvem de poeira subia do<br />
solo. Logo despontaram os primeiro cavaleiros que, ao<br />
avistarem a caravana, interromperam sua cavalgada e ficaram<br />
observando de longe, esperando que os demais guerreiros<br />
chegassem até eles.<br />
Ficaram, o povo de Leon, por assim dizer, e a cavalaria<br />
desconhecida, para<strong>dos</strong>, a uma distância de aproximadamente<br />
duas milhas entre uns e outros, sobre a vasta planície.<br />
O murmúrio era geral em ambos os la<strong>dos</strong>. Enquanto os<br />
seguidores de Leon questionavam-se sobre qual seria a origem<br />
de tal cavalaria, se seriam ingleses ou guerreiros de Amiens<br />
conduzi<strong>dos</strong> por Martin Lacroix, os cavaleiros misteriosos por<br />
sua vez, estranharam a presença de tantas pessoas nessa<br />
região praticamente desértica.<br />
142
Entre os francos de Amiens, to<strong>dos</strong> estavam muito<br />
preocupa<strong>dos</strong>. Já haviam passado por inúmeras situações<br />
difíceis até a chegada do vale onde se encontravam, e<br />
justamente agora, quando estavam em número muito<br />
reduzido devido à partida de Michel e muitos outros,<br />
encontravam-se diante de uma preocupante, para não dizer,<br />
desesperadora situação.<br />
Leon conversou nervosamente a respeito da atual<br />
circunstância com alguns aldeões que estavam mais próximos.<br />
Não poderiam se defender de um ataque pesado, como o de<br />
uma cavalaria inteira. É verdade que várias pessoas da<br />
caravana possuíam habilidade com espada e machado de<br />
guerra. Muitas pessoas, inclusive, que já serviram em outra<br />
época ao exército de Paris, ou mesmo à Guarda de Amiens,<br />
mas o total de guerreiros ali encontrado não seria suficiente<br />
para evitar um massacre.<br />
Estavam discutindo o que fariam quando alguém gritou<br />
e os alertou de que alguns cavaleiros avançavam em suas<br />
direções.<br />
— Veja Leon! Alguns cavaleiros se aproximam! —<br />
exclamou um <strong>dos</strong> peregrinos, chamado Maurice Lassance.<br />
— Irão nos dizer o que pretendem. Com certeza não é<br />
Martin, do contrário já teria iniciado um ataque<br />
impie<strong>dos</strong>amente. — comentou Leon.<br />
— Mas senhor, eu não estava acreditando que pudesse<br />
ser o calhorda. Onde ele conseguiria tantos cavaleiros? Veja<br />
quanta gente tem do outro lado.<br />
Leon olhou irritado para Maurice, como que reprovando<br />
o impropério destinado a seu pai, mas tentou evitar polêmicas<br />
àquela altura. Poderia até mesmo correr risco de vida se<br />
descobrissem que Martin Lacroix era seu pai; então, preferiu<br />
manter a conversa o mais naturalmente possível com o rapaz.<br />
— É verdade, aquela cavalaria é enorme! Deve haver mais de<br />
quinhentos homens.<br />
143
Cinco cavaleiros vinham galopando na direção <strong>dos</strong><br />
peregrinos, que estavam temerosos por seus destinos. O<br />
cavaleiro mais adiantado trazia um enorme estandarte em<br />
cores azul turquesa e prata, com o formato de duas luas<br />
crescentes sobrepostas em tonalidades diferentes de azul.<br />
Conforme os cavaleiros se aproximavam, a exuberância<br />
de suas armaduras e elmos ia se revelando a olhos incrédulos,<br />
tamanha era sua beleza. As armaduras eram reluzentes, mas<br />
de azul bem escuro, a exemplo do azul turquesa<br />
predominante no estandarte. As mesmas luas crescentes e<br />
sobrepostas podiam ser vistas nos compri<strong>dos</strong> escu<strong>dos</strong> e<br />
também em seus coletes metálicos. Um <strong>dos</strong> cavaleiros se<br />
destacava pela altura, e por sua capa esverdeada. To<strong>dos</strong> os<br />
outros usavam capas azul bem escuro, quase um azul noturno.<br />
O cavaleiro da capa diferente avançou um pouco mais em<br />
relação aos outros, e segurou as rédeas de sua montaria,<br />
contemplando todas aquelas pessoas.<br />
Leon, entendendo que o cavaleiro havia parado para<br />
esperar que alguém fosse até ele, caminhou vagarosamente em<br />
direção ao misterioso guerreiro. Enquanto caminhava,<br />
mantinha fixo seus olhos no magnífico elmo, tentando<br />
encontrar os olhos que estavam muito bem ocultos por trás<br />
daquela viseira tão intimidadora quanto reluzente.<br />
Quando faltavam apenas uns cinco ou seis passos para<br />
chegar ao cavaleiro, Leon desembainhou sua espada<br />
lentamente, com o intuito de deitá-la ao solo, em sinal de paz;<br />
contudo, antes mesmo que pudesse ter retirado toda a espada,<br />
outros dois cavaleiros flanquearam aquele que parecia ser o<br />
líder, e duas enormes lanças pontiagudas foram apontadas em<br />
direção ao peito de Leon.<br />
Assustado, mas não intimidado, após parar seu<br />
movimento por alguns segun<strong>dos</strong>, Leon continuou a sacar a<br />
espada ainda mais vagarosamente, mantendo seus olhos<br />
firmes no cavaleiro de capa esverdeada. O clima ficara tenso,<br />
144
em ambos os la<strong>dos</strong>, mas naquela posição, Leon não poderia<br />
mais oferecer qualquer risco para os estranhos cavaleiros.<br />
Ao terminar de retirar a espada, Leon abaixou-se sobre<br />
um joelho, e com as duas mãos, a deitou sobre aquela estranha<br />
terra, dizendo — Somos um povo pacífico, e nossas armas<br />
somente são usadas para nossa defesa.<br />
O suposto líder <strong>dos</strong> cavaleiros ergueu uma das mãos, e<br />
ato contínuo, os dois lanceiros que o flanqueavam ergueram<br />
suas lanças e as retornaram para a posição firme e ereta de<br />
antes. Leon percebeu que a postura <strong>dos</strong> cavaleiros era<br />
impecável. As lanças mantinham-se firmes como se<br />
estivessem plantadas no solo, mas estavam apenas sendo<br />
seguradas pelos cavaleiros. Nenhum movimento era<br />
percebido. Ficou admirado com tamanho poder de<br />
concentração.<br />
O cavaleiro da capa esverdeada desceu de sua montaria<br />
e caminhou até Leon que, mais uma vez se surpreendera, pois<br />
apesar da aparência exuberante e pesada daquelas armaduras,<br />
o cavaleiro desmontou e caminhou como se estivesse usando<br />
vestes leves, e o mínimo barulho de metais podia ser ouvido.<br />
Num francês impecável, o cavaleiro misterioso iniciou<br />
uma série de perguntas a Leon, que atônito com a beleza da<br />
voz de seu interlocutor, pouco pôde esclarecer naquele<br />
momento.<br />
— Mas ao menos, podes me dizer de onde vens?<br />
— Claro, somos oriun<strong>dos</strong> de um povo simples. Vivíamos<br />
to<strong>dos</strong> numa cidade chamada Amiens. Infelizmente, uma<br />
guerra nos afugentou de nossos lares e acabamos chegando<br />
até aqui, à procura de um lugar onde pudéssemos viver em<br />
paz.<br />
— Mas como chegaram até aqui? Quem os trouxe?<br />
— É uma história muito estranha, não creio que você<br />
possa acreditar. — Leon sabia que ninguém iria acreditar<br />
naquela conversa de Etiènne, porque mesmo ele ainda não<br />
145
havia acreditado, e achava que fora tudo fruto da imaginação<br />
do jovem Montbard.<br />
Leon notou que à medida em que conversavam, o<br />
cavaleiro procurava analisar insistentemente suas orelhas, e<br />
por mais de uma vez, foi obrigado a esfregá-las com as mãos,<br />
achando que pudesse haver algum inseto, ou alguma folha<br />
agarrada. Até que não suportou mais a curiosa atitude do<br />
cavaleiro e questionou: — Há algo errado com minhas<br />
orelhas?<br />
O cavaleiro deu um sorriso, e finalmente retirou o elmo<br />
que lhe ocultava quase toda a cabeça, deixando fora apenas os<br />
lábios, o queixo e a parte inferior de seu nariz. — Na verdade,<br />
nunca havia visto antes orelhas tão engraçadas. — Os dois<br />
lanceiros que ainda estavam monta<strong>dos</strong>, mais próximos de seu<br />
líder, também não puderam conter as gargalhadas.<br />
Leon notou que as orelhas do cavaleiro eram pontudas,<br />
como se fossem orelhas de um duende, e também não pôde<br />
deixar de manifestar sua estranheza. — Oras, mas o que é<br />
isso? E as minhas orelhas é que são engraçadas? O que<br />
aconteceu com você? Alguma espécie de tortura? — Leon<br />
continuava examinando suas próprias orelhas, achando<br />
ridícula toda aquela situação, enquanto os cavaleiros não<br />
conseguiam parar de rir.<br />
Os lanceiros também desmontaram e tiraram seus<br />
elmos, revelando a Leon que to<strong>dos</strong> eles possuíam orelhas<br />
pontudas. — Meu Pai do Céu, mas que espécie de gente é<br />
essa? — resmungou alto, ainda admirado com o que estava<br />
presenciando.<br />
— Somos to<strong>dos</strong> elfos, guerreiros do reino de Eluannar!<br />
— Elfos!? E o que são elfos!? Alguma espécie de povo<br />
amaldiçoado?<br />
— Não meu jovem Leon? Não somos um povo<br />
amaldiçoado, pelo menos não éramos até a chegada de vosso<br />
povo.<br />
146
— Como assim? Viemos em paz, não queremos tomar<br />
nada de ninguém. Mesmo que quiséssemos, somos na maioria<br />
fazendeiros, aldeões sem qualquer instrução de guerra —<br />
afirmava Leon, com medo de que pudesse acontecer alguma<br />
represália devido ao último comentário que ouvira.<br />
— É tudo uma questão de tempo e aprendizado. Não<br />
somos como vocês, humanos. Como eu disse, somos elfos! —<br />
enfatizou. — Somos uma raça de seres diferentes. Apesar da<br />
aparência muito familiar, as maiores diferenças estão dentro<br />
de nós, e não externamente.<br />
— Isso tudo é muito incrível!<br />
— Sim, imagino que seja muito difícil para entender<br />
agora, mas com tempo irá conhecer e aprender muito mais!<br />
Leon, ainda preocupado com a afirmativa de que os<br />
elfos não eram amaldiçoa<strong>dos</strong> até a chegada do povo de<br />
Amiens, tornou a tocar neste assunto.<br />
— Mas... o que quis dizer com “Não éramos<br />
amaldiçoa<strong>dos</strong> até a nossa chegada”?<br />
— Bom, haverá tempo para falarmos sobre isso. Por<br />
hora, quero apresentar-me. Sou Lasthion, capitão da guarda<br />
de fronteiras, e esses dois são meus lanceiros Asgadhir e<br />
Althinor — os dois fizeram uma breve reverência com a<br />
cabeça — o cavaleiro que traz o estandarte é meu filho,<br />
Althalion, e o outro é nosso cavaleiro de armas, Lothanir.<br />
— Vai ser bem difícil guardar o nome de vocês — sorriu<br />
Leon, achando engraça<strong>dos</strong> to<strong>dos</strong> aqueles nomes.<br />
Após feitas todas as apresentações, Lasthion ordenou<br />
que seu filho, Althalion, despachasse alguns batedores para<br />
certificar-se de que estavam seguros naquele local, e enviou<br />
um mensageiro escoltado ao reino de Plarionthil, o maior de<br />
to<strong>dos</strong> os reinos élficos, informando da era <strong>dos</strong> homens.<br />
<br />
Os elfos esperavam há muito tempo, A era <strong>dos</strong> homens,<br />
mas ao contrário de como fora, eles achavam que essa chegada<br />
147
fosse acontecer de forma mágica, cercada de fenômenos<br />
sobrenaturais. Até certo ponto, o encontro acabou<br />
acontecendo de uma maneira muito tranquilizadora para os<br />
elfos.<br />
A enorme curiosidade era mútua, e logo, elfos e homens<br />
estavam mistura<strong>dos</strong> procurando conhecer tudo o que podiam<br />
acerca uns <strong>dos</strong> outros.<br />
Lasthion era o mais entusiasmado de to<strong>dos</strong>, e ficou o<br />
tempo inteiro ao lado de Leon, para cima e para baixo, mas<br />
sempre escoltado por seus lanceiros Asgadhir e Althinor.<br />
Prometeu ajudar Leon a erguer ali uma vila, mas o alertou <strong>dos</strong><br />
muitos perigos a que estariam expostos, principalmente sobre<br />
os orcs da tribo Drumbaidai.<br />
Pela descrição que Lasthion fizera, Leon ficou incrédulo<br />
ao ouvir sobre os orcs e ao mesmo tempo, atemorizado. Mas o<br />
destino estava sendo benevolente com Leon e com os que<br />
escolheram ficar com ele, porque Lasthion se admiraria pelos<br />
homens, e iria cumprir todas as promessas feitas a Leon. Não<br />
só ajudaria a erguer uma grande vila, como proveria recursos<br />
e proteção nos primeiros anos, mantendo os orcs sempre<br />
afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> homens.<br />
A amizade entre Lasthion e Leon foi se consolidando a<br />
uma velocidade incrível. Os dois realizaram juntos o<br />
planejamento e a construção de Nouvelle Amiens com muita<br />
empolgação e muito carinho. Cada coluna, cada casa, a praça,<br />
tudo construído com a ajuda <strong>dos</strong> elfos, levando o toque<br />
especial da beleza arquitetônica que lhes é peculiar.<br />
Leon estava tão encantado que por um longo tempo<br />
adiou seus planos de encontrar seu pai para tentar uma<br />
aproximação amigável.<br />
Lasthion, por sua vez, entregue em sua admiração pelos<br />
homens, conseguiu fazer com que o rei de Eluannar recebesse<br />
Leon no palácio, para conhecê-lo. Leon ainda voltou a<br />
Eluannar mais duas vezes posteriormente, para aprender<br />
sobre <strong>Virgo</strong> com os elfos, e também aprender a língua élfica.<br />
148
A primeira coisa que aprendeu foi como os elfos se<br />
referiam àquele lugar que os homens haviam batizado de<br />
<strong>Virgo</strong>. Entre os elfos, o lugar era conhecido como Thalide.<br />
149
A<br />
CAPÍTULO XI<br />
Encontros e separações<br />
caminhada de Michel e seus seguidores fora<br />
demasiadamente árdua. Atravessaram toda a Planície de<br />
Prata, cruzando as nascentes de dois perigosos rios, até que<br />
costeando a montanha de <strong>Virgo</strong>, pudessem chegar a uma<br />
imensa cadeia de montanhas muito íngremes e de rochas<br />
negras, a que batizaram de Montanhas Negras.<br />
Foram três longas semanas de uma caminhada muito<br />
vagarosa por causa <strong>dos</strong> mais i<strong>dos</strong>os e das crianças. Apesar de<br />
poucos obstáculos, como os rios que tiveram que atravessar e<br />
a escassez de alimentos que os obrigou a fazer um<br />
racionamento, a travessia da Planície de Prata transcorreu sem<br />
maiores sustos. Michel não sabia, mas vinha sendo observado<br />
a algumas milhas por um pequeno e sorrateiro bando de<br />
goblins, que esperava uma oportunidade para investir em sua<br />
caravana e pilhar seus pertences.<br />
Etiènne, sem desconfiar do perigo que to<strong>dos</strong> corriam,<br />
vinha há dias falando incessantemente a respeito de Sindazel,<br />
e afirmava a todo tempo que, tão logo encontrassem um lugar<br />
onde pudessem se estabelecer, ele partiria em busca daquela<br />
criatura esplêndida, por quem se apaixonara.<br />
— Grassac, você não acredita, mas se tivesse conhecido<br />
Sindazel, me daria razão.
— Pois é Etiènne, você tem de admitir que é uma<br />
história muito fantástica para que eu possa acreditar sem<br />
confirmar com meus próprios olhos.<br />
— Então, não mereço crédito? Afinal, chegamos ao lugar<br />
que eu havia mencionado, graças à ajuda de Sindazel.<br />
— Se ela for mesmo bela como descreve, quem sabe não<br />
tem uma irmã que eu possa conhecer?<br />
— Pode esquecer isso! Não existe a menor possibilidade<br />
de levar alguém comigo nessa busca. Irei encontrá-la sozinho,<br />
e mesmo que tenha uma irmã, certamente não será para seu<br />
bico! — exclamou furioso Etiènne, mas no fundo, teve ciúmes<br />
só em pensar que outros homens poderiam se aproximar de<br />
sua Sindazel. — Essa raça é muito superior, não vai querer se<br />
misturar com os homens, eu sou uma exceção porque fui o<br />
primeiro a ter contato com eles.<br />
Grassac deu um largo sorriso — Entendo.<br />
<br />
Ainda cansa<strong>dos</strong>, começaram a se organizar para<br />
acampar aos pés das Montanhas Negras. A noite caía<br />
bruscamente, ao contrário de como estavam acostuma<strong>dos</strong> em<br />
Amiens, mas isso eles aprenderam rápido nos dias que se<br />
passaram.<br />
Algumas fogueiras foram acesas, e não tardou para que<br />
o manto negro da noite os cobrisse a to<strong>dos</strong>. Apesar do clima<br />
mais ameno em <strong>Virgo</strong>, as noites eram sempre mais frias, o que<br />
os obrigava a proteger-se em mantas e cobertas.<br />
Ninguém sabe ao certo como aconteceu, nem quem foi o<br />
primeiro a se deparar com aquelas horrendas criaturas, mas<br />
um grito de pavor cortou a noite, sobressaltando a to<strong>dos</strong>.<br />
Estava muito escuro, vultos passavam de um lado para<br />
outro, ora carregando sacos, ora brandindo pequenas espadas<br />
e emitindo um som tenebroso, como se fossem guinchos de<br />
enormes morcegos.<br />
151
Michel, estava junto de Etiènne no momento em que<br />
toda aquela confusão começou. Segurava uma tocha com uma<br />
das mãos, e a espada com a outra. Ficaram de costas um para<br />
outro, cada um defendendo a retaguarda de seu par.<br />
Peter, correu para uma pedra alta, mas pouco podia<br />
fazer com seu enorme arco, porque a visibilidade era quase<br />
nenhuma. Grassac era o único que estava, de fato, enfrentando<br />
os inimigos, uma vez que era seu turno de vigia e<br />
prontamente correu em direção ao pavoroso grito que uma<br />
mulher emitira em seu desespero, ao ser atacada por um <strong>dos</strong><br />
goblins.<br />
Custou para que entendesse o que se passava, mas o<br />
instinto pela sobrevivência o fez matar vários <strong>dos</strong> goblins que<br />
tentavam matá-lo.<br />
Os guinchos <strong>dos</strong> monstrinhos eram pavorosos, e a<br />
gritaria das mulheres e crianças apavoradas no meio da noite<br />
aumentava ainda mais o terror que to<strong>dos</strong> estavam sentindo.<br />
O tumulto já durava cerca de vinte minutos quando uma<br />
trombeta rouca se fez ecoar estremecendo a noite. Parecia o<br />
som de um berrante, muito alto, e como se fossem domina<strong>dos</strong><br />
por um medo incompreensível, os goblins largaram tudo o<br />
que estavam fazendo e saíram aos guinchos, desespera<strong>dos</strong>, em<br />
direção à floresta, embrenhando-se em meio à vegetação e as<br />
árvores.<br />
— Estão to<strong>dos</strong> bem!? — Grassac, exausto, tentava<br />
contato com Michel e Etiènne — Michel!? Etiènne!?<br />
O primeiro a se aproximar fora Peter, que desceu do alto<br />
da rocha onde havia se alojado, para avisar a Grassac que uma<br />
enorme fileira de tochas vinha em sua direção, pelo lado oeste<br />
das Montanhas Negras.<br />
— Que outras surpresas nos aguardam? — questionou<br />
Grassac, levantando o cadáver de um <strong>dos</strong> goblins que matara<br />
e revelando seu asqueroso rosto ao amigo britânico.<br />
— Meu Deus! Mas que demônio é isso!? — espantado<br />
com as feições horrorosas do goblin, Peter fez o sinal da cruz e<br />
152
afastou-se de Grassac, advertindo-o para que largasse aquele<br />
demônio e se afastasse.<br />
— Calma Peter, esse já está morto! Seja lá o que for, não<br />
causará mais mal a ninguém. — Grassac ainda ficou um<br />
tempo analisando as feições demoníacas da criatura. — Quem<br />
diria que um dia eu encontraria um demônio assim? Talvez<br />
seja um sinal de Deus para que eu retome os trabalhos de meu<br />
falecido pai.<br />
— Que tipo de trabalho seu pai fazia, Grassac?<br />
— Ele foi um Cavaleiro Templário, mas sua ordem foi<br />
totalmente esmagada e perseguida pelo clero da própria<br />
Igreja. Hoje os que ainda vivem, escondem-se e sobrevivem<br />
sob a doutrina de uma nova ordem secreta.<br />
A conversa de Peter e Grassac fora interrompida por<br />
Michel e Etiènne, que chegaram esbafori<strong>dos</strong> junto aos amigos,<br />
a fim de saber melhor o que se passava.<br />
Quase não houve tempo para maiores esclarecimentos,<br />
pois imediatamente à chegada <strong>dos</strong> irmãos Montbard, um<br />
enorme contingente de seres estranhamente pequenos podia<br />
ser avistado ao longo. Marchavam de forma cadenciada, e<br />
traziam dezenas de tochas fazendo com que um forte clarão<br />
irrompesse no local.<br />
Com a luminosidade, puderam observar com grande<br />
curiosidade e medo aquelas criaturas troncudas mas muito<br />
robustas, protegidas por reluzentes armaduras e elmos, e<br />
carregando enormes macha<strong>dos</strong> de batalha que fariam inveja<br />
aos mais experientes forjadores francos.<br />
Tratava-se de uma enorme e bem organizada tropa de<br />
anões, oriundas do reino de Bakkim. Os anões, por sua vez,<br />
também ficaram muito impressiona<strong>dos</strong> com toda aquela gente<br />
estranha. Jamais tiveram conhecimento <strong>dos</strong> homens, e num<br />
primeiro momento, acreditaram que estavam encontrando<br />
com algum grupo de elfos.<br />
153
Um murmúrio percorreu as fileiras da tropa de anões até<br />
que, mais uma vez, a trombeta <strong>dos</strong> anões soou, e em seguida,<br />
to<strong>dos</strong> silenciaram.<br />
Um único anão caminhou vagarosamente na direção <strong>dos</strong><br />
peregrinos, a passos firmes e barulhentos. Parou diante de<br />
Michel e seus companheiros, e fitou um a um, com olhar<br />
surpreso. Com uma linguagem rude e gutural, pronunciou<br />
algumas palavras indescritíveis, em tom ameaçador.<br />
Os companheiros se entreolharam, sem saber ao certo<br />
como reagir diante de tão inusitada situação. To<strong>dos</strong> ainda<br />
seguravam suas armas. Peter, um pouco mais à distância,<br />
tinha o anão bem na mira de seu longo arco.<br />
Etiènne, afoito como sempre, deu um passo na direção<br />
do anão anunciando que estavam ali apenas defendendo-se de<br />
uma horda de monstros tenebrosos.<br />
O anão imediatamente deu as costas aos homens ali<br />
para<strong>dos</strong>, e caminhou em direção ao seu grupo. To<strong>dos</strong> ficaram<br />
pasmos com a arrogância daquela criatura pequena e<br />
insignificante.<br />
— Seria uma ótima idéia revermos a questão do nome<br />
que escolhemos para este lugar — comentou Grassac. — De<br />
virgem, não tem nada! Por enquanto, parece que estamos<br />
to<strong>dos</strong> tendo um pesadelo.<br />
— Sou obrigado a concordar — concordou Michel, e os<br />
demais, ainda assusta<strong>dos</strong> com o desenrolar da agitada noite,<br />
assentiram com a cabeça, também concordando.<br />
Enquanto os anões faziam uma enorme algazarra, vários<br />
<strong>dos</strong> franceses peregrinos se aproximaram de Michel e seus<br />
companheiros, movi<strong>dos</strong> pela curiosidade.<br />
Aquele impasse durou ainda cerca de cinco minutos. Os<br />
anões pareciam discutir calorosamente acerca <strong>dos</strong> peregrinos<br />
que estavam ali, e muito provavelmente, deviam estar<br />
decidindo o que fariam a respeito.<br />
154
— Talvez tenhamos invadido a terra dessa gente —<br />
cogitou Michel, muito apreensivo, demonstrando um<br />
expressivo ar de preocupação.<br />
— Seja como for, não poderemos sair daqui no meio da<br />
madrugada com aqueles demônios soltos por aí! Teremos de<br />
fazer um acordo com esse povo de meia altura! — asseverou<br />
Grassac.<br />
— Isso é verdade, não vamos nos arriscar. Já estamos<br />
muito expostos aqui nesse lugar desconhecido. E depois, que<br />
outras surpresas ainda poderemos encontrar? — Michel, a<br />
essa altura, não discordaria de Grassac por nada nesse mundo.<br />
— Já viram demônios, agora estamos aí, diante de uma<br />
legião de anões bizarros, arma<strong>dos</strong> até os dentes. Quem sabe<br />
agora acreditem que Sindazel existe, e ela é exatamente como<br />
descrevi a vocês?<br />
Etiènne, apesar de estar apreensivo, tanto quanto seus<br />
amigos, não pôde deixar de sentir-se um pouco mais<br />
confortável para falar de Sindazel. Afinal, depois de tantas<br />
criaturas bizarras que jamais haviam visto, de fato, por que<br />
não poderia existir algo como sua amada?<br />
Michel e Grassac se olharam, e por um ínfimo momento<br />
se descontraíram, erguendo as sobrancelhas, um para o outro,<br />
como que ainda não dando muito crédito a Etiènne. Mesmo<br />
Grassac, que era o maior entusiasta de Etiènne, não conseguia<br />
acreditar sobre Sindazel.<br />
Já não bastava o estado de tensão em que ainda se<br />
encontravam, novos gritos puderam ser ouvi<strong>dos</strong>, oriun<strong>dos</strong> de<br />
um ponto pouco mais distante de onde estavam naquele<br />
momento. To<strong>dos</strong> correram na direção <strong>dos</strong> gritos, receosos de<br />
que as criaturas demoníacas pudessem ter retornado.<br />
Ao chegarem no local, uma mulher ajoelhada estava em<br />
prantos, gritando de angústia, diante de uma criança que<br />
parecia ter ainda uns oito ou nove anos de idade.<br />
A criança estava desacordada, e suas vestes estavam<br />
banhadas em sangue. Algum demônio daqueles teria cortado<br />
155
seu ventre, e a mulher, que na verdade era a mãe da menina<br />
ferida, acreditava que havia perdido sua filha.<br />
O alarde também chamou a atenção <strong>dos</strong> anões, e desta<br />
vez, vários deles vierem correndo também ao local do novo<br />
tumulto. Faziam uma enorme barulheira, gesticulando muito e<br />
conversando numa linguagem rude. Dois deles agacharam-se<br />
perto da mulher, que aos prantos, se abraçou ao corpo da<br />
filha, tentando protegê-la daquelas criaturas bizarras.<br />
O anão que anteriormente havia chegado mais perto de<br />
Michel, em tom conciliador, ainda que com sua tenebrosa voz<br />
gutural, falou à mulher — Minha senhora, não tenha medo,<br />
esses bravos guerreiros são exímios doutores na arte da cura.<br />
Se houver algo que possa ser feito, eles farão!<br />
O francês pronunciado pelo anão era muito precário,<br />
mas ainda assim, podia-se entender o que ele queria dizer. A<br />
mulher, muito aflita, em inconsolável desespero, não se<br />
desgrudava de forma alguma de sua filha.<br />
Grassac, chegou próximo à mulher, abraçou-a e tentou<br />
convencê-la a soltar sua filha, a fim de que os anões pudessem<br />
socorrê-la. Estes, alheios ao desespero da mulher, limitavamse<br />
a preparar um estranho líquido numa pequena gamela, com<br />
uma espécie de raiz que ralavam apressadamente sobre o<br />
preparado.<br />
Michel, sempre ranzinza e desconfiado de tudo,<br />
reclamou do fedor daquela raiz ralada. Depois que se<br />
distanciou definitivamente de Leon, Michel havia se tornado<br />
visivelmente mais irritado e menos tolerante com tudo do que<br />
já sempre fora outrora.<br />
— Meu Deus! Espero que isso não seja para beber,<br />
certamente matará a pobre criança! — comentou Michel,<br />
fazendo uma cara de nojo para os dois anões que<br />
concentravam-se no estranho preparado. Na verdade, era um<br />
ungüento à base de raízes medicinais muito gordurosas, que<br />
os anões cultivavam no interior de suas cavernas.<br />
156
— Não se preocupe, criatura — interferiu o anão. — Esse<br />
ungüento é capaz de ressuscitar até mesmo dragões —<br />
afirmou o anão.<br />
Após aquecer levemente a gamela, os anões ensoparam<br />
um tecido com o espesso preparado, como que<br />
transformando-o num emplastro, Cobriram a ferida da<br />
menina, que se contorceu ao primeiro contato do estranho<br />
medicamento. Limparam bem o local da ferida, e foram<br />
examinando cuida<strong>dos</strong>amente a gravidade do ferimento.<br />
Os anões pediram que to<strong>dos</strong> se afastassem, inclusive a<br />
mãe da menina. Ela relutou muito antes de aceitar a idéia de<br />
ter que se afastar da filha, mas com a insistência de Michel e<br />
Grassac, garantindo que era para o bem da menina, e que<br />
talvez aqueles anões pudessem ser a única esperança, ela<br />
cedeu.<br />
Enquanto os dois anões curandeiros cuidavam da<br />
menina ferida, o outro anão, o que conseguia falar a língua<br />
francesa precariamente, chamou a atenção de Michel para que<br />
se afastassem um pouco mais de to<strong>dos</strong> os outros. Etiènne<br />
mostrou-se imediatamente contrário a esta idéia.<br />
— Não existem segre<strong>dos</strong> entre nós! Não há nada que<br />
Michel possa saber, que to<strong>dos</strong> nós também não possamos<br />
compartilhar! — esbravejou Etiènne, partindo para cima do<br />
anão, que não se intimidou.<br />
— Etiènne, por favor! — Michel tentou acalmar o irmão<br />
mais novo, mantendo-o afastado do anão com uma das mãos.<br />
— Não sei quem são to<strong>dos</strong> vós, mas vos garanto que<br />
estão correndo perigo — asseverou o anão. — Vocês deram<br />
sorte de terem se deparado com estes goblins. Se tivessem<br />
encontrado com orcs, poderiam estar to<strong>dos</strong> mortos agora, não<br />
teria sobrado ninguém!<br />
— O que são goblins e orcs? — indagou Grassac.<br />
— São criaturas do mal, que surgiram numa época em<br />
que as trevas dominaram estas terras, quando todas as<br />
157
criaturas perversas andavam livremente espalhando o terror<br />
entre to<strong>dos</strong> os povos de todas as raças.<br />
— Vejo que a vida nestas terras é muita agitada e cheia<br />
de hostilidades. Já não tenho certeza de que chegarmos até<br />
aqui fora uma boa idéia — declarou Michel.<br />
— Não conheço vossa história, a não ser por uma antiga<br />
lenda que minha raça jamais acreditou. Mas no que depender<br />
<strong>dos</strong> anões, poderemos estabelecer trata<strong>dos</strong> de paz e amizade<br />
que, tenho certeza, nos beneficiará a to<strong>dos</strong>! Não obstante, caso<br />
vosso povo mostre-se semelhante aos odiosos elfos, não<br />
hesitaremos em forçá-los a deixar este lugar o mais<br />
rapidamente possível!<br />
— Nada sabemos sobre elfos! — tomou a palavra<br />
Etiènne. — Mas no que diz respeito ao nosso grupo, já nos<br />
sentimos devedores da oportuna intervenção de sua tropa,<br />
que nos salvou a to<strong>dos</strong>. A quem devemos dirigir nosso sincero<br />
agradecimento?<br />
— Chamo-me Bakhin, general em exercício desta<br />
valorosa tropa que está sob meu comando. Levarei vosso<br />
agradecimento a nosso reino, anunciando vossa chegada a<br />
Azur.<br />
Etiènne fez uma mesura em reverência ao anão, e foi<br />
imitado por seus amigos Peter e Grassac. Michel olhou de<br />
soslaio para ambos, um pouco contrariado e um pouco<br />
enciumado por seu irmão ter-lhe tomado a palavra.<br />
O anão também curvou-se diante <strong>dos</strong> homens e retirouse<br />
para junto de sua tropa.<br />
Não demorou muito tempo até que os dois anões<br />
curandeiros deixassem a menina descansando, com os<br />
cuida<strong>dos</strong> que lhe aplicaram, e dirigiram-se a seu general, o<br />
anão que se apresentara como sendo Bakhin.<br />
Momentos depois, Bakhin voltou ao encontro <strong>dos</strong><br />
homens e, dirigindo-se a Etiènne com seu vocabulário rude da<br />
língua francesa, afirmou que a menina se salvaria. To<strong>dos</strong><br />
158
comemoraram a notícia, e o grupo de Bakhin se prontificou a<br />
acampar nas proximidades, oferecendo proteção aos homens.<br />
<br />
Por alguns dias, os anões mantiveram-se acampa<strong>dos</strong><br />
com o povo de Amiens, e fizeram amizade com todas as<br />
pessoas. Eles podiam ser feios e esquisitos, mas eram muito<br />
prestativos, cordiais, e quando humora<strong>dos</strong>, garantiam a<br />
alegria de to<strong>dos</strong>. Ouviram falar com espanto sobre as riquezas<br />
<strong>dos</strong> reinos <strong>dos</strong> anões, e ficaram admira<strong>dos</strong> ao saber que<br />
existiam tantas criaturas fantásticas que ainda poderiam<br />
conhecer naquele lugar.<br />
Ficaram impressiona<strong>dos</strong>, sobretudo, com as histórias<br />
acerca de dragões e elfos, principalmente estes últimos, que os<br />
anões relatavam como se fossem criaturas perigosíssimas,<br />
dissimuladas, falsas e traiçoeiras.<br />
A conversa tornou-se mais interessante quando Bakhin<br />
começou a falar sobre os Vangis. Etiènne ficou louco ao ouvir<br />
a descrição da raça que era exatamente como Sindazel.<br />
— Você conhece os Vangis!? Sabe como posso chegar até<br />
eles? — por um instante Etiènne pareceu esquecer tudo à sua<br />
volta, e ficou vidrado em Bakhin.<br />
O anão fitou Etiènne por alguns segun<strong>dos</strong>. — Ninguém<br />
pode chegar até os Vangis, a menos que eles mesmos o levem<br />
à sua cidade.<br />
— Eu estive na cidade deles. Conheci Granuzael e<br />
Sindazel.<br />
— Você é uma pessoa afortunada. Jamais conheci<br />
alguém que tivesse ido ao céu de Azur. Mas já ouvi falar de<br />
Granuzael, uma espécie de ministro da Vangilla.<br />
— Azur? — questionou Etiènne. — É a segunda vez que<br />
o ouço falar neste nome, desde a noite em que nos<br />
conhecemos. O que significa esta palavra?<br />
159
— Sim, Azur é o nome pelo qual conhecemos este<br />
mundo em que vivemos, e para seu conhecimento, chamamos<br />
de Vangilla toda a abóbada celeste de nosso mundo.<br />
— Sim, este último nome eu conheço, pois eles mesmos<br />
chamam sua morada de Vangilla — confirmou Etiènne.<br />
— Aqui existem muitos nomes para uma mesma coisa.<br />
Mas você acaba se acostumando — sorriu Bakhin, com<br />
cortesia. O anão cultivara uma grande simpatia por Etiènne.<br />
Michel, atento a tudo que Bakhin procurava ensinar<br />
para eles a respeito de <strong>Virgo</strong>, finalmente foi obrigado a<br />
acreditar em seu irmão acerca de Sindazel e <strong>dos</strong> Vangis.<br />
— Então, quer dizer que Sindazel existe mesmo!<br />
Neste momento, Grassac levantou-se e deu dois leves<br />
tapas no ombro de Michel, insinuando que mais uma vez,<br />
Etiènne não o havia enganado, e com ar de satisfação afastouse<br />
do grupo por alguns instantes.<br />
Um brilho de esperança surgiu no olhos de Etiènne.<br />
Agora, ele voltou a acreditar que seria possível encontrar<br />
novamente Sindazel.<br />
Depois deste dia, Etiènne não desgrudou mais um<br />
minuto sequer de Bakhin. Onde um estava, o outro poderia<br />
ser facilmente encontrado.<br />
Etiènne, começou a cultivar em seu interior um enorme<br />
desejo de partir com Bakhin para o outro lado das Montanhas<br />
Negras. Queria conhecer o reino onde morava Bakhin, e<br />
também, queria descobrir uma forma de reencontrar Sindazel.<br />
Não revelou logo esse desejo secreto a seu irmão Michel, mas<br />
sabia que o momento de Bakhin deixá-los já estaria se<br />
aproximando. Precisava tomar uma decisão antes que isso<br />
acontecesse.<br />
Michel, por sua vez, estava decidido a construir sua<br />
morada aos pés daquelas montanhas, porque o lugar era<br />
muito agradável, a despeito da inesperada recepção pelo<br />
bando de goblins. Tinham ali perto, um amplo terreno para<br />
plantio, um açude nas proximidades e uma cachoeira pouco<br />
160
mais acima de onde estavam acampa<strong>dos</strong>. Enfim, para Michel,<br />
a busca havia terminado, já estavam no lugar que sonharam.<br />
Os anões, muito prestativos, permaneceram mais tempo<br />
junto aos homens e os ajudaram a erguer as primeiras<br />
construções, com muito entusiasmo. Mas não podiam ficar ali<br />
para sempre, e assim, chegou o dia em que teriam de deixar os<br />
homens à sua própria sorte.<br />
Enquanto Bakhin organizava sua gente, Etiènne chamou<br />
seu irmão para uma conversa reservada, e em poucos minutos,<br />
estariam emburra<strong>dos</strong> um com o outro, mas nada, nada<br />
mesmo, demoveria de Etiènne, a idéia de partir com Bakhin.<br />
Desta vez, nem mesmo Grassac concordou com essa idéia de<br />
seu amigo Etiènne, afinal, ainda não haviam se estabelecido<br />
de fato naquele lugar, e sua ausência faria muita falta.<br />
Mas não haviam argumentos no mundo que pudessem<br />
fazer Etiènne mudar de idéia. O pensamento constante em<br />
Sindazel o bloqueava para qualquer outro assunto ou decisão<br />
importante que fosse necessária tomar.<br />
Foi ali mesmo, aos pés das Montanhas Negras, numa<br />
das regiões mais inóspitas de <strong>Virgo</strong>, que o povo <strong>dos</strong> homens<br />
oriun<strong>dos</strong> de Amiens e conduzi<strong>dos</strong> por Michel e seus<br />
companheiros ergueu sua tão sonhada nova cidade.<br />
Não havia mais o velho Conselho de Conspiradores. Da<br />
cúpula do grupo, restou apenas o próprio Michel. Nem<br />
mesmo seu irmão Etiènne ficaria ali, para ver nascer o fruto de<br />
tantos meses de planejamento e tanto sofrimento.<br />
Michel, recordou com sau<strong>dos</strong>ismo o tempo em que se<br />
reuniam escondi<strong>dos</strong> no celeiro de Dízier. Já fazia tanto tempo.<br />
Lembrou <strong>dos</strong> irmãos Ballec, de seu antigo amigo Leon, do<br />
falso lenhador, que por tanto tempo esteve com ele, sem nada<br />
perceber. Recordou-se da promessa feita a Dízier, de que o<br />
buscaria assim que tivessem encontrado a nova moradia. E<br />
lembrou de tantos outros que participaram do movimento,<br />
mas com menor grau de importância.<br />
161
Grassac aproximou-se, acompanhado de Peter, ambos<br />
trazendo canecas com um capitoso e encorpado vinho.<br />
— Michel, trouxemos um excelente vinho oferecido pelo<br />
povo pequeno. — Grassac se acostumou a referir-se aos anões<br />
como “o povo pequeno”. Também ele havia se admirado pelos<br />
pequenos anões. A despeito de serem assustadores dentro<br />
daquelas imponentes armaduras, portando enormes e afia<strong>dos</strong><br />
macha<strong>dos</strong> de batalha, eram também muito solícitos e amáveis.<br />
Verdadeiros mestres da construção, com a utilização de metais<br />
e rochas.<br />
<br />
Bakhin, ao lado de Etiènne, conduzia seus homens, ou<br />
seria melhor dizer, seus anões, a caminho de casa. Partiram<br />
bem cedo, assim que as primeiras luzes de <strong>Virgo</strong> projetaramse<br />
ao longo da rósea abóbada celeste que os cobria.<br />
No meio daqueles anões, Etiènne seguiu esperançoso de<br />
rever Sindazel. Em seu íntimo, alguma coisa lhe dizia que ele<br />
iria encontrar sua amada.<br />
162
A<br />
CAPÍTULO XII<br />
Alvorecer de uma amizade<br />
travessar as Montanhas Negras era algo extremamente<br />
perigoso de se realizar. Não fossem as trilhas conhecidas<br />
por Bakhin e seu povo, jamais conseguiriam fazer a travessia<br />
para o outro lado das montanhas. Etiènne, por várias vezes<br />
durante o percurso de subida, foi obrigado a pedir ajuda de<br />
seus companheiros anões, devido às dificuldades que teve por<br />
causa de sua altura. Para Etiènne, que não estava acostumado<br />
com escaladas tão íngremes quanto aquela, trilhas tão estreitas<br />
e vertiginosas, o fôlego era rapidamente consumido.<br />
Para chegar ao topo das Montanhas Negras, onde<br />
encontra-se o mais seguro ponto de passagem para o outro<br />
lado, levaram praticamente dois dias, a considerar que foram<br />
obriga<strong>dos</strong> a pernoitar nas encostas, já a meio caminho<br />
percorrido, quando a noite os cobriu.<br />
Além das trilhas que permitem essa travessia sobre a<br />
montanha, existe um caminho alternativo, que é tão mais<br />
rápido quanto perigoso. Uma longa e sinuosa senda corta a<br />
montanha ao meio, de leste a oeste; entretanto, apelidada de<br />
Senda da Morte, o nome lhe faz jus e já fora cenário de<br />
inúmeras emboscadas, levando milhares de anões, elfos e<br />
goblins a perecer naquela enorme e sinistra garganta rochosa.<br />
Do ponto de passagem, literalmente o cimo das<br />
Montanhas Negras, pois tratava-se do ponto mais alto de<br />
<strong>Virgo</strong>, e por conseguinte, o ponto mais próximo que Etiènne
conseguiria chegar da Vangilla por seus próprios meios,<br />
podia-se observar a beleza e a vastidão daquele magnífico<br />
lugar.<br />
Para cada ponto que Etiènne olhasse, via uma beleza<br />
distinta. Para o norte, podia acompanhar até perder de vista as<br />
encostas das Montanhas Negras. Para o oeste, e noroeste,<br />
podia ver um mar de florestas, e também a Planície de Prata,<br />
que há pouco mais de um ano havia atravessado com seu<br />
irmão e seus amigos de Amiens. Teve saudade de Michel, e<br />
lembrou com amargura de Leon, pensando como estaria<br />
passando seu antigo protetor e o grupo de pessoas que<br />
resolvera ficar com ele.<br />
Olhou então para o lado leste, e percebeu que o leste era<br />
um enorme planalto, com uma extensa floresta aos pés das<br />
Montanhas Negras, que se precipitava por uma planície mais<br />
baixa. Conseguiu identificar outra cadeia de montanhas ao<br />
longe, encerrando a planície.<br />
Para o nordeste, até onde sua vista podia alcançar,<br />
haviam apenas montanhas e mais montanhas.<br />
Por mais privilegiada que fosse sua posição, as<br />
limitações de sua visão não permitiam que ele pudesse<br />
conhecer muitas maravilhas que existiam nas mais extremas<br />
regiões de <strong>Virgo</strong>. Não era possível distinguir no meio daquele<br />
mundo de montanhas o Vale da Neblina; não podia ver no<br />
coração das florestas a oeste, o Mar Caudaloso e a encantadora<br />
Ilha Kirbuz, habitada pelos temi<strong>dos</strong> vutuks; não podia ver, a<br />
Região Vulcânica bem ao norte; não podia identificar a<br />
Floresta das Sombras, nem mesmo o tenebroso Lago Negro, às<br />
margens da Floresta Preciosa. Não pôde ver os fascinantes<br />
reinos élficos, com suas riquezas e suntuosas construções<br />
dentro das florestas. Um dia, Etiènne conheceria tudo isso.<br />
Após tentar fazer um reconhecimento de <strong>Virgo</strong>, Etiènne<br />
ergueu o rosto, e viu mais perto do que nunca, aquele<br />
maravilhoso céu de cristais rosa<strong>dos</strong>, e daquela distância, tão<br />
164
perto, chegava a ficar com dor nos olhos ao tentar contemplar<br />
por muito tempo aquele gigantesco e mágico teto de vidro.<br />
Fechou os olhos e manteve seu rosto erguido, ficou<br />
concentrado, como se estivesse tentando fazer contato com<br />
Sindazel, ou tentando se fazer perceber por sua amada.<br />
— Etiènne! — interrompeu Bakhin. — Precisamos descer<br />
logo, não podemos demorar aqui em cima.<br />
— Sabe Bakhin, estava aqui pensando, se não existe<br />
mesmo uma forma de chegar à Vangilla, sem ser levado pelos<br />
Vangis.<br />
— Acredite amigo. Não existe outra forma. Mesmo que<br />
houvesse um caminho para Vangilla, o poder mágico <strong>dos</strong><br />
Vangis não permitiria que você chegasse perto demais.<br />
Etiènne, finalmente cedeu e baixou o rosto olhando na<br />
direção de seu amigo anão. Bakhin, percebeu o olhar de<br />
profunda tristeza em seu amigo, aquele olhar peculiar das<br />
pessoas apaixonadas que não conseguem alento em nada,<br />
quando não podem estar vivendo intensamente a paixão que<br />
lhes consome a alma.<br />
— Está certo, Bakhin! Voltemos ao caminho.<br />
— Infelizmente, não posso ajudá-lo, Etiènne, mas tenho<br />
certeza de que ainda irá conhecer tantas coisas em Azur que,<br />
não tardará muito para que consiga esquecer os Vangis.<br />
— Não são os Vangis, mas apenas Sindazel. Podia jurar<br />
que senti seu cheiro agora há pouco, enquanto olhava para o<br />
céu rosado e recordava dela.<br />
Bakhin fez uma careta, incrédulo, e virou-se<br />
resmungando algumas palavras em seu rudimentar idioma de<br />
anão.<br />
Em poucos minutos tudo estava organizado e puseramse<br />
novamente em marcha.<br />
A descida das Montanhas Negras a partir do ponto de<br />
passagem no cimo da montanha, era mais tranqüila para o<br />
lado leste, devido à altura ser bem menor. As Montanhas<br />
Negras delimitavam, na verdade, dois níveis de altitude em<br />
165
<strong>Virgo</strong>, sendo todo o lado leste, muito mais elevado do que o<br />
lado oeste.<br />
Levaram apenas metade de um dia para chegar aos pés<br />
das montanhas pelo lado leste, à entrada da mais linda<br />
floresta de <strong>Virgo</strong>, a Floresta Dourada.<br />
A floresta faz jus ao nome, já que as árvores em sua<br />
grande maioria, eram de uma espécie que produzia um<br />
saboroso fruto de cor amarelada, lembrando muito o brilho do<br />
ouro. As folhas desta espécie de árvore, também ficavam<br />
douradas ao ressecarem. <strong>Era</strong> comum o chão da floresta estar<br />
coberto como se fosse uma espécie de tapete dourado, que na<br />
verdade, nada mais era do que o acúmulo de milhares de<br />
folhas que caíram e ressecaram ao longo do tempo.<br />
<strong>Era</strong> comum, nas festas <strong>dos</strong> anões do reino de Bakhin,<br />
utilizarem estas folhas secas para ornamentar suas vestes nas<br />
festas que antecediam às expedições de mineração. Os anões<br />
acreditavam que o uso dessas folhas brilhantes trazia boa<br />
sorte, para que eles encontrassem pedras preciosas em<br />
abundância. Claro que não passavam de crendices, passadas<br />
de geração para geração pelos patriarcas anões desde o início<br />
<strong>dos</strong> tempos.<br />
Já estava para anoitecer, a luminosidade havia caído<br />
bastante e o céu de <strong>Virgo</strong> que estivera tão brilhante durante o<br />
dia, agora dava sinais de cansaço, e seu brilho esmaecia.<br />
Acamparam ali mesmo, aos pés das Montanhas Negras.<br />
Etiènne enrolou-se em sua manta, e recostou-se sobre uma<br />
árvore. Bakhin o havia informado de que aguardariam o<br />
amanhecer para continuar a caminhada através da Floresta<br />
Dourada, até que chegassem a Planície de Ouro, de onde<br />
seguiriam rapidamente para o reino de Bakhin, sob a<br />
Montanha das Garbas.<br />
Tudo despertava a curiosidade de Etiènne, que estava<br />
sempre ávido por aprender sobre <strong>Virgo</strong>. Quis saber o motivo<br />
do nome da montanha e o que significava. Bakhin, sempre<br />
solícito, explicou que a montanha recebeu esse nome porque<br />
166
antigamente, as garbas, uma espécie de águia enorme,<br />
habitavam o seu topo, que era bruscamente achatado<br />
permitindo-lhes que fizessem inúmeros ninhos. Depois da <strong>Era</strong><br />
Trevas, quando o poder maligno dominou aquelas regiões,<br />
elas foram obrigadas a migrar dali e nunca mais retornaram<br />
para aquele local, que lhes fora sagrado por séculos.<br />
Não raro, Etiènne passou a sonhar com as coisas que<br />
Bakhin lhe contava. Às vezes, sonhava com as garbas, com os<br />
vangis, com o reino <strong>dos</strong> anões e seus tesouros, com sua amada<br />
Sindazel, e muitas outras vezes, teria pesadelos com dragões,<br />
orcs e goblins.<br />
O dia amanheceu, e Etiènne percebeu que havia algo<br />
diferente no ar. Parecia estar mais pesado, com um cheiro<br />
forte de carne apodrecida. Percebeu a movimentação <strong>dos</strong><br />
anões, organizando tudo com rapidez, correndo para to<strong>dos</strong> os<br />
la<strong>dos</strong>.<br />
Ainda com muita preguiça, Etiènne levantou-se e fez<br />
alguns exercícios de alongamento, preparando o corpo para<br />
mais um dia de longa caminhada. Estava ansioso em<br />
prosseguir, querendo conhecer mais aquele lugar, e<br />
secretamente, desejando encontrar algo que pudesse levá-lo à<br />
Sindazel.<br />
Caminhando entre aqueles anões apressa<strong>dos</strong>, não<br />
conseguia encontrar Bakhin; então, interrompeu a atividade<br />
de um daqueles pequenos, para questionar sobre o amigo. O<br />
diálogo era algo complicado com os anões, pois em sua<br />
maioria, recusavam usar outro idioma que não fosse o seu.<br />
— Por favor, amigo, sabe onde está Bakhin? — indagou<br />
Etiènne, fazendo uma ridícula mímica para tentar fazer-se<br />
entender pelo anão, que muito a contragosto e irritado por ter<br />
sido interrompido, respondeu à pergunta. Não antes de<br />
resmungar bastante em sua língua rústica.<br />
— Humm, ele partiu antes da aurora, com um pequeno<br />
grupo de batedores. Está desconfiado de que estamos sendo<br />
segui<strong>dos</strong> por goblins selvagens.<br />
167
— Curioso, ele não me disse nada a respeito. — Etiènne<br />
ficou pensativo, tentando imaginar o motivo pelo qual Bakhin<br />
não revelara a ele, a desconfiança de estarem sendo segui<strong>dos</strong><br />
por goblins. Teria perguntado outras coisas ao impaciente<br />
anão, mas ele não se deteve muito com Etiènne e retornou<br />
resmungando para seus afazeres.<br />
Sem encontrar uma maneira de ser útil diante daquele<br />
alvoroço todo provocado pelos anões, Etiènne tornou a sentarse<br />
onde havia passado a noite, e mais uma vez mergulhou em<br />
seus pensamentos, tendo Sindazel como protagonista.<br />
Não conseguia tirar de sua mente aquela imagem<br />
angelical. Por um momento, pensou em como fora idiota, em<br />
não ter abraçado, sentido seu corpo, beijado os lábios de<br />
Sindazel. <strong>Era</strong> tarde demais para pensar nisso, e a possibilidade<br />
de nunca mais poder estar com ela novamente o torturava<br />
mais e mais a cada dia que passava.<br />
Não passou muito tempo, e um anão se aproximou de<br />
Etiènne. Curiosamente, este anão tinha uma pronúncia clara<br />
da língua francesa. Quase não acreditou que aquele anão<br />
pudesse falar tão bem sua língua, e ficou muito satisfeito.<br />
— Não gostaria de incomodar vosso descanso, mas<br />
precisamos partir imediatamente! — afirmou o anão.<br />
Etiènne estava incrédulo ao ouvir o anão proferir<br />
aquelas palavras tão perfeitas.<br />
— Onde está Bakhin? Ele já retornou?<br />
— Partiremos sem ele. Foram ordens expressas. Caso ele<br />
não retornasse até que tudo estivesse pronto para a partida,<br />
não deveríamos mais esperá-lo.<br />
— Mas não podemos deixá-lo para trás, e se ele estiver<br />
precisando de ajuda? — Etiènne estava inconformado. Ainda<br />
não estava acostumado com a frieza <strong>dos</strong> anões, quando<br />
precisavam tomar decisões, e ainda sofreria muito com isso no<br />
futuro. — Por que não organizamos outro grupo para ir em<br />
busca de Bakhin? Vamos deixá-lo à própria sorte?<br />
168
— Estou cumprindo as ordens do rei! Agora apresse-se,<br />
se não quiserdes ficar só!<br />
— O rei!? Onde está vosso rei? Irei convencê-lo a não<br />
abandonarmos Bakhin!<br />
— Bakhin, é o nosso rei!<br />
Etiènne ficou estupefato! Foi surpreendido por esta<br />
revelação e um súbito desejo de reencontrar Bakhin acendeulhe<br />
no coração. Somente naquele momento percebeu que<br />
Bakhin não revelara toda a verdade, por cautela. Um rei sábio<br />
era Bakhin, imaginou, e de repente, um turbilhão de<br />
pensamentos invadiu sua mente.<br />
Precisava encontrar seu amigo anão mais do que nunca.<br />
Que outros segre<strong>dos</strong> poderia guardar Bakhin? Quanta<br />
sabedoria não podia ter aquela criatura, que parecia ser<br />
apenas um truculento general anão, mas que na verdade era<br />
rei? Rei de um reino enorme, rico e maravilhoso, pelas<br />
descrições que o próprio Bakhin havia feito. Não teria ele,<br />
sabedoria suficiente para levá-lo até Sindazel? Claro que<br />
deveria ter!<br />
Etiènne ficou excitado com a revelação, e em sua<br />
inocência, alheio aos perigos de <strong>Virgo</strong>, não teve dúvidas de<br />
que deveria ir atrás de Bakhin.<br />
— Cumpra as ordens de seu rei! — disse Etiènne. — Eu<br />
irei atrás dele. Vosso rei pode estar precisando da ajuda de um<br />
amigo.<br />
— Criatura estranha, é você! Não conhece nada deste<br />
lugar, e sua imprudência poderá levá-lo à morte!<br />
— Não creio nisso. Vá em paz com seu povo, irei ficar<br />
bem, não se preocupe.<br />
— Isso realmente não farei, minha preocupação é<br />
regressar a salvo até nosso reino, conforme me foi ordenado.<br />
— resmungou o anão, visivelmente insatisfeito com a atitude<br />
de Etiènne.<br />
— Pois vá! — confirmou Etiènne sua intenção de ficar.<br />
169
— Venha, lhe deixarei suprimentos para quatro dias;<br />
caso não consiga encontrar-se com Bakhin, siga para a Planície<br />
de Ouro, sempre caminhando a leste, com muita pressa. Não<br />
se detenha em contemplar as belezas da Floresta Dourada, e<br />
não desvie seu caminho para o sul da floresta, pois lá vivem os<br />
Elfos Negros, que são muito traiçoeiros e perigosos.<br />
Etiènne acompanhou o anão, que provavelmente havia<br />
assumido o comando do grupo, na ausência de Bakhin, ou<br />
quem sabe, sempre fora uma espécie de general, oculto em sua<br />
importância devido à presença do rei, e pegou as provisões<br />
prometidas.<br />
Ao se despedirem, o anão confirmou a suspeita de<br />
Etiènne, pois apresentou-se como Dohrum, o general daquele<br />
pequeno contingente de batalha, do reino de Bakkin,<br />
desejando-lhe sucesso na busca por seu rei Bakhin.<br />
Etiènne agradeceu, mas ainda não conseguia aceitar a<br />
idéia daqueles anões abandonarem o próprio rei daquela<br />
forma. Não podia compreender, ainda, o perigo que Bakhin,<br />
há muito, vinha percebendo e temia pela segurança de seu<br />
povo.<br />
Bakhin havia lutado na primeira Guerra da Floresta<br />
Dourada e sabia que seu reino sob à Montanha das Garbas, era<br />
o mais vulnerável <strong>dos</strong> três reinos de anões existentes em Azur.<br />
Qualquer descuido poderia colocar em risco não apenas<br />
aquele grupo, mas todo o seu povo.<br />
Dohrum, partiu com a tropa de anões deixando Etiènne<br />
para trás. Já devia ser quase meio-dia, e não podia perder<br />
tempo. Partiu pela trilha indicada por Dohrum, onde Bakhin<br />
teria seguido bem cedo, com outros dois anões batedores.<br />
Não demorou muito tempo após a partida de Dohrum<br />
para que Etiènne estivesse completamente perdido dentro da<br />
Floresta Dourada. A falta de conhecimento daquele lugar<br />
trouxe à tona o medo do desconhecido, e só então, Etiènne se<br />
deu conta de sua insensatez. Achou que podia ajudar Bakhin,<br />
170
mas ele mesmo agora estava encrencado e precisando de ajuda<br />
para sair daquele imenso labirinto de árvores douradas.<br />
<br />
Enquanto isso, do outro lado das Montanhas Negras,<br />
Michel e Grassac, com a ajuda de Peter, trabalhavam muito na<br />
construção das primeiras moradas do que futuramente<br />
acabaria tornando-se um próspero reino. Mas esse tempo, não<br />
seria conhecido por muitos <strong>dos</strong> que ali estavam, e ainda iria<br />
demorar longos anos para acontecer.<br />
Enquanto ajudava na preparação do terreno onde seria<br />
construído o armazém, para acondicionar o que restava das<br />
provisões e to<strong>dos</strong> os utensílios necessários à construção da<br />
vila, Grassac comentou com Michel a respeito da insatisfação<br />
de muitas pessoas, por estarem dormindo ao relento, sem<br />
condições mínimas de uma vida decente, e ainda por cima,<br />
correndo risco de serem atacadas pelas horrendas criaturas vis<br />
que as surpreenderam naquele local.<br />
Depois que os anões partiram, não houve uma noite<br />
sequer de sossego. To<strong>dos</strong> temiam ser assedia<strong>dos</strong> a qualquer<br />
momento pelas terríveis criaturas demoníacas que<br />
conheceram como sendo goblins.<br />
A alegria e agitação que havia no início da aventura<br />
agora davam definitivamente seu lugar ao medo e a tristeza.<br />
O sonho de um lugar fabuloso, onde poderiam viver<br />
numa paz eterna, anuviou-se com a fadiga, o racionamento de<br />
provisões e o contato com criaturas tão medonhas e bizarras.<br />
Muitos começavam a cultivar intimamente o desejo de<br />
regressar para Amiens, que a despeito da guerra que se<br />
aproximava e da opressão imposta por Martin Lacroix,<br />
guardava algo que lhes era muito caro, e que antes não<br />
atribuíram o devido valor: a vida de que estavam habitua<strong>dos</strong> a<br />
viver.<br />
Mudanças sempre são bem vindas, sobretudo, quando a<br />
expectativa em torno destas mudanças está intimamente<br />
171
ligada ao bem estar, à melhoria da qualidade de vida;<br />
entretanto, mesmo com essa expectativa, as pessoas sofrem<br />
com o processo de adaptação, ainda mais quando este<br />
processo de adaptação passa por muitos obstáculos como<br />
haviam passado aquelas pessoas de Amiens. <strong>Era</strong> natural que a<br />
sensação de arrependimento e o desejo de desistir de tudo<br />
dominassem a maioria daquelas pessoas.<br />
Nestes momentos, a presença de um líder carismático,<br />
espirituoso, equilibrado e inteligente é que faz a diferença e<br />
pode impedir que todo um planejamento seja desmoronado.<br />
Michel, apesar de carismático e inteligente, não era nada<br />
espirituoso e muito menos equilibrado. Sempre levando tudo<br />
a ferro e fogo, e com atitudes explosivas, não tinha condições<br />
de suportar uma revolta. Não tinha condições e nem<br />
argumentos para convencer aquelas pessoas a continuarem<br />
com ele, ou melhor, com os planos de erguer ali, naquele local,<br />
suas novas moradas.<br />
Por outro lado, Grassac podia não ser muito carismático,<br />
e nem tão inteligente quanto Michel Montbard, mas como<br />
provara na travessia da caverna, era capaz, através de seu<br />
equilíbrio e sangue frio, de conter uma multidão com suas<br />
colocações espirituosas a despeito das mais adversas<br />
condições.<br />
Um podia ajudar muito ao outro, mas os objetivos de<br />
ambos eram muito diferentes.<br />
Grassac estivera com eles para encontrar Gallard Gellion<br />
e vingar a morte de seu pai. Acabou envolvendo-se demais<br />
com o grupo <strong>dos</strong> conspiradores e manteve-se com eles.<br />
Adorava, sobretudo, Etiènne. Mas agora o grupo estava<br />
totalmente desmantelado, não tinha nenhuma obrigação de ali<br />
permanecer, e nem prometera nada para Michel.<br />
— Grassac, eu não sei o que fazer! Eu já notei o<br />
descontentamento das pessoas desde a travessia na caverna, e<br />
até agora, as coisas apenas pioraram. — Michel mostrava-se<br />
visivelmente abatido quando falava sobre isso.<br />
172
— Talvez fosse melhor você fazer uma reunião com<br />
to<strong>dos</strong>, a fim de decidirem juntos o que será melhor. Quem<br />
sabe, a melhor coisa a fazer seja voltar para Amiens?<br />
— Ficou louco!? Não podemos mais voltar. Já chegamos<br />
até aqui, temos que manter viva a esperança de dias melhores<br />
e construir nossa vida neste novo mundo!<br />
— Não sei Michel, não sei. Você é o único que ainda se<br />
mantém firme neste propósito. Por quê será? Talvez sua<br />
intransigência o cegue para as opções verdadeiramente<br />
sensatas.<br />
Michel ficou irritado com a colocação de Grassac,<br />
acusando-o de insensível.<br />
— Grassac, não me venha com seus conselhos! Parece o<br />
dono da verdade quando fala, mas também é cheio de<br />
dúvidas, assim como to<strong>dos</strong> nós! Por que ainda não nos deixou,<br />
se acha que nosso propósito é uma insensatez?<br />
— Posso dizer que fiquei encantado com a jovialidade<br />
de Etiènne, com sua energia, sua forma simples de viver a<br />
vida, sua espontaneidade. Me preocupo com ele, e penso que<br />
devo partir para encontrá-lo. Ele pode precisar de mim.<br />
— Mas o que é isso? Não me venha com essa conversa<br />
fiada sobre Etiènne. Você quer nos abandonar e apenas está<br />
usando meu irmão como desculpa para isso!<br />
— Não preciso de desculpas para ir embora. Sou livre<br />
para decidir o que é melhor para minha própria vida. Poderia<br />
escolher voltar para Chinon, talvez ficar em Amiens, ou quem<br />
sabe, ajudar Leon a erguer Nouvelle Amiens. Não, mas não é<br />
nada disso que quero. Não tenho objetivos, e depois que a<br />
vingança de meu pai perdeu o sentido, encontrei conforto em<br />
estar perto de Etiènne, que é uma pessoa muito especial.<br />
— Faça o que bem entender! Se não o conhecesse, o teria<br />
por efeminado, vendo a forma como se refere a meu irmão.<br />
— Francamente Michel! Sua interpretação de minha<br />
amizade por Etiènne não importa em nada, pois tenho certeza<br />
de que está além de sua compreensão. — Grassac indignou-se<br />
173
com a colocação de Michel. — Se falo abertamente com você<br />
sobre o que considero ser o mais sensato dentro das<br />
circunstâncias em que nos encontramos, é justamente por você<br />
ser irmão de Etiènne, e não gostaria de partir deixando-o com<br />
tantos problemas que, tenho certeza, não conseguirá resolver<br />
sozinho!<br />
— Você está me subestimando! Se chegamos até aqui, foi<br />
em conseqüência de minhas estratégias, de meus<br />
planejamentos, de minhas idéias!<br />
— Você é soberbo! Não tem vergonha de desmerecer o<br />
trabalho de to<strong>dos</strong> os outros que estiveram com você? Já<br />
esqueceu de Dízier? Já esqueceu de quem descobriu o<br />
caminho para este lugar, que foi Etiènne? Já esqueceu <strong>dos</strong><br />
irmãos Ballec, que comigo, tentaram salvá-lo das garras de<br />
Martin? Já esqueceu de que contive a revolta <strong>dos</strong> peregrinos<br />
durante a travessia da caverna? — Grassac estava<br />
encolerizado, como poucas vezes estivera. — Fica aí falando<br />
como se todo o mérito fosse apenas seu. Mas aí está o ponto!<br />
Mérito de quê? De conduzir estas pessoas para o vale da<br />
morte? Acha mesmo que alguma destas pessoas tem<br />
esperança de sobreviver aqui? A comida está ficando escassa,<br />
e agora, não tem milagre que possa nos livrar daqueles<br />
monstros, caso retornem! — continuou esbravejando sem<br />
parar, como se estivesse acometido de um surto. — Será tão<br />
difícil entender o grau de dificuldade que estamos<br />
enfrentando? Talvez Leon estivesse com a razão!<br />
— Não adianta ficar aí esbravejando, Grassac! Ou está<br />
comigo, ou então pode ir embora. Siga o seu caminho, seja ele<br />
qual for. Mas saiba que o tomarei por covarde!<br />
Os dois continuaram o resto da tarde cala<strong>dos</strong>, sem<br />
dirigir a palavra um ao outro, mas continuaram trabalhando<br />
para que o armazém pudesse ser construído o mais rápido<br />
possível.<br />
Peter, que observara a contenda <strong>dos</strong> dois, manteve-se<br />
alheio ao problema, procurando concentrar-se para encontrar<br />
174
uma solução que pudesse evitar o colapso definitivo daquele<br />
grupo, mas no fundo, sabia que a única solução deveria ter<br />
como alicerce, a união daqueles dois para que as pessoas não<br />
desistissem definitivamente de estar ali.<br />
Peter pensou em ir atrás de Etiènne, a fim de contar-lhe<br />
sobre os problemas que seu irmão estava passando, mas logo<br />
descartou esta possibilidade, pois a idéia de sair sozinho por<br />
aquele lugar desconhecido, cheio de criaturas demoníacas, lhe<br />
parecia um tanto absurda. Haveria de esperar que uma nova<br />
tropa de anões pudesse passar por ali para que ele a<br />
acompanhasse, a exemplo de como fizera Etiènne.<br />
Foi quando teve a idéia de promover um concurso de<br />
arco, para descontrair aquelas pessoas, ao mesmo tempo em<br />
que poderia ensinar aquela bela arte aos peregrinos, que<br />
certamente mostrar-se-ia necessária num futuro bem próximo.<br />
A idéia teve o apoio tanto de Michel quanto de Grassac,<br />
e isso fez com que os dois se aproximassem novamente, além<br />
de ter garantido dias mais tranqüilos entre to<strong>dos</strong>.<br />
Em poucas semanas, as primeiras construções já<br />
estavam erguidas e a vida começava a caminhar de forma<br />
mais amena. As turbulências de adaptação foram superadas,<br />
os relacionamentos ficavam mais íntimos entre o povo. Novos<br />
romances surgiam, novas grandes amizades estavam sendo<br />
formadas entre aquelas pessoas, novos empolga<strong>dos</strong> arqueiros<br />
estavam sendo treina<strong>dos</strong> por Peter, enfim, o medo arrefecera,<br />
e as pessoas já podiam considerar que estavam, de fato,<br />
começando suas vidas novamente. Momentos felizes<br />
começavam a rondar o povo de Michel.<br />
O que parecia impossível havia se tornado realidade,<br />
graças à iniciativa de um bretão que, não obstante, também<br />
tinha sangue franco correndo em suas veias. Mas se<br />
dependesse apenas de Michel, nem estaria entre eles. Afinal,<br />
Peter Wells não era um arqueiro de elite do exército inimigo à<br />
França?<br />
175
Mas este tempo foi superado, e a conversa que Michel<br />
tivera com Grassac jamais seria esquecida por ele, e os efeitos<br />
poderiam ser nitidamente nota<strong>dos</strong> na atitude carinhosa em<br />
escolher como nome daquele lugar que habitariam, Nouvelle<br />
Lyon, em homenagem à mãe de Peter, Jacqueline, que nascera<br />
na cidade de Lyon.<br />
<br />
A vida, tanto em Nouvelle Amiens quanto em Nouvelle<br />
Lyon, seguia seu rumo, e as duas cidades eram erguidas<br />
pouco a pouco. Nouvelle Amiens, com a ajuda <strong>dos</strong> elfos de<br />
Eluannar tornar-se-ia próspera e rica com maior rapidez do<br />
que Nouvelle Lyon, que também seria ajudada em sua<br />
construção pelos anões do reino de Bakhin algum tempo<br />
depois.<br />
Etiènne continuou vagando pela Floresta Dourada até o<br />
anoitecer, sem nada encontrar. Nem sinal de Bakhin, e muito<br />
menos de um caminho que pudesse tirá-lo da floresta.<br />
Desde a Montanha Serena, vinha involuntariamente<br />
aperfeiçoando seus senti<strong>dos</strong> dentro das florestas, e isso foi<br />
importante para fazer com que percebesse que, enquanto não<br />
encontrasse uma diferença de folhagens no chão, que fugisse<br />
ao padrão da floresta em que estava, ele não poderia estar<br />
próximo de Bakhin.<br />
No princípio, fora relativamente fácil seguir esta<br />
mudança de padrão, mas depois, gradativamente e em várias<br />
direções, o padrão da folhagem espalhada pelo solo parecia<br />
voltar ao normal de forma suave, sem permitir um raciocínio<br />
lógico de como aquilo poderia ter ocorrido.<br />
Poderia jurar que já havia passado por pontos onde era<br />
clara a mudança de padrão, onde as folhas estavam<br />
nitidamente revoltas, amassadas, dilaceradas e espalhadas<br />
para os cantos, e depois, tudo estava normal, como se nada<br />
tivesse passado por ali, com a folhagem cobrindo o solo<br />
176
naturalmente, com folhas frescas, anunciando que nunca<br />
haviam sido pisoteadas por nada.<br />
Exausto do cansativo e infrutífero dia, Etiènne procurou<br />
uma árvore que pudesse recostar-se, de forma que tivesse uma<br />
visão mais privilegiada do terreno onde se encontrava,<br />
deixando a retaguarda o menos vulnerável possível.<br />
Por sorte, ainda se encontrava próximo às encostas das<br />
Montanhas Negras; porém, mais ao norte, quase na interseção<br />
da cadeia de montanhas, que ligava as Montanhas Negras à<br />
Montanha das Garbas, e pôde escolher um local mais próximo<br />
às paredes rochosas que, apesar de terem um aspecto<br />
assustador, garantiriam maior segurança a ele.<br />
No meio da madrugada, Etiènne teve o seu sono<br />
interrompido por gritos apavorantes, que pareciam não estar<br />
muito longe dali. Levantou-se num pulo, e com o coração<br />
acelerado, ficou atento para tentar escutar melhor de que<br />
direção vinham os gritos, mas o silencio voltou a imperar na<br />
floresta. Alguns pios noturnos, que faziam parte integrante<br />
daquela floresta, aos poucos começaram a retornar, e a<br />
preencher o total vazio que sucedeu aos gritos.<br />
Etiènne, tinha suas têmporas embebidas em suor, apesar<br />
da friagem da madrugada. Já não tinha certeza se tivera algum<br />
pesadelo horripilante, ou se realmente escutara aqueles gritos,<br />
até que mais uma vez, novos gritos rasgaram a noite,<br />
deixando-o cheio de pavor. Mas desta vez pôde identificar<br />
com clareza a direção de onde surgiram os novos gritos.<br />
Caminhou apressadamente mas com cautela, na direção<br />
<strong>dos</strong> gritos, e conforme caminhava, podia identificar novos<br />
sons, como o crepitar de uma fogueira, o amolar de lâminas e<br />
o grunhido peculiar <strong>dos</strong> asquerosos goblins, que ele conhecera<br />
a poucos dias no ataque ao acampamento <strong>dos</strong> peregrinos que<br />
acompanhavam seu irmão Michel.<br />
Redobrou sua cautela e diminuiu o passo. Agora, podia<br />
identificar com menos dificuldade, por trás de alguns<br />
arbustos, uma pequena quantidade de goblins reuni<strong>dos</strong> em<br />
177
torno de um enorme tronco, onde estavam amarra<strong>dos</strong> Bakhin<br />
e seus dois companheiros anões. A luminosidade produzida<br />
pela fogueira <strong>dos</strong> goblins era muito fraca, de modo que<br />
Etiènne não conseguia entender ao certo o que se passava, mas<br />
estava presenciando muita agitação.<br />
Bakhin, debatia-se desesperadamente, mas os outros<br />
dois anões estavam inertes. Etiènne sentiu um calafrio ao<br />
pensar que os gritos de horror poderiam ter sido <strong>dos</strong> anões,<br />
antes de terem sido brutalmente assassina<strong>dos</strong>.<br />
Foi então que, Etiènne percebeu o que estava<br />
acontecendo, ao ver um <strong>dos</strong> goblins aproximando-se de<br />
Bakhin, com uma cimitarra em brasa, enquanto outros goblins<br />
iam cortando as roupas de Bakhin para deixá-lo nu.<br />
Certamente a lâmina em brasas seria usada para queimar aos<br />
poucos o corpo de Bakhin, até que não suportasse mais a dor e<br />
viesse a sucumbir. Isso explicava os gritos desespera<strong>dos</strong> que<br />
ouvira.<br />
A aflição em ver Bakhin naquela situação deixou Etiènne<br />
hesitante por um breve momento, mas a urgência em tomar<br />
alguma atitude, o fez agir quase que de forma instintiva.<br />
Pegou seus macha<strong>dos</strong> de arremesso, e irrompeu bravamente<br />
na clareira, tomando os goblins de surpresa.<br />
Com muita agilidade, arremessou quatro pequenos<br />
macha<strong>dos</strong>, dois em direção ao goblin que portava a cimitarra<br />
em brasas, um certeiro a outro goblin que viera em sua<br />
direção, e o último, em direção a um goblin que partira para<br />
cima de Bakhin. Em segun<strong>dos</strong>, havia atirado seus macha<strong>dos</strong>, e<br />
apesar da pouca luminosidade, acertou to<strong>dos</strong> com precisão!<br />
Sacou sua espada e foi para cima <strong>dos</strong> dois goblins que<br />
ainda restavam, os que estavam com pequenos punhais<br />
cortando as roupas de Bakhin.<br />
Os dois postaram-se um de cada lado de Etiènne,<br />
exibindo suas presas temíveis, grunhindo loucamente e<br />
tentando aproximar-se.<br />
178
Etiènne, não teve dificuldades para livrar-se das duas<br />
criaturas. Avançou dois passos e com um golpe rápido,<br />
decepou a mão de um <strong>dos</strong> goblins, girando o corpo<br />
ligeiramente a tempo de decapitar o outro que avançara afoito,<br />
ao ver Etiènne de costas.<br />
O goblin que tivera a mão decepada ficou de joelhos,<br />
grunhindo desesperadamente de dor, ou quem sabe,<br />
clamando pela presença de outros goblins no local. Sem<br />
hesitar, Etiènne aproximou-se novamente deste e deu-lhe o<br />
mesmo destino do outro, impie<strong>dos</strong>amente.<br />
Ainda esbaforido, e com seu coração batendo como<br />
nunca, correu até Bakhin, tirando sua mordaça e<br />
desamarrando-o do tronco no<strong>dos</strong>o.<br />
Assim que ficou livre, Bakhin caiu no solo como uma<br />
rocha, sem forças nas pernas para manter-se de pé, tamanho<br />
era seu pavor.<br />
— Calma Bakhin, tudo estará bem agora. — afirmou<br />
Etiènne, tentando acalmar o rei anão.<br />
Visivelmente abatido, Bakhin murmurou umas poucas<br />
palavras com dificuldade, mas que Etiènne entendeu<br />
perfeitamente.<br />
— Precisamos nos afastar deste lugar.<br />
— Sim, vamos sair daqui agora mesmo.<br />
Bakhin tentava se recompor com o que restava se suas<br />
vestes, enquanto Etiènne recuperava seus macha<strong>dos</strong> de<br />
arremesso, ainda presos à asquerosa carne daquelas criaturas<br />
bizarras. Cada machado recuperado, era limpo com certo nojo<br />
por parte de Etiènne, pois o sangue daquelas criaturas vis era<br />
muito escuro, viscoso e pegajoso.<br />
Não haveria tempo para dar o funeral adequado aos<br />
outros dois anões, mas isso não pareceu contrariar muito<br />
Bakhin, que demonstrava estar ainda muito apavorado com<br />
tudo o que passara. Na verdade, foi a primeira vez na vida<br />
que havia ficado cativo de goblins, uma experiência que<br />
jamais esqueceria enquanto vivesse.<br />
179
Afastaram-se o mais rápido que puderam daquele local,<br />
sempre olhando para trás, a confirmar que não estavam sendo<br />
segui<strong>dos</strong>. Continuaram sem parar até o amanhecer, pelos<br />
caminhos que Bakhin ia indicando conforme avançavam.<br />
Quando já estavam próximos à saída da Floresta Dourada,<br />
Bakhin caiu, sem forças para prosseguir.<br />
Etiènne tentou apoiá-lo, mas também já estava exausto e<br />
o anão era muito pesado. Ficaram os dois ali, estira<strong>dos</strong> no<br />
solo, desejando desesperadamente que não tivessem sido<br />
segui<strong>dos</strong> por outros goblins.<br />
Após o amanhecer, Bakhin já parecia estar<br />
completamente recuperado. Estava muito ativo, e enquanto<br />
retomavam a caminhada não parava de falar em seu reino e<br />
seu povo.<br />
Agradeceu muitas vezes a Etiènne por ter salvo sua<br />
vida, e lhe prometeu toda ajuda que precisasse para a<br />
construção da cidade de seus amigos, do outro lado das<br />
Montanhas Negras. Em geral, os anões costumavam trocar<br />
favores, mas nunca eternizavam essas trocas em nome de uma<br />
amizade ou de um relacionamento mais duradouro. Mas com<br />
Etiènne, Bakhin manteria sua palavra, e sua amizade pelo<br />
humano seria mesmo pelo resto de seus dias.<br />
Etiènne e Bakhin fizeram todo o percurso pela Planície<br />
de Ouro em silêncio, e antes de escurecer novamente, estavam<br />
às portas da fabulosa e encantadora cidade de Bakkin.<br />
180
M<br />
CAPÍTULO XIII<br />
Pedra sobre pedra<br />
artin Lacroix estava ansioso por partir. As últimas<br />
informações provenientes da Montanha Serena,<br />
afirmavam que o próprio Alain Dumas teria finalmente<br />
encontrado o ponto de fuga <strong>dos</strong> cidadãos de Amiens, agora<br />
considera<strong>dos</strong> criminosos fugitivos por decreto.<br />
Depois da trágica morte de Catherine, condenada por<br />
traição à Amiens diante de um falso magistrado que fora<br />
previamente subornado por Martin, ele pôde dedicar-se<br />
exclusivamente à procura <strong>dos</strong> Conspiradores e de to<strong>dos</strong> os<br />
habitantes que os haviam seguido. Ele nunca sossegaria até<br />
pôr novamente as mãos em Michel Montbard.<br />
A guerra contra os bretões, já havia se iniciado, mas<br />
ainda estava se desenrolando na região litorânea, de forma<br />
que os ingleses não chegariam tão cedo em Amiens. Enquanto<br />
seus vizinhos enviavam suas tropas para a região litorânea de<br />
Calais e a França sangrava, Martin enviava seus homens em<br />
incansáveis buscas pela Montanha Serena, tentando localizar<br />
onde haviam se refugiado os traidores de sua cidade.<br />
Foram quase dois anos de buscas infrutíferas. Até<br />
mesmo às cidades circundantes a Amiens, Martin enviara seus<br />
batedores procurando encontrar alguém ou algum detalhe que<br />
pudesse levá-lo ao caminho certo.<br />
Martin, estava exultante de alegria e foi pessoalmente<br />
aguardar Alain, na torre de vigia de seu castelo.
— Senhor, temos uma informação positiva! — a alegria<br />
no semblante de Alain era clara, denunciando que havia<br />
finalmente obtido sucesso em sua missão.<br />
— Como esperei por este momento! Conte-me tudo<br />
Alain, quero to<strong>dos</strong> os detalhes! — Martin passou o braço pelo<br />
ombro de Alain, e caminhou junto a ele em direção ao salão<br />
principal.<br />
— A verdade, meu senhor, é que não encontramos o<br />
caminho, o caminho veio até nós.<br />
— Como assim? Como o caminho veio até vocês?<br />
— Não sei explicar meu senhor, mas o local da passagem<br />
revelou-se no momento em que um grupo de pessoas<br />
apareceu dentro da gruta que vasculhávamos, como que por<br />
mágica. Ao que tudo indica, essa passagem deve levar ao<br />
outro lado da Montanha Serena. Já despachei um contingente<br />
para que contornasse a montanha à procura da saída desta<br />
misteriosa caverna, que não havíamos identificado até então.<br />
— Grupo de pessoas? Mas que grupo de pessoas?<br />
Michel Montbard está entre estas pessoas?<br />
— Não, meu senhor, são pessoas comuns da cidade, que<br />
haviam se aventurado junto aos conspiradores, mas<br />
arrependeram-se e retornaram para Amiens.<br />
— Não haverá indulgência! Quero estas pessoas todas<br />
aprisionadas para que sejam julgadas por traição!<br />
— Já estão todas aprisionadas, meu senhor. Devem<br />
chegar ao castelo em poucas horas. Neste momento estão<br />
sendo escoltadas por um grupo de minha confiança. Temos<br />
muito o que interrogar.<br />
— Faremos com que estes miseráveis nos levem onde<br />
estão aqueles malditos conspiradores. Irei matar Michel<br />
Montbard com minhas próprias mãos!<br />
Aquela semana, fora muito agitada em Amiens. Martin<br />
ordenou que todas as patrulhas regressassem ao castelo, e<br />
começou a traçar com Alain, seu fiel capitão, os planos para<br />
seguir a trilha <strong>dos</strong> conspiradores.<br />
182
Vários interrogatórios foram realiza<strong>dos</strong>, e a cada<br />
testemunho <strong>dos</strong> acontecimentos que se passaram no tal lugar<br />
que chamaram de <strong>Virgo</strong>, Martin e Alain ficavam mais<br />
impressiona<strong>dos</strong>. Não acreditavam em uma só palavra do que<br />
diziam os prisioneiros, e estes foram submeti<strong>dos</strong> à intensa<br />
tortura. Não obstante, os relatos eram sempre os mesmos e<br />
condizentes uns com os outros. Resolveram, então, ouvir<br />
atenciosamente tudo o que diziam.<br />
Ouviram falar <strong>dos</strong> orcs e <strong>dos</strong> elfos, souberam da<br />
prosperidade de Nouvelle Amiens, o que indignou<br />
particularmente a Martin; souberam ainda da separação entre<br />
Leon e Michel, e principalmente, do motivo que fez com que<br />
aquele grupo de pessoas voltasse para Amiens.<br />
Sucedeu que, após os primeiros meses de labor, quando<br />
a cidade de Nouvelle Amiens já estava amadurecida, devido<br />
em grande parte à ajuda <strong>dos</strong> elfos de Eluannar, muitas hordas<br />
de orcs começaram a investir contra o povo de Leon Troujard,<br />
não dando trégua às pessoas, e impedindo que os elfos<br />
pudessem retornar com segurança à Nouvelle Amiens,<br />
trazendo a ajuda que sempre ofereceram.<br />
O que Martin Lacroix não imaginava é que enquanto<br />
interrogava cansativamente aquele grupo de pessoas que<br />
haviam regressado de Nouvelle Amiens, o homem pelo qual<br />
nutria um ódio mortal já estava também em Amiens. Michel<br />
Montbard, havia chegado na manhã do mesmo dia em que<br />
aqueles desafortuna<strong>dos</strong> da cidade de Leon haviam sido presos<br />
por Alain.<br />
Resolvido a engendrar um plano para surpreender os<br />
homens de Nouvelle Amiens, Martin Lacroix iniciou os<br />
preparativos para ir ao encontro <strong>dos</strong> traidores. Em uma<br />
semana ficara tudo pronto, e pessoalmente, liderou a<br />
campanha.<br />
Enquanto o enorme contingente militar organizado por<br />
ele atravessava a gruta da Montanha Serena em direção a<br />
<strong>Virgo</strong>, um forte tremor de terra abalou a superfície de Amiens,<br />
183
fazendo com que parte da grande caverna desmoronasse, com<br />
enormes blocos de rocha despencando e rolando por cima de<br />
muitos solda<strong>dos</strong>. O desabamento fora catastrófico,<br />
bloqueando definitivamente a passagem entre Amiens e<br />
<strong>Virgo</strong>. Aproximadamente, um quinto <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> fora<br />
esmagado pelo desabamento, além de ter deixado muitos<br />
homens do outro lado <strong>dos</strong> escombros, antes que pudessem ter<br />
passado pelo ponto onde iniciava o declive, separando-os da<br />
maioria <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> que já haviam passado. Apavora<strong>dos</strong>,<br />
saíram da gruta e retornaram à floresta para decidir o que<br />
fazer.<br />
O enorme estrondo provocado pelas rochas que<br />
desabaram, era como o som de incessantes trovoadas ecoando<br />
dentro da caverna, e atemorizara não só os que haviam ficado<br />
impossibilita<strong>dos</strong> de prosseguir mas também aqueles que já<br />
haviam passado pelo ponto de declive do corredor dentro da<br />
gruta. Martin e Alain, que vinham liderando a coluna de<br />
solda<strong>dos</strong>, ainda sem saber ao certo o que acontecera, rumaram<br />
assusta<strong>dos</strong> para o final da coluna, que lhes ia abrindo<br />
passagem conforme cavalgavam na direção oposta.<br />
Constataram que haviam caído em desgraça, porque<br />
pelo tamanho <strong>dos</strong> blocos de rocha que estavam impedindo a<br />
passagem, levariam anos para conseguir removê-los, e isso<br />
considerando que a profundidade do desabamento não tivesse<br />
sido demasiadamente extensa. Eles não sabiam, mas quase<br />
toda a gruta acima deles havia desmoronado, e aquela<br />
passagem nunca mais voltaria a ser usada por nenhum ser<br />
humano.<br />
O destino separou Amiens e <strong>Virgo</strong>, separou Martin<br />
Lacroix de Amiens, Michel Montbard de seu sonho dourado.<br />
<strong>Era</strong> um acontecimento que traria mudanças drásticas para os<br />
homens e seus destinos.<br />
<br />
184
Não restava outra opção para Martin e seus homens, a<br />
não ser continuar descendo a caverna em direção a <strong>Virgo</strong>.<br />
Numa atitude sensata, tentando acalmar a tensão e aplacar o<br />
medo que dominara aqueles homens, Alain Dumas procurou<br />
conversar com cada grupo de solda<strong>dos</strong>, dizendo que outras<br />
passagens deveriam existir para seu retorno, e que eles as<br />
encontrariam. To<strong>dos</strong> pensavam em seus parentes e suas vidas<br />
que ficaram para trás, em Amiens. Estavam receosos de nunca<br />
mais poder retornar, o que de fato, aconteceria, e jamais<br />
voltariam a ver a luz do sol sobre Amiens.<br />
A jornada de Martin continuou tão vagarosa quanto<br />
silenciosa. <strong>Era</strong> como se o objetivo daquela missão tivesse sido<br />
soterrado com parte da tropa pelo desmoronamento da gruta.<br />
<strong>Era</strong> possível perceber o desânimo no semblante daqueles<br />
homens, que continuavam caminhando rumo ao<br />
desconhecido, sem saber ao certo como terminaria aquela<br />
campanha.<br />
Muitas horas depois, quando Martin e seus homens<br />
chegaram à Nouvelle Amiens, não encontraram um vilarejo<br />
humilde e desprotegido como imaginaram; muito ao<br />
contrário, Nouvelle Amiens era uma verdadeira fortaleza,<br />
erguida com a ajuda <strong>dos</strong> elfos, com uma arquitetura<br />
completamente estranha aos olhos de Martin. Os enormes<br />
muros esverdea<strong>dos</strong> que cercavam Nouvelle Amiens, ergui<strong>dos</strong><br />
com um tipo de rocha que fora trazida de dentro da Grande<br />
Floresta pelos elfos de Eluannar, eram reluzentes como se<br />
fossem revesti<strong>dos</strong> de algum tipo de metal.<br />
Martin, estava boquiaberto diante daquela onipotente<br />
muralha, e não foi capaz de disfarçar sua surpresa diante de<br />
Nouvelle Amiens.<br />
Alain, tentando distrair os homens e chamar a atenção<br />
de Martin para que este saísse do transe em que ficara,<br />
ordenou que dois grupos fossem forma<strong>dos</strong>, a fim de flanquear<br />
a cidade à procura da entrada.<br />
185
Recuperado da apatia momentânea, Martin exigiu para<br />
si o comando da tropa, impedindo que prosseguissem com as<br />
ordens do capitão. Contrariado, ao ver suas ordens serem<br />
impugnadas, Alain dirigiu-se até Martin, solicitando ao<br />
senhor de Amiens para que pudessem ter uma conversa<br />
reservada.<br />
Os dois caminharam alguns metros em direção à<br />
muralha e, quando sentiram-se à vontade para falar sem que<br />
fossem escuta<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong>, Alain revelou suas<br />
intenções.<br />
— Senhor, temos de rever nossa posição. Precisamos<br />
descobrir o que nos aguarda do outro lado destes onipotentes<br />
muros antes de prosseguirmos com nossa missão.<br />
— O que quer dizer com revermos nossa posição? —<br />
indagou Martin, espantado. — Estamos diante de nosso<br />
propósito. Sei o que há atrás destes muros. Há uma turba de<br />
criminosos e traidores, que devem ser condena<strong>dos</strong> e<br />
castiga<strong>dos</strong> por seu delito!<br />
Martin, sequer mencionara a palavra julgamento, pois<br />
em sua mente, to<strong>dos</strong> já estavam previamente condena<strong>dos</strong>. A<br />
idéia de poder finalmente vingar-se de Michel, Etiènne, Leon e<br />
to<strong>dos</strong> os outros, não permitia que ele raciocinasse sobre as<br />
circunstâncias em que se encontrava, e Alain, no fundo, queria<br />
alertá-lo para isso.<br />
— Mas senhor, seria mais prudente se soubéssemos,<br />
primeiramente, até que ponto esta gente está armada para um<br />
confronto. E o mais importante, e que não podemos esquecer,<br />
é que estamos isola<strong>dos</strong> neste lugar, sem saber se um dia<br />
poderemos voltar para Amiens. — Apesar de aflito, Alain<br />
procurava manter o tom das palavras de forma amigável,<br />
ainda que seu desejo fosse esbravejar contra seu intransigente<br />
senhor. — Acredito — continuou — que o mais prudente<br />
neste momento seja buscarmos um caminho alternativo que<br />
possa nos conduzir de volta à Amiens.<br />
186
Martin ficou pensativo, encarando Alain por um breve<br />
momento e depois olhou para o alto, como que procurando<br />
uma resposta no acalentador azul do céu, que não pôde<br />
encontrar. Encontrou apenas a afirmação de que estavam, de<br />
fato, isola<strong>dos</strong> num lugar desconhecido, sob um céu rosado,<br />
diferente de tudo o que vira na vida.<br />
— Quem sabe — prosseguiu Alain — essas pessoas<br />
sejam as únicas capazes de nos guiar de volta para Amiens,<br />
por caminhos que desconhecemos.<br />
Martin detestava ser contrariado, mas nas ocasiões em<br />
que as opções óbvias não eram as suas, sempre cedia. E assim,<br />
resolveu escutar Alain, porque mesmo que eles conseguissem<br />
levar adiante o aprisionamento daquelas pessoas, para onde<br />
eles as conduziriam? Estavam verdadeiramente perdi<strong>dos</strong> e<br />
isola<strong>dos</strong> num mundo desconhecido e talvez Alain tivesse<br />
razão, talvez os inimigos de outrora, viessem se tornar os<br />
salvadores da ocasião.<br />
— Penso que o dia de minha vingança não está muito<br />
longe. — Martin voltou a falar. — Pode ser uma boa idéia,<br />
depois de tanto tempo, aparecermos como visitantes<br />
amistosos, a fim de beneficiarmo-nos com informações que<br />
nos ajudem a concluir nosso objetivo em um momento mais<br />
propício.<br />
Alain, ficou aliviado ao ver que Martin cedera. Temia<br />
por sua segurança e pela segurança de seus homens.<br />
Acreditava que já haviam morrido solda<strong>dos</strong> demais por causa<br />
da insanidade de Martin Lacroix.<br />
— Está escurecendo rápido — observou Alain. — Meu<br />
senhor deseja acampar neste local? Ou prefere procurar a<br />
entrada da cidade, para nos anunciarmos?<br />
Martin, não permitiria que seu orgulho sofresse um<br />
golpe, e como já havia cancelado a ordem de Alain, não<br />
voltaria atrás diante da tropa. Mas estaria cometendo um<br />
grande erro.<br />
— Acamparemos por aqui esta noite! — ordenou.<br />
187
— Sim, meu senhor. Com sua licença, tomarei os<br />
procedimentos necessários para que preparem nosso<br />
acampamento.<br />
Martin assentiu com a cabeça, e com um breve gesto de<br />
sua mão, dispensou seu capitão.<br />
Alain, afastou-se de Martin caminhando para onde os<br />
solda<strong>dos</strong> haviam ficado e dirigiu-se à tropa, ordenando que<br />
preparassem a área para o acampamento. Pessoalmente, Alain<br />
selecionou os homens que fariam a vigilância daquela noite,<br />
protegendo o perímetro que estavam ocupando.<br />
<br />
Ainda não estava totalmente escuro, mas várias<br />
fogueiras já crepitavam pelo acampamento de Martin, quando<br />
um pequeno grupo de cavaleiros se aproximou pelo lado<br />
esquerdo da muralha, portando tochas e um vistoso<br />
estandarte, à maneira <strong>dos</strong> elfos, mas eram, na verdade,<br />
homens de Nouvelle Amiens.<br />
Os sentinelas correram para alertar a tropa, e o alvoroço<br />
que se seguiu pôde ser percebido por Martin em sua luxuosa<br />
tenda, onde conversava com Alain a respeito da abordagem à<br />
cidade de Nouvelle Amiens.<br />
— Senhor! Senhor! — gritou um <strong>dos</strong> sentinelas que<br />
estava posicionado do lado de fora da tenda de Martin.<br />
— Mensageiros! Acabaram de chegar alguns<br />
mensageiros da cidade de Nouvelle Amiens!<br />
Martin e Alain saíram da tenda, ansiosos. O sentinela os<br />
conduziu até o lado norte do acampamento, onde a alguns<br />
metros, podiam observar os homens de Nouvelle Amiens,<br />
com um luxuoso estandarte desfraldado, tremulando com a<br />
brisa comum do curto entardecer de <strong>Virgo</strong>.<br />
Martin, jamais poderia imaginar que estaria diante de<br />
uma situação assim. Sequer reconhecia aquelas pessoas, que a<br />
pouco mais de dois anos deveriam ser míseros camponeses e,<br />
188
agora, estavam trajando armaduras belíssimas, que nem<br />
mesmo em Paris havia testemunhado algo tão magnífico.<br />
Um escudeiro adiantou-se com um rolo de pergaminho,<br />
ajoelhou-se diante de Martin, baixou a cabeça e estendeu o<br />
braço, indicando que o pergaminho era destinado a ele.<br />
Martin, hesitou em pegar o pergaminho, mas ao<br />
procurar os olhos de Alain, este levantou as sobrancelhas e em<br />
seguida assentiu com a cabeça, animando-o para que o<br />
pergaminho fosse aceito. Martin estava confuso, mas sentiu-se<br />
seguro ao ver Alain ao seu lado, e então pegou o pergaminho<br />
das mãos do escudeiro, que imediatamente fez uma mesura e<br />
pediu licença, retornando em seguida para perto de seu grupo.<br />
Os segun<strong>dos</strong> pareciam durar uma eternidade, e o<br />
pergaminho parecia ter um peso insuportável para Martin,<br />
que o agarrava com força entre seus de<strong>dos</strong>. Os homens de<br />
Nouvelle Amiens não arredaram pé do lugar onde estavam, e<br />
pareciam esperar que Martin lesse a mensagem a ele<br />
destinada.<br />
Intimamente, Martin chegou a pensar em ordenar que<br />
seus solda<strong>dos</strong> investissem contra aqueles homens, que não<br />
passavam de traidores de sua cidade, mas isso não fora o<br />
planejado; então, visivelmente nervoso, puxou a fita que<br />
prendia o pergaminho e o desenrolou.<br />
Ao desenrolar o pergaminho, percebeu que havia um<br />
medalhão em seu interior, que rolou pelo papiro e quase foi ao<br />
chão, mas foi seguro agilmente por Martin. Ao ver o<br />
medalhão, sentiu um frêmito percorrer-lhe pelo dorso.<br />
Reconhecera imediatamente aquele objeto, e o apertou entre<br />
os de<strong>dos</strong>.<br />
Leu atenciosamente cada palavra escrita, e conforme<br />
avançava na leitura, surpreendia-se ainda mais com seu<br />
conteúdo. Por fim, enrolou novamente o pergaminho e foi<br />
tomado por um turbilhão de dúvidas. Naquele momento,<br />
Martin fora invadido por uma sensação de completo<br />
isolamento do mundo, onde apenas ele e sua angústia<br />
189
permaneceram frente a frente, sem que ninguém pudesse<br />
acompanhar o que se passava dentro dele.<br />
— Meu senhor, está tudo bem? — indagou Alain.<br />
Martin não respondeu, continuava com o semblante<br />
preocupado, e dirigiu-se para os cavaleiros de Nouvelle<br />
Amiens com passos vacilantes.<br />
— Diga a seu senhor, que refletirei sobre os fatos<br />
revela<strong>dos</strong> neste pergaminho. Ao amanhecer, enviarei uma<br />
mensagem a ele.<br />
— Temos ordens de não partirmos sem o senhor. A noite<br />
é traiçoeira em <strong>Virgo</strong>. Ele insistiu para que não os deixássemos<br />
fora da proteção <strong>dos</strong> muros da cidade.<br />
— Levará pelo menos duas horas para desmontarmos<br />
tudo, e então, já será noite.<br />
Alain percebeu que seu senhor ficara estranho após ter<br />
lido o pergaminho. Notou que Martin estava falando de forma<br />
cordial com os estranhos, e o mais absurdo e inacreditável a<br />
seus olhos, aceitando como senhor o líder daquele grupo que<br />
até antes do entardecer era considerado criminoso. Imaginou<br />
se a farsa de seu senhor estava sendo tão perfeita que até<br />
mesmo ele estivesse sendo enganado.<br />
— Acredite, estaremos bem! Pode regressar para a<br />
segurança de sua cidade. Quando amanhecer, terei decidido<br />
sobre o que fazer e como proceder.<br />
— Pois bem, senhor. Faremos como deseja.<br />
Os cavaleiros de Nouvelle Amiens, estavam ao mesmo<br />
tempo irradiantes e constrangi<strong>dos</strong>. Irradiantes, porque<br />
estavam ali diante do tirano que tanto os atormentara no<br />
passado e agora tratava-os com dignidade, sem a necessidade<br />
de se humilharem para dirigirem-se a ele. Isso lhes trouxe uma<br />
enorme satisfação, os fez sentirem-se homens honra<strong>dos</strong>, como<br />
se estivessem lavando a própria alma diante do ordinário que<br />
tanto os fizera sofrer. Ao mesmo tempo, ficaram<br />
constrangi<strong>dos</strong> porque teriam de voltar à cidade sem trazer<br />
Martin em segurança, conforme fora ordenado por Leon.<br />
190
As noites de <strong>Virgo</strong>, não faziam muita cerimônia para se<br />
apresentar, e sempre caíam abruptamente.<br />
Martin, recolheu-se à sua luxuosa tenda e ficou lendo o<br />
pergaminho de Leon diversas vezes, segurando com uma das<br />
mãos o medalhão que lhe fora entregue pelo escudeiro, ora<br />
girando-o entre os de<strong>dos</strong>, ora contemplando-o como quem<br />
viajasse no tempo, para um passado remoto, que já havia<br />
muito estava enterrado e esquecido. Entre uma leitura e outra<br />
pensou, “os fantasmas jamais adormecem, e quando menos se<br />
espera, eles se revelam diante de nossos incrédulos olhos”.<br />
Quando a madrugada ia demasiadamente avançada,<br />
Martin finalmente fora vencido pelo cansaço, e a despeito da<br />
excitação que estava sentindo, desmaiou de sono, mergulhado<br />
nos pensamentos sobre tudo o que lera.<br />
Do outro lado da muralha, na protegida Nouvelle<br />
Amiens, Leon estava ansioso por saber qual fora a reação de<br />
Martin, seu pai, ao ler o pergaminho que lhe fora entregue.<br />
Como reagiria aquele homem ao tomar conhecimento de seu<br />
conteúdo, que revelava ao tirano tudo o que sucedera com a<br />
antiga serva de quem havia se aproveitado numa longínqua<br />
noite de Amiens, mandando executá-la após descobrir que<br />
havia ficado grávida. Como reagiria aquele homem sem<br />
escrúpulos, ao descobrir que Leon Troujard, na verdade, era<br />
seu filho legítimo. Há muito tempo aguardava este momento,<br />
e já havia se preparado devidamente para esse dia. Ansiava<br />
por conseguir converter seu pai a uma vida mais digna e<br />
honrada.<br />
Quando fora informado por seus guardiões de que<br />
Martin se aproximava de Nouvelle Amiens, Leon correu para<br />
colocar em prática o que havia planejado.<br />
Mas ao regressarem e apresentarem-se diante de Leon,<br />
os homens que foram ao encontro de Martin relataram que ele<br />
ficara um pouco perturbado ao ler o pergaminho. Relutou em<br />
acompanhá-los, prometendo uma resposta nas primeiras<br />
191
horas do dia seguinte. Leon ficou visivelmente contrariado,<br />
mas não havia mais o que fazer, a não ser aguardar com<br />
grande expectativa durante uma noite insone, o desfecho<br />
daquele momento tão esperado. Agradeceu a seus homens, e<br />
recolheu-se, sem saber que o destino lhe reservava um duro<br />
golpe.<br />
Quando amanheceu, Leon foi acordado por um de seus<br />
homens de confiança, Maurice, que lhe trazia uma trágica<br />
notícia. O acampamento <strong>dos</strong> homens de Amiens havia sido<br />
atacado por uma grande horda de orcs selvagens.<br />
Leon levantou-se apavorado, exigindo to<strong>dos</strong> os detalhes<br />
ao companheiro. Maurice, assombrado com a reação de Leon,<br />
explicou-lhe que vários sobreviventes do acampamento,<br />
chegaram bem cedo às portas da cidade, conduzi<strong>dos</strong> por Alain<br />
Dumas, e que os feri<strong>dos</strong> já estavam sendo devidamente<br />
atendi<strong>dos</strong>, recebendo toda assistência necessária.<br />
Leon, impaciente, foi até onde estavam aloja<strong>dos</strong> os<br />
solda<strong>dos</strong> de Amiens, e dirigiu-se em primeiro lugar a Alain<br />
— Mas que desgraça ocorreu com vocês!? Onde está<br />
Martin Lacroix? — Leon estava visivelmente transtornado.<br />
Seu semblante preocupado denunciava uma estranha aflição,<br />
que não passou desapercebida aos olhos de Alain.<br />
— Não o encontramos. Depois do ataque surpresa que<br />
nos foi infligido por aquelas criaturas bizarras, muitos<br />
correram para to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>.<br />
— E você não estava próximo a seu senhor?<br />
— Não, no momento do ataque acabamos por ficar<br />
cerca<strong>dos</strong> em dois grupos isola<strong>dos</strong>. Acreditei que meu senhor<br />
estivesse no outro lado. Ao custo de muita luta conseguimos<br />
romper o cerco de nosso grupo e os orcs debandaram. Mas ao<br />
nos unirmos aos demais solda<strong>dos</strong>, constatei que o senhor<br />
Martin não estava com eles. Eu estava preocupado, sobretudo,<br />
com sua filha Lourdes, que ele insistiu em trazer nesta<br />
campanha com medo de que ela pudesse fugir de Amiens em<br />
sua ausência. Infelizmente, ela também desapareceu.<br />
192
Enquanto Alain narrava os acontecimentos da<br />
madrugada, Leon o escutava tomado de nervosismo,<br />
esfregando as mãos freneticamente sem parar.<br />
— Vasculhamos os arredores — continuou Alain — e<br />
não o encontramos. Acredito que ele possa ter sido levado<br />
pelas criaturas, e imploro vossa ajuda para que possamos<br />
resgatá-lo.<br />
— Por quê não foram atrás <strong>dos</strong> malditos orcs? Vocês não<br />
conhecem esses monstros, eles não fazem prisioneiros,<br />
certamente já terão matado Martin a essa altura! — esbravejou<br />
Leon, caindo sobre um banco de madeira e levando as mãos<br />
ao rosto, sem acreditar no que estava acontecendo.<br />
Sem saber o que estava se passando, Alain ficou<br />
intrigado com a reação de Leon, tentando imaginar o motivo<br />
de toda aquela angústia por um homem que havia chegado<br />
naquelas bandas para aprisioná-lo, ou até mesmo matá-lo.<br />
— Não podíamos fazer isso. <strong>Era</strong> muito arriscado, não<br />
conhecemos a região e muito menos este novo e demoníaco<br />
inimigo. Ademais, perdemos mais da metade de nossos<br />
homens desde que partimos de Amiens, estamos<br />
enfraqueci<strong>dos</strong>.<br />
— Eu não acredito que isso esteja acontecendo comigo,<br />
eu não acredito! — Gritou Leon, furioso. — Deus maldito, por<br />
que me castigas desta forma?<br />
— Consiga-me um guia e encontrarei meu senhor.<br />
— Eu mesmo serei o guia! — exclamou Leon. —<br />
Maurice, quero vinte homens da guarda me acompanhando<br />
na busca. Quanto a você, Alain, reúna os que ainda tenham<br />
ânimo para nos acompanhar. Tenho que encontrar Martin!<br />
Em pouco menos de meia hora, saíram pelo portão<br />
principal de Nouvelle Amiens, Leon, Alain, e pouco mais de<br />
quarenta homens.<br />
Durante as buscas, Leon contou a Alain sobre o<br />
conteúdo do pergaminho e sobre a descoberta que fizera em<br />
relação a Martin Lacroix, sendo este, seu pai. Alain ficou<br />
193
estupefato com tudo o que ouviu, mas sentiu um certo alívio<br />
em seu íntimo, imaginando que agora, talvez seu senhor se<br />
tornasse um homem mais sereno. Imaginou que, com essa<br />
revelação, talvez pudesse por termo à exaustiva busca <strong>dos</strong><br />
conspiradores que já durava mais de dois anos e havia<br />
culminado na desgraça em que agora se encontravam,<br />
isola<strong>dos</strong> naquele estranho lugar. Pensando nestas hipóteses,<br />
continuou a procura de seu senhor ao lado de Leon.<br />
Por várias semanas procuraram, em vão, encontrar<br />
Martin Lacroix. Faziam incursões cada vez mais distantes em<br />
direção à Grande Floresta, mas sempre fracassavam.<br />
Chegaram a combater alguns orcs desgarra<strong>dos</strong>, mas nenhum<br />
vestígio do senhor de Amiens foi encontrado.<br />
Leon e Alain, acabaram tornando-se grandes amigos,<br />
pois saíam juntos diariamente com uma pequena escolta nas<br />
incansáveis buscas ao senhor de Amiens, até que o coração de<br />
Leon amargurou-se de tal forma que já não conseguia mais<br />
permitir espaço para esperanças. Depois de quase três meses<br />
de buscas infrutíferas, Leon caiu em depressão, e já não<br />
conseguia mais sequer sair de sua residência.<br />
Finalmente, resolveu encarar a dura realidade de que<br />
jamais tornaria a ver seu pai, e arrefeceu.<br />
194
A<br />
CAPÍTULO XIV<br />
Reencontros e compromisso<br />
pós vários meses aguardando que os elfos de Eluannar os<br />
visitassem, trazendo os generosos presentes que já<br />
estavam habitua<strong>dos</strong> a receber, o povo de Nouvelle Amiens<br />
mostrava-se mais sombrio nos últimos dias.<br />
Depois que as buscas a Martin Lacroix foram<br />
interrompidas, os orcs voltaram a investir de forma ainda<br />
mais violenta contra a cidade, e os rumores de que todas as<br />
estradas estavam sendo vigiadas por essas vis criaturas os<br />
deixavam alarma<strong>dos</strong>. Para aumentar ainda mais o sofrimento<br />
<strong>dos</strong> cidadãos de Nouvelle Amiens, Alain Dumas lhes relatara<br />
que a passagem que levava à Amiens fora soterrada com o<br />
estremecer da terra, que acabou culminando no desabamento<br />
de enormes blocos de rocha. <strong>Era</strong>m dias difíceis e to<strong>dos</strong><br />
sentiam-se entristeci<strong>dos</strong> e desesperança<strong>dos</strong>.<br />
Não havia mais como voltar para Amiens. Não havia<br />
mais como visitar os antigos amigos e parentes que ficaram<br />
para trás. Não havia mais, como trazer os víveres, forragem e<br />
especiarias que durante os últimos dois anos eles sempre<br />
encomendavam aos mensageiros para que trouxessem de<br />
Amiens.<br />
De certa forma, a existência do caminho como uma<br />
possibilidade de retorno à Amiens os deixava tranqüilos. Por<br />
mais que já estivessem adapta<strong>dos</strong> à vida em <strong>Virgo</strong>, era muito
importante para aquelas pessoas, saber que a qualquer<br />
momento podiam optar por voltar à sua terra natal.<br />
A notícia de que esta possibilidade não existia mais,<br />
entretanto, foi fundamental para que os habitantes de<br />
Nouvelle Amiens aceitassem definitivamente que suas vidas<br />
em <strong>Virgo</strong>, jamais poderia ser abandonada e tornara-se fato<br />
consumado.<br />
Daquele dia em diante, era preciso que eles se<br />
esforçassem ainda mais para que sua cidade prosperasse e se<br />
tornasse vigorosa, pois agora, aquela era a cidade onde<br />
terminariam seus dias, mesmo que em alguns casos, muito a<br />
contragosto.<br />
<strong>Era</strong> comum, naqueles dias, as pessoas conversarem<br />
acerca de Amiens. Muitos faziam planos de rotas comerciais<br />
entre as duas cidades, visando não só lucrar com tais<br />
atividades, mas principalmente, garantir que nada lhes<br />
faltasse enquanto ali permanecessem. Outros, ainda, faziam<br />
planos de retornar quando a guerra com os ingleses<br />
terminasse, ou simplesmente, quando Martin Lacroix não<br />
fosse mais o soberano do local. Mas todas essas conversas, e<br />
muitas outras que sempre tomavam Amiens como tema,<br />
foram naturalmente passando à nostalgia, dando lugar, cada<br />
semana com mais força, a temas como os lugares<br />
desconheci<strong>dos</strong> de <strong>Virgo</strong>, as riquezas naturais daquele lugar, o<br />
crescimento de Nouvelle Amiens, e muitos outros assuntos<br />
pertinentes à sua nova realidade de habitantes definitivos<br />
naquela terra.<br />
A aceitação de que estavam fada<strong>dos</strong> a morrer em <strong>Virgo</strong>,<br />
sem oportunidade de voltar a Amiens, não seria rápida.<br />
Mesmo depois que se passassem muitos anos, algumas<br />
pessoas lembrariam com saudade e tristeza de sua terra natal.<br />
Um <strong>dos</strong> fatores que ajudou a amenizar a dor e o<br />
sentimento de perda, foi o nascimento <strong>dos</strong> primeiros homens<br />
em <strong>Virgo</strong>, em Nouvelle Amiens. Desta forma, os homens<br />
começaram a criar verdadeiras raízes naquele lugar, pois os<br />
196
que jamais conheceram Amiens, por mais belas as histórias<br />
que pudessem escutar sobre a terra de seus antepassa<strong>dos</strong>,<br />
nunca se ocupariam com sonhos de uma terra que não fosse a<br />
que eles nasceram. Se por um lado, os velhos sempre<br />
procuravam um motivo para relembrar de Amiens, por outro,<br />
os mais jovens e adultos não se cansavam de falar de suas<br />
aventuras em <strong>Virgo</strong>, cada vez mais fantásticas e fabulosas para<br />
as crianças nascidas ali.<br />
Bastaram apenas três gerações em <strong>Virgo</strong> para que a<br />
velha Amiens e a velha França passassem à sombra, onde<br />
apenas os muito i<strong>dos</strong>os, à beira da senilidade, se recordassem<br />
vagamente desses dias.<br />
Mas esse tempo vai muito à frente de nossa época, e não<br />
seria justo com nossos heróis deixarmos de narrar seus feitos<br />
nesta nova era de <strong>Virgo</strong>.<br />
Foi então, nesse clima de tensão, com todas essas tristes<br />
notícias espalhando-se rapidamente como um vírus entre<br />
aquelas pessoas, que Leon Troujard decretou, pela primeira<br />
vez desde que assumira a liderança daquele povo, um feriado<br />
para o dia seguinte, convocando as pessoas para que<br />
pudessem comparecer a um pronunciamento seu. Não haveria<br />
nenhum tipo de trabalho naquele dia. Nem mesmo na<br />
construção <strong>dos</strong> prédios públicos de Nouvelle Amiens, que<br />
estavam em fase de conclusão, e era a obra que mais atraía a<br />
dedicação e o carinho de Leon.<br />
To<strong>dos</strong> ficaram muito apreensivos com este fato inédito,<br />
e especularam sobre os desígnios que estariam fada<strong>dos</strong> a<br />
suportar.<br />
Ao anoitecer, as três tabernas existentes em Nouvelle<br />
Amiens ficaram abarrotadas de gente. Cada cidadão com uma<br />
versão mais estapafúrdia do que a de outro a respeito do que<br />
seria pronunciado por Leon no dia seguinte. As pessoas<br />
temiam, principalmente, que alguma razão as levasse a<br />
abandonar Nouvelle Amiens. Eles não se conformavam com o<br />
desmoronamento da caverna que os levou ao total isolamento,<br />
197
mas tinham um medo muito maior, talvez potencializado pelo<br />
fato de que não tinham mais como regressar a sua cidade<br />
natal, de ter que deixar Nouvelle Amiens às pressas.<br />
Alguns mais versa<strong>dos</strong> na criação de boatos chegavam a<br />
dizer que quem provocara o desabamento foram os orcs<br />
selvagens, e que provavelmente estes mesmos orcs já estariam<br />
a caminho de Nouvelle Amiens para também destruí-la.<br />
Toda essa especulação estava servindo apenas para<br />
alarmar ainda mais as pessoas, e isso divertia alguns boateiros,<br />
que se regozijavam ao ver a cara de pavor das pessoas ao<br />
escutarem suas histórias bizarras.<br />
O povo sabia que a guarda de Nouvelle Amiens, criada<br />
a pouco menos de um ano por Leon, a despeito de possuir<br />
belas armaduras e armamentos confecciona<strong>dos</strong> e forneci<strong>dos</strong><br />
pelo povo élfico de Eluannar, era muito limitada. Contava<br />
com pouco mais de cinqüenta homens sem qualquer<br />
experiência de batalha. Mesmo contando com alguns solda<strong>dos</strong><br />
de Amiens que agora estavam entre eles, incorpora<strong>dos</strong> à<br />
guarda da cidade por Leon, não seriam capazes de resistir a<br />
um ataque maciço, fosse ele proveniente de orcs, goblins ou<br />
mesmo de ingleses. Em caso de cerco, poderiam resistir por<br />
vários meses, por possuírem uma fantástica reserva de<br />
provisões dentro das muralhas. Mas sem ajuda, acabariam por<br />
sucumbir.<br />
A noite avançava com um certo ar de cinismo entre as<br />
bebedeiras e os boatos. Os bêba<strong>dos</strong>, começavam a revelar-se<br />
entre os assusta<strong>dos</strong> e boateiros, dando mostras de total<br />
descontrole de seus atos. Não demorou muito para que as<br />
brigas ocupassem o lugar das rodinhas de história, exibindo<br />
um <strong>dos</strong> mais tristes cenários da miséria humana. A discórdia<br />
era entre pais e filhos, principalmente a respeito <strong>dos</strong> caminhos<br />
que deveriam ser toma<strong>dos</strong> por Leon. Uns querendo exaltar<br />
Amiens, e os outros defendendo a nova pátria. Irmãos se<br />
agredindo fisicamente, numa disputa insana de quem era<br />
portador da razão, como se isso fosse garantir que seus<br />
198
argumentos deveriam prevalecer. Enfim, homens que<br />
acreditavam cegamente possuir a sabedoria e a verdade<br />
necessárias para a situação que se apresentava, brigavam,<br />
entorpeci<strong>dos</strong> pelo vinho, como um bando de delinqüentes.<br />
<br />
Em Nouvelle Lyon, onde a cidade era mais modesta em<br />
tamanho e beleza, à exceção da infestação de orcs, que podia<br />
ser notada em qualquer parte de <strong>Virgo</strong>, as pessoas estavam<br />
alheias aos últimos acontecimentos que fervilhavam em<br />
Nouvelle Amiens, do outro lado da Planície de Prata.<br />
Não sabiam que Martin Lacroix havia chegado a <strong>Virgo</strong><br />
com um grande número de solda<strong>dos</strong>, e que este desaparecera<br />
num ataque de orcs; não sabiam do desmoronamento da<br />
caverna que era o elo de ligação entre <strong>Virgo</strong> e Amiens; não<br />
sabiam que Michel Montbard, ainda se encontrava em<br />
Amiens, quando este desmoronamento ocorreu, e que ele não<br />
teria mais como voltar para sua cidade.<br />
Alheios, sim, mas muito inquietos, estavam os<br />
habitantes de Nouvelle Lyon, e dois deles, em especial,<br />
mostravam-se ainda mais agita<strong>dos</strong>. Grassac e Peter, que<br />
passaram a noite em claro, conversando sobre o notável<br />
aumento da presença de orcs nos bosques que cercavam a<br />
cidade, presenciavam cala<strong>dos</strong> as primeiras luzes rosadas da<br />
manhã. O amanhecer cor de rosa já não parecia tão estranho<br />
quanto há dois anos atrás, mas sempre merecia contemplação,<br />
porque sem a menor sombra de dúvida, aquele céu luminoso<br />
acendendo-se gradativamente era o evento natural mais lindo<br />
daquele lugar.<br />
Absortos em sua contemplação, não se aperceberam da<br />
chegada de um velho e amado amigo, Etiènne Montbard, que<br />
regressava de Bakkin.<br />
— Se eu fosse um orc, teria duas novas cabeças para<br />
levar como troféus — exclamou Etiènne, assustando os amigos<br />
com sua repentina presença.<br />
199
— Deus do Céu! Que susto! — disse Peter.<br />
— Não tenha tanta certeza disso, meu amigo —<br />
resmungou Grassac, tentando disfarçar o susto que levara,<br />
mas ao mesmo tempo, exibindo um enorme sorriso de<br />
satisfação ao rever o amigo querido.<br />
Abraçaram-se calorosamente, como amigos que não se<br />
viam há muito tempo. Na verdade, Etiènne os visitou no<br />
semestre anterior, para lhes contar sobre todas as maravilhas<br />
que havia conhecido do outro lado das Montanhas Negras,<br />
sobre o maravilhoso reino de seu amigo Bakhin e seus<br />
incontáveis habitantes. Agora voltava, não para contar sobre<br />
suas aventuras do outro lado, mas por estar demasiadamente<br />
preocupado com seu irmão e seus amigos, devido à intensa<br />
atividade <strong>dos</strong> orcs nos últimos meses.<br />
— Me conte, Etiènne, como chegou aqui tão cedo? Não<br />
me diga que passou toda a madrugada caminhando? —<br />
perguntou Grassac, ainda admirado e feliz por rever Etiènne.<br />
— Não há motivo para que eu me preocupe, eu estava<br />
bem acompanhado com um grupo de orcs que conheci, e<br />
tornaram-se meus amigos. — respondeu Etiènne, em tom<br />
zombeteiro, gozando com a cara <strong>dos</strong> amigos, rindo bastante.<br />
— Você é mesmo um gaiato — concluiu Grassac.<br />
— Mas então, como chegou aqui a uma hora dessas? —<br />
Peter reforçou a pergunta do amigo.<br />
— Não caminhei por toda a noite, apenas uma parte<br />
dela. Mesmo os orcs precisam dormir. Agem como crianças<br />
travessas, lutam contra o sono durante quase toda noite, mas<br />
nas últimas três horas da madrugada é muito difícil encontrar<br />
um que tenha resistido ao sono. To<strong>dos</strong> dormem neste período.<br />
Eu poderia ter chegado pouco depois do anoitecer, pois já<br />
havia feito a travessia das Montanhas Negras, mas assim que<br />
anoiteceu procurei logo um abrigo. Retomei a caminhada<br />
apenas quando a madrugada já estava bem avançada.<br />
— Não é prudente vagar solitário nestes dias —<br />
repreendeu Grassac — em que orcs andam às dezenas por<br />
200
to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>. Nem mesmo os goblins, tão comuns nesta<br />
região, têm aparecido ultimamente.<br />
— Agora não tem mais perigo, já estou entre amigos.<br />
— Onde está Bakhin?<br />
— Onde está meu irmão?<br />
Grassac e Etiènne perguntaram ao mesmo tempo. O<br />
primeiro, onde estaria o rei anão, que no semestre anterior<br />
acompanhara Etiènne com uma forte escolta até Nouvelle<br />
Lyon, e Etiènne, indagando sobre seu irmão, Michel<br />
Montbard.<br />
Sorriram embaraça<strong>dos</strong>, mas a boa educação permitiu a<br />
Grassac satisfazer rapidamente a curiosidade do visitante.<br />
— Michel viajou para Amiens. Foi buscar Dízier, como<br />
prometera ao taberneiro, lembra-se?<br />
— Sim, como iria esquecer-me? Eu não estava lá quando<br />
ele fez a tal promessa, mas da forma como me contou, dizendo<br />
que as lágrimas de esperança derramadas por Dízier foram a<br />
coisa mais comovente que viu na vida, foram suficientes para<br />
me emocionar também.<br />
— Sim, eu estava lá. E seria uma injustiça muito grande<br />
de Michel se ele não cumprisse sua palavra e não fosse buscar<br />
Dízier.<br />
— Eu também me lembro deste dia. Realmente, esta<br />
promessa não poderia ser quebrada por Michel. Na minha<br />
opinião, acho que esperar dois anos chegou a ser um castigo<br />
desnecessário para o pobre taberneiro — concluiu Peter.<br />
Etiènne olhou com reprovação para Peter que,<br />
desconcertado, procurou remedar suas próprias palavras.<br />
— Claro que muitas coisas inesperadas aconteceram e<br />
exigiram que Michel estivesse sempre presente conosco. Não<br />
quis dizer que a atitude dele tenha sido proposital, perdoemme.<br />
— Tudo bem — exclamou Etiènne.<br />
Grassac, por sua vez, manteve-se neutro, pois jamais<br />
esquecera suas desavenças com Michel por ocasião da<br />
201
construção da cidade, de forma que não se sentia nem um<br />
pouco propenso a fazer qualquer colocação sobre o assunto.<br />
— Mas então, meu irmão foi para Amiens, sozinho!? —<br />
Etiènne fez essa pergunta demonstrando uma certa decepção,<br />
e ao mesmo tempo cobrando <strong>dos</strong> amigos, por quê nenhum <strong>dos</strong><br />
dois havia acompanhado seu irmão em tão longa, perigosa e<br />
cansativa viagem.<br />
— Calma Etiènne, não seja precipitado em seu<br />
julgamento. Claro que fizemos de tudo para que ao menos um<br />
de nós acompanhasse Michel, mas você, mais do que<br />
ninguém, sabe o quanto seu irmão é teimoso e cabeça dura! —<br />
defendeu-se Grassac. — Já nos desentendemos incontáveis<br />
vezes nesses últimos dois anos por conta de sua intransigência<br />
nata.<br />
Mais uma vez Etiènne disse que estava tudo bem, e que<br />
perdoaria os amigos se estes lhe conseguissem um bom<br />
desjejum e boas acomodações, pois pretendia ficar até que seu<br />
irmão retornasse de Amiens. O que ele ainda não sabia, mas<br />
também não demoraria a saber, é que Michel não podia voltar<br />
de Amiens. A passagem já não existia mais.<br />
Os primeiros dias da estada de Etiènne em Nouvelle<br />
Lyon foram muito tranqüilos e agradáveis. Ajudou no<br />
planejamento da expansão da cidade, que já estava<br />
começando a ser desenhado por seu irmão, e prometeu<br />
conseguir com Bakhin mais ajuda material e alguma mão-deobra<br />
para que a expansão ocorresse mais rapidamente.<br />
Etiènne, mostrava-se orgulhoso pelo trabalho que seu irmão e<br />
os amigos haviam realizado e continuavam realizando por<br />
aquelas pessoas que estavam realmente vivendo dias muito<br />
felizes. Claro, dias felizes, sim, mas também estavam<br />
assustadas com a questão <strong>dos</strong> orcs, que mostravam-se cada<br />
vez mais numerosos naquelas paragens. Mas nenhum<br />
incidente grave havia ocorrido com os cidadãos de Nouvelle<br />
Lyon.<br />
<br />
202
O dia já estava claro em <strong>Virgo</strong> e a brisa forte da manhã,<br />
comum na região da Planície de Prata, fazia com que aquela<br />
multidão de pessoas de Nouvelle Amiens, estivesse bem<br />
agasalhada, de braços cruza<strong>dos</strong> ou esfregando as mãos de<br />
tempos em tempos.<br />
To<strong>dos</strong> aguardavam com grande ansiedade a presença de<br />
Leon, num murmúrio que mais parecia uma canção de<br />
angústia. Um palanque fora improvisado num <strong>dos</strong> pontos da<br />
cidade onde era possível reunir o maior número de pessoas.<br />
Pela quantidade de gente que estava amontoada ali naquela<br />
manhã, podia-se dizer que apenas os muito enfermos ou<br />
i<strong>dos</strong>os, que não eram capazes de caminhar, haviam faltado à<br />
convocação de Leon Troujard.<br />
Os minutos pareciam ter transformado-se em horas<br />
intermináveis, mas quando um silêncio fúnebre se apoderou<br />
da multidão, Leon, surgiu acompanhado de Alain Dumas no<br />
alto do palanque que fora improvisado.<br />
Leon trazia um comprido papiro onde havia rascunhado<br />
durante a madrugada, as palavras que pretendia proferir a seu<br />
povo naquela fria manhã.<br />
A guarda de Nouvelle Amiens, à exceção <strong>dos</strong> sentinelas<br />
da entrada da cidade e das torres de vigia espalhadas pela<br />
muralha que a cercava, estava quase toda presente,<br />
envolvendo o palanque numa espécie de cerca humana,<br />
dando um tom mais solene ao momento.<br />
Nervoso e pigarreando um pouco, Leon preparava-se<br />
para iniciar o seu pronunciamento.<br />
<br />
Naquela mesma manhã, entretanto, muito distante dali e<br />
sob o cálido sol do outono francês, e não sob o avermelhado<br />
céu de <strong>Virgo</strong>, Michel Montbard, em Amiens, caminhava sobre<br />
um terreno isolado dentro da propriedade do tio de Gien<br />
Ballec, acompanhado do próprio Gien, que o conduzira até<br />
uma pequena lápide dedicada ao taberneiro Dízier.<br />
203
Michel, ajoelhou-se diante da pequena lápide, incrédulo,<br />
testemunhando que um de seus grandes amigos e idealizador<br />
maior do sonho que conquistara, estava ali, sepultado.<br />
— Como foi que aconteceu? — perguntou Michel, com<br />
uma amargura daquelas que nos dá um nó na garganta,<br />
fazendo com que até mesmo a saliva torne-se pesada, espessa<br />
e difícil de engolir.<br />
— Ele nunca se recuperou daqueles ferimentos. Sua<br />
tristeza, estando entrevado na cama, aumentava a cada mês.<br />
No início, ele ainda falava muito de vocês, mas com um<br />
carinho especial por ti, a quem ele transformou numa espécie<br />
de salvador que a qualquer momento entraria pela porta da<br />
casa de meu tio, para levá-lo.<br />
Michel, cerrou os punhos com força e as lágrimas<br />
começaram a brotar-lhe nos olhos. Tentou lutar contra a<br />
emoção, mas quanto mais lutava, mais vulnerável ficava aos<br />
seus sentimentos. Os lábios começaram-lhe a tremer, e ele<br />
inutilmente tentou conter esta reação, mordendo-os.<br />
Gien continuou:<br />
— Depois de três meses, ficou ainda pior. Tinha<br />
pesadelos todas as noites, delirava em febre. Meu tio acredita<br />
que ele tenha enlouquecido por causa da obsessão de que você<br />
viria buscá-lo. Ele começou a dizer coisas impossíveis, de que<br />
tinha conversado com você, de que você o avisou que estaria<br />
chegando, coisas assim.<br />
Michel levou uma das mãos à testa, apoiando sua<br />
cabeça, e começou a soluçar. Não era mais possível conter as<br />
lágrimas, e uma dor de culpa e remorso apoderou-se dele.<br />
— Michel? Não fique assim, ele não podia ser salvo.<br />
— Mas podia ter conhecido Nouvelle Lyon antes de<br />
morrer — respondeu Michel, amargurado, num tom choroso.<br />
Gien sacudiu a cabeça, coçou a orelha, e achou melhor<br />
deixar o amigo sozinho naquele momento.<br />
— Vou deixá-lo só, por algum tempo. Estarei dentro da<br />
casa se precisar de algo — disse.<br />
204
— Você não terminou de dizer como ele morreu!<br />
— Não durou muito mais tempo depois <strong>dos</strong> delírios.<br />
Acho que, pouco mais de duas semanas, e estava totalmente<br />
consumido pelas infecções e loucura. — Gien fez uma<br />
pequena pausa e depois concluiu: — Um médico esteve<br />
acompanhando o estado de Dízier, e no final, determinou que<br />
a causa da morte foi a elevada temperatura, que não<br />
conseguíamos mais conter. Morreu de hipertermia.<br />
— Morreu de desgosto! — retrucou Michel, assumindo a<br />
culpa pela morte de Dízier, ainda mostrando-se arrasado.<br />
— Não diga uma bobagem dessas. Dízier estava<br />
debilitado, com ferimentos que insistiam em não cicatrizar,<br />
apesar de to<strong>dos</strong> os cuida<strong>dos</strong> que lhe dispensamos. Você não<br />
estava aqui para saber como foi difícil tentar curá-lo. Se ele<br />
tivesse sido tratado com brevidade, talvez ainda estivesse vivo<br />
hoje e voltaria para essa tal Nouvelle Lyon com você, mas o<br />
tempo que ele perdeu naquele calabouço de Martin Lacroix é<br />
que foi o verdadeiro culpado por tirar as chances dele ter<br />
recebido o devido tratamento a tempo e ser curado!<br />
Gien falava com carinho, pois sabia que o amigo estava<br />
muito angustiado com o destino que Dízier tivera.<br />
— Vamos, Michel, vamos entrar e irei preparar um bom<br />
chá que costuma dar ânimo até mesmo para os dias mais<br />
difíceis do meu tio.<br />
Michel, levantou-se ainda envolto em lágrimas. Aceitou<br />
com prazer o ombro oferecido por Gien para se sustentar e<br />
acompanhou seu amigo de volta para a casa onde estava<br />
abrigado desde a ocasião em que haviam fugido das garras de<br />
Martin Lacroix. Logo partiria para Nouvelle Lyon, acreditava.<br />
Pigarreou duas ou três vezes sobre a mão esquerda<br />
cerrada, e com a outra mão, esticando o papiro ao alcance de<br />
sua vista, Leon começou seu discurso.<br />
“Povo de Nouvelle Amiens,<br />
205
Vós to<strong>dos</strong> sabeis o quanto tenho dedicado meus dias ao<br />
labor para a glória da cidade que vos abriga e protege. Vós<br />
to<strong>dos</strong> sabeis, que deleguei responsabilidades diversas, a<br />
muitos concidadãos que se mostraram dispostos a realizar um<br />
trabalho voluntário difícil, para organizarmos nossa estrutura,<br />
que é baseada num regime democrático onde não permitimos<br />
espaço para a tirania, que outrora sentimos através das mãos<br />
de meu próprio pai, Martin Lacroix! — Neste momento, um<br />
murmúrio e uma inquietação agitaram a massa. Muitos ainda<br />
não sabiam desse fato. Leon ergueu o braço, pedindo silêncio<br />
para que pudesse prosseguir com seu pronunciamento. —<br />
Como é de vosso conhecimento, a rota que nos ligava à<br />
Amiens já não existe mais e agora estamos confina<strong>dos</strong> para<br />
sempre nesta região. Apesar <strong>dos</strong> temores de to<strong>dos</strong> nós, não<br />
temos o que reclamar, pois fomos recebi<strong>dos</strong> com amor pelos<br />
elfos de Eluannar, que tanto se empenharam em nos ajudar a<br />
erguer nossa cidade, e fomos agracia<strong>dos</strong> com uma boa terra,<br />
que não nos deixa faltar forragem e víveres, que nos abastece<br />
com uma riqueza a que nunca estivemos acostuma<strong>dos</strong>.<br />
Portanto, em razão de estarmos isola<strong>dos</strong> nesta boa terra,<br />
onde já fizemos importantes amigos, nós, de Nouvelle<br />
Amiens, temos a responsabilidade de nos preparar e nos<br />
conduzir para uma nova era. A era <strong>dos</strong> homens em <strong>Virgo</strong>! —<br />
Esta ultima frase foi pronunciada com firmeza e eloqüência,<br />
fazendo com que a multidão o ovacionasse, com vários gritos<br />
de elogio a seu trabalho. Mais uma vez, ergueu o braço<br />
pedindo silêncio, e prosseguiu — É por isso que os convoquei<br />
hoje, porque to<strong>dos</strong> devem estar cientes dessa enorme<br />
responsabilidade que caiu sobre nós! — Pigarreou mais duas<br />
ou três vezes, antes de continuar. — Como sabem, os orcs<br />
selvagens voltaram a nos assediar, e não podemos de forma<br />
alguma, ser subjuga<strong>dos</strong> por essas criaturas demoníacas. Não<br />
devemos apenas nos defender atrás de nossos muros, mas<br />
erradicar de nossa região, para sempre, esses malditos<br />
monstros! — Novos aplausos e ovação ocorreram por parte do<br />
206
povo. — Eis ao meu lado, Alain Dumas, capitão da guarda de<br />
Amiens, que agora, está ao serviço de nossa cidade. Assim<br />
como ele, tantos outros homens, solda<strong>dos</strong> treina<strong>dos</strong> de<br />
Amiens, se integraram à nossa guarda. Por um lado,<br />
aumentando nossa proteção, mas por outro, aumentando as<br />
despesas de nossa cidade. — Um novo murmúrio percorreu a<br />
massa, que já começava a temer pelas próximas palavras de<br />
Leon. — E foi pensando na responsabilidade da qual lhes falei,<br />
que tomei uma decisão que irá desagradar a muitos. A partir<br />
do próximo mês, haverá um aumento no imposto de<br />
segurança territorial, e além disso, será criado um novo<br />
imposto para que possamos captar recursos suficientes para<br />
iniciar a organização de um exército para Nouvelle Amiens.<br />
Será criado o imposto militar. Contudo, este último imposto<br />
ficará a cargo do povo decidir sobre o quanto será pago,<br />
mensalmente, para a glória de nossa cidade!”<br />
As pessoas se entreolharam incrédulas, como se tudo o<br />
que acabaram de ouvir fosse um pronunciamento do próprio<br />
Martin Lacroix, e não de seu filho. Não obstante, sabiam que<br />
deveriam responsabilizar-se pelo futuro, não só da cidade,<br />
quanto o de suas próprias famílias, e diferentemente de como<br />
Martin Lacroix agiria, seu filho lhes dava a oportunidade de<br />
decidir sobre o caminho a seguir, ainda que as opções fossem<br />
amargas, pois teriam que contribuir e não podiam fugir à<br />
responsabilidade. Os orcs eram uma ameaça real, e poderiam<br />
dizer quantas outras ameaças ainda surgiriam naquele lugar?<br />
Leon encerrou seu pronunciamento com elogios aos<br />
cidadãos de Nouvelle Amiens, e marcou uma nova data onde<br />
seria realizada uma avaliação das sugestões quanto ao novo<br />
imposto que necessitava ser criado, o imposto militar.<br />
207
A<br />
CAPÍTULO XV<br />
A tempestade se aproxima<br />
beleza do céu de <strong>Virgo</strong> era incontestável, mas nos dias<br />
chuvosos, quando densas nuvens cobriam os luminosos<br />
cristais avermelha<strong>dos</strong>, devido à condensação de vapores, o<br />
lugar tornava-se medonho. A escuridão provocada pelas<br />
nuvens de chuva colocava <strong>Virgo</strong> totalmente às escuras,<br />
fazendo com que dia e noite tornassem-se uma só longa<br />
escuridão. Nos dias em que a condensação de vapores em<br />
<strong>Virgo</strong> era muito intensa, geralmente na mesma época em que<br />
ocorria o verão na França, as chuvas tornavam-se torrenciais,<br />
muitas vezes obrigando as pessoas a permanecerem longos<br />
perío<strong>dos</strong> confinadas em seus lares, limitando-se a sair somente<br />
se fosse inevitável, como por exemplo, para repor as provisões<br />
em suas despensas, ou em caso de emergência, saúde, e outras<br />
situações graves.<br />
Foi num desses dias chuvosos, apesar do perigo que eles<br />
representam para os viajantes de <strong>Virgo</strong>, que um grupo de<br />
Eluannar, depois de muitos meses, apareceu inesperadamente<br />
às portas de Nouvelle Amiens.<br />
Os portões foram abertos tão logo o estandarte de<br />
Eluannar fora identificado, e os visitantes foram conduzi<strong>dos</strong><br />
até a Casa de Governo, onde normalmente Leon era<br />
encontrado, agora sempre ao lado de Maurice e Alain Dumas,<br />
que passou a ser seu braço direito.
Os elfos estavam com suas vestimentas totalmente<br />
encharcadas devido à chuva, e hesitaram em entrar na Casa de<br />
Governo no estado em que se encontravam. Dois jovens<br />
rapazes apareceram trazendo toalhas e foram extremamente<br />
gentis, ajudando os elfos a desfazerem-se das pesadas capas<br />
que inutilmente tentavam protegê-los da chuva.<br />
Alguns momentos depois, Leon apareceu na recepção,<br />
onde os elfos já o aguardavam mais à vontade. Notou que não<br />
conhecia nenhum <strong>dos</strong> elfos ali presentes, e achou ainda mais<br />
estranho que seu grande amigo Lasthion não estivesse com<br />
eles, depois de tanto tempo sem os visitar.<br />
— Sejam bem vin<strong>dos</strong>! — arriscou Leon, um pouco<br />
apreensivo com a inusitada visita, num tempo tão ruim.<br />
— Obrigado, senhor — pronunciou-se um <strong>dos</strong> elfos que,<br />
pela ornamentação que trazia em suas vestes, parecia ser o<br />
líder daquele pequeno grupo — mas infelizmente os tempos<br />
tornaram-se muito sombrios, e nossa visita não se trata apenas<br />
de uma mera casualidade. — O tom de voz do elfo era grave.<br />
— É verdade. Tenho pensado muito em vosso povo<br />
ultimamente, pois não tendo nenhuma notícia, e estando as<br />
estradas infestadas de orcs selvagens, ficamos priva<strong>dos</strong> de<br />
nossos contatos neste fim de mundo. — reclamou Leon.<br />
— Lasthion, também se preocupa muito com vosso<br />
povo, e tem sido veemente junto a nosso rei ao tentar<br />
convencê-lo de que é necessário destacar uma legião inteira<br />
para proteger Nouvelle Amiens. Ele os ama, e se preocupa<br />
com vocês. Não pense que ele vos esqueceu.<br />
Leon ficou desconcertado e também muito<br />
envergonhado por reclamar da ausência <strong>dos</strong> elfos que tanto<br />
lhe ajudaram na construção de sua cidade.<br />
— Meu nome é Tarlhion. Como eu dizia, infelizmente<br />
não estou nesta terra distante, a passeio. — a expressão<br />
austera de Tarlhion e a eloqüência grave de sua voz não<br />
permitiam qualquer margem a descontração, por mais que<br />
Leon preferisse quebrar aquela aura de seriedade que os elfos<br />
209
trouxeram. — Estou aqui para trazer um convite muito<br />
especial, a pedido do rei de Plarionthil, o maior de to<strong>dos</strong> os<br />
reinos élficos.<br />
— Plarionthil! — exclamou surpreso Leon.<br />
— Sim! Haverá um grande colóquio sobre a recente<br />
atividade <strong>dos</strong> orcs.<br />
Leon olhou para Alain e balançou a cabeça como que em<br />
gesto de surpresa. Ainda naquela semana Leon falara a Alain<br />
sobre os orcs e a estranha movimentação que estava<br />
percebendo. Temia pela segurança da cidade, principalmente<br />
depois que os solda<strong>dos</strong> de Amiens foram ataca<strong>dos</strong>, o que<br />
acabou culminando no desaparecimento de seu pai, Martin<br />
Lacroix.<br />
— O rei Galanderin — continuou Tarlhion — teme por<br />
uma nova época de trevas. Vários batedores já informaram<br />
que um enorme exército de orcs, de diversas tribos, está se<br />
reunindo na região do Deserto Naissaras, aos pés das Colinas<br />
Íngremes. O rei teme por to<strong>dos</strong> os povos, raças e nações, e<br />
quer a presença do representante de cada um deles.<br />
— Mas por que não vieram elfos de Plarionthil trazer o<br />
convite? Por que Lasthion, meu amigo, não veio trazer o<br />
convite para mim? — questionou Leon.<br />
— Plarionthil é o maior de to<strong>dos</strong> os reinos, mas não<br />
pode se dar ao luxo de estender seus braços por toda a<br />
Thalide. Nouvelle Amiens pertence à jurisdição de Eluannar, e<br />
a nosso reino compete manter os povoa<strong>dos</strong> de nossa jurisdição<br />
protegi<strong>dos</strong> e informa<strong>dos</strong> sobre a mão reguladora de<br />
Plarionthil. Nem sempre foi assim, mas um tratado élfico tem<br />
mantido a paz entre nossos povos nestas condições.<br />
— Mas e Lasthion? Por que ele não pôde vir?<br />
— Lasthion está com sua legião na foz do rio Nabrandar,<br />
próximo a Planúviel, outro reino élfico, aguardando ordens<br />
para regressar.<br />
— Então, a situação é mesmo muito ruim, porque uma<br />
vez Lasthion me disse que só em momentos de extremo perigo<br />
210
ele conduzia sua legião para longe de Eluannar — concluiu<br />
Leon, com tristeza.<br />
— Permita entregar-lhe o convite.<br />
Tarlhion estendeu o braço em direção à Leon, exibindo o<br />
Thallon, um pequeno tubo ornamentado com minúsculas jóias<br />
incrustadas, no que parecia ser constituído de alguma espécie<br />
de madeira rústica, bem escura.<br />
O tubo era encaixado em duas metades, e em seu<br />
interior estava o convite do rei Galanderin, que convocava o<br />
representante daquela cidade a comparecer em seu reino, na<br />
primeira semana de Sharvar, o início do período de colheita<br />
<strong>dos</strong> elfos, um <strong>dos</strong> perío<strong>dos</strong> mais comemora<strong>dos</strong> por este povo.<br />
Leon forçou o tubo com as duas mãos, tentando abri-lo,<br />
mas nem foi preciso muito esforço, bastou exercer uma<br />
pequena pressão para que o inusitado objeto se separasse com<br />
um estalido em duas metades, fazendo com que seu conteúdo<br />
caísse no chão, diante de to<strong>dos</strong>. Leon ficou constrangido com<br />
sua atitude desajeitada, e sorriu, encabulado, abaixando-se<br />
para colher a tira de seda aonde vinha gravada a mensagem<br />
em letras élficas bordadas com finos fios de ouro.<br />
A despeito do constrangimento de Leon, Tarlhion fez<br />
questão de afirmar que a presença dele seria imprescindível,<br />
pois o rei supremo <strong>dos</strong> reis élficos não aceitaria descaso por<br />
parte de seus súditos.<br />
— Certamente não pretendo deixar de comparecer em<br />
tão importante encontro. Sempre seremos gratos ao povo<br />
élfico por toda ajuda e proteção que nos dispensaram. —<br />
Tarlhion, fez um gesto com a cabeça, aprovando as palavras<br />
de Leon. — Não obstante, não conhecemos os caminhos que<br />
conduzem a Plarionthil; como bem deve saber, o único lugar<br />
que visitamos fora de nossa cidade foi o vosso reino de<br />
Eluannar.<br />
— Quanto a esse detalhe, não há com o que se<br />
preocupar, pois estará bem acompanhado quando partir para<br />
211
Plarionthil. Lasthion virá para conduzi-lo, para garantir que<br />
chegará em segurança ao maior de to<strong>dos</strong> os reinos élficos.<br />
Leon, sentiu-se mais aliviado ao saber que seu grande<br />
amigo elfo viria para buscá-lo e acompanhá-lo até Plarionthil.<br />
Concluída a entrega do convite, com todas as<br />
recomendações possíveis feitas por Tarlhion, Leon ofereceu a<br />
seus visitantes elfos acomodações para que pudessem se<br />
refazer da cansativa viagem de Eluannar até Nouvelle<br />
Amiens, e claro, para que esperassem que o tempo permitisse<br />
uma viagem tranqüila de regresso.<br />
Tarlhion aceitou de bom grado a gentileza de Leon, e<br />
pôde desfrutar da hospitalidade <strong>dos</strong> homens enquanto<br />
permaneceu na cidade.<br />
<br />
Não existia nada mais gratificante, para o rei Bakhin, do<br />
que poder extrair das profundezas das cavernas ou das minas<br />
escavadas nas planícies o mais puro e reluzente ouro e as mais<br />
cristalinas pedras preciosas de varia<strong>dos</strong> matizes, com que os<br />
anões tanto se encantavam.<br />
Em todas as suas construções era possível perceber a<br />
riqueza com que os anões as adornavam, com milhares de<br />
pequeninas pedras incrustadas e muito ouro. Toda a cidade<br />
<strong>dos</strong> anões era de uma riqueza sem igual.<br />
O próprio Bakhin, em sua infância, pouco antes de<br />
dedicar-se à arte da guerra, esteve em muitas expedições para<br />
extração mineral com os mais experientes mineradores de seu<br />
reino. Foram tempos inesquecíveis, onde aprendera tudo o<br />
que sabia sobre cada metal e cada tipo de rocha.<br />
A Montanha das Garbas, em cujas entranhas ficava o<br />
suntuoso reino de Bakkin, tinha à sua frente, estendido como<br />
se fosse um gigantesco tapete ocre, coberto por uma extensa<br />
vegetação rasteira e avermelhada, a Planície de Ouro. Planície<br />
onde os anões mineradores de Bakkin já haviam praticamente<br />
esgotado todas as minas construídas naquele território.<br />
212
Por muitos anos, Bakhin se consumia tentando conter o<br />
desejo cada vez mais insuportável dentro de si de explorar a<br />
Floresta Dourada para construir novas minas em busca de<br />
ouro. Em seu íntimo, acreditava que toda a região abaixo da<br />
Floresta Dourada era uma imensa jazida de ouro que<br />
influenciava diretamente na florescência dourada encontrada<br />
nas folhagens das árvores daquela região.<br />
Não podia se esquecer, porém, que no passado seu povo<br />
já sofrera uma humilhante derrota para os elfos quando<br />
tentaram iniciar um desmatamento na orla daquela floresta<br />
com o intuito de ampliar suas minas. Foram muitas vidas<br />
perdidas durante a Guerra da Floresta Dourada.<br />
A região da Floresta Dourada, após a famosa guerra cujo<br />
nome foi herdado da própria região, fora transformada num<br />
protetorado de Plarionthil, e a partir de então, guarnecida e<br />
habitada pelos elfos negros.<br />
Bakhin estava relembrando todas essas coisas enquanto<br />
fitava o convite de Plarionthil que chegara a seu reino e lhe<br />
fora entregue naquela manhã.<br />
Os anões não eram muito supersticiosos, mas vários<br />
deles tinham suas crenças e seus deuses. Muitos acreditavam<br />
na velha profecia que Glabor 1 deixou talhada na Klaopala 2, e<br />
que A era <strong>dos</strong> homens em <strong>Virgo</strong> poria um fim na era <strong>dos</strong> elfos,<br />
abrindo caminho para que os anões pudessem deter soberania<br />
absoluta sobre toda Azur.<br />
Bakhin, normalmente acusado de ser ímpio entre os<br />
anões mais nobres de seu reino, sempre fora cético quanto às<br />
crendices e argumentava que nenhuma profecia poderia<br />
garantir as riquezas de seu reino, muito menos a soberania de<br />
Azur. Não obstante, passou a pensar com maior freqüência<br />
nesta profecia, tentando imaginar de que forma, aqueles<br />
1 O último e mais sábio de to<strong>dos</strong> os dragões doura<strong>dos</strong> de <strong>Virgo</strong>.<br />
2 Um monólito de ofuscante brancura, encontrado no centro do Vale<br />
da Neblina. Neste monólito, está gravada a profecia de Glabor.<br />
213
semelhantes a seu novo amigo Etiènne poderiam colocar um<br />
fim na soberania <strong>dos</strong> elfos.<br />
As minas de ouro esgotadas, a raça <strong>dos</strong> homens citada<br />
na profecia, enfim caminhava sobre Azur, os orcs presentes e<br />
numerosos como há muitos séculos não se presenciava. Tudo<br />
isso certamente deveria significar alguma coisa nova no ar, e<br />
Bakhin, pensava em como tirar proveito desses<br />
acontecimentos para beneficiar Bakkin, seu reino.<br />
A presença cada vez mais numerosa de orcs vagando<br />
pela Floresta Dourada, poderia ser uma boa desculpa para que<br />
Bakhin reivindicasse mais uma vez a soberania daquele<br />
território. Os elfos negros, que habitavam o sul daquela<br />
região, não estavam mais sendo capazes de manter o local<br />
seguro, e fechavam-se cada vez mais em suas obscuras<br />
moradias, ao passo que Plarionthil, por sua vez, há muitos<br />
anos não enviava seus observadores para o lado leste das<br />
Montanhas Negras.<br />
Não obstante a tudo isso, Bakhin temia por novos<br />
tempos de guerra, e sua amizade e gratidão por Etiènne<br />
haviam amolecido seu coração nos últimos dois anos.<br />
Desejava continuar ensinando a seu novo amigo, tudo o que<br />
pudesse sobre as maravilhas e os perigos de Azur, e pretendia<br />
manter a ajuda que vinha oferecendo a seu irmão para ampliar<br />
a cidade de Nouvelle Lyon.<br />
Bakhin sabia que uma nova guerra declarada aos elfos<br />
traria instabilidade a Azur, deixando to<strong>dos</strong> os povos ainda<br />
mais vulneráveis aos orcs, que provavelmente aguardavam<br />
encontrar o primeiro sinal de fraqueza das raças superiores<br />
para investirem impie<strong>dos</strong>amente, como fizeram os orcs<br />
Zaraidai, durante a Guerra da Agonia. O pequeno rei<br />
permanecia pensando em todas essas coisas enquanto<br />
continuava girando o Thallon em suas pequeninas, mas<br />
robustas, mãos de anão. Talvez, nunca em toda a sua longa<br />
vida, tivesse se sentido inundado com tantas dúvidas como<br />
estava naquele momento.<br />
214
Que importância poderia ter para os anões de Bakkin,<br />
um colóquio promovido por Galanderin?<br />
<br />
Enquanto isso, na região leste da Planície de Prata, o<br />
mau tempo também castigava Nouvelle Lyon, obrigando a<br />
to<strong>dos</strong> os seus moradores a ficarem confina<strong>dos</strong> dentro de suas<br />
casas.<br />
Etiènne, Grassac e Peter, a despeito da tempestade que<br />
assolava <strong>Virgo</strong> praticamente havia uma semana, divertiam-se<br />
num empolgante jogo de da<strong>dos</strong>, enquanto degustavam entre<br />
uma jogada e outra, um saboroso vinho trazido por Etiènne do<br />
reino de Bakkin e serviam-se de diversas iguarias dispostas<br />
numa bandeja de prata, colocada à proximidade de suas mãos.<br />
Entre um petisco e outro, sempre agita<strong>dos</strong> com a<br />
jogatina, teciam comentários sobre a vida em <strong>Virgo</strong>,<br />
levantando questões importantes a respeito de como<br />
poderiam expandir suas terras e criar rotas comerciais<br />
alternativas, uma vez que não havia mais qualquer esperança<br />
de se criar um vínculo com Amiens, no futuro.<br />
A conversa estava muito animada e cada um deles<br />
contribuía com idéias variadas a respeito de qual seria o<br />
caminho mais rápido para Nouvelle Lyon alcançar a<br />
prosperidade. Na opinião de Etiènne, sem dúvida alguma a<br />
prosperidade seria alcançada através de um forte laço de<br />
amizade entre eles e o reino de Bakkin. Com efeito, se a cidade<br />
já possuía uma boa estrutura, era graças aos esforços <strong>dos</strong><br />
anões e de todo o material cedido por Bakhin. Na opinião de<br />
Grassac, o importante era delinear uma ampla região para<br />
pastagem e cultivo para que a cidade pudesse ser auto<br />
suficiente, e não viesse a correr o risco de depender de outros<br />
povos para garantir suas provisões. O inglês, foi o único que<br />
lembrou de Leon e <strong>dos</strong> outros que ficaram para trás, insistindo<br />
em dizer que seria fundamental para a prosperidade <strong>dos</strong><br />
215
homens em <strong>Virgo</strong> que as duas cidades se unissem e criassem<br />
um forte vínculo comercial.<br />
Assim foi passando a madrugada, e de um tema a outro,<br />
foram dialogando sobre política, economia, religião, filosofia,<br />
guerras, até que chegaram a um tema mais complexo,<br />
mulheres. Como o vinho já havia sido demasiadamente<br />
consumido, não tardou para que os desentendimentos<br />
surgissem.<br />
— Agora, depois de tanto tempo dedicando-me à labuta<br />
para que esta cidade pudesse estar de pé, penso em procurar<br />
uma bela jovem para criar uma família. — Disse Peter.<br />
— Oras, mas o que é isso? — interrompeu Grassac. —<br />
Um rapaz novo como você, se enrabichar por uma única<br />
mulher, casar e ter filhos, bah! Você está louco, Pit?! Você<br />
devia aproveitar sua juventude e conhecer todas as mulheres<br />
de Nouvelle Lyon! — Grassac soltou uma estridente<br />
gargalhada e sorveu mais uma taça de vinho de um só gole,<br />
deixando escorrer mais vinho pelos cantos da boca do que por<br />
sua garganta.<br />
— Qual é o problema, Grassac? Deixe o rapaz decidir<br />
por si. Se esse for seu desejo, não vejo nada demais. Não é<br />
proibido apaixonar-se jovem e desejar construir uma família.<br />
— Contestou Etiènne, em favor do amigo inglês.<br />
— Sim, é verdade, mas devia ser proibido apaixonar-se<br />
por criaturas fantasiosas e jogar fora os melhores anos da vida,<br />
como você vem fazendo por conta dessa tal Sindazel!<br />
— Pode fazer pilhéria o quanto quiser, Grassac, mas hei<br />
de trazer Sindazel em meus braços para viver a meu lado aqui<br />
em Nouvelle Lyon, nem que eu leve a vida inteira para<br />
encontrá-la. Sei que um dia nos reencontraremos!<br />
— Você ficou foi maluco! Devia tirar isso da cabeça!<br />
— Acho que chegou a hora de retirar-me. Percebo que o<br />
vinho já não está lhe fazendo bem e não me interessa, muito<br />
menos, suas opiniões a respeito do que sinto por Sindazel.<br />
216
Grassac riu-se, e ao ver Etiènne afastar-se cambaleante<br />
em direção à porta, gritou — Cuidado para não sonhar com os<br />
anjos e agarrá-los, pensando que é sua mariposa encantada. —<br />
e deu outra gargalhada.<br />
Furioso, Etiènne virou-se e atirou a taça que ainda<br />
carregava consigo em direção a Grassac, mas como estava<br />
bêbado, errou o alvo e a taça voou janela afora, fazendo com<br />
que Grassac continuasse rindo ainda mais.<br />
— Cuidado, acho que você está passando <strong>dos</strong> limites. —<br />
Alertou Peter, o mais sóbrio <strong>dos</strong> três.<br />
— Que nada! Amo Etiènne e jamais desejaria algo de<br />
ruim para ele. Apenas me incomoda ver sua obsessão por essa<br />
criatura fantasiosa. Duvido que possa ser tão bela assim como<br />
ele diz. Mulheres são todas iguais, são como as frutas de um<br />
pomar. Umas são mais bonitas e apetitosas, mas isso não<br />
passa de aparência; no final, o gosto é o mesmo, e a indigestão,<br />
também!<br />
— Que comparação mais besta! As mulheres são os mais<br />
preciosos tesouros que os homens buscam! Cada uma com sua<br />
riqueza, com seus mistérios e seus encantos distintos.<br />
Nenhuma mulher é igual à outra, e por isso mesmo, a escolha<br />
de uma companheira que esteja sempre ao nosso lado é uma<br />
questão muito difícil. Etiènne já fez sua escolha e tenho certeza<br />
de que conseguirá realizar seu sonho.<br />
— Você e Etiènne parecem dois adolescentes! Não<br />
sabem nada de mulheres! Essas criaturas podem satisfazer os<br />
homens tanto quanto podem arruiná-los. Escute-me bem, pois<br />
é a história quem nos ensina, grandes homens foram<br />
manipula<strong>dos</strong> e arruina<strong>dos</strong> por mulheres, que ocultas pelas<br />
sombras da noite e com a maior desfaçatez, lhes sussurravam<br />
diretrizes incertas no leito do prazer. Creia-me, mesmo com<br />
asas de anjo, todas as mulheres na verdade são demônios!<br />
— Grassac, não sei se você está falando como templário<br />
ou se está bêbado. Mas quero evitar polêmicas, por isso, farei<br />
como Etiènne e irei repousar um pouco antes que amanheça.<br />
217
Aconselho-o a fazer o mesmo, pois você está com o aspecto<br />
horrível.<br />
Os dois mal se despediram, pois Grassac desabou antes<br />
mesmo de Peter concluir sua recomendação. O jovem inglês<br />
sacudiu a cabeça e deixou o amigo estirado entre os da<strong>dos</strong> e os<br />
restos de comida espalha<strong>dos</strong> pelo chão, como se por ali<br />
houvesse passado um vendaval derrubando tudo.<br />
218
N<br />
CAPÍTULO XVI<br />
Mensagem de Guttin<br />
os tempos de paz, normalmente os anões do reino de<br />
Bakkin celebravam uma festa sazonal, conhecida por<br />
Ukar Nogai. A despeito <strong>dos</strong> reinos élficos e até mesmo o reino<br />
de Guttin, onde seu primo Guthin era rei, estarem preparando<br />
seus exércitos para uma iminente guerra contra os orcs,<br />
Bakhin decidiu que não deixaria de promover a festa desta<br />
estação, pois ele tinha um motivo muito especial para realizála<br />
e ansiava para que chegasse logo a ocasião de comemorá-la.<br />
Durante a festa que marcava a passagem de sua 3588ª<br />
Ukar Nogai, os anões de Bakkin estavam empolgadíssimos,<br />
porque pela primeira vez em sua história, o homenageado não<br />
seria um anão, mas sim, um ser de outra raça, o francês<br />
Etiènne.<br />
No ano anterior, Bakhin teria homenageado de bom<br />
grado seu amigo Etiènne, mas na Ukar Nogai anterior, um<br />
homenageado já havia sido eleito pela nobreza de Bakkin, e<br />
não se podia mudar os planos ao preço de constranger alguém<br />
de sua própria raça, por mais relevante que fosse a<br />
justificativa. Bakhin aguardou pacientemente por essa festa<br />
para homenagear com muito júbilo aquele a quem devia sua<br />
vida.<br />
Mas nem sempre um rei pode ver realizado os seus<br />
desejos em detrimento da segurança de seu povo, e as
circunstâncias obrigariam a Bakhin, muito a contragosto, a<br />
adiar a homenagem que pretendia fazer à Etiènne.<br />
Arautos do reino de Guttin, chegaram a Bakkin numa<br />
tarde que marcava o início da estação em que se comemora a<br />
Ukar Nogai. O dia estava bonito, com uma brisa fresca e o céu<br />
de Azur intensamente luminoso. Da orla da Floresta Dourada<br />
avistaram a entrada principal da Montanha das Garbas, e<br />
podiam escutar com alegria, o cantarolar <strong>dos</strong> pássaros.<br />
Em pouco mais de duas horas, estariam diante de<br />
Bakhin, para proferir uma importante mensagem de seu<br />
primo Guthin. Ao contrário do costume élfico, e pode se dizer<br />
até mesmo <strong>dos</strong> homens, os arautos <strong>dos</strong> reinos <strong>dos</strong> anões não<br />
carregavam mensagens escritas, mas proferiam, palavra por<br />
palavra, suas mensagens ao destinatário.<br />
A confiança que os anões tinham entre si, e o<br />
compromisso que tinham com a verdade entre os seus,<br />
dispensavam a necessidade de mensagens cifradas ou escritas,<br />
garantindo a segurança das importantes informações que os<br />
três reinos anões trocavam entre si.<br />
Os arautos anões, eram os mais valorosos entre seu<br />
povo, pois eram capazes de suportar torturas terríveis quando<br />
caíam nas mãos de orcs, druzos, vutuks ou goblins, para não<br />
revelar as informações que traziam em suas mentes. No<br />
passado, muitos já pagaram com a vida o preço do silêncio.<br />
Os anões de Guttin passaram pelas colunas de rocha da<br />
entrada principal do reino sob a Montanha das Garbas,<br />
deixando para trás a beleza de <strong>Virgo</strong> e mergulhando na<br />
escuridão da caverna que levava a Bakkin. Atravessaram um<br />
longo corredor que daria num emaranhado de passagens,<br />
onde somente com a ajuda de um <strong>dos</strong> sentinelas de Bakkin<br />
poderia ser desvendado o caminho correto até a cidade.<br />
Em seu trono, Bakhin aguardava com grande ansiedade<br />
a chegada <strong>dos</strong> arautos de Guttin, <strong>dos</strong> quais já havia sido<br />
alertado por seus espiões mesmo antes que chegassem ao lado<br />
leste das Montanhas Negras.<br />
220
O pequeno grupo de anões se apresentou diante de<br />
Bakhin, que dispensou as formalidades e pediu de forma rude<br />
para que fossem breves com a mensagem, pois estava muito<br />
ocupado com os preparativos da Ukar Nogai.<br />
— Tememos que vossa majestade não possa realizar as<br />
festividades desta estação — asseverou um <strong>dos</strong> arautos.<br />
— Eu sou o rei, e em meu reino, decido o que deve e o<br />
que não deve acontecer — retrucou Bakhin, imediatamente.<br />
— Então, nosso temor é ainda maior, pois é bem capaz<br />
de que venha a reinar sobre mortos, se não der atenção às<br />
súplicas de vosso primo Guthin, que com muito pesar, enviará<br />
seu exército para combater ao lado <strong>dos</strong> elfos.<br />
— Meu primo é muito sentimental, e se deixa envolver<br />
demais por essas criaturas traiçoeiras que são os elfos! —<br />
reclamou Bakhin, mostrando-se extremamente irritado. Alisou<br />
a barba encarando os arautos de Guttin, e depois continuou<br />
com firmeza, apontando-lhes um dedo acusador: — Vocês, de<br />
Guttin, e aqueles elfos doentios, estão sendo precipita<strong>dos</strong>,<br />
usando argumentos pouco iliba<strong>dos</strong> para promover uma<br />
guerra aberta contra os orcs!<br />
— Então, rei de Bakkin, permita-nos proferir a<br />
mensagem do soberano rei de Guttin. Não insistiremos em<br />
nada mais. Partiremos em seguida!<br />
— Estou escutando! — afirmou Bakhin.<br />
O anão que discutia com o rei Bakhin então, deu um<br />
passo atrás, e com um gesto de sua mão indicou para que<br />
outro anão mais jovem, se adiantasse e proferisse a mensagem<br />
do rei Guthin.<br />
— Nobre rei de Bakkin, soberano da Montanha das<br />
Garbas, é com imensa tristeza que envio esta mensagem, para<br />
confirmar as suspeitas do povo elfo sobre a crescente ameaça<br />
de uma guerra contra os orcs. — Bakhin fitava o jovem arauto,<br />
escutando-o com pouca atenção; na verdade, ansiando que<br />
aquela ladainha terminasse com brevidade. O jovem, muito<br />
sério e sem tirar os olhos do rei, continuava com a mensagem:<br />
221
— Ao preço de muitas vidas, nossos espiões conseguiram<br />
descobrir que os orcs das tribos Trumadai e Baraidai fizeram<br />
uma aliança, com o intuito de unificar todas as demais tribos<br />
orcs, a exemplo do que os Zaraidai fizeram no passado,<br />
quando promoveram a Guerra da Agonia, trazendo o caos<br />
para to<strong>dos</strong> os povos de Azur. — o jovem arauto fez uma<br />
pequena pausa e observou que havia despertado a atenção de<br />
seu ouvinte, que se remexia em seu trono, mas não tirava os<br />
olhos de seu interlocutor. O jovem arauto, ainda muito sério,<br />
continuou — Descobrimos ainda que uma quantidade<br />
inimaginável de armas foi encomendada aos druzos de Sangar<br />
por esses orcs, que prometeram pagamento em ouro. Ouro<br />
este que pretendem extrair da Floresta Dourada, já que não<br />
possuem ainda uma força suficientemente grande para que<br />
possam roubá-lo <strong>dos</strong> ricos reinos <strong>dos</strong> anões ou <strong>dos</strong> elfos.<br />
— Espere! — Levantou-se Bakhin, de seu luxuoso trono,<br />
interrompendo a mensagem. — Os Zaraidai não unificaram as<br />
tribos no passado — lembrou o rei. — Eles impuseram-se à<br />
força, e o medo espalhado foi o fator decisivo para que as<br />
tribos orcs se submetessem a eles.<br />
O arauto mais i<strong>dos</strong>o, que discutiu com Bakhin no início<br />
do encontro, avançou novamente dois passos e concordou<br />
com o rei de Bakkin. — Sim, é verdade, é verdade! E<br />
justamente por isso, a gravidade da situação. orcs das duas<br />
maiores tribos aliando-se deliberadamente, por vontade<br />
própria, pelo desejo de um bem comum. O controle total de<br />
Azur — concluiu.<br />
Bakhin caminhava nervosamente de um lado para outro<br />
diante de seu trono, muito pensativo, enquanto o jovem<br />
arauto retomou o discurso a fim de concluir a mensagem do<br />
rei Guthin.<br />
— No momento em que transmito esta mensagem, o<br />
enorme exército de orcs formado pela aliança entre as<br />
principais tribos <strong>dos</strong> Adai e Aidai, provavelmente já tenha<br />
cruzado o Deserto Naissaras, e esteja nas cercanias do Pântano<br />
222
Hibrittatus. Portanto, mesmo que de posse destas verdadeiras<br />
informações vossa majestade opte por manter Bakkin alheio<br />
aos acontecimentos, imploro, como primo que te deseja o bem,<br />
que deixe de lado a fatuidade de se achar intocável, e ao<br />
menos organize uma força de defesa para proteger vosso<br />
povo. Mensagem de Guthin, rei soberano de Guttin.<br />
Bakhin olhou irritado para o jovem arauto, considerando<br />
aquelas palavras finais um tanto grosseiras.<br />
— A mensagem já foi recebida. Podem voltar para vosso<br />
rei e dizer-lhe que irei refletir sobre o assunto. — Exclamou<br />
Bakhin, estendendo seu curto braço para indicar aos<br />
visitantes, o caminho da saída.<br />
Os arautos de Guttin entreolharam-se sacudindo a<br />
cabeça em sinal de reprovação, e se retiraram da sala real<br />
cruzando o caminho apontado por Bakhin, onde já os<br />
aguardava um sentinela para conduzi-los à saída da cidade<br />
para fora da Montanha das Garbas. Saíram to<strong>dos</strong> consterna<strong>dos</strong><br />
da cidade de Bakkin.<br />
O rei ficou solitário em seu salão, pensativo, dominado<br />
repentinamente por uma estranha vontade de aconselhar-se<br />
com seu amigo Etiènne, que ainda não regressara de Nouvelle<br />
Lyon. Bakhin, pretendia preparar a festividade de forma a<br />
fazer uma surpresa à Etiènne, quando este regressasse para<br />
Bakkin, mas infelizmente, ele seria obrigado a mudar seus<br />
planos, e uma vez mais, adiar a homenagem a seu amigo.<br />
Bakhin podia ser turrão, intransigente, presunçoso e<br />
grosseiro, mas de maneira alguma, era estúpido. Entendeu a<br />
gravidade da situação apresentada por seu primo Guthin, e<br />
não poderia jamais, negligenciar a segurança de seu povo.<br />
<br />
Muito longe dali, na Floresta Serena, Michel Montbard<br />
espreitava com angústia a entrada da gruta que dava acesso à<br />
caverna que, outrora, dera passagem para <strong>Virgo</strong>. Faziam<br />
alguns dias que vinha vigiando a movimentação <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong><br />
223
de Amiens, que tentavam com notável insucesso desobstruir a<br />
enorme quantidade de pedras que havia desabado sobre a<br />
passagem, obstruindo o caminho.<br />
Michel ansiava pela desistência daqueles solda<strong>dos</strong> para<br />
que ele próprio pudesse aproximar-se da caverna e certificar<br />
com seus próprios olhos a catástrofe ocorrida naquele lugar.<br />
Os solda<strong>dos</strong> estavam incansáveis em seus esforços para<br />
tentar salvar seus amigos e o senhor de Amiens, mas a busca<br />
seria interrompida por ordens de um novo conde, chamado<br />
Jean-Louis Bergeon, que acabara de chegar de Paris, com<br />
ordens expressas do rei Philipe VI para que assumisse o<br />
controle da cidade de Amiens.<br />
E, desta vez, as ordens certamente seriam cumpridas,<br />
pois o sumiço do Duque Gilles de Guanion e a falta de notícias<br />
de Amiens obrigaram o rei Philipe VI a destacar uma força<br />
militar junto ao Conde Jean-Louis Bergeon para garantir que<br />
sua determinação fosse acatada por Martin Lacroix.<br />
Nem o rei da França nem o Conde Jean-Louis Bergeon<br />
poderiam imaginar que Amiens se encontrava numa situação<br />
tão calamitosa. Desprovida de seu senhor, entregue apenas às<br />
atividades da guarda do castelo, Jean-Louis Bergeon<br />
encontrou apenas um pequeno contingente do que um dia<br />
fora o temido exército regional de Amiens na Montanha<br />
Serena, e ordenou que regressassem ao castelo da cidade e se<br />
submetessem à sua autoridade.<br />
Atônitos, e cerca<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong> de Paris que<br />
acompanhavam o conde, os homens leais a Martin resignaram<br />
sem qualquer resistência, abandonando suas tentativas de<br />
salvar o antigo senhor e seus amigos.<br />
Michel, observou a tudo aliviado. Finalmente teria sua<br />
chance de tentar retornar para Nouvelle Lyon.<br />
Assim que aqueles homens abandonaram a Montanha<br />
Serena escolta<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong> do conde Jean-Louis<br />
Bergeon, Michel apressou-se em entrar na gruta, para<br />
constatar, com grande desespero, que não podia mais voltar<br />
224
para <strong>Virgo</strong>. Não podia mais retornar à Nouvelle Lyon, a<br />
menos que conseguisse a ajuda de dezenas de homens para<br />
tentar remover todas aquelas rochas que estavam obstruindo a<br />
passagem para <strong>Virgo</strong>.<br />
O dia estava terminando e em breve a noite cobriria<br />
Amiens. Michel sentou-se desolado numa das pedras que<br />
haviam despencado, tentando encontrar uma solução para seu<br />
problema.<br />
Por um momento, imaginou se por ventura não estaria<br />
sendo castigado por Deus em ter deixado Dízier para trás,<br />
estando impedido de voltar a <strong>Virgo</strong>. Levou as duas mãos ao<br />
rosto, cobrindo a face, lembrando <strong>dos</strong> amigos que não poderia<br />
mais encontrar. Pensou em seu irmão. Como Etiènne receberia<br />
a informação de que nunca mais poderia revê-lo. Etiènne,<br />
responsável por conseguir realizar o sonho de partir de<br />
Amiens para uma nova região onde puderam construir suas<br />
novas vidas. Etiènne, o irmão irreverente que com suas<br />
loucuras e atitudes extrovertidas fora capaz de cativar tantas<br />
pessoas. Um forte desejo de rever o irmão mais novo explodiu<br />
dentro de Michel, que levantou furioso com seu destino,<br />
dando um grito de desabafo tão forte que ecoou por toda a<br />
caverna. Escutou sua voz se repetindo umas poucas vezes,<br />
diminuindo de intensidade a cada repetição.<br />
Lembrou-se mais uma vez de Etiènne, e de como eles<br />
foram parar naquele lugar. Michel lembrou-se de Sindazel!<br />
Numa atitude inexplicável, fugindo a seu<br />
comportamento, justamente ele que sempre fora incrédulo<br />
quanto à existência de Sindazel, Michel começou a gritar<br />
desvairadamente aquele estranho nome, com a esperança de<br />
que pudesse encontrar em Sindazel uma chance de voltar a<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
Ficou quase uma hora gritando o nome da Vangi, até<br />
que suas cordas vocais não puderam mais agüentar, e<br />
finalmente, se deixou cair no chão, esgotado pelo esforço.<br />
225
Ainda deitado no solo rochoso da gruta, Michel pôde<br />
ouvir, ofegante, os últimos ecos do nome Sindazel chegarem a<br />
seus ouvi<strong>dos</strong>.<br />
O suor lhe escorria pelas têmporas, misturando-se às<br />
lágrimas de angústia que começaram a brotar de seus olhos,<br />
anuviando sua vista.<br />
Mal podia entender o que acontecia, estava tonto de<br />
tanto se esforçar em gritar, e no princípio achou que aquelas<br />
luzes fossem fruto de alguma alucinação produzida por sua<br />
fadiga. Esfregou os olhos tentando secá-los com os de<strong>dos</strong><br />
indicadores das duas mãos, a fim de enxergar melhor, mas a<br />
luminosidade dentro da gruta tornara-se ainda mais intensa.<br />
Assim como seu irmão mais novo, Michel passou pela<br />
mesma experiência de Etiènne, e então pôde distinguir em<br />
meio aquele turbilhão luminoso a figura de um ser angelical<br />
aproximando-se, como que deslizando em sua direção.<br />
226
M<br />
CAPÍTULO XVII<br />
Uma viagem para o leste<br />
ichel ergueu seu braço para tocar em Sindazel, tentando<br />
certificar-se de que aquilo estava de fato acontecendo,<br />
mas a Vangi não reagiu bem a esta investida, retraindo-se um<br />
pouco e afastando-se dois passos para trás.<br />
— Vós me tirastes de um sono profundo. — falou<br />
Sindazel, com sua voz melodiosa e encantadora.<br />
Michel não conseguia acreditar naquilo, e sentiu uma<br />
profunda paz, ficando aliviado, ao ouvir aquela voz que mais<br />
parecia um suave canto. Levantou rapidamente do chão<br />
sacudindo a poeira de sua roupa com tapas por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>,<br />
ainda aturdido, abismado.<br />
Procurou desculpar-se, acreditando que devia ter sido<br />
inoportuno ao incomodar aquele ser fantástico. Não conseguia<br />
deixar de admirar a beleza da face de Sindazel. Seus olhos<br />
ilumina<strong>dos</strong> de um azul tão forte como o céu de inverno num<br />
dia ensolarado; a perfeição de sua boca, seu nariz arrebitado;<br />
aqueles cabelos lisos e negros como a mais pura seda da Índia.<br />
— Perdoe-me, por favor. Não imaginava que poderia ter<br />
perturbado seu descanso. Na verdade, fui tomado pelo<br />
desespero e acreditei que somente você poderia me ajudar,<br />
mesmo sem ainda ter aceito sua existência. — Michel estava<br />
visivelmente abalado com aquela experiência, e a exemplo de<br />
seu irmão, fascinado pela beleza daquela criatura.
Sindazel sorriu e ele pôde encantar-se ainda mais com os<br />
belos dentes da Vangi, de uma perfeição e brancura<br />
inimagináveis para um ser humano.<br />
— Não há necessidade em pedires meu perdão. Não se<br />
tratava de um descanso; na verdade, eu estava submetida a<br />
um castigo, mas a urgência de vossa causa me permitiu sair da<br />
punição.<br />
Michel não podia acreditar que uma criatura tão bela<br />
fosse merecedora de qualquer castigo, mas não quis apressarse<br />
em seus julgamentos e preferiu indagar Sindazel sobre o<br />
motivo que a levou a ser castigada.<br />
Antes mesmo que pudesse questioná-la, ela adiantou-se<br />
em responder sua pergunta, pois perscrutara sua mente de<br />
forma minuciosa.<br />
— Meu pai castigou-me com um sono profundo, por<br />
temer que eu deixasse a Vangilla, para ir atrás de seu irmão<br />
Etiènne, a quem conheci antes de to<strong>dos</strong> os Vangis.<br />
Michel, intimamente, arrependeu-se mais uma vez de<br />
não ter acreditado em seu nobre irmão.<br />
— Então, tudo o que meu irmão contou era verdadeiro.<br />
Sindazel aproximou-se de Michel, e o tempo todo<br />
perscrutando sua mente, sentia algo estranho, algo muito<br />
diferente do momento que tivera com Etiènne. Os<br />
pensamentos deste outro homem eram mais urgentes em<br />
relação à sua causa. Sua mente fervilhava com a idéia de rever<br />
seu irmão, seus amigos e sua cidade. Ela comprovou através<br />
de seus poderes que, apesar de toda fascinação que sentiu por<br />
ela, não chegou a desejá-la calorosamente como ocorrera com<br />
seu irmão mais novo. Isso a incomodou um pouco, pois<br />
esperava reviver as sensações que tivera diante de Etiènne.<br />
Michel sabia que Etiènne amava Sindazel, e agora podia<br />
confirmar com seus próprios olhos que a beleza daquela<br />
criatura era realmente de deixar qualquer coração<br />
perdidamente apaixonado.<br />
228
Sindazel colocou sua delicada mão no rosto do<br />
assustado Michel, para sentir o calor de sua pele. No fundo,<br />
ainda procurava absorver um pouco de Etiènne, mas até<br />
mesmo a pele dele passava algo novo para Sindazel,<br />
percebendo com sua mão a robustez que aquela pele<br />
apresentava em relação à de Etiènne, que era mais fina e<br />
macia.<br />
Com efeito, Michel era oito anos mais velho que o irmão,<br />
e sua barba cerrada, contrastando com a lisa pele do rosto de<br />
Etiènne, não poderia oferecer a mesma sensação à Vangi.<br />
O francês segurou delicadamente a mão de Sindazel,<br />
afastando-a de seu rosto, bem devagar. Ainda sustentou um<br />
pouco a macia mão daquela linda criatura, sentindo a energia<br />
que emanava dela, e então perguntou:<br />
— Você tem como me ajudar? Tem como abrir a<br />
passagem para que eu possa voltar a <strong>Virgo</strong>? — indagou<br />
esperançoso.<br />
— Não tenho poderes para reabrir esta passagem, mas<br />
levar-te-ei a seu povo. Meu pai sente que há uma forte<br />
mudança no mana 1 e prevê que algo importante acontecerá.<br />
Teu irmão precisará de ajuda, assim como um dia, tu<br />
precisastes da ajuda dele.<br />
— Quem é seu pai? Onde ele está agora?<br />
Sindazel ficou ressentida ao constatar que Michel era<br />
muito diferente de seu irmão, não tendo manifestado as<br />
sensações que ela tanto desejava reviver e limitando-se ao seu<br />
obsessivo desejo de regressar para <strong>Virgo</strong>, apenas<br />
questionando o que lhe era conveniente.<br />
— Meu pai é Granuzael, ministro soberano de toda a<br />
Vangilla. Ele já está nos aguardando. Está ansioso para<br />
conhecê-lo antes que possas retornar ao vosso povo.<br />
Michel percebeu que Sindazel havia ficado diferente,<br />
respondendo sua última pergunta com uma certa rispidez.<br />
1 Energia na qual toda e qualquer magia tem sua origem em <strong>Virgo</strong>.<br />
229
— Perdoe-me se fui inconveniente ao perguntar sobre<br />
seu pai, não desejava ofendê-la, apenas quero voltar a <strong>Virgo</strong>!<br />
Sindazel ficou corada de vergonha por sua atitude<br />
incomum, e também desculpou-se com Michel.<br />
— Perdoe-me, também não queria ter sido rude. Acho<br />
que o longo castigo não me fez tão bem quanto meu severo pai<br />
gostaria. Posso levá-lo agora mesmo até meu pai, se assim<br />
desejar?<br />
— Claro, por onde devemos ir?<br />
— Não te preocupes, apenas confie em mim.<br />
Sindazel passou suas mãos delicadamente sobre a<br />
cabeça de Michel, e num segundo, uma imensa escuridão o<br />
dominou por completo, fazendo-o desfalecer.<br />
Cerca de duas horas mais tarde, acordaria na câmara de<br />
Sindazel, deitado sobre o mesmo cristal que Etiènne havia<br />
estado, outrora, mas trajando suas próprias roupas. Sindazel<br />
desta vez não ousou saciar sua curiosidade sobre aquela raça,<br />
ademais, seu pai já estava aguardando que Michel despertasse<br />
para conhecê-lo e interrogá-lo sobre como estavam vivendo os<br />
humanos em sua nova morada.<br />
A conversa com Granuzael não foi muito demorada, e<br />
Michel, muito mais concentrado do que seu irmão, foi capaz<br />
de conversar com o rei <strong>dos</strong> Vangis com muita sobriedade a<br />
respeito de tudo o quanto os homens passaram nos dois anos<br />
em que já habitavam <strong>Virgo</strong>. Não podia responder por Leon,<br />
mas imaginava que deveria estar tudo bem com seu amigo de<br />
infância; do contrário, ele o teria procurado antes para pedirlhe<br />
ajuda. Se é que Michel ainda poderia considerá-lo um<br />
amigo.<br />
Granuzael, satisfeito em sua curiosidade, despediu-se de<br />
Michel e autorizou a própria Sindazel a conduzi-lo de volta a<br />
seu povo em Nouvelle Lyon.<br />
Tomada de felicidade por receber autorização de seu pai<br />
para ir até <strong>Virgo</strong>, Sindazel beijou-lhe a face afetuosamente e<br />
correu exultante de alegria para vestir seu traje de viagem, que<br />
230
na verdade não passava de uma espécie de túnica mais<br />
espessa da qual normalmente usava na Vangilla.<br />
Sem qualquer maldade, envolta pela alegria de poder<br />
voar para tão longe, trocou-se em sua câmara diante de<br />
Michel, que ficou boquiaberto com a beleza escultural do<br />
corpo de Sindazel, e finalmente cedeu à tentação, desejando-a<br />
ardentemente.<br />
A Vangi percebeu que estava sendo observada e ao ler a<br />
mente de Michel, envergonhou-se, cobrindo-se<br />
apressadamente com a túnica que acabara de despir, mas que<br />
ainda estava ao seu alcance. Ficou olhando assustada para<br />
Michel, com o coração acelerado, e ao mesmo tempo,<br />
regozijou-se por novamente viver as sensações que Etiènne<br />
despertara nela.<br />
Michel também corou ao notar que Sindazel havia se<br />
constrangido com sua indiscrição. Virou-se assustado, girando<br />
seu corpo com certa relutância e ficando de costas para<br />
Sindazel, que pôde terminar de trocar sua túnica.<br />
Sindazel aproximou-se dele e passou a mão<br />
carinhosamente sobre o seu ombro. Seu semblante<br />
demonstrava uma imensa alegria.<br />
— Vamos, está na hora de voltares para teu povo.<br />
Michel, virou o rosto e seus olhos encontraram os de<br />
Sindazel, azuis, brilhantes, radiantes como o sol. Deteve seu<br />
olhar por alguns segun<strong>dos</strong>, encantado com a beleza daquele<br />
rosto angelical. Teve vontade de beijá-la, e Sindazel soube<br />
disso, pois não deixava de perscrutar em momento algum a<br />
mente de Michel, mas ele não conseguiu esquecer seu irmão, e<br />
logo uma sensação de culpa invadiu seu coração, fazendo-o<br />
esmorecer e baixar a cabeça, apenas concordando com<br />
Sindazel — Sim, vamos.<br />
Michel levantou-se do cristal e postou-se diante de<br />
Sindazel. Não resistiu, e mais uma vez admirou-a de cima a<br />
baixo, voltando seu olhar para o rosto da vangi.<br />
231
Sindazel ergueu suas mãos a exemplo do ritual que<br />
fizera ao desacordar Michel, antes que ele fosse trazido para a<br />
Vangilla, mas Michel segurou com delicadeza os dois braços<br />
de Sindazel, dizendo: — Por favor, leve-me acordado.<br />
Ela baixou a cabeça, como numa atitude de reflexão, e<br />
após um breve momento, concordou com o francês.<br />
— Tudo bem, acompanhe-me.<br />
Os dois caminharam juntos para fora da câmara de<br />
Sindazel e seguiram por um longo corredor rochoso, rico em<br />
cristais que o cobriam por toda sua extensão, tornando-o um<br />
lugar esplendoroso.<br />
Michel não podia deixar de admirar cada detalhe<br />
daquele lugar fantástico, mas também não conseguia mais<br />
conter-se, e várias vezes lançou um olhar desejoso para o<br />
corpo esguio de Sindazel, que seguia à sua frente.<br />
Percorreram mais de cem metros ininterruptamente,<br />
passando diante de várias entradas para outros corredores, tão<br />
longos quanto aquele pelo qual caminhavam, de forma que<br />
Michel não conseguia ver onde terminavam.<br />
Ao chegarem a uma enorme porta de cristal, que<br />
apresentava o desenho de águia, toda talhada, de forma que a<br />
figura ficasse em alto relevo, Sindazel parou e pediu para que<br />
Michel a aguardasse do lado de fora. Michel, admirado com<br />
tudo o que via, assentiu com a cabeça, mas sem deixar de<br />
lançar um último olhar no belo corpo da jovem Vangi,<br />
impressionado com aquelas asas magníficas às suas costas.<br />
Sindazel demorou-se por alguns minutos que, para<br />
Michel, pareceram intermináveis, mas na verdade não se<br />
passaram nem mesmo quinze minutos do momento em que<br />
entrara através daquela magnífica porta e reapareceu,<br />
trazendo em suas mãos um misterioso bastão prateado.<br />
— Vamos, irei deixá-lo em nosso porto. Preciso preparar<br />
algumas coisas antes de partirmos.<br />
— Porto!? Partiremos em alguma embarcação?<br />
232
— Não se trata exatamente de uma embarcação, mas em<br />
breve saberás como chegaremos a vosso povo. — Sindazel<br />
sorriu, como que antevendo a surpresa de Michel no momento<br />
em que fossem partir. Seu sorriso era irradiante, com seus<br />
dentes brancos como a neve, brilhantes, reluzindo perfeitos,<br />
para deleite de Michel.<br />
Voltaram a caminhar por aquele interminável labirinto<br />
de corredores, ora passando por entradas que davam a outros<br />
corredores, ora passando por câmaras onde se podia ver<br />
vangis conversando, até chegarem a um local de declive onde<br />
começaram a descer uma escada toda formada por degraus<br />
cristalinos, que pareciam cintilar aos olhos de Michel a cada<br />
passo que ele dava. Ficou tão absorto com a beleza daqueles<br />
degraus que mal percebeu quando chegaram a um lugar<br />
amplo, onde estavam três enormes dragões brancos, que eram<br />
conheci<strong>dos</strong> na Vangilla Inferior 1 por Laithans.<br />
— Veja! Chegamos ao porto. — disse Sindazel.<br />
Ao erguer os olhos, Michel apavorou-se e deu dois<br />
passos para trás, com os braços abertos e as mãos procurando<br />
encontrar a parede para que pudesse se apoiar.<br />
— Meu Deus! — exclamou, surpreso e muito assustado.<br />
— Que monstros terríveis são esses?<br />
— Não tenhas medo, eles não vos farão qualquer mal.<br />
São velhos amigos de nossa raça.<br />
— Mas que criaturas medonhas!<br />
Os enormes lagartos esbranquiça<strong>dos</strong> fixaram seus olhos<br />
em Michel, tão admira<strong>dos</strong> quanto ele próprio, pois era a<br />
primeira vez que viam um ser humano. O menor deles, soltou<br />
um forte grunhido, atemorizando Michel.<br />
Visivelmente apavorado, correu de volta para as escadas<br />
e as subiu desesperadamente, como uma criança que foge<br />
assustada para os braços da mãe ao ouvir algum barulho<br />
estranho na escuridão da noite.<br />
1 Nome pelo qual os vangis se referem à superfície de <strong>Virgo</strong>. Para os vangis, Vanalla<br />
(<strong>Virgo</strong>) é subdividida em Vangilla Superior, onde habitam, e Vangilla Inferior.<br />
233
Sindazel riu-se mais uma vez e após repreender a<br />
traquinagem do mais jovem dragão, que se divertiu com o<br />
susto que havia dado em Michel, voltou atrás dele para<br />
tranqüilizá-lo. Subiu as escadas e encontrou-o recostado numa<br />
das paredes de cristal, mais ofegante que os cavalos de corrida<br />
de Paris após uma competição.<br />
— Não precisavas ter corrido tanto, os dragões não irão<br />
lhe fazer qualquer mal. Confie em mim.<br />
Ainda esbaforido, olhou para Sindazel sem acreditar<br />
muito naquelas palavras.<br />
— De jeito nenhum! Não voltarei àquele lugar! Jamais vi<br />
algo tão assustador em toda a minha vida! Que monstros<br />
infernais são aqueles?<br />
Sindazel, com toda calma, levou sua mão ao rosto de<br />
Michel, que sentiu-se reconfortado ao ter as mãos daquela<br />
delicada e formosa criatura em seu rosto. O conforto que<br />
sentia, entretanto, não era apenas fruto da suavidade da mão<br />
da vangi, mas também de uma de suas magias, e logo ele<br />
estava desacordado, dormindo como um bebê em sono<br />
profundo.<br />
A vangi finalmente pôde preparar-se para a viagem.<br />
<br />
Momentos mais tarde, Michel acordou com Sindazel à<br />
sua frente, ainda acariciando seu rosto, mas não estavam mais<br />
no cimo da escadaria de cristal que levava ao porto onde<br />
encontravam-se os dragões, mas novamente na câmara de sua<br />
anfitriã.<br />
— Sente-se melhor?<br />
Michel tentou erguer-se, suspirou, e deixou-se desabar<br />
novamente no cristal onde estava deitado, como que não<br />
acreditando que tudo aquilo que estava vivendo era, de fato,<br />
verdade, e não um sonho.<br />
— Não é possível me sentir mal com uma mulher tão<br />
linda como você por perto. — disse Michel, com um sorriso<br />
234
malicioso, procurando provocar algum desejo em Sindazel e<br />
ao mesmo tempo tentando recuperar-se da vergonha que<br />
passara diante <strong>dos</strong> monstros.<br />
— Vejo que estás melhor. Mas tenho de adverti-lo de<br />
que não sou uma mulher como as de vossa raça. Cometes o<br />
mesmo erro que vosso irmão, ao julgar-me desta forma.<br />
Sindazel mostrou-se contrariada com a atitude de<br />
Michel, mas no fundo, aquele desejo que ele sentia por ela, a<br />
exemplo de Etiènne, a fazia ter deliciosas sensações, que<br />
nunca sentira em sua longa existência. Levantou-se<br />
abruptamente, mas Michel segurou-a pelo braço, pedindo que<br />
esperasse.<br />
— Não vá embora ainda — Michel levantou-se e ficou<br />
de frente para Sindazel — Preciso lhe mostrar algo. — e sem<br />
que houvesse chance para a vangi entender o que se passava,<br />
ou mesmo tempo hábil para perscrutar a mente de Michel, ele<br />
a envolveu em seus braços beijando-lhe os lábios macios, com<br />
um desejo ardente.<br />
A rapidez de Michel acabou fazendo com que Sindazel<br />
vacilasse e cedesse, naquele momento, a uma sensação que lhe<br />
inundou o espírito de prazer. Mas, passado o êxtase inicial,<br />
recuperou seu autocontrole e afastou-se, assustada. O coração<br />
acelerado como nunca estivera antes, a respiração<br />
descompassada, como se aquele beijo de Michel houvesse lhe<br />
sugado todo o ar. Pela primeira vez sentiu um turbilhão de<br />
emoções dentro de si, olhando para aquele humano com<br />
desejo, mas ao mesmo tempo com medo de tudo o que estava<br />
experimentando.<br />
Os vangis não se beijavam, não tinham o costume de se<br />
acariciar através de toques, mas sim através de suas mentes.<br />
Apenas a reprodução ainda era realizada através da cópula,<br />
mas não com desejo, apenas como ato necessário para que<br />
novas vidas vangis viessem à luz do mundo. Devido às suas<br />
faculdades mágicas, e quem sabe, talvez ao mana que traziam<br />
em suas próprias asas, os desejos físicos tenham sido desde<br />
235
tempos remotos, minimiza<strong>dos</strong> e esqueci<strong>dos</strong>, ou ainda,<br />
substituí<strong>dos</strong> por outros prazeres através de suas poderosas<br />
mentes. Ademais, Sindazel era uma vangi muito nova para<br />
contatos íntimos, mesmo com os de sua raça. Granuzael temia<br />
isso, e já havia submetido sua filha a um longo sono com a<br />
esperança de que seu contato com Etiènne pudesse ser<br />
abafado e ela o esquecesse.<br />
Agora, Sindazel estava em uma situação complicada,<br />
porque dificilmente iria conseguir esconder de seu pai o que<br />
estava se passando dentro de si. <strong>Era</strong> preciso partir o quanto<br />
antes de Vangilla, para ganhar tempo e tentar recuperar sua<br />
tranqüilidade, sua serenidade, e porque não dizer, sua paz de<br />
espírito. Estava atordoada, aflita, ansiosa, sentindo um<br />
estranho calor tomando conta de seu corpo. Não conseguia<br />
tirar o beijo de sua cabeça e ainda sentia o abraço, as mãos<br />
quentes e o corpo forte de Michel. Não obstante, lembrava-se<br />
de Etiènne e perguntava-se por quê ele não teria a beijado,<br />
como fizera Michel. Teve o súbito desejo de beijar Etiènne,<br />
mas voltava a sentir Michel. Sua mente estava sendo<br />
bombardeada e sentia-se completamente vulnerável, perdera<br />
o controle, jamais seria a mesma.<br />
Pôs-se a preparar a partida o quanto antes, e ao final da<br />
tarde, tudo estava organizado. Voltou à sua câmara para<br />
buscar Michel, que havia ficado só todo o tempo depois que<br />
ela o deixara, depois daquele momento que ela não conseguia<br />
tirar de sua cabeça. Ele levantou-se espantado, e olhou para<br />
aquela criatura esplêndida com compaixão. Depois que ela o<br />
deixou, refletiu sobre sua atitude e se arrependeu, sobretudo,<br />
ao lembrar do irmão que sempre falava de Sindazel com o<br />
maior amor e saudade que já havia visto em alguém.<br />
Quando ia pedir-lhe desculpas sobre o acontecido, sem<br />
mesmo imaginar quanta transformação havia causado em<br />
Sindazel, ela o interrompeu, agitada.<br />
— Não fale nada! Não há tempo, precisamos partir<br />
agora, vamos rápido! — Sindazel estava muito aflita, e Michel,<br />
236
para não contrariá-la, ainda sentindo uma enorme culpa,<br />
limitou-se a obedecer a anfitriã.<br />
Como um gatuno que foge sorrateiramente do local<br />
onde furta, Sindazel chegou às escadas que levavam ao porto.<br />
Antes de descer, virou-se para Michel e advertiu-o<br />
severamente para que não fizesse qualquer barulho que<br />
pudesse chamar a atenção. Michel aquiesceu, mas logo<br />
lembrou-se <strong>dos</strong> dragões e hesitou.<br />
— Espere, e aqueles monstros horríveis? Não ouso<br />
descer aí novamente!<br />
— Precisa confiar, eles não vos farão nenhum mal. Os<br />
dragões são criaturas enormes e poderosas, mas estes, não são<br />
monstros, são amigos de meu povo. São os Laithans 1, que nos<br />
levam para longe quando precisamos, e em troca, cuidamos<br />
deles com todo respeito e carinho, porque são os últimos de<br />
sua espécie. Conosco, na Vangilla, eles possuem uma chance<br />
enorme de permanecer vivos e perpetuar sua espécie.<br />
— É difícil acreditar que aquelas criaturas bizarras sejam<br />
boas, como afirma. — insistiu Michel, ainda temeroso.<br />
— Se queres viajar acordado como havias me solicitado,<br />
é preciso que confies em mim. De outra forma, não poderemos<br />
partir a menos que eu o desacorde mais uma vez. — Agora a<br />
expressão de Sindazel tornara-se austera, pois estava ávida<br />
para sair logo da Vangilla Superior, temendo encontrar seu pai<br />
a qualquer momento.<br />
Michel ainda não estava convencido se realmente<br />
desejava descer aquelas escadas, mas começava a sentir-se<br />
incomodado em demonstrar tanto medo diante de Sindazel.<br />
Procurou encher-se de coragem, e concordou com ela.<br />
— Tudo bem, confio em você. Que Deus me salve!<br />
Os dois começaram a descer as escadas, Sindazel à<br />
frente, e antes que chegassem ao último degrau da descida,<br />
1 Nome atribuído à raça <strong>dos</strong> dragões brancos em toda Vanalla.<br />
237
Michel fez o sinal da cruz e mais uma vez rogou por proteção<br />
divina contra os dragões.<br />
Atravessaram de mãos dadas o enorme átrio do porto,<br />
até chegarem a um <strong>dos</strong> dragões, que já estava à espera de<br />
Sindazel, pronto para a partida.<br />
— Acreditava que não viesse mais — disse o dragão,<br />
para espanto de Michel, que mal pôde acreditar que aquele<br />
monstro era capaz de falar, e ainda por cima, seu idioma! O<br />
dragão voltou seus apavorantes olhos de serpente para<br />
Michel, vermelhos como o fogo, e percebeu seu espanto e<br />
temor.<br />
— Não temas, os amigos <strong>dos</strong> vangis são amigos <strong>dos</strong><br />
Laithans.<br />
Michel engoliu em seco e limitou-se a assentir com a<br />
cabeça, apertando a mão de Sindazel com mais força.<br />
— Laicrunallian, meu amigo, chegou a hora. — Sindazel<br />
desvencilhou-se da mão de Michel e correu para abraçar<br />
carinhosamente o pescoço de seu amigo dragão. — Será uma<br />
grande honra viajarmos juntos até Sombrorn. — disse a vangi.<br />
Michel permanecia petrificado, mudo, tal qual uma<br />
estátua de mármore, sem o menor desejo de mover-se. Assim<br />
que Sindazel largou o pescoço de Laicrunallian, o dragão<br />
ergueu-se, magnífico, majestoso. <strong>Era</strong> enorme, muito maior do<br />
que imaginara Michel, agora pálido como a lua cheia.<br />
O dragão abaixou-se novamente e deitou sua enorme<br />
asa direita para que Sindazel subisse até seu torso. A vangi<br />
agarrou Michel pela mão e praticamente o arrastou consigo,<br />
para que se posicionassem para a partida. A caminhada pela<br />
asa de Laicrunallian era breve, mas a Michel pareceu uma<br />
odisséia. Sentaram-se entre as duas asas do dragão, que correu<br />
desajeitadamente pelo porto em direção a uma das paredes de<br />
cristal, precipitando-se violentamente contra ela, com as<br />
enormes asas abertas. Michel acreditou que eles fossem se<br />
espatifar naquelas rochas de cristal e chegou a fechar os olhos<br />
tamanho era seu pavor no momento do impacto, acreditando<br />
238
por um instante que a criatura monstruosa enlouquecera, mas<br />
para sua surpresa, logo sentiu um forte vento em seu rosto, e<br />
ao abrir os olhos, encontrou-se, para seu assombro,<br />
sobrevoando <strong>Virgo</strong> com Sindazel, às costas do dragão branco.<br />
— Meu Deus! — exclamou. — Pensei que iríamos<br />
morrer, mas ainda não estou convencido de que isso não<br />
venha realmente a acontecer. — comentou com Sindazel,<br />
agarrado ao dragão como se fosse um carrapato.<br />
Sindazel ria-se como uma menina. O vento acariciando<br />
seu rosto angelical, suas plumas tremulando como se ela<br />
própria voasse e carregasse o dragão. Parecia sentir toda a<br />
natureza do planeta penetrar em seu espírito. Os primeiros<br />
minutos de vôo foram como um sonho para Sindazel, era a<br />
primeira vez que voava com um Laithan para Vanalla 1, mas<br />
para Michel, aquela experiência estava sendo um pesadelo.<br />
Somente com cerca de quinze minutos de vôo, Sindazel<br />
notou que Michel estava curvado e incrustado no torso do<br />
dragão tal qual um marisco fixo a uma rocha.<br />
— Por que não te levantas? Admire Vanalla, em toda a<br />
sua beleza e esplendor. Não perca essa oportunidade<br />
maravilhosa que Laicrunallian nos concede.<br />
Ainda curvado, suando a cântaros apesar do vento frio<br />
das alturas e com o coração batendo mais forte do que mil<br />
tambores de guerra, Michel resmungou algo que mal pôde ser<br />
escutado pela vangi, que por sua vez, não quis insistir e voltou<br />
a contemplar Vanalla, das alturas.<br />
Laicrunallian voou muito tempo até que Michel<br />
conseguisse dominar seu medo e pudesse acreditar que não<br />
iria cair. Já haviam cruzado toda a extensão da Grande<br />
Floresta quando ergueu-se e começou a olhar para baixo,<br />
ainda um pouco receoso. Sentiu-se tonto e achou que iria<br />
1 Nome atribuído pelos vangis ao lugar que os homens batizaram de<br />
<strong>Virgo</strong>. Algumas vezes, os vangis também referem-se a Vanalla como<br />
Vangilla Inferior.<br />
239
desmaiar quando Sindazel passou seus delica<strong>dos</strong> braços em<br />
torno do seu peito, recostando a cabeça em seus ombros.<br />
— Não é lindo? — perguntou.<br />
— É lindo, mas sinto-me enjoado.<br />
— Vou cuidar disso. — Com uma das mãos, a vangi<br />
esfregou seus de<strong>dos</strong> pela testa de Michel, friccionando-os em<br />
pequenos círculos, fazendo uma leve pressão ao final de cada<br />
três círculos completa<strong>dos</strong>. Repetiu esse gesto algumas vezes, e<br />
logo Michel passou a se sentir melhor, livre do enjôo.<br />
— Você opera milagres, estou me sentindo ótimo.<br />
— Veja, estamos sobre as águas! — exclamou a vangi.<br />
— Esse lugar é mesmo incrível, eu sequer imaginava que<br />
havia tanta água.<br />
— É um gigantesco lago que os elfos chamam de Mar<br />
Caudaloso. Em seu centro ficam as Ilha Kirbuz e Siamesas. A<br />
Ilha Kirbuz é habitada pelos mal<strong>dos</strong>os vutuks. Vocês nunca<br />
devem ir a essa ilha se quiserem viver. Mantenham-se sempre<br />
afasta<strong>dos</strong> desse lugar!<br />
— Elfos, vutuks, quem são esses to<strong>dos</strong>?<br />
— São outras raças de criaturas que habitam Vanalla, e<br />
existem muitas outras mais. Vocês irão conhecer todas,<br />
certamente.<br />
— Conhecemos os anões, que muito nos ajudaram na<br />
construção de Nouvelle Lyon. São criaturas austeras, mas ao<br />
mesmo tempo, muito divertidas a nossos olhos.<br />
— São criaturas vis e perigosas aos olhos <strong>dos</strong> Vangis!<br />
Aprendemos desde cedo sobre esses predadores de rochas,<br />
que a tudo procuram destruir para obter seus tesouros.<br />
— Vejo que temos opiniões divergentes a respeito <strong>dos</strong><br />
anões, talvez seja melhor mudarmos de assunto para que<br />
nossa viagem permaneça agradável. — Michel ressentiu-se<br />
por Sindazel falar mal <strong>dos</strong> anões, pois ele lhes era eternamente<br />
grato por toda ajuda que haviam fornecido nas construções de<br />
sua cidade em <strong>Virgo</strong>.<br />
240
— Não, de maneira alguma, não ficarei aborrecida por<br />
isso. Um dia descobrirás, que esse povo não é confiável.<br />
Não era o que ambos desejavam, mas o assunto sobre os<br />
anões acabou por amainar a conversa, de forma que somente<br />
voltaram a se falar quando sobrevoaram a região das<br />
Montanhas Pontiagudas, quase chegando à Floresta das<br />
Sombras. Já viajavam aproximadamente há quatro horas.<br />
— Não imaginei que a viagem seria tão longa. Será que o<br />
dragão não se cansa de voar? — Michel preocupou-se com o<br />
dragão, afinal, se ele caísse de cansaço, to<strong>dos</strong> morreriam<br />
juntos, pois a queda era enorme.<br />
— Já estamos chegando na Floresta das Sombras, logo<br />
estaremos em Sombrorn.<br />
— Sombrorn? Você já falou este nome antes, e não me<br />
preocupei em saber o que era. Não estamos indo para<br />
Nouvelle Lyon? Que lugar é esse para onde estamos indo?<br />
— Nós o deixaremos em vossa cidade, mas antes,<br />
preciso ir até Sombrorn, um reino élfico, levar um recado<br />
urgente de nosso povo para a rainha daquele reino. Terá a<br />
oportunidade de conhecer os elfos e o mais belo de to<strong>dos</strong> os<br />
seus reinos.<br />
— Elfos! — resmungou Michel.<br />
O vôo não chegou a durar mais meia hora, e<br />
Laicrunallian descia sobre Sombrorn, que podia ser vista com<br />
toda sua suntuosidade apenas do alto, uma vez que era<br />
totalmente cercada por uma densa floresta, intransponível<br />
para qualquer criatura que não fosse habitante daquele reino.<br />
Durante toda a viagem, nenhum <strong>dos</strong> dois tocara no<br />
assunto do beijo, e com a emoção de fazer seu primeiro vôo<br />
sobre Vanalla, os desejos de Sindazel arrefeceram, mas ambos<br />
voltariam a tocar neste assunto, e Sindazel, voltaria a sentir<br />
fortes emoções por Michel. Não obstante, despertaria dentro<br />
de si um incontrolável desejo de reencontrar Etiènne.<br />
241
T<br />
CAPÍTULO XVIII<br />
O Colóquio de Plarionthil<br />
ão logo o enorme dragão branco pousou, um grupo de<br />
guardiões de Sombrorn, fortemente arma<strong>dos</strong> se<br />
aproximou para cercá-los. Um <strong>dos</strong> elfos se adiantou e com um<br />
aceno de sua mão, os fez entender que os aguardava descerem<br />
do dragão para que lhe prestassem um esclarecimento.<br />
Michel, sem saber ao certo como proceder, limitou-se a<br />
aguardar os movimentos de Sindazel, que após tranqüilizar<br />
Laicrunallian, pediu ao dragão que estendesse sua bela asa<br />
para que pudessem ir ao encontro do elfo. Com movimentos<br />
suaves, Sindazel, acompanhada de Michel, desceu pela asa do<br />
dragão até chegar ao solo. Ambos pisavam pela primeira vez<br />
em suas vidas no reino de Sombrorn.<br />
— Qual a razão deste atrevimento!? Que motivo os leva<br />
a descer em nosso reino, sem prévio consentimento de nossa<br />
rainha? — indagou de forma arrogante, o elfo que<br />
aparentemente parecia liderar aquele pequeno contingente de<br />
solda<strong>dos</strong> que fazia a ronda naquele ponto do reino.<br />
— Na verdade, vossa rainha espera há um longo tempo<br />
pela mensagem que trago de Vangilla.<br />
— Não fui comunicado que receberíamos visitantes. Não<br />
estou certo de que sua informação seja verdadeira.<br />
— Neste caso, vós podeis nos conduzir até a presença de<br />
vossa rainha, e tudo será esclarecido.
— Então, acreditas mesmo que tomarei uma atitude tão<br />
insensata como a que estás me propondo? Mesmo que eu fosse<br />
tão imprudente, não poderia cometer tal erro, pois nossa<br />
rainha não se encontra em Sombrorn, está a milhas de<br />
distância daqui, participando do Colóquio de Plarionthil!<br />
— Neste caso, contarei com a hospitalidade de Sombrorn<br />
para aguardar o retorno de vossa rainha. Não me foi facultada<br />
a possibilidade de retornar para Vangilla sem conversar<br />
pessoalmente com vossa rainha.<br />
— Temo que seu desejo não possa ser realizado, pois a<br />
visita a nosso reino está fechada há séculos! Contudo, não<br />
tenho o poder de tomar as decisões a este respeito. Vos<br />
conduzirei ao nosso ministro, que decidirá vossa sorte.<br />
Quanto ao dragão, poderá servir-se de toda a floresta ao redor<br />
de Sombrorn, enquanto o ministro não se pronunciar.<br />
— Agradeço vossa atenção, tenho certeza de que tudo<br />
ficará perfeitamente bem após explicar minha tarefa a vosso<br />
ministro.<br />
Após uma breve conversa com Sindazel, o dragão<br />
levantou vôo e afastou-se de Sombrorn, com ordens de<br />
retornar ao final do entardecer para resgatá-los caso fossem<br />
proibi<strong>dos</strong> de permanecer naquele reino.<br />
Assim, Sindazel e Michel foram escolta<strong>dos</strong> até o palácio<br />
central do reino de Sombrorn, onde conheceram Ascathion, o<br />
ministro do reino e quem tinha poderes de decisão durante a<br />
ausência de Aurien, a rainha.<br />
Convencido de que estava tomando a decisão certa,<br />
Ascathion concedeu a Sindazel e Michel a oportunidade de<br />
ficarem hospeda<strong>dos</strong> em Sombrorn até que a rainha regressasse<br />
do Colóquio de Plarionthil, onde estava tomando ciência <strong>dos</strong><br />
últimos acontecimentos de <strong>Virgo</strong> e tinha a responsabilidade de<br />
defender os interesses do povo de Sombrorn.<br />
Sindazel agradeceu a atitude de Ascathion, aliviando-se<br />
por não ter que retornar a seu pai sem cumprir a missão que<br />
lhe fora confiada. Enquanto aguardaram pelo retorno de<br />
243
Aurien, puderam conhecer e apreciar as maravilhosas<br />
construções <strong>dos</strong> elfos de Sombrorn, deixando a ambos<br />
encanta<strong>dos</strong> com tanta beleza e esplendor.<br />
Enquanto a rainha não regressou de Plarionthil,<br />
passaram dias inteiros juntos, e tiveram a oportunidade de se<br />
conhecer ainda melhor, entregando-se aos desejos que<br />
dominavam a ambos. Ficaram enamora<strong>dos</strong> por várias<br />
semanas até o dia em que puderam se dirigir para Nouvelle<br />
Lyon, após Sindazel finalmente conhecer e conversar com a<br />
rainha Aurien.<br />
<br />
Em Plarionthil, momentos antes de se iniciarem os<br />
procedimentos de abertura para o Colóquio convocado por<br />
Galanderin, rei soberano da Thalide, ao qual to<strong>dos</strong> os demais<br />
reinos élficos prestavam contas, um grande alvoroço se<br />
apoderou do povo élfico ao tomarem ciência que Lasthion<br />
acabara de adentrar o reino. <strong>Era</strong> sabido e comentado entre<br />
to<strong>dos</strong> que Lasthion traria consigo representantes <strong>dos</strong> homens,<br />
Leon Troujard e Alain Dumas. A curiosidade e a ansiedade<br />
eram tamanhas que foi com grande dificuldade que a comitiva<br />
de Eluannar conseguiu atravessar pela multidão e chegar até o<br />
local onde os mais nobres elfos tomavam posição para o início<br />
do Colóquio.<br />
Admira<strong>dos</strong> com a semelhança <strong>dos</strong> homens entre eles<br />
próprios, ficaram surpresos que fossem, de fato, as criaturas a<br />
que a profecia de Glabor fazia alusão.<br />
Leon e Alain estavam fascina<strong>dos</strong> com toda aquela<br />
multidão de elfos que os cercava, bem como, com a riqueza<br />
daquele reino escondido no coração da Grande Floresta. Leon,<br />
que por sua vez tivera a oportunidade de conhecer o belíssimo<br />
reino de Eluannar, em duas ocasiões, mal podia acreditar que<br />
estava presenciando um reino muito superior em to<strong>dos</strong> os<br />
aspectos ao reino de seu amigo elfo Lasthion.<br />
244
Após muito esforço, conseguiu-se restabelecer a ordem,<br />
e to<strong>dos</strong> estavam devidamente posiciona<strong>dos</strong>, senta<strong>dos</strong> em<br />
suntuosas cadeiras que, lado a lado e em três fileiras uma atrás<br />
da outra, formavam uma enorme meia lua diante de uma<br />
comprida mesa onde sentavam-se os reis <strong>dos</strong> cinco reinos<br />
élficos da Thalide, ou de <strong>Virgo</strong>, se considerarmos o nome<br />
escolhido pelos homens para aquelas terras.<br />
No centro, tomava lugar Galanderin, o supremo<br />
soberano elfo. Imediatamente à sua esquerda, estava Aurien,<br />
rainha de Sombrorn, que tinha a seu lado o rei de Planúviel,<br />
Gildrion. Ao lado direito de Galanderin, estavam senta<strong>dos</strong><br />
Elledrin, rei de Flonthoriel, e Asdarthil, rei de Eluannar, a<br />
quem Leon já fora apresentado pouco tempo atrás.<br />
Em meio a um incessante murmúrio de vozes que<br />
insistiam em não se calar, Galanderin levantou-se de sua<br />
cadeira e, erguendo os braços, solicitou pacientemente que os<br />
últimos tagarelas pusessem termo às suas conversações.<br />
Assim que o silêncio tomou conta do gigantesco salão,<br />
Galanderin iniciou seu discurso.<br />
— Ilustres representantes de to<strong>dos</strong> os povos da Thalide!<br />
Agradeço a presença de meus nobres súditos para uma vez<br />
mais debatermos sobre assuntos prementes, que em hipótese<br />
alguma poderiam ser adia<strong>dos</strong>. Os dois assuntos, já do<br />
conhecimento de to<strong>dos</strong> aqui presentes, a profecia de Glabor, o<br />
velho dragão dourado, e o aumento da movimentação <strong>dos</strong><br />
orcs nos últimos meses, requerem uma atenção especial, uma<br />
vez que podem estar intrinsecamente liga<strong>dos</strong>! — Esta<br />
declaração causou vários comentários inquietando a to<strong>dos</strong>, e<br />
deixou Leon muito desconfortável. Não fosse Lasthion<br />
segurar-lhe o braço, forçando-o a ficar em seu lugar, teria se<br />
levantado para retrucar tal comentário malicioso. Após um<br />
breve momento, ao reinar novamente o silêncio, Galanderin<br />
continuou: — Há muito tempo desejei convocar os<br />
representantes de to<strong>dos</strong> os povos para debater sobre o dia em<br />
que os homens chegariam em nossas Terras, mas os<br />
245
compromissos assumi<strong>dos</strong> por Plarionthil não me permitiram<br />
realizar este desejo. Agora, apressado pelo depoimento de um<br />
de nossos irmãos distantes, fui obrigado a abster-me de muitas<br />
tarefas importantes para estar hoje diante de vós! —<br />
Galanderin fez uma pequena pausa para servir-se de um<br />
líquido que estava numa taça de cristal diante de si, sobre a<br />
mesa, a fim de refrescar a garganta antes de prosseguir.<br />
— Para que to<strong>dos</strong> vós tomem ciência da gravidade <strong>dos</strong><br />
problemas que assolam a Thalide, convido nosso irmão<br />
distante para que vos fale o que, outrora, me revelou. Por<br />
favor, Udour, aproxime-se e exponha suas inquietações.<br />
De uma das cadeiras da primeira fileira diante da mesa<br />
<strong>dos</strong> reis élficos, Udour levantou-se e caminhou até o centro do<br />
anfiteatro onde se desenrolava o colóquio. Ao verem Udour<br />
no centro das atenções, novamente ocorreu certa inquietação<br />
entre os elfos. Com efeito, Udour, era um representante <strong>dos</strong><br />
elfos negros, uma raça distinta de elfos que habitavam uma<br />
região ao sul da Floresta Dourada, a leste de <strong>Virgo</strong>. Famosos<br />
por não se envolverem em nenhuma questão que diz respeito<br />
à Thalide, era espantoso para to<strong>dos</strong> os elfos <strong>dos</strong> cinco reinos<br />
testemunharem sua presença diante deles.<br />
Um pouco desconcertado e sem saber ao certo como<br />
proceder, Udour ficou de frente para os nobres que estavam<br />
na tribuna, e de costas para os reis, cometendo assim uma falta<br />
grave. Antes mesmo que iniciasse seu pronunciamento, foi<br />
advertido por alguns elfos de Planúviel que estavam logo à<br />
sua frente para que ele se dirigisse aos reis.<br />
Refeito de sua gafe, e já posicionado de frente para os<br />
reis, Udour falou: — Nobres soberanos da Thalide, conforme<br />
havia relatado ao Supremo Soberano Galanderin, rei <strong>dos</strong> reis,<br />
nosso povo encontra-se temeroso com as atividades <strong>dos</strong> orcs,<br />
que infestaram de forma inquietante a Floresta Dourada. Meu<br />
irmão, Idour, que ao meu lado é um <strong>dos</strong> governantes de nosso<br />
povo, pessoalmente saiu há alguns meses atrás em busca de<br />
informações mais consistentes, acompanhado por vários de<br />
246
nossos guerreiros, mas infelizmente, até hoje não regressou<br />
desta diligência que assumiu. Tememos que o pior tenha<br />
acontecido, pois a atividade daqueles malditos orcs aumenta a<br />
cada dia, e nenhuma proteção é estendida à nossa região. Caso<br />
os orcs venham a descobrir nossa Cidade Oculta, não teremos<br />
condições de resistir a um longo cerco!<br />
Assim que Udour concluiu este pronunciamento,<br />
Galanderin levantou-se mais uma vez e demonstrou apoiar o<br />
elfo negro.<br />
— Udour! Suas preocupações são pertinentes, e a<br />
despeito da falha na segurança nas regiões ao leste da Thalide,<br />
da qual você dá testemunho diante desta nobre assembléia,<br />
iremos buscar a melhor forma de repará-la, enviando duas<br />
legiões para a Floresta Dourada, a fim de limpar aquela região<br />
da presença maléfica <strong>dos</strong> orcs!<br />
— Vossa Majestade não está querendo insinuar que a tal<br />
falha na segurança seja responsabilidade de Sombrorn, por<br />
certo!? — levantou-se Aurien, interrompendo o rei de<br />
Plarionthil, indignada com o comentário malicioso de<br />
Galanderin.<br />
— Vossa Majestade está exaltando-se<br />
desnecessariamente! Sequer suscitei nome de responsáveis,<br />
mas antes, entendo que é responsabilidade de to<strong>dos</strong> nós a<br />
segurança <strong>dos</strong> povos da Thalide. O que obviamente não quer<br />
dizer, que na região leste, o zelo de Sombrorn seria muito<br />
apreciado por toda a nação élfica!<br />
— Ora! Vossa Majestade duvida do zelo com que<br />
observamos a segurança em nossas terras e floresta? Se a<br />
Floresta Dourada está infestada de orcs, certamente são<br />
provenientes de tribos do oeste, pois dou garantias que<br />
nenhum Zaraidai atravessou a Floresta das Sombras em<br />
direção ao sul de Sombrorn.<br />
A discussão ficou calorosa entre Galanderin e Aurien,<br />
enquanto ao mesmo tempo os demais presentes se dividiam<br />
247
em opiniões a respeito da segurança por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong> da<br />
Thalide.<br />
— É muito fácil para Vossa Majestade, ocupando uma<br />
posição geográfica privilegiada em relação aos demais reinos<br />
do oeste, maldizer nossa diligência quanto à segurança da<br />
Thalide! E você, Udour! — Aurien olhou furiosa para o elfo<br />
negro. — Não está impedido de solicitar a ajuda de nossos<br />
reinos, mas a perfídia natural <strong>dos</strong> elfos negros não será<br />
tolerada por Sombrorn, portanto, cuidado com as palavras! A<br />
propósito, por qual razão vosso irmão Idour saiu tão<br />
displicentemente da Cidade Oculta para buscar informações<br />
sobre orcs? Gostaria muito de saber que ele abandonou<br />
aquelas idéias mirabolantes de fazer contato com orcs na<br />
tentativa de possíveis alianças com aquela raça amaldiçoada!<br />
Desconcertado com as palavras da rainha Aurien, Udour<br />
respondeu — Vossa Majestade pode ficar tranqüila, pois<br />
quanto a isto, posso afirmar que Idour já não mais tentava<br />
contato com os orcs desde o término da Guerra da Agonia.<br />
— Longe vai a época em que os elfos e to<strong>dos</strong> os seus coirmãos<br />
podiam acreditar apenas nas palavras. O sumiço de<br />
vosso irmão é muito coincidente com o aumento da atividade<br />
<strong>dos</strong> orcs, em minha opinião! — concluiu Aurien.<br />
— Ora! Agora é Vossa Majestade que trai a confiança<br />
que Udour está depositando em nós, acusando-o de pérfido e<br />
mentiroso! Então, Vossa Majestade acredita mesmo que Idour<br />
colocaria em risco seu irmão, sua cidade e seu povo? Não se<br />
esqueça de que é preciso calma neste momento, para que não<br />
sejam tomadas decisões equivocadas as quais não poderemos<br />
reparar! Vocês de Sombrorn sempre foram os maiores<br />
causadores de dissensão entre os elfos, mesmo depois da<br />
aliança <strong>dos</strong> cinco reinos! Pensei que com a morte de Limanoh<br />
poderíamos contar com tempos mais tranqüilos, mas vejo que<br />
Vossa Majestade segue fielmente os passos de vosso falecido<br />
pai!<br />
248
— Já não me interesso por questões passadas, e no que<br />
me diz respeito, seguirei a conduta que possa garantir a<br />
sobrevivência de meu reino, mesmo que seja nos moldes de<br />
meu pai!<br />
— Não vamos continuar neste assunto, é tempo de<br />
decidirmos sobre a segurança da Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos<br />
negros e da Floresta Dourada! Não se esqueçam de que<br />
Bakhin será o primeiro a se aproveitar daquelas terras caso<br />
venham a cair nas mãos <strong>dos</strong> orcs. Com a desculpa de que<br />
foram eles os salvadores da região, irão reivindicar para si a<br />
possessão daquelas terras, como já tentaram fazer em outra<br />
época!<br />
— Desta afirmativa, o nobre soberano queira me<br />
desculpar, mas sou totalmente contra! — Levantou-se,<br />
indignado, um robusto anão que tomava assento junto a<br />
outros de sua raça, na extremidade esquerda da segunda<br />
fileira de cadeiras que compunham a assembléia. Este anão,<br />
era Guthin, rei de Guttin, um reino a norte de <strong>Virgo</strong>, próximo<br />
às regiões vulcânicas, e como primo de Bakhin, intercedera em<br />
seu favor. — Meu primo não é tolo a ponto de permitir que<br />
orcs permaneçam impunemente perambulando próximos a<br />
seu reino, mas isso não quer dizer que tomaria para si as terras<br />
pertencentes aos elfos negros!<br />
— Nobre anão! Gostaria de acreditar em vossa<br />
afirmativa, contudo, não podemos nos esquecer de que no<br />
passado, vosso primo já tentou, sem sucesso, apoderar-se da<br />
Floresta Dourada. Enviamos o convite para que ele<br />
comparecesse a este importante colóquio, mas como pode<br />
comprovar, ele preferiu abster-se das responsabilidades que<br />
nos une a to<strong>dos</strong> para o bem <strong>dos</strong> povos da Thalide! Esta recusa<br />
em comparecer ao colóquio, além de uma deselegante afronta,<br />
nos leva a crer que os pensamentos de Bakhin não são tão<br />
claros a respeito do futuro da Floresta Dourada — retrucou<br />
Galanderin, fazendo com que Guthin se sentasse novamente,<br />
sem argumentos para prosseguir em defesa de seu primo.<br />
249
Depois desta vergonhosa interpelação por parte do rei de<br />
Plarionthil, resolveu abster-se de qualquer comentário e ficou<br />
apenas ouvindo o desenrolar do colóquio, sem mais<br />
interferências.<br />
Restabelecida a ordem, mais uma vez, Galanderin<br />
voltou a dirigir-se a to<strong>dos</strong>, detalhando o que já havia<br />
planejado junto a seus conselheiros. Na opinião do rei de<br />
Plarionthil, era natural que os orcs estivessem mais agita<strong>dos</strong><br />
ultimamente, pois havia muito tempo que não se<br />
manifestavam, e já era ocasião de que houvessem reposto suas<br />
populações, outrora dizimadas. Mas tranqüilizando a to<strong>dos</strong>,<br />
garantiu que esta agitação e atividades não passavam de<br />
distúrbios isola<strong>dos</strong> que seriam facilmente desbarata<strong>dos</strong> por<br />
uma ou duas legiões élficas.<br />
À tal declaração, a rainha Aurien de Sombrorn foi<br />
veementemente contra, alegando que a negligência <strong>dos</strong> elfos<br />
para com a segurança na Thalide os havia tornado cegos para<br />
um problema infinitamente maior ao que se suspeitava.<br />
Todavia, vencida pela maioria da assembléia — na verdade,<br />
fora a única a defender a idéia de que o movimento <strong>dos</strong> orcs<br />
era de uma gravidade sem precedentes — foi obrigada a<br />
silenciar-se, poupando-se de ser considerada demasiadamente<br />
intransigente.<br />
<br />
O colóquio desenrolou-se durante todo o dia e até bem<br />
tarde da noite. Com alguma dificuldade, os temas em questão<br />
foram considera<strong>dos</strong> e exaustivamente discuti<strong>dos</strong> pelos<br />
representantes de quase to<strong>dos</strong> os reinos e povoa<strong>dos</strong> que ali se<br />
encontravam.<br />
Após muitas desavenças e calorosas discussões, acerca<br />
de assuntos que envolviam os reinos élficos, mas que não<br />
fazem parte desta história, conseguiu-se focalizar, finalmente,<br />
os assuntos que deveriam ser aborda<strong>dos</strong> durante o colóquio.<br />
250
Quanto à profecia de Glabor, que fazia alusão aos<br />
homens dizendo que estes chegariam à Thalide para por<br />
termo às civilizações élficas, receando que pudesse tornar-se<br />
realidade, Galanderin obrigou a Leon, que este jurasse<br />
fidelidade de sua cidade para com os elfos, submetendo-se às<br />
suas leis, tornando-se assim, um novo súdito de Plarionthil e<br />
<strong>dos</strong> cinco reinos élficos. No início, ficou um tanto relutante,<br />
mas observando que não era o momento adequado para<br />
contrariar o soberano de Plarionthil, e incentivado por<br />
Lasthion, a quem devia imensamente pela ajuda prestada<br />
durante a construção de Nouvelle Amiens, dissimulou seu<br />
descontentamento e acatou a proposta de Galanderin.<br />
A respeito da intensa atividade <strong>dos</strong> orcs e a solicitação<br />
de apoio de Udour, o elfo negro, ficou determinado que duas<br />
legiões de Eluannar seriam deslocadas para a Floresta<br />
Dourada para erradicar daquela região to<strong>dos</strong> os orcs que<br />
fossem encontra<strong>dos</strong>. Um exército de Guttin seria deslocado<br />
para o sul da Planície de Bronze e apoiaria esta operação,<br />
impedindo que possíveis reforços das hostes malignas <strong>dos</strong><br />
orcs pudessem atravessar o deserto Naissaras em socorro <strong>dos</strong><br />
que estivessem no conflito da Floresta Dourada.<br />
<br />
Ao retornar para Sombrorn, Aurien fora informada por<br />
Ascathion, seu ministro, de que era aguardada por uma vangi<br />
que chegara há alguns dias em companhia de um humano.<br />
A rainha recebeu Sindazel e Michel Montbard em sua<br />
sala de audiências, e após receber as informações que<br />
Granuzael havia lhe enviado através de sua filha, concedeu a<br />
ambos a hospitalidade de seu reino, permitindo que ficassem<br />
pelo tempo que lhes aprouvesse.<br />
251
N<br />
CAPÍTULO XIX<br />
Mar de acampamentos<br />
o cimo das Montanhas Negras, no mais alto ponto de<br />
passagem por terra entre os la<strong>dos</strong> leste e oeste de <strong>Virgo</strong>,<br />
reuniam-se milhares de goblins, praticamente cobrindo toda a<br />
extensão plana ao longo das montanhas. Não paravam de<br />
chegar novos grupos de goblins a cada hora. O ar estava<br />
impregnado devido ao mau cheiro proveniente <strong>dos</strong><br />
excrementos daquelas criaturas, que preparavam-se para<br />
invadir a Floresta Dourada, mas ainda aguardavam a chegada<br />
<strong>dos</strong> orcs Trumadai. Convenci<strong>dos</strong> pelos orcs de que receberiam<br />
metade <strong>dos</strong> despojos da guerra e de que ao termo <strong>dos</strong><br />
combates eles herdariam e poderiam viver em paz na região<br />
das Montanhas Pontiagudas, os goblins não hesitaram em<br />
aderir à nefasta aliança com os Trumadai.<br />
Na verdade, os goblins não tinham muita alternativa,<br />
pois sempre foram persegui<strong>dos</strong> pelos orcs, que os pilhavam e<br />
escravizavam em todas as oportunidades que encontravam. O<br />
pavor que os goblins possuem pelos orcs já seria o suficiente<br />
para que se submetessem, mas como desta feita havia uma<br />
promessa, um pacto, ainda que não pudesse ser totalmente<br />
confiável, os goblins se reuniram aos milhares para ajudar os<br />
temi<strong>dos</strong> orcs.<br />
Os Trumadai por sua vez, bem como seus alia<strong>dos</strong>, os<br />
Baraidai, já haviam atravessado o Pântano Hibrittatus, e<br />
bastariam apenas mais dois dias para que chegassem ao ponto
de subida das Montanhas Negras. Como uma enorme praga<br />
negra, pronta para devastar tudo o que encontrasse pela<br />
frente, a massa de orcs se aproximava para desencadear uma<br />
das maiores batalhas na história de <strong>Virgo</strong>, após a época da<br />
Guerra da Agonia. Empunhando suas espadas curvas, tão<br />
parecidas com as cimitarras mouras, trazendo seus escu<strong>dos</strong><br />
em forma oval, a infantaria seguia flanqueando centenas de<br />
seus arqueiros, emitindo seus grunhi<strong>dos</strong> roucos e pavorosos,<br />
sedentos de sangue e prontos a promover uma carnificina.<br />
Pela quantidade de orcs Trumadai e Baraidai que<br />
caminhavam rumo à Floresta Dourada e o ajuntamento de<br />
goblins no cimo das Montanhas Negras, o Colóquio de<br />
Plarionthil havia cometido um enorme equívoco em seu<br />
julgamento. O perigo que os elfos negros estavam correndo<br />
era muito maior do que se previra.<br />
<br />
Mais uma madrugada estava findando em Nouvelle<br />
Lyon. A luminosidade do céu de <strong>Virgo</strong> começava a incendiarse<br />
em tonalidades de rosa bem escuro, pouco a pouco,<br />
clareando para o habitual rosa que iluminava a tudo com<br />
tremenda intensidade, formando o dia.<br />
A enorme sede administrativa de Nouvelle Lyon, que na<br />
verdade também servia como morada para Michel e seus<br />
amigos, localizava-se num <strong>dos</strong> pontos mais altos da cidade.<br />
Com quatro andares e dividido por diversos cômo<strong>dos</strong> entre<br />
suas escadarias, o prédio abrigava aposentos, salas de reunião,<br />
repartições administrativas e, na cobertura, possuía três<br />
pequenas sacadas em forma de meia lua, de onde se podia<br />
observar praticamente to<strong>dos</strong> os pontos de Nouvelle Lyon.<br />
Etiènne, levantou-se cedo naquela manhã. Estava mais<br />
frio que de costume, fazendo-o lembrar-se <strong>dos</strong> dias de inverno<br />
em Amiens. Caminhou até a sacada do prédio em que se<br />
encontrava e levou um susto ao perceber que diante <strong>dos</strong><br />
portões da cidade havia um verdadeiro mar de tendas<br />
253
espalhadas por toda a parte, até onde sua vista podia alcançar.<br />
Ficou estarrecido com aquela visão e correu alarmado para<br />
avisar a seus companheiros. Entrou pelo aposento de Grassac<br />
gritando por seu nome como se fosse um furacão,<br />
sobressaltando o amigo.<br />
— O que é isso!? O que está acontecendo? — indagou<br />
Grassac, assustado.<br />
— Levante-se rápido, vamos chamar Peter. Há um<br />
enorme exército às nossas portas. Temo que seja Martin<br />
Lacroix e sua guarda.<br />
— Você está louco, Etiènne. Bebeu muito vinho na noite<br />
passada e seu delírio deve ser fruto de algum pesadelo. Ainda<br />
é muito cedo, deixe-me dormir. — Grassac, depois do susto,<br />
deixou-se dominar pela sonolência e desabou novamente em<br />
seu leito, cobrindo-se até a cabeça.<br />
Etiènne, inconformado com a incredulidade do amigo,<br />
deu-lhe as costas e já deixava o quarto quando o som de<br />
trombetas cortaram o ar e irromperam pela janela do cômodo,<br />
como se prenunciassem muitos problemas. Certamente não<br />
estava enganado a esse respeito e deteve-se, virando-se<br />
novamente para o amigo.<br />
— Escute, Grassac, escute os sons de meu pesadelo.<br />
Acredita agora no que eu lhe disse? — Etiènne estava<br />
impaciente. — Levante dessa cama e vamos ver o que pode ser<br />
feito, e rápido!<br />
Nesse ínterim, ouviram as badaladas do sino da<br />
pequena Igreja que Michel havia construído em Nouvelle<br />
Lyon, para sua comunidade. Agora Grassac não tinha mais<br />
dúvidas de que algo diferente realmente acontecia lá fora, pois<br />
o sino somente soava antes do anoitecer, para chamar os fiéis a<br />
participar da missa. Grassac levantou-se e tratou de vestir-se<br />
apressadamente. Os dois desceram e caminharam até a<br />
pequena casa de Peter, que ficava a pouco mais de duas<br />
quadras do prédio de Michel, onde seu irmão e Grassac<br />
estavam.<br />
254
Ao chegarem, Peter já estava pronto, pois também<br />
ouvira o sino e percebera que algo estranho havia acontecido.<br />
— Estava me preparando para ir até vocês. Também<br />
ouviram o sino? O que estará acontecendo?<br />
— Ainda não sabemos ao certo, — respondeu Etiènne —<br />
mas há um enorme exército às portas da cidade. Vi com meus<br />
próprios olhos, são centenas e centenas de tendas brancas.<br />
Temo que seja Martin Lacroix; contudo, onde esse miserável<br />
teria conseguido tantos homens?<br />
— Bom, não conheço este homem de que tanto falaram e<br />
ainda temem, mas certamente ele nada mais é do que um<br />
homem.<br />
— É um homem perverso! — retrucou Etiènne.<br />
— Senhores, vamos deixar a conversa para outra hora.<br />
— reclamou Grassac. — Vejamos o que se passa. Peter, chame<br />
os arqueiros que treinou e os envie para as ameias da muralha<br />
frontal da cidade, eu e Etiènne iremos com mais alguns<br />
voluntários ao encontro <strong>dos</strong> visitantes.<br />
— Acha isso prudente? — Peter estava receoso.<br />
— Precisamos saber o que se passa. Essa gente chegou<br />
como se fossem fantasmas na calada da noite e ninguém<br />
notou! Nem mesmo os sentinelas que temos nos torreões<br />
notaram sua presença, e não creio que seja Martin com seus<br />
solda<strong>dos</strong>. Há algo diferente no ar. O que mais me intriga é<br />
como os sentinelas não se deram conta da presença dessa<br />
gente toda?<br />
— Espero que esteja certo, Grassac, porque senão, que<br />
Deus seja pie<strong>dos</strong>o e nos ofereça uma morte rápida.<br />
— Tenha fé, irmão, Deus está sempre conosco!<br />
Antes mesmo de deixarem a porta da casa de Peter,<br />
viram um pequeno destacamento de cavaleiros desconheci<strong>dos</strong><br />
subindo a rua em sua direção, acompanha<strong>dos</strong> por alguns<br />
homens que, sabiam ser da guarda da cidade.<br />
255
— Bom, — disse Grassac — parece-me que nossa<br />
conversa fora demasiadamente longa, para não dizer, nossa<br />
atitude!<br />
Os três ficaram se entreolhando por alguns momentos e<br />
depois voltaram a acompanhar atentamente o grupo de<br />
cavaleiros que se aproximava deles.<br />
<strong>Era</strong>m sete os cavaleiros que cavalgavam subindo a rua,<br />
sendo cinco, os elfos que normalmente formavam o grupo de<br />
seus arautos, e os outros dois, ninguém mais que Alain Dumas<br />
e Leon Troujard, juntos.<br />
A poucos metros de distância, os cavaleiros detiveramse<br />
e um <strong>dos</strong> homens de Nouvelle Lyon veio até Etiènne.<br />
— Senhor, Leon deseja ver vosso irmão Michel. Eu<br />
expliquei que vosso irmão não se encontra na cidade, mas ele<br />
insistiu que trata-se de um assunto muito urgente. Na<br />
ausência de vosso irmão, pediu para falar convosco.<br />
Etiènne, tornou a olhar para Grassac, como que pedindo<br />
um conselho, mas Grassac não esboçou qualquer reação,<br />
limitando-se a esperar a decisão de seu amigo.<br />
— Pois bem, ao menos querem conversar. Vejo que não<br />
estão tomando nenhum posicionamento hostil e isso muito me<br />
tranqüiliza. Que se aproximem.<br />
O jovem rapaz então acenou para os outros<br />
companheiros com gestos positivos, autorizando que os<br />
cavaleiros se aproximassem. Os visitantes apearam de onde<br />
estavam e fizeram o resto do percurso caminhando<br />
vagarosamente até chegarem a Etiènne e seus companheiros.<br />
— Salve, sau<strong>dos</strong>o amigo! — anunciou Leon, com um<br />
tom amigável.<br />
Etiènne franziu o cenho ao ver Alain ao lado de Leon,<br />
tentando entender como poderiam estar ali juntos.<br />
— Salve! — cumprimentou Etiènne. — Estou realmente<br />
muito surpreso. Que ventos os trazem tão longe e, o que faz<br />
este sujeito ao seu lado?<br />
256
A despeito do ódio demonstrado por Etiènne, Grassac<br />
cumprimentou seu velho amigo Alain, que retribuiu com um<br />
leve e sincero sorriso, vendo que seu amigo estava bem. Os<br />
elfos perceberam o pesado ar de hostilidade criado por<br />
Etiènne, e ficaram atrás, aguardando que Leon os introduzisse<br />
na conversa.<br />
— Não se preocupe, amigo. Alain é um homem honrado<br />
e agora me acompanha. Muitas coisas aconteceram nestes<br />
últimos dois anos que estivemos afasta<strong>dos</strong>.<br />
— Sim, muitas coisas aconteceram e é uma pena que não<br />
tenham acontecido estando to<strong>dos</strong> nós juntos. Mas vejo que fez<br />
novas amizades. — Etiènne inclinou o rosto suavemente,<br />
indicando os elfos atrás de Leon e Alain.<br />
— É verdade, nós fizemos muitas amizades em Nouvelle<br />
Amiens e aprendemos muitas coisas sobre <strong>Virgo</strong> com a ajuda<br />
de nossos novos amigos, os elfos de Eluannar.<br />
Etiènne os examinou com bastante atenção, pois as<br />
referências de Bakhin os colocava abaixo da escória de falsos e<br />
perversos marginais. Mas Etiènne os contemplou em sua<br />
beleza, altos, vigorosos, elegantes em suas armaduras<br />
metálicas esverdeadas e reluzentes. Os elfos percebendo a<br />
curiosidade de Etiènne, não aguardaram mais que Leon os<br />
introduzisse na conversa e aproveitaram a oportunidade para<br />
se apresentar. Lasthion aproximou-se em primeiro lugar.<br />
— Permita-me apresentar. Sou Lasthion, de Eluannar, às<br />
suas ordens. — Lasthion inclinou-se um pouco, fazendo uma<br />
reverência a Etiènne.<br />
— Seja bem vindo à Nouvelle Lyon, se vem em paz.<br />
Certamente Etiènne não esquecera do enorme exército<br />
estacionado às portas da cidade.<br />
— Estou conduzindo minha legião para além das<br />
Montanhas Negras, e viemos pedir vossa autorização para que<br />
possamos ficar dois dias acampa<strong>dos</strong> em vosso território.<br />
— Vejo que escolheram um belo nome para a cidade. —<br />
interrompeu Leon.<br />
257
— Sim, meu irmão quis homenagear Peter, pois sua mãe<br />
nascera em Lyon. Peter nos foi muito valioso na construção de<br />
nossa cidade.<br />
Peter ficou encabulado, limitando-se a sorrir<br />
envergonhado, quando to<strong>dos</strong> os olhares assestaram em sua<br />
direção.<br />
Etiènne não tirava os olhos de Lasthion, tentando<br />
imaginar o que poderia aquele exército de elfos desejar do<br />
outro lado das Montanhas Negras, na Floresta Dourada.<br />
— Poderia nos esclarecer o motivo de todo este exército<br />
rumando para o outro lado das Montanhas Negras?<br />
— Lamentamos — respondeu — que vossa cidade não<br />
tenha sido identificada e convidada para participar do<br />
Colóquio que ocorreu em Plarionthil, o maior de to<strong>dos</strong> os<br />
reinos élficos, sobre o que está acontecendo em <strong>Virgo</strong>, que é<br />
como chamam essas terras a qual conhecemos por Thalide.<br />
— E o que exatamente está acontecendo em <strong>Virgo</strong>? —<br />
perguntou Etiènne, muito curioso.<br />
— Os orcs preparam-se para devastar a Floresta<br />
Dourada, onde moram nossos mais distantes parentes, os elfos<br />
negros, e viemos prestar-lhes socorro, e impedir que tal<br />
devastação venha a acontecer.<br />
— Porventura, vocês não notaram uma maior<br />
movimentação de orcs nos últimos meses? — indagou Leon.<br />
— Sim, notamos, sim. Os orcs se proliferaram bastante<br />
por essas regiões nos últimos meses, mas em compensação, os<br />
goblins, outras criaturas malévolas, praticamente<br />
desapareceram de nossa região quando a atividade <strong>dos</strong> orcs<br />
aumentou.<br />
— Não é possível imaginar o que pode estar<br />
acontecendo, em toda sua amplitude, mas há muitos temores e<br />
fatos muito estranhos estão confundindo os reis élficos, bem<br />
como os reis anões. — comentou Lasthion.<br />
— E por falar em anões, — Etiènne interrompeu —<br />
acredito que o rei Bakhin possa resolver os problemas da<br />
258
Floresta Dourada, uma vez que seu reino é o mais próximo<br />
daquela região.<br />
Desta vez quem franziu a testa foi Lasthion, que muito<br />
contrariado, retrucou a afirmativa de Etiènne. — Não tenha<br />
tanta certeza disso! Bakhin mostrou-se contra nossa incursão<br />
nesta guerra durante o Colóquio de Plarionthil, no qual sequer<br />
compareceu. Não passa de um oportunista que tal como uma<br />
ave carniceira, irá aguardar que a Floresta Dourada seja<br />
dizimada, para só então cair sobre os orcs e limpar a região,<br />
com o intuito de encher aquela região de minas e escavações<br />
em busca de ouro. — Lasthion ficara visivelmente irritado.<br />
— Não acredito que Bakhin faça isso! Ele não permitirá<br />
que orcs vagueiem livremente por suas terras.<br />
— Não são suas terras, são terras <strong>dos</strong> elfos negros que,<br />
assim como to<strong>dos</strong> os elfos, amam a natureza e as florestas, e<br />
não as devastam em busca de ouro.<br />
O clima agora voltava a ficar pesado, e não mais entre os<br />
velhos amigos, mas entre Etiènne e Lasthion, até então,<br />
desconheci<strong>dos</strong>. Grassac, vendo que a conversa tomava um<br />
rumo sinistro, interveio, procurando acalmar os ânimos<br />
exalta<strong>dos</strong> de ambos.<br />
— Cavaleiros, cavaleiros, ainda é muito cedo, sugiro que<br />
possamos nos dirigir para o prédio de Michel onde poderemos<br />
comer algo e conversar com mais calma.<br />
— É verdade, — concordou Etiènne — perdoem-me se<br />
pareci rude ao não convidá-los antes. Podemos ir até nossa<br />
sede, de onde meu irmão controla o andamento das coisas em<br />
Nouvelle Lyon. Lá, teremos mais conforto e poderemos<br />
conversar melhor. — Etiènne, dispensou os demais homens<br />
que haviam acompanhado os visitantes, para que retornassem<br />
a seus postos, ordenando a um deles que cuidasse de seus<br />
cavalos. Depois, caminharam até a sede da cidade para<br />
discutir sobre os temas acerca da guerra que se aproximava.<br />
Durante o breve percurso de duas quadras no regresso<br />
ao prédio, Etiènne comentou com Grassac o quanto era<br />
259
estranho que eles a todo tempo fossem obriga<strong>dos</strong> a estar sob a<br />
sombra de guerras e combates.<br />
— Gostaria que Bakhin estivesse conosco agora, —<br />
comentou Etiènne — ao menos ele poderia defender sua<br />
posição diante desses elfos arrogantes.<br />
— Pense pelo lado positivo, — disse Grassac — você<br />
poderá voltar a Bakkin em segurança, caso resolva voltar para<br />
lá. Pode ir sob a proteção da legião desse elfo.<br />
— Sim, eu estava pensando nesta possibilidade. Não<br />
obstante, gostaria de reencontrar meu irmão antes de deixar<br />
Nouvelle Lyon. Se eu partir agora, não poderei retornar tão<br />
cedo, porque quando eu retornar a Bakkin, irei dedicar-me a<br />
encontrar Sindazel.<br />
— Etiènne! Você devia esquecer este assunto. Estamos<br />
vivendo há mais de dois anos neste lugar e ela sequer<br />
apareceu uma única vez. Sabe Deus o que possa ter acontecido<br />
com essa criatura.<br />
— Tenho certeza de que ela está bem. Não sei explicar,<br />
mas sinto que ela está bem e que deseja me ver novamente.<br />
— Bom, não vou insistir. Não adianta tentar convencer<br />
homens apaixona<strong>dos</strong>, tornam-se inflexíveis como a lâmina de<br />
uma espada, pronta a retalhar qualquer argumento que não<br />
seja favorável à sua paixão. — os dois sorriram e continuaram<br />
a caminhar, agora de braços nos ombros, um do outro.<br />
Durante as conversas que duraram quase três horas,<br />
Etiènne ficou a par <strong>dos</strong> assuntos que foram debati<strong>dos</strong> no<br />
Colóquio de Plarionthil. Lasthion contou detalhadamente<br />
sobre tudo o que fora discutido, bem como as conclusões e<br />
decisões que os reis haviam tomado durante o Colóquio.<br />
Ouvia fascinado sobre to<strong>dos</strong> aqueles reis, reinos, ameaças e<br />
temor. Descobrira em pouco tempo, que <strong>Virgo</strong> era um lugar<br />
muito mais rico do que imaginava. Soube também, <strong>dos</strong><br />
últimos acontecimentos ocorri<strong>dos</strong> em Nouvelle Amiens, da<br />
chegada de Martin Lacroix e seus solda<strong>dos</strong> e do<br />
desafortunado destino que tivera às portas de Nouvelle<br />
260
Amiens, quando os orcs os atacaram na madrugada da mesma<br />
noite que haviam chegado. Desesperou-se ao saber do<br />
desabamento da Grande Caverna, que fazia a única ligação<br />
conhecida entre Amiens e <strong>Virgo</strong>. Levou as mãos ao rosto e não<br />
conseguiu conter seu pavor, concluindo que nunca mais<br />
voltaria a ver seu irmão Michel. A única informação que Leon<br />
omitira fora sobre a paternidade de Martin Lacroix em relação<br />
a ele. Julgou que seria melhor manter essa informação em<br />
sigilo, uma vez que não tinha mais esperanças de reencontrar<br />
seu pai.<br />
A notícia do desabamento da Grande Caverna foi como<br />
uma punhalada em Etiènne, que exigiu ficar só durante o resto<br />
do dia e afastou-se do grupo, mas não sem antes oferecer a<br />
Lasthion que desfrutasse de tudo o que lhe fosse necessário e<br />
útil enquanto permanecesse em Nouvelle Lyon.<br />
— Sei que isso deve ter sido um violento golpe para<br />
Etiènne, mas ao menos não ficará mergulhado numa eterna<br />
expectativa de reencontrar Michel. — disse Leon à Grassac.<br />
— Você acha mesmo que não tem como Michel retornar<br />
para <strong>Virgo</strong>? A passagem foi totalmente interrompida?<br />
— Sim, infelizmente.<br />
— Pobre Etiènne, aos poucos está perdendo to<strong>dos</strong> os que<br />
ama. Ele sofreu muito com sua decisão de nos deixar, Leon.<br />
Considerou a perda de um grande amigo na ocasião. Para ele,<br />
fora como se um velho companheiro tivesse morrido.<br />
Leon olhou para Grassac, e estendeu seu braço,<br />
segurando seu ombro — Grassac, era preciso, acredite-me!<br />
Grassac fitou os olhos de Leon e percebeu que algo de<br />
grave havia acontecido naquela época. Desde que fugiram do<br />
castelo de Martin, percebera que Leon ficara muito estranho.<br />
Algo havia mudado profundamente dentro dele, mas não<br />
imaginava o que poderia ser; contudo, naquele instante,<br />
entendeu que algum importante segredo obrigara Leon a ter<br />
aquela atitude dois anos atrás, e retribuiu àquele olhar de<br />
261
quem pede compreensão com um pequeno suspiro e uma<br />
piscadela.<br />
— Tudo bem, fique tranqüilo.<br />
Na orla leste da Floresta Dourada, três contingentes<br />
inteiros de guerreiros anões do reino de Bakkin, acampavam,<br />
entusiasma<strong>dos</strong> com a possibilidade de combater novamente.<br />
Durante muitos anos não ocorriam guerras em Azur, de forma<br />
que estavam to<strong>dos</strong> enferruja<strong>dos</strong> e acreditavam que matar uma<br />
boa quantidade de orcs seria um delicioso exercício para que<br />
seus bravos guerreiros voltassem à velha forma, como na<br />
época em que foram destemi<strong>dos</strong> durante a Guerra da Agonia.<br />
Bakhin, na verdade, não pretendia participar <strong>dos</strong><br />
combates, mas limitaria suas tropas fora da Floresta Dourada<br />
apenas impedindo que os orcs fugissem para a Planície de<br />
Ouro, caso isso viesse a acontecer. Além disso, apenas<br />
guarneceria os caminhos que levavam a seu reino, para<br />
garantir a segurança de seu povo. Os contingentes de Bakkin<br />
sequer levaram seus carros pesa<strong>dos</strong> de combate, acreditando<br />
que a guerra não passava de pura imaginação <strong>dos</strong> elfos e de<br />
seu primo Guthin. Em sua opinião, os orcs jamais chegariam a<br />
atravessar as Montanhas Negras, e mesmo que o fizessem, não<br />
seriam numerosos o suficiente sequer para dar conta <strong>dos</strong> elfos<br />
negros, quanto mais ameaçar seu poderoso reino. Sem temer o<br />
perigo que se avizinhava, Bakhin comandava pessoalmente<br />
um de seus contingentes.<br />
Entre seus combatentes de elite, perfilavam os guerreiros<br />
de machado de duas achas, os mais devastadores anões em<br />
combate, que ceifavam impie<strong>dos</strong>amente tudo que aparecia em<br />
sua frente. Mal podiam esperar pela oportunidade de entrar<br />
em ação, levando o terror aos malévolos orcs com seus afia<strong>dos</strong><br />
macha<strong>dos</strong> de guerra.<br />
<br />
262
Em Nouvelle Lyon e em todas as grandes cidades e<br />
reinos de <strong>Virgo</strong>, o assunto era a guerra. Ela seria mesmo<br />
inevitável, e mostraria todas as suas faces, com dor, desespero,<br />
mutilações e mortes. Vidas que seriam perdidas para sempre<br />
em meio a rios de sangue, na irônica tentativa de, com tanta<br />
carnificina, tornar o mundo em que viviam num lugar um<br />
pouco mais seguro. A guerra! A única dúvida que pairava no<br />
ar era sobre as proporções que ela tomaria, bem como, os<br />
efeitos que ela teria sobre to<strong>dos</strong> os povos. Cada nação, cada<br />
raça, cada rei ou governante, ansiava por um combate breve,<br />
de pequenas proporções, de poucas perdas, com uma vitória<br />
rápida e esmagadora sobre os selvagens orcs.<br />
Lasthion, preparava-se para deixar Nouvelle Lyon e<br />
partir com sua legião. Seu objetivo era dividir sua legião em<br />
duas frentes de batalha, uma protegendo a entrada da Senda<br />
da Morte e outra impedindo a subida pela trilha da montanha<br />
que dava acesso à passagem alta. Pelos seus cálculos,<br />
conseguiriam chegar aos dois pontos que davam passagem<br />
para o lado leste da Thalide antes <strong>dos</strong> orcs, assim, impedindo<br />
que eles atravessassem as montanhas, até que Tarlhion viesse<br />
com sua legião para cercá-los. A estratégia parecia ser bem<br />
simples, e se tudo saísse como esperavam os orcs seriam<br />
massacra<strong>dos</strong> ainda do lado oeste das montanhas, entre as<br />
legiões de Lasthion e Tarlhion. Sequer seria necessária a ajuda<br />
<strong>dos</strong> elfos negros, ou <strong>dos</strong> anões de Guthin, que chegariam<br />
certamente com grande atraso, já que viriam pelo caminho das<br />
Colinas Íngremes.<br />
Etiènne ouviu duas suaves batidas em sua porta.<br />
— Entre!<br />
A porta abriu-se, vagarosamente, e ele pôde ver Peter,<br />
que hesitou ao ver como Etiènne estava abatido.<br />
— Lasthion vai partir e deseja saber se não quer<br />
acompanhá-lo nesta campanha.<br />
— Onde está Grassac? — perguntou Etiènne. — Não o<br />
vejo desde ontem. Por onde ele anda?<br />
263
— Passou a noite no acampamento <strong>dos</strong> elfos, desejoso de<br />
conhecer mais a respeito daquele povo.<br />
— Você irá com eles, Peter?<br />
— Faz muito tempo que não participo de uma guerra.<br />
Gostaria de ir, mas temo pela segurança de nossa cidade.<br />
Penso que pode não ser uma boa idéia deixar a cidade.<br />
— Eu nunca estive numa guerra. — afirmou Etiènne.<br />
— É o lugar mais triste em que um homem pode estar.<br />
Contudo, é onde os homens experimentam as sensações mais<br />
vibrantes de sua existência. A garganta seca, o coração<br />
explodindo em batidas ensandecidas, o turbilhão de vozes e<br />
gritos no empurra-empurra que exala o cheiro da morte. A<br />
expectativa de derrubar seus oponentes antes que estes<br />
possam acabar com sua vida. É uma visita ao inferno, sem<br />
garantia de retorno.<br />
— Por que é preciso que existam? Dizemo-nos cultos e<br />
civiliza<strong>dos</strong>, mas há séculos resolvemos nossos problemas<br />
através do fio da espada. Gerações e gerações de devastação,<br />
com milhares de mortes, para quê? Sempre a desculpa e a<br />
esperança de que dias melhores surgirão, mas o passado nos<br />
mostra que, a única certeza de que dispomos é que teremos<br />
mais e mais guerras.<br />
— Penso que as guerras somente acabarão quando não<br />
houver mais nenhum homem vivo. — disse Peter.<br />
— Infelizmente, sou obrigado a concordar com você, Pit.<br />
Não obstante, devemos manter a esperança sempre viva,<br />
porque sem ela, apenas o caos dominará o mundo.<br />
Peter continuou parado, aguardando a decisão de<br />
Etiènne, que hesitava. Sabia que o amigo estava muito abalado<br />
com o que acontecera na Grande Caverna, desanimado,<br />
taciturno.<br />
— Leon gostaria muito que você o acompanhasse na<br />
campanha. — resolveu animar Etiènne.<br />
Etiènne finalmente venceu seu solitário ostracismo e<br />
dignou-se a olhar para Peter — Diga-lhes que iremos!<br />
264
Peter demonstrou-se contente com a decisão, e após<br />
pedir licença, retornou a Lasthion e Leon com a resposta de<br />
Etiènne.<br />
A desilusão de não poder rever o irmão cedera ao desejo<br />
de reencontrar seu amigo anão. Agora, este desejo se fez mais<br />
forte novamente e ele ainda não conseguira esquecer Sindazel,<br />
a quem iria procurar até os confins de <strong>Virgo</strong>.<br />
265
E<br />
CAPÍTULO XX<br />
Explode a guerra<br />
nquanto Grassac retornava para a cidade, passando em<br />
meio a dezenas de tendas élficas, percebeu um murmúrio<br />
entre os elfos que olhavam para o alto. Curioso, também virou<br />
seu rosto para o céu, na direção em que os elfos olhavam e viu<br />
com espanto, a aproximação de um enorme dragão, que<br />
segun<strong>dos</strong> depois, passou num vôo rasante sob suas cabeças<br />
elevando-se novamente a certa altura para logo em seguida<br />
descer numa clareira, nas proximidades de onde estavam.<br />
Vários elfos correram na direção do local onde o dragão<br />
havia pousado. Grassac, morrendo de curiosidade, os seguiu<br />
apressado. Foram se desvencilhando de arbustos e folhagens<br />
ansiosos para chegarem até o dragão, mas a floresta naquele<br />
ponto era muito cerrada, o que dificultou bastante o avanço<br />
<strong>dos</strong> elfos e de Grassac.<br />
Desorienta<strong>dos</strong> e quase perdi<strong>dos</strong>, os elfos resolveram<br />
retornar ao acampamento, temendo sobretudo, uma<br />
repreensão de seus capitães ou mesmo do próprio Lasthion.<br />
Grassac insistiu, e continuou desbravando a densa mata<br />
à procura do dragão. Ao ouvir uma respiração tão forte como<br />
se fossem curtas rajadas de vento, acautelou-se, e continuou<br />
em direção a este som, silenciosamente, esgueirando-se de<br />
árvore em árvore.<br />
Chegou até a clareira e ficou abismado com o tamanho<br />
da criatura, que agora jazia no solo como se estivesse morta,
com uma das asas esticadas como se fosse a lona de uma<br />
gigantesca tenda de campanha. A criatura continuava<br />
ofegante, com sua terrível respiração.<br />
Grassac ficou imóvel, temendo ser descoberto pelo<br />
magnífico dragão branco. Analisava cada detalhe daquela<br />
fantástica criatura, quando percebeu um estranho movimento<br />
sobre o corpo do animal e avistou, estarrecido, Michel em<br />
companhia daquele ser angelical, que imediatamente tomara<br />
por Sindazel, considerando as maçantes e insistentes<br />
descrições que Etiènne sempre fizera de sua amada.<br />
Continuou quieto e escondido, apenas observando tudo<br />
o que se passava. Ainda temia o belo, mas ao mesmo tempo<br />
pavoroso, gigantesco lagarto de asas à sua frente. Michel e<br />
Sindazel terminaram de descer através da asa de<br />
Laicrunallian. Ao que parecia, estavam se despedindo,<br />
segurando as mãos um do outro. Então, Grassac testemunhou,<br />
enojado, Michel abraçar Sindazel e beijá-la apaixonadamente<br />
durante segun<strong>dos</strong> que lhe pareceram uma eternidade.<br />
Indignado, irrompeu pela clareira assustando aos dois, e<br />
também ao dragão, que levantou-se com uma agilidade<br />
incrível, grunhindo de maneira atemorizante para Grassac,<br />
que por sua vez, também se assustara chegando a cair para<br />
trás ao ver as afiadas presas da besta-fera.<br />
— Grassac!? — espantou-se Michel, que<br />
automaticamente ergueu seu braço, advertindo Laicrunallian<br />
para não avançar sobre seu amigo. — Não tenha medo, Lai, eu<br />
o conheço, é de minha cidade.<br />
Sindazel procurou ficar mais próxima do dragão,<br />
preparando-se para usar uma de suas magias caso fosse<br />
necessário intervir por sua própria segurança.<br />
— O que está fazendo aqui? Quem são to<strong>dos</strong> aqueles ao<br />
redor da cidade?<br />
— São elfos de Eluannar! — disse Grassac, sisudo.<br />
267
— Então este é o exército do qual a rainha Aurien havia<br />
nos falado — confirmou Michel, olhando de soslaio para<br />
Sindazel.<br />
— Não vai apresentar sua companheira?<br />
Laicrunallian olhava curioso para Grassac. Seus olhos de<br />
víbora, vermelhos como dois rubis, o encaravam tentando<br />
desvendar o enigma daquelas indagações perceptivelmente<br />
cheias de ódio, a seus olhos de dragão.<br />
— Ah, sim — constrangeu-se Michel. Olhou para<br />
Sindazel e esticou-lhe um braço, pedindo para que ela se<br />
aproximasse um pouco mais. Sindazel caminhou até Michel e<br />
segurou-lhe a mão. — Esta é Sindazel, uma vangi a quem<br />
devo ser eternamente grato por ter me conduzido de volta,<br />
quando minha esperança de regressar a <strong>Virgo</strong> havia morrido.<br />
A vangi exibiu todo o esplendor de seu sorriso. Grassac<br />
jamais havia conhecido tamanha beleza em sua vida. Não<br />
obstante, ainda permanecia fiel a Etiènne, e o que ele<br />
presenciara ali era tido como uma traição infame. Não podia<br />
aceitar que Michel traísse seu próprio irmão, e não perderia a<br />
oportunidade de lhe dirigir ásperas palavras.<br />
— Vejo que está se esmerando para agradecê-la! —<br />
Grassac fez uma pequena reverência em direção a bela vangi.<br />
— Sou Grassac, amigo fiel de Etiènne Montbard, às suas<br />
ordens.<br />
O simples pronunciar do nome de Etiènne fez com que<br />
Sindazel automaticamente soltasse a mão de Michel e recuasse<br />
um passo. Então, resolveu usar de sua magia para perscrutar a<br />
mente de Grassac. Através dele, viu o ódio e a repugnância<br />
que haviam nascido naquele homem diante daquele<br />
desafortunado momento. Pôde perceber também o motivo<br />
daqueles sentimentos em Grassac, e sentiu o quanto Etiènne<br />
estivera enamorado por ela todo este tempo, mantendo-a em<br />
seu coração.<br />
268
— Você fala demais! — exasperou-se Michel. — Espero<br />
que seja mais discreto ao regressarmos para Nouvelle Lyon, a<br />
fim de evitar um mal desnecessário.<br />
Os olhos de Grassac encheram-se de amargura e<br />
estavam mareja<strong>dos</strong> de ódio por Michel. — O mal, deve ser<br />
evitado antes de mais nada, a partir de nossas atitudes, e não<br />
na esperança de que outros o evitem por nós. — Grassac, fez<br />
uma mesura para Sindazel, mas não tornou a encarar o<br />
dragão, virou-se e voltou apressado para a brecha da clareira<br />
de onde surgira.<br />
Michel correu até Grassac e segurou-o pelo braço,<br />
forçando-o para que se virasse e o encarasse.<br />
— Estou avisando, Grassac, não quero nenhum<br />
comentário a respeito de Sindazel com Etiènne. Se fizer isso...<br />
— Se eu fizer isso, o que vai acontecer!? — gritou<br />
Grassac encolerizado. — Está me ameaçando? Acha que tenho<br />
medo de você? Ninguém manda em minha vida, mas você,<br />
não passa de um escravo de seus me<strong>dos</strong>, um choramingão que<br />
sempre tirou todas as oportunidades de seu irmão mais novo e<br />
agora rouba-lhe também sua amada. Você é um porco sujo,<br />
Michel! — Grassac mantinha os punhos cerra<strong>dos</strong>, a um fio de<br />
descontrolar-se e agredir Michel, a quem estava odiando<br />
profundamente.<br />
— Vá para o inferno! — repeliu Michel. — Meu recado<br />
está dado, e sinceramente, seria melhor que você fosse embora<br />
de Nouvelle Lyon, pois já estou farto de ter o dono da verdade<br />
como uma sombra incômoda!<br />
— Você acabará sozinho, seu monte de estrume!<br />
Os dois afastaram-se em direções opostas, mas ambos<br />
sabiam que o assunto não estaria encerrado. Michel, conhecia<br />
bem a amizade de Grassac por seu irmão e já se preparava<br />
para enfrentar uma grande dificuldade com Etiènne.<br />
Sindazel, por sua vez, sofreu calada sem demonstrar a<br />
Michel que a revelação através de Grassac havia novamente<br />
despertado seu desejo por Etiènne.<br />
269
Veio despedir-se de Sindazel, mas ela negou-lhe um<br />
novo beijo. Levou sua delicada mão angelical até sua fronte,<br />
beijando-lhe a testa, desejando sorte e prometendo que estaria<br />
sempre por perto. Michel, entendeu que estavam se separando<br />
naquele momento por um longo período, porque certamente<br />
ela precisaria voltar com Laicrunallian para Vangilla.<br />
— Espero que tenha um bom regresso, meu amor.<br />
Aguardarei com grande ansiedade seu retorno, agora que já<br />
sabe onde é meu lar.<br />
Sindazel aquiesceu, mas sem dizer qualquer palavra,<br />
subiu lentamente sobre a asa de Laicrunallian e partiu amuada<br />
com o que acontecera.<br />
<br />
Lasthion, estava muito atrasado, calculara errado os<br />
tempos de locomoção e os Trumadai e Baraidai haviam<br />
iniciado a subida das Montanhas Negras um dia antes a<br />
grande velocidade. Os primeiros orcs já despontavam no cimo<br />
da montanha e encontravam os milhares de goblins já<br />
posiciona<strong>dos</strong> para iniciar a invasão da Floresta Dourada.<br />
O encontro entre os orcs e goblins aconteceu como de<br />
costume, com muita algazarra, provocação e pilhéria de uns<br />
para com os outros. Não tardou para que vários focos de<br />
desentendimentos surgissem, e por um momento, parecia que<br />
a guerra seria travada ali mesmo, apenas entre eles.<br />
Entretanto, um novo grupo de orcs despontou no cimo da<br />
montanha, mais ferozes do que os outros, grunhindo<br />
violentamente. Mostravam seus dentes afia<strong>dos</strong>, pontiagu<strong>dos</strong><br />
como punhais, intimidando aos demais que estavam à sua<br />
frente. <strong>Era</strong>m os grão-orcs da tribo Trumadai. Alguns orcs<br />
comuns traziam os estandartes horripilantes <strong>dos</strong> Trumadai,<br />
que não passavam de peles de animais ressecadas em<br />
farrapos, tingidas de um vermelho escuro, rubro como o<br />
sangue, exibindo o desenho de um tridente. Provavelmente, os<br />
orcs dessa tribo tenham se inspirado nas armas usadas pelos<br />
270
druzos, seus vizinhos que habitam as profundezas da região<br />
vulcânica.<br />
Os orcs eram naturalmente indisciplina<strong>dos</strong> entre si, mas<br />
na presença de seus líderes tribais, conseguiam encontrar um<br />
certo grau de obediência, mas ainda assim, era preciso que os<br />
mais intoleráveis fossem decapita<strong>dos</strong> por seus líderes diante<br />
<strong>dos</strong> demais para que a ordem pudesse ser restabelecida, ao<br />
menos até o próximo distúrbio.<br />
É quase impossível controlar uma grande quantidade de<br />
orcs amontoa<strong>dos</strong> que, possuindo uma natureza extremamente<br />
violenta, simplesmente não conseguem conter sua sede por<br />
destruição. Não obstante, naquele dia, os orcs estavam mais<br />
controla<strong>dos</strong> e concentra<strong>dos</strong> do que habitualmente são<br />
encontra<strong>dos</strong> em situação semelhante, diante de seus líderes<br />
tribais e às vésperas de um grande combate. Os focos de<br />
desentendimento foram inevitáveis, claro, mas considerando a<br />
enorme concentração de orcs e goblins reuni<strong>dos</strong> naquele<br />
lugar, foram irrisórios se compara<strong>dos</strong> a encontros bem<br />
menores ocorri<strong>dos</strong> em outras épocas, em que seus líderes<br />
sofreram para manter o controle.<br />
Havia, alguma coisa estranha pairando sobre aquela<br />
enorme massa negra de violência e pavor, que os fazia<br />
respeitar sobrenaturalmente os grão-orcs. Havia, algum poder<br />
sinistro controlando aquelas criaturas. De todas as suposições<br />
levantadas no Colóquio de Plarionthil, as mais temidas eram a<br />
de que os dragões negros poderiam estar controlando os orcs,<br />
ou então, que os Zaraidai houvessem se insurgido<br />
ocultamente, iniciando uma nova onda de terror em <strong>Virgo</strong>,<br />
como fizeram na Guerra da Agonia. Uma coisa era certa,<br />
aquela organização não era tão simples como muitos<br />
supuseram, e certamente, não estava sendo liderada apenas<br />
por orcs.<br />
Um <strong>dos</strong> grão-orcs subiu numa rocha, elevando-se mais<br />
que os outros, e observando a vastidão de elmos enegreci<strong>dos</strong><br />
de seus solda<strong>dos</strong>, iniciou o discurso a seu exército:<br />
271
— Povo das trevas! Goblins, orcs Turmadai e Baraidai.<br />
Hoje iniciaremos uma nova era de terror, que nos levará à<br />
glória do Caos, sob o comando de nosso novo mestre!<br />
Os orcs urravam de alegria batendo seus escu<strong>dos</strong> ovais,<br />
lanças e espadas, sedentos pela carnificina que não tardaria.<br />
Sabiam que naquele mesmo dia começariam uma grande<br />
guerra. O ar impregnado e o fedor produzido pelos goblins,<br />
agora era multiplicado pela aglomeração <strong>dos</strong> orcs, que<br />
urinavam em to<strong>dos</strong> os lugares, em suas próprias pernas ou até<br />
mesmo nas pernas de seus companheiros, fazendo pilhérias e<br />
achando tudo divertido.<br />
— O mestre afirma que a terra pertence aos ímpios,<br />
porque ela veio do Caos e no Caos deve permanecer! Ele nos<br />
ajudará a trazer de volta o Caos! — o grão-orc Trumadai, a<br />
despeito da barulheira ensurdecedora que aquelas criaturas<br />
faziam, urrando, grunhindo e chocando seus escu<strong>dos</strong> uns com<br />
os outros, bradava com ênfase, as incitações proferidas por seu<br />
mestre. Os pavorosos solda<strong>dos</strong> pareciam enlouqueci<strong>dos</strong>.<br />
Os chefes tribais reuniram-se rapidamente com os<br />
líderes <strong>dos</strong> goblins e acertaram os detalhes do ataque.<br />
Decidiram que os goblins se precipitariam para a Floresta<br />
Dourada numa primeira onda de ataque, enquanto os orcs<br />
aguardariam do cimo da montanha, e somente avançariam<br />
quando identificassem a presença de outras forças que não<br />
fossem a <strong>dos</strong> elfos negros. Isso não foi recebido com muita<br />
alegria pelos goblins, mas não foram loucos de se oporem aos<br />
violentos orcs. Os Trumadai aguardariam pela presença <strong>dos</strong><br />
arqueiros Baraidai antes de descerem para o combate, pois<br />
eles seriam responsáveis por assestar suas setas de fogo em<br />
direção à região onde ficavam os elfos negros, incendiando<br />
suas moradas, fazendo com que se precipitassem<br />
obrigatoriamente em direção aos goblins. Isso era tudo o que<br />
precisavam saber os goblins.<br />
Contraria<strong>dos</strong>, e temendo por sua sorte na guerra, os<br />
pequenos goblins partiram desconfia<strong>dos</strong>. Não obstante à<br />
272
inquietação que inicialmente os dominava, o rufar <strong>dos</strong><br />
tambores de guerra <strong>dos</strong> orcs e seus pavorosos grunhi<strong>dos</strong>, logo<br />
incendiaram-lhes o espírito, fazendo com que se precipitassem<br />
montanha abaixo em direção à Floresta Dourada com imensa<br />
ferocidade, empunhando suas afiadas espadas curtas,<br />
tropeçando uns nos outros como uma violenta avalanche<br />
incontrolável.<br />
Durante a correria desenfreada, alguns goblins<br />
acabaram sendo empurra<strong>dos</strong> ou escorregaram nas escarpas<br />
rochosas, espatifando-se no fundo do precipício sem que isso<br />
pudesse lhes distrair a atenção ou conter sua fúria<br />
ensandecida.<br />
Mal os goblins chegaram à Floresta Dourada, tomaram a<br />
direção que os levaria à Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros,<br />
auxilia<strong>dos</strong> pelo mapa que lhes fora entregue por Idour, o<br />
traidor de sua própria raça. Embrenharam-se na floresta e<br />
avançaram sem descanso com seus gritos enlouqueci<strong>dos</strong>,<br />
numa corrida alucinada ao encontro da carnificina que<br />
almejavam com um desejo maligno.<br />
Os últimos goblins ainda desciam do cimo da montanha<br />
quando um novo grupo de orcs selvagens chegou pelo lado<br />
oeste do topo da montanha Imediatamente, procuraram Idour<br />
com grande agitação e avisaram-lhe sobre a aproximação do<br />
exército <strong>dos</strong> elfos ao local onde era possível a subida da<br />
montanha. Com grande entusiasmo, Idour ergueu seu rosto e<br />
aspirou o ar profundamente. Sua face negra e altiva brilhou<br />
sob a luz quente e avermelhada que emanava <strong>dos</strong> cristais,<br />
enquanto contemplava o maravilhoso céu de <strong>Virgo</strong>, ouvindo o<br />
som tenebroso <strong>dos</strong> orcs ao seu redor.<br />
— Tudo caminha como planejado — comentou. —<br />
Esmagaremos os elfos de Eluannar na Senda da Morte e<br />
arrasaremos a Floresta Dourada.<br />
<br />
273
Quando Lasthion chegou ao local de subida das<br />
Montanhas Negras para posicionar sua legião à passagem do<br />
caminho que levava ao lado leste de <strong>Virgo</strong>, encontrou o local<br />
mergulhado em uma imundície descomunal, com<br />
excrementos de orcs por toda a parte, carregando o ar com seu<br />
fétido cheiro, tornando-o pesado e insuportável. Os elfos se<br />
enojaram ao ver aquilo, e procuraram evitar aquele cheiro<br />
horrendo ao máximo possível, cobrindo seus narizes com as<br />
mãos, com uma expressão de amargura e desgosto. Ao ver que<br />
os orcs haviam se antecipado e utilizado o caminho que<br />
transpunha a montanha por cima, através das trilhas, Lasthion<br />
não teve outra opção a não ser retornar com sua legião para<br />
utilizar a passagem através da Senda da Morte, um sombrio e<br />
terrível desfiladeiro que levava à Floresta Dourada, uma<br />
estreita fenda que dividia as Montanhas Negras em duas<br />
partes. Esta passagem era praticamente evitada por to<strong>dos</strong> os<br />
mercadores e até mesmo por grandes tropas. Apesar de ser o<br />
mais rápido caminho entre as Montanhas Negras que ligava<br />
os la<strong>dos</strong> oeste e leste de <strong>Virgo</strong>, era o caminho menos utilizado<br />
por to<strong>dos</strong>, tamanha era sua fama de desgraçar a vida de<br />
muitos que por ali ousaram passar.<br />
A legião de Lasthion entrou na Senda da Morte entre as<br />
Montanhas Negras no início daquela tarde, prosseguindo<br />
lentamente e com atenção redobrada, pois aquele local era<br />
famoso pelo expressivo número de emboscadas ocorridas.<br />
Não obstante, Lasthion conduzia uma legião inteira, e não<br />
uma pequena caravana errante; isso o fazia acreditar que os<br />
orcs não seriam tão ousa<strong>dos</strong> em tentar confrontá-lo<br />
abertamente naquele imenso corredor traiçoeiro. Além disso,<br />
em breve sua retaguarda estaria protegida, uma vez que a<br />
legião de Tarlhion, que viria em vários galeões através do Mar<br />
Caudaloso, a esta altura já deveria estar desembarcando nas<br />
praias próximas ao Pântano Hibrittatus.<br />
A tropa caminhava em silêncio olhando para as enormes<br />
rochas negras que a cercava. Às vezes, alguns olhavam para o<br />
274
alto, procurando erguer suas cabeças para enxergar além do<br />
cimo das montanhas, como que procurando tomar fôlego para<br />
sentirem-se mais alivia<strong>dos</strong>. A passagem em alguns pontos<br />
tornava-se muito estreita, permitindo que apenas quatro<br />
pudessem passar ombro a ombro, mas na maior parte do<br />
sinuoso percurso, a distância entre as rochas das duas<br />
montanhas era em média de quarenta escu<strong>dos</strong> coloca<strong>dos</strong> lado<br />
a lado. Ainda assim, esse espaço não era confortável para uma<br />
batalha.<br />
Quando Lasthion havia percorrido dois terços do<br />
caminho, aconteceu o inimaginável. Ao terminar de perfazer<br />
uma suave curva para a direita e chegar a uma longa reta, os<br />
elfos avistaram ao longe o exército de orcs <strong>dos</strong> Trumadai,<br />
encerrando a passagem.<br />
Lasthion, não poderia continuar a menos que<br />
enfrentasse os orcs que, ao avistarem sua legião, iniciaram<br />
enfureci<strong>dos</strong> uma tremenda barulheira misturando seus<br />
grunhi<strong>dos</strong> com o som metálico de seus escu<strong>dos</strong> sendo<br />
golpea<strong>dos</strong> impie<strong>dos</strong>amente por suas próprias lâminas com<br />
extrema violência, na intenção de intimidar os elfos.<br />
O local estreito não permitia manobras difíceis, mas<br />
Lasthion ordenou que os arqueiros se posicionassem<br />
apressadamente à frente da legião, o que Peter comentou com<br />
Grassac e Etiènne ser uma imprudência. Explicou que, caso os<br />
orcs arremetessem contra eles, não haveria tempo hábil para<br />
reposicionar os lanceiros à frente, e assim, os arqueiros<br />
acabariam por ser massacra<strong>dos</strong> no tumulto que se seguiria.<br />
Contudo, Lasthion, com fervor e confiando na ignorância <strong>dos</strong><br />
orcs, manteve sua ordem. Um regimento inteiro de arqueiros<br />
veio com dificuldade para a dianteira em meio a empurrões e<br />
imprecações de seus próprios companheiros.<br />
— Não temam, os orcs são estúpi<strong>dos</strong> e quando os<br />
atingirmos com nossa arqueria, correrão para a floresta onde<br />
os perseguiremos e os massacraremos, um por um, até o<br />
último!<br />
275
Os homens se entreolharam. Como não estavam<br />
acostuma<strong>dos</strong> a combater orcs, tranqüilizaram-se com as<br />
palavras confiantes de Lasthion.<br />
Enquanto os arqueiros de Eluannar ainda se<br />
posicionavam para aguardar a ordem de iniciar seus disparos,<br />
do outro lado do caminho surgiu um cavaleiro em meio aos<br />
orcs, montado num reluzente cavalo negro. Segurando uma<br />
comprida lança que trazia em sua ponta as insígnias élficas de<br />
Idour, o cavaleiro fez com que seu cavalo empinasse. Lasthion<br />
empalideceu de imediato, incrédulo, observando imóvel<br />
aquela cena. Os músculos de sua face se tensionaram e uma<br />
nuvem de medo a cobriu por um momento.<br />
Os homens perceberam a mudança súbita no confiante<br />
espírito de Lasthion e tornaram a ficar preocupa<strong>dos</strong>.<br />
— O que se passa? — perguntou Etiènne, que jamais<br />
havia participado de uma guerra em sua vida e estava muito<br />
apreensivo com tudo. Sentia o medo querendo dominá-lo a<br />
cada passo que dera durante a caminhada, mas ali, diante <strong>dos</strong><br />
monstros pavorosos, havia finalmente cedido ao medo pleno.<br />
— Fomos traí<strong>dos</strong>! — disse Lasthion, ainda pálido como a<br />
luz do luar. — A batalha será muito mais difícil do que eu<br />
imaginava.<br />
— Meu Deus, então vamos retroceder, vamos recuar<br />
para a planície. — cogitou Etiènne.<br />
— Se recuarmos agora morreremos rapidamente. Por<br />
conseguinte, estaremos deixando nossos irmãos elfos negros à<br />
mercê da selvageria louca desses monstros lidera<strong>dos</strong> por<br />
Idour, esse traidor miserável.<br />
— Mas como lutaremos dentro desta ratoeira!?<br />
— Etiènne tem razão, não podemos arriscar uma batalha<br />
nessas condições! — afirmou Michel, com os demais homens<br />
concordando.<br />
— Não posso vos obrigar a permanecer neste combate<br />
sangrento, que é inevitável. Vocês ainda não conhecem sobre a<br />
vida na Thalide e não posso exigir que o vosso sangue seja<br />
276
derramado tão prematuramente. Peço-lhes que regressem<br />
para Nouvelle Lyon e aguardem nosso retorno.<br />
— Em absoluto! — exclamou Leon Troujard. — Não o<br />
deixarei neste momento, Lasthion. Os elfos muito ajudaram ao<br />
povo de Nouvelle Amiens e agora usarei minha lâmina ao<br />
vosso lado contra essas criaturas desprezíveis!<br />
— E eu o acompanharei, para vingar meu senhor! —<br />
completou Alain Dumas, franzindo a testa.<br />
Lasthion fez uma mesura em agradecimento a Leon e<br />
Alain, voltando seus olhos para Etiènne logo em seguida.<br />
Michel, ficou consternado, pois sempre fora uma espécie<br />
de líder, mas agora via-se relegado a segundo plano, perdendo<br />
lugar até para seu irmão mais novo. Grassac, percebendo a<br />
consternação de Michel, apressou-se a dizer: — Seguirei<br />
Etiènne, seja qual for sua decisão!<br />
Michel e Grassac cruzaram os olhares, faiscando de ódio<br />
um pelo outro. Peter, percebendo a animosidade entre os dois<br />
amigos, também opinou, procurando acalmar os ânimos.<br />
— Devemos ficar to<strong>dos</strong> juntos. Penso que cada um de<br />
nós tem muito a contribuir nesta guerra, e também, muito a<br />
aprender com ela, caso possamos sair vivos dessa situação.<br />
Michel baixou a cabeça, enterrando seu queixo no peito,<br />
visivelmente abalado e contrariado. Por fim, ergueu o rosto<br />
em direção ao irmão mais novo que estava muito apreensivo<br />
diante da iminente batalha e o exortou para que to<strong>dos</strong><br />
ficassem uni<strong>dos</strong> em torno <strong>dos</strong> elfos.<br />
— Fiquemos juntos! — disse Etiènne, não com tanta<br />
firmeza quanto desejava, mas convenceu.<br />
Passado o desagradável momento entre os homens que<br />
ali se encontravam, respeitado por Lasthion com enorme<br />
paciência, o elfo então conclamou Leon a acompanhá-lo até<br />
diante do cavaleiro inimigo, que aguardava a meia distância<br />
entre os dois exércitos, para estabelecer suas exigências, que<br />
possivelmente seria a retirada da legião élfica e a não<br />
intromissão em assuntos pertinentes ao leste da Thalide. Leon,<br />
277
aproximou sua montaria de Lasthion e os dois cavalgaram<br />
juntos na direção de Idour. Todavia, quando se aproximaram<br />
e estavam a menos de dez metros de distância de Idour, o elfo<br />
negro fez meia volta com sua montaria e cavalgou com pressa<br />
para perto do horrendo exército de orcs que liderava.<br />
Lasthion interrompeu sua cavalgada, baixando a cabeça.<br />
Neste momento, soube que não haveriam exigências.<br />
— Não haverá nenhuma exigência ou acordo.<br />
Leon, percebendo a situação, limitou-se a apressar<br />
Lasthion a fazer o mesmo que Idour, voltar apressadamente<br />
para perto de sua legião a fim de organizar os seus para o<br />
confronto inevitável.<br />
<br />
Não houve qualquer oportunidade para que Lasthion<br />
conseguisse organizar sua legião. Os orcs avançaram<br />
enlouqueci<strong>dos</strong> para cima <strong>dos</strong> elfos com gritos horripilantes e<br />
grunhi<strong>dos</strong> ferozes, atemorizando principalmente, Etiènne.<br />
Os arqueiros elfos que haviam se posicionado à frente,<br />
disparavam suas setas praticamente em linha reta, em direção<br />
àquelas monstruosas criaturas que cambaleavam e<br />
despencavam aos montes enquanto muitos mais passavam<br />
por sobre os cadáveres <strong>dos</strong> que jaziam à sua frente, numa<br />
onda sem fim de terror, até alcançarem os arqueiros e se<br />
lançarem violentamente contra eles, brandindo suas lâminas<br />
curvas.<br />
Os arqueiros elfos resistiram bravamente substituindo<br />
seus arcos imediatamente por suas lâminas, quando os orcs<br />
estavam a apenas três ou quatro passos de os alcançarem. O<br />
barulho seco <strong>dos</strong> corpos se chocando, os gritos de horror e<br />
também de incentivos ao morticínio, mistura<strong>dos</strong> ao clangor<br />
<strong>dos</strong> escu<strong>dos</strong> e tilintar das lâminas, davam o tom para a canção<br />
da morte. Cadáveres começavam a se amontoar no<br />
desfiladeiro, inteiros ou em pedaços, com vísceras<br />
misturando-se a membros corta<strong>dos</strong> transformando o terreno<br />
278
de batalha numa espécie de chão movediço e escorregadio,<br />
enquanto a luta feroz acontecia sobre um verdadeiro rio de<br />
sangue.<br />
Lasthion e Leon tiveram grande dificuldade para chegar<br />
até o segundo regimento, que se agitava aguardando o<br />
momento em que entrariam em combate, mas quando esse<br />
momento chegasse, significaria dizer que to<strong>dos</strong> os arqueiros à<br />
sua frente teriam tombado, o que de fato, aconteceria.<br />
Após os primeiros vinte minutos, que pareciam ter<br />
durado horas, Lasthion já se posicionava junto ao regimento<br />
que estava logo atrás <strong>dos</strong> arqueiros, que continuavam a<br />
tombar em grande velocidade, por mais experientes e<br />
aguerri<strong>dos</strong> que fossem. Os orcs vinham aos montes e com uma<br />
ferocidade incrível, sem se importar com suas vidas, impondo<br />
uma pressão impie<strong>dos</strong>a sobre os elfos de Eluannar.<br />
Lasthion, estava impaciente, empunhando sua espada e<br />
caminhando no pouco espaço que a tropa abriu para ele.<br />
Bradava para que to<strong>dos</strong> se mantivessem firmes em suas<br />
posições e que forçassem seus companheiros para frente,<br />
impedindo que os orcs se impusessem fazendo-os recuar pela<br />
pressão.<br />
Não demorou muito para que os orcs alcançassem o<br />
segundo regimento da legião de Lasthion e sua própria espada<br />
já estava rasgando a carne daqueles monstros terríveis com<br />
uma violência quase que incontrolável. Mas Lasthion sabia<br />
que precisava manter-se consciente de tudo o que se passava,<br />
e a cada dois ou três orcs que matava, procurava se afastar,<br />
dando lugar imediatamente a seus fiéis lanceiros Asgadhir e<br />
Althinor, recuando entre suas fileiras para tentar coordenar a<br />
defesa ao lado de Lothanir.<br />
Mas os orcs não paravam de surgir diante <strong>dos</strong> elfos,<br />
mesmo que a um alto preço, pois cada elfo cobrava caro por<br />
sua vida eliminando entre três e cinco orcs, antes de tombar.<br />
Uma agitação enorme vinha <strong>dos</strong> regimentos<br />
posiciona<strong>dos</strong> na retaguarda. Os homens, à exceção de Leon<br />
279
que continuava lutando bravamente junto a Lasthion e<br />
Lothanir na frente de batalha, estavam juntos no terceiro<br />
regimento com Althalion, que logo seria alcançado pela<br />
violenta massa assassina <strong>dos</strong> orcs. Mas antes mesmo que isso<br />
viesse a acontecer, Alain Dumas surgiu diante de Leon e<br />
Lasthion, em meio a toda aquela loucura, dizendo que a legião<br />
estava sendo atacada pela retaguarda.<br />
— Estamos cerca<strong>dos</strong>, seus solda<strong>dos</strong> dizem que orcs nos<br />
atacam pela entrada da senda, seremos massacra<strong>dos</strong>!<br />
Alain estava visivelmente abalado, mas não apenas ele,<br />
pois o murmúrio em meio ao tilintar do aço era geral em torno<br />
desta informação. A legião de Lasthion estava cercada dentro<br />
da Senda da Morte. Leon estava meio curvado, como se seu<br />
braço pesasse trinta quilos, tamanho era seu cansaço de tanto<br />
brandir a espada. Lasthion, por sua vez, estava tão cansado<br />
quanto seu amigo humano, mas não podia permitir que a<br />
tropa ficasse abalada com a novidade e precisava incendiar o<br />
coração de seus solda<strong>dos</strong>.<br />
— Tarlhion deve estar chegando com sua legião. Nós<br />
vamos resistir até que ele chegue para nossa salvação! —<br />
bradou Lasthion, como num último esforço de fôlego para<br />
tentar fazer com que o escutassem, mas o som de sua voz fora<br />
facilmente abafado pela barulheira insana da canção da morte.<br />
Apenas alguns puderam ouvir sua voz que se<br />
incendiaram de esperança, e domina<strong>dos</strong> pelo ódio e repulsa<br />
que sentiam pelos orcs, precipitaram-se sobre eles com<br />
enorme fúria, mas logo estariam to<strong>dos</strong> mortos. Alain, Leon,<br />
Lothanir e Lasthion recuaram mais um pouco para juntaremse<br />
aos outros no terceiro regimento, que começava a organizar<br />
a próxima camada de defesa contra o avanço <strong>dos</strong> orcs. Mas a<br />
esta altura, o avanço ocorria tanto à sua frente, quanto à sua<br />
retaguarda. Sua legião era pressionada e esmagada a cada<br />
minuto. Sua única esperança, era Tarlhion.<br />
O que Lasthion não sabia, é que neste exato momento,<br />
outra tribo de orcs, os Maradai, aguardava em grande número<br />
280
o desembarque de Tarlhion próximo ao Pântano Hibrittatus.<br />
Nenhum espião ou informante fora capaz de descobrir que os<br />
Maradai também estavam coaduna<strong>dos</strong> com os Baraidai e<br />
Trumadai. A aliança entre os orcs era muito maior do que<br />
imaginavam, sob a liderança de Idour, o elfo negro que tinha<br />
informações estratégicas precisas sobre as táticas militares <strong>dos</strong><br />
elfos nobres. O próprio Idour determinara o posicionamento<br />
<strong>dos</strong> Maradai, pois sabia que Eluannar mandaria uma legião<br />
pelo Mar Caudaloso para juntar-se a outra que viria por terra.<br />
Idour era o melhor informado entre to<strong>dos</strong> os exércitos e o mais<br />
perspicaz general já conhecido pelos elfos.<br />
A ociosidade <strong>dos</strong> séculos e a falta de visão <strong>dos</strong> elfos para<br />
o perigo crescente, custaria muito caro, conforme a rainha<br />
Aurien professara no Colóquio de Plarionthil. Muitas vidas<br />
poderiam ter sido poupadas se os povos élficos não se<br />
tivessem permitido mergulhar no ostracismo de décadas,<br />
enclausura<strong>dos</strong> em seus suntuosos reinos.<br />
A legião de Lasthion continuava resistindo à investida<br />
traiçoeira <strong>dos</strong> orcs Baraidai; entrementes, não poderiam ser<br />
salvos por Tarlhion e nem mesmo pelo exército de Bakhin,<br />
ainda estacionado à orla leste da Floresta Dourada. O combate<br />
feroz já durava quase quatro horas, com centenas de mortos<br />
em ambas as fileiras, numa luta como nunca houvera antes.<br />
Ao contrário das batalhas em campo aberto, a contenda num<br />
desfiladeiro estreito como aquela senda que cortava as<br />
Montanhas Negras era muito mais difícil e demorada porque<br />
não havia como romper as fileiras inimigas que se obrigavam<br />
a ficar coesas e compactas entre as paredes rochosas.<br />
O terceiro regimento se preparava para o combate, e<br />
com eles, estavam posiciona<strong>dos</strong> os homens e o próprio<br />
Lasthion, logo à frente ao lado de seu filho Althalion. Já<br />
podiam sentir o movimento frenético <strong>dos</strong> elfos que estavam<br />
mais adiante; em poucos minutos, os primeiros orcs surgiram<br />
furiosos entre os remanescentes elfos do que um dia fora o<br />
segundo regimento da legião de Lasthion.<br />
281
Com um grito de combate, Lasthion incentivou seus<br />
solda<strong>dos</strong> a avançarem contra os orcs. Com eles, avançaram<br />
também os homens, sentindo suas gargantas secas e ao mesmo<br />
tempo amargas diante da carnificina que os aguardava.<br />
Etiènne, brandindo dois pequenos macha<strong>dos</strong> de batalha,<br />
logo precipitou-se ensandecido contra as monstruosas<br />
criaturas, desferindo violentos golpes certeiros sobre os elmos<br />
de seus adversários, rachando-os e observando aquele sangue<br />
escuro aspergir sobre to<strong>dos</strong> à sua volta. Não tardou para que<br />
ele próprio estivesse banhado em sangue amigo e inimigo.<br />
To<strong>dos</strong> lutaram bravamente, subjugando muitos orcs que<br />
se aventuraram a investir contra aquela elite de bravos<br />
guerreiros, verdadeiros campeões. Contudo, a fadiga<br />
começava a tomar conta deles. Peter, o arqueiro bretão, que se<br />
posicionara numa saliente rocha a cerca de dois metros de<br />
altura, pouco atrás de seus companheiros, já havia esgotado<br />
sua aljava, e agora, de espada em punho, esperava que os orcs<br />
se aproximassem um pouco mais para unir-se a seus<br />
companheiros.<br />
Pela primeira vez no dia os orcs temeram seus<br />
oponentes. Ao ver que não conseguiam mais avançar,<br />
arrefeceram sua fúria, até então supostamente incontrolável,<br />
hesitando em continuar, mas não paravam de bater seus<br />
escu<strong>dos</strong> e brandir suas lâminas curvas, ainda ameaçando seus<br />
inimigos. Um verdadeiro mar de cadáveres e sangue separava<br />
agora as duas hostes inimigas, cerca de trinta metros uma da<br />
outra.<br />
Michel, exausto e suarento, apoiando seu braço sobre o<br />
ombro de seu irmão Etiènne, mal conseguindo respirar,<br />
pretendia falar algo, mas vendo o rosto cansado de seu irmão<br />
mais novo tomado por sangue e suor, limitou-se a dar uma<br />
pequena piscadela, procurando ficar novamente ereto,<br />
recompondo-se.<br />
Então, percebeu que Grassac, posicionado um pouco<br />
mais distante ao longo da fileira, fitava-o com uma gana<br />
282
impossível de se ocultar, como que reprovando a atitude de<br />
falsidade que Michel adotara em relação a seu irmão Etiènne.<br />
Leon, alheio à animosidade existente entre Grassac e<br />
Michel, aproximou-se do primeiro e, muito ofegante, pediu<br />
auxílio para remover alguns cadáveres que estavam<br />
amonta<strong>dos</strong> diante deles. Banhado em sangue e suor, Grassac<br />
cuspiu em direção a Michel, mostrando seu total desprezo<br />
pelo caráter do irmão de seu amigo Etiènne.<br />
<strong>Homens</strong> e elfos se entregaram à penosa faina de resgatar<br />
os corpos de seus companheiros, enquanto ao som das<br />
trompas de retirada os orcs retornavam à Floresta Dourada,<br />
onde a luta contra os elfos negros continuava acirrada.<br />
Ainda que centenas de orcs tenham sucumbido na<br />
emboscada que Idour havia preparado para os elfos, na Senda<br />
da Morte, não foram menores as baixas do lado de Lasthion,<br />
que se amargurava e se condenava em ter lançado sua legião<br />
àquela desafortunada campanha.<br />
Logo, a noite os cobriu com seu manto de trevas, e uma<br />
vez recuperado os corpos de seus amigos, os Elfos<br />
providenciaram a uma certa distância de onde estavam, uma<br />
enorme pira para queimar a carcaça de inúmeros orcs que<br />
jaziam espalha<strong>dos</strong> pela passagem.<br />
Lasthion, depois que recebera a notícia de que os orcs à<br />
sua retaguarda também haviam cessado as investidas, mas<br />
continuavam cerrando-lhes a passagem de regresso, ordenou<br />
que a vigilância fosse redobrada, temendo que os orcs<br />
pudessem voltar a atacá-los durante a madrugada.<br />
Apesar <strong>dos</strong> temores e da agitação <strong>dos</strong> elfos, nada<br />
aconteceu durante aquela madrugada quente, sufocada pelo<br />
fedor nauseante da carne queimada <strong>dos</strong> orcs mortos, que<br />
espalhou-se pelo ar ao som <strong>dos</strong> tambores agourentos <strong>dos</strong><br />
Baraidai, que não cessaram um segundo sequer durante toda a<br />
noite.<br />
283
N<br />
CAPÍTULO XXI<br />
Demonstração de poder<br />
a vasta Planície de Ouro, mais precisamente na orla leste<br />
da Floresta Dourada, continuavam posiciona<strong>dos</strong> os anões<br />
de Bakkin, aguardando impacientes, uma decisão de seu rei.<br />
O dia começava a clarear lentamente. Aos poucos, o rei<br />
anão podia observar com maior clareza a densa névoa que<br />
emergia da floresta, como que estivesse clamando por ajuda<br />
em sua agonia, ainda ardendo em chamas nos diversos pontos<br />
onde os goblins batalharam contra os elfos negros durante<br />
toda a madrugada.<br />
A batalha sucedera sob a incessante chuva de setas<br />
flamejantes atiradas pelos orcs da tribo Baraidai, do cimo das<br />
Montanhas Negras, que não tiveram qualquer preocupação<br />
com os goblins e não economizaram óleo, fogo ou setas,<br />
disparando a esmo penhasco a baixo, em direção à Floresta<br />
Dourada, condenando à morte tanto seus alia<strong>dos</strong> goblins<br />
quanto os elfos negros.<br />
Bakhin contemplava o cenário medonho provocado por<br />
aquela névoa que subia por toda parte, quando foi informado<br />
por seus batedores de que os goblins ainda estavam lutando<br />
contra os elfos negros em uma batalha desigual, pois os orcs<br />
da tribo Baraidai haviam se unido a eles no final da<br />
madrugada para a luta corpo-a-corpo. Com um profundo<br />
suspiro, depois de certa relutância e sofrendo o peso da
insatisfação e ansiedade de suas tropas, finalmente resolvera<br />
intervir.<br />
— É chegada a hora! É chegada a hora em que os elfos<br />
lembrar-se-ão do dia em que os anões de Bakkin salvaram<br />
seus irmãos negros das garras horrendas <strong>dos</strong> orcs! Avante<br />
guerreiros de Bakkin! Pelos túmulos de nossos ancestrais,<br />
avante! Mostremos a essas criaturas asquerosas o valor de<br />
nossa raça!<br />
E ao ouvir essas palavras, os anões de Bakkin seguiram<br />
seu rei adentrando a Floresta Dourada sem hesitar, toma<strong>dos</strong><br />
por uma fúria acumulada em séculos contra os goblins e os<br />
orcs.<br />
À medida que avançavam e encontravam focos de<br />
goblins dispersos do corpo principal de suas hostes, os anões<br />
os massacravam sem sofrer qualquer baixa, aumentando seu<br />
moral e confiança, gradativamente.<br />
Brandindo seus enormes macha<strong>dos</strong> de batalha de duas<br />
achas, varriam tudo o que encontravam pela frente, e a<br />
despeito dessa guerra ser travada dentro de uma floresta, o<br />
que não lhes permitia utilizar seus carros de guerra, os anões<br />
estavam avançando com uma velocidade razoável, cobrindo<br />
vários trechos mapea<strong>dos</strong> por Bakhin como sendo os mais<br />
importantes pontos possivelmente ocupa<strong>dos</strong> por seus<br />
inimigos.<br />
Mas Bakhin não sabia que o líder daquela contenda era<br />
Idour, o engenhoso elfo negro que traiu sua própria raça em<br />
troca de poder e riqueza, e ainda não sabia a dimensão exata<br />
do que estava enfrentando, acreditando estar diante apenas de<br />
um amontoado e desordenado grupo de goblins e orcs. Não<br />
foram apenas os elfos <strong>dos</strong> grandes reinos que estiveram cegos<br />
durante os últimos anos, mas também os anões, que pagariam<br />
caro por essa negligência da vigilância.<br />
Idour, mergulhado em sua ambição, arquitetara seus<br />
planos há muito tempo, tendo preparado tudo<br />
meticulosamente, antevendo os possíveis passos que seus<br />
285
inimigos poderiam dar. Sabia que estaria pondo em risco sua<br />
própria vida naquele macabro jogo de combates, se fosse<br />
derrotado. Não obstante, procurou garantir sua vitória não só<br />
com sua astúcia e argúcia, mas também com suas habilidades<br />
militares. Preparou uma surpresa para a batalha decisiva, que<br />
seria usada naquele mesmo dia que parecia estar destinado à<br />
glória <strong>dos</strong> valorosos anões guerreiros de Bakkin.<br />
<br />
Os elfos de Eluannar, sob o comando de Lasthion,<br />
voltaram a marchar pela Senda da Morte rumo à Floresta<br />
Dourada, tão logo perceberam que o dia estava preste a se<br />
anunciar, após uma terrível noite insone. Desviando <strong>dos</strong> restos<br />
mortais <strong>dos</strong> orcs que não haviam sido crema<strong>dos</strong>, e ainda<br />
recuperando alguns cadáveres de elfos que não haviam sido<br />
identifica<strong>dos</strong> durante a noite, lentamente foram se<br />
aproximando da floresta, ainda sob o terrível som <strong>dos</strong><br />
tambores orcs, que aumentava à mesma proporção em que se<br />
aproximavam do final da senda.<br />
Durante a caminhada, Michel aproveitou a distração de<br />
seu irmão, que seguia ao lado de Peter e Leon, para<br />
aproximar-se de Grassac com o intuito de sondar o que este<br />
teria conversado com seu irmão, já que ficaram juntos toda a<br />
madrugada, afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> demais companheiros.<br />
— Espero que a loucura da sangrenta batalha não tenha<br />
lhe obliterado o juízo durante a madrugada, e não tenhas<br />
cedido à tentação de revelar a meu pobre irmão o que se<br />
passou entre eu e Sindazel. — disse Michel, em tom sarcástico.<br />
— Procure satisfazer sua curiosidade diretamente com<br />
seu irmão, e lhe imploro, pela Santa Virgem, que não volte a<br />
dirigir-me a palavra, pois não terei misericórdia de ti, cão, se<br />
insistires em me importunar com tua falsidade e arrogância.<br />
— retrucou Grassac, mostrando que ficara extremamente<br />
irritado com a inoportuna abordagem.<br />
286
Temendo a atitude de Grassac e, ao mesmo tempo,<br />
desejando irritá-lo, Michel insistiu numa tentativa<br />
desafortunada de convencê-lo a manter silêncio sobre o<br />
ocorrido, dizendo:<br />
— Espero, já que mencionaste o santo nome da Santa<br />
Virgem, que, como filho de um Cavaleiro Templário, tenhas<br />
melhor discernimento em relação à sua amizade com meu<br />
irmão do que vosso pai possa ter mostrado com outros de sua<br />
pervertida ordem.<br />
Neste momento, Grassac perdeu o controle e partiu<br />
violentamente para cima de Michel. Os dois rolaram pelo solo<br />
ainda umedecido, uma lama formada de terra e sangue da<br />
batalha do dia anterior, entre socos e pontapés, como se<br />
fossem dois arruaceiros comumente encontra<strong>dos</strong> em tabernas<br />
de baixa categoria.<br />
Espanta<strong>dos</strong>, sem entender o que se passava, os elfos<br />
correram para apartar a briga, afastando-os em meio a uma<br />
incessante troca de impropérios. Logo, to<strong>dos</strong> os que seguiam à<br />
frente da legião se aproximaram do tumulto ocasionado pelos<br />
dois, para averiguarem o que estava acontecendo.<br />
Etiènne, incrédulo, ao ver seu irmão e seu grande amigo<br />
como protagonistas daquela degradante cena diante de to<strong>dos</strong><br />
aqueles elfos e de seus outros companheiros homens,<br />
esbravejou furioso, repreendendo-os por uma atitude tão<br />
vergonhosa num momento como aqueles, onde centenas de<br />
elfos haviam sacrificado suas vidas na batalha. Sem saber o<br />
exato motivo da briga <strong>dos</strong> dois, descarregando todo seu<br />
nervosismo e tensão acumula<strong>dos</strong> devido à situação em que se<br />
encontravam, Etiènne explodiu em lágrimas após a repreensão<br />
que submetera a seu irmão e a Grassac, coisa que jamais<br />
pensou fazer algum dia.<br />
Os elfos o olharam com compaixão, entendendo que<br />
Etiènne estava tomado pelo desespero, como já haviam<br />
presenciado muitas vezes em seus próprios companheiros,<br />
quando de suas primeiras experiências em batalhas.<br />
287
Leon aproximou-se de Etiènne, que caíra de joelhos e<br />
tinha seu rosto mergulhado em ambas as mãos, e o abraçou,<br />
ajudando-o a se erguer para logo em seguida afastá-lo do<br />
tumulto.<br />
Grassac obteve o apoio de Peter e de seu antigo amigo,<br />
Alain Dumas, enquanto Michel, totalmente envergonhado<br />
pelo acontecido, teve o apoio alentador de Althinor, que<br />
cuida<strong>dos</strong>amente procurou estancar o sangue que lhe escorria<br />
pelo rosto, minando de um pequeno corte em seu supercílio.<br />
Lasthion chamou Lothanir e outros dois elfos que<br />
estavam próximos, ordenando-lhes que cuidassem de Michel<br />
durante o resto do percurso que ainda faltava cruzar para<br />
alcançarem a floresta. Caminhou até Grassac para certificar-se<br />
de que estava tudo em ordem. Constatou com alívio que<br />
estava bem, a não ser por algumas escoriações que não eram<br />
tão sérias e não poderiam comprometer sua destreza com a<br />
espada durante os próximos combates.<br />
Permitindo-se ao silêncio, a fim de respeitar os<br />
prováveis problemas que os homens tinham entre si, Lasthion<br />
não comentou o incidente, e em tom firme, ordenou que a<br />
marcha continuasse.<br />
Durante o resto do trajeto, Michel e Grassac trocaram<br />
olhares incendia<strong>dos</strong> várias vezes, mas mantiveram-se à<br />
distância um do outro. Etiènne, ainda envergonhado, não só<br />
pela atitude de seus companheiros mas principalmente pela<br />
sua explosão de nervos diante da legião élfica, seguiu ao lado<br />
de Peter evitando tanto Michel quanto Grassac.<br />
Quando finalmente a legião de Lasthion avistou entre as<br />
brumas, mais uma vez, os primeiros arbustos da floresta, o<br />
som <strong>dos</strong> tambores orcs pareciam se afastar. Toma<strong>dos</strong> pelo<br />
desejo de sair logo daquele desfiladeiro fatal, to<strong>dos</strong><br />
aumentaram o ritmo da marcha para que atingissem logo a<br />
floresta.<br />
À medida em que deixavam o desfiladeiro, foram<br />
tomando o rumo da direção sul da floresta, caminho que os<br />
288
levaria diretamente para a Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros,<br />
onde esperavam encontrar abrigo para os feri<strong>dos</strong>, além de<br />
resistir até a chegada <strong>dos</strong> reforços da legião comandada por<br />
Tarlhion.<br />
Caminhavam apressa<strong>dos</strong> utilizando uma velha trilha<br />
conhecida por Lasthion, mas volta e meia eram aborda<strong>dos</strong> por<br />
pequenas hostes de goblins afoitos que, a despeito de os<br />
atrasarem, eram facilmente elimina<strong>dos</strong> pelos experientes<br />
guerreiros elfos.<br />
Já haviam percorrido cerca de duas milhas floresta<br />
adentro, em direção ao sul, quando ouviram um estrondo<br />
ensurdecedor e sentiram a terra tremer violentamente sob seus<br />
pés. Gritos desespera<strong>dos</strong> podiam ser ouvi<strong>dos</strong> provenientes de<br />
várias direções, deixando a to<strong>dos</strong> ainda mais aterroriza<strong>dos</strong>. O<br />
que teria provocado aquilo? Indagavam-se uns aos outros<br />
quando outro estrondo, ainda mais perto, fez o chão<br />
estremecer outra vez, violentamente.<br />
Percebendo que alguma arma misteriosa estava<br />
provocando aquele pavoroso estrago, Lasthion ordenou a seus<br />
solda<strong>dos</strong> que redobrassem a velocidade. Em pouco tempo, em<br />
meio a outros estron<strong>dos</strong> misteriosos, logo estavam entregues a<br />
uma correria desenfreada que só fora contida quando um<br />
agudo assobio, seguido de um estrondo imensurável, os<br />
mergulhou em desgraça. Finalmente, tiveram a infelicidade de<br />
descobrir a que se deviam aqueles estron<strong>dos</strong> que faziam o<br />
chão tremer, pois bem no meio das fileiras da legião de<br />
Lasthion, um pesado projétil flamejante dizimou quase<br />
metade do sexto regimento.<br />
A imagem causada pela poderosa arma misteriosa era<br />
aterradora, em meio às chamas que logo começaram a devorar<br />
tudo e to<strong>dos</strong> que estavam próximos a um raio de<br />
aproximadamente vinte metros do ponto de impacto. <strong>Era</strong><br />
possível ver vários elfos correndo e gritando como<br />
verdadeiras labaredas vivas, logo jazendo carboniza<strong>dos</strong> no<br />
solo. Vários que não foram atingi<strong>dos</strong> pelo fogo ficaram<br />
289
aturdi<strong>dos</strong> pelo impacto, alguns com as mãos cobrindo suas<br />
orelhas pontudas que sangravam com o rompimento de seus<br />
tímpanos.<br />
O fogo e o desespero dividiu a legião de Lasthion.<br />
Muitos se afastaram do corpo principal da tropa,<br />
embrenhando-se floresta a dentro, agonia<strong>dos</strong>, em várias<br />
direções diferentes tentando sair daquele inferno.<br />
Em meio àquela confusão, Etiènne chamou a atenção de<br />
Lasthion para um grupo de elfos negros, to<strong>dos</strong> vestindo<br />
armaduras de batalha, que avançavam em sua direção pelo<br />
lado esquerdo, onde os homens estavam reuni<strong>dos</strong>. O grupo se<br />
aproximou deles com muita agitação, mas não demonstraram<br />
qualquer sinal de ameaça, a despeito de estarem trajando suas<br />
reluzentes couraças de combate.<br />
Logo, Lasthion reconheceu Udour, o elfo negro que<br />
esteve no Colóquio de Plarionthil e que respondeu por seu<br />
povo naquela ocasião. Udour, por sua vez, também<br />
reconheceu o comandante da combalida legião e se aproximou<br />
para trocar informações, anunciando sua total desolação com<br />
o rumo <strong>dos</strong> acontecimentos.<br />
A situação era ainda pior do que se podia esperar.<br />
Udour contou a Lasthion e seus companheiros que a Cidade<br />
Oculta <strong>dos</strong> elfos negros fora violentamente massacrada. A<br />
resistência havia durado por toda a madrugada, mas<br />
sucumbiu logo aos primeiros raios de luz daquele dia, que se<br />
anunciou como o crepúsculo <strong>dos</strong> elfos negros.<br />
Quase a ponto de desistir de tudo, naquele momento de<br />
loucura em que um general se vê diante da derrota iminente,<br />
Lasthion, encarando as faces quase sem vida de seus solda<strong>dos</strong>,<br />
notando os semblantes suplicantes por algum milagre que os<br />
pudesse salvar, conteve-se. Não podia permitir-se abater tão<br />
profundamente a ponto de entregar-se à desolação, porque<br />
estavam a seu lado os valorosos homens que tão bravamente<br />
resistiram na Senda da Morte.<br />
290
O general elfo olhou a desolação ao seu redor, e pousou<br />
seu olhar sobre os olhos de Etiènne, que segurava seus<br />
pequenos macha<strong>dos</strong> de batalha, um em cada mão,<br />
aguardando com grande ansiedade uma ordem que pudesse<br />
executar. Estava desfigurado, exausto, cheio de olheiras e com<br />
a face sombria, da mesma forma como ficam aqueles que<br />
esperam a morte.<br />
Percebendo que Lasthion estava perdendo o controle da<br />
situação, que por sua vez era realmente desesperadora, Leon<br />
caminhou até seu amigo elfo e o indagou secretamente sobre o<br />
destino a que estariam fada<strong>dos</strong>, uma vez que estavam<br />
praticamente sem lugar para onde ir. Não restavam muitas<br />
opções, teriam que voltar para a Senda da Morte e tentar<br />
retornar ao lado oeste de <strong>Virgo</strong>, ou tentar uma derradeira<br />
investida contra a cidade tombada <strong>dos</strong> elfos negros, na<br />
esperança de, uma vez lá, resistirem até a chegada da legião<br />
de Tarlhion.<br />
Mal houve tempo para que deliberassem sobre a melhor<br />
decisão a tomar, porque tão logo Leon se aproximou de<br />
Lasthion, vários gritos de alerta puderam ser ouvi<strong>dos</strong> de to<strong>dos</strong><br />
os la<strong>dos</strong>. Os orcs surgiram e se lançaram impie<strong>dos</strong>amente<br />
sobre elfos e homens, que atônitos, se defenderam como<br />
puderam.<br />
Mas esta última investida <strong>dos</strong> ferozes orcs, foi a mais<br />
cruel e a que causou as mais importantes baixas na legião de<br />
Lasthion e seus alia<strong>dos</strong> homens. Surgiam aos montes de to<strong>dos</strong><br />
os la<strong>dos</strong>, obrigando o grupo a se dividir para que pudessem<br />
defender os flancos direito e esquerdo, bem como a<br />
retaguarda. Em pouco tempo, tornaram-se pequenos grupos<br />
isola<strong>dos</strong> e cerca<strong>dos</strong>, afasta<strong>dos</strong> uns <strong>dos</strong> outros, tentando<br />
rechaçar o furioso ataque das hostes malignas.<br />
Na defesa do flanco esquerdo, Etiènne tombara ferido<br />
mortalmente com três setas cravadas em seu peito, e duas em<br />
sua perna esquerda. Peter, que tentou defendê-lo tanto quanto<br />
pôde, teve seu braço direito decepado por um terrível orc que<br />
291
causava pavor a to<strong>dos</strong> que combatia, brandindo sua<br />
imponente cimitarra com toda fúria que lhe era possível. Mas<br />
antes de tombar, conseguiu cravar um punhal no coração do<br />
orc, ao mesmo tempo que o cavaleiro Lothanir traspassou o<br />
ventre da criatura hedionda, que ao sucumbir, acabou caindo<br />
por sobre sua última vítima.<br />
Em outro ponto mais distante, os que haviam se dirigido<br />
para defender a retaguarda também haviam sido dizima<strong>dos</strong>.<br />
Os dois únicos sobreviventes foram salvos graças à inusitada<br />
retirada <strong>dos</strong> orcs, que pareciam ter percebido que logo<br />
estariam cerca<strong>dos</strong> pelas chamas que vinham devorando a<br />
floresta. Entre estes sobreviventes, estava Grassac, que jazia<br />
sobre uma poça de seu próprio sangue com uma ferida muito<br />
feia em sua perna, sem a mínima condição de caminhar.<br />
Arrastou-se até um arbusto e lá ficou, estirado, ofegante,<br />
sofrendo e orando para que alguém o pudesse resgatar. Olhou<br />
ao redor e constatou que os vários elfos que o acompanhavam<br />
na defesa da retaguarda jaziam dilacera<strong>dos</strong> por toda parte.<br />
Não conseguindo mais ver qualquer movimentação adiante,<br />
supôs que a contenda chegara ao fim, sem entretanto acreditar<br />
que poderia sair vivo daquele lugar.<br />
O outro sobrevivente, que havia lutado no grupo da<br />
retaguarda, era Michel Montbard, que encontrou Grassac<br />
solitário em meio às folhagens do arbusto. O destino colocava<br />
em suas mãos a vida daquele que guardava um segredo que<br />
poderia destruir sua amizade com seu irmão Etiènne.<br />
Ao se aproximar de Grassac, os dois se entreolharam<br />
longamente, antes que Michel quebrasse o gelo. Sem qualquer<br />
compaixão pelo amigo moribundo, dirigiu-se a ele de forma<br />
arrogante, desprezando sua sorte.<br />
— Então, aí está o valente Grassac, caído sem o habitual<br />
ar de arrogância que lhe é peculiar. — Grassac gemeu e<br />
contorcendo-se de dor, procurou sentar-se, apoiando-se sobre<br />
as mãos. Seu olhar estava incendiado de ódio por Michel,<br />
292
ainda incrédulo que Deus o tivesse abandonado naquelas<br />
circunstâncias.<br />
— Seu cão, maldito! — vociferou Grassac, indignado —<br />
Faz logo o que teu perverso coração manda, traidor.<br />
Aproveita-te enquanto estou ferido e desarmado, pois só<br />
assim poderá silenciar-me! Se eu sair vivo desta guerra, direi a<br />
Etiènne o canalha que és!<br />
— É uma grande tentação, — respondeu Michel — mas<br />
tenho uma dívida com você, por ter me tirado da masmorra<br />
do castelo de Martin Lacroix, em Amiens, de forma que meu<br />
senso de generosidade obriga-me a não me aproveitar da<br />
situação.<br />
— Pois então, que me ajude a sair deste inferno!<br />
— De forma alguma! O fato de não lhe tirar a vida não<br />
quer dizer que o ajudarei a sair daqui. Deixo-te a tua própria<br />
sorte, e que você consiga se livrar <strong>dos</strong> orcs de acordo com tua<br />
bravura soberba. Mas creio que os orcs não venham mais te<br />
importunar, pois logo a floresta inteira estará ardendo em<br />
chamas. Adeus, filho de templário, espero que São Pedro o<br />
receba com alegria quando entrares no Céu! — Após dizer<br />
essas palavras, Michel deixou Grassac para trás, entregue a<br />
sua própria sorte, e partiu ouvindo as imprecações de seu<br />
antigo companheiro.<br />
<br />
Michel ainda teve de caminhar cerca de meia milha a<br />
procura <strong>dos</strong> outros até conseguir encontrar o grupo. Quando<br />
finalmente se aproximou, foi tomado por um incrível<br />
desespero ao constatar que muitos haviam perecido na<br />
sangrenta batalha. Notou que Leon estava agachado ao lado<br />
do corpo de Lasthion, tentando consolar Althalion, seu filho,<br />
que pranteava inconsolável a perda do pai. To<strong>dos</strong> estavam<br />
inconforma<strong>dos</strong> com a queda do valoroso comandante elfo.<br />
Os fiéis lanceiros Asgadhir e Althinor, depois de muita<br />
resistência na tentativa de defender seu líder, também haviam<br />
293
tombado a seu lado. Michel, ficou apreensivo com o estado de<br />
seu irmão. Olhou ao redor tentando localizá-lo, mas foi<br />
Lothanir, quem o avistou primeiro e veio lhe informar sobre a<br />
sorte de seu irmão.<br />
Lothanir explicou que no calor da batalha, haviam se<br />
separado do grupo principal para defender o flanco esquerdo,<br />
mas que infelizmente muitos haviam tombado, como o<br />
próprio Udour, irmão do traidor Idour, e muitos de seus<br />
companheiros elfos, tanto da legião do falecido Lasthion<br />
quanto <strong>dos</strong> combatentes elfos negros. Após uma breve pausa,<br />
revelou que Peter e Etiènne estavam gravemente feri<strong>dos</strong>, o<br />
primeiro com um braço amputado, e o outro, seu irmão,<br />
provavelmente não teria chances de sobreviver se não fosse<br />
tratado o mais rapidamente possível.<br />
Michel ficou transtornado naquele momento. Sua<br />
apreensão não pôde ser aplacada nem mesmo ao ver que o<br />
corpo de Etiènne estava sob os cuida<strong>dos</strong> emergenciais de dois<br />
elfos, curandeiros oficiais da legião. Então, lembrou-se de<br />
Sindazel, e intimamente, entre a dor de ter traído seu irmão e a<br />
louca paixão que sentia pela Vangi, desejou que ela pudesse<br />
estar ali para curar seu amado irmão com seus poderes<br />
magníficos.<br />
Percebendo a presença de Michel, Alain aproximou-se e<br />
indagou sobre o destino de seu amigo Grassac e <strong>dos</strong> outros<br />
que haviam lutado na retaguarda. Uma sombra passou pela<br />
mente de Michel, como que lembrando da atitude covarde que<br />
tivera com seu antigo companheiro. Mas Michel, com um<br />
cinismo teatral, alegou que teria visto Grassac morto, e que as<br />
chamas já estavam consumindo tudo onde haviam perdido a<br />
luta na tentativa de rechaçar os orcs. Alain, ainda tentou<br />
insistir com Michel de que gostaria de voltar ao local onde o<br />
amigo perecera, para certificar-se de que ele realmente estava<br />
morto, mas ele o dissuadiu desta idéia.<br />
Michel, garantindo que ele próprio tinha verificado o<br />
corpo de Grassac e que não havia mais nada o que fazer pelos<br />
294
mortos, alegou que tinham que ser breves em ajudar aos que<br />
ainda estavam vivos e feri<strong>dos</strong>, entre estes, seu próprio irmão,<br />
Etiènne.<br />
Vasculharam apenas as proximidades, sem, entretanto,<br />
se distanciarem até o local onde Grassac havia tombado. A<br />
desolação era enorme, e tão logo organizaram o que restou da<br />
devastação, seguiram em direção à Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos<br />
negros, ao comando de Althalion que automaticamente<br />
assumiu o comando no lugar de seu pai. Althalion resolvera<br />
adotar a estratégia de seu pai, que consistia em retomar a<br />
cidade <strong>dos</strong> elfos negros para que pudessem se defender e<br />
resistir até que chegassem reforços da legião de Tarlhion ou<br />
<strong>dos</strong> guerreiros anões lidera<strong>dos</strong> pelo rei de Bakkin.<br />
Assim como seu pai, Althalion, também não imaginava<br />
que tais reforços jamais chegariam.<br />
<br />
Tarlhion, naquela mesma manhã enquanto Lasthion era<br />
atacado dentro da floresta, ao desembarcar nas proximidades<br />
do Pântano Hibrittatus, fora emboscado pelos orcs Maradai e<br />
tivera muitas baixas em suas fileiras. Não conseguindo<br />
atravessar as Montanhas Negras, ficara acampado diante da<br />
pequena planície que se estendia diante da Senda da Morte,<br />
aguardando que alguns batedores lhe pudessem trazer<br />
informações mais precisas sobre o que se passava do outro<br />
lado.<br />
Tendo sua legião combalida e sem o retorno <strong>dos</strong><br />
batedores que haviam sido captura<strong>dos</strong> e elimina<strong>dos</strong> pelos orcs<br />
que ainda se encontravam próximos à entrada da Senda da<br />
Morte pelo lado oeste, Tarlhion não teve outra alternativa e foi<br />
obrigado a manter posição defensiva.<br />
O rei Bakhin, por sua vez, após ter comandado uma<br />
investida magnífica diante <strong>dos</strong> goblins e <strong>dos</strong> Baraidai floresta<br />
adentro, fora surpreendido pela poderosa arma de Idour e<br />
teve muitas baixas em seu exército, ficando finalmente cercado<br />
295
ao norte da Floresta Dourada, sem condições sequer de ajudar<br />
a si próprio, esperando também a ajuda de reforços,<br />
maldizendo a si próprio por não ter dado ouvi<strong>dos</strong> a seu primo<br />
Guthin, que o havia alertado sobre as proporções daquela<br />
maldita guerra.<br />
Os da<strong>dos</strong> da sorte estavam lança<strong>dos</strong>, mas o cenário que<br />
se desenhava era desesperador tanto para os que vieram<br />
socorrer os elfos negros, quanto para os que vieram defender a<br />
Floresta Dourada, dependendo se a causa era comentada por<br />
elfos ou por anões.<br />
<br />
Nem sempre o destino que nos aguarda é exatamente o<br />
mesmo que acreditamos ser e, a despeito de nossos mais<br />
desesperadores momentos, uma mudança pode ocorrer a<br />
qualquer instante, alterando por completo o estado das coisas<br />
que se apresentam diante de nossas vidas. Assim foi, que<br />
naquele início de tarde quando, diante da orla leste da Floresta<br />
Dourada chegou o imponente exército de Sombrorn, com mais<br />
de quarenta mil guerreiros elfos formando um verdadeiro<br />
oceano de combatentes tomando grande extensão da Planície<br />
de Ouro.<br />
Ao contrário das legiões de Eluannar e do limitado<br />
exército de Bakkin, as legiões de Sombrorn vieram preparadas<br />
para uma guerra de grandes proporções, trazendo centenas de<br />
equipamentos e instrumentos de guerra, além de todo suporte<br />
logístico necessário a uma campanha de longa duração. O<br />
exército de Aurien, não viera para uma batalha, mas sim, para<br />
uma verdadeira guerra. Viera disposto a perseguir seus<br />
inimigos até os confins da Thalide.<br />
Idour, sabendo que um grande número de orcs havia<br />
perecido nos dois primeiros dias de combate, estava cônscio<br />
de que a aliança <strong>dos</strong> exércitos orcs sob seu comando não seria<br />
suficiente para combater as legiões de Sombrorn; além disso,<br />
tendo sua mortífera engenhosidade se danificado pelo<br />
296
excessivo uso, ordenou retirada total, recuando através das<br />
Colinas Íngremes, buscando refúgio nos longínquos redutos<br />
<strong>dos</strong> orcs Trumadai ao norte de <strong>Virgo</strong>, na região vulcânica.<br />
Encontrando poucos focos de resistência dentro do que<br />
restava da Floresta Dourada, as primeiras incursões realizadas<br />
pelos solda<strong>dos</strong> de Sombrorn foram suficientes para conseguir<br />
resgatar Bakhin e o que restara de seus três contingentes, bem<br />
como, Althalion e os sobreviventes que estavam com ele.<br />
Os maiores obstáculos para os guerreiros de Sombrorn<br />
foram os incêndios e as densas nuvens de fumaça que cobriam<br />
todo o lugar, mas no final, conseguiram resgatar a grande<br />
maioria <strong>dos</strong> feri<strong>dos</strong> que estavam perdi<strong>dos</strong> ou encurrala<strong>dos</strong>.<br />
Havia uma quantidade incomensurável de mortos<br />
carboniza<strong>dos</strong> dentro da floresta, e para tristeza <strong>dos</strong> elfos,<br />
praticamente toda a raça de elfos negros havia sucumbido<br />
naquele dia fatídico.<br />
Nem to<strong>dos</strong> os corpos puderam ser resgata<strong>dos</strong>, mas no<br />
final daquela tarde, haveria um sepultamento simbólico pelos<br />
que pereceram em defesa <strong>dos</strong> elfos negros. Um monumento<br />
aos mortos seria erguido diante da dizimada Floresta Dourada<br />
para que to<strong>dos</strong>, ao passar por aquele local, pudessem se<br />
lembrar <strong>dos</strong> irmãos, filhos e companheiros que ali ofereceram<br />
suas vidas em combate pela proteção de sua raça.<br />
297
Q<br />
CAPÍTULO XXII<br />
Nas mãos do destino<br />
uando a noite caiu trazendo sua escuridão, a dor e o<br />
sofrimento estavam presentes entre os sobreviventes que<br />
haviam sido salvos pelo exército de Sombrorn. O pequeno<br />
grupo de Althalion estava reunido ao redor de uma fogueira,<br />
conversando acerca da desdita que os acompanhara nos dois<br />
dias de batalha que calaram para sempre, muitos de seus<br />
destemi<strong>dos</strong> companheiros.<br />
Passariam aquela noite sob a proteção de seus<br />
salvadores, recebendo to<strong>dos</strong> os cuida<strong>dos</strong> que pudessem ser<br />
observa<strong>dos</strong> pelos atenciosos elfos de Sombrorn. A despeito do<br />
que diziam sobre aquele reino, eram na verdade os elfos mais<br />
dedica<strong>dos</strong> para com seus iguais, sem jamais reclamar pela<br />
devolução <strong>dos</strong> favores que sempre prestavam aos elfos <strong>dos</strong><br />
demais quatro reinos de <strong>Virgo</strong>.<br />
Entre os elfos de Eluannar, porém, um pouco mais<br />
afasta<strong>dos</strong> da fogueira principal onde estava Althalion,<br />
estavam Michel, Leon e Alain, apreensivos com a situação de<br />
Etiènne, que naquele exato momento estava na tenda <strong>dos</strong><br />
curandeiros de Sombrorn. Aguardavam impacientes o retorno<br />
de algum elfo que pudesse lhes esclarecer sobre o que se<br />
passava com Etiènne, e principalmente, sobre o seu estado de<br />
saúde. Sabiam que era deveras grave, mas queriam acreditar<br />
que ele pudesse ser salvo pelas mãos daquela raça tão exótica.<br />
298
Aguardaram quase três horas até que aparecesse algum<br />
elfo para lhes trazer notícias. Olharam aflitos, quando<br />
perceberam que um <strong>dos</strong> elfos curandeiros de Eluannar que<br />
havia socorrido Etiènne na floresta após sua queda, vinha em<br />
direção a eles. Michel se antecipou ao elfo. Tomado pela<br />
ansiedade e ávido por notícias de seu irmão, agarrou-o pelos<br />
braços e olhou profundamente em seus olhos.<br />
— Nobre amigo, por favor, me diga, como está meu<br />
irmão? Ele está bem? Poderá ser salvo?<br />
O elfo, com um olhar impassível, demonstrou uma<br />
ligeira insatisfação com a forma insolente pela qual fora<br />
abordado por Michel; não obstante, compreendia sua aflição e<br />
logo suavizou seu rigoroso olhar, deixando de franzir o cenho.<br />
— Caríssimos, infelizmente, as notícias que vos trago<br />
não são as melhores. — o elfo fez uma pequena pausa,<br />
olhando para os outros que estavam ao lado de Michel. — O<br />
estado de vosso amigo é gravíssimo, e nada podemos fazer<br />
com o material que temos disponível, tampouco, com o<br />
material que os elfos de Sombrorn trouxeram consigo. Será<br />
preciso que o vosso amigo siga para o reino de Sombrorn, que<br />
é o mais próximo de to<strong>dos</strong> os nossos reinos élficos, e talvez, o<br />
único onde possa haver poderosos elfos curandeiros que<br />
venham a salvar sua vida.<br />
Os amigos se entreolharam, estupefatos, não querendo<br />
acreditar que a situação pudesse ser tão grave.<br />
Michel ficara lívido com a notícia, e com uma voz<br />
alquebrada, quase sem som, indagou — Mas é tão grave<br />
assim? Será que haverá tempo hábil para chegar até<br />
Sombrorn? Será que ele vai agüentar?<br />
— Acredite-me! — respondeu o elfo. — Não há outra<br />
esperança para vosso amigo, a não ser que seja conduzido<br />
deste local para Sombrorn, onde terá melhor assistência e uma<br />
chance, ainda que pequena, de sobreviver. Mas se ele<br />
299
permanecer aqui, ou se for levado para outro local, certamente<br />
encontrará a morte.<br />
Michel continuava pálido como o brilho de uma lua<br />
cheia, e caiu de joelhos, levando as mãos ao rosto sem<br />
acreditar no que estava acontecendo. Leon aproximou-se do<br />
amigo e agachou-se a seu lado, tentando confortá-lo. Passou o<br />
braço sobre seu ombro, sussurrou algumas palavras de<br />
consolo ao seu ouvido dizendo-lhe que chorar seria bom<br />
naquele momento, como que incentivando-o a não tentar<br />
conter sua tristeza. Alain Dumas, um pouco mais recatado e<br />
sem ter qualquer intimidade com Michel, preferiu ficar a certa<br />
distância, respeitando o momento de dor do companheiro de<br />
Leon.<br />
— Uma comitiva partirá logo ao amanhecer com destino<br />
à Sombrorn, levando vosso amigo — disse o elfo.<br />
Michel ergueu o rosto em direção ao elfo, ainda com os<br />
olhos mareja<strong>dos</strong> de tristeza. — Eu acompanharei meu irmão.<br />
Não o deixarei sozinho — afirmou.<br />
— Lamento — retrucou o elfo, — mas isso não será<br />
possível, pois o reino de Sombrorn não recebe aqueles que não<br />
tenham sido previamente convida<strong>dos</strong>. É um reino fechado. A<br />
rainha Aurien é muito austera quanto às regras de seu reino.<br />
— Mas eu já estive antes em Sombrorn. Ela não me<br />
negará entrar ao lado de meu irmão.<br />
— Entretanto, a rainha não está presente no momento,<br />
de forma que os elfos que retornarão ao reino conduzindo<br />
vosso irmão não aceitarão que outra pessoa os acompanhe.<br />
Ademais, amanhã cedo, no mesmo horário vós partireis com<br />
cinco legiões para o lado oeste da Thalide. Poderão retornar<br />
com toda segurança aos vossos lares.<br />
Michel baixou a cabeça, percebendo que seria inútil<br />
tentar convencer ao elfo de que ele iria acompanhar seu irmão,<br />
e preferiu deixar a questão para a manhã seguinte junto aos<br />
elfos de Sombrorn, na expectativa de convencê-los.<br />
300
Apesar da angústia e medo que dominavam os corações<br />
daqueles três homens e <strong>dos</strong> elfos de Eluannar, a madrugada<br />
transcorreu quieta, a não ser por algumas gargalhadas que<br />
surgiam de tempos em tempos nas rodas <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> de<br />
Sombrorn, que ainda não haviam sentido a amargura da<br />
derrota e ainda estavam confiantes em sua tremenda força.<br />
Aguardavam ansiosos o alvorecer para iniciar a perseguição<br />
aos orcs que haviam recuado para o cimo das Montanhas<br />
Negras.<br />
Entre um e outro comentário, olhavam de soslaio para os<br />
sentinelas de Sombrorn, austeros, com suas reluzentes<br />
armaduras prateadas que, ao brilho das fogueiras, exibiam<br />
uma luminosidade que parecia emanar das próprias placas<br />
metálicas que as constituíam. Os elmos daqueles elfos eram<br />
horripilantes, formavam dois proeminentes bicos pontiagu<strong>dos</strong><br />
que saíam da mandíbula, em formato curvo para cima, como<br />
se fossem duas enormes presas. Acima da viseira, também<br />
apresentavam duas pequenas saliências em forma de curtos<br />
chifres, um logo acima de cada olho. As joelheiras e<br />
cotoveleiras metálicas também eram providas de espetos<br />
pontiagu<strong>dos</strong>, de forma que, numa luta corpo-a-corpo,<br />
pudessem furar seus oponentes em qualquer parte de seu<br />
corpo e a qualquer momento. De repente, pareceu a Michel<br />
que aquelas carcaças metálicas possuíam vida própria,<br />
tamanha era a firmeza com que se portavam em seus postos,<br />
sem um movimento qualquer que pudesse demonstrar que<br />
estavam apenas revestindo um elfo. Já tinha visto sangue e<br />
morte suficientes, mas não conseguiu evitar que viessem à sua<br />
mente imagens daqueles solda<strong>dos</strong> de Sombrorn confrontando<br />
as terríveis criaturas a que chamavam de orcs. Enquanto<br />
pensava nestas lutas que inevitavelmente se tornariam<br />
realidade a partir do dia seguinte, adormeceu.<br />
<br />
301
Os preparativos para a partida já haviam sido<br />
providencia<strong>dos</strong> e logo ao primeiro sinal de luminosidade, as<br />
trombetas de Sombrorn soaram advertindo as legiões, que era<br />
chegada a hora da partida. Muitos estavam ansiosos em<br />
prosseguir, principalmente os elfos de Eluannar que não<br />
haviam sucumbido nos dois dias de batalha, pois desejavam<br />
mais do que tudo, retornar a seus lares. Mas nem to<strong>dos</strong><br />
partiriam rumo a oeste; um pequeno grupo se preparava para<br />
retornar à Sombrorn, conduzindo o corpo moribundo de<br />
Etiènne numa luxuosa carruagem, na esperança de que sua<br />
vida pudesse ser salva.<br />
Michel se aproximou deste grupo acompanhado de<br />
Alain e Leon, determinado a não deixar que seu irmão fosse<br />
levado sem que pudesse acompanhá-lo. Contudo, ao<br />
chegarem a uma certa distância da carruagem, foram<br />
intercepta<strong>dos</strong> pelo mesmo elfo que na madrugada anterior<br />
advertira Michel de que ele não poderia acompanhar seu<br />
irmão até Sombrorn.<br />
— Amigos, — disse o elfo em um tom brando, querendo<br />
demonstrar simpatia e talvez angariar confiança — eu vos<br />
imploro que não insistam em tentar acompanhar este grupo<br />
até Sombrorn. Vossa presença apenas irá retardar a viagem e<br />
acarretar em futuros problemas.<br />
Michel encarou o elfo com uma terrível ira emanando de<br />
seu olhar, como que exigindo que o elfo se retirasse de sua<br />
frente, antes que ele pudesse passar à agressão física. Seus<br />
companheiros ficaram alarma<strong>dos</strong> com a possibilidade de que<br />
Michel perdesse a paciência e, conseqüentemente, o controle.<br />
O elfo, por sua vez, mudou a fisionomia amigável e assumiu<br />
uma postura mais agressiva, retribuindo o olhar de ferocidade<br />
para seu interlocutor. Ambos ficaram por algum tempo se<br />
consumindo com os olhares incendia<strong>dos</strong>, até que foram<br />
interrompi<strong>dos</strong> por uma voz melodiosa, imediatamente<br />
reconhecida por Michel.<br />
302
— Deixe, Clariothir! Deixe-me conversar com ele alguns<br />
instantes e mostrar-lhe o melhor caminho.<br />
Michel não podia acreditar, mas ao olhar por sobre os<br />
ombros do elfo ao qual a voz se dirigira, constatou com seus<br />
próprios olhos que era Sindazel, magnífica, radiante, belíssima<br />
como mil auroras, quem acabava de sair da carruagem em que<br />
seu irmão havia sido colocado.<br />
O elfo, Clariothir, apenas afastou-se para o lado fazendo<br />
uma mesura em direção à Sindazel, abrindo passagem para<br />
que a Vangi se aproximasse.<br />
Leon e Alain, que até então não haviam estado na<br />
presença de uma vangi, ficaram maravilha<strong>dos</strong> com aquela<br />
criatura esplendorosa caminhando suavemente como se<br />
flutuasse no ar, ao invés de andar. Maravilharam-se com suas<br />
vestes cintilantes e ficaram impressiona<strong>dos</strong> com suas asas<br />
cheias de plumas belíssimas.<br />
— Então, nos reencontramos antes do que eu supunha,<br />
mas infelizmente, diante de uma situação triste e delicada.<br />
Michel, ainda incrédulo, não conseguiu dizer uma<br />
palavra sequer. Travava em seu íntimo uma verdadeira<br />
batalha, porque aquela mulher vangi era agora sua amada,<br />
mas sabia que seu irmão também a amava. Tentou organizar<br />
os pensamentos, mas não conseguiu. Estava visivelmente<br />
abalado e envergonhado diante de Sindazel, como se estivesse<br />
sendo pressionado a escolher um novo caminho, como se<br />
estivesse sendo pressionado, a deixar Sindazel com seu irmão,<br />
mas ao mesmo tempo, o ardente desejo por sua amada o fez<br />
titubear, chegando a pensar se não seria melhor que seu irmão<br />
morresse para que ele pudesse ficar livremente com a vangi.<br />
<strong>Era</strong>m pensamentos horríveis e dolorosos, que invadiram sua<br />
mente como uma onda terrível e devastadora. Não conseguia<br />
se controlar e, para seu desespero, Sindazel desfrutava<br />
horrorizada o privilégio de ler estes pensamentos sombrios e<br />
conflitantes.<br />
303
— Talvez seja melhor que nada seja dito neste momento.<br />
— Sindazel olhou para Michel com certa compaixão, como a<br />
mulher que olha para seu amado sem, contudo, amá-lo da<br />
mesma forma que outrora — Mas preciso insistir na<br />
mensagem de Clariothir. A rainha Aurien não vos permitirá<br />
entrar em Sombrorn.<br />
Michel, com a ajuda de Sindazel, conseguiu sair de sua<br />
luta interior, pois a vangi transmitiu-lhe uma incrível<br />
suavidade com seu olhar, ajudando-o a recuperar-se do<br />
desespero momentâneo. Então, ainda lívido e sem acreditar no<br />
que estava lhe acontecendo, conseguiu balbuciar algumas<br />
palavras.<br />
— Mas o que será de meu irmão? Como deixá-lo aos<br />
cuida<strong>dos</strong> de estranhos?<br />
— Eu sou uma estranha?<br />
— Não, claro que não! Mas eu não sabia que estaria<br />
aqui! Como chegou? Onde está Laicrunallian?<br />
— Ele regressou à Vangilla depois de me deixar com as<br />
legiões da rainha Aurien, a meu pedido. Não quero mais<br />
voltar para meu povo. Na verdade, depois que nos<br />
despedimos, eu decidi reencontrar Etiènne. — Ao dizer isso,<br />
Sindazel inclinou um pouco o rosto e olhou para o chão, sem<br />
conseguir encarar Michel, pois estava naquele exato momento,<br />
insinuando que não mais teriam a mesma intimidade<br />
celebrada antes da guerra.<br />
— Mas, o que aconteceu? — Michel ficou ruborizado<br />
diante da situação. — O que saiu errado comigo?<br />
Sindazel, voltou a olhar para Michel, mas agora, não<br />
com tanta compaixão quanto antes, pois os pensamentos que<br />
lhe roubou, revelaram-lhe muito mais do que havia sido<br />
revelado da primeira vez que se encontraram, ou nas vezes<br />
que estiveram juntos em Sombrorn. Revelara-lhe uma<br />
maldade até então desconhecida, que a decepcionou<br />
profundamente.<br />
304
Ao mesmo tempo, Michel lembrou-se de sua atitude<br />
diante de Grassac, temendo que, de alguma forma, Sindazel<br />
tivesse descoberto sobre o acontecido. Mas isso não era<br />
verdade, até aquele exato momento.<br />
— Então, vossos pensamentos continuam o traindo, e<br />
posso somar com tristeza, mais essa terrível maldade a seus<br />
estranhos atos. Será que essa é a natureza <strong>dos</strong> homens? Será<br />
que vós homens, sois assim tão singularmente instáveis?<br />
Michel estava arrasado, envergonhado de uma forma<br />
que nunca estivera em toda sua vida. Mas nem mesmo seu<br />
arrependimento poderia trazer-lhe de volta a dignidade que,<br />
um dia, Sindazel julgara ter encontrado nele. E para seu<br />
infortúnio a vangi continuou...<br />
— É inacreditável que um ser possa ter essa misteriosa<br />
capacidade de ambigüidade, de bondade e maldade<br />
simultâneas, não se dedicando a um único caminho, tendo<br />
desta forma, um caráter mascarado, fazendo com que se<br />
tornem uma raça tão desprezível quanto não confiável.<br />
Preferia não falar mais sobre isso! O momento é delicado<br />
como eu disse, e se não nos apressarmos, temo que Etiènne<br />
possa morrer. Não julgarei to<strong>dos</strong> os homens ou toda uma raça<br />
pela atitude de apenas um, mas confesso que estou<br />
decepcionada e temerosa de que vosso povo seja todo<br />
constituído <strong>dos</strong> mesmos elementos. Temo por encontrar em<br />
Etiènne, em quem apenas vi a bondade, os mesmos traços de<br />
maldade que você me revelou!<br />
Sindazel fora implacável com Michel, mas sentiu um<br />
certo alívio em poder desabafar daquela forma, a dor que<br />
vinha sentindo por ter se aventurado com ele. Há dias vinha<br />
se consumindo por ter traído, principalmente, aquele que lhe<br />
amava com maior sinceridade e havia lhe dedicado seu<br />
coração.<br />
— Não posso acreditar no que está acontecendo!<br />
305
— Por favor, deixe-nos partir e levar Etiènne, pois meus<br />
poderes apenas serão suficientes para mantê-lo vivo até<br />
chegarmos à Sombrorn. Não tenho como curá-lo, e a única<br />
pessoa que talvez possa fazer isso é a própria rainha Aurien,<br />
com seus profun<strong>dos</strong> conhecimentos de magia.<br />
Michel, voltou-se para seus amigos, que permaneciam<br />
estupefatos com a beleza daquela vangi, e tentou conseguir<br />
apoio em sua causa infrutífera, mas percebeu que estava<br />
verdadeiramente só. Olhou então para o elfo Clariothir, que<br />
agora, sustinha um sorriso tão malicioso quanto triunfante, e<br />
logo percebeu que não tinha mais opções, a não ser resignar-se<br />
diante de Sindazel e permitir sua partida.<br />
— Acredito que o que vou lhe dizer agora não vai surtir<br />
qualquer efeito, mas gostaria que soubesse que, em toda a<br />
minha vida, jamais senti um amor tão grande quanto o que<br />
senti por você, Sindazel. Talvez, em nome desse amor, eu não<br />
tenha conseguido controlar meus impulsos. O medo de perdêla<br />
superou minha sensatez, e levou- me a pensar e fazer coisas<br />
más.<br />
— Michel, — interrompeu Sindazel — isso não é<br />
necessário! Irei retribuir vosso amor tentando salvar a vida de<br />
teu irmão, o qual tenho certeza de que também ama e deseja<br />
bem, do fundo de sua alma.<br />
Michel assentiu com a cabeça e finalmente resignou-se,<br />
amargurado. Sentiu-se derrotado em seu coração.<br />
Sindazel entrou na carruagem acompanhada do elfo<br />
curandeiro, Clariothir, e os dois partiram com um pequeno<br />
séquito de solda<strong>dos</strong> de Sombrorn, rumo à Floresta das<br />
Sombras, região onde ficava aquele povo e sua rainha<br />
feiticeira, Aurien.<br />
Sozinhos, os três homens retornaram para os amigos<br />
elfos de Eluannar e, ao lado de Althalion e Lothanir,<br />
aguardaram pacientemente a partida das legiões que os<br />
306
levariam pela detestada Senda da Morte de volta ao lado oeste<br />
de <strong>Virgo</strong>.<br />
Durante a viagem de regresso, não foram molesta<strong>dos</strong><br />
por nenhum orc. Atravessaram lentamente o que sobrara da<br />
Floresta Dourada, quase totalmente em cinzas e fumaça,<br />
mergulhada numa desolação sem igual. Michel, que estava<br />
profundamente atormentado, ficou mudo durante toda a<br />
viagem.<br />
307
E<br />
CAPÍTULO XXIII<br />
Cicatrizando feridas<br />
tiènne estava deitado em uma cama macia, coberta por<br />
belíssimos lençóis que pareciam ter sido confecciona<strong>dos</strong> a<br />
partir de alguma espécie de cetim, muito cintilante, porém<br />
mais fino e macio. Acordou com o corpo muito dolorido. Ao<br />
abrir os olhos, percebeu que estava em algum lugar<br />
desconhecido, ou ao menos, que não se lembrava de algum<br />
dia ter estado naquele ambiente. Olhou ao seu redor tentando<br />
identificar onde poderia estar, checando cada objeto que<br />
estava ali presente. O quarto era amplo e pouco mobiliado.<br />
Além de uma cômoda e uma suntuosa cadeira em um <strong>dos</strong><br />
cantos, havia uma pequena mesa redonda ao lado de sua<br />
cama, com um jarro de prata e uma caneca igualmente<br />
luxuosa, com várias pedras preciosas incrustadas. Olhou para<br />
o teto, e percebeu que era ricamente decorado, com uma<br />
espécie de folhagem artificial, de um brilho magnífico, que<br />
dava vida ao ambiente, trazendo uma agradável e<br />
reconfortante sensação.<br />
Com algum esforço, recostou-se na cabeceira da cama e<br />
notou as bandagens que lhe faziam voltas sobre o peito.<br />
Esticou o braço e pegou o jarro, levando-o até o rosto para<br />
sentir o cheiro do que havia dentro, na tentativa de identificar<br />
o seu conteúdo. Um odor suave anunciava que seu líquido<br />
parecia ser alguma espécie de bálsamo refrescante. Derramou<br />
308
um pouco do espesso líquido sobre a caneca, e sorveu-o com<br />
grande prazer. Ficou maravilhado com o sabor e efeito<br />
revigorante, quase que instantâneo, que aquela bebida lhe<br />
proporcionara. Não obstante, Etiènne sentia fome, e tentou<br />
imaginar há quanto tempo estivera desacordado sem se<br />
alimentar. Uma vontade súbita de caminhar e ampliar seu<br />
conhecimento a respeito daquele estranho local apoderou-se<br />
dele, mas sua tentativa de sair da cama fora frustada por uma<br />
forte fisgada na perna, o que lhe fez perceber que estava sem<br />
condições de se levantar. Gemeu de dor, voltando a recostarse<br />
no batente da cama. Neste momento, a porta do cômodo<br />
onde estava abriu-se e uma jovem elfa adentrou. <strong>Era</strong> linda,<br />
exuberante, com traços perfeitos. O cabelo dourado como o<br />
sau<strong>dos</strong>o sol das manhãs de inverno em Amiens, balançava<br />
suavemente, escorrendo pelos ombros da elfa. Possuía uma<br />
tez branca, quase translúcida, semi-coberta por finos teci<strong>dos</strong><br />
na cor salmão, com alguns detalhes em branco e fios de ouro.<br />
Etiènne ficou admirado com a beleza daquela<br />
desconhecida jovem, que trazia nas mãos uma bandeja repleta<br />
de iguarias para pousar sobre a cômoda.<br />
A elfa percebeu, com grande entusiasmo, que Etiènne<br />
estava acordado.<br />
— Vejo que nosso hóspede está se recuperando muito<br />
bem. Logo estará forte e vigoroso como um Bantha 1.<br />
A voz melodiosa daquela bela criatura o fez lembrar de<br />
Sindazel, e por um momento, a despeito da magnífica beleza<br />
da elfa, Etiènne sentiu uma profunda dor no peito. Não uma<br />
dor física, provavelmente mais fácil de suportar, mas uma dor<br />
de saudade, uma saudade de alguém que ele jamais<br />
conseguira esquecer, e que o desejo de reencontrar o consumia<br />
a cada novo dia de sua vida.<br />
1 Animal de grande porte, semelhante aos paquidermes,<br />
normalmente encontrado no Deserto Naissaras.<br />
309
Percebendo que Etiènne mudara seu semblante,<br />
passando da aparência de surpresa para uma de<br />
descontentamento, a elfa apressou-se em recuperar a bandeja<br />
deixada sobre a cômoda e a levou até a pequena mesa ao lado<br />
da cama.<br />
— Não quero incomodar vosso descanso, mas<br />
diariamente tenho trazido alimentos na esperança de sua<br />
breve recuperação, espero que estejam de acordo com vosso<br />
gosto.<br />
Etiènne saiu de seu transe e voltou a contemplar a elfa,<br />
que falava suavemente, movendo seus hipnotizantes lábios<br />
vermelhos, como se fossem rubis desenha<strong>dos</strong> perfeitamente.<br />
Seu rosto era especialmente delicado; além daqueles belos<br />
lábios, a elfa tinha um pequenino e arrebitado nariz acima<br />
deles e olhos verdes como a mais brilhante das esmeraldas,<br />
sob sobrancelhas finas e suavemente arqueadas. Tudo era<br />
perfeitamente proporcional, e mesmo as estranhas orelhas<br />
pontiagudas eram delicadas e belas.<br />
A elfa sustentou seu olhar para Etiènne, demonstrando<br />
compaixão por seu estado de convalescença, mas não hesitou<br />
em reprimir o criterioso olhar masculino de seu paciente.<br />
— Onde estou? Parece incrível, mas sempre que fico<br />
desacordado, quando desperto, encontro-me nos mais<br />
estranhos lugares; contudo, com as mais lindas criaturas que<br />
estes olhos já puderam contemplar nesta vida.<br />
A elfa ficou corada e desconcertada. A exemplo de<br />
Sindazel, teve e aproveitou a oportunidade de conhecer<br />
intimamente aquela criatura tão frágil, mas ao mesmo tempo,<br />
tão imponente. O fato de sua vida ser tão efêmera, cativa<br />
ainda mais o coração <strong>dos</strong> elfos, e não foi difícil acontecer da<br />
elfa apaixonar-se por Etiènne, a exemplo do que ocorrera com<br />
a vangi.<br />
310
— Agradeço seu elogio, mas agora você precisa se<br />
alimentar, pois ao saber que despertastes, a rainha desejará<br />
conhecê-lo!<br />
— Rainha? Afinal, que lugar é este, onde estou? —<br />
voltou a perguntar Etiènne.<br />
— Está no reino de Sombrorn, o reino de Aurien, sua<br />
majestade e anfitriã!<br />
— Nossa! Como foi que parei aqui? A última coisa de<br />
que me lembro é da gritaria e do tilintar das espadas em meio<br />
a uma densa névoa quando, de repente, tudo escureceu e ficou<br />
mortalmente silencioso. Há quanto tempo estou aqui?<br />
A elfa, muito paciente, não desejando sair tão<br />
rapidamente do lado de seu amor platônico, sentou-se na<br />
cama ao lado de Etiènne, e se dispôs a responder suas<br />
perguntas.<br />
— Fazem mais de vinte dias que está em nosso reino.<br />
Não sei quanto tempo levou para que chegasse até aqui, mas<br />
quando chegou, as esperanças de que sua vida pudesse ser<br />
salva, já quase não existiam. Não fosse Sindazel, você não<br />
conseguiria sequer ter chegado à Sombrorn com vida.<br />
— Sindazel! — exclamou Etiènne, com o coração<br />
subitamente acelerado, como se fosse explodir dentro de seu<br />
peito. — Ela esteve comigo, me salvou? Onde ela está? Desejo<br />
vê-la.<br />
A elfa entristeceu-se ao ver a alegria esfuziante de<br />
Etiènne ao simples fato de mencionar o nome da vangi, mas<br />
procurou não revelar este sentimento a ele.<br />
— Não vá ser ingrato com nossa rainha! — repreendeuo.<br />
— Sindazel apenas garantiu que você pudesse chegar com<br />
vida até nosso reino, mas quem o salvou verdadeiramente foi<br />
nossa amada rainha, com sua bondade e sabedoria! — a elfa<br />
procurou não ser muito rude, mas ao mesmo tempo, queria<br />
tentar retirar um pouco do mérito de Sindazel.<br />
311
— Claro, serei eternamente grato a todas as rainhas<br />
élficas deste lugar, mas por Jesus Cristo, onde está Sindazel?<br />
— insistiu Etiènne.<br />
— Lamento, mas não será possível encontrá-la neste<br />
momento. Ela foi obrigada a voltar para sua cidade.<br />
Granuzael, seu pai, veio pessoalmente buscá-la.<br />
Etiènne ficou profundamente abatido com esta última<br />
informação. Deixou-se cair recostado, mais uma vez, na cama.<br />
A elfa compadeceu-se dele ao ver o olhar triste que o<br />
dominara. Passando a mão delicadamente em seu rosto,<br />
advertiu-o mais uma vez para que se alimentasse e procurasse<br />
se recuperar logo, para poder encontrar a rainha.<br />
Ao se levantar, tomou a jarra para si e notou que Etiènne<br />
havia bebido a infusão de ervas élficas que havia preparado<br />
para ele, e disse que faria mais. Ao dirigir-se para a porta,<br />
Etiènne a chamou.<br />
— Espere, por favor! Quero agradecer-lhe por tudo o<br />
que tem feito por mim. Se algum dia eu puder ajudar você ou<br />
a qualquer elfo de Sombrorn como compensação pela<br />
dedicação e hospitalidade que me ofereceram, eu o farei sem<br />
reservas! — a elfa deu um sorriso maravilhoso, dominada de<br />
satisfação e exibindo seus reluzentes dentes brancos. — Qual o<br />
seu nome? — perguntou Etiènne.<br />
— Sou conhecida por Arthea, a principal curandeira da<br />
rainha Aurien, às suas ordens. E você, já sabemos que chamase<br />
Etiènne, de quem ouvimos muito falar antes mesmo de<br />
vossa chegada a nosso reino. — Então, ainda com seu belo<br />
sorriso estampado no rosto, a elfa deixou o aposento.<br />
— Arthea, Arthea — repetiu, encantado, Etiènne.<br />
<br />
Ao final do entardecer, quando Arthea regressou ao<br />
aposento onde Etiènne estava repousando, foi dominada de<br />
medo ao constatar que ele não estava na cama. Olhou<br />
312
assustada ao redor, mas não o viu. Então, sentiu uma brisa<br />
sobre o rosto, e percebeu que ele havia se retirado para a<br />
varanda do aposento. Caminhou até ele, surpresa em vê-lo de<br />
pé já no primeiro dia que acordara.<br />
— Não devia fazer esforço, seu estado ainda requer<br />
muito cuidado e os excessos irão atrapalhar vossa<br />
recuperação.<br />
Etiènne olhou para Arthea, indagando-a sobre a vida em<br />
Sombrorn, e sobre a vida de seus elfos.<br />
Ficaram conversando durante duas horas e nem<br />
perceberam o tempo passar. Arthea contou tudo o que podia<br />
sobre seu povo, e Etiènne, ouviu atentamente, sempre<br />
comparando tudo o que ouvia com o que Bakhin afirmara há<br />
tempos atrás. Achava absurdo como aquelas duas raças<br />
distintas eram tão magníficas em suas peculiaridades, mas se<br />
odiavam tanto.<br />
Enquanto Arthea falava, Etiènne se regozijava com sua<br />
doce voz e eloqüência encantadoras. Admirava sua beleza<br />
com uma ternura que não ousava sentir por outra pessoa<br />
desde que conhecera Sindazel, sua amada. Mas Arthea,<br />
possuía alguma magia, algo místico que o fascinava e ele não<br />
sabia como se livrar dessa hipnose. Quanto mais Arthea<br />
falava, movendo ligeiramente seus maravilhosos e suaves<br />
lábios vermelhos, mais Etiènne queria escutar e contemplar<br />
aquele rosto lindo e jovial.<br />
As visitas de Arthea eram constantes, e sua presença<br />
dominava cada vez mais o coração de Etiènne, que andava<br />
sôfrego e solitário, desesperançado de um dia poder realizar<br />
seu mais sagrado desejo, o de reencontrar e se entregar à<br />
Sindazel.<br />
Arthea, percebendo que estava conseguindo influenciar<br />
Etiènne e desejosa de conseguir conquistar-lhe, procurava<br />
sempre tornar as tardes de seu paciente agradáveis, com<br />
longos passeios pelos magníficos jardins de Sombrorn.<br />
313
Foi num desses passeios, quando Etiènne já estava quase<br />
totalmente curado de seus ferimentos, sentindo-se<br />
inteiramente à vontade com a jovem elfa, dominado por uma<br />
estranha sensação de que já a conhecia há muitos anos e já não<br />
mais suportando aquela companhia tão amável, tão doce e tão<br />
encantadora como a própria primavera de Amiens, que<br />
Etiènne segurou-lhe as mãos com ternura, revelando-lhe que a<br />
estava amando de uma forma apaixonada, arrebatadora. A<br />
elfa não conteve um belíssimo e reluzente sorriso de<br />
felicidade, chegando mesmo a ficar com os olhos cheios de<br />
lágrimas de tanta alegria que estava sentindo. Seu peito arfava<br />
de tanta emoção, com o coração lhe batendo violentamente<br />
dentro do peito, que temeu desfalecer nas mãos do amado.<br />
Etiènne, percebendo que o sentimento da elfa era<br />
recíproco, senão mais violento que o seu, foi dominado por<br />
um desejo ardente de tomá-la em seus braços e não hesitou,<br />
abraçou-a com paixão, beijando-lhe os doces lábios com uma<br />
voluptuosidade que a fez sentir-se nas nuvens.<br />
Etiènne e Arthea agora passavam muito mais tempo<br />
juntos, num constante desvendar mútuo <strong>dos</strong> mistérios um do<br />
outro, íntima e incansavelmente. Tornavam-se cada vez mais<br />
apaixona<strong>dos</strong> a cada encontro amoroso, os quais duravam<br />
horas em que se esgotavam de tanto prazer.<br />
Os dias foram passando, até que chegou o momento em<br />
que Etiènne fora convocado por Ascathion, ministro de<br />
Sombrorn, a comparecer perante a rainha Aurien. Estava<br />
totalmente recuperado. Sua beleza e vigor físico estavam<br />
restaura<strong>dos</strong>, sentia-se forte como nunca, pois a que homem<br />
mortal uma paixão avassaladora não poderia tornar quase um<br />
imortal? Etiènne estava sentindo uma vitalidade fluir por seu<br />
corpo, por suas veias, como nunca sentira antes. Nem mesmo<br />
o fogo e o desejo por Sindazel o haviam elevado àquelas<br />
alturas vertiginosas que Arthea o havia erguido.<br />
314
Etiènne se apresentou à rainha Aurien, que o aguardava<br />
em um suntuoso salão, todo ornamentado com estranhos<br />
objetos que pareciam estar craveja<strong>dos</strong> de pedras preciosas,<br />
mas que Etiènne não conseguia distinguir o que eram ou para<br />
que serviam. A rainha, ao vê-lo entrar no salão, aguardou que<br />
ele se aproximasse sem demonstrar qualquer ansiedade, e<br />
antes mesmo que Etiènne pudesse chegar perto o suficiente<br />
para lhe prestar uma reverência em sinal de respeito e<br />
submissão, a rainha ergueu-se e alertou para que<br />
permanecesse àquela distância.<br />
Etiènne parou, fazendo um pequeno movimento com a<br />
cabeça, como que concordando com a ordem determinada<br />
pela rainha. Fitou-a com grande admiração, mas sem sustentar<br />
o olhar por mais do que três ou quatro segun<strong>dos</strong>, temendo ser<br />
repreendido, e logo baixou os olhos, aguardando que a nobre<br />
elfa o conduzisse à conversa que desejasse. Em seu íntimo,<br />
assombrado pela beleza de Aurien, que era muito superior<br />
tanto à de Sindazel quanto à de sua Arthea, pensou<br />
desesperado como conseguiria conversar com aquela criatura<br />
sem admirar-lhe a beleza estonteante. Ficou principalmente<br />
impressionado com o olhar dominador que parecia emitir<br />
verdadeiros raios daqueles olhos cinza claro. <strong>Era</strong>m lin<strong>dos</strong>,<br />
fascinantes!<br />
— Não temas — disse a rainha. — Em meu reino, não<br />
precisas te constranger nem mesmo diante da rainha —<br />
asseverou, com um tom de voz amigável. Não era uma voz<br />
melodiosa como a de Sindazel ou a de Arthea, mas uma voz<br />
imperiosa, rouca e potente, como se fosse mesmo a voz de<br />
uma deusa.<br />
Etiènne fez uma longa e solene reverência.<br />
— Em que posso ser útil, majestade?<br />
— Eu gostaria de conhecer melhor os homens, e acredito<br />
que posso contar com sua cooperação para instruir-me nas<br />
nuanças existentes entre nossas raças. Afinal, não somos tão<br />
315
diferentes na aparência, exceto talvez pelo número de<br />
variantes a respeito da tonalidade da cor de pele e cabelos que<br />
percebi durante o Colóquio de Plarionthil e aqui em meu<br />
próprio reino, em outros de vossa raça. Nós, elfos, temos um<br />
padrão físico notável, como já pudestes constatar andando<br />
entre nosso povo. Somos uma raça longeva, superada apenas<br />
pelos vangis. Mas vocês, homens, não duram uma primavera<br />
élfica para presenciar o amadurecimento <strong>dos</strong> séculos. Como<br />
pode uma raça possuir uma existência tão ínfima, tão<br />
desprezível, tão efêmera? — Etiènne ouvia com atenção sua<br />
interlocutora. — Sabe, meu jovem homem, tenho meditado<br />
sobre esta questão e posso assegurar-lhe que não consigo, em<br />
minha sabedoria, encontrar respostas para este enigma!<br />
Aurien se aproximou de Etiènne, andou vagarosamente<br />
observando-o, fazendo um círculo em torno de seu hóspede,<br />
procurando analisá-lo de to<strong>dos</strong> os ângulos. <strong>Era</strong> bela, e ao<br />
mesmo tempo intrigante para aquela nobre elfa, a presença<br />
daquele homem em seu reino, uma criatura de outra raça, uma<br />
nova raça que até bem pouco tempo atrás, não havia<br />
aparecido em seu mundo, não havia se mostrado na Thalide.<br />
Após uma volta completa ao redor de Etiènne, a rainha<br />
elfa parou em sua frente, olhando-o profundamente dentro<br />
<strong>dos</strong> olhos. Etiènne ficou corado só de pensar na beleza divina<br />
daquela elfa diante de seus olhos. Sem demonstrar qualquer<br />
sinal de incômodo com a mudança na cor do rosto de Etiènne,<br />
que passou do seu tom natural para o carmesim, Aurien<br />
continuou falando de perto, na face de Etiènne. Este podia<br />
sentir o hálito refrescante de Aurien, e admirar ainda mais<br />
maravilhado, aquela feição perfeita, que mais parecia ter sido<br />
produzida pelas próprias mãos de Deus.<br />
— Contudo, apesar de vocês, seres humanos, possuírem<br />
uma miserável existência individual, estão destina<strong>dos</strong>,<br />
segundo a profecia do Dragão Dourado, talhada na pedra<br />
Klaopala, a dominar o mundo, a suplantar todas as raças<br />
316
superiores existentes, até mesmo os vangis e os elfos! —<br />
vociferou Aurien, demonstrando neste momento, pela<br />
primeira vez, uma certa indignação pelo fato.<br />
Etiènne percebeu que os anões sequer eram lembra<strong>dos</strong><br />
como uma raça superior, nem mesmo pela rainha.<br />
— Majestade, perdoe-me, mas nada sabem os homens<br />
sobre esses desígnios, isso eu posso garantir, de boa fé.<br />
— Eu, rainha de Sombrorn, sempre fui céptica quanto a<br />
esta profecia. Criada a partir da mente adoecida de um velho<br />
Dragão Dourado, que enlouqueceu vivendo solitário por<br />
tantos séculos naquele 1vale amaldiçoado por todas as eras.<br />
Mas confesso, que essa fragilidade de vossa raça, além de me<br />
surpreender, me faz, de uma forma incompreensível, temer<br />
que a profecia seja verdadeira e venha a se concretizar.<br />
Portanto, eu desejo conhecer melhor vossa raça, e reitero meu<br />
desejo de que você, de quem há muito ouço falar, seja meu<br />
confidente sobre estas questões. Garanto que nada lhe faltará<br />
em meu reino, e lhe concederei tudo o que desejar. É meu<br />
desejo, que os elfos e os homens sejam como irmãos, por toda<br />
a eternidade!<br />
— Agradeço, majestade, em nome de to<strong>dos</strong> os homens<br />
honestos e de bom coração, e coloco-me à vossa disposição! —<br />
Etiènne ajoelhou sobre uma perna diante da rainha, baixando<br />
sua cabeça, demonstrando, ao estilo franco, que estava ao<br />
serviço de sua majestade elfa.<br />
— Em breve, — disse Aurien, agora com uma voz mais<br />
suave do que a usada até aquele momento — haverá um novo<br />
Colóquio em Plarionthil, e é meu desejo que estejas a meu<br />
lado, pois antes que possa realizar-se a profecia da pedra<br />
Klaopala, tenho meus próprios desígnios a realizar. Agora,<br />
podes retornar ao vosso aposento. Quando eu precisar de<br />
1 A região que a rainha Aurien faz referência nesta passagem é<br />
conhecida como Vale da Neblina, situado no coração da Região das<br />
Montanhas, e foi onde seu pai pereceu em luta durante a Guerra da Agonia.<br />
317
vossa ajuda ou de vosso conhecimento sobre os homens, será<br />
chamado. Se precisar de algo, não hesite em transmitir-me<br />
através de Ascathion, meu ministro, ou mesmo Arthea. Ela é<br />
uma serva fiel, e a melhor curandeira de meu reino!<br />
— Obrigado, majestade. Gostaria apenas de agradecer,<br />
em tempo, a vida que me foi assegurada por vossa sabedoria e<br />
precisão, sem as quais a esta altura eu seria mais um homem<br />
morto. Jamais poderei em toda minha vida, retribuir este gesto<br />
de bondade, seja com palavras, seja com tesouros. Portanto,<br />
apesar de ser da raça <strong>dos</strong> homens e possuir uma vida breve,<br />
eu a ofereço de todo o coração, e de agora em diante, enquanto<br />
viver, torno-me seu servo!<br />
Aurien sorriu magnificamente, e apesar de majestosa,<br />
fez uma mesura para seu novo servo, encantada com Etiènne.<br />
Etiènne ficou vários dias desejando ser chamado pela<br />
rainha novamente, mas isso não ocorreu. Arthea teve ciúmes,<br />
porque ele falava de sua rainha num estado de<br />
deslumbramento preocupante, mas ela sabia, em seu íntimo,<br />
que a rainha não se envolveria com um ser humano. Ao<br />
menos, queria acreditar nisso com todas as suas forças.<br />
Com o coração saciado de tanto amor que Arthea lhe<br />
oferecia, não havendo novas convocações por parte da rainha,<br />
Etiènne sentiu um enorme desejo de rever seu amigo Bakhin.<br />
Depois de muito discutir com Arthea, que se mostrou<br />
relutante quanto a saída de Etiènne de Sombrorn, decidiu, a<br />
despeito da insistência da elfa em dizer que os tempos ainda<br />
não eram seguros para uma viagem apesar da guerra estar<br />
ocorrendo no extremo oeste da Thalide, enviar uma carta ao<br />
reino de Bakkin, anunciando que ele partiria em um mês para<br />
visitar o velho amigo.<br />
Até mesmo a rainha Aurien, ao saber <strong>dos</strong> planos de<br />
Etiènne, finalmente o convocou para informar-se mais<br />
detalhadamente sobre o que Etiènne tinha em mente, e tentou<br />
evitar que ele deixasse Sombrorn naquela época, mas não<br />
318
conseguiu contê-lo, pois o coração de Etiènne podia ser<br />
apaixonado, mas nunca encarcerado, sempre cedendo aos seus<br />
mais inusita<strong>dos</strong> impulsos.<br />
A rainha Aurien, observando a agonia de sua principal<br />
curandeira, que temia pela vida de seu amado, concedeu ao<br />
francês, uma pequena guarnição com trinta valorosos<br />
guerreiros elfos, para que o acompanhassem a Bakkin no<br />
momento de sua partida. Etiènne tentou, em vão, dissuadir a<br />
rainha desta cortesia, pois temia a reação de Bakhin ao vê-lo<br />
chegar com tantos elfos em seu reino, mas a rainha mostrou-se<br />
impassível diante das argumentações de Etiènne. Para maior<br />
sossego do coração de Arthea, seu amado partiu, quando<br />
chegou a data prevista, na companhia <strong>dos</strong> guerreiros de elite<br />
seleciona<strong>dos</strong> pela própria rainha para aquela viagem.<br />
319
O<br />
CAPÍTULO XXIV<br />
Nouvelle Lyon<br />
s primeiros dias após o retorno de Michel Montbard à<br />
Nouvelle Lyon, foram muito agita<strong>dos</strong>, não somente pelo<br />
trabalho que ficara acumulado durante sua ausência enquanto<br />
estivera em Amiens, e logo em seguida, na Guerra da Floresta<br />
Dourada, mas principalmente, pelo fato de que a cidade havia<br />
recebido muitos elfos feri<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> recentes combates que<br />
haviam sido trava<strong>dos</strong> na Senda da Morte, e também nas<br />
proximidades do Pântano Hibrittatus, pelos solda<strong>dos</strong> de<br />
Tarlhion.<br />
Alain Dumas e Leon Troujard foram incansáveis na<br />
ajuda ao amigo Michel, sobretudo, na tentativa de lhe<br />
restaurar o ânimo que tanto se abatera depois da fatídica<br />
despedida de Sindazel. Passavam horas do dia ao lado dele,<br />
indo e vindo entre as dezenas de tendas espalhadas diante <strong>dos</strong><br />
muros da cidade, onde fora improvisado um pequeno<br />
hospital. Sempre antes do anoitecer, dirigiam-se para o prédio<br />
administrativo, e ainda o ajudavam a organizar as pendências<br />
burocráticas.<br />
Somente poucos minutos antes de dormir, é que<br />
conseguiam reunir-se um pouco mais relaxa<strong>dos</strong>, saboreando o<br />
excelente vinho procedente de Eluannar. Mas ainda assim, o<br />
assunto não fugia aos dois temas mais aborda<strong>dos</strong> naqueles<br />
últimos dias, a guerra contra os orcs e a esperança sobre a<br />
320
ecuperação de Etiènne que havia ficado aos cuida<strong>dos</strong> de<br />
Sindazel.<br />
Os dias foram passando, e a medida em que a rotina<br />
voltava ao normal na cidade de Nouvelle Lyon, Leon Troujard<br />
começava a falar com sau<strong>dos</strong>ismo de sua própria cidade,<br />
como que preparando Michel para sua partida, que deveria<br />
ocorrer em breve.<br />
Um <strong>dos</strong> últimos trabalhos que realizaram juntos em<br />
Nouvelle Lyon fora a ampliação do cemitério que ficava<br />
próximo à capela, o qual passou a receber honrosamente,<br />
alguns mortos do povo élfico, a pedido de Althalion.<br />
Muitos elfos foram salvos pelas mãos <strong>dos</strong> homens de<br />
Nouvelle Lyon, e Althalion, a exemplo de seu falecido pai,<br />
guardou grande respeito e amor pelos homens. Muitas foram<br />
as promessas de ajuda que seriam enviadas de Eluannar para<br />
as melhorias que Michel gostaria de realizar em sua cidade.<br />
Da mesma forma, Althalion garantiu a Leon que também<br />
Nouvelle Amiens continuaria recebendo toda a ajuda que<br />
desejasse de seu reino.<br />
As notícias sobre a guerra, chegavam de tempos em<br />
tempos, e ao que parecia, as legiões de Sombrorn estavam<br />
travando violentas batalhas ao norte do Deserto Naissaras<br />
contra a nata <strong>dos</strong> orcs Baraidai, que estava sendo liderada pelo<br />
próprio Idour, o elfo negro traidor. Souberam também que os<br />
exércitos de Guttin, haviam suportado bravamente o assédio<br />
<strong>dos</strong> orcs em seu próprio reino, e que conseguiram fazer com<br />
que recuassem, com grande demonstração de força e coragem<br />
de seu povo.<br />
Althalion, ao saber dessas notícias, julgou ter chegado o<br />
momento oportuno para sua partida, e convocou Lothanir<br />
para que este providenciasse os preparativos necessários para<br />
a partida de sua legião.<br />
Ao ser informado da decisão de Althalion, Michel ficou<br />
duplamente triste, pois nascera uma grande amizade entre ele<br />
321
e o filho de Lasthion, e além disso, sabia que quando os elfos<br />
de Eluannar partissem, Leon e Alain também partiriam com<br />
eles.<br />
Naquela mesma noite, enquanto conversavam sobre a<br />
prosperidade de Nouvelle Lyon, e especulavam sobre o futuro<br />
<strong>dos</strong> homens nos próximos anos em <strong>Virgo</strong>, Leon resolveu<br />
revelar a seu amigo, o que acontecera com ele e porque ele<br />
agira de forma tão sombria e estranha quando deixaram<br />
Amiens rumo à expedição que realizaram até aquele lugar.<br />
— Michel, há tempos venho protelando um assunto que<br />
desejo muito conversar com você.<br />
Michel estava conversando com Althalion, mas ao notar<br />
a seriedade de Leon quando este lhe dirigiu esta frase, ajeitouse<br />
na confortável cadeira de ébano que ocupava, como que<br />
para garantir que escutaria melhor o que o amigo tinha a lhe<br />
dizer. Com um gesto de sua mão, indicou que Leon podia<br />
prosseguir. Alain, ao perceber qual seria o assunto, pois Leon<br />
já o alertara que tinha intenção de abordar este tema antes de<br />
partirem em regresso para Nouvelle Amiens, levantou-se e<br />
dirigiu-se para a sacada do salão que ocupavam, procurando<br />
deixar os dois mais à vontade. Althalion, percebendo a<br />
intenção de Alain Dumas, também fez o mesmo, e insinuou a<br />
Lothanir que também deveria acompanhá-lo. Os dois elfos<br />
foram ao encontro de Alain, e ao perceber que estava a sós<br />
com Michel, Leon retomou a conversa.<br />
— Lembra-se de minhas estranhas atitudes desde que<br />
saímos <strong>dos</strong> calabouços do castelo de Martin Lacroix?<br />
Sabendo que algo importante seria revelado naquele<br />
momento, Michel esticou o braço e tornou a encher de vinho a<br />
taça de Leon, e logo em seguida, sua própria taça, dando um<br />
demorado gole. Um filete de vinho escorreu-lhe pelo canto da<br />
boca, o qual ele limpou com o lado superior de sua mão<br />
direita e assentiu com a cabeça, como que afirmando ao amigo<br />
que lembrava do fato. Contudo, seu olhar demonstrou que a<br />
322
lembrança não era agradável, mas Leon não lhe deu muito<br />
tempo para que em seus pensamentos, tentasse adivinhar o<br />
que poderia ter acontecido, e logo foi falando o que sucedera<br />
na ocasião.<br />
— Pois agora, irei lhe revelar a razão pela qual adotei<br />
aquela postura, e preferi, a despeito do sofrimento que eu<br />
também senti, fazer com que vocês se afastassem de mim.<br />
— Nada — interrompeu Michel — poderá justificar a<br />
arrogância e a grosseria que você nos dispensou naquela<br />
ocasião. Eu nunca consegui entender, que tipo de enfermidade<br />
ou maldição havia se apossado de você! Talvez seja melhor<br />
esquecermos este triste passado, e nos dedicarmos à nossa<br />
amizade como sempre fizemos. Arranquemos este<br />
pergaminho de nossa história, e continuemos a ser bons<br />
amigos.<br />
— Eu lamento, profundamente, a dor causada por<br />
minha atitude. Contudo, não poderei mais guardar este<br />
segredo e, se for realmente meu amigo, irá procurar entender<br />
o que se passou dentro de mim e como meu fardo fora, e ainda<br />
é, muito pesado.<br />
— Pela Santa Virgem! Então, diga logo o que pode ter<br />
sido assim tão horrível a ponto de mudar vosso<br />
comportamento tão drasticamente diante de seus mais íntimos<br />
amigos!<br />
— Eu descobri... — Leon baixou os olhos e fez uma<br />
pequena pausa, procurando forças para prosseguir — Eu<br />
descobri, através de uma fonte segura e inquestionável, além<br />
de algumas evidências, que sou na verdade filho de Martin<br />
Lacroix! — confessou, sem se permitir maiores rodeios.<br />
Michel, olhando seriamente para o amigo, no primeiro<br />
momento não conseguiu acreditar, mas Leon falara tão<br />
gravemente que foi obrigado, apesar de toda a resistência que<br />
sua mente lhe impunha, a crer naquele absurdo que acabara<br />
323
de ser revelado e retumbava em seus ouvi<strong>dos</strong> como se fossem<br />
mesmo os tambores agourentos <strong>dos</strong> orcs.<br />
Antes que Michel pudesse sair de seu transe de surpresa<br />
e indignação, Leon completou.<br />
— Como eu poderia dizer a meu amigo, meu melhor<br />
amigo e praticamente um irmão, que havia descoberto que seu<br />
mais terrível inimigo era meu próprio pai de sangue? Eu<br />
mesmo não pude acreditar, não quis acreditar, e fiquei<br />
horrorizado ao saber desta infeliz verdade. Por um longo<br />
tempo pensei em tirar minha própria vida, que já não valia<br />
mais nada. O que mais poderia aspirar, o filho bastardo de um<br />
crápula, tirano e sanguinário? Foi então que passei de meu<br />
estado de mortificação para um estado de esperança, pois, se<br />
alguma coisa eu podia esperar naquele momento, era tentar<br />
converter meu pai perverso num homem digno.<br />
Michel, assombrado com o que acabara de ouvir,<br />
sacudiu a cabeça negativamente, e tomou outro enorme gole<br />
de sua taça de vinho.<br />
— Não diga nada, ainda! Deixe-me terminar! — Leon,<br />
inquieto, suava vistosamente, tanto pelo calor do vinho,<br />
quanto pelo que revelava, há muito guardado em seu coração.<br />
— Por isso, pensei que a melhor coisa a fazer era, antes de<br />
mais nada, afastar-me de vocês, para tentar realizar meu<br />
sonho, minha esperança, de recuperar meu pai. Seria a maior<br />
alegria de minha vida se conseguisse transformá-lo num<br />
homem digno.<br />
— Impossível! — garantiu Michel.<br />
Leon ergueu a mão, pedindo paciência ao amigo, e<br />
continuou:<br />
— Mas eu precisava tentar, precisava! Pensei em<br />
construir Nouvelle Amiens, e depois que tudo estivesse em<br />
ordem, em paz, desejava ir até Amiens e encontrá-lo, para<br />
oferecer-lhe uma nova perspectiva de vida, ao meu lado, ao<br />
lado de seu filho! Mas o destino não quis que as coisas<br />
324
acontecessem desta forma, e apesar de meu pai ter chegado às<br />
portas de Nouvelle Amiens, não pude encontrá-lo face a face.<br />
— Martin Lacroix! Em <strong>Virgo</strong>?! — sobressaltou-se Michel,<br />
temendo as perigosas possibilidades que poderiam advir deste<br />
fato. — Então a víbora conseguiu realmente chegar aqui,<br />
mesmo com o desabamento da Grande Caverna!<br />
— Sim, ele chegou com parte de suas tropas e se<br />
posicionou diante <strong>dos</strong> muros de Nouvelle Amiens. Despachei<br />
uma mensagem até ele, revelando a verdade sobre minha<br />
paternidade e o convidando a entrar na cidade pacificamente,<br />
como meu pai, para conversarmos sobre nossa possível<br />
aliança. Pensava que poderia iniciar a edificação de meus<br />
planos, mas naquela mesma noite, durante a madrugada,<br />
foram ataca<strong>dos</strong> por centenas de orcs e foram dispersa<strong>dos</strong>. Os<br />
que conseguiram escapar para a cidade, foram salvos e<br />
protegi<strong>dos</strong>. Muitos pereceram no ataque surpresa <strong>dos</strong> orcs, e<br />
muitos outros ficaram desapareci<strong>dos</strong>, e entre estes,<br />
encontrava-se meu próprio pai e minha meia irmã Lourdes.<br />
Michel, ainda aterrorizado com tudo o que ouvia, de<br />
repente foi atingido em seu ponto fraco, pois já flertara com a<br />
jovem Lourdes quando morava em Amiens, sem contudo<br />
jamais ter a oportunidade de conversar com a moça. Mas o<br />
simples som de seu nome o fez lembrar com nostalgia daquele<br />
tempo, agora tão distante, mas também o fez lembrar de<br />
Sindazel. Para não se perder nestes pensamentos, insistiu com<br />
Leon de que sua missão seria tão inglória quanto infrutífera,<br />
afirmando que não havia qualquer esperança para um homem<br />
como Martin Lacroix.<br />
— O que pretende fazer quando voltar?<br />
— Alain já se comprometeu comigo, e assim que<br />
retornarmos, iremos promover incansáveis buscas para tentar<br />
localizar meu pai e minha irmã.<br />
— Leon, eu o tenho como um irmão, mas confesso que<br />
me dói ouvi-lo chamar aquele homem de pai. Não obstante, se<br />
325
um dia reencontrá-lo, espero que saiba o que está fazendo,<br />
pois temo por sua vida. E o que terá sido feito de Nouvelle<br />
Amiens durante todo esse tempo em que esteve ausente? Não<br />
tem se preocupado com sua cidade, será que tudo está bem?<br />
Você fala com entusiasmo das coisas que realizou por lá, com<br />
a ajuda de Lasthion, que Deus o tenha, mas quem ficou à<br />
frente da administração em sua ausência?<br />
— Amigo, não tema por minha vida, antes disso, reze<br />
para que eu possa ter a chance de reencontrar meu pai e<br />
realizar meu sonho de convertê-lo. — Michel fez uma careta.<br />
— Quanto à Nouvelle Amiens, ficou nas mãos de Maurice<br />
Lassance, um verdadeiro cavaleiro que foi muito prestativo<br />
durante a construção da cidade, e mostrou-se muito<br />
inteligente e consciencioso. Você não o conheceu<br />
profundamente, mas certamente o conhecerá quando nos<br />
visitar em nossa cidade.<br />
Os dois amigos ainda ficaram conversando alguns<br />
minutos, lembrando com saudade <strong>dos</strong> bons tempos de<br />
Amiens, mas depois chamaram Alain e os elfos de volta para<br />
participarem daquela gostosa sessão de nostalgia. Os elfos<br />
ficaram maravilha<strong>dos</strong> ao ouvir sobre a vida <strong>dos</strong> homens em<br />
sua cidade natal e como tudo aconteceu até os conduzir àquele<br />
lugar, a que chamaram <strong>Virgo</strong>, mas conheciam entre seu povo<br />
como Thalide.<br />
No final daquela semana, Michel subiu ao torreão que<br />
ficava ao lado das ameias das muralhas de sua cidade para<br />
despedir-se de seus amigos, que partiram em direção à<br />
Planície de Prata, rumo ao extremo oeste de <strong>Virgo</strong>.<br />
Althalion, ao lado de Lothanir, conduzia o que havia<br />
restado da legião de seu pai de volta ao reino de Eluannar.<br />
Leon Troujard, ao lado de Alain Dumas, voltavam<br />
acompanhando os elfos, porém, sua caminhada seria mais<br />
breve e ficariam em Nouvelle Amiens. Consigo, levavam a<br />
esperança de reencontrar Martin Lacroix.<br />
326
Depois de alguns dias, com a partida <strong>dos</strong> elfos e de seu<br />
amigo Leon, Michel dedicou-se ainda mais às tentativas de<br />
fazer com que Peter Wells recuperasse seu abalado espírito<br />
devido à mutilação que sofrera durante a recente Guerra da<br />
Floresta Dourada. Michel havia lhe designado uma série de<br />
responsabilidades burocráticas, nomeando-o co-regente de<br />
Nouvelle Lyon, mas ainda assim, nada conseguia conformar<br />
Peter da desdita a que fora submetido.<br />
Michel morria de pena ao ver o amigo pelos cantos,<br />
lamuriando-se de seu triste destino, tornando-se a cada dia<br />
que passava mais ranzinza e intransigente. Nada estava bom<br />
para Peter, e de tudo ele reclamava. Algumas vezes, Michel<br />
teve que perder a paciência e esbravejar com ele, atitude que<br />
era imediatamente repreendida pelo inglês, dizendo que<br />
Michel era impie<strong>dos</strong>o ao tratar um aleijado daquela forma.<br />
Mas esse tormento não durou por muito tempo, porque<br />
numa tranqüila manhã de primavera, quando o correio de<br />
Sombrorn chegou trazendo uma carta de seu irmão, Etiènne,<br />
Michel foi correndo contar a Peter, cheio de alegria de ter<br />
recebido notícias de seu amado irmão, quando encontrou-o<br />
morto, caído com uma adaga cravada em seu coração, ainda<br />
com seu punho cerrado segurando-a com firmeza.<br />
Com o único braço que tinha, Peter tirou a própria vida,<br />
não suportando viver mutilado, sem mais poder atirar com<br />
seu arco, sem mais poder ser completo como viera ao mundo.<br />
Michel derramou lágrimas ao ver o companheiro morto<br />
daquela forma, e tentou imaginar como deveria estar sendo<br />
insuportável o sofrimento do amigo para que chegasse àquela<br />
atitude insana de tirar a própria vida.<br />
Antes mesmo de tomar qualquer atitude, sentou-se ao<br />
lado do cadáver do amigo e, não com tanta alegria quanto<br />
entrara, quebrou o lacre da carta e procurou ler em voz alta,<br />
como se o inglês, cujo corpo jazia inerte a seu lado, pudesse<br />
ouvi-lo.<br />
327
Amado irmão,<br />
Faz tempo que desejava lhe escrever, mas a vida em<br />
Sombrorn é estranhamente agitada, e os dias terminam tão logo<br />
começam. Quero que saibas que estou gozando de perfeita saúde,<br />
recuperando-me rapidamente com os cuida<strong>dos</strong> que a rainha Aurien<br />
me dispensou e nas próximas semanas estarei fazendo uma visita a<br />
meu grande amigo Bakhin.<br />
Apesar da rainha me afirmar que estás bem, espero que esta<br />
possa encontrá-lo com saúde, tanto quanto aos meus queri<strong>dos</strong><br />
amigos Peter e Grassac.<br />
Tenho algumas novidades para lhe contar, pois conheci uma<br />
elfa maravilhosa chamada Arthea, que ajudou muito em minha<br />
recuperação. Creio que eu esteja acometido por alguma<br />
enfermidade desconhecida, pois estamos enamora<strong>dos</strong>, apesar de<br />
ainda lembrar com grande saudade de Sindazel. Mas tenho certeza<br />
de que eu e Arthea, seremos muito felizes em <strong>Virgo</strong>.<br />
Carinhosamente e com saudades, do irmão que te ama,<br />
328<br />
Etiènne Montbard.<br />
Michel foi dominado por uma crise de tristeza e chorou<br />
convulsivamente, olhando incrédulo para o corpo sem vida de<br />
Peter, lembrando de sua maldade diante de Grassac e<br />
condenando-se por ter traído seu irmão mais novo com<br />
Sindazel. As lágrimas lhe escorriam pela face como se fosse o<br />
próprio rio Somme que brotava-lhe <strong>dos</strong> olhos. Demorou muito<br />
tempo até que conseguisse se recompor e pedir ajuda para que<br />
o corpo de Peter fosse removido.<br />
Os habitantes de Nouvelle Lyon ficaram horroriza<strong>dos</strong><br />
com o que acontecera com Peter, e no dia do funeral,<br />
perceberam que Michel estava muito abatido, magro e<br />
curvado, como se carregasse um fardo insuportável. Muitos
tentaram consolar Michel, mas ele jamais voltaria a ser a<br />
mesma pessoa alegre e cheia de vida que fora em Amiens.<br />
329
B<br />
CAPÍTULO XXV<br />
Honras e lembranças<br />
akhin havia sido avisado da chegada de Etiènne com<br />
antecedência, e estava muito ansioso para reencontrar seu<br />
amigo humano. Ordenou que fosse providenciado um grande<br />
banquete para oferecer a seu visitante, lamentando muito não<br />
poder honrá-lo com uma grande festa, como desejava antes<br />
<strong>dos</strong> acontecimentos que culminaram na recente Guerra da<br />
Floresta Dourada. Os anões de Bakkin, eram muito prenda<strong>dos</strong><br />
na organização de festas, e apesar de estarem preparando<br />
apenas o que deveria ser um banquete, se esmeraram bastante<br />
na realização do mesmo, quase tornando-o uma verdadeira<br />
festa. Havia todo tipo de iguarias com diversos temperos,<br />
doces e frutos. Estavam dispostos a mostrar que, também na<br />
culinária, eram muito providentes.<br />
Quando Etiènne surgiu diante do salão real onde Bakhin<br />
o aguardava, o rei anão perdeu toda sua compostura e,<br />
abandonando as formalidades que sua posição exigia diante<br />
de seus súditos, levantou-se com grande estardalhaço<br />
dirigindo-se ao amigo, tomado de alegria.<br />
— Amigo Etiènne! Que alegria imensa!<br />
— Salve rei Bakhin! — Etiènne curvou-se longamente<br />
em sinal de reverência, e ficou sobre um joelho apenas,<br />
demonstrando sua humildade diante do nobre rei e amigo.
— Levante-se, levante-se! — disse Bakhin, abraçando<br />
calorosamente o francês pela cintura, pois Etiènne, de pé,<br />
tinha o dobro da altura de Bakhin.<br />
Os dois amigos ficaram juntos toda a tarde, e ao<br />
anoitecer, quando seria oferecido o banquete, o rei Bakhin<br />
solicitou a presença de Etiènne em seu aposento real, para que<br />
pudessem conversar a sós, longe da bajulação e intransigência<br />
de seus súditos, pois uma coisa era peculiar ao povo de<br />
Bakkin, não sabiam medir sua própria inconveniência,<br />
estando sempre se metendo onde não eram chama<strong>dos</strong> e<br />
tinham sempre uma desculpa para toda e qualquer<br />
intervenção nos assuntos alheios. Tão logo Etiènne chegou ao<br />
aposento de Bakhin, o rei anão trancou a porta atrás deles e,<br />
demonstrando uma enorme alegria, sem conseguir conter sua<br />
excitação pelo momento que se aproximava, pediu que<br />
Etiènne o acompanhasse.<br />
Sem entender bem o que Bakhin estava tramando, mas<br />
inteiramente envolvido e comovido pela enorme alegria<br />
demonstrada por seu amigo anão, Etiènne foi obedecendo<br />
suas instruções, sem nada questionar, temendo quebrar o<br />
clima de suspense que estava no ar.<br />
— Esta será uma grande noite! — afirmou Bakhin.<br />
— O que está tramando, amigo?<br />
— Calma, não seja demasiadamente curioso. Tudo a seu<br />
tempo! Mas em primeiro lugar, irei lhe mostrar algo que<br />
venho guardando há muitos anos e que guardei para uma<br />
ocasião especial como essas.<br />
— É difícil não ficar curioso diante de tanto mistério. —<br />
Etiènne sorriu para seu anfitrião.<br />
— Veja! — exclamou Bakhin, apontando para uma<br />
saliência no fundo de seu imenso aposento real. — Veja o que<br />
está atrás daquela pilastra.<br />
Etiènne se aproximou da pilastra e olhou por trás da<br />
saliência que ela proporcionava em relação à parede do fundo<br />
do aposento. Ficou impressionado ao descobrir que, na<br />
331
verdade, aquela pilastra era uma passagem para outro amplo<br />
aposento, e nele, ao contrário da rústica mas rica mobília que<br />
havia no cômodo anterior, aquele era pouco ornamentado,<br />
cheio de vegetação desconhecida. Etiènne estava espantado,<br />
mas ao mesmo tempo, ainda mais curioso em descobrir o que<br />
se tratava aquilo tudo e o mistério que o anão estava fazendo.<br />
Bakhin entrou logo atrás de Etiènne.<br />
— Agora, irei lhe dar o primeiro presente desta noite!<br />
Etiènne não cansava de sorrir, mas agora, já<br />
demonstrava certa ansiedade. Notou que Bakhin puxou uma<br />
pequena arca de dentro de uma gruta que estava coberta por<br />
uma estranha folhagem, e ao abrir a arca, ficou admirado ao<br />
ver o forte brilho que saíra de dentro dela.<br />
O anão retirou de dentro da arca um reluzente escudo<br />
em forma de V, com umas inscrições indecifráveis. Estendeu<br />
seus curtos e troncu<strong>dos</strong> braços em direção a Etiènne, lhe<br />
entregando a bela peça de guerra. Logo em seguida, tornou a<br />
mergulhar os braços dentro da arca, e retirou um magnífico<br />
elmo prateado, com os detalhes muito semelhantes ao que<br />
tinha conhecido em Sombrorn.<br />
— Este elmo e este escudo que está segurando agora<br />
foram recupera<strong>dos</strong> no Vale da Neblina, onde Limanoh, o<br />
antigo rei de Sombrorn, tombou diante <strong>dos</strong> Zaraidai após uma<br />
semana de resistência, diante da Pedra Klaopala, durante a<br />
Guerra da Agonia.<br />
Etiènne ficou assombrado com a possibilidade de que o<br />
próprio Bakhin, pudesse ter tirado a vida do elfo de Sombrorn.<br />
— Não precisa me olhar desta maneira. Não fui eu que<br />
tirei a vida de Limanoh. Como estou afirmando, ele pereceu<br />
diante das hostes <strong>dos</strong> orcs Zaraidai. — O anão fitou Etiènne,<br />
alisou a barba e refletiu por um momento se estava tomando a<br />
decisão certa, mas, afinal de contas, por que ele deveria<br />
guardar aquelas coisas?<br />
— Você deve estar se perguntando por que, eu estou lhe<br />
presenteando com essas peças. Sabe, eu sou um velho anão, e<br />
332
jamais pretendi fazer amizade com essa raça de orelhas<br />
pontudas, portanto, essas coisas não me são úteis, mas ainda<br />
assim, as guardei to<strong>dos</strong> esses anos acreditando que um dia<br />
elas pudessem se tornar úteis, e vejo que não errei em meu<br />
julgamento.<br />
— Não estou compreendendo! — disse Etiènne.<br />
— Veja bem! Tenho grande amizade e estima por ti.<br />
Vosso povo, vossa raça, é nova nestas terras e vocês<br />
precisarão, com certeza, de toda ajuda que puderem para se<br />
firmar nesta região hostil. Os elfos de Sombrorn são os mais<br />
temi<strong>dos</strong> e mais poderosos de Azur. Entregue estas peças de<br />
volta para Aurien, que é a rainha de Sombrorn e filha única de<br />
Limanoh, e terá a gratidão daquela feiticeira para o resto de<br />
seus dias. Diga que lhe presenteei com essas peças, o que não<br />
deixa de ser verdade, e que você, ao saber quem era seu antigo<br />
proprietário, resolveu restituir tão preciosa relíquia a seus<br />
verdadeiros donos.<br />
— Sim, agora entendo. Não sei como agradecê-lo por<br />
essa cortesia e confiança, Bakhin, mas garanto que a rainha<br />
Aurien ficará ainda mais grata a vós, que guardou em<br />
segurança por to<strong>dos</strong> estes anos, as armas do pai dela.<br />
— Não confie demais nos elfos! — retrucou o anão. —<br />
Mas garanta a boa vontade de Sombrorn com esta dádiva que<br />
estou lhe oferecendo, por amizade e apreço que tenho por ti.<br />
— Eu já pretendia firmar meus laços com Sombrorn,<br />
entretanto, de uma outra forma. — sorriu Etiènne.<br />
— Humm... Vejo que seu gosto pelas fêmeas decaiu<br />
desde que o conheci. Antes estava apaixonado por uma vangi,<br />
e agora, por uma elfa, que horror!<br />
— Acredite-me, o que sinto por Sindazel jamais irá<br />
desaparecer de meu coração, contudo, encontrei uma paz<br />
inacreditável numa bela elfa de Sombrorn. Você a conhecerá<br />
em breve, a menos que me proíba de voltar a Bakkin na<br />
companhia dela.<br />
333
Bakhin fez uma terrível careta de desaprovação, mas não<br />
teve coragem de proibir o amigo.<br />
— Não o proibirei, mas quando isso acontecer, minhas<br />
barbas já terão caído! Mas por enquanto, vamos retornar ao<br />
banquete, pois à mesa, poderá mostrar que seu gosto por<br />
comida é mais criterioso que por mulheres — o anão deu uma<br />
pequena piscadela para seu amigo.<br />
Os dois retornaram ao cômodo real de Bakhin, e em<br />
seguida se dirigiram para o enorme salão onde seria<br />
promovido o banquete em homenagem a Etiènne. As<br />
surpresas ainda não haviam acabado, e logo que entrou no<br />
salão, ao lado de Bakhin, foi surpreendido pela presença de<br />
seu irmão Michel Montbard, que já estava confortavelmente<br />
posicionado numa cadeira que fora disposta próxima à mesa<br />
da realeza, onde o próprio Etiènne sentar-se-ia.<br />
Ao ver seu irmão, correu em sua direção como uma<br />
criança sau<strong>dos</strong>a do pai que volta de uma longa viagem, e ao<br />
abraçá-lo com força, percebeu como seu irmão havia<br />
definhado desde a última vez que estiveram juntos na Guerra<br />
da Floresta Dourada. Mas a alegria de reencontrar o irmão foi<br />
superior a qualquer outra pergunta que desejasse fazer, e<br />
tornou a abraçá-lo com grande emoção. Bakhin aproximou-se<br />
<strong>dos</strong> dois e regozijou-se ao constatar a alegria de Etiènne.<br />
— Acho que fiz bem em ter mandado trazer seu irmão<br />
para esta ocasião; afinal de contas, Nouvelle Lyon não é tão<br />
longe assim de Bakkin.<br />
— Você é incrível meu amigo! Esta, sem dúvida alguma,<br />
foi a melhor surpresa que poderia ter me preparado! Estou<br />
muito feliz de reencontrar meu amado irmão.<br />
— Ainda não acabou, ainda não acabou! Mas vamos nos<br />
sentar, creio que vocês queiram conversar bastante antes que a<br />
comida seja servida. Irei resolver algumas questões, mas<br />
voltarei, é claro, para desfrutar do maravilhoso jantar que será<br />
servido em vossa homenagem.<br />
334
Os irmãos Montbard ficaram inteiramente à vontade, e<br />
conversaram sobre como passaram as últimas semanas, desde<br />
os acontecimentos pós-guerra. Michel notou que Etiènne<br />
estava muito mais belo e saudável do que antes, e que adotou<br />
uma postura mais firme até mesmo ao falar.<br />
Não teve coragem de falar sobre Sindazel, e muito<br />
menos de revelar sobre tudo o que acontecera. Todas as vezes<br />
que Etiènne tocava no nome da vangi durante a conversa,<br />
Michel sentia-se desconfortavelmente irritado, e logo<br />
procurava mudar o rumo da prosa. Contou a Etiènne sobre o<br />
suicídio de Peter, e mentiu ao falar sobre Grassac, dizendo que<br />
seu amigo havia sucumbido durante a guerra. Etiènne ficou<br />
chocado com os destinos de Peter e Grassac.<br />
O resto da noite transcorreu maravilhosamente bem,<br />
com Bakhin fazendo um belo discurso em favor de Etiènne,<br />
enaltecendo sua humildade, coragem e nobreza, garantindo<br />
uma vez mais, que o reino de Bakkin estaria sempre disposto a<br />
oferecer apoio aos homens. Ao finalizar seu discurso, Bakhin,<br />
ainda de pé e diante de to<strong>dos</strong> os presentes, anunciou que<br />
naquele momento entregaria a Etiènne um presente que havia<br />
forjado com suas próprias mãos, como prova do afeto e da<br />
enorme amizade que criara por seu amigo francês.<br />
Ao terminar de falar, Bakhin ergueu sobre sua cabeça<br />
dois belíssimos macha<strong>dos</strong> de combate, com reluzentes lâminas<br />
avermelhadas e vigorosos cabos, ambos craveja<strong>dos</strong> de pedras<br />
preciosas. Bakhin esmerou-se para produzir aquelas duas<br />
peças, e to<strong>dos</strong> ficaram encanta<strong>dos</strong> com a beleza daquelas<br />
achas.<br />
Com efeito, Bakhin era um excelente artífice, e apesar de<br />
durante longos anos não ter produzido absolutamente nada,<br />
provou que ainda era exímio na arte da forja e presenteara o<br />
amigo com magníficas peças feitas por suas próprias mãos.<br />
Etiènne recebeu o presente das mãos do próprio rei<br />
Bakhin, fazendo uma reverência a seu anfitrião. Ao pegar os<br />
macha<strong>dos</strong>, rodopiou-os em suas mãos com tamanha destreza<br />
335
que deixou os anões encanta<strong>dos</strong>. O peso daqueles macha<strong>dos</strong><br />
era perfeito, e Etiènne alegrou-se imensamente pelo presente<br />
dado por Bakhin.<br />
— Não tenho palavras para agradecer tamanha<br />
demonstração de amizade. Sinto-me honrado com tudo o que<br />
vosso povo sempre fez por meu irmão e por Nouvelle Lyon, e<br />
a única coisa que posso dizer, é que sempre que for preciso,<br />
estes macha<strong>dos</strong> rubros como o fogo, que me foram<br />
presentea<strong>dos</strong> por Bakhin, estarão dispostos ao favor do reino<br />
de Bakkin!<br />
Neste momento, to<strong>dos</strong> os anões presentes urraram de<br />
alegria, batendo suas pesadas canecas de vinho nas mesas,<br />
como que demonstrando sua satisfação e regozijo pelo<br />
reconhecimento de Etiènne ao carinho que lhe dedicaram.<br />
Etiènne e Michel, dormiram em Bakkin naquela noite,<br />
extasia<strong>dos</strong> pela conversa e bebida que os acompanharam<br />
durante todo o banquete, mas no dia seguinte, logo cedo,<br />
despediram-se do rei Bakhin e partiram cada um para seu<br />
destino. Etiènne voltava para Sombrorn, ansioso por<br />
reencontrar Arthea, e Michel, voltava para sua cidade,<br />
Nouvelle Lyon.<br />
<br />
Etiènne, acompanhado de alguns elfos de Sombrorn, que<br />
haviam firmado acampamento nas mediações da Montanha<br />
das Garbas, onde era o reino de Bakkin, não teve um regresso<br />
muito tranqüilo à Sombrorn. Quando atravessavam a orla<br />
oeste do Lago Negro, em direção à Floresta das Sombras,<br />
foram surpreendi<strong>dos</strong> por uma horda de orcs Grunkdai,<br />
provenientes das Montanhas Lunares.<br />
Estes orcs, ao contrário de todas as outras tribos<br />
conhecidas, eram os únicos a usar macha<strong>dos</strong> como armas, a<br />
exemplo <strong>dos</strong> anões. Lançaram-se sobre a comitiva de Etiènne<br />
com uma fúria alucinante, brandindo seus pesa<strong>dos</strong> macha<strong>dos</strong>,<br />
aterrorizando os poucos elfos que acompanhavam Etiènne. Foi<br />
336
uma luta covarde, pois haviam quase seis orcs para cada elfo<br />
de Sombrorn, e por mais que fossem excelentes guerreiros, um<br />
a um iam sucumbindo à investida <strong>dos</strong> perversos monstros.<br />
Etiènne, empunhou seus macha<strong>dos</strong> novos, que Bakhin havia<br />
lhe presenteado, e juntou-se aos elfos demonstrando grande<br />
destreza com suas novas armas, ora rechaçando os orcs que<br />
vinham em sua direção, ora arrasando o crânio de outros mais<br />
descuida<strong>dos</strong> ao seu redor.<br />
A luta prosseguia, mas o cansaço estava esgotando os<br />
poucos elfos que restavam e também a Etiènne. Ficaram<br />
acua<strong>dos</strong> na orla do lago, já com os pés dentro d’água, sem<br />
nenhuma opção de fuga, a menos que tentassem nadar<br />
naquelas águas sombrias, o que não era nada aconselhável,<br />
pois no Lago Negro, habitavam serpentes aquáticas<br />
gigantescas, capazes de engolir um elfo inteiro numa única<br />
arremetida contra suas vítimas.<br />
Muitos orcs foram mortos durante o combate, mas<br />
restavam vários deles ainda mais furiosos e toma<strong>dos</strong> de desejo<br />
pelo sangue daqueles poucos elfos que ainda resistiam<br />
bravamente.<br />
Para a sorte de Etiènne, quando a esperança parecia<br />
finalmente tê-lo abandonado, um pequeno grupo de<br />
cavaleiros de armadura dourada e reluzentes como o sol, de<br />
capas pretas lustrosas, surgiram ao norte, e lançaram-se contra<br />
os orcs que os cercavam. Os elfos começaram a gritar de<br />
alegria, pois reconheceram aqueles cavaleiros que acabavam<br />
de chegar e souberam que estariam salvos. <strong>Era</strong>m os<br />
destemi<strong>dos</strong> Cavaleiros Yasmunthil, os guerreiros monges <strong>dos</strong><br />
antigos elfos, temi<strong>dos</strong> em toda a Thalide! Estes guerreiros<br />
habitam a região do Vale da Neblina, sendo cavaleiros tão<br />
solitários quanto ocultos, pois jamais se revelavam, apenas<br />
conheci<strong>dos</strong> como os Yasmunthil, que significava algo parecido<br />
com “Espectro Elfo”.<br />
Os Yasmunthil lutavam como verdadeiros mestres da<br />
guerra, demonstrando segurança, domínio, destreza e acima<br />
337
de tudo, presença de espírito. Percebiam os golpes ao seu<br />
redor, e os aparavam ou rechaçavam com magnífica precisão e<br />
agilidade, deixando seus oponentes tão atônitos quanto<br />
apavora<strong>dos</strong>, pois nenhum golpe, por mais inesperado que<br />
fosse, conseguia atingir um Yasmunthil. Rolavam por suas<br />
capas, faziam piruetas e giravam no ar com tamanha leveza<br />
que pareciam voar. Estavam em um pequeno grupo de quatro<br />
cavaleiros, e suas presenças naquele local deveria mesmo ser<br />
atribuída a uma dádiva divina, pois os Yasmunthil já não<br />
deixavam sua região há décadas.<br />
Não demorou muito para que os Grunkdai, ao<br />
perceberem que não conseguiriam abater aqueles poderosos<br />
cavaleiros doura<strong>dos</strong> em suas capas negras, batessem em<br />
retirada.<br />
Após a luta, os Yasmunthil se aproximaram <strong>dos</strong> elfos<br />
sobreviventes do grupo de Sombrorn, que imediatamente se<br />
curvaram em agradecimento por lhes terem salvo as vidas.<br />
Um <strong>dos</strong> Yasmunthil falou em uma língua irreconhecível<br />
para Etiènne, mas um de seus companheiros de Sombrorn,<br />
traduziu a mensagem, informando-o de que o procuravam.<br />
Etiènne, espantado, sem conseguir imaginar por que razão<br />
estaria sendo procurado por aqueles cavaleiros doura<strong>dos</strong>,<br />
sobressaltou-se, ficando apreensivo. Contudo, deu dois passos<br />
à frente, em direção ao Yasmunthil, e fez uma curta mesura,<br />
como que revelando-se e colocando-se à disposição do<br />
estranho.<br />
O cavaleiro tornou a falar outras palavras<br />
irreconhecíveis, dirigindo-se a Etiènne que, constrangido por<br />
não entender o que o estranho falava, olhou para seu amigo,<br />
insinuando que aguardava sua nova intervenção na<br />
interpretação do que fora falado. O elfo prontamente atendeu<br />
ao olhar suplicante de Etiènne, e informara que o Yasmunthil<br />
dizia que outro grupo os estava procurando, e com eles havia<br />
uma pessoa querendo reencontrá-lo.<br />
338
Etiènne foi tomado por uma incrível emoção,<br />
acreditando que finalmente reencontraria Sindazel e poderia<br />
encará-la frente à frente, na tentativa de eliminar todas as suas<br />
dúvidas sobre a decisão que queria tomar em relação à Arthea.<br />
Virou-se para o Cavaleiro Yasmunthil, e sentiu uma enorme<br />
gratidão por aquele ser incógnito e quase sobrenatural.<br />
Com o olhar tomado de alegria, pediu a seu<br />
companheiro de Sombrorn que indagasse ao cavaleiro<br />
dourado sobre o que deveria fazer. Deveria acompanhá-los ou<br />
aguardar naquele local a chegada <strong>dos</strong> outros cavaleiros? Mas<br />
antes mesmo que o elfo pudesse se dirigir ao Yasmunthil, o<br />
outro grupo <strong>dos</strong> cavaleiros doura<strong>dos</strong> já podia ser avistado<br />
mais ao norte, vindo em sua direção. To<strong>dos</strong> olharam para os<br />
novos Yasmunthil que se aproximavam, e Etiènne, ainda mais<br />
ansioso e com o coração retumbando aceleradamente dentro<br />
do peito, tentava identificar Sindazel entre eles, mas não<br />
conseguiu encontrá-la. Quando os novos Yasmunthil se<br />
juntaram a eles, Etiènne ficou surpreso quando um deles veio<br />
diretamente em sua direção, e o tomou nos braços, com um<br />
afetuoso e caloroso abraço, resmungando algumas palavras<br />
que ele sequer conseguiu ouvir direito, tamanha fora sua<br />
estupefação.<br />
Numa reação instintiva ao surpreendente abraço,<br />
Etiènne, que ficara com seus braços abertos, fechou-os<br />
envolvendo lentamente o corpo daquele estranho, tentando<br />
retribuir a demonstração de carinho que lhe fora dispensada.<br />
O cavaleiro, então, afastou-o e retirou seu belíssimo<br />
elmo dourado, que mais lembrava a cabeça de um dragão,<br />
com duas pequenas asas de morcego artisticamente<br />
trabalhada em ouro em suas laterais.<br />
Ao revelar-se, aquele rosto mais do que conhecido de<br />
Etiènne, injetado e banhado em lágrimas, encheu-o de<br />
felicidade, pois tratava-se de ninguém mais que, seu grande<br />
amigo Grassac! Emocionado, precipitou-se novamente sobre o<br />
339
amigo, e agora, abraçou-o com toda alegria, agradecendo a<br />
Deus pela grata surpresa num momento mais que oportuno.<br />
— Ainda bem que meus novos companheiros o<br />
encontraram a tempo. Se demorassem mais um pouco, teria<br />
perdido o único e verdadeiro amigo que tenho!<br />
— Não acredite nisso, tínhamos tudo sob controle! Seus<br />
companheiros doura<strong>dos</strong> quase não fizeram nada, ficaram<br />
apenas com as sobras. — Grassac fez uma careta de incrédulo<br />
para Etiènne, sorrindo extasiado de tanta felicidade.<br />
— Como se eu pudesse acreditar nisso! — os dois riram,<br />
se abraçaram e caminharam juntos por algum tempo, à beira<br />
do lago. Os Yasmunthil, reuniram-se aos elfos de Sombrorn e<br />
amontoaram as carcaças <strong>dos</strong> orcs, para queimá-las. Trataram<br />
<strong>dos</strong> elfos que estavam com alguns ferimentos, improvisaram<br />
um breve funeral para os companheiros mortos e, logo em<br />
seguida, sentaram-se em círculo, aguardando o retorno <strong>dos</strong><br />
dois humanos que pareciam colocar em dia meses de conversa<br />
perdida.<br />
Grassac, apesar de ainda guardar um ódio mortal por<br />
Michel Montbard, poupou seu amigo Etiènne da verdade,<br />
quando este o indagou sobre como havia sobrevivido após a<br />
Guerra da Floresta Dourada, se seu irmão mais velho o havia<br />
informado de sua morte. Muito a contragosto e com certa<br />
relutância, Grassac confirmou a versão de seu traidor<br />
afirmando que, na verdade, não fora encontrado por ninguém<br />
e havia sido dado como morto. Assim, também mentiu para<br />
Etiènne, abreviando ao máximo o assunto e acentuando mais<br />
o fato sobre como fora parar junto aos Yasmunthil, sem<br />
revelar-lhe a atitude desumana de Michel na Guerra da<br />
Floresta Dourada. Limitou-se a contar um pouco sobre sua<br />
nova vida e de como estava feliz ao lado daqueles elfos<br />
maravilhosos e dedica<strong>dos</strong>, que muito o estavam ensinando<br />
sobre a vida em <strong>Virgo</strong>, e to<strong>dos</strong> os seus perigos.<br />
Após uma demorada conversa, os dois despediram-se<br />
emocionadamente, mas não sem excessivas promessas de que<br />
340
procurariam um ao outro assim que cumprissem, cada um,<br />
suas pendentes questões. Grassac, iria concluir seu<br />
treinamento com seus salvadores, os Cavaleiros Yasmunthil, e<br />
Etiènne, conforme revelara ao amigo, estava retornando à<br />
Sombrorn para unir-se em matrimônio com Arthea, de quem<br />
lhe falara com nítida alegria na alma, fato que deixou Grassac<br />
mais aliviado, pois acreditava que Sindazel havia esquecido<br />
Etiènne, preterindo-o por causa de Michel.<br />
Após um caloroso abraço, finalmente separaram-se.<br />
Etiènne, ainda ficou observando seu amigo distanciar-se para<br />
o oeste, junto aos Cavaleiros Yasmunthil. Rezou uma prece<br />
secretamente em seu coração, rogando a Deus que zelasse por<br />
seu amigo, e que pudessem se rever o mais breve quanto fosse<br />
possível. Tão logo Grassac sumiu de vista, Etiènne e seus<br />
companheiros de Sombrorn, que agora contavam apenas onze,<br />
retomaram seu caminho ao norte, pois pretendiam chegar ao<br />
reino antes de anoitecer.<br />
<br />
Quando chegou à Sombrorn, Etiènne logo foi<br />
interpelado por Ascathion, o ministro do reino, que fora<br />
incumbido de lhe tomar todas as informações possíveis<br />
referentes à sua visita até o reino de Bakkin. Exausto da<br />
cansativa viagem, e sobretudo, muito abatido devido ao<br />
confronto com os orcs Grunkdai na região do Lago Negro,<br />
Etiènne não se demorou muito com Ascathion, resumindo ao<br />
máximo possível tudo o que havia acontecido. Ao final da<br />
breve conversa, Etiènne entregou a Ascathion as armas e<br />
armadura de Limanoh, informando que as havia recebido<br />
como presente do próprio rei Bakhin, mas ao saber que<br />
pertencerá ao pai da rainha, decidiu que fossem restituídas à<br />
Aurien. O ministro arregalou os olhos, incrédulo diante<br />
daquela atitude de Etiènne, que ao invés de manter consigo<br />
aquele admirável e precioso conjunto de armas e armadura,<br />
espontaneamente resolveu entregá-los à sua rainha.<br />
341
Ascathion fez uma curta mesura para Etiènne,<br />
encantado com sua generosidade e nobreza de espírito.<br />
Os dois se afastaram e Etiènne foi ao encontro de sua<br />
amada. Apesar de estar dentro do reino de Sombrorn, ainda<br />
precisava caminhar um longo trecho até as muralhas<br />
interiores que protegiam o conjunto de habitações onde<br />
morava.<br />
Etiènne observou que Arthea o aguardava nos portões<br />
desta muralha que leva ao interior da região de habitações.<br />
Muito aflita, num estado de nervos que jamais havia<br />
encontrado nela antes, viu sua amada correr em sua direção,<br />
atirando-se aos prantos em seus braços, sem conseguir se<br />
controlar. Ficou confuso e pesaroso ao vê-la neste estado de<br />
desespero.<br />
Tentou acalmá-la, mas era inútil, pois Arthea não<br />
conseguia parar de chorar, agarrada a Etiènne com tanta<br />
violência que o estava machucando. Atônito, ele tentou<br />
confortá-la em seus braços, e aguardou pacientemente que ela<br />
se acalmasse por si, tal como um pai aguarda, sôfrego, o choro<br />
de um filho enfermo silenciar.<br />
Arthea, por fim, arrefeceu o sofrimento e soltou Etiènne,<br />
mas seu rosto ainda estava tomado de tristeza. Seus lin<strong>dos</strong><br />
olhos verdes estavam mergulha<strong>dos</strong> em uma vermelhidão<br />
sofrida, de quem chorara por várias horas. Etiènne acariciou<br />
seu rosto com ternura, limpando-lhe as lágrimas com seu dedo<br />
polegar e segurando suas mãos com delicadeza.<br />
— O que aconteceu minha amada? Que tristeza enorme<br />
é essa que se apossou de você?<br />
— Meu amor, tenho medo de perdê-lo! Não quero mais<br />
ficar sem você! Não quero que me deixe, nunca!<br />
— Mas por que está assim? Por que acha que irei deixála?<br />
Terei me demorado tanto em Bakkin, para supor uma coisa<br />
dessas?<br />
— Prometa que não irá me abandonar! Prometa que<br />
realizaremos nossos planos e celebraremos a primeira união<br />
342
entre homens e elfos com o nosso amor! — Arthea estava<br />
demonstrando-se muito fragilizada, e praticamente suplicava<br />
um voto de fidelidade a Etiènne.<br />
— Meu amor! Meu amor, eu não a abandonarei! Mas<br />
agora, quero que me conte o motivo desta crise!<br />
— Sindazel!<br />
Etiènne ficou assombrado ao ouvir o nome da vangi<br />
sendo proferido por Arthea. Ficou lívido, e mal conseguiu<br />
esconder a afetação que o nome de Sindazel lhe causara.<br />
— O que tem Sindazel? — perguntou Etiènne, tentando<br />
inutilmente dissimular que havia ficado abalado ao ouvir o<br />
nome da vangi.<br />
— Ela está em Sombrorn! Veio encontrá-lo!<br />
— Calma, meu amor. Quero que confie em mim. Nada<br />
irá nos separar, nem mesmo Sindazel. Todavia, acredito que<br />
este encontro seja importante. Eu sabia que mais cedo ou mais<br />
tarde nos encontraríamos novamente. Deixe-me falar com ela,<br />
prometo-lhe que tudo ficará bem conosco.<br />
— Você tem certeza de que realmente quer encontrá-la?<br />
— É preciso, meu amor. Esperei mais de quatro anos por<br />
este momento, embora tenha sido com outra perspectiva antes<br />
de conhecê-la aqui em Sombrorn. Mas se eu não souber o que<br />
vou sentir diante de Sindazel, se eu não vencer esta angústia<br />
que ainda domina meu coração, não poderei entregar-me de<br />
corpo e alma aos nossos sonhos.<br />
— E se ela... se ela conquistar de vez seu amor?<br />
Etiènne tornou a abraçar Arthea, dizendo em seu<br />
ouvido:<br />
— Não estou correndo este risco, pois meu amor está<br />
protegido dentro de seu coração, minha amada.<br />
Arthea, agarrou-se com força a seu homem, jurando-lhe<br />
entre lágrimas que haveria de o amar por toda sua vida.<br />
Depois de prometer a Etiènne que o aguardaria em casa, os<br />
dois despediram-se com um demorado beijo. Cheia de<br />
angústia, observou seu amado afastar-se em direção ao palácio<br />
343
central, onde, conforme informou a Etiènne, Sindazel estava<br />
hospedada há vários dias. Arthea retornou para sua casa,<br />
conforme prometera a Etiènne, mas com o coração pesado.<br />
<br />
Sindazel aguardava por Etiènne num amplo cômodo<br />
que lhe fora cedido pela própria rainha Aurien. Passou vários<br />
dias em Sombrorn esperando pelo retorno de seu amado.<br />
Quando foi avisada de que ele havia regressado e já se<br />
encontrava no palácio onde estava, foi tomada por uma<br />
enorme alegria.<br />
Quando Etiènne bateu à sua porta, mal pôde conter sua<br />
felicidade. Com o peito arfando foi correndo recebê-lo, cheia<br />
de amor para dedicar-lhe, após tanto tempo e tantos<br />
desencontros. Ao abrir a porta, os dois se entreolharam,<br />
ofegantes, ambos com o batimento cardíaco acelerado como<br />
nunca. Sindazel lançou-se sobre Etiènne abraçando-o,<br />
recostando a cabeça em seu peito e envolvendo-o por inteiro<br />
com suas magníficas asas.<br />
Etiènne mal podia acreditar que Sindazel estava ali, em<br />
seus braços, com o corpo colado ao seu e oferecendo-lhe a<br />
mais deliciosa sensação de felicidade que jamais<br />
experimentara em sua vida, tamanha havia sido sua ansiedade<br />
em reencontrá-la. Sentiu o corpo macio de Sindazel, seu<br />
cheiro, as plumas de suas asas sobre seu próprio corpo<br />
pareciam enfeitiçá-lo. Não resistindo à tentação, também a<br />
abraçou, agora forçando-a com firmeza contra seu próprio<br />
corpo e acariciando seus negros cabelos se<strong>dos</strong>os.<br />
— Por que você não respondia aos meus chama<strong>dos</strong>? —<br />
indagou Etiènne. — Passei dias, semanas, meses e anos<br />
clamando por você. Por que não veio me encontrar?<br />
— Meu amor! Muitas coisas aconteceram e impediramme<br />
de vir a teu encontro. Não fazia idéia do que era o amor,<br />
até que nos conhecemos, mas somente depois de certo tempo e<br />
certas experiências dei-me conta de que estava perdidamente<br />
344
apaixonada por ti. Perdoe-me! Perdoe-me por ter me<br />
demorado tanto, meu amor.<br />
Afastando-se um pouco de Sindazel, segurou suas mãos<br />
com a cabeça baixa por alguns segun<strong>dos</strong> e então ergueu o<br />
rosto com o olhar injetado, dizendo:<br />
— Deus é testemunha de quanto amor eu sinto por você,<br />
Sindazel. É testemunha de quanto sofrimento suportei por sua<br />
ausência, por seu silêncio, e ainda assim, jamais perdi um<br />
mínimo que fosse deste amor que tenho por você!<br />
— Meu amor, que bom! Agora poderemos ficar juntos,<br />
por todo o tempo que quiser. Nem mesmo Granuzael poderá<br />
impedir nossa união!<br />
— Não, Sindazel. Você não compreende; apesar de ainda<br />
amá-la do fundo de minha alma, não poderemos mais nos<br />
unir, pois já assumi um compromisso com outra pessoa, e<br />
mesmo que eu quisesse, não poderia traí-la!<br />
Sindazel não acreditou no que acabara de ouvir,<br />
enrubescendo e sentindo-se de certa forma, ela própria traída.<br />
Valendo-se de seus poderes, perscrutou a mente de Etiènne, e<br />
ao descobrir o motivo pelo qual Etiènne havia falado daquela<br />
forma, desatou a chorar, inundando de lágrimas seus belos<br />
olhos azuis, transformando-os em dois minúsculos oceanos de<br />
tristeza.<br />
Etiènne, não podendo suportar a tristeza de sua amada,<br />
também foi banhado por suas lágrimas.<br />
— Sinto muito, meu amor, estou sentindo-me<br />
dilacerado!<br />
— Como pôde permitir isso? — questionou. — Como<br />
pudestes trocar-me por outra, sem ao menos ter deixado de<br />
me amar? Não consigo entender, porque, sim, tu me amas, sou<br />
capaz de saber estas coisas sem mesmo me confessares, mas<br />
não sou capaz de entender o que o fez abandonar-me, em<br />
nome de Arthea!<br />
345
Etiènne olhou assustado para a vangi, pois como ela<br />
descobrira que Arthea era sua companheira? Teria, Arthea,<br />
conversado algo com Sindazel?<br />
— Como sabe? Como sabe que é Arthea?<br />
— Não importa! Como disse, sou capaz de descobrir o<br />
que preciso sem que haja a necessidade de respostas verbais.<br />
Como vangi, tenho certos poderes, mas isso não vem ao caso;<br />
o que me deixa arrasada, é não entender como pôde se deixar<br />
apaixonar por outra mulher, sentindo tanto amor por mim.<br />
— Você jamais entenderá o coração <strong>dos</strong> homens!<br />
— Talvez você tenha razão, porque isto é inconcebível, e<br />
não consigo aceitar o que está fazendo comigo! Me amas<br />
profundamente, e ainda assim pretende deixar-me só.<br />
— Bendito é o homem que consegue canalizar todo o seu<br />
amor para uma única mulher, e agraciada a mulher que<br />
conseguir absorver para si todo o fogo de desejo e paixão que<br />
consomem a alma de um homem!<br />
— Etiènne, pense no que está fazendo. Eu mesma<br />
poderei conversar com Arthea, se desejar. Ela há de entender<br />
que nosso amor precede ao que existe entre vocês. Não deixe<br />
que uma aventura com esta elfa possa suplantar os<br />
sentimentos que existe entre nós.<br />
— Gostaria muito que as coisas fossem tão simples como<br />
coloca, mas o que sinto por Arthea não é o fogo de uma<br />
aventura passageira. Por favor, não me peça para fazer o que<br />
não posso. Preciso voltar para Arthea, mas antes de deixá-la,<br />
quero que saiba, Sindazel, que jamais deixarei de te amar, e<br />
pensarei em você to<strong>dos</strong> os dias pelo resto de minha vida!<br />
— Por favor, não vá ainda. Precisamos conversar mais<br />
um pouco, precisamos encontrar uma solução para esta<br />
situação inusitada. Em nome do amor que sentes por mim,<br />
fique mais um pouco e deixe-me pensar em algo.<br />
— Não posso, você não sabe o quanto está sendo difícil<br />
para mim tomar esta decisão, não posso mais ficar!<br />
346
— Então me beije antes de ir, por favor, não me deixe<br />
sem ao menos permitir que conheça seus lábios e sinta seu<br />
amor fluindo para dentro de mim através de seu beijo.<br />
— Não, por Deus! Não posso fazer isso! Por mais que eu<br />
deseje este beijo, não posso!<br />
Etiènne ficou louco com a proposta de Sindazel, queria<br />
correr e fugir dali, mas ao mesmo tempo, queria se atirar aos<br />
braços da vangi e beijá-la como sempre sonhou,<br />
apaixonadamente.<br />
— Eu poderia usar meus poderes para conseguir<br />
dominar sua mente e roubar este beijo, mas percebo em você<br />
uma dignidade e nobreza tão grande, que não irei fazer isso,<br />
mas imploro, meu amor, me beije, me beije uma única vez,<br />
não me deixe ir embora sem provar do seu amor.<br />
Sindazel caminhou novamente até bem próximo a<br />
Etiènne, abrindo os braços e cerrando os olhos, esperando<br />
receber o beijo tão desejado.<br />
Sem conseguir mover-se do lugar, e tomado pelo<br />
desespero de quem precisa tomar uma decisão que não quer,<br />
acabou sucumbindo à tentação e mergulhou em Sindazel,<br />
beijando-a loucamente com toda a paixão contida que sentia<br />
por ela.<br />
Embalado pelo beijo, encheu-se do desejo de tocar os<br />
seios de Sindazel, consumando definitivamente, o que já<br />
estava considerando uma horrível traição contra Arthea, mas<br />
ao pensar na elfa, afastou-se bruscamente de Sindazel.<br />
— Adeus!<br />
Foi a última palavra que a vangi ouviu de Etiènne, que<br />
retirou-se apressadamente do cômodo onde estavam. Sem<br />
coragem de abrir os olhos, Sindazel levou as mãos ao rosto e<br />
permaneceu imóvel, mergulhada numa profunda tristeza.<br />
<br />
Enquanto Sindazel e Etiènne se encontravam, Ascathion<br />
fora até sua majestade, a rainha Aurien, para anunciar-lhe<br />
347
sobre o que Etiènne relatara e, principalmente, entregar-lhe as<br />
armas e armadura de Limanoh, seu falecido pai.<br />
Atônita, ao rever a bela armadura de Limanoh, Aurien<br />
abraçou as peças com grande emoção, e apesar de não se<br />
deixar abater por sentimentos na frente de quem quer que<br />
fosse, desde a morte de seu pai, desta vez não conseguiu<br />
conter as lágrimas ao relembrar do dia em que o vira pela<br />
última vez saindo de Sombrorn, trajando aquela suntuosa<br />
armadura de guerra.<br />
— Como conseguiu isso?<br />
— Segundo Etiènne, os anões de Bakkin encontraram o<br />
corpo de vosso pai, que jazia no campo <strong>dos</strong> mortos após a<br />
derrota de nosso exército no Vale da Neblina. Ao reconhecer o<br />
rei, os anões se apoderaram de suas armas e armadura, para<br />
que fossem entregues a Bakhin, que por sua vez, as guardou<br />
até esta ocasião, em que as usou para presentear nosso<br />
hóspede.<br />
— Então, porque ele não quis manter o presente? Afinal,<br />
os anões não o presentearam com os despojos de que sequer<br />
faziam jus? Raça maldita!<br />
— De fato, apesar de não terem comparecido a tempo<br />
para a batalha, ficaram com os despojos daquele dia, pois os<br />
orcs sobreviventes bateram em retirada.<br />
— Majestade, permita-me uma observação, o importante<br />
é que os objetos de vosso pai foram resgata<strong>dos</strong> e guarda<strong>dos</strong><br />
por to<strong>dos</strong> estes anos, e pelo estado das peças, percebo que<br />
tiveram o maior zelo e respeito. Agora, estão novamente em<br />
poder de vossa majestade, que poderá, se desejar, uma vez<br />
mais empunhar a temida espada mestra de Sombrorn.<br />
Ainda abraçada à armadura de seu pai, Aurien insistiu<br />
em saber o motivo pelo qual Etiènne desdenhara de tal<br />
presente.<br />
— Majestade, ao tomar conhecimento de que tais peças<br />
pertenceram a vosso pai, nosso hóspede não hesitou em<br />
devolvê-las, abrindo mão de seu direito em ficar com elas.<br />
348
— É incrível ver um humano desprezar um tesouro<br />
inestimável como este. São peças adornadas em ouro e pedras<br />
preciosas que mesmo os anões dariam suas vidas para ficar<br />
com elas. É ainda mais incrível que Bakhin tenha se permitido<br />
privar-se destas ricas peças. Que poder este humano poderá<br />
Ter exercido sobre o maldito anão, para que ele lhe<br />
presenteasse com tanta riqueza?<br />
— Não tenho certeza, majestade, mas talvez, para esta<br />
raça de criaturas, estes humanos, nem toda a riqueza constituise<br />
de ouro ou pedras preciosas. Quem sabe consigam entender<br />
como tesouros a honra, a justiça e o amor? Talvez estes<br />
sentimentos possam ser toma<strong>dos</strong> por estas estranhas criaturas<br />
como tesouros ainda mais caros que quaisquer outros que<br />
sejam de natureza material.<br />
— Talvez, Ascathion, talvez.<br />
Com um semblante preocupado e seus belos olhos<br />
acizenta<strong>dos</strong> ainda mareja<strong>dos</strong>, tornou a abraçar a armadura de<br />
seu pai e ficou um longo tempo meditando sobre a atitude de<br />
Etiènne.<br />
<br />
Arthea, estava aguardando Etiènne na sacada de seu<br />
aposento, que dava para os maravilhosos jardins de<br />
Sombrorn, cheios de suas ricas e coloridas flores que<br />
perfumavam todo o reino com seus diferentes cheiros<br />
adocica<strong>dos</strong>. Encostada na parede, com o olhar ainda injetado e<br />
perdido na imensidão de cristais que cobriam <strong>Virgo</strong> com suas<br />
matizes rosadas, sentiu um frêmito correr-lhe pelo corpo<br />
quando ouviu, assustada, o enorme grasnado de<br />
Laicrunallian. Correu até o limite do parapeito de sua sacada,<br />
e observou o vôo em curva que o enorme dragão branco fez ao<br />
longo das muralhas de Sombrorn, partindo rumo ao oeste.<br />
Num átimo, sua sensação de medo e angústia foram<br />
substituí<strong>dos</strong> por alívio e esperança, pois sabia que<br />
349
Laicrunallian estava partindo para Vangilla levando Sindazel<br />
consigo.<br />
Correu para dentro de seu quarto, a tempo de ver<br />
Etiènne transpondo a luxuosa porta, com um sorriso que a fez<br />
sentir uma felicidade inundando-lhe a alma como um<br />
verdadeiro maremoto de emoções.<br />
— Sou o seu Etiènne, para sempre!<br />
Arthea atirou-se em seus braços, e o beijou<br />
apaixonadamente, abraçando-o com fervor, acariciando o<br />
rosto e as costas de seu amado num movimento contínuo e ao<br />
mesmo tempo desesperado, como que buscando senti-lo, para<br />
certificar-se que era verdade que ele estava ali, com ela.<br />
— Tive tanto medo, meu amor! — disse a elfa.<br />
— Não há mais nada a temer, minha doce amada. Você<br />
semeou em meu coração um amor que, brotou com tanta<br />
força, que jamais conseguirei viver sem você. Acredite-me,<br />
guardarei com respeito o carinho e amor que sinto por<br />
Sindazel, mas hoje, eu me entrego a você sem quaisquer<br />
dúvidas, para vivermos um para o outro, pelo resto de nossos<br />
dias.<br />
Apesar de profundamente triste e não ter certeza<br />
absoluta do que estava prometendo para Arthea, Etiènne<br />
precisava a todo custo, dissimular sua angústia, para não<br />
despertar a desconfiança em sua companheira.<br />
Arthea, por sua vez, comovida e cheia de seu amor,<br />
compreendeu as palavras de Etiènne, e em seu íntimo,<br />
regozijou-se por ter prevalecido à vangi, conquistando seu<br />
homem quando imaginava estar tudo perdido. Sorriu,<br />
radiante, com aqueles lábios macios e vermelhos como rubis,<br />
mostrando aqueles perfeitos dentes brancos como pérolas, e<br />
abraçou seu amado novamente, com força.<br />
— Eu te amo, eu te amo!<br />
— Eu também te amo, minha vida! Te quero para<br />
sempre! — Etiènne a beijou, com amor verdadeiro, um amor<br />
que estivera há muito tempo perdido dentro de seu coração,<br />
350
mas agora havia encontrado seu destino. Amava as duas e não<br />
sabia como suportaria viver longe de Sindazel, mas sabia que<br />
o compromisso assumido naquele momento com Arthea<br />
deveria ser intocável e respeitado com toda a sua força.<br />
<br />
Assim como o coração de Etiènne, confuso e cheio de<br />
paixão, também reage a própria humanidade, caminhando por<br />
esta e por todas as terras, sejam elas reais ou fantasiosas, tenha<br />
sido no passado, possa ser agora, ou talvez no futuro, mas<br />
sempre, sempre caminhando com as mesmas peculiaridades<br />
natas aos corações de cada um <strong>dos</strong> homens, com paixão.<br />
Normalmente aflitos e tumultua<strong>dos</strong>, mas sempre desejosos de<br />
encontrar algo novo que, muitas vezes, sem mesmo ter certeza<br />
do que se trata, precisam buscar, vivenciar e desvendar, para<br />
desta forma garantir sua vitalidade. Às vezes, o coração de um<br />
homem mergulhado em suas paixões, é sôfrego e abatido,<br />
chegando mesmo a quase interromper sua atividade, mas no<br />
momento seguinte, através de uma nova brisa, um novo<br />
suspiro, bate forte e violento mais uma vez, como que<br />
dizendo: Estou vivo!<br />
Ele é capaz de nos levar aos mais remotos lugares dentro<br />
de nossa própria consciência, lugares sombrios e<br />
desconheci<strong>dos</strong> que nos revelam as muitas faces da<br />
humanidade, refletindo-se em nosso próprio ser. Medo, receio,<br />
angústia, dor, sofrimento, to<strong>dos</strong> elementos que fazem parte de<br />
nossas vidas, mas que enriquecem assustadoramente a busca<br />
de cada um de nós, que superando inúmeros e sucessivos<br />
obstáculos, insistimos em prosseguir adiante. Obstáculos que<br />
surgem a cada nova trilha, a cada nova tentativa desesperada<br />
de fuga <strong>dos</strong> problemas que nos afligem a to<strong>dos</strong>, obstáculos<br />
que forçam ainda mais nossos corações a explorar todas as<br />
suas forças.<br />
E há, sem sombra de dúvida, poderosas forças que<br />
nascem dentro de nossos corações, uma vez que sejam<br />
351
submeti<strong>dos</strong> à estes obstáculos, porque despertam outros<br />
elementos antagônicos aos cita<strong>dos</strong> anteriormente. Fé,<br />
esperança, compaixão, felicidade, amor. Um coração completo<br />
é aquele que desvenda to<strong>dos</strong> os seus mistérios e revela to<strong>dos</strong><br />
os seus elementos. Um coração completo é aquele que<br />
encontra o seu próprio equilíbrio, entre o bem e o mal, entre a<br />
alegria e a tristeza. Felizes os homens que encontram este<br />
equilíbrio, pois em seus corações, poderão brotar com<br />
plenitude as sementes de um amor verdadeiro.<br />
Aos homens, fora concedida a oportunidade de escolher<br />
seus próprios caminhos, seja para o bem, seja para o mal. Uma<br />
perigosa dádiva, mas que nos permite tomar esta decisão, não<br />
em um único momento, e muito menos definitivamente, mas a<br />
cada metro percorrido em nossa longa caminhada pela vida,<br />
às vezes solitários, outras vezes, apoia<strong>dos</strong> em outros<br />
peregrinos que vamos conhecendo em nossas trilhas.<br />
Algumas trilhas passam diante de nossos olhos, sem que<br />
ousemos aventurarmo-nos a conhecê-las, enquanto outras,<br />
menos encorajadoras, passam por <strong>Virgo</strong>, e de repente, nos<br />
sentimos convida<strong>dos</strong> ou instiga<strong>dos</strong> a segui-las, mas são<br />
apenas fantasiosas, e não podem nos receber<br />
verdadeiramente.<br />
Mas revelam, sim, e como revelam, que nossas vidas<br />
humanas são efêmeras, e que nosso tempo neste mundo é<br />
curto demais para arrependimentos, intransigências e até<br />
mesmo para demasia<strong>dos</strong> sofrimentos.<br />
Etiènne lutou e sobreviveu, encontrou amigos e<br />
inimigos, sofreu e amou intensamente. Encontrou muitos<br />
obstáculos, momentos de desolação, de desespero, mas<br />
também momentos de alegria e de felicidade. Teve opções, fez<br />
escolhas, certas ou erradas, quem saberá dizer? Mas fez suas<br />
escolhas, sempre seguindo os caminhos que seu coração<br />
indicava, assim como a maioria <strong>dos</strong> desbravadores de nossa<br />
raça fizeram em nossa história.<br />
352
Viverá ao lado de Arthea por muitos anos em Sombrorn,<br />
e apesar de jamais conseguir esquecer Sindazel, a amará com<br />
toda sua alma. Terá seus filhos com a elfa, os educará com<br />
amor e carinho como um bom pai, mas há algo certo para<br />
to<strong>dos</strong> os homens mortais, e não pensem que irei dizer que é a<br />
morte, em absoluto! Existe outra coisa na vida <strong>dos</strong> homens<br />
mortais que também é certa, tão certa quanto a própria morte<br />
que acabamos de lembrar. É a jornada! Sim, a jornada de<br />
nossas vidas, com suas surpresas, seus obstáculos, suas novas<br />
trilhas, elas não param de surgir diante de nós, pois nosso<br />
coração continua a bater. Somente quando ele parar não<br />
haverá novas opções, novas tentações, novas provações. A<br />
jornada <strong>dos</strong> homens continuará, sempre. Mesmo quando se<br />
passarem muitos séculos e a profecia da Pedra Klaopala se<br />
consumar, mesmo quando não existirem mais os elfos, os<br />
anões, os orcs e todas as outras raças superiores, a jornada <strong>dos</strong><br />
homens por todas as terras continuará os envolvendo em<br />
muitas outras aventuras. A história <strong>dos</strong> homens não termina<br />
em nosso tempo...<br />
Fim<br />
353
Apêndices
Vangis<br />
C<br />
APÊNDICE A<br />
As raças superiores<br />
ertamente, estes são os seres mais belos e maravilhosos de<br />
todas as criaturas que viram a luz deste mundo. Não<br />
apenas por sua magnífica aparência, mas também pelo sentido<br />
que dão às suas próprias vidas, assumindo um compromisso<br />
de bondade e caridade que passa de geração para geração, e já<br />
perdura por muitos séculos. Estes seres de aparência angelical,<br />
bem caracterizada pelas pinturas da época renascentista,<br />
remontam à <strong>Era</strong> Gênesis, e acredita-se, foi a primeira raça<br />
superior a habitar não só este lugar, a que chama de 1Vanalla,<br />
mas sim, todo o planeta.<br />
Habitantes da região superior de <strong>Virgo</strong>, que forma uma<br />
gigantesca crosta de cristais rosa<strong>dos</strong> cobrindo toda a extensão<br />
do lugar, referenciam-se a este lugar como 2Vangilla. Existem<br />
muitas colônias de vangis por toda esta área, e eles são muito<br />
numerosos. Todo este “Céu Vítreo” é constituído por milhares<br />
de gigantescas estalactites de cristal rockzala, uma espécie de<br />
cristal que possui a mesma dureza que um quartzo, e que<br />
chegam a medir até dezoito metros de comprimento. Na<br />
1 Vanalla é o nome pelo qual os vangis conhecem <strong>Virgo</strong>.<br />
2 Vangilla é a morada <strong>dos</strong> vangis, cidade de cristais situada sobre a crosta de rochas<br />
cristalinas que cobrem toda a Vanalla.
maioria das vezes, possuem enormes fendas que formam<br />
compri<strong>dos</strong> túneis. A maior parte destes túneis leva ao interior<br />
deste fabuloso habitáculo onde os vangis edificaram suas<br />
cidades, mas muitos deles terminam numa intrincada rede de<br />
túneis menores, um verdadeiro labirinto de canais que levam<br />
a <strong>Virgo</strong>, intensas correntes de ar oxigenando suas diversas<br />
regiões.<br />
Os vangis, assim como os elfos, são muito pareci<strong>dos</strong> com<br />
os seres humanos no que tange sua morfologia externa. Não<br />
fossem suas proeminentes omoplatas pneumáticas cobertas<br />
por uma bela plumagem, o que lhes dá o aspecto de seres<br />
ala<strong>dos</strong>, poderíamos dizer que se tratavam de humanos.<br />
É impressionante como determinadas características<br />
persistem nestas criaturas, além <strong>dos</strong> séculos. To<strong>dos</strong> os vangis<br />
do sexo feminino possuem cabelos negros e olhos azuis.<br />
To<strong>dos</strong>, sem exceção, ao passo que os vangis do sexo oposto,<br />
possuem cabelos loiros e olhos verdes. Não é possível<br />
encontrar uma única exceção entre eles neste sentido. Outra<br />
característica interessante, que os distingue bem, são os<br />
cabelos. To<strong>dos</strong> os vangis do sexo masculino possuem cabelos<br />
cachea<strong>dos</strong>, ao passo que suas fêmeas possuem cabelos longos<br />
e completamente lisos e se<strong>dos</strong>os.<br />
É uma raça poderosa que possui alguns poderes de<br />
magia, e sua fonte de mana 1 está em suas próprias asas.<br />
Raramente os vangis são encontra<strong>dos</strong> na parte inferior de<br />
<strong>Virgo</strong> e só descem à superfície quando percebem que sua<br />
intervenção é extremamente necessária para manter o<br />
equilíbrio entre as forças naturais e sobrenaturais que atuam<br />
naquele lugar.<br />
Estas criaturas fantásticas possuem hábitos muito<br />
peculiares. Um <strong>dos</strong> mais interessantes é a forma como se<br />
vestem. Usam teci<strong>dos</strong> simples, entretanto cintilantes, em<br />
forma de túnica. A única diferença entre as vestimentas <strong>dos</strong><br />
1 Forças sobrenaturais que, uma vez controladas com o poder da mente, revertem-se<br />
em poderosas armas que podem ser usadas contra objetos ou pessoas.<br />
356
vangis do sexo masculino para as suas companheiras, é a<br />
utilização de uma espécie de cordão que usam no abdômen,<br />
fazendo com que a túnica fique dividida em duas partes, além<br />
do seu comprimento ser inferior, chegando apenas à altura<br />
<strong>dos</strong> joelhos.<br />
Pacíficos, raramente usam qualquer tipo de arma, e<br />
quando ataca<strong>dos</strong> ou em perigo, limitam-se a se defender com<br />
suas poderosas magias.<br />
Suas magias naturais não são muito numerosas. A<br />
principal magia que possuem é a levitação, e ao contrário do<br />
que muitos podem pensar, os vangis não são capazes de voar<br />
batendo suas asas. Na verdade, eles levitam através do mana<br />
de suas asas, e as usam para impulso e direcionamento de seu<br />
corpo, quando suspenso no ar. Outra magia muito importante<br />
que um vangi possui, é a de criar paredes de ar, onde uma<br />
barreira invisível impede a passagem de quaisquer criaturas e<br />
objetos. É com esta magia que eles mantém as entradas da<br />
Vangilla sempre fechadas, permitindo que apenas os de sua<br />
raça possam entrar e sair a qualquer tempo. São os únicos<br />
capazes de usar esta magia. Para eles, passar por estas paredes<br />
de ar, é tão simples quanto atravessar uma queda d’água.<br />
As entradas da Vangilla nunca ficam abertas, estão<br />
sempre bloqueadas para evitar a presença indesejável de<br />
intrusos ou inimigos naturais, como as garbas ou os wyverns.<br />
Apesar de sua morfologia externa ser muito semelhante a<br />
<strong>dos</strong> homens, à exceção das asas que surgem de suas<br />
omoplatas, o cruzamento entre humanos e vangis é<br />
impossível. Não existe a menor possibilidade de fecundação,<br />
uma vez que as diferenças são enormes em termos de<br />
ovulação e óvulos, comparando as fêmeas das duas raças.<br />
Uma lenda <strong>dos</strong> Vangis<br />
A história mais comum e contada entre os Vangis é a de<br />
um jovem casal, Glatael e Ariel, que no terceiro século da <strong>Era</strong><br />
357
Gênesis, desceu à superfície de <strong>Virgo</strong> para socorrer uma pobre<br />
criança elfa que estava ferida e perdida na Grande Floresta. O<br />
casal nunca mais retornou à Vangilla, e na ocasião, um grande<br />
grupo de vangis desceu em busca <strong>dos</strong> desapareci<strong>dos</strong>. Este<br />
grupo foi liderado por Zaluzael, um enorme e temido vangi,<br />
por ser considerado cruel, o que não era nada comum entre os<br />
de sua raça.<br />
Com efeito, Zaluzael, com seus olhos verdes como uma<br />
esmeralda, mas olhar frio como as mais remotas e geladas<br />
regiões conhecidas, era famoso por ter interrompido o<br />
processo vital de quase trinta vangis na Vangilla.<br />
A verdade a respeito do que sucedera com o casal de<br />
vangis desapareci<strong>dos</strong>, ninguém sabia. Quando Ariel e Glatael<br />
chegaram ao solo, perto do vilarejo de Combos 1, na região do<br />
reino de Plarionthil, eles se concentraram uni<strong>dos</strong> para tentar<br />
localizar o pequeno elfo através da percepção.<br />
Sentiram então, a presença de uma grande dor, um<br />
sofrimento e medo vin<strong>dos</strong> de poucos metros adiante do ponto<br />
onde estavam. Rapidamente o casal se dirigiu para a fonte de<br />
sofrimento que haviam percebido, com o objetivo de aliviar a<br />
agonia do pequeno elfo.<br />
Quando chegaram próximos ao local começaram a ouvir<br />
gritos agonizantes, e cautelosamente continuaram a caminhar<br />
na direção deste som macabro para ver o que acontecia.<br />
Ficaram horroriza<strong>dos</strong> ao testemunhar a cena de tortura que<br />
cinco guerreiros do Império de Nouvelle Amiens estavam<br />
proporcionando ao jovem elfo.<br />
Os gritos de dor do pequenino elfo eram aterrorizantes.<br />
Glatael e Ariel estavam tão impressiona<strong>dos</strong> com a cena que<br />
nem perceberam a chegada de mais três guerreiros do<br />
Império, às suas costas. Chegaram sorrateiramente e quando<br />
estavam próximos o suficiente para uma abordagem, um <strong>dos</strong><br />
guerreiros desferiu um violento golpe de espada sobre Glatael,<br />
1 Pequeno vilarejo élfico, que pertenceu à jurisdição de Plarionthil.<br />
358
cortando-lhe a cabeça. Com o susto e apavorada ao ver seu<br />
parceiro tombar sem cabeça, ao seu lado, Ariel ficou imóvel, e<br />
num segundo movimento, o mesmo guerreiro cortou-lhe as<br />
asas com outro violento golpe. Dor e pavor tomaram conta do<br />
lindo rosto de Ariel, agora caída de joelhos ao solo. Sem suas<br />
asas, perdera sua fonte de mana e toda a sua energia. Estava<br />
completamente indefesa.<br />
Os impie<strong>dos</strong>os guerreiros do Império torturaram e<br />
violentaram Ariel até que ela perdesse a consciência, e ainda<br />
um pouco mais depois disso, deixando-a num estado<br />
deplorável.<br />
Ariel foi a vangi que mais sofreu em toda a história de sua<br />
raça, desde tempos imemoriais.<br />
Zaluzael, com sua experiência em buscas e usando sua<br />
magia de percepção, não demorou muito para descobrir onde<br />
estava Ariel. Ao ver a cena de horror à sua frente, Zaluzael<br />
parou e olhou fixamente para o pequeno elfo, pendurado de<br />
ponta a cabeça e completamente queimado, em uma árvore.<br />
Em seguida olhou para o corpo de Glatael sem cabeça, e<br />
finalmente, para Ariel, ainda inconsciente, sem suas asas, sem<br />
sua vestimenta e com o corpo coberto de feridas e hematomas.<br />
Ficou tentando imaginar quem poderia ter sido o responsável<br />
por tamanha atrocidade e por quê?<br />
O fato, é que Zaluzael e seus companheiros levaram Ariel<br />
de volta para Vangilla, onde se recuperou e pôde relatar esta<br />
triste história a seus irmãos e amigos. Na época, houve uma<br />
grande polêmica entre os vangis, onde muitos defenderam a<br />
idéia de que as missões deviam ser interrompidas e que <strong>Virgo</strong><br />
deveria ser abandonado definitivamente à sua própria sorte.<br />
Esta ferida ficou marcada até os dias de hoje entre os<br />
vangis e eles passaram a considerar os humanos, a partir deste<br />
acontecimento, a raça mais perigosa, violenta e destrutiva de<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
359
Elfos<br />
E<br />
sta é a raça superior mais importante da região inferior de<br />
<strong>Virgo</strong>, e sua importância se dá, justamente, pelo fato de<br />
terem sido eles, os elfos, os primeiros a erguerem grandes<br />
reinos. Foram os elfos que criaram o calendário,<br />
documentaram toda a história do lugar e foram também os<br />
primeiros a aprender a usar o mana que se manifestava em<br />
<strong>Virgo</strong>, desenvolvendo uma enorme série de magias.<br />
Os elfos são quase idênticos aos homens em sua<br />
morfologia externa, diferenciando-se apenas por suas orelhas<br />
pontudas em sua extremidade superior.<br />
As maiores diferenças entre elfos e humanos, ocorrem nos<br />
aspectos fisiológicos. Os elfos são seres longevos que, se não<br />
morrem acidentalmente, chegam a viver até novecentos anos.<br />
Apesar de alcançarem idades tão avançadas, não<br />
aparentam fisicamente o desgaste que seria natural e<br />
perceptível nos seres humanos. Eles conseguem manter uma<br />
aparência jovial por vários séculos. Em geral, as marcas da<br />
velhice em um elfo manifestam-se rapidamente, quando já<br />
estão bem próximos de seu fim, mas ainda assim, conseguem<br />
manter os traços da beleza em seus rostos.<br />
Estes seres são apaixona<strong>dos</strong> pela natureza, vivem em<br />
harmonia constante com as florestas e suas árvores<br />
centenárias. Costumam dizer que cada árvore tem dentro de<br />
si, o espírito de um elfo.<br />
Além da natureza, são apreciadores de canções e poesias,<br />
e destacam-se pelas lindas melodias que conseguem elaborar<br />
com a ajuda de harpas e flautas. Existem também muitos elfos<br />
trovadores.<br />
É um povo amigável, procurando sempre estar em paz<br />
com to<strong>dos</strong>. Admiram muito os que também respeitam a<br />
360
natureza. Mas toda esta amabilidade pode ser substituída por<br />
uma grande agressividade contra to<strong>dos</strong> aqueles que se<br />
dedicam a devastar indiscriminadamente as preciosas matas e<br />
florestas que tanto amam.<br />
Entre as raças selvagens de <strong>Virgo</strong>, as mais odiadas pelos<br />
elfos é a <strong>dos</strong> orcs, porque são os maiores destruidores da<br />
natureza. Inúmeras foram as guerras entre os povos élficos e<br />
as tribos de orcs, desde o início <strong>dos</strong> tempos.<br />
Os anões, apesar de não serem considera<strong>dos</strong> de uma raça<br />
selvagem, também sofrem uma forte pressão <strong>dos</strong> elfos, por<br />
causa de um velho conflito acontecido há tempos remotos<br />
entre estes dois povos, na Primeira Guerra da Floresta<br />
Dourada, em 1715 da <strong>Era</strong> Nova.<br />
Esta guerra aconteceu devido à descoberta de uma grande<br />
jazida de ouro, logo à entrada da floresta, por parte <strong>dos</strong> anões<br />
de Bakkin, que iniciaram um desmatamento alucinado para<br />
conseguir extrair todo o ouro que estava sob aquele solo. Os<br />
anões sempre afirmaram que a Floresta Dourada é a região<br />
mais rica em ouro de todas as regiões de <strong>Virgo</strong>.<br />
Esta guerra durou quase três anos, e só foi interrompida<br />
por causa de outra guerra de maior importância, que ficou<br />
famosa e conhecida como a Guerra da Agonia.<br />
Anões e elfos fizeram uma trégua para que se<br />
defendessem <strong>dos</strong> orcs sanguinários. Foram tempos difíceis, e<br />
os elfos viveram muitos anos mergulha<strong>dos</strong> em guerras.<br />
A situação entre elfos e anões voltou a ficar muito ruim a<br />
partir de 2471 da <strong>Era</strong> Nova, quando estourou a Segunda<br />
Guerra da Floresta Dourada. Mas desta vez, a disputa não<br />
havia sido pelo ouro daquele lugar, mas pela proteção da<br />
Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros, conforme fora narrado nesta<br />
aventura que apresentou a chegada <strong>dos</strong> homens a <strong>Virgo</strong>.<br />
Alguns anos depois desta Segunda Guerra da Floresta<br />
Dourada, as relações entre eles voltará a melhorar e será<br />
possível encontrar anões e elfos juntos, ainda que com certa<br />
361
dificuldade, por guardarem muito ressentimento uns <strong>dos</strong><br />
outros.<br />
Os elfos estão dividi<strong>dos</strong> em cinco 1 grandes reinos, quatro<br />
<strong>dos</strong> quais, ficam na Grande Floresta, considerada o santuário<br />
<strong>dos</strong> elfos. O outro, fica mais afastado, na longínqua Floresta<br />
das Sombras, na extremidade nordeste de <strong>Virgo</strong>. Além <strong>dos</strong><br />
reinos, existem também muitas vilas élficas espalhadas por<br />
todas as florestas, até mesmo na Floresta do Fogo, próxima à<br />
região vulcânica.<br />
Uma história <strong>dos</strong> Elfos<br />
Muitas foram as passagens importantes <strong>dos</strong> elfos sobre o<br />
solo de <strong>Virgo</strong>. Realizaram diversas proezas, viveram inúmeros<br />
momentos de dificuldade, e to<strong>dos</strong> esses acontecimentos mais<br />
importantes que os envolveram durante eras, são lembra<strong>dos</strong> e<br />
canta<strong>dos</strong> hoje, pelos quatro cantos do que chama de Thalide.<br />
Para se conhecer to<strong>dos</strong> os fatos marcantes que ocorreram<br />
com este povo durante sua evolução, desde o início <strong>dos</strong><br />
tempos, seria necessário ler uma dúzia de livros espessos, que<br />
se encontram no reino élfico de Sombrorn, em poder de sua<br />
rainha Aurien.<br />
Esta importante obra é conhecida pelos elfos como os<br />
livros de lumithas. Essa palavra procura dar significado a algo<br />
como, Luz <strong>dos</strong> Tempos, e foi criada a partir da fusão de duas<br />
outras palavras élficas, lumin, que significa luz, claridade e<br />
athas, que significa o tempo, mais precisamente, tempo<br />
passado, antigo.<br />
Durante vários anos a palavra foi usada em sua forma<br />
original, ou seja, luminathas, mas com o passar <strong>dos</strong> anos o<br />
povo élfico deu-a uma conotação mais coloquial,<br />
transformando-a numa única e nova palavra para designar<br />
esta famosa coleção de livros, "lumithas".<br />
1 Por ordem de criação, Plarionthil, Flonthoriel, Planúviel, Eluannar e Sombrorn.<br />
362
Os doze livros que compõem a lumithas foram escritos por<br />
ordem de Limanoh, pai de Aurien, na época de seu reinado.<br />
Na verdade, a ordem foi para que os livros fossem escritos<br />
apenas para registro histórico, mas na época, Limanoh não<br />
fazia idéia de como esta obra se tornaria tão grande, em<br />
quantidade de livros, e em importância para toda a raça e<br />
cultura élficas.<br />
O relato de toda a saga élfica, desde o primeiro reino,<br />
passando pelas sucessivas migrações de seu povo para a<br />
criação de novos reinos, as diversas batalhas e os grandes<br />
romances que envolveram os nobres elfos, estão nas lumithas.<br />
Na ocasião, foram convoca<strong>dos</strong> de to<strong>dos</strong> os reinos, os mais<br />
sábios elfos e os principais escritores para que fosse realizada<br />
esta divina obra. Foram anos e anos de labor. Quando todo o<br />
trabalho ficou pronto, a lumithas era composta de nove<br />
volumes. Os três volumes mais recentes relatam os<br />
acontecimentos da <strong>Era</strong> Nova, até os dias de hoje, e são bem<br />
menos poéticos que os volumes anteriores, pois foram escritos<br />
por elfos menos românticos, por ordem da rainha Aurien,<br />
filha de Limanoh.<br />
O último volume da lumithas, o de número doze, contém<br />
to<strong>dos</strong> os fatos importantes ocorri<strong>dos</strong> durante a Guerra da<br />
Agonia, mostrando como se dera a participação <strong>dos</strong> reinos<br />
élficos nesta guerra épica e, depois, como ocorreu a Unificação<br />
das Cinco Coroas, encerrando o lumithas.<br />
Após to<strong>dos</strong> estes acontecimentos foi que os humanos<br />
chegaram à Thalide. A partir de suas cidades de Nouvelle<br />
Amiens e Nouvelle Lyon, que foram os alicerces da edificação<br />
de sua raça em <strong>Virgo</strong>, os homens prosperaram muito<br />
rapidamente, erguendo seus reinos com espantosa velocidade,<br />
mas isto não consta nos doze livros que formam o lumithas, e<br />
na verdade, são relatos de tempos futuros, que não são<br />
aborda<strong>dos</strong> sequer nesta obra que apenas visou relatar a<br />
chegada <strong>dos</strong> humanos e seus primeiros passos em <strong>Virgo</strong>.<br />
363
A chegada <strong>dos</strong> homens causou um grande alarde entre o<br />
povo élfico, principalmente entre os mais antigos, que<br />
acreditavam que com isto, os dias de seu povo estariam perto<br />
de seu crepúsculo, conforme anunciava a velha profecia<br />
gravada por Glabor, o dragão dourado, na Pedra Klaopala.<br />
Os acontecimentos que sucederam à chegada <strong>dos</strong> homens<br />
em <strong>Virgo</strong>, e como se dera seu próspero desenvolvimento junto<br />
às outras raças, podem ser encontra<strong>dos</strong> no livro de Jacques<br />
Panais, claro, com um enfoque voltado principalmente para os<br />
olhos <strong>dos</strong> homens. O título da obra de Jacques Panais,<br />
"Caminhos da Terra", foi escolhido por ter sido fruto de<br />
grandes viagens feitas por ele, nos mais diversos territórios de<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
<br />
Jacques Panais foi um famoso escritor do reino de<br />
Nouvelle Lyon, viajou para muitos lugares remotos e<br />
perigosos em busca de informações para enriquecer sua obra.<br />
Informações sobre to<strong>dos</strong> os feitos <strong>dos</strong> homens desde sua<br />
chegada à <strong>Virgo</strong>. Conheceu lugares fantásticos, reinos de elfos<br />
e anões. Conheceu pessoalmente a rainha Aurien, que muito<br />
lhe ajudou, permitindo que desfrutasse da leitura de vários<br />
livros da enorme biblioteca de Sombrorn. Teve até mesmo<br />
acesso ao lumithas.<br />
O livro de Jacques Panais ficou pronto em 2055 da <strong>Era</strong><br />
Nova, e ele faleceu em 2061, seis anos após ter concluído sua<br />
obra, numa viagem que fez a Bronner. Sua caravana foi<br />
emboscada por uma horda de orcs, quando passavam por<br />
uma trilha através das Colinas Íngremes.<br />
364
Anões<br />
M<br />
ineiros por natureza, os anões são os representantes da<br />
raça superior cuja cultura é uma das mais originais de<br />
<strong>Virgo</strong>, ou Azur, se usarmos o nome pelo qual se referem a<br />
estas terras. Não só pela prática da mineração em si, mas todo<br />
um conjunto de hábitos e costumes que eles passaram de<br />
geração para geração desde a <strong>Era</strong> Gênesis.<br />
Geralmente, não passam de 1,30 m de altura, são muito<br />
troncu<strong>dos</strong> e os representantes do sexo masculino possuem o<br />
hábito de deixar a barba bem comprida. Artesãos de primeira<br />
mão, os anões são responsáveis pela fabricação de excelentes<br />
armas, elmos, escu<strong>dos</strong>, cotas de malha e outros utensílios que<br />
possam ser fabrica<strong>dos</strong> a partir de metais. Eles realizam este<br />
tipo de trabalho com muito carinho e muita dedicação. Para os<br />
anões, não há maior e mais verdadeira felicidade quando são<br />
elogia<strong>dos</strong> pelo trabalho que fazem, mesmo que se trate de um<br />
simples bracelete ou pequeno anel.<br />
Os anões gostam de viver em grandes cavernas, onde<br />
possam estar em contato com a exploração constante de<br />
grandes jazidas de pedras preciosas e ouro. Estes pequenos<br />
seres amam estas riquezas naturais e para eles são tão valiosas<br />
quanto a própria vida.<br />
Acostuma<strong>dos</strong> a viver dentro de grandes túneis rochosos,<br />
os anões não se sentem à vontade quando estão em florestas,<br />
planícies ou qualquer lugar que seja muito aberto; na verdade,<br />
é muito difícil encontrar anões vagando por estes lugares, mas<br />
sempre existem aqueles mais aventureiros que, de vez em<br />
quando, fazem amizade com seres de outras raças superiores,<br />
como os homens por exemplo, e saem em busca de grandes<br />
aventuras.<br />
365
Atualmente os anões estão dividi<strong>dos</strong> em três reinos: o<br />
reino de Bakkin, que fica em Vidoro’s sob a Montanha das<br />
Garbas, no lado sul da Região das Montanhas, diante da<br />
Planície de Ouro; o reino de Guttin, localizado na Planície de<br />
Bronze em Bronner; e o reino de Zanthor, na entrada do Vale<br />
<strong>dos</strong> Cristais, em Cristel.<br />
Dos três reinos, o mais poderoso e também o mais<br />
populoso é o Reino de Bakkin. Os anões deste reino são os<br />
mais destemi<strong>dos</strong> e, a despeito das duas derrotas sofridas nas<br />
duas guerras ocorridas na Floresta Dourada, mostraram-se<br />
muito valorosos durante a Guerra da Agonia.<br />
Em função destas guerras na Floresta Dourada, os anões e<br />
os elfos, até hoje, não conseguem manter uma amistosidade<br />
tranqüila entre si; entrementes, é possível encontrar anões e<br />
elfos dentro de um mesmo grupo de aventureiros em busca de<br />
interesses comuns, mas mesmo companheiros, nunca perdem<br />
uma boa oportunidade de atormentarem uns ao outros com<br />
variadas pilhérias.<br />
Quando os anões combatem, eles dão preferencia a usar<br />
como armas, grandes macha<strong>dos</strong> de batalha, martelos de<br />
guerra e pequenos broquéis para se defenderem. Raramente se<br />
encontra um anão sem o seu machado de batalha, mas alguns<br />
anões, ainda que seja mais incomum, também usam espadas<br />
curtas, como arma auxiliar.<br />
366
Orcs<br />
S<br />
APÊNDICE B<br />
As raças selvagens<br />
anguinárias e perversas, são estas bizarras criaturas<br />
conhecidas como orcs. É a raça selvagem mais temível de<br />
<strong>Virgo</strong>. Com suas atitudes hostis, tornaram-se inimigos comuns<br />
de todas as raças superiores, e mesmo entre as demais raças<br />
selvagens, conseguem encontrar inúmeros desafetos. Estas<br />
criaturas possuem a pele escura, muito enrugada e com uma<br />
pelugem grossa cobrindo boa parte <strong>dos</strong> membros e tórax.<br />
Possuem também dentes pontiagu<strong>dos</strong> e nariz largo. São<br />
monstros assustadores.<br />
Com a altura variando entre 1,75 e 1,80 m são capazes de<br />
segurar um homem comum sobre suas cabeças e arremessá-lo<br />
a uma média distância. São, definitivamente, fortes e robustos.<br />
Vivem organiza<strong>dos</strong> em tribos dentro de grutas nas<br />
encostas de montanhas ou então em ruínas e calabouços<br />
abandona<strong>dos</strong>. Sempre seguem aquele que é o mais agressivo<br />
da tribo e que se destaca pela hostilidade desenfreada. São tão<br />
hostis que, mesmo dentro de suas próprias tribos, entre seus<br />
membros, ocorrem lutas sangrentas, seja pela disputa da<br />
liderança ou seja por qualquer motivo de discórdia entre eles.<br />
Na verdade, pouco importa o motivo, para os orcs, qualquer
situação pode ser o estopim para estourar uma briga<br />
sangrenta.<br />
De to<strong>dos</strong> os seus inimigos, os que eles mais invejam e<br />
detestam são os elfos. Centenas de batalhas já aconteceram<br />
entre as duas raças, acarretando milhares de perdas para os<br />
dois la<strong>dos</strong>. Mas para os orcs, nunca importou quantos<br />
morreriam em um confronto com elfos, o que importava era a<br />
vitória.<br />
O maior prazer <strong>dos</strong> orcs encontra-se na destruição de<br />
tudo o que lhes parece ser belo. Adoradores do Caos, não há<br />
nada mais gratificante para os orcs do que provocar a<br />
destruição <strong>dos</strong> belos jardins e vilarejos élficos.<br />
Os orcs não são criaturas longevas, e forma que não<br />
duram muito tempo. Em geral, sua expectativa de vida gira<br />
em torno <strong>dos</strong> trinta anos. Isto não se deve a uma morte natural<br />
precoce, mas pela insistência em participar de batalhas e<br />
pilhagens. Naturalmente, um orc que vive apenas para a tribo<br />
pode chegar aos sessenta anos de idade, mas isso é raríssimo.<br />
Uma lenda <strong>dos</strong> orcs<br />
Os orcs são criaturas que não costumam guardar<br />
lembranças de seu passado, mesmo quando se tratam das<br />
mais gloriosas épocas que possam ter vivenciado, entre as<br />
grandes vitórias que infligiram sobre seus inimigos. No<br />
entanto, teve um fato que marcou muito esta raça e que foi<br />
registrado pelos elfos, a mais sangrenta de todas as guerras, a<br />
Guerra da Agonia.<br />
Antigamente, em tempos remotos, existiam mais de trinta<br />
tribos de orcs espalhadas por todas as regiões de <strong>Virgo</strong>. Até<br />
mesmo na Ilha Kirbuz, estas vis criaturas podiam ser<br />
encontradas com facilidade.<br />
Uma dessas tribos, conhecida como Zaraidai, a mais<br />
temida e violenta de todas, por muitos anos dominou <strong>Virgo</strong>,<br />
368
levando terror a to<strong>dos</strong> os reinos, cidades e vilarejos,<br />
aniquilando qualquer um que encontrassem em seu caminho.<br />
Foi uma época maldita, em que os anões se fecharam em<br />
seus reinos e minas nas montanhas, os elfos tiveram que fugir<br />
e se esconder nas regiões mais ermas das florestas, onde o<br />
acesso é muito difícil, ou ainda, ficavam enclausura<strong>dos</strong> em<br />
seus fortifica<strong>dos</strong> reinos, protegi<strong>dos</strong> por suas muralhas, sem<br />
que se arriscassem a vagar pelas matas.<br />
Foram tempos difíceis até mesmo para as raças selvagens<br />
que, privadas de contar com a proteção de reinos poderosos,<br />
eram obrigadas a se trancafiar em esconderijos, ou então se<br />
deixar escravizar pelos orcs, como fizeram os hobgoblins.<br />
Nesta época sombria, à exceção <strong>dos</strong> humanos que ainda<br />
não haviam chegado em <strong>Virgo</strong>, a única raça que ficou livre<br />
desta pressão foi a raça <strong>dos</strong> vangis, que habitavam a Vangilla,<br />
fora do alcance <strong>dos</strong> orcs, onde ficaram seguros do mal<br />
deflagrado pelos orcs Zaraidai.<br />
Até mesmo os orcs que pertenciam a outras tribos<br />
sofreram com o domínio de terror <strong>dos</strong> Zaraidai. Lutaram<br />
ferozmente, como o costume que lhes é peculiar, orcs contra<br />
orcs, mas a onda de violência <strong>dos</strong> Zaraidai fora como um<br />
maremoto avassalador, varrendo furiosa várias tribos menores<br />
de orcs que foram literalmente dizimadas. Os poucos<br />
sobreviventes, quando haviam, acabavam submetendo-se aos<br />
Zaraidai.<br />
A tribo Zaraidai chegou a ser tão numerosa nesta ocasião<br />
que mesmo se todas as outras tribos de orcs se aliassem, seus<br />
exércitos uni<strong>dos</strong> não conseguiriam chegar sequer à metade de<br />
seu contingente.<br />
O medo pairava no ar. As alianças eram feitas e desfeitas<br />
entre as diversas raças na tentativa de por termo às investidas<br />
<strong>dos</strong> Zaraidai, mas nada surtia efeito e eles cada vez mais<br />
aumentavam suas fileiras com as deserções das tribos<br />
subjugadas.<br />
369
Mas, como nenhuma força dura para sempre, ou o sempre<br />
é muito distante aos nossos olhos, após vinte e três anos de<br />
dominação e poder absoluto, onde semearam o caos, morte e<br />
destruição por to<strong>dos</strong> os cantos de <strong>Virgo</strong>, a tribo <strong>dos</strong> Zaraidai<br />
começou a entrar em decadência. Ficaram tão numerosos e<br />
espalha<strong>dos</strong> pelas diversas regiões de <strong>Virgo</strong> que as brigas entre<br />
eles eram cada vez mais intensas. Isso começou a enfraquecêlos.<br />
Simultaneamente a estas lutas internas, houve uma<br />
tragédia numa invasão <strong>dos</strong> Zaraidai a uma das minas do reino<br />
de Bakkin. As vilas adjacentes a este reino já haviam sido<br />
dizimadas, e seus refugia<strong>dos</strong> estavam to<strong>dos</strong> nesta enorme<br />
mina. Não havia como chegarem à cidade principal do reino,<br />
pois ele encontrava-se sitiado.<br />
Após passarem por três pontos de resistência dentro das<br />
escuras galerias de túneis sob a Montanha das Garbas, os orcs<br />
foram surpreendi<strong>dos</strong> por uma emboscada, onde os anões<br />
provocaram um desabamento de rochas na entrada principal<br />
da mina, mantendo cerca de dois mil orcs presos sem poder<br />
sair, e também impedindo a entrada de reforços. Mais de cem<br />
mil orcs ficaram do lado de fora, sem saber o que fazer, pois o<br />
grande líder <strong>dos</strong> Zaraidai havia passado pela entrada antes do<br />
desabamento e encontrava-se preso dentro da mina, com os<br />
outros.<br />
Aprisiona<strong>dos</strong> dentro da montanha e sem outra<br />
alternativa, os orcs continuaram avançando, pois sabiam que<br />
deveria existir outra saída. Porém, estavam em território<br />
inimigo, não conheciam o lugar como os anões e enquanto<br />
avançavam, tombavam sem parar nas diversas armadilhas<br />
deixadas pelos anões. Quando atravessaram cerca de duas<br />
horas montanha a dentro, tiveram uma visão assustadora,<br />
encontraram uma enorme cidade de anões no coração da<br />
montanha. Mais de oito mil anões guerreiros estavam<br />
arma<strong>dos</strong> com seus macha<strong>dos</strong> de batalha, elmos e escu<strong>dos</strong><br />
reluzentes, esperando para o massacre final.<br />
370
Com a entrada principal selada e o gigantesco exército de<br />
anões à frente, sabiam que não haveria escapatória e muito<br />
menos misericórdia. Não poderiam resistir a tamanha força de<br />
ataque. A essa altura, restavam menos de trezentos orcs <strong>dos</strong><br />
que ficaram presos dentro da montanha.<br />
De qualquer maneira, o líder <strong>dos</strong> Zaraidai sabia que os<br />
anões não iriam bloquear a entrada da mina sem que houvesse<br />
outra saída. Ordenou então que seus seguidores recuassem na<br />
tentativa de alcançar algumas passagens laterais que haviam<br />
ficado para trás.<br />
Quando a ação evasiva teve início, foram novamente<br />
surpreendi<strong>dos</strong>, pois uma outra tropa com cerca de<br />
quatrocentos anões aproximava-se por sua retaguarda,<br />
oriunda de pontos secretos que ficavam ocultos dentro <strong>dos</strong><br />
sombrios corredores da montanha. O destino daqueles<br />
desafortuna<strong>dos</strong> orcs estava selado.<br />
Ao final da sangrenta batalha o general <strong>dos</strong> anões<br />
decapitou o líder <strong>dos</strong> Zaraidai e entregou o crânio a um único<br />
orc sobrevivente, para que este o levasse e exibisse aos seus<br />
companheiros o que havia acontecido dentro <strong>dos</strong> domínios<br />
<strong>dos</strong> anões.<br />
O desgraçado do orc foi conduzido de olhos venda<strong>dos</strong> até<br />
as saídas secretas e foi libertado. Conforme instruído,<br />
contornou a montanha e chegou aos acampamentos orcs à<br />
entrada selada da Montanha das Garbas. Ao exibir a cabeça de<br />
seu líder aos companheiros e dizer-lhes o que ocorrera, os orcs<br />
ficaram enfureci<strong>dos</strong>, mas logo a fúria deu lugar a uma disputa<br />
interminável pela liderança da tribo e do imenso exército de<br />
orcs.<br />
Isso acarretou na divisão <strong>dos</strong> Zaraidai em várias facções<br />
diferentes, fazendo com que a acirrada luta pela liderança<br />
finalmente destruísse sua unidade. As tribos de orcs que<br />
resistiram aos incessantes ataques <strong>dos</strong> Zaraidai durante vários<br />
anos aproveitaram o momento e atacaram os confusos e<br />
dividi<strong>dos</strong> Zaraidai, minando ainda mais suas forças.<br />
371
Durante dois anos, elfos e anões também se encorajaram<br />
ao descobrir que os Zaraidai haviam entrado em colapso, e<br />
conseguiram pôr fim à tormenta.<br />
Os Zaraidai, ainda conseguiram no final, após inúmeras<br />
divisões, continuar numerosos e também muito poderosos na<br />
região do reino de Sombrorn, mas jamais voltariam a ter a<br />
fantástica força que conseguiram reunir durante a Guerra da<br />
Agonia.<br />
O sonho de uma raça selvagem dominar toda a região de<br />
<strong>Virgo</strong> se acabara. Ao fim deste período negro, o saldo macabro<br />
pesou mais contra as raças selvagens, pois vinte e três tribos<br />
inteiras de orcs foram extintas, além de toda uma raça, a <strong>dos</strong><br />
hobgoblins.<br />
Sem dúvida alguma este período de terror ficou marcado<br />
para sempre entre todas as raças de <strong>Virgo</strong>, sejam elas<br />
selvagens ou superiores. Mesmo os orcs, que como já foi<br />
relatado, não costumam guardar lembranças, algumas vezes<br />
comentam sobre esta época.<br />
372
Goblins<br />
O<br />
s goblins são criaturas perversas que podem ser<br />
encontradas em qualquer parte de <strong>Virgo</strong>. Geralmente,<br />
não passam de 1,50 m de altura. Possuem a pele rígida como<br />
uma couraça e de coloração esverdeada. Suas orelhas são<br />
largas e pontudas, e seus dentes são verdadeiras presas, to<strong>dos</strong><br />
afia<strong>dos</strong> como uma navalha.<br />
Estas criaturas se vestem com trapos de tecido e pedaços<br />
de couro que, muitas vezes, são rouba<strong>dos</strong> de mercadores ou<br />
até mesmo tira<strong>dos</strong> das roupas de inimigos derrota<strong>dos</strong> em um<br />
combate.<br />
Basicamente, os goblins vivem em aldeias perto de<br />
florestas ou nas encostas das montanhas, mas muitas vezes<br />
são encontra<strong>dos</strong> em pequenos grupos errantes de cinco a oito<br />
indivíduos, em busca de tesouros perdi<strong>dos</strong> ou apenas atrás de<br />
outras criaturas que possam saquear. Não chegam a ser tão<br />
hostis quanto os orcs, mas adoram uma boa maldade.<br />
Talvez, em <strong>Virgo</strong>, não exista criatura mais parecida com o<br />
homem em termos de buscar aventuras do que os goblins.<br />
Estas criaturas são aventureiras por natureza, que não deixam<br />
escapar por nada, uma oportunidade de desbravar territórios<br />
desconheci<strong>dos</strong>, conquistar novos espaços e buscar cada vez<br />
mais o que lhes é desconhecido.<br />
A própria magia, que é muito cultuada pelos elfos,<br />
atualmente está adquirindo cada vez mais espaço entre os<br />
goblins mais sábios. Atualmente, já existe em <strong>Virgo</strong> um<br />
número considerável de magos goblins. É claro, os goblins não<br />
são tão inteligentes quanto os elfos para se saírem melhor nos<br />
estu<strong>dos</strong> do mana; entretanto, já fazem algum estardalhaço.<br />
Existe até uma aldeia goblin que se dedica exclusivamente aos<br />
373
estu<strong>dos</strong> de magia e buscam um meio próprio de utilizar o<br />
mana deste lugar.<br />
Em um combate, os goblins, de uma forma geral, se<br />
utilizam de pequenos escu<strong>dos</strong> de madeira que eles próprios<br />
fabricam, além de espadas curtas que roubam ou então<br />
negociam com mercadores e mercenários.<br />
Estes terríveis monstrinhos não se rendem de forma<br />
alguma, e quando desarma<strong>dos</strong> tentam fugir<br />
desesperadamente para não serem captura<strong>dos</strong>. É muito difícil<br />
fazer um refém goblin, que prefere morrer ao ter que passar<br />
pela vergonha de se tornar um prisioneiro. Os goblins são<br />
muito agressivos e a menos que seja de seu interesse, eles<br />
nunca estão dispostos a ouvir qualquer argumento de outra<br />
criatura, eles simplesmente partem para o ataque.<br />
Os goblins possuem como rivais em potencial, os<br />
grabbers. O ódio que estas duas raças sentem uma pela outra é<br />
algo inimaginável. São combates incessantes, onde buscam<br />
incansavelmente o dizímio uns <strong>dos</strong> outros. A coisa mais<br />
terrível que pode acontecer a um goblin é ser capturado por<br />
um grabber. As torturas infligidas são as mais perversas<br />
possíveis, e a morte, inevitável.<br />
Uma lenda <strong>dos</strong> goblins<br />
O maior orgulho para qualquer goblin, sem dúvida<br />
alguma, é falar sobre a guerra que travaram com seus<br />
arquiinimigos, os grabbers, há séculos atrás durante o início<br />
da <strong>Era</strong> Nova, a Guerra Selvagem.<br />
Por um longo período, os goblins disputaram cada metro<br />
da região oeste de <strong>Virgo</strong> com os grabbers, que também eram<br />
encontra<strong>dos</strong> com facilidade em qualquer parte montanha,<br />
planície ou floresta nestas terras.<br />
Durante as constantes batalhas entre estas duas raças,<br />
onde o principal objetivo sempre fora aniquilar uma a outra,<br />
as montanhas de <strong>Virgo</strong> tornaram-se palco de terror, onde<br />
374
corpos de ambos os la<strong>dos</strong> se amontoavam causando<br />
verdadeiros rios de sangue que escorriam pelas rochas como<br />
se as próprias montanhas estivessem sangrando. Aldeias<br />
inteiras de goblins foram massacradas, assim como diversos<br />
vilarejos <strong>dos</strong> grabbers foram incinera<strong>dos</strong>. Nem mesmo os mais<br />
novos eram poupa<strong>dos</strong>, a chacina era implacável nos dois<br />
la<strong>dos</strong>. Vários grabbers recém nasci<strong>dos</strong> foram amontoa<strong>dos</strong> e<br />
queima<strong>dos</strong> vivos. Toda a região das montanhas só cheirava a<br />
morte nesta época.<br />
Foram três anos de luta desesperada, onde dor, agonia e<br />
tristeza levavam sempre ao mesmo destino, a morte. No final<br />
da guerra, quando o restante das tropas <strong>dos</strong> goblins avançou<br />
sobre a última vila grabber, a encontraram completamente<br />
deserta, como se fosse uma vila fantasma. Nenhum grabber foi<br />
encontrado ou morto naquele dia. Os goblins ficaram<br />
vasculhando aquela região por semanas mas os únicos<br />
grabbers encontra<strong>dos</strong> foram os que morreram durante os<br />
últimos e recentes combates, a maioria já em estado avançado<br />
de putrefação e outros já completamente decompostos, apenas<br />
com sua carcaça óssea exposta ao ar livre.<br />
Muito tempo depois os goblins descobriram onde os<br />
grabbers haviam se escondido. Durante os anos de guerra,<br />
vários grabbers foram, aos poucos, migrando para a base <strong>dos</strong><br />
Paredões (lado leste de <strong>Virgo</strong>), onde construíram uma<br />
verdadeira fortaleza com uma enorme cidade em seu interior.<br />
Atualmente, os goblins costumam vangloriar-se e dizer<br />
que erradicaram os vermes <strong>dos</strong> grabbers, uma vez que nunca<br />
mais puderam sair desta região. Os goblins os mantém em<br />
constante vigilância, deixando-os sitia<strong>dos</strong> dentro de sua<br />
própria cidade.<br />
De vez em quando os goblins ainda organizam pequenas<br />
tropas e tentam invadir a Fortaleza Grabber, mas até hoje,<br />
nenhuma das investidas surtiu efeito e eles sempre são<br />
rechaça<strong>dos</strong>. A cada ano que passa, os grabbers estão<br />
375
ampliando sua fortaleza e novamente se tornando numerosos,<br />
sem que os goblins tenham conhecimento deste fato.<br />
376
Grabbers<br />
A<br />
s criaturas mais horrendas de que se tem conhecimento<br />
em <strong>Virgo</strong> são indiscutivelmente os grabbers. A pele<br />
destes seres possui uma coloração rosácea, bem clara, e é<br />
muito pegajosa devido a constante secreção de uma espécie de<br />
muco, que por sinal, é muito fedorento. Para se ter uma idéia,<br />
o cheiro exalado por esse muco viscoso é tão forte que é<br />
possível perceber a presença de um grabber num raio de<br />
aproximadamente duzentos metros, o que de certa forma se<br />
torna favorável aos outros seres que buscam distância destas<br />
malévolas criaturas.<br />
São também desprovi<strong>dos</strong> de pelugem e sequer possuem<br />
cabelos. O corpo, os membros e até a cabeça, são lisos como a<br />
pele de uma rã. Outro detalhe muito interessante destas<br />
criaturas é a ausência de dentes ou presas. Todo e qualquer<br />
alimento que colocam em suas bocas é imediatamente<br />
dissolvido por poderosíssimas enzimas e áci<strong>dos</strong>, secreta<strong>dos</strong><br />
por glândulas especializadas. Este mecanismo é também<br />
usado como arma por estes terríveis monstrinhos, pois estas<br />
glândulas também entram em grande atividade com o<br />
aumento de tensão de um grabber. Assim, através de longos<br />
esguichos que conseguem expelir, ferem seus inimigos com<br />
este poderoso ácido causticante.<br />
Quem tem a visão de um grabber pela primeira vez,<br />
acredita estar diante de uma criatura que está se<br />
desmanchando ou derretendo. É incrível, mas a quantidade de<br />
muco secretado por sua epiderme é tão grande, que é esta a<br />
impressão que se tem. Por onde passam, vão deixando um<br />
rastro desta horrenda secreção que leva cerca de oito horas<br />
para secar completamente e perder o mal cheiro.<br />
377
Vivem em rústicas vilas construídas a partir de rochas<br />
calcárias, trasladadas do Paredão 1, desde a <strong>Era</strong> Oculta. Estas<br />
constantes viagens na busca de matéria prima para a<br />
construção de suas vilas fizeram com que, durante os séculos<br />
que se passaram, os grabbers construíssem à base do Paredão,<br />
uma verdadeira fortaleza, sem que seus inimigos goblins<br />
soubessem, evitando assim as incessantes incursões do<br />
inimigo que sempre ocorrera nos vilarejos.<br />
Atualmente os vilarejos <strong>dos</strong> grabbers encontram-se<br />
praticamente abandona<strong>dos</strong>, à exceção de dois muito<br />
pequenos, e quase to<strong>dos</strong> estão vivendo protegi<strong>dos</strong> pelos<br />
imensos muros da fortaleza construída.<br />
No que diz respeito a sua organização social,<br />
assemelham-se muito aos seres humanos, tendo em vista, a<br />
concepção de família que adotam. Os casais de grabbers<br />
vivem uni<strong>dos</strong> em seus lares com a preocupação de sua cria.<br />
Fazem de tudo pelos pequeninos para que cresçam com saúde<br />
e sejam prósperos.<br />
Assim como a maioria das raças selvagens de <strong>Virgo</strong>, os<br />
grabbers adoram aventuras; todavia, não se atrevem a se<br />
afastar demasiadamente de suas moradas. Procuram explorar<br />
apenas as regiões próximas ao Paredão, em grupos de<br />
tamanho razoável, que podem variar entre dez e quinze<br />
indivíduos. Quando a exploração tem caráter militar, com o<br />
intuito de demarcar áreas e treinar estratégias de combate, os<br />
grupos chegam a possuir cerca de oitenta indivíduos,<br />
considera<strong>dos</strong> estrategistas. Já em expedições, não levam nada<br />
mais do que provisões para uma semana, pequenos sacos<br />
confecciona<strong>dos</strong> a partir de pele e bexiga seca de animais, os<br />
quais usam para levar seus utensílios e também suas armas.<br />
Em combate, costumam usar um machado especial, que<br />
em sua estrutura traseira, oposta à lâmina, possui uma série de<br />
1 Paredão é nome dado ao imenso e íngreme penhasco que cobre toda a extremidade<br />
oriental de <strong>Virgo</strong>, desde o solo até o cimo do lugar. Nas cavernas mais altas do Paredão, é<br />
possível encontrar os últimos Wiverns que ainda vivem em <strong>Virgo</strong>.<br />
378
cravos longos e pontiagu<strong>dos</strong>. Detêm uma habilidade incrível<br />
no manuseio desta arma letal. Além deste armamento, que é<br />
conhecido pelo nome de machante, alguns grabbers também<br />
usam espadas curtas, apesar de não possuírem uma<br />
morfologia adequada para o uso de tal arma.<br />
Os grabbers são criaturas um pouco mais altas que os<br />
goblins, chegando a atingir uma altura máxima de 1,60m, e em<br />
sua grande maioria são curva<strong>dos</strong>, como corcundas, devido a<br />
sua estrutura óssea singular. É incrível acreditar como uma<br />
criatura pode conviver com uma quantidade tão grande de<br />
características inconvenientes, como por exemplo esta<br />
acentuada curvatura em seu dorso, próximo à região cervical.<br />
Mais uma curiosidade que acompanha a vida destes<br />
fantásticos seres é a ausência de uma linguagem comum para<br />
a comunicação. Simplesmente não são capazes de pronunciar<br />
ou sequer entender nenhum <strong>dos</strong> três idiomas mais comuns de<br />
<strong>Virgo</strong>. Nem o élfico, nem o nanês, e nem mesmo o francês, que<br />
ao longo de toda a <strong>Era</strong> Trevas e <strong>Era</strong> Nova, acabou se tornando<br />
uma espécie de língua universal em <strong>Virgo</strong>.<br />
Utilizam uma linguagem rude que jamais foi possível<br />
traduzir, devido a repugnância que as demais raças superiores<br />
e selvagens sentem por estas criaturas bizarras. Outro fator<br />
que também contribui muito para o isolamento desta raça às<br />
demais, é seu estilo de vida próprio, onde praticamente<br />
buscam o enclausuramento em suas vilas na grande fortaleza,<br />
além de se aventurarem apenas por lugares muito próximos<br />
de suas casas. Isto também acabou produzindo um certo<br />
receio por parte <strong>dos</strong> grabbers, a qualquer criatura estranha,<br />
fazendo sempre com que pareçam ameaçadoras. É preciso<br />
dizer, que os primeiros contatos que os grabbers tiveram com<br />
outras raças fora justamente com orcs e goblins, que desde o<br />
início, sempre os subjugaram pela força e os escravizaram.<br />
Outro aspecto interessante é que os Grabbers jamais<br />
conseguiram, e nem poderiam, ter sucesso na captura de<br />
animais ou mesmo criaturas de qualquer uma das raças<br />
379
superiores, pois o cativeiro fica dentro da fortaleza que é um<br />
lugar completamente impregnado pelo fedor de suas mucosas.<br />
A concentração deste cheiro é tão grande que acaba asfixiando<br />
qualquer um que seja levado para lá, como se fosse um gás<br />
mortal.<br />
A reprodução <strong>dos</strong> grabbers ocorre a cada seis meses, e<br />
sempre se dá de dois a dois, ou seja, é natural uma fêmea<br />
grabber conceber dois indivíduos por vez. Por outro lado, a<br />
expectativa de vida deles é curta, aproximando-se <strong>dos</strong><br />
quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Há casos raríssimos<br />
em que podem atingir até os cinqüenta e oito anos, o que é<br />
uma grande fortuna e felicidade para um grabber, pois além<br />
de vencer um limite praticamente imposto por sua natureza,<br />
passam automaticamente a fazer parte do Conselho Magno,<br />
uma espécie de casta superior que julga e determina todas as<br />
ações de seu povo. São os anciãos da Fortaleza. Atualmente o<br />
Conselho Magno é composto por dezesseis felizar<strong>dos</strong><br />
grabbers.<br />
A construção da Fortaleza Grabber<br />
A menina <strong>dos</strong> olhos do Conselho Magno, sempre foi a<br />
construção de uma grande cidade, uma fortaleza cercada por<br />
muralhas imensas onde pudessem salvar todo o seu povo de<br />
seus inimigos e de qualquer situação ameaçadora. O projeto<br />
era ambicioso e levou anos na cabeça <strong>dos</strong> grabbers até que se<br />
decidissem por uma empreitada tão grande.<br />
Quando finalmente decidiram concretizar o sonho, vários<br />
aspectos foram observa<strong>dos</strong> pelos anciãos, principalmente a<br />
sigilosidade que deveria haver nesta empresa, para evitar que<br />
os seus inimigos goblins aniquilassem seus sonhos.<br />
As incessantes incursões <strong>dos</strong> goblins sobre os vilarejos<br />
<strong>dos</strong> grabbers serviram como bode expiatório para a execução<br />
deste projeto. Ao passo que alguns grabbers resistiam<br />
valentemente às investidas <strong>dos</strong> perversos goblins, outros iam<br />
380
migrando, aos poucos, para o Paredão, local escolhido para a<br />
construção da grande Fortaleza. É claro que a perdas foram<br />
enormes, em ambas as frentes, tanto nos combates quanto nas<br />
construções. O Conselho Magno esteve perto de abandonar o<br />
projeto no meio do seu desenvolvimento, ao ver que a cada<br />
dia a resistência diminuía e muitos <strong>dos</strong> grabbers recruta<strong>dos</strong><br />
para a guerra desertavam e fugiam desobedientemente para o<br />
Paredão antes de serem convoca<strong>dos</strong>. Houve dias em que<br />
vilarejos inteiros foram massacra<strong>dos</strong> por goblins, sem que<br />
pudessem oferecer qualquer resistência.<br />
As últimas esperanças <strong>dos</strong> grabbers concentraram-se em<br />
suas três principais vilas, das quais atualmente apenas duas<br />
existem, encontradas na última fronteira da região das<br />
montanhas, num lugar de difícil acesso, muito protegido.<br />
Após terem superado intermináveis dificuldades para<br />
atingir as últimas vilas <strong>dos</strong> grabbers, o que na verdade<br />
demorou quase dois anos, todo um exército com<br />
aproximadamente quinze mil goblins, com a intenção de<br />
dizimar e extinguir de uma vez para sempre toda a raça <strong>dos</strong><br />
grabbers, se deparou com a mais violenta e sangrenta batalha<br />
de toda a história da rivalidade entre estas duas raças, que<br />
durou outros três longos anos.<br />
Naqueles dias, quando a notícia do início desta sangrenta<br />
contenda chegou aos ouvi<strong>dos</strong> do Conselho Magno, que tinha<br />
residência permanente na última de suas vilas, viram<br />
claramente que seriam o próximo alvo <strong>dos</strong> inimigos e<br />
decidiram que era chegada a hora de uma ação evasiva<br />
completa, uma vez que as muralhas da Fortaleza já se<br />
encontravam erguidas.<br />
Quando as tropas <strong>dos</strong> goblins avançaram impie<strong>dos</strong>as<br />
sobre a última vila <strong>dos</strong> grabbers, a encontraram<br />
completamente abandonada. Os líderes goblins, apesar do<br />
mistério, encararam o fato com naturalidade. Não<br />
encontraram um grabber sequer em todo o lugar.<br />
Vasculharam cada canto da vila e seus arredores, sem<br />
381
encontrar absolutamente nada. Assim terminou o que<br />
historicamente se conhece como a Guerra Selvagem, e os<br />
goblins comemoraram a suposta vitória sem imaginar que<br />
seus inimigos haviam erguido uma impenetrável Fortaleza.<br />
Atualmente os goblins já tomaram conhecimento de que<br />
seus eternos rivais habitam a região do Paredão e, de vez em<br />
quando, se organizam em grandes grupos de assalto para<br />
eliminar grabbers errantes que se encontrem despreveni<strong>dos</strong><br />
fora das muralhas que encerram a Fortaleza.<br />
O sucesso da Fortaleza Grabber foi tão grande, que após<br />
anos de resistência aos mais varia<strong>dos</strong> ataques de goblins e<br />
mesmo de outras criaturas, o atual Conselho Magno acredita<br />
que em alguns anos mais, a raça <strong>dos</strong> grabbers possa se tornar<br />
uma grande superpotência.<br />
382
Trolls<br />
E<br />
sta é a raça selvagem menos inteligente de <strong>Virgo</strong>, mas<br />
também, uma das mais hostis e determinadas em<br />
promover o caos e a destruição. São das poucas criaturas que<br />
conseguiram atravessar a <strong>Era</strong> Trevas. Acredita-se, ainda, que<br />
estas criaturas horrendas tenham surgido até mesmo antes da<br />
<strong>Era</strong> Gênesis.<br />
Estes seres bizarros são altos e musculosos, podendo<br />
chegar a até dois metros de altura. Com seus braços longos e<br />
pelu<strong>dos</strong>, vagam pelas florestas na maior parte do tempo<br />
através <strong>dos</strong> galhos das árvores, como se fossem enormes<br />
macacos. Sua aparência é horripilante, possuem uma cabeleira<br />
encrespada, que atinge a altura <strong>dos</strong> ombros. Seus olhos<br />
oblíquos detêm um brilho maligno e assustador.<br />
Os trolls possuem uma peculiaridade muito importante,<br />
que é sua rígida constituição física. Além de serem revesti<strong>dos</strong><br />
de uma pele muito resistente, tal qual um couro de bisão,<br />
possuem ainda uma grande capacidade de regeneração.<br />
Pequenos cortes e perfurações rasas levam apenas cerca de<br />
três horas para ficarem completamente curadas, tendo sua<br />
integridade física , restaurada.<br />
Mesmo quando perdem mãos, pés e até mesmo braços e<br />
pernas, em menos de um ano o membro perdido é regenerado.<br />
Muitos elfos acreditam que um membro cortado, pode vir<br />
a se transformar em um novo troll, mas isto não é verdade,<br />
pois a regeneração <strong>dos</strong> teci<strong>dos</strong> e membros <strong>dos</strong> trolls acontece a<br />
partir de uma ativação enzimática que leva à alta produção de<br />
células controlada pelo seu sistema nervoso central.<br />
Os trolls andam em pequenos grupos de seis a oito, e<br />
além das florestas, podem também ser encontra<strong>dos</strong> em<br />
cavernas e ruínas de antigas construções abandonadas. Não<br />
383
possuem como as outras raças, tribos ou aldeias, sendo seres<br />
errantes que vagam pelos lugares mais ermos de <strong>Virgo</strong>.<br />
Dizem, alguns elfos, que na Mata Negra, localizada ao sul<br />
da Planície de Bronze, existe uma grande concentração de<br />
trolls, e que a maioria deles está migrando para esta região. Os<br />
elfos temem que eles estejam se organizando para tentar<br />
reaver a Grande Floresta, de onde foram expulsos no final da<br />
<strong>Era</strong> Trevas.<br />
Os trolls possuem dois pontos fracos: não sabem nadar e<br />
não suportam claridade. Possuem verdadeiro pavor tanto da<br />
água quanto do fogo. Existem duas maneiras de se acabar com<br />
um troll: uma delas é atingindo o seu coração, a outra, é<br />
decapitando-o. Claro que se forem submeti<strong>dos</strong> a um<br />
afogamento, ou a uma grande quantidade de fogo ou ácido,<br />
também perecerão.<br />
Sem utilização de quaisquer vestimentas, os trolls<br />
vagueiam por <strong>Virgo</strong>, naturalmente, como vieram ao mundo,<br />
cobertos apenas por sua pelugem natural de uma cor verde<br />
musgo, que os oculta bastante quando pulam de galho em<br />
galho pelas árvores das florestas.<br />
Uma história <strong>dos</strong> Trolls<br />
Desde que os trolls foram bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta,<br />
pelo menos hoje em dia tem sido raro encontrá-los naquela<br />
vasta região; eles se espalharam por to<strong>dos</strong> os outros lugares e<br />
são encontra<strong>dos</strong> desde a Mata Negra até o Vale <strong>dos</strong> Cristais,<br />
sendo que a maioria deles preferiu permanecer na Mata<br />
Negra, que fica localizada entre a Grande Floresta a norte e<br />
oeste, e o Deserto Naissaras, a leste. A nordeste, salta para a<br />
Planície de Bronze, e ao sul, a Mata Negra constitui as<br />
margens do Mar Caudaloso.<br />
Praticamente, a Mata Negra se tornou o último bastião<br />
<strong>dos</strong> trolls, e poucas criaturas de outras raças, sejam elas<br />
384
superiores ou selvagens, aventuram-se a atravessar esta<br />
região.<br />
Esta grande concentração de trolls na Mata Negra acabou<br />
contribuindo para que eles desenvolvessem um mínimo<br />
conceito a respeito de organização e união, fazendo-os<br />
perceber que juntos eram muito poderosos.<br />
É bem verdade que eles não possuem moradia fixa, não<br />
costumam habitar sempre o mesmo lugar por um longo<br />
período de tempo, mas suas mentes foram envenenadas com a<br />
humilhação de serem bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta pelos elfos,<br />
resultando na morte de milhares de trolls. Com toda essa<br />
amarga recordação, os trolls conseguiram mudar um pouco<br />
seus hábitos e passaram, inclusive, a ter encontros combina<strong>dos</strong><br />
num ponto específico da Mata Negra, que conta com a maior<br />
concentração de trolls jamais imaginada por qualquer elfo.<br />
Geralmente, dessas reuniões partem muitos trolls à<br />
procura de outros, para trazê-los à Mata Negra, com o objetivo<br />
de convencê-los a unirem-se à causa deles de retomar a<br />
Grande Floresta.<br />
A primeira conquista esperada por to<strong>dos</strong> os trolls que<br />
estão irmana<strong>dos</strong> nesta vingança é sobre o reino élfico de<br />
Flonthoriel, que é o menor <strong>dos</strong> cinco reinos e o mais próximo à<br />
Mata Negra. Além disso, foi o exército de Flonthoriel que<br />
definiu a guerra contra os trolls no final da <strong>Era</strong> Trevas, de<br />
forma que, aos elfos deste reino, os trolls dedicam uma ira<br />
toda especial.<br />
O único motivo pelo qual os trolls ainda não avançaram<br />
sobre Flonthoriel, é o fato de que esperam o retorno de uma<br />
expedição enviada aos confins da Floresta das Sombras, para<br />
que alguns trolls tentassem convencer os Darkhos (Dragões<br />
Negros) a se aliarem a eles nesta causa, para que juntos,<br />
reconquistassem a Grande Floresta. Outrora, trolls e Darkhos<br />
já foram alia<strong>dos</strong>, durante o período da Guerra do Medo, mas<br />
foram derrota<strong>dos</strong> e bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta. Na verdade,<br />
esta união não chegou a ser uma aliança oficial, mas apenas<br />
385
lutavam por suas vidas contra o inimigo comum, no caso, os<br />
elfos de Flonthoriel. Agora, os poucos Darkhos sobreviventes<br />
vivem isola<strong>dos</strong> nas montanhas ao norte da Floresta das<br />
Sombras.<br />
Não se sabe ao certo se os Darkhos irão aceitar esta<br />
aliança, pois eles foram alia<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> Greenos (Dragões Verdes)<br />
em épocas antigas, e sabem que atualmente os Greenos<br />
também habitam a Grande Floresta, como alia<strong>dos</strong> inseparáveis<br />
<strong>dos</strong> elfos. Acontece, que existe um código entre os dragões e<br />
eles não lutam mais entre si.<br />
Eis um relevante motivo que certamente fará com que os<br />
Darkhos declinem o convite para tal aliança com os trolls.<br />
Além disso, há outro agravante, que é o tratado que fizeram<br />
com a rainha élfica Aurien, de Sombrorn.<br />
A única esperança <strong>dos</strong> trolls é reacender nos corações <strong>dos</strong><br />
Darkhos o velho desejo de mais uma vez habitar a Grande<br />
Floresta, berço natural <strong>dos</strong> mais antigos Dragões, desde o<br />
começo <strong>dos</strong> tempos, antes mesmo da <strong>Era</strong> Gênesis.<br />
Mas, com ou sem a ajuda <strong>dos</strong> Darkhos, a invasão a<br />
Flonthoriel será inevitável e acontecerá antes do que se<br />
imagina. Já existem rumores de que orcs das tribos próximas a<br />
Flonthoriel estejam interessa<strong>dos</strong> em participar desta investida,<br />
ao lado <strong>dos</strong> trolls.<br />
Enquanto este grande cenário de destruição e morte não<br />
acontece, cresce a cada dia a aflição <strong>dos</strong> elfos de Flonthoriel,<br />
que estão localiza<strong>dos</strong> geograficamente numa posição muito<br />
vulnerável.<br />
386
Vutuks<br />
O<br />
s vutuks foram uma das primeiras civilizações de <strong>Virgo</strong>, e<br />
acredita-se que tiveram o auge de seu desenvolvimento<br />
durante a <strong>Era</strong> Oculta. Sempre foram rivais <strong>dos</strong> vangis, e<br />
centenas de lutas foram travadas entre estas duas civilizações<br />
durante incontáveis séculos.<br />
Um vutuk possui a mesma altura mediana de um goblin,<br />
ou seja, em torno de 1,40 cm, mas apesar da baixa estatura,<br />
seus músculos são bem defini<strong>dos</strong>. Sua pele, assim como a <strong>dos</strong><br />
druzos, é de uma cor vermelha escuro, e apesar de lisa, é<br />
extremamente resistente, principalmente ao calor. Estas<br />
criaturas também possuem um pequeno par de chifres em sua<br />
cabeça, lembrando muito os druzos. Os dentes <strong>dos</strong> vutuks, ou<br />
seria melhor dizer presas, são muito pontiagu<strong>dos</strong>, são<br />
criaturas exclusivamente carnívoras. Possuem olhos puxa<strong>dos</strong>,<br />
longos e inclina<strong>dos</strong>.<br />
Vis por natureza, são praticamente movi<strong>dos</strong> pela ambição<br />
de grandes conquistas, poder e tesouros. Não medem esforços<br />
para realizar seus anseios e passam por cima de qualquer<br />
coisa para alcançar seus objetivos.<br />
De todas as raças selvagens e civilizações na história de<br />
<strong>Virgo</strong>, os vutuks foram os mais ricos. Ainda hoje, nas ruínas<br />
do império vutuk na ilha Kirbuz, existem muitos tesouros,<br />
inclusive preciosidades <strong>dos</strong> extintos reinos vangis que eles<br />
tanto saquearam durante a <strong>Era</strong> Oculta.<br />
As armas <strong>dos</strong> vutuks sempre foram espadas curtas e<br />
lanças longas. Para se defenderem, usam pequenos escu<strong>dos</strong><br />
redon<strong>dos</strong> com um V gravado na frente.<br />
Os exércitos vutuks sempre foram muito temi<strong>dos</strong> em todo<br />
<strong>Virgo</strong>, pois a estratégia de guerra desenvolvida por estas<br />
criaturas era algo completamente avançada e incomparável.<br />
387
Nem mesmo os mais poderosos exércitos élficos da atualidade<br />
seriam capazes de vencer uma guerra contra os vutuks, em<br />
sua época de glória.<br />
Possuem uma vida social muito agitada quando não estão<br />
envolvi<strong>dos</strong> em batalhas ou em grandes construções. Gostam<br />
de realizar festas que sempre contam, é claro, com atrações de<br />
tortura e o sacrifício de prisioneiros.<br />
Vivem em grandes comunidades dentro <strong>dos</strong> limites de<br />
seu império e é muito comum a poligamia entre eles. A taxa<br />
de natalidade <strong>dos</strong> vutuks é altíssima, o que garante sempre<br />
um futuro promissor para seus exércitos!<br />
A expectativa de vida de um vutuk beira os oitenta anos<br />
em média, mas são raros os i<strong>dos</strong>os entre eles. Como adoram as<br />
guerras, geralmente morrem antes de alcançarem idades<br />
muito avançadas. Sobretudo, mesmo os vutuks mais i<strong>dos</strong>os,<br />
fazem questão de estarem presentes nos campos de batalha,<br />
ainda que seja para ficar na retaguarda das fileiras.<br />
A Queda do Império vutuk<br />
Os vutuks sempre foram uma potência militar. Seu<br />
império gozava de glória e esplendor. Combateram os ogros,<br />
conquistaram muitas cidades vangis e escravizaram<br />
praticamente toda a raça <strong>dos</strong> gnoblins, sendo responsáveis<br />
diretos por sua extinção. Toda a Ilha Kirbuz ficou sob o<br />
domínio do império vutuk durante incontáveis séculos.<br />
Apenas uma cidade vangi resistia às investidas vutuks. Os<br />
ogros, por sua vez, abrigaram-se nas profundezas da<br />
Montanha Cavernosa, no centro da Ilha Kirbuz.<br />
No final da <strong>Era</strong> Oculta, o imperador vutuk, Onip,<br />
organizou suas legiões e as dividiu em duas grandes frentes<br />
de batalha. Uma para conquistar a última e resistente cidade<br />
vangi da Ilha Kirbuz, e a outra para invadir a Montanha<br />
Cavernosa, em busca <strong>dos</strong> últimos ogros refugia<strong>dos</strong>, a fim de<br />
erradicá-los de vez da ilha que proclamavam soberania total.<br />
388
O poderoso império vutuk, ficaria guarnecido apenas pela<br />
Guarda Imperial de Onip.<br />
O principal objetivo de Onip era conquistar<br />
definitivamente toda a Ilha Kirbuz. Os vutuks, assim como os<br />
Ogros, acreditavam que a Ilha Kirbuz era o único lugar<br />
habitável existente em <strong>Virgo</strong>, pois não eram capazes de<br />
enxergar a olho nu, as margens além das águas que cercavam<br />
a ilha. As duas raças tinham verdadeiro pavor das águas e<br />
nunca se aventuraram através delas.<br />
Já os vangis, com sua capacidade de levitação, sabiam da<br />
amplitude de <strong>Virgo</strong> e conheciam as terras além da Ilha Kirbuz.<br />
Há muitos anos eles vinham visitando as terras além da ilha, à<br />
procura de um lugar mais seguro para viver.<br />
Muitos foram os fatores que contribuíram para a queda<br />
do império vutuk. A ambição cega de Onip foi a sua própria<br />
ruína.<br />
A primeira frente de batalha invadiu a Montanha<br />
Cavernosa para aniquilar os ogros, que mesmo em menor<br />
número, foram fortes e resistiram bravamente protegendo-se<br />
em seu habitat dentro das cavernas. Muitos vutuks pereceram<br />
nesta batalha. Os contadores de história, dizem que morreram<br />
cerca de trinta vutuks para cada ogro tombado nas escuras<br />
entranhas da Montanha Cavernosa. Os ogros chegaram ao<br />
limite de sua resistência e sucumbiram ao tentar fugir como<br />
podiam. Nenhum conseguiu sair vivo naquela interminável<br />
semana de batalhas.<br />
Muitos vutuks, mesmo vitoriosos, jamais saíram da<br />
Montanha Cavernosa, pois não foram capazes de encontrar os<br />
caminhos de volta e pereceram provavelmente devido ao frio<br />
e fome.<br />
De todas as legiões que formaram esta primeira frente de<br />
batalha, com dezenas de milhares de vutuks, apenas algumas<br />
centenas regressaram para seus lares.<br />
A segunda frente de batalha se dirigiu a Athamon, última<br />
e maior cidade vangi de Kirbuz. Ocorreu que, enquanto Onip<br />
389
esteve durante longos dois anos preocupado em organizar<br />
todas as suas forças de combate para tomar de vez a Ilha<br />
Kirbuz, os vangis de Athamon recebiam os Blukhos (Dragões<br />
Azuis) que vinham do outro lado da Região das Montanhas.<br />
Uma grande guerra entre Dragões ocorria naquela longínqua<br />
região no final da <strong>Era</strong> Oculta, e como os Blukhos não se<br />
envolviam em batalhas com outros Dragões, preferiram fugir<br />
e abandonar a região, vindo para a Ilha Kirbuz, onde<br />
esperavam refugiar-se.<br />
Os vangis receberam os Blukhos maravilha<strong>dos</strong> com sua<br />
beleza e fizeram grande amizade com eles. Presentearam os<br />
Blukhos com belíssimos tesouros e os ensinaram tudo acerca<br />
da Ilha Kirbuz. No final deste período, os vangis pediram para<br />
que os Blukhos cuidassem de Athamon. Os vangis estavam<br />
evadindo-se para sua nova morada, uma enorme cidade<br />
construída no céu de <strong>Virgo</strong>, chamada de Vangilla. Lá,<br />
pretendiam permanecer até que houvesse paz entre todas as<br />
raças.<br />
Certa noite, os vutuks cercaram toda a cidade de<br />
Athamon. Ao amanhecer, lançaram-se como um mar de<br />
demônios sobre a cidade vangi, ignorantes ao fato de que a<br />
mesma estava habitada apenas por dragões azuis. Tamanha<br />
foi a movimentação, que a Ilha Kirbuz sentia-se tremer, e os<br />
Blukhos assusta<strong>dos</strong>, em grande número foram observar o que<br />
se passava.<br />
A partir daí, travou-se uma inesquecível batalha entre<br />
vutuks e dragões azuis. Não fosse a astúcia <strong>dos</strong> vutuks, teriam<br />
sido aniquila<strong>dos</strong> rapidamente naquele mesmo dia, mas a<br />
estratégia para a conquista de Athamon, que a princípio seria<br />
infalível, serviu apenas para garantir que algumas legiões<br />
pudessem fugir daquele inferno que se tornou Athamon.<br />
Foi a primeira grande derrota de uma frente de batalha<br />
vutuk. A força <strong>dos</strong> dragões prevaleceu à estratégia de guerra<br />
<strong>dos</strong> generais vutuks neste dia memorável.<br />
390
Os Blukhos nunca foram de combate, mas o compromisso<br />
com seus amigos vangis de garantir a integridade de Athamon<br />
os tornou defensores furiosos nesta guerra. Inconforma<strong>dos</strong><br />
com a investida cruel <strong>dos</strong> vutuks, os dragões azuis, toma<strong>dos</strong><br />
de ira, rapidamente se organizaram e partiram ainda no final<br />
daquele dia em direção a Sirr, capital do Império vutuk.<br />
Fizeram de todo o Império vutuk um lugar de ruínas,<br />
deixando milhares de desabriga<strong>dos</strong>. A guarda imperial de<br />
Onip não foi capaz de resistir ao ataque devastador <strong>dos</strong><br />
dragões azuis e foi massacrada em pouco tempo.<br />
Esses foram os últimos momentos do glorioso Império<br />
vutuk, que sem exército e sem cidade, nunca mais conseguiu<br />
alcançar a glória e o esplendor de outrora. Onip, e milhares de<br />
vutuks, foram dizima<strong>dos</strong> pelos Blukhos naquele dia de<br />
derrota.<br />
391
Ogros e gojos<br />
O<br />
s ogros são as criaturas mais corpulentas de todas as raças<br />
selvagens de <strong>Virgo</strong>, sendo que apenas os gojos chegam<br />
tão perto em tamanho. Seu corpo é tremendamente musculoso<br />
e sua altura pode ultrapassar os 3,5 m. Seus cabelos são longos<br />
e grossos, negros como as profundezas das sombras, e<br />
normalmente ficam amarra<strong>dos</strong> para trás, na altura da nuca. O<br />
corpo possui uma grossa camada de pêlos que protegem sua<br />
rígida pele, que por sua vez, também é muito resistente. Seus<br />
olhos são de uma coloração escura e de uma profundidade<br />
assustadora. A tez de um ogro é de um marrom bem claro;<br />
entretanto, os pêlos que a cobrem são mais escuros, de forma<br />
que ao serem vistos, se tem a impressão que são quase negros.<br />
Os gojos também são criaturas enormes, com um corpo<br />
muito musculoso e bem distribuído em seus quase 3,5 m de<br />
altura. Não possuem cabelos, são to<strong>dos</strong> carecas e seus olhos<br />
são esbugalha<strong>dos</strong> dando uma impressão que estão loucos, mas<br />
na verdade, é apenas o seu biótipo comum. De vez em<br />
quando, lançam um olhar oblíquo, muito sinistro, que chega a<br />
delatar sua face de traição. Possuem um nariz chato e<br />
suspenso, lembrando um focinho de porco. São criaturas<br />
muito troncudas e não se percebe o pescoço. Sua mandíbula é<br />
muito larga, e em sua arcada inferior possuem dois dentes<br />
grandes e pontiagu<strong>dos</strong>, um em cada extremidade desta<br />
arcada, que se projetam por fora da boca. A cor da pele de um<br />
gojo também é muito parecida com a <strong>dos</strong> seres humanos e, na<br />
maioria <strong>dos</strong> casos, até possuem a mesma resistência, à exceção<br />
de alguns gojos que nascem com uma constituição muscular<br />
fora do comum e chega a ser duas vezes mais resistente que a<br />
<strong>dos</strong> homens. Os elfos acreditam que estas criaturas grotescas,<br />
a exemplo <strong>dos</strong> ogros, tenham vindo de um mesmo ancestral<br />
392
comum, já extinto há mais de 2050 anos, no final da <strong>Era</strong><br />
Trevas.<br />
Na verdade, gojos e ogros só se assemelham pelo<br />
tamanho de seus corpos e pela característica de vagarem<br />
solitariamente pelos lugares mais ermos de <strong>Virgo</strong>, embora, os<br />
gojos sejam encontra<strong>dos</strong> algumas vezes acompanhando<br />
criaturas de outras raças.<br />
Os gojos são muito prestativos. Quando são encontra<strong>dos</strong>,<br />
se oferecem para ajudar qualquer aventureiro, seja para<br />
carregar pesa<strong>dos</strong> equipamentos ou simplesmente para guiálos<br />
por qualquer lugar mais inóspito. Porém, são tão<br />
traiçoeiros quanto prestativos. Sempre que surge uma<br />
oportunidade, eles fogem com os equipamentos e utensílios<br />
<strong>dos</strong> viajantes, deixando-os, muitas vezes, em situações muito<br />
complicadas.<br />
Nunca se demonstram hostis à primeira vista, mas uma<br />
vez irrita<strong>dos</strong> ou em perigo, demonstram toda a sua força e<br />
fúria.<br />
Vestem-se normalmente com túnicas curtas e usam um<br />
cinto de couro. Suas sandálias, bem parecidas com as <strong>dos</strong><br />
antigos romanos, são entrelaçadas nas pernas por finas tiras<br />
de couro. Os gojos usam como armas as maças de espinho e as<br />
clavas, também espinhosas.<br />
Apesar de seu tamanho e sua força, são verdadeiros<br />
medrosos diante de magia. Qualquer mago pode facilmente<br />
submeter um gojo a seus serviços, sem se preocupar em ser<br />
traído, pois os gojos, apesar de traiçoeiros, jamais tentam<br />
enganar magos e feiticeiros.<br />
To<strong>dos</strong> os gojos são provenientes de um mesmo lugar, o<br />
Deserto Naissaras. Lá, encontra-se uma enorme tribo de gojos,<br />
de onde geralmente partem em busca de uma vida errante e<br />
solitária. Esta tribo fica bem ao centro do Deserto Naissaras,<br />
em torno de um enorme oásis que possui um lago de águas<br />
límpidas e potável.<br />
393
Mestres em montar banthas, possuem uma grande<br />
quantidade destes animais em sua tribo. Com os banthas,<br />
conseguem atingir as extremidades do Deserto Naissaras em<br />
quatorze dias, ao passo que sem a ajuda destes animais,<br />
levariam mais de sessenta dias, sendo praticamente<br />
impossível tal cruzada através das perigosas e traiçoeiras<br />
dunas de areia.<br />
Além <strong>dos</strong> banthas, apenas os Laithans (Dragões Brancos)<br />
são capazes de atravessar o Deserto Naissaras em segurança.<br />
Antigos habitantes deste lugar, os Laithans conhecem cada<br />
perigo do deserto.<br />
Uma história <strong>dos</strong> gojos<br />
O oásis habitado pela tribo <strong>dos</strong> gojos no meio do Deserto<br />
Naissaras outrora fora uma grande selva, conhecida como<br />
Floresta das Águas, mas devido a um distúrbio qualquer da<br />
natureza, pereceu com o passar <strong>dos</strong> anos e transformou-se em<br />
areia.<br />
Nesta época, em que a areia começou a dominar<br />
rapidamente toda a região da Floresta das Águas, os gojos<br />
eram muito numerosos e estavam evoluindo rapidamente<br />
como civilização, mas este processo acabou por reduzi-los a<br />
um número insignificante se comparado ao que foram antes<br />
do fenômeno que acabou criando o que é hoje conhecido como<br />
Deserto Naissaras.<br />
Os Laithans, que também habitavam a Floresta das Águas<br />
e sempre foram indiferentes aos gojos, passaram, por grande<br />
necessidade e desespero a caçá-los como alimento.<br />
A fauna e a flora da Floresta das Águas eram riquíssimas<br />
e jamais havia faltado alimentos para os Laithans. As duas<br />
raças sempre evitaram conflitos e conviveram de certa forma,<br />
em harmonia.<br />
Este fenômeno que transformou a Floresta das Águas no<br />
Deserto Naissaras, foi o único ocorrido na <strong>Era</strong> Nova, e foi o<br />
394
principal motivo a colocar gojos e Laithans em guerra, numa<br />
alucinada luta pela sobrevivência, onde o objetivo de ambos<br />
era a carne do inimigo para sua própria alimentação.<br />
A adaptação <strong>dos</strong> gojos ao solo arenoso foi tão rápida<br />
quanto o seu surgimento. Este fator foi fundamental para a<br />
garantia de sua existência.<br />
Mesmo adapta<strong>dos</strong> ao novo ambiente, os gojos ainda<br />
ficaram muito vulneráveis. Os Laithans, além de mais fortes<br />
fisicamente, mais determina<strong>dos</strong> e mais inteligentes, eram<br />
capazes de voar por toda a região. Mas os gojos traçaram uma<br />
estratégia que jamais seria esperada pelos Laithans.<br />
Durante to<strong>dos</strong> os anos de combate, os gojos cada vez mais<br />
se dirigiam para o centro da Floresta das Águas, acua<strong>dos</strong> pelos<br />
incessantes ataques <strong>dos</strong> Laithans. Enquanto os gojos recuavam<br />
e resistiam, um pequeno grupo avançava para dentro do<br />
principal covil <strong>dos</strong> Laithans, aos pés das Colinas Íngremes.<br />
Ao chegarem nas Colinas Íngremes, este bravo grupo de<br />
gojos travou uma violenta e sangrenta batalha contra o rei <strong>dos</strong><br />
dragões brancos e outros dois Laithans que lá estavam em sua<br />
companhia. Estes outros dois dragões eram da mesma<br />
linhagem do rei.<br />
Os três dragões juntos foram mais do que suficientes para<br />
dizimar o pequeno grupo de destemi<strong>dos</strong> gojos, que ousaram<br />
entrar no mais importante covil <strong>dos</strong> dragões brancos. Mas não<br />
pereceram em vão, pois conseguiram atingir o seu objetivo de<br />
distrair os dragões com a batalha enquanto um grupo menor<br />
de gojos encontrava a caverna <strong>dos</strong> ovos, onde toda uma nova<br />
geração de Laithans aguardava pelo momento de seu<br />
despertar para a vida.<br />
A estratégia era destruir a maior quantidade possível de<br />
ovos, na esperança de que com o medo da extinção de sua<br />
raça, os Laithans desistissem da batalha e recuassem<br />
abandonando o que sobrara da Floresta das Águas.<br />
O gojo responsável por este feito, conhecido por Gojorix,<br />
foi um <strong>dos</strong> mais astutos e valentes gojos de sua raça. Seu nome<br />
395
até hoje é lembrado por to<strong>dos</strong> na única tribo existente no<br />
centro do Deserto Naissaras.<br />
Enquanto Gojorix destruía os ovos com sua maça de<br />
espinhos, desferindo golpes ensandeci<strong>dos</strong> para to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>,<br />
o rei <strong>dos</strong> Laithans sentia uma enorme agonia crescer dentro de<br />
seu corpo, mas era impedido de sair de sua câmara principal<br />
em socorro <strong>dos</strong> ovos enquanto não se livrasse do outro grupo<br />
de gojos que o atacavam.<br />
Enfurecido, e observando seus dois entes queri<strong>dos</strong> que<br />
jaziam mortos a seu lado após horas de batalha, o rei <strong>dos</strong><br />
poderosos dragões brancos lançou um olhar fulminante sobre<br />
os dois últimos gojos da resistência diante de sua câmara<br />
principal e disparou contra eles sua baforada de fogo branco.<br />
A última coisa que aqueles pobres gojos viram em suas<br />
vidas foi um enorme clarão, pois desintegraram-se<br />
instantaneamente sob a fumaça cintilante que restou da<br />
investida do exausto rei Laithan. Pairava no ar, como fogo<br />
fátuo, o resíduo da baforada de dragão mais temida de <strong>Virgo</strong>.<br />
Então, o rei <strong>dos</strong> Laithans avançou furioso sobre as<br />
câmaras de seu covil, uma a uma, procurando o que lhe<br />
atormentara durante a batalha, temendo justamente pela<br />
segurança da câmara <strong>dos</strong> ovos. Ao chegar na câmara onde se<br />
encontravam os ovos, ficou aterrorizado. To<strong>dos</strong> quebra<strong>dos</strong>!<br />
Toda uma nova geração de Laithans perdida, massacrada<br />
cruelmente, sem a chance de ao menos poder se defender.<br />
Gojorix já havia partido solitário há algum tempo,<br />
montado em seu bantha, rumo ao seu povo onde, de fato,<br />
chegou em segurança. Não que seu bantha tenha sido tão<br />
rápido a ponto de lhe permitir escapar do rei <strong>dos</strong> Laithans,<br />
mas na verdade, o próprio rei <strong>dos</strong> dragões brancos permitiu a<br />
fuga. Se quisesse, teria o encontrado com facilidade nas<br />
primeiras milhas além das Colinas Íngremes.<br />
O rei <strong>dos</strong> Laithans reuniu to<strong>dos</strong> os de sua raça e dez dias<br />
depois, voaram juntos para o que ainda restava da Floresta<br />
das Águas, já em sua maior parte tomada pela areia. Voaram<br />
396
em direção à concentração de gojos sobreviventes, no centro<br />
da floresta. Cerca de trezentos e cinqüenta dragões formavam<br />
aquela coorte deslocando no céu uma assustadora nuvem de<br />
criaturas aladas.<br />
Ao chegarem a seu destino, à concentração de gojos no<br />
centro da Floresta das Águas, fizeram um gigantesco círculo,<br />
mantendo-se afasta<strong>dos</strong> uns <strong>dos</strong> outros por cerca de trinta<br />
metros. Além <strong>dos</strong> que faziam parte do enorme círculo, outros<br />
ainda pairavam sobre os gojos com incessantes vôos rasantes,<br />
deixando a to<strong>dos</strong> desespera<strong>dos</strong>.<br />
Alguns tentaram, em vão, furar o cerco, mas eram<br />
desintegra<strong>dos</strong> à medida que apareciam entre as árvores. Nem<br />
mesmo chegavam perto <strong>dos</strong> Laithans.<br />
O rei <strong>dos</strong> dragões brancos pousou acompanhado de<br />
outros dois dragões, bem no centro da tribo improvisada, e<br />
falando na língua rústica <strong>dos</strong> gojos, deixou bem clara suas<br />
intenções. Lembrou-lhes quem eram seus antigos rivais<br />
durante a <strong>Era</strong> Trevas, que eram os Darkhos (dragões negros).<br />
Ainda lhes falou sobre a dor de ver to<strong>dos</strong> os ovos de Laithans<br />
destruí<strong>dos</strong>, o que os colocava vulneráveis contra to<strong>dos</strong> os seus<br />
inimigos, pois agora passavam a ser uma raça em extinção.<br />
Os gojos ouviam apreensivos e aterroriza<strong>dos</strong>, esperando<br />
pelo pior. O rei <strong>dos</strong> Laithan afirmou que se quisesse, com um<br />
único comando, poderia aniquilar toda a tribo de gojos de<br />
uma só vez, para todo o sempre. Mas sabia que haviam muitos<br />
gojos errantes espalha<strong>dos</strong> em <strong>Virgo</strong>, e por mais que quisesse,<br />
não conseguiria erradicá-los totalmente do mundo.<br />
O rei <strong>dos</strong> Laithans ainda falou muitas outras coisas, mas<br />
ao final do discurso, colocou, com clareza, o que esperava <strong>dos</strong><br />
gojos. O silêncio <strong>dos</strong> gojos sobre a destruição <strong>dos</strong> ovos no<br />
covil <strong>dos</strong> Laithans sob às Colinas Íngremes. Com isso teriam<br />
uma trégua eterna, assim prometeu o rei <strong>dos</strong> dragões brancos.<br />
Aos olhos <strong>dos</strong> gojos, aquela proposta parecia ótima, nem<br />
estavam acreditando, porque certamente não sobreviveriam<br />
ao cerco <strong>dos</strong> dragões naquelas condições em que foram<br />
397
apanha<strong>dos</strong>. No mesmo instante, o líder <strong>dos</strong> gojos, o rei<br />
Gojoramim, aceitou o trato.<br />
Mas as coisas não eram tão simples quanto pareciam, pois<br />
o rei <strong>dos</strong> Laithans ordenou a Gojoramim que entregasse a ele<br />
os responsáveis pela destruição <strong>dos</strong> ovos. Houve uma grande<br />
indignação por parte de Gojoramim e sua tribo. Negou<br />
solenemente o pedido, achando um absurdo que tivesse que<br />
entregar um de seu povo sem qualquer deliberação, para a<br />
morte.<br />
Então, o rei <strong>dos</strong> dragões brancos alçou vôo traçando uma<br />
longa curva no ar, deixando um aviso de que os dragões<br />
fechariam o cerco, avançando cinqüenta metros a cada dia,<br />
diminuindo o diâmetro do círculo, até que lhe fosse entregue o<br />
autor da destruição <strong>dos</strong> ovos.<br />
Ao sétimo dia de resistência, os Laithans haviam<br />
conseguido avançar apenas duzentos metros. A resistência<br />
<strong>dos</strong> gojos era mais forte do que esperavam e muitos Laithans<br />
também pereceram. O que mais abalava os gojos eram os<br />
constantes ataques aéreos no centro da tribo. Centenas de<br />
gojos morriam to<strong>dos</strong> os dias, até que no nono dia, o próprio<br />
Gojorix se entregou para salvar seu povo daquele massacre<br />
cada vez mais inevitável.<br />
Gojorix foi então levado ao rei <strong>dos</strong> dragões brancos e<br />
nunca mais foi visto por qualquer outro gojo, ficando apenas<br />
na lembrança de seu povo como um herói, por várias<br />
gerações.<br />
Gojoramim, ordenou que muitos gojos partissem em seus<br />
banthas, em diversas direções, para garantir que os temíveis<br />
Laithans não extinguissem a raça <strong>dos</strong> gojos. Cada gojo<br />
guardava consigo, o segredo <strong>dos</strong> ovos destruí<strong>dos</strong>, o que<br />
tornaria, caso esta informação caísse em mãos erradas, os<br />
Laithans extremamente vulneráveis diante das outras raças<br />
mais poderosas. Esse segredo, era a garantia de vida <strong>dos</strong> gojos,<br />
que quanto mais espalha<strong>dos</strong>, mais difícil seria para que os<br />
398
Laithans os exterminassem, caso viessem a quebrar o trato de<br />
paz.<br />
399
Druzos<br />
S<br />
ão os seres mais ardilosos e traiçoeiros de <strong>Virgo</strong>. São muito<br />
pareci<strong>dos</strong> com os vutuks, porém, sua estatura é maior e<br />
seus chifres pequeninos. Lembram muito a figura do diabo<br />
que conhecemos. Garras pontiagudas nas mãos e nos pés,<br />
além de uma cauda fina e comprida, terminando como uma<br />
ponta de seta, com um pequeno triângulo invertido em sua<br />
extremidade. A pele destas criaturas é de uma cor púrpura e<br />
possui uma resistência ao calor fora do comum. Na verdade, é<br />
revestida de escamas especiais, lembrando muito os dragões.<br />
Um druzo pode viver tranqüilamente em ambientes que<br />
cheguem a elevadíssimas temperaturas.<br />
A única cidade <strong>dos</strong> druzos que existe e que se tem<br />
conhecimento, é a Cidade do Fogo, e fica localizada nas<br />
profundezas da Região Vulcânica. O lugar é extremamente<br />
quente, pois situa-se próximo à passagem de rios subterrâneos<br />
de lava. A elevada temperatura e o cheiro de enxofre são<br />
insuportáveis para qualquer outra criatura, a menos que possa<br />
se valer de alguma magia que permita assegurar-lhe o<br />
equilíbrio térmico e a oxigenação necessária a seu organismo.<br />
É possível que, apenas poderosos magos sejam capazes de<br />
chegar ao centro da Cidade do Fogo. Fora esta defesa natural,<br />
praticamente infalível, os druzos possuem três povoa<strong>dos</strong> que<br />
foram construí<strong>dos</strong> mais próximos à superfície, e que se<br />
interligam numa seqüência através de longos túneis. Para se<br />
chegar à Cidade do Fogo, qualquer criatura precisa passar por<br />
cada um <strong>dos</strong> três povoa<strong>dos</strong>, até começar a enfrentar o<br />
verdadeiro calor. Estes povoa<strong>dos</strong> são, na verdade, habita<strong>dos</strong><br />
por druzos guerreiros, destina<strong>dos</strong> a proteger o acesso à sua<br />
cidade principal.<br />
400
O comportamento <strong>dos</strong> druzos é muito estranho, eles não<br />
falam, apenas emitem grunhi<strong>dos</strong> uns para os outros, para<br />
então se comunicarem através de olhares. Parece até uma<br />
comunicação por telepatia, mas ninguém sabe ao certo como<br />
funciona este estranho comportamento de comunicação entre<br />
eles.<br />
As construções realizadas pelos druzos são todas<br />
edificadas a partir de pedras vulcânicas e rochas de lava<br />
resfriada. Eles possuem fôrmas especiais de pedra para<br />
resfriar a lava, moldando-a de acordo com as peças de que<br />
precisam.<br />
Em geral, vivem em grupos de quatro ou cinco dentro de<br />
seus lares. Não usam roupas, apenas adornos em ouro, como<br />
colares, anéis, elmos, braceletes, etc. To<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> do<br />
mais puro ouro, que é abundante na Cidade de Fogo, e<br />
também nos três povoa<strong>dos</strong> que a protegem (Sangar, Sartara e<br />
Sabalaa).<br />
As armas <strong>dos</strong> druzos, também são todas forjadas em uma<br />
liga especial de ouro com titânio. Geralmente, eles se armam<br />
para buscar na superfície de <strong>Virgo</strong> criaturas de qualquer raça<br />
que possam lhes servir de diversão. Nenhuma criatura<br />
capturada por druzos conseguiu escapar de seu cativeiro com<br />
vida. Os desaparecimentos são constantes na região vulcânica.<br />
Muitos seres também são captura<strong>dos</strong> para serem oferta<strong>dos</strong> em<br />
sacrifício ao Arkhazeus.<br />
Não são bons guerreiros e nunca participaram de guerras,<br />
praticamente, apenas se defendem o tempo inteiro. Matar ou<br />
capturar um druzo é um ótimo investimento para um<br />
mercenário ou caçador de tesouros, pois os despojos do<br />
combate são to<strong>dos</strong> em ouro. Mas é raríssimo encontrar um<br />
druzo solitário, eles sempre andam em grupo.<br />
Os druzos utilizam dois tipos de armas, o tridente<br />
(comum a to<strong>dos</strong> eles) e o punhal.<br />
401
Estas criaturas limitam-se à região vulcânica de <strong>Virgo</strong>, de<br />
forma que não há registros de que tenham sido encontra<strong>dos</strong><br />
em outras partes.<br />
Uma história <strong>dos</strong> druzos<br />
No início <strong>dos</strong> tempos, os druzos habitavam o interior <strong>dos</strong><br />
vulcões, mas gradualmente foram migrando para as<br />
profundezas desta região, instalando-se sob a superfície de<br />
<strong>Virgo</strong>, devido às constantes erupções vulcânicas que ocorriam.<br />
Praticamente foram obriga<strong>dos</strong> a sair das proximidades <strong>dos</strong><br />
canais de pressão <strong>dos</strong> vulcões para regiões mais tranqüilas,<br />
debaixo da terra.<br />
O primeiro povoado subterrâneo <strong>dos</strong> druzos foi o<br />
povoado de Sangar. Com o passar do tempo e o aumento da<br />
população de druzos, eles foram obriga<strong>dos</strong> a migrar, e<br />
decidiram cavar um grande túnel até encontrar condições<br />
propícias para a construção de um novo e maior povoado.<br />
Este novo lugar ficou então conhecido como Sartara.<br />
Depois de erguido o pequeno povoado de Sartara, os druzos<br />
foram surpreendi<strong>dos</strong> pelo Arkhazeus, uma terrível criatura de<br />
quase treze metros de altura dotada de poderes sobrenaturais,<br />
com enormes garras e presas afiadas, que aterrorizou até<br />
mesmo os mais perversos druzos de Sangar e Sartara.<br />
Após muita luta e várias mortes, os druzos conseguiram<br />
capturar o Arkhazeus, que atualmente é mantido preso numa<br />
enorme caverna nas profundezas da terra, lacrada por um<br />
resistente portão todo em titânio, com uma enorme face de<br />
druzo toda em ouro e em alto relevo, no centro.<br />
Depois desta vitória, os druzos resolveram ampliar seus<br />
domínios e continuaram as escavações em túneis até chegar a<br />
um novo local, amplo como os anteriores, para erguer mais<br />
um povoado, que foi chamado de Sabalaa.<br />
Na ocasião em que os druzos construíram Sabalaa,<br />
encontraram um enorme buraco nas profundezas, que estava<br />
402
coberto por rochas provenientes, com toda a certeza, de um<br />
antigo desabamento da enorme gruta subterrânea.<br />
Muitos druzos curiosos resolveram descer por este<br />
buraco, em busca de novos recursos naturais e matéria prima,<br />
para a construção do povoado, já que naquele ponto a lava era<br />
escassa e todo o material para construção era trazido de<br />
Sartara.<br />
Descendo por este buraco, na verdade uma cratera de<br />
quase duzentos metros de diâmetro, os druzos exploradores<br />
encontraram a maior câmara subterrânea de <strong>Virgo</strong>, onde<br />
corriam inúmeros rios de lava por toda parte e enormes<br />
pepitas de ouro brotavam das paredes e do solo. Nesta imensa<br />
câmara, ergueram o que seria uma verdadeira cidade, bem<br />
abaixo de Sabalaa. Ergueram a Cidade do Fogo!<br />
Este nome é mesmo apropriado, pois o lugar é um<br />
verdadeiro inferno de tão quente, e além do mais, o oxigênio é<br />
muito escasso. Só mesmo druzos para conseguir sobreviver<br />
neste lugar. A Cidade do Fogo prosperou mais do que to<strong>dos</strong><br />
os outros três povoa<strong>dos</strong> e passou a ser uma espécie de pólo<br />
industrial para esta raça, onde fabricavam armas que<br />
futuramente comercializaram com outras criaturas selvagens<br />
como orcs e goblins.<br />
Mas nem tudo foi glória para os druzos. O Arkhazeus fez<br />
muitas vítimas quando eles chegaram, e deu um trabalho<br />
enorme até ser definitivamente capturado.<br />
Após uma série de tentativas de empurrar o Arkhazeus<br />
para dentro de uma enorme caverna onde pretendiam deixá-lo<br />
aprisionado, perceberam que a única maneira de forçá-lo a<br />
entrar neste buraco seria atraindo-o, e não o encurralando,<br />
mas para isto, seria necessário o sacrifício de algum druzo que<br />
entrasse na caverna e ficasse como isca, chamando a atenção<br />
da terrível criatura.<br />
Os druzos chegaram a pensar em desistir da construção<br />
do povoado de Sartara, mas o insistente líder druzo desta<br />
ferrenha batalha não permitiu que recuassem e obrigou que<br />
403
to<strong>dos</strong> continuassem até que conseguissem triunfar diante do<br />
Arkhazeus.<br />
Foi então, que os druzos construíram o enorme portão de<br />
titânio, já com a face em ouro, do druzo que seria o<br />
sacrificado, em alto relevo em sua parte frontal. <strong>Era</strong> algo de<br />
arrepiar!<br />
No dia em que o plano foi executado, este valente druzo<br />
se aproximou do Arkhazeus, que estava adormecido, e<br />
cravou-lhe um punhal de ouro no pé. A lâmina afiada, do<br />
especial ouro druzo, atravessou o pé da temível criatura, que<br />
grunhiu desesperadamente de dor levantando-se bruscamente<br />
com uma expressão atemorizante, de agonia e raiva. A<br />
esperança do druzo, era que, ferindo o pé do monstro, isso<br />
atrasasse um pouco a criatura, que era ligeira demais e<br />
poderia alcançá-lo antes que atingisse a saída da gruta.<br />
O Arkhazeus identificou o druzo correndo loucamente e<br />
saiu alucinado atrás dele, mancando demais, com o punhal<br />
ainda cravado em seu pé. O ódio do Arkhazeus, porém, era<br />
ainda maior que a dor que o assolava naquele momento, e<br />
mesmo mancando e sangrando horrores, corria desesperado<br />
atrás de seu agressor.<br />
A esta altura, a caverna já estava preparada com o portão<br />
oculto pelo lado de dentro, e assim que o Arkhazeus passou<br />
pela entrada, soltaram o gigantesco portão, encerrando o<br />
Arzakheus em seu cativeiro, junto com sua última vítima.<br />
404
S<br />
APÊNDICE C<br />
Dragões<br />
em dúvida alguma, a raça mais magnífica de <strong>Virgo</strong> é a <strong>dos</strong><br />
dragões. Estas criaturas existem desde a <strong>Era</strong> Oculta, onde<br />
foram muito numerosos. São criaturas milenares, pois podem<br />
viver até três mil anos, e por se tratarem de répteis muito<br />
especiais, são seres ovíparos que reproduzem-se apenas uma<br />
vez a cada dez ou onze anos. Os dragões são muito poderosos,<br />
com sua altura de até doze metros, com um corpo revestido de<br />
escamas muito resistentes, e ainda capazes de voar com o<br />
auxílio de suas enormes asas, são os seres mais temi<strong>dos</strong> de<br />
<strong>Virgo</strong>. Além destas exuberantes qualidades, os dragões<br />
também possuem olfato e visão acuradíssimos. Suas garras,<br />
presas e cauda, são verdadeiras armas mortais, mas o sistema<br />
de defesa, e em muitos casos, de ataque, <strong>dos</strong> dragões, são os<br />
jatos de fogo, gás ácido, e peçonha, que eles podem lançar<br />
através de glândulas especiais, dependendo da espécie que se<br />
trata.<br />
Já não bastassem to<strong>dos</strong> estes atributos, no final da <strong>Era</strong><br />
Oculta, os dragões iniciaram o desenvolvimento de uma<br />
linguagem peculiar, que os permitiram criar uma<br />
comunicação mais racional e, partir daí, houve um estupendo<br />
desenvolvimento destas criaturas, que ao chegarem ao final da<br />
<strong>Era</strong> Gênesis, já eram capazes de entender todas as línguas e<br />
dialetos comuns de <strong>Virgo</strong>, até mesmo os de raças selvagens<br />
como os orcs e os goblins.
Durante a <strong>Era</strong> Trevas, os dragões foram os que mais<br />
sofreram com a escassez de ar, e como são criaturas muito<br />
grandes, necessitavam consumir uma quantidade muito maior<br />
de oxigênio do que as outras raças. Este fato ocasionou a<br />
morte de muitos dragões, levando-os a um processo de<br />
extinção quase total. Atualmente, muitas criaturas acreditam<br />
que os dragões estejam realmente extintos, mas isso não é<br />
verdade.<br />
Os dragões ainda existem, são pouquíssimos, de fato, e<br />
são vistos raramente. Às vezes passam-se dez, quinze, vinte<br />
anos sem que um dragão seja visto. Apesar de poderosos, eles<br />
procuram se preservar ao máximo evitando confrontos com<br />
criaturas de outras raças. Eles sabem que estão quase extintos,<br />
e muitos outros motivos os levam a ter toda esta precaução em<br />
aparecer diante das outras raças.<br />
Vítimas de uma série de superstições, de variadas raças,<br />
os dragões sempre foram alvo de ataque. Acreditava-se que<br />
comer ovos de dragão, poderia prolongar a vida em mil anos.<br />
Esperar anos para uma postura de ovos, e perdê-los era a<br />
maior tristeza de um dragão; por isso, os ovos de dragão são<br />
dificílimos de encontrar.<br />
Como os dragões são seres milenares, e sempre tiveram<br />
um relacionamento muito estreito com os elfos, que também<br />
são criaturas longevas, teve origem a história de que elfos<br />
comiam ovos de dragão e por isso viviam centenas de anos<br />
com uma aparência jovial. Foi por este motivo, falso é claro,<br />
que a busca desenfreada por ovos de dragão teve início em<br />
<strong>Virgo</strong>, e perdura até os dias atuais. Na verdade, a única coisa<br />
que se obtém ao comer um ovo de dragão é uma tremenda dor<br />
de barriga que pode durar de dois a três dias; fora isso, é<br />
apenas a morte de um filhote de dragão.<br />
406
Laithans (Dragões Brancos)<br />
Os dragões desta espécie, conheci<strong>dos</strong> por Laithans e de<br />
escamas esbranquiçadas mescladas com um cinza bem claro,<br />
sempre foram habitantes da Floresta das Águas, até seu fim no<br />
início da <strong>Era</strong> Nova. Depois, com esta floresta se<br />
transformando num imenso deserto ao longo <strong>dos</strong> séculos e<br />
com os incessantes conflitos que tiveram com os gojos, os<br />
Laithans passaram a habitar cavernas, nas encostas das<br />
Colinas Íngremes.<br />
Na época em que os Laithans habitaram a Floresta das<br />
Águas, foram alia<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> elfos de Plarionthil, aliança esta que<br />
durou muitos e muitos anos, e ainda hoje, estes dragões são<br />
bem-vin<strong>dos</strong> àquele reino.<br />
Os Laithans possuem uma arma natural das mais<br />
poderosas entre todas as espécies de dragão. Sua baforada de<br />
fogo branco. Não se trata de uma baforada de fogo comum,<br />
como é a <strong>dos</strong> dragões vermelhos. Em primeiro lugar, porque a<br />
chama de fogo de um dragão branco, não é exatamente o que<br />
entendemos por fogo, é algo muito diferente, especial, de um<br />
brilho quase cegante, um fogo meio branco e meio azulado,<br />
como se fosse a combustão de muitos gases altamente<br />
inflamáveis. Este fogo, é capaz de derreter até mesmo os mais<br />
poderosos escu<strong>dos</strong> elabora<strong>dos</strong> com escamas de dragão. A<br />
fumaça proveniente deste fogo, ou <strong>dos</strong> objetos queima<strong>dos</strong> por<br />
ele, é cintilante como um fogo-fátuo. É um belo espetáculo a<br />
baforada de um dragão branco, mas também a mais letal de<br />
todas as espécies de dragão. E ainda, os Laithans não lançam<br />
suas chamas da forma mais tradicional, ou seja, de forma<br />
cônica, onde a chama vai se abrindo a medida em que alcança<br />
o alvo; pelo contrário, os Laithans possuem uma baforada<br />
direcional, reta e consistente, que causa grande impacto ao<br />
407
alvo desejado. Por tudo isto, a baforada de um Laithan é a<br />
mais letal de todas as espécies de dragão em <strong>Virgo</strong>.<br />
Greenos (Dragões Verdes)<br />
Habitantes da Grande Floresta, os dragões verdes são<br />
verdadeiros amantes da natureza e jamais se acostumaram a<br />
viver em regiões fora da floresta. Muitas vezes os greenos<br />
ajudaram aos elfos a eliminar orcs errantes que insistiam em<br />
destruir as florestas. Não com uma intervenção direta, mas<br />
carregavam os elfos e sobrevoavam quase to<strong>dos</strong> os dias pela<br />
floresta para encontrar os focos de incêndios provoca<strong>dos</strong> pelos<br />
orcs.<br />
O primeiro exército élfico alado da história surgiu da<br />
aliança entre elfos e greenos. Apesar de muito pacatos, os<br />
dragões verdes sempre apoiaram os elfos em sua luta pela<br />
proteção das florestas e da natureza. Os greenos são muito<br />
diferentes das outras espécies de dragão. A única coisa que<br />
um dragão verde cobiça é um lugar tranqüilo nas profundezas<br />
da mata, sob a proteção das árvores. A união <strong>dos</strong> greenos aos<br />
elfos de Planúviel para a formação de um exército alado não<br />
foi bem recebida pelos demais reinos élficos, e muito menos<br />
pelos dragões brancos (Laithans).<br />
A principal arma de um dragão verde é sua baforada de<br />
gás. Um gás de cheiro muito forte. Não chega a ser letal, mas<br />
faz com que suas vítimas fiquem tontas, com os olhos ardendo<br />
e lacrimejando muito. Na verdade, é uma arma de defesa,<br />
porque ao atingir sua vítima, o greeno aproveita a situação<br />
para fugir rapidamente. Jamais atacam com a intenção de<br />
ferir.<br />
Nos dias atuais, os greenos não são mais capazes de voar.<br />
O decorrer <strong>dos</strong> séculos e o hábito de se manterem quase o<br />
tempo todo dentro das florestas fez com que esta espécie de<br />
dragão sofresse uma mutação em suas asas, diminuindo-as e<br />
tornando-as sem força.<br />
408
Blukhos (Dragões Azuis)<br />
Isola<strong>dos</strong>, estes dragões vivem na Ilha Kirbuz. Jamais se<br />
envolveram em guerras por sua conta própria ou fizeram<br />
alianças duradouras com outras raças. Não se aproximam<br />
sequer de outros dragões que não sejam de sua espécie. São<br />
criaturas muito curiosas. Podem ser amigáveis, indiferentes ou<br />
até mesmo hostis de uma hora para outra, sem motivo algum.<br />
Os blukhos são caça<strong>dos</strong> pelos habitantes naturais da ilha<br />
Kirbuz, os vutuks. Quando captura<strong>dos</strong>, são obriga<strong>dos</strong> a<br />
realizar trabalhos força<strong>dos</strong> nas minas de escavação <strong>dos</strong><br />
vutuks. Mas é muito raro um blukho ser capturado, e não<br />
vivem muito tempo quando aprisiona<strong>dos</strong>.<br />
Certa vez, quando alguns elfos de Eluannar visitaram a<br />
Ilha Kirbuz e foram captura<strong>dos</strong> por uma horda de vutuks,<br />
coincidentemente um dragão azul muito importante (o mais<br />
velho blukho de <strong>Virgo</strong>) havia sido feito prisioneiro naquela<br />
mesma semana. Vários blukhos atacaram os vutuks libertando<br />
o velho dragão e também os elfos.<br />
Os blukhos são os únicos dragões incapazes de voar, pois<br />
suas asas são muito pequenas e nunca se desenvolveram.<br />
A arma natural de um blukho é o seu cuspe de fogo, ou<br />
melhor, cuspe de bolas de fogo. Um blukho pode lançar uma<br />
bola de fogo a uma distância de até oitenta metros de seu alvo.<br />
Eles são capazes de cuspir cerca de cinco bolas de fogo<br />
seguidas, mas se o fizerem, precisarão esperar<br />
aproximadamente vinte minutos até que seu organismo esteja<br />
novamente apto a produzir as substâncias necessárias ao seu<br />
cuspe de fogo.<br />
O importante a saber sobre esta espécie de dragão é que<br />
eles jamais se envolvem em problemas, desde que não sejam<br />
molesta<strong>dos</strong>. Não ligam para o que acontece ao seu redor. Mas<br />
se ataca<strong>dos</strong>, revidam com toda a ferocidade até aniquilar seu<br />
inimigo. É raro encontrar dragões azuis solitários. Geralmente<br />
andam em pequenos grupos. Mesmo que um blukho seja visto<br />
sozinho, pode ter certeza de que outros estão por perto.<br />
409
De todas as espécies de dragões existentes em <strong>Virgo</strong>, os<br />
blukhos são atualmente os mais numerosos. Não que seja um<br />
número considerável de dragões, não chegam a cem no total,<br />
mas comparado às outras espécies, este número é muito<br />
significativo.<br />
Redhes (Dragões Vermelhos)<br />
Esta espécie de dragão é a mais ambiciosa e traiçoeira<br />
existente. Não só em relação aos demais dragões, mas em<br />
relação a todas as raças superiores e selvagens de <strong>Virgo</strong>. Os<br />
Redhes cobiçam as preciosidades, os metais nobres, os<br />
tesouros <strong>dos</strong> elfos e anões.<br />
Além <strong>dos</strong> tesouros, os dragões vermelhos também são<br />
apaixona<strong>dos</strong> pelas jovens elfas. É muito comum encontrar<br />
elfas cativas junto a dragões vermelhos. Encantam-se com sua<br />
beleza. São capazes de ficar dias admirando uma jovem elfa.<br />
As jovens elfas são consideradas verdadeiros tesouros pelos<br />
Redhes e, uma vez cativas, são tratadas com todo o conforto<br />
possível por estas criaturas vis. Alimentam-nas e as mantém<br />
sempre saudáveis.<br />
É também muito comum encontrar nas cavernas <strong>dos</strong><br />
dragões vermelhos, alguns prisioneiros de grande<br />
importância, que possam ter um bom valor de negociação<br />
para um possível resgate, tais como reis, rainhas, princesas,<br />
guerreiros valorosos, etc. Ao contrário das jovens elfas, estes<br />
prisioneiros não gozam de regalias nas mãos <strong>dos</strong> dragões<br />
vermelhos e caso eles descubram que seus cativos não<br />
possuem nenhum valor para resgate, são imediatamente<br />
massacra<strong>dos</strong> sem a menor piedade.<br />
São criaturas más e extremamente violentas. Em combate,<br />
praticamente são imbatíveis. Sua principal arma é a baforada<br />
de fogo, que sempre sai em forma cônica e crescente em<br />
direção ao alvo, ampliando seu diâmetro de fogo até atingir o<br />
inimigo. Um Redhe é capaz de lançar cerca de treze ou<br />
410
quatorze baforadas flamejantes durante um dia. Mas isto varia<br />
de acordo com o clima. Quanto mais quente o ambiente, mais<br />
rápido funciona o metabolismo de um Redhe, e isso permite<br />
que ele aumente esta capacidade consideravelmente. É por<br />
isso que, normalmente, os dragões vermelhos procuram<br />
habitar as cavernas da região vulcânica. Nesta região, são<br />
capazes de lançar até dezoito baforadas flamejantes durante<br />
um mesmo dia.<br />
To<strong>dos</strong> os dragões possuem uma resistência extraordinária<br />
ao fogo devido às suas poderosas e espessas escamas,<br />
independentemente da espécie, mas os redhes, em particular,<br />
possuem as escamas mais resistentes já conhecidas e<br />
atualmente é possível encontrar entre vários reinos muitas<br />
armaduras e escu<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> a partir de escamas de<br />
dragão vermelho.<br />
Goldhest (Dragões Doura<strong>dos</strong>)<br />
To<strong>dos</strong> os dragões doura<strong>dos</strong>, na verdade, são dragões cujas<br />
escamas são cintilantes e possuem uma coloração dourada.<br />
Nenhuma outra raça já testemunhou sua existência, apenas<br />
dragões de outras espécies já viram um Goldhest.<br />
Os elfos somente souberam da existência <strong>dos</strong> dragões<br />
doura<strong>dos</strong> através das histórias que outros dragões (azuis,<br />
verdes e brancos) sempre contavam.<br />
Os Goldhests foram muito numerosos na <strong>Era</strong> Oculta, e<br />
sempre foram os mais inteligentes e poderosos entre todas as<br />
espécies de dragão.<br />
Atualmente, existe apenas um único Goldhest vivo, que é<br />
considerado o mestre de to<strong>dos</strong> os dragões. Muitos dragões de<br />
todas as espécies o procuram incansavelmente para receber<br />
seus ensinamentos e aconselhamentos.<br />
O Goldhest é o único dragão que conseguiu manifestar o<br />
mana de <strong>Virgo</strong> e se valer de diversas magias. Os elfos buscam<br />
desesperadamente encontrar este último dragão dourado para<br />
411
conhecer a mais sábia criatura já existente em <strong>Virgo</strong>. Ninguém,<br />
exceto uns poucos dragões, sabe onde fica a morada do<br />
Goldhest, mas muitos elfos desconfiam que ele vive no centro<br />
do Vale da Neblina, no coração da Região das Montanhas.<br />
Darkhos (Dragões Negros)<br />
Uma das mais temíveis espécies de dragão! A exemplo<br />
<strong>dos</strong> dragões vermelhos, os Darkhos são maus, cobiçam o<br />
poder e como os orcs, possuem o dom da destruição. Adoram<br />
transformar em ruínas, toda e qualquer cidade, castelos e<br />
florestas que encontrem por seus caminhos.<br />
Os dragões negros sempre foram inimigos de to<strong>dos</strong>, à<br />
exceção <strong>dos</strong> orcs da Floresta das Sombras, e mesmo assim, os<br />
orcs especificamente da tribo Zaraidai. Alia<strong>dos</strong> inseparáveis,<br />
participaram juntos de inúmeras batalhas e devastações contra<br />
reinos élficos e <strong>dos</strong> anões.<br />
Por incrível que pareça, a <strong>Era</strong> Trevas, que foi a era onde as<br />
raças selvagens atingiram o ápice de seu poder, não foi tão<br />
gentil aos dragões negros como fora com os orcs, que se<br />
expandiram barbaramente durante os 347 anos que a<br />
caracterizou. Durante essa era, os dragões negros foram os que<br />
mais sofreram entre todas as espécies de dragão. Por serem os<br />
mais fortes, ágeis e perspicazes, necessitavam de uma grande<br />
quantidade de oxigênio para se manter. Como durante este<br />
período, o ar ficou muito rarefeito, eles ficaram ler<strong>dos</strong>,<br />
chegando muitos a perecer, não suportando este ambiente<br />
árido que se formou.<br />
É possível que o maior índice de mortes já conhecido em<br />
<strong>Virgo</strong>, de uma mesma raça e espécie, tenha sido a <strong>dos</strong> Darkhos<br />
durante a <strong>Era</strong> Trevas.<br />
Na Guerra da Agonia, os Darkhos foram deixa<strong>dos</strong> de lado<br />
pelos orcs da tribo Zaraidai, definitivamente.<br />
Nos dias atuais, os Darkhos possuem um acordo de paz<br />
com a rainha Aurien do reino élfico de Sombrorn, que dizem,<br />
412
é o segundo reino mais poderoso de <strong>Virgo</strong>. Os Darkhos<br />
temiam ser extintos e então fizeram um acordo que pudesse<br />
garantir sua segurança contra os poderosos exércitos de<br />
Sombrorn.<br />
Agora, os pouquíssimos dragões negros existentes vivem<br />
de aterrorizar pequenos vilarejos bem longe da Floresta das<br />
Sombras, ou então, procuram caçar Laithans (dragões brancos)<br />
apenas para sua diversão. Darkhos e Laithans sempre foram<br />
inimigos, desde a <strong>Era</strong> Oculta.<br />
Os Darkhos são os únicos dragões capazes de cuspir um<br />
líquido extremamente ácido, com um altíssimo poder<br />
corrosivo. Mas não podem se valer muito desta arma, pois<br />
durante um dia inteiro, não conseguem dar mais do que três<br />
esguichadas longas deste poderoso ácido.<br />
Nenhum escudo em <strong>Virgo</strong> é capaz de deter este ácido<br />
letal, nem mesmo os escu<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> com escamas de<br />
dragão vermelho.<br />
Só existe em <strong>Virgo</strong>, no reino de Sombrorn, um único<br />
material capaz de deter este ácido. São os escu<strong>dos</strong> encanta<strong>dos</strong><br />
de Aurien. Uma legião inteira de Sombrorn usa estes escu<strong>dos</strong>.<br />
413
APÊNDICE D<br />
Mapas
415
APÊNDICE E<br />
<strong>Era</strong>s de <strong>Virgo</strong>
<strong>Era</strong> Oculta<br />
N<br />
a verdade, nenhuma criatura viva, seja da raça selvagem<br />
ou da raça superior, é capaz de narrar qualquer<br />
acontecimento antes da <strong>Era</strong> Gênesis, referindo-se então, a<br />
to<strong>dos</strong> os acontecimentos anteriores a esta época, como sendo a<br />
primeira era de todas, a qual chamam de <strong>Era</strong> Oculta. Ninguém<br />
imagina quanto tempo, de fato, tenha durado este período,<br />
mas suspeita-se que tenha sido uma era predominantemente<br />
dominada pelos dragões.<br />
As informações existentes a respeito dessa era não passam<br />
de meras suposições colocadas pelos elfos, dentre as quais<br />
destacam-se as que se seguem:<br />
Dizem que este período pode ter durado mais de um<br />
milhão de anos, e que foi a era do surgimento de todas as<br />
raças; o mar era quatro vezes maior do que agora, cobria a<br />
metade da Grande Floresta, toda a Floresta das Águas (que<br />
atualmente é o Deserto Naissaras), o Pântano Hibrittatus, a<br />
Planície de Prata e parte da Planície de Bronze; o Vale <strong>dos</strong><br />
Cristais, afirmam, teria surgido a partir de um grande pedaço<br />
do céu cristalino que cobre <strong>Virgo</strong>, que despencou devido a um<br />
<strong>dos</strong> inúmeros terremotos que sempre ocorriam nesta era; os<br />
dragões começaram a desenvolver sua linguagem no final da<br />
<strong>Era</strong> Oculta, e a partir do início da <strong>Era</strong> Gênesis, ocorreu um<br />
rápido desenvolvimento intelectual nesta raça; a Thalide,<br />
como referem-se a <strong>Virgo</strong>, era um lugar ainda mais abafado<br />
pelas constantes erupções vulcânicas; no ar, em qualquer<br />
parte, sentia-se um forte e nauseante cheiro de enxofre.<br />
418
<strong>Era</strong> Gênesis<br />
C<br />
omo esta era foi amplamente vivenciada pelos elfos, os<br />
mais importantes acontecimentos estão registra<strong>dos</strong> em<br />
to<strong>dos</strong> os seus cinco reinos. Eis os principais acontecimentos<br />
que marcaram esta importante era na história de <strong>Virgo</strong>:<br />
001 – Iniciou com a criação do calendário élfico entrando em<br />
vigor, marcando a partir de então, fatos importantes que<br />
seriam associa<strong>dos</strong> às datas.<br />
040 – Passa<strong>dos</strong> os primeiros quarenta anos, o que era uma<br />
enorme vila desde o final da <strong>Era</strong> Oculta transformou-se,<br />
finalmente, no primeiro reino élfico no coração da Grande<br />
Floresta, o reino chamado Plarionthil (Pla = Grande, Rion =<br />
Reino, Thil = Elfo ). Seu primeiro rei foi Galadhil.<br />
115 – Primeira grande expedição élfica em direção ao leste.<br />
129 – Ataque de dragões negros à Plarionthil.<br />
184 – Morte de Galadhil e êxodo de Plarionthil (I Êxodo<br />
Élfico).<br />
186 – Galadrin, filho de Galadhil, assume o reino de<br />
Plarionthil e começa a reerguê-lo.<br />
196 – O reino de Plarionthil, dez anos depois, prospera<br />
novamente ao comando de Galadrin e se torna uma grande<br />
fortaleza.<br />
211 – Surge o reino de Flonthoriel, criado pelos elfos do I<br />
Êxodo Élfico, tendo Ellianoh como rei.<br />
419
220 – Flonthoriel é sitiado por hordas de orcs da tribo Baraidai.<br />
221 – Galadrin, com seus exércitos, rechaça os Baraidai e<br />
liberta Flonthoriel. Estabelece-se então, uma grande amizade<br />
entre os dois reinos, principalmente entre os reis Galadrin e<br />
Ellianoh.<br />
235 – Segunda grande expedição élfica de Plarionthil, mas<br />
desta vez em direção a oeste.<br />
347 – Criação do Reino de Planúviel, tendo Asgaroth como rei.<br />
428 – Asgaroth exige tributos de várias vilas élficas do<br />
domínio de Plarionthil, oprimindo seus habitantes.<br />
429 – Primeiro conflito entre os reinos élficos. Galadrin e<br />
Asgaroth travam batalha com seus exércitos na Grande<br />
Floresta.<br />
436 – Asgaroth é derrotado por Galadrin e o reino de<br />
Planúviel é assumido por seu irmão mais novo, Galadrion.<br />
438 – O filho de Asgaroth, Astaroth, parte de Planúviel com<br />
muitos seguidores de seu falecido pai, em direção ao sul.<br />
439 – Astaroth, no sul, cria a colônia de Annar, com os elfos<br />
dissidentes de Planúviel que o haviam seguido.<br />
472 – Astaroth cria um temeroso exército e massacra diversas<br />
tribos de orcs ao sul da Grande Floresta.<br />
538 – Flonthoriel é atacada mais uma vez por hordas de orcs<br />
da tribo Baraidai.<br />
420
615 – Terceira e maior expedição élfica já realizada parte em<br />
direção à Região das Montanhas.<br />
661 – Astaroth é atacado por três tribos de orcs que se aliaram<br />
para o destruir, eram os Drumbaidai, Mordai e<br />
Gropperdai .<br />
661 – Galadrion manda legiões de Planúviel, juntamente com<br />
tropas de Plarionthil, para ajudar os elfos de Annar.<br />
664 – Após três anos de guerra, finalmente os orcs fogem e<br />
então a colônia de Annar transforma-se no reino de Eluannar,<br />
tendo como seu único rei, o próprio Astaroth.<br />
715 – Após cem anos, a Terceira Expedição élfica deixou vilas<br />
espalhadas por várias florestas como Floresta do Fogo,<br />
Floresta das Águas e Floresta Dourada.<br />
739 – Morre Ellianoh, deixando como rei de Flonthoriel, seu<br />
filho Ellianion.<br />
781 – O primeiro confronto entre elfos e gojos na Floresta das<br />
Águas e também a primeira aliança entre elfos e dragões<br />
brancos (Laithans).<br />
794 – O mais importante <strong>dos</strong> Laithans vai a Plarionthil<br />
conhecer Galadrin.<br />
813 – Quarta Expedição élfica, junto aos Laithans, até o outro<br />
lado da Região das Montanhas.<br />
815 – Criam-se vilas élficas na Floresta das Sombras, a mais<br />
perigosa e hostil floresta de <strong>Virgo</strong>. Os dragões negros habitam<br />
as Montanhas Escuras, ao norte desta floresta. Também<br />
existiam treze tribos de orcs nesta região.<br />
421
922 – Primeiro encontro entre elfos e anões, na Floresta<br />
Dourada. Os anões encontra<strong>dos</strong> eram do reino Bakkin, que<br />
tinha como rei soberano nesta época, Gifon.<br />
923 – Planúviel faz aliança com os dragões verdes. Galadrion<br />
cria, então, o primeiro exército élfico alado com a ajuda <strong>dos</strong><br />
seus novos alia<strong>dos</strong>, os Greenos.<br />
941 – Ellianion sofre em Flonthoriel o terceiro ataque de orcs,<br />
desta vez uma aliança entre as tribos Maraidai, Carasdai e<br />
Vindai . Mais uma vez, Galadrin salva seu vizinho e pela<br />
primeira vez a força alada de Plarionthil entra em ação.<br />
1.007 – Elfos da Floresta Dourada partem com os anões de<br />
Bakkin em direção ao Vale <strong>dos</strong> Cristais, em busca de riquezas<br />
minerais.<br />
1.048 – Dragões vermelhos aparecem e aterrorizam os elfos da<br />
Floresta do Fogo.<br />
1.118 – Primeiro ataque de goblins ao reino de Bakkin,<br />
testemunhado pelos elfos.<br />
1.138 – Surge o reino élfico de Sombrorn, na Floresta das<br />
Sombras, no mesmo ano em que anões erguem o reino de<br />
Zanthor no Vale <strong>dos</strong> Cristais, com os reis Belleriath e Zanthor<br />
respectivamente.<br />
1.205 – Morre Galadrin e seu filho Galanderin o sucede em<br />
Plarionthil.<br />
1.271 – Acontece a Primeira Grande Reunião de reis elfos em<br />
Plarionthil.<br />
422
1.272 – Astaroth e Galadrion passam os tronos a seus filhos<br />
Astelion e Gildrion, respectivamente.<br />
1.307 – Sombrorn é devastada por dragões negros e orcs da<br />
tribo Zaraidai. Belleriath é morto e seu filho Belleth, pede<br />
ajuda aos outros reinos élficos.<br />
1.308 – O Exército de Planúviel ajuda Sombrorn, com apoio<br />
<strong>dos</strong> dragões brancos e juntamente com a Força Alada de<br />
Plarionthil. Iniciou-se, então, uma guerra que durou cerca de<br />
doze anos, onde várias tribos de orcs da Floresta das Sombras<br />
se aliaram aos orcs da tribo Zaraidai.<br />
1.325 – Sombrorn é reconstruída após a guerra com a ajuda<br />
<strong>dos</strong> anões de Zanthor.<br />
1.328 – Ellianion, que não participou da Guerra <strong>dos</strong> Dragões,<br />
parte com uma grande expedição em direção a Região das<br />
Montanhas.<br />
1.329 – Ellianion sofre ataque da tribo de orcs Maradai na<br />
entrada da Floresta das Águas. Neste mesmo ano, em<br />
Eluannar, Astelion comemora a inauguração da primeira frota<br />
de galeões élficos, que partem do reino descendo o Rio Himin<br />
em direção ao Mar Caudaloso.<br />
1.331 – Ellianion sofre, no coração da Floresta das Águas, um<br />
forte ataque <strong>dos</strong> gojos, mas é salvo por um exército de anões<br />
comandado por Guthin, que rumava para a Região Vulcânica,<br />
a fim de estabelecerem um novo reino naquela região.<br />
1.332 – A frota de galeões de Eluannar retorna a seu reino após<br />
costear toda a Ilha Kirbuz e as Ilhas Siamesas.<br />
423
1.333 – Na Região das Montanhas a expedição de Ellianion é<br />
atacada por várias hordas de grabbers e os elfos são obriga<strong>dos</strong><br />
a recuar.<br />
1.335 – Passando ao sul da Floresta das Águas, em retorno a<br />
Flonthoriel, Ellianion e seus seguidores são ataca<strong>dos</strong> por trolls<br />
da floresta. Ellianion é morto num destes ataques. Muitos elfos<br />
escapam e levam a notícia para Flonthoriel. Elledrin, filho de<br />
Ellianion, assume o lugar de seu pai, tornado-se rei absoluto<br />
de Flonthoriel.<br />
1.340 – Segundo grande ataque de goblins ao reino de Bakkin,<br />
testemunhado pelos elfos.<br />
1.343 – A frota de Eluannar retorna à Ilha Kirbuz, mas desta<br />
vez com o objetivo de explorar o interior da ilha.<br />
Desembarcam no lado norte e durante a exploração, são<br />
surpreendi<strong>dos</strong>, , captura<strong>dos</strong> e presos pelos vutuks, habitantes<br />
desta ilha.<br />
1.400 – Depois de um longo período de paz, Sombrorn é<br />
novamente atacada pelas tribos de orcs Zundai , Candai e<br />
Garadai .<br />
1.402 – Os elfos de Eluannar que estavam cativos na Ilha<br />
Kirbuz, conseguem escapar com a ajuda indireta <strong>dos</strong> dragões<br />
azuis, quando estes atacam o vilarejo vutuk.<br />
1.513 – Segunda Grande Reunião de reis élficos em Plarionthil,<br />
desta vez, com a presença <strong>dos</strong> reis anões.<br />
1.528 – Lançamento da segunda frota de galeões do reino de<br />
Eluannar, partindo em direção à Ilha Kirbuz.<br />
424
1.530 – O Reino de Guttin é atacado por orcs da tribo<br />
Trumadai. Glorin é o novo rei de Guttin.<br />
1.617 – A segunda frota de Eluannar retorna para seu reino e<br />
traz alguns vutuks como prisioneiros.<br />
1.703 – O reino de Guttin é atacado por dragões vermelhos e<br />
todo o seu tesouro é roubado.<br />
1.739 – O reino de Eluannar sofre um grande ataque de tribos<br />
orcs, que pela primeira vez aparecem acompanhadas de<br />
goblins. Neste mesmo ano, Flonthoriel sofre seu quarto ataque<br />
em massa de hordas de orcs e Elledrin é obrigado a pedir<br />
ajuda a Galanderin em Plarionthil.<br />
1.816 – Gildrion recebe pela primeira vez na história <strong>dos</strong> elfos<br />
um grande número de vangis que pedem ajuda contra os<br />
Wiverns que estão cada vez mais numerosos e os impedem de<br />
sair de Vangilla.<br />
1.821 – As batalhas no céu entre a Força Alada de Plarionthil,<br />
aliada aos vangis, contra os Wiverns, chamam a atenção <strong>dos</strong><br />
orcs e <strong>dos</strong> dragões negros da Floresta das Sombras.<br />
1.822 – Os orcs da tribo Zaraidai (a tribo de orcs mais<br />
inteligente já conhecida) se aliam aos dragões negros e criam<br />
também uma força alada,. As primeiras vítimas desta aliança<br />
foram os vangis. Mais uma vez a Força Alada de Plarionthil<br />
intercede em favor <strong>dos</strong> vangis.<br />
1.831 – Ocorre a Terceira Grande Reunião <strong>dos</strong> reinos em<br />
Plarionthil, desta vez com a presença, além <strong>dos</strong> anões, <strong>dos</strong><br />
vangis da Vangilla.<br />
425
1.907 – As duas frotas de Eluannar voltam à Ilha Kirbuz atrás<br />
das riquezas <strong>dos</strong> vutuks.<br />
1.938 – Elfos de Plarionthil descobrem como utilizar o mana e<br />
começam os estu<strong>dos</strong> sobre magia.<br />
1.945 – Um grande carregamento de tesouro enviado de<br />
Zanthor à Bakkin é perdido numa emboscada de grabbers na<br />
Região das Montanhas.<br />
1.957 – Os elfos de Plarionthil aperfeiçoam suas magias com a<br />
ajuda <strong>dos</strong> vangis.<br />
1.970 – Grandes erupções vulcânicas aterrorizam os habitantes<br />
da Planície de Bronze e Floresta do Fogo. Ocorrem grandes<br />
ventanias e todo o céu de <strong>Virgo</strong> perde metade de sua<br />
luminosidade durante o dia.<br />
1.982 – Ocorrem terremotos na Região das Montanhas. As<br />
ventanias ficam mais intensas e grandes explosões acontecem<br />
na Região Vulcânica. Alguns vangis não podem retornar para<br />
Vangilla devido à intensidade <strong>dos</strong> ventos.<br />
1.989 – Morre Belleth em Sombrorn, deixando o reino sem<br />
herdeiros; porém, Limanoh é aclamado rei por decisão da<br />
maioria <strong>dos</strong> Altos Elfos de Sombrorn.<br />
1.995 – Limanoh, temendo o fim <strong>dos</strong> tempos, manda reunir<br />
historiadores e escritores <strong>dos</strong> cinco reinos élficos para que<br />
fossem escritos os lumithas.<br />
2.004 – Toda a Vangilla perde definitivamente sua<br />
luminosidade e o ar fica escasso. <strong>Virgo</strong> fica abafado e muitos<br />
animais pereceram durante esta época.<br />
426
<strong>Era</strong> Trevas<br />
D<br />
evido a um fenômeno natural, que fez com que as rochas<br />
de cristal (rockzala) interrompessem seu processo de<br />
produção de oxigênio e perdessem sua luminosidade<br />
interativa com a superfície da Terra, <strong>Virgo</strong> ficou mergulhado<br />
numa escuridão durante 347 anos que compreenderam esta<br />
era. O mana, responsável pelo processo de aproximadamente<br />
setenta porcento de oxigenação do lugar, deixou de reagir,<br />
como se tivesse se exaurido, e todo o lugar passou a contar<br />
apenas com a oxigenação oriunda das galerias de túneis que<br />
ligavam as muitas cavernas da superfície espalhadas por<br />
várias montanhas da Europa.<br />
Foi uma época sufocante onde muitos pereceram por não<br />
agüentar o clima escuro e abafado. Raças inteiras foram<br />
extintas e muitas outras ficaram à beira da extinção.<br />
1 – Com a escuridão, os trolls infestam todas as regiões de<br />
<strong>Virgo</strong>, à exceção da Ilha Kirbuz, semeando terror e destruição.<br />
54 – Êxodo das garbas em direção ao Paredão de <strong>Virgo</strong>.<br />
103 – Os Darkhos infestam a Floresta das Águas, em busca do<br />
melhor clima de <strong>Virgo</strong> para tentar garantir sua sobrevivência.<br />
283 – Glabor retira-se para o Vale da Neblina, onde tem uma<br />
visão e a inscreve na Pedra Klaopala com suas garras,<br />
gravando ali o destino de <strong>Virgo</strong>.<br />
345 – Derrota <strong>dos</strong> trolls para as legiões de Flonthoriel.<br />
347 – A energia do mana retorna, a claridade <strong>dos</strong> dias volta e a<br />
oxigenação de <strong>Virgo</strong> se normaliza, pondo fim à escuridão.<br />
427
<strong>Era</strong> Nova<br />
A<br />
pós a recuperação de sua energia, o mana voltou a<br />
manifestar-se e <strong>Virgo</strong> se estabilizou, dando início a uma<br />
nova era, onde as raças sobreviventes voltaram a prosperar e<br />
disputar uma vez mais, seus espaços.<br />
É nesta era que surgem os homens pela primeira vez,<br />
conforme fora professado por Glabor, em suas inscrições na<br />
Pedra Klaopala. Este acontecimento é abordado amplamente<br />
neste livro.<br />
1 – O mana volta a manifestar sua energia, a luminosidade do<br />
céu de <strong>Virgo</strong> retorna e novamente a oxigenação de todas as<br />
regiões é restabelecida.<br />
15 – Inicia o conflito mais violento entre goblins e grabbers,<br />
conhecido por Guerra das Montanhas.<br />
23 – Os vangis reaparecem na superfície de <strong>Virgo</strong> e fazem<br />
visita aos vários reinos élficos.<br />
58 – Acontece o tratado entre os elfos de Sombrorn e os poucos<br />
dragões negros que habitavam a Floresta das Sombras.<br />
97 – O fim da Floresta das Águas, transformada<br />
definitivamente no Deserto Naissaras.<br />
136 – Ocorreu a queda <strong>dos</strong> dragões brancos, e seus últimos<br />
três sobreviventes retiraram-se para a Vangilla, buscando<br />
preservar sua raça.<br />
258 – Os druzos iniciaram a construção da Cidade do Fogo, no<br />
mesmo ano em que capturaram o Arzakheus, soberano das<br />
profundezas da terra.<br />
428
315 – Os vutuks conquistam novamente a Ilha Kirbuz,<br />
fundando uma nova cidade chamada Karda, mas não<br />
conseguem apoderar-se de Athamon, a antiga cidade vangi<br />
sob o domínio <strong>dos</strong> dragões azuis.<br />
381 – Os trolls iniciam uma aglomeração na Mata Negra.<br />
432 – Ocorre a Primeira Guerra da Floresta Dourada, um<br />
conflito que durou três anos, onde elfos e anões lançaram-se<br />
uns contra os outros na disputa pela posse desta região.<br />
435 – Inicia-se a Guerra da Agonia.<br />
443 – Morre Limanoh, rei de Sombrorn, durante um combate<br />
no Vale da Neblina. Sua filha Aurien assume o reino élfico da<br />
Floresta das Sombras.<br />
467 – A Aliança <strong>dos</strong> Cinco Reinos Élficos.<br />
501 – Os homens chegam a <strong>Virgo</strong> pela primeira vez. Neste<br />
mesmo ano são fundadas as cidades de Nouvelle Amiens e<br />
Nouvelle Lyon.<br />
503 – Ocorre a Segunda Guerra da Floresta Dourada, onde<br />
elfos lutam ao lado <strong>dos</strong> anões, para tentar conter o avanço de<br />
uma nova aliança de orcs, liderada por um elfo negro, traidor<br />
de sua própria raça. Alguns homens lutam ao lado <strong>dos</strong> elfos<br />
nesta guerra.<br />
505 – As legiões de Sombrorn devastam várias tribos de orcs<br />
na região leste de <strong>Virgo</strong>.<br />
511 – Nouvelle Amiens propõe a criação de um Império<br />
Humano, unindo as duas cidades <strong>dos</strong> homens.<br />
429
523 – É assinado um tratado entre as duas cidades humanas, e<br />
um novo Império surge em <strong>Virgo</strong>. Várias novas vilas são<br />
criadas e os homens vão se espalhando por <strong>Virgo</strong>.<br />
548 – Morte de Jacques Panais. Neste mesmo ano, surge<br />
Savaath, o Mago do Caos, que cria a Ordem <strong>dos</strong> Druidas em<br />
Nouvelle Amiens.<br />
561 – Inicia-se a disseminação de boatos que levam os elfos a<br />
romperam a Aliança <strong>dos</strong> Cinco Reinos.<br />
563 – Os reinos de Eluannar e Plarionthil são os primeiros a<br />
iniciar o conflito entre os elfos. Legiões de Eluannar<br />
atravessam o Rio Naissaras e rumam para Plarionthil.<br />
564 – É criada a Guarda Imperial <strong>dos</strong> humanos.<br />
570 – Sombrorn e Flonthoriel disputam a posse da Pedra<br />
Klaopala no Vale da Neblina.<br />
573 – Estoura a famosa Guerra <strong>dos</strong> Elfos, que os leva a um<br />
estado de calamidade tão grande que os deixam à beira da<br />
extinção.<br />
582 – Os homens iniciam a expansão do Império, subjugando<br />
todas as demais raças de <strong>Virgo</strong>.<br />
430
APÊNDICE F<br />
Reinos e Tribos
Os reis Élficos<br />
Plarionthil<br />
Galadhil (40 à 184)<br />
Galadrin (186 à 1.205)<br />
Galanderin (1.205 – )<br />
Flonthoriel<br />
Ellianoh (211 – 739)<br />
Ellianion (739 – 1.335)<br />
Elledrin (1.336 – )<br />
Planúviel<br />
Asgaroth (347 – 436)<br />
Galadrion (436 – 1.272)<br />
Gildrion (1.272 – )<br />
Eluannar<br />
Astaroth (474 – 664)<br />
Astelion (664 – 1.272)<br />
Asdarthil (1.273 – )<br />
Sombrorn<br />
Belleriath (1.138 – 1.307)<br />
Belleth (1.307 – 1.989)<br />
Limanoh (1.991 – 443 EN)<br />
Aurien (443 EN – )<br />
432
Os reis Anões<br />
Bakkin<br />
Gifon<br />
Gilon<br />
Badan I<br />
Badan II<br />
Bakhin<br />
Guttin<br />
Glorin<br />
Gildor<br />
Guthin<br />
433<br />
Zanthor<br />
Zanthor I<br />
Zanthor II<br />
Zanthor III<br />
Dalin
Clãs e tribos <strong>dos</strong> orcs<br />
aidai dai andai kdai aidi<br />
Baraidai Maradai Samandai Grunkdai<br />
Drumbaidai Trumadai<br />
Zaraidai<br />
Extintas<br />
aidai dai andai kdai aidi<br />
Garadai Maracandai Brankdai Carasaidi<br />
Moradai Malakandai Trunkdai Vaidi<br />
Gropperdai Tamandai Zunkdai<br />
Vindai Brandai<br />
Candai<br />
Zandai<br />
434
Glossário<br />
Abbeville Cidade francesa.<br />
Acha Uma espécie de machado.<br />
Adai Espécie de clã <strong>dos</strong> orcs.<br />
Aidai Espécie de clã <strong>dos</strong> orcs.<br />
Althalion Elfo de Eluannar, filho de Lasthion.<br />
Althinor Elfo, lanceiro de Eluannar.<br />
Amiens Cidade francesa.<br />
Angincourt Cidade francesa.<br />
Arco-balista Arma antiga, muito usada pelos bretões.<br />
Asgadhir Elfo, lanceiro de Eluannar<br />
Athas Em élfico, significa tempo passado.<br />
Athamon Primeira cidade <strong>dos</strong> vangis, na época em que<br />
ainda viviam na superfície de <strong>Virgo</strong>.<br />
Azur Nome pelo qual os anões referem-se à <strong>Virgo</strong>.<br />
Bakkin Reino de anões situado sob a Montanha das<br />
Garbas, diante da Planície de Ouro.<br />
Bantha Espécie de paquiderme encontrado na região<br />
do Deserto Naissaras.<br />
Baraidai Tribo de orcs da Planície de Bronze.<br />
Beauvais Cidade francesa.<br />
Boulogne Cidade francesa.<br />
Bronner Região que compreende toda a Planície de<br />
Bronze.<br />
Calais Cidade litorânea, do noroeste francês.<br />
Chinon Cidade francesa.<br />
Colinas Íngremes Colinas que se estendem desde a Região<br />
Vulcânica até a Região das Montanhas.<br />
Crecy Cidade francesa.
Cristel Cidade onde fica o reino anão de Zanthor.<br />
Daco Moeda utilizada entre os elfos.<br />
Druzo Criatura de raça selvagem.<br />
Eluannar Reino Élfico ao sul da Grande Floresta.<br />
Escaramuçadores Guerreiros de dianteira, normalmente<br />
precedentes à força principal de uma tropa<br />
ou legião.<br />
Flonthoriel Reino élfico da região leste da Grande<br />
Floresta.<br />
Glabor O profeta da Pedra Klaopala.<br />
Guthin Rei anão do reino de Guttin.<br />
Guttin Reino de anões situado em Bronner.<br />
Hobgoblins Raça ancestral de goblins (extinta).<br />
Idour Elfo negro.<br />
Kirbuz Ilha encontrada no Mar Caudaloso.<br />
Klaopala Pedra monólito encontrada no Vale da<br />
Neblina, onde foi inscrita a profecia de<br />
Glabor.<br />
Lasthion Elfo de Eluannar.<br />
Lothanir Elfo, guerreiro campeão de Eluannar.<br />
Lumin Em élfico, significa luz.<br />
Luminathas Os doze livros da história élfica.<br />
Lumithas Palavra oriunda de duas outras que deram<br />
origem à coleção de doze livros que narra<br />
toda a história <strong>dos</strong> elfos.<br />
Lyon Cidade francesa.<br />
Mana Fonte de energia sobrenatural.<br />
Montanha das Garbas Montanha sob a qual encontra-se Bakkin,<br />
reino <strong>dos</strong> anões da Planície de Ouro.<br />
Nabrandar Rio que corta a Grande Floresta, de norte a<br />
sul, desaguando no Mar Caudaloso.<br />
Naissaras Região desértica de <strong>Virgo</strong>.<br />
Niukar Lokai Festa anual <strong>dos</strong> anões de Bakkin.<br />
Paladinos Cavaleiros de elite, que acompanham o rei ou<br />
imperador.<br />
Paris Cidade francesa.<br />
Picardia Região francesa.<br />
Piqueiros O mesmo que lanceiros.<br />
Plarionthil Reino élfico no coração da Grande Floresta.<br />
Poitier Cidade francesa.<br />
436
Reims Cidade francesa.<br />
Sartara Cidadela de druzos.<br />
Sabalaa Cidadela de druzos.<br />
Sangar Cidadela de druzos.<br />
Serena Montanha pela qual os homens chegaram a<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
Sharvar Estação do ano que marca o início do período<br />
das colheitas <strong>dos</strong> elfos.<br />
Sombrorn Reino élfico da Floresta das Sombras.<br />
Somme Rio que corta uma ampla região francesa.<br />
Tahllon Convite élfico para ocasiões especiais.<br />
Thalide Nome pelo qual os elfos denominam <strong>Virgo</strong>.<br />
Troyes Cidade francesa.<br />
Trumadai Tribo de orcs da Região Vulcânica.<br />
Vale <strong>dos</strong> Cristais Região do sudeste de <strong>Virgo</strong>.<br />
Vanalla Nome pelo qual os vangis referem-se à<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
Vangi Criatura de raça superior, semelhante aos<br />
humanos, porém, dotada de asas e poderes<br />
mágicos.<br />
Vangilla Cidade <strong>dos</strong> vangis, sobre o céu cristalino de<br />
<strong>Virgo</strong>.<br />
Versalhes Cidade francesa.<br />
Vidoro’s Região que compreende a Planície de Ouro.<br />
<strong>Virgo</strong> Nome escolhido pelos homens para batizar as<br />
terras encontradas após a travessia da<br />
Grande Caverna.<br />
Zanthor Reino de anões do Vale <strong>dos</strong> Cristais.<br />
Zaraidai Tribo de orcs da região ao noroeste da<br />
Floresta das Sombras.<br />
437
Agradecimentos<br />
Somente foi possível concluir este livro com a colaboração<br />
de muitas pessoas que, em épocas diferentes, souberam dar o<br />
apoio necessário para que a obra não sucumbisse ao longo do<br />
demasiado tempo que foi preciso para sua realização.<br />
Primeiramente, agradeço a meu primo Lourival Bandeira<br />
de Melo Neto, que numa tarde de verão de 1995, ajudou-me a<br />
esboçar os primeiros elementos deste mundo fantástico.<br />
Agradeço ainda a Ana Madalena que, além de revisar os<br />
primeiros capítulos da obra, foi uma das maiores<br />
incentivadoras para que o trabalho prosseguisse até sua<br />
conclusão. Também agradeço a Renata Moraes, que conseguiu<br />
captar a magia do livro produzindo uma belíssima capa e<br />
retratando com fidelidade os mapas propostos. E além de<br />
to<strong>dos</strong> os amigos e parentes que sempre me incentivaram,<br />
agradeço a meu filho Renan, que com sua chegada em minha<br />
vida trouxe-me uma força e uma luz que jamais imaginei<br />
existirem neste mundo.
1<br />
Glossário<br />
Para maiores informações sobre o autor e sua obra acesse:<br />
http://www.robertolaaf.com.br<br />
439