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Virgo - A Era dos Homens - Roberto Laaf

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<strong>Virgo</strong><br />

A era <strong>dos</strong> homens<br />

<strong>Roberto</strong> <strong>Laaf</strong><br />

2003<br />

2


Copyright © 2003 por Robert <strong>Laaf</strong><br />

Título Original: <strong>Virgo</strong> – A era <strong>dos</strong> homens<br />

Editor<br />

Tomaz Adour<br />

Editoração Eletrônica<br />

Luciana Figueiredo<br />

Capa<br />

Renata Moraes<br />

PAPEL VIRTUAL EDITORA<br />

Avenida das Américas, 3.120 sala 201 – Bloco 5<br />

Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22.640-102<br />

Telefone: (21) 3329-2886<br />

E-mail: editor@papelvirtual.com.br<br />

Endereço Eletrônico: www.papelvirtual.com.br<br />

3


Ao meu amado filho Renan, que<br />

acendeu em meu coração a mais bela<br />

chama de amor que conheci na vida!<br />

4


Sumário<br />

Dedicatória ...................................................................... 04<br />

Prefácio ............................................................................. 07<br />

I. Sob a sombra do medo ............................................... 10<br />

II. As chamas da traição ................................................. 26<br />

III. Muitas revelações ..................................................... 41<br />

IV. Uma visão inesperada ............................................. 57<br />

V. O arauto do rei ........................................................... 71<br />

VI. Surpresas agradáveis ............................................... 96<br />

VII. Novos rumos, novos tempos ................................. 108<br />

VIII. A longa peregrinação ............................................ 120<br />

IX. Um novo despertar ................................................... 127<br />

X. Nouvelle Amiens ....................................................... 138<br />

XI. Encontros e separações ............................................ 150<br />

XII. Alvorecer de uma nova amizade .......................... 163<br />

XIII. Pedra sobre pedra .................................................. 181<br />

XIV. Reencontros e compromisso ................................ 195<br />

XV. A tempestade se aproxima .................................... 208<br />

XVI. Mensagem de Guttin ............................................. 219<br />

XVII. Uma viagem para o leste ..................................... 227<br />

XVIII. O Colóquio de Plarionthil .................................. 242<br />

XIX. Mar de acampamentos .......................................... 252<br />

XX. Explode a guerra ..................................................... 266<br />

XXI. Demonstração de poder ........................................ 284<br />

XXII. Nas mãos do destino ............................................ 298<br />

XXIII. Cicatrizando feridas ............................................ 308<br />

XXIV. Nouvelle Lyon ..................................................... 320<br />

XXV. Honras e lembranças ............................................ 330<br />

Apêndices<br />

A. As raças superiores ................................................... 355<br />

5


A.1. Vangis ................................................................. 355<br />

A.2. Elfos ..................................................................... 360<br />

A.3. Anões .................................................................. 365<br />

B. As raças selvagens ..................................................... 367<br />

B.1. Orcs ...................................................................... 367<br />

B.2. Goblins ................................................................. 373<br />

B.3. Grabbers .............................................................. 377<br />

B.4. Trolls .................................................................... 383<br />

B.5. Vutuks .................................................................. 387<br />

B.6. Ogros e gojos ...................................................... 392<br />

B.7. Druzos ................................................................. 400<br />

C. Dragões ....................................................................... 405<br />

C.1. Laithans ............................................................... 407<br />

C.2. Greenos ............................................................... 408<br />

C.3. Blukhos ................................................................ 409<br />

C.4. Redhes ................................................................. 410<br />

C.5. Goldhest .............................................................. 411<br />

C.6. Darkhos ............................................................... 412<br />

D. Mapas .......................................................................... 414<br />

D.1. Mapa da França ................................................. 415<br />

D.2. Mapa de <strong>Virgo</strong> ................................................... 416<br />

E. <strong>Era</strong>s de <strong>Virgo</strong> .............................................................. 417<br />

E.1. <strong>Era</strong> Oculta ............................................................ 418<br />

E.2. <strong>Era</strong> Gênesis .......................................................... 419<br />

E.3. <strong>Era</strong> Trevas ............................................................ 427<br />

E.4. <strong>Era</strong> Nova .............................................................. 428<br />

F. Reinos e tribos ............................................................. 431<br />

G. Glossário ..................................................................... 435<br />

6


Prefácio<br />

A busca do homem pelo desconhecido é como uma inefável<br />

mistura de prazer e ansiedade que sempre permitiu à<br />

humanidade conquistar, século após século, novos horizontes.<br />

Desde o seu surgimento na Terra, no holoceno, há pouco<br />

mais de doze mil anos aproximadamente, os homens já<br />

começavam a dar seus primeiros passos a caminho de uma<br />

evolução que poderíamos qualificar como, “evolução<br />

meteórica”. Nunca existiu na natureza uma espécie que tenha<br />

evoluído tanto e em tão pouco tempo como o Hommo<br />

Sapiens. Que inspiração teria atiçado os corações <strong>dos</strong><br />

primeiros homens? Teria sido, verdadeiramente, uma semente<br />

divina? Teriam os homens, à Luz do seu tempo, surgido com<br />

uma pré-destinação desconhecida que os tornariam os donos<br />

do universo? O que, exatamente, os teria despertado para que<br />

se tornassem incansáveis em sua apaixonante busca pelo<br />

desconhecido?<br />

Talvez estas perguntas e muitas outras jamais possam ser<br />

respondidas, mas há algo que podemos suscitar, o<br />

combustível que moveu to<strong>dos</strong> os nossos ancestrais e que move<br />

constantemente a humanidade. Que combustível fabuloso foi<br />

esse que nos impulsionou para chegarmos tão longe na<br />

história de to<strong>dos</strong> e mais distintos espécimes que habitam o<br />

planeta azul? Não foi nenhum alimento especial que tornou os<br />

homens inteligentes, fortes e vigorosos, permitindo-os a esta<br />

façanha, mas sim, seus corações. Do coração <strong>dos</strong> homens<br />

surge o combustível que os leva invariavelmente às mais<br />

fantásticas aventuras.<br />

É da natureza humana, como to<strong>dos</strong> sabemos, o espírito<br />

aventureiro de ir ao encontro do desconhecido, de conquistar<br />

espaços, desvendar os mistérios do universo e até mesmo o<br />

7


mistério que envolve a sua própria criação. Surgem em nossos<br />

corações, os desejos, as paixões, os me<strong>dos</strong> e as dúvidas. De<br />

onde viemos, o que somos e para onde vamos? Esta pergunta<br />

sempre esteve presente ecoando em cada um de nós, e muitos<br />

filósofos famosos também se detiveram diante deste enigma.<br />

Muitas dúvidas ainda pairam sobre a humanidade como<br />

uma densa nuvem de poeira que parece insistir em não<br />

assentar. A própria questão da existência, ou não, de outras<br />

vidas inteligentes, mexe muito com a imaginação <strong>dos</strong> homens.<br />

A humanidade foi, pouco a pouco, conquistando seus<br />

espaços. Tudo começou, imagina-se, com a busca por novas<br />

terras. Depois a conquista <strong>dos</strong> mares e outros continentes, até<br />

os confins da Terra. Ainda insatisfeitos, começamos a<br />

vasculhar o fundo do mar e o espaço. Hoje já conquistamos a<br />

Lua e estamos partindo para pisar também, em solo marciano.<br />

Todas essas descobertas levaram os homens a se deparar<br />

com coisas maravilhosas, lugares fantásticos, que jamais<br />

imaginariam conhecer, criaturas incríveis, de diversas formas,<br />

tamanho e fisiologia. Ao longo do tempo, distantes e perdi<strong>dos</strong><br />

em sua própria evolução desenfreada, encontraram traços e<br />

ruínas de civilizações inteiras que ficaram para trás, ocultas<br />

pelo tempo. Civilizações que não conseguiram evoluir além de<br />

seus limites e sucumbiram inteiras, no decorrer <strong>dos</strong> milênios.<br />

A aventura que vos ofereço não se distancia desta<br />

realidade, a incrível forma como os corações <strong>dos</strong> homens os<br />

conduz. Entre amizades e alegria, nos deparamos com inveja,<br />

cobiça e traição. Ao conhecer o amor, estamos fada<strong>dos</strong> a, mais<br />

cedo ou mais tarde, ficar face a face com o ódio.<br />

Insatisfação! Esta é a palavra chave para que, muitas<br />

vezes, o curto pavio do lado sombrio de nossos corações possa<br />

rapidamente inflamá-los e, se estamos diante de uma situação<br />

que nos sufoca ou nos esmaga, não tardamos a reagir com<br />

todas as nossas forças para sobreviver. Quantas vezes em<br />

nossa história, um povo oprimido já foi levado a uma<br />

8


insurreição, despojando seus governantes do poder devido a<br />

situações insustentáveis? Embora, em algumas situações não<br />

seja possível usurpar o poder <strong>dos</strong> tiranos, mas neste caso, os<br />

corações oprimi<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> homens não os permitem à<br />

subjugação e acabam impelindo-os a buscar um novo<br />

horizonte.<br />

Justamente a busca por um lugar seguro, onde se possa<br />

viver com paz e tranqüilidade, é o que levará um homem e<br />

seus seguidores, em pleno século XIV, na pequena cidade<br />

francesa de Amiens, a descobrir um lugar extraordinário, onde<br />

nenhum ser humano jamais esteve antes e sequer soube de sua<br />

existência. Um lugar tão magnífico e agradável, quanto hostil<br />

e perigoso, um lugar mágico, um lugar cheio de vida.<br />

Nesta nova terra, os homens enfrentarão um duro período<br />

de adaptação e edificarão os alicerces de seus reinos. Passarão<br />

a viver com a difícil missão de compartilhar a terra com outras<br />

raças semelhantes, entrementes, criadas à luz de outros<br />

tempos. Uma nova terra onde será preciso aceitar e conviver,<br />

durante um longo período de tempo, com a realidade de não<br />

serem mais os únicos donos da casa.<br />

9


F<br />

CAPÍTULO I<br />

Sob a sombra do medo<br />

rança, cidade de Amiens, ano de 1342 D.C. O inverno<br />

estava rigoroso como não se via há muitos anos. Nesta<br />

época do ano, era comum a realização da Grande Festa de<br />

Inverno, onde se reuniam pessoas que vinham de diversos<br />

vilarejos e cidades vizinhas. Chegavam de todas as partes, de<br />

Havre, Calais, Abbeville, Beauvais e até mesmo de Paris. <strong>Era</strong><br />

uma festa famosa e muito comentada. Diversas barracas eram<br />

armadas e podia ser encontrado todo o tipo de vinho, queijo,<br />

carne e artesanato. O rei da França, Philipe VI, sempre<br />

comparecia com sua família para prestigiar a mais famosa<br />

festa regional do norte francês. Também era comum ver um<br />

pequeno contingente da cavalaria passando entre as pessoas,<br />

para evitar que confusões acontecessem em meio à festa.<br />

Muitas vezes ocorreu de pessoas se excederem na bebida e<br />

acabarem por encontrar encrenca.<br />

Entretanto, este ano transcorria bem diferente <strong>dos</strong><br />

anteriores. <strong>Era</strong> um ano marcado por medo e dúvidas. O rei<br />

estava preocupado com as informações que lhe chegavam,<br />

to<strong>dos</strong> os rumores e boatos indicavam a possibilidade de uma<br />

invasão inglesa à França. Esta situação fez com que Philipe VI<br />

enviasse uma mensagem ao senhor de Amiens, Martin<br />

Lacroix, ordenando-o a interromper os preparativos do evento<br />

e advertindo-o também para que o mesmo não fosse realizado.<br />

Martin, muito a contragosto, cumpriu seu dever através de um<br />

pronunciamento a seu povo, proibindo qualquer manifestação<br />

festiva, sem maiores explicações. To<strong>dos</strong> ficaram muito<br />

insatisfeitos, pois já haviam elaborado muitos <strong>dos</strong><br />

preparativos para a festa e não gostaram nada da proibição.<br />

10


Os dias se tornaram frios, sombrios e silenciosos. A<br />

alegria esfuziante, que antes pairava no ar, desaparecera. Cada<br />

vez mais a nuvem de dúvidas se adensava sobre a cidade de<br />

Amiens. Os boatos, que antes fervilhavam apenas nas cidades<br />

litorâneas, passaram a chegar em Amiens, principalmente de<br />

Calais, que ficava voltada para o país inglês e que, to<strong>dos</strong><br />

acreditavam, seria o primeiro território francês a sofrer uma<br />

invasão.<br />

Martin Lacroix era um homem alto, de cabelos grisalhos e<br />

olhos negros. Seu olhar era penetrante como a lâmina fria de<br />

um punhal. Possuía uma pequena cicatriz do lado esquerdo<br />

do rosto, um corte não muito profundo. <strong>Era</strong> um homem de<br />

expressão severa, que assustava a to<strong>dos</strong> que o encarassem.<br />

Sempre trajando roupas negras, muitas vezes Martin<br />

cavalgava solitário até as margens do rio Somme e refletia<br />

sobre os acontecimentos e notícias que lhe chegavam de fora.<br />

Sabia que a ameaça de invasão inglesa estava se concretizando<br />

cada vez mais. Embarcações eram vistas além das costas de<br />

Havre e Calais. Paris estava racionando os alimentos. Muitos<br />

cidadãos das cidades litorâneas passavam em direção ao sul<br />

com seus familiares, fugindo da guerra que parecia ser<br />

inevitável. Deserções em massa deixavam as fileiras francesas<br />

mais precárias. Seu próprio povo já pensava em abandonar os<br />

lares e fugir para o sul, em busca de lugares seguros e longe<br />

da guerra que se avizinhava.<br />

Havia duas semanas, Martin enviara secretamente a Paris<br />

um grupo de mensageiros, pedindo apoio militar ao rei<br />

Philipe VI e levando informações sobre o medo que seu povo<br />

estava sentindo. Muitas pessoas da região já diziam que Paris<br />

havia tombado e logo todo o território francês se transformaria<br />

num enorme feudo inglês. To<strong>dos</strong> aguardavam ansiosamente<br />

qualquer notícia proveniente de Paris, mas o mais interessado<br />

de to<strong>dos</strong>, sem dúvida alguma, era o próprio Martin, pois<br />

soubera que um grupo de pessoas andava se reunindo<br />

secretamente, preparando uma fuga em massa de sua cidade.<br />

11


E este fato ele sabia ser verdadeiro, pois quem lhe dissera fora<br />

um mercenário que contratou como informante, o senhor<br />

Gallard Gellion, um homem sinistro que nunca fora visto em<br />

companhia de Martin e, por isso, seria muito difícil que<br />

desconfiassem dele. <strong>Era</strong> astuto, paciente, eloqüente e também<br />

dissimulado.<br />

Pensando em to<strong>dos</strong> estes fatos ao mesmo tempo, num<br />

final de tarde, Martin cavalgou até bem próximo às margens<br />

do rio Somme, como de costume, desmontou de seu cavalo e<br />

sentou sobre uma pequena rocha, com uma expressão de<br />

dúvida. Pensava o que seria feito de tudo o que conseguira<br />

durante to<strong>dos</strong> aqueles anos, se realmente seu povo fosse<br />

embora. Quem pagaria seus tributos e como poderia manter o<br />

seu luxo e bem-estar sem a contribuição de seu povo. Martin<br />

olhou à frente e observou a correnteza, que naquele ponto não<br />

era tão forte como a alguns quilômetros mais abaixo,<br />

chegando a vislumbrar pequenas embarcações inglesas<br />

descendo o rio e invadindo sua cidade. Ficou ali parado,<br />

pensando em muitos acontecimentos que estariam por vir.<br />

Depois de um longo tempo, percebeu que a luminosidade do<br />

dia estava enfraquecendo, mas continuou fitando o horizonte,<br />

ainda muito pensativo. Percebeu também que um pouco mais<br />

a oeste, onde estava mais escuro, densas nuvens negras se<br />

formavam e que muito em breve uma forte chuva cairia.<br />

Quando o último raio de sol não pôde mais transpor a<br />

montanha, levantou de súbito, jogou sua capa para trás,<br />

montou em seu corcel negro e partiu velozmente em direção a<br />

seu pequeno castelo.<br />

Lá chegando, sua esposa, Catherine Lacroix, veio recebêlo<br />

como sempre fazia, to<strong>dos</strong> os dias. — Boa noite, meu senhor!<br />

Gallard o esperou até há pouco, estava muito ansioso para<br />

falar-lhe. — Então Martin olhou para Catherine, e com um<br />

olhar vacilante perguntou:<br />

— Ele disse sobre o que se tratava?<br />

12


— Não, mas deixou esta mensagem lacrada. — Catherine<br />

estendeu a mão mostrando um pequeno pedaço de papel<br />

dobrado e com um lacre derretido em seu redor, de forma que<br />

não pudesse ser visto pelos la<strong>dos</strong>. Martin pegou a mensagem<br />

da mão de Catherine e, sem dizer mais uma palavra, subiu<br />

apressadamente as escadas para seu aposento. Catherine<br />

ainda perguntou-lhe se desejava comer algo, mas o silêncio foi<br />

sua resposta.<br />

Martin, depois de trancar a pesada porta de seu quarto,<br />

sentou-se em uma pequena mesinha que ficava próxima a<br />

uma janela e, com a ajuda de uma adaga, quebrou o lacre e<br />

abriu a mensagem. Estava escuro, pois o sol já havia se posto<br />

completamente. Puxou o luxuoso castiçal de prata que<br />

sustentava uma vela comprida para perto e leu atentamente a<br />

mensagem de Gallard. A mensagem estava escrita, com letras<br />

corridas e borradas.<br />

Senhor Lacroix, esperei-o ansiosamente para lhe relatar os<br />

últimos fatos que se tornaram de meu conhecimento, mas não pude<br />

aguardar muito tempo. Hoje à noite haverá um encontro entre os<br />

conspiradores, onde to<strong>dos</strong> estarão presentes, e esta será minha<br />

grande oportunidade de conhecer aqueles que ainda não me foram<br />

apresenta<strong>dos</strong>.<br />

Acredito que depois desta noite poderemos destruir este<br />

movimento muito antes do que pensávamos. Espero que tudo corra<br />

bem e amanhã, antes do nascer do sol, passarei em nosso ponto de<br />

encontro secreto, para lhe revelar todas as novidades que eu<br />

descobrir.<br />

13<br />

Gallard Gellion.<br />

Martin então levantou a cabeça, deu um suspiro e mais<br />

uma vez se perdeu em seus pensamentos, encarando a chama<br />

da vela, que bruxuleava à sua frente. Ficou neste transe por<br />

alguns segun<strong>dos</strong>, até que foi interrompido por três batidas<br />

suaves em sua porta. Levantou-se abruptamente levando uma


das pontas do bilhete à chama da vela, que o consumiu<br />

lentamente, transformando-o em cinza e fumaça. Andou até a<br />

porta e a destrancou. <strong>Era</strong> Catherine! Segurava uma bandeja de<br />

prata com uma pequena jarra com água, pedaços de bolo e<br />

frutas frescas.<br />

<br />

Na saída sul da cidade de Amiens, existia uma grande<br />

taberna, ponto de encontro para to<strong>dos</strong> aqueles que partiam ou<br />

que chegavam. Uma espécie de última parada para os que<br />

saíam de Amiens, e de descanso para os que chegavam de<br />

Beauvais, uma pequena cidade que ficava um pouco mais<br />

para o sul. Esta taberna estava sempre cheia de gente, era um<br />

lugar muito agradável, onde se podia beber o mais saboroso<br />

vinho daquela região.<br />

O dono da taberna, o senhor Dízier, era um homem alto,<br />

forte, com um rosto severo, mas era uma pessoa amável e<br />

muito comunicativa. Muitas pessoas se enganavam ao vê-lo a<br />

primeira vez, pensando que se tratasse de mais um taberneiro<br />

grosso e estúpido, mas logo percebiam que estavam<br />

completamente engana<strong>dos</strong>. À direita da taberna havia um<br />

enorme celeiro, onde as pessoas que desejassem pernoitar<br />

podiam guardar seus cavalos com toda a segurança. O celeiro<br />

era muito amplo, possuía ainda um segundo pavimento, onde<br />

eram estendidas diversas esteiras que serviam de cama para<br />

os viajantes.<br />

Pelo lado de fora, do lado direito, existia uma escada que<br />

ficava oculta por uma árvore baixa, de rica folhagem. Esta<br />

escada dava acesso a uma portinhola, também oculta pela<br />

folhagem da árvore, de maneira que ninguém percebia sua<br />

existência, nem mesmo de dia, com o sol a pino. Esta<br />

portinhola dava numa pequena sala, sem acesso interno. Só<br />

quem conhecia o caminho pela árvore podia chegar até lá. Esta<br />

pequena sala de reuniões era o ponto de encontro daqueles<br />

homens conheci<strong>dos</strong> como os Conspiradores. A sala não tinha<br />

14


mobília, a não ser uma pequena mesa onde ficavam dois<br />

castiçais e que muitas vezes servia de apoio para anotações e<br />

desenhos de mapas.<br />

Nessa noite, enquanto Martin Lacroix lia a mensagem do<br />

senhor Gallard, os Conspiradores se encontravam para mais<br />

uma reunião de cúpula, na qual importantes assuntos sobre a<br />

preparação da fuga de Amiens, antes da guerra estourar,<br />

seriam discuti<strong>dos</strong>. Nunca houvera, antes, um encontro com<br />

to<strong>dos</strong> os membros do Conselho, pois tinham medo de que se<br />

um dia fossem descobertos, to<strong>dos</strong> fossem captura<strong>dos</strong> de uma<br />

só vez. Entretanto, a necessidade e a proximidade da guerra<br />

fez com que desta vez to<strong>dos</strong> estivessem presentes na mesma<br />

reunião, com exceção de Dízier, que tinha que ficar na taberna<br />

para atender as pessoas e, ao mesmo tempo, despistar<br />

possíveis suspeitas acerca do que acontecia ali perto. Dízier<br />

fora um <strong>dos</strong> fundadores do Conselho e construíra o local de<br />

encontro em seu celeiro.<br />

À noite, o frio aumentara e to<strong>dos</strong> estavam dentro da<br />

taberna, em meio ao tumulto de vozes, gargalhadas e baques<br />

de canecas comemorando brindes à saúde de to<strong>dos</strong> e ao rei da<br />

França. Faziam piadas e chacotas acerca <strong>dos</strong> ingleses e se<br />

divertiam muito com isso. Parecia mais uma noite comum de<br />

inverno. Do lado de fora, ao lado do celeiro e próximo à<br />

pequena árvore, um vulto de homem podia ser visto de<br />

tempos em tempos, e depois não mais. Ninguém na taberna<br />

notara qualquer coisa estranha, pois não imaginavam que<br />

poderia haver algo do lado de fora que não fossem o frio e o<br />

forte vento do rigoroso inverno. To<strong>dos</strong> já haviam bebido<br />

bastante e não estavam se importando com os acontecimentos<br />

lá de fora.<br />

Entretanto, na pequena sala oculta do celeiro, os homens<br />

do Conselho iam chegando um a um. À medida que<br />

chegavam, se cumprimentavam e resmungavam acerca do<br />

mau tempo. Logo, to<strong>dos</strong> já se encontravam no local. O líder do<br />

grupo era Michel Montbard, que tinha como principais alia<strong>dos</strong><br />

15


seu braço direito Leon Troujard e seu irmão mais novo<br />

Etiènne Montbard. Os outros integrantes eram os irmãos Gien<br />

e Gourdon Ballec, camponeses de Amiens, homens muito<br />

fortes e prestativos, e também o lenhador Paul Drassarc.<br />

To<strong>dos</strong> estes homens tinham noção do perigo que o povo<br />

estava correndo e pretendiam organizar a fuga bem antes da<br />

guerra estourar.<br />

Após os devi<strong>dos</strong> cumprimentos, Michel fez um gesto com<br />

as mãos para que to<strong>dos</strong> se sentassem. Como de praxe,<br />

sentaram-se em círculo. Quando Michel ia começar a falar,<br />

ouviu-se o som de batidas na portinhola. To<strong>dos</strong> se<br />

entreolharam assusta<strong>dos</strong> e levaram as mãos ao cabo de suas<br />

espadas e macha<strong>dos</strong> de batalha. Etiènne estendeu seu braço<br />

olhando para Michel e disse:<br />

— Calma! Deve ser Grassac. É um homem muito valoroso<br />

que conheci e convidei-o para que se unisse a nós. — To<strong>dos</strong><br />

ficaram olhando para Etiènne espanta<strong>dos</strong>.<br />

— Como é que você pôde fazer uma coisa dessas? Nem ao<br />

menos comunicou-nos! — disse Michel, com um olhar severo<br />

e reprovador em direção a Etiènne. — Lembre-se de que isto é<br />

um Conselho e que decisões não podem ser tomadas<br />

individualmente! Será que você nunca vai criar juízo? —<br />

continuou falando asperamente para Etiènne, enquanto to<strong>dos</strong><br />

continuavam olhando assusta<strong>dos</strong>.<br />

— Meu irmão, eu não faria nada que pudesse pôr em risco<br />

a vida de qualquer um de nós. — disse Etiènne, com um tom<br />

de voz sereno. — Sei que meu ato foge completamente às<br />

regras deste Conselho, mas não tive tempo hábil para falar de<br />

Grassac com os senhores. — concluiu Etiènne.<br />

Neste momento, mais uma vez se ouviram as batidas na<br />

portinhola, desta vez com um pouco mais de força.<br />

— Já que o convidou e ele está à porta de nosso<br />

esconderijo, faça-o entrar de uma vez por todas antes que ele<br />

ponha este maldito celeiro abaixo com estas batidas! — gritou<br />

Michel, que estava ainda mais furioso.<br />

16


Etiènne dirigiu-se até a portinhola, abaixou-se e puxou o<br />

trinco. Ao abri-la, recebeu uma rajada forte de vento frio e<br />

olhou para fora. Observou que Grassac, após ter esperado que<br />

alguém o atendesse logo, já estava descendo a escada, indo<br />

embora. Etiènne fez então uma concha com a mão esquerda<br />

levando-a à boca e sussurrou:<br />

— Grassac! Grassac! — Grassac ouviu a voz de Etiènne e<br />

levantou a cabeça, percebendo o vulto de um homem na<br />

portinhola.<br />

— Sou eu, Etiènne! Desculpe a demora. Sobe aqui<br />

depressa! — disse Etiènne, fazendo gestos com a mão para que<br />

Grassac subisse rapidamente. Grassac olhou em volta e tornou<br />

a subir as escadas. Passou pela portinhola com um pouco de<br />

dificuldade, apertou a mão de Etiènne e se aproximou <strong>dos</strong><br />

outros, que o olhavam assusta<strong>dos</strong>. Michel olhou Grassac de<br />

cima a baixo.<br />

— Boa noite, meu nome é Michel Montbard, sou irmão de<br />

Etiènne. — disse Michel.<br />

— Boa noite, cavalheiro, Grassac Geneville às suas ordens.<br />

— Quero que saiba que não é do agrado de ninguém entre<br />

estas pessoas a sua presença aqui. Etiènne não nos havia<br />

consultado sobre esta possibilidade. Entretanto, agora que<br />

veio e conhece nosso esconderijo, diga-me: o que o trouxe até<br />

nós? Que tipo de assunto você conversou com meu<br />

irresponsável irmão, para que ele o convidasse tão<br />

rapidamente a fazer parte deste Conselho? — questionou<br />

Michel, encarando severamente o convidado de seu irmão.<br />

Grassac olhou-os um por um e retornou o olhar a Michel.<br />

— Bem, se minha presença não é do agrado de ninguém<br />

nesta sala, eu posso partir e voltar para o lugar de onde venho.<br />

Mas sou um guerreiro errante e manejo muito bem uma<br />

espada. Posso ser muito útil em vossa missão. — respondeu<br />

Grassac, com um ar sereno e tranqüilo, sem demonstrar<br />

qualquer nervosismo.<br />

17


— Ah! Então está tudo muito claro agora! Meu querido<br />

irmão nos trouxe um mercenário, que vai nos prestar um<br />

serviço em troca de dinheiro e comida, e irá nos vender por<br />

qualquer punhado de moedas no próximo vilarejo.<br />

Etiènne, percebendo que seu irmão estava ficando cada<br />

vez mais furioso, a ponto de sacar a espada e partir para cima<br />

de Grassac, caminhou até o centro do círculo, colocou sua mão<br />

direita sobre o ombro de Grassac e falou a to<strong>dos</strong>:<br />

— Senhores, por favor! Não precisamos deste tipo de<br />

discussão. Eu trouxe este homem até aqui porque confiei nele<br />

e vi sinceridade em tudo o que me falou. Mas se os senhores<br />

estão temerosos e com os corações aflitos, eu me<br />

responsabilizo e me comprometo a ficar na companhia de<br />

Grassac dia e noite, até que os senhores também tenham<br />

confiança nele. Grassac irá ficar em minha própria casa até<br />

que to<strong>dos</strong> os nossos planos estejam concluí<strong>dos</strong> e sejam<br />

coloca<strong>dos</strong> em prática.<br />

Então Michel passou a mão sobre a testa para limpar o<br />

suor pois, apesar do frio que fazia, os ânimos haviam se<br />

exaltado demasiadamente e o sangue corria mais quente do<br />

que de costume.<br />

— Que assim seja! Meu irmão Etiènne e Grassac serão<br />

unha e carne até que tudo esteja preparado. — Michel virou o<br />

olhar para seu irmão e fitou-o demoradamente. — Espero que<br />

você não esteja errado, meu irmão, pois se este homem for um<br />

traidor, estará pondo em risco tua própria vida.<br />

Havia um ar de preocupação muito grande no semblante<br />

de Michel, e to<strong>dos</strong> na sala podiam perceber facilmente.<br />

— Alguém mais tem algo a dizer? — Assim que Michel<br />

deu esta abertura, os membros do Conselho mais uma vez se<br />

entreolharam e Paul, o lenhador, dando um passo à frente em<br />

direção a Grassac, olhou-o de cima a baixo, perguntando:<br />

— Perdoe-me, senhor Grassac, mas ainda não ficou muito<br />

claro de onde vem e qual é o seu interesse em nossa missão. O<br />

que pode querer ganhar, um valoroso guerreiro errante, de<br />

18


camponeses que querem refugiar-se com suas famílias da<br />

guerra que se aproxima? — Paul, com um sorriso sarcástico,<br />

abriu os braços, olhando para seus companheiros e continuou<br />

a falar. — Há pouco este cavalheiro disse ser um excelente<br />

espadachim, entretanto nossa missão é de fuga e não de<br />

confrontos. O que o senhor me diz a este respeito, Sr. Grassac?<br />

Desta vez o próprio Michel interrompeu a discussão e<br />

acabou com o tumulto que já estava se estendendo por um<br />

tempo demasiado longo.<br />

— Chega! Isto aqui não é um julgamento da Corte, nem<br />

este homem é acusado de crime algum. Meu irmão já está<br />

responsável por ele e sua palavra é suficiente. Alguém<br />

discorda do que estou dizendo? — Fez-se silêncio por alguns<br />

instantes na pequena sala. Então, Grassac encarou Paul e<br />

soltou um pequeno sorriso sarcástico pelo canto da boca, com<br />

o objetivo de irritá-lo, depois se voltou para Michel e assentiu<br />

com a cabeça, em forma de agradecimento.<br />

Em seguida, Michel fez gestos para que to<strong>dos</strong> se<br />

sentassem novamente, como haviam feito antes de serem<br />

interrompi<strong>dos</strong>, e logo começaram a tratar <strong>dos</strong> desígnios que<br />

deveriam ser toma<strong>dos</strong> em função <strong>dos</strong> últimos acontecimentos<br />

e das últimas informações que Michel trouxera consigo, da<br />

viagem que fez a Paris. Foi revelado aos membros do<br />

Conselho que Martin havia enviado mensageiros secretos a<br />

Paris, com um pedido de ajuda ao rei Philipe VI. De que tipo<br />

de ajuda se tratava ele não sabia. Entretanto, to<strong>dos</strong> sabiam<br />

que, se fosse ajuda militar, os planos do Conselho ficariam<br />

seriamente prejudica<strong>dos</strong>, pois não poderiam coordenar a fuga<br />

do povo com um contingente da cavalaria real dando voltas<br />

pela cidade.<br />

— Bem, cavalheiros, tudo o que eu sabia, agora é de seu<br />

conhecimento. Gostaria, então, que os senhores refletissem<br />

sobre a situação, a fim de tomarmos as decisões necessárias à<br />

finalização de nossos planos. — Concluiu Michel, deixando a<br />

to<strong>dos</strong> muito pensativos.<br />

19


Surgiram, de to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>, várias idéias acerca do que<br />

deveria ser feito. O próprio Michel sugeriu que aguardassem<br />

mais dois dias, para que soubessem da resposta que trariam os<br />

mensageiros envia<strong>dos</strong> a Paris por Martin. A maioria, no<br />

entanto, mostrou-se contrária a esta idéia, alegando que dois<br />

dias seria demais para se esperar, tendo em vista os rumores<br />

que chegavam das cidades litorâneas, to<strong>dos</strong> muito ruins. Já se<br />

ouvia dizer que embarcações inglesas podiam ser avistadas ao<br />

longo da costa francesa.<br />

Grassac pediu a palavra, para dar sua opinião, e Michel<br />

consentiu. Grassac disse então que esperar notícias em<br />

Amiens seria muito ruim, tendo em vista que os<br />

acontecimentos estavam se desenrolando longe dali, nas<br />

cidades litorâneas. Ele aconselhou Michel a enviar alguns<br />

homens de confiança do Conselho para estas cidades, a fim de<br />

espreitar a invasão inglesa e trazer notícias confiáveis, ao<br />

invés de ficar se baseando em rumores. Michel franziu a testa,<br />

ficou pensativo, com uma expressão de dúvida, como se uma<br />

sombra o tivesse abatido por um instante, até que Paul<br />

interrompeu seu pensamento e se colocou contra a opinião de<br />

Grassac, dizendo que não existia a menor possibilidade de<br />

enviar pessoas para longe de Amiens, o que aumentaria ainda<br />

mais o risco de traição. Na verdade, Paul seria contra qualquer<br />

opinião de Grassac, devido à antipatia que sentira por ele<br />

desde o primeiro momento.<br />

Michel concordou com Grassac e ignorou os argumentos<br />

de Paul, fato que o deixou mais irado ainda, ruborizado e com<br />

um brilho de ódio nos olhos. Porém Paul calou-se e não falou<br />

mais uma palavra até o final da reunião.<br />

Na opinião de Gourdon Ballec, o Conselho devia se<br />

revelar a Martin e tentar pedir sua adesão à empreitada que<br />

estavam dispostos a realizar. A esta idéia, não só Michel, mas<br />

até mesmo Gien, irmão de Gourdon, foram totalmente<br />

desfavoráveis. Michel ainda os lembrou de como Martin era<br />

um homem inescrupuloso.<br />

20


— Cavalheiros, não se deixem levar pelo desespero e<br />

jamais esqueçam quem é Martin Lacroix. Ele é um homem<br />

ambicioso e sem escrúpulos. Mora em seu castelo, que acredita<br />

ser uma fortaleza, e também confia muito em sua guarda.<br />

Pensa que está bem protegido, e mesmo que Amiens seja<br />

sitiada e tomada pelos ingleses, ele é capaz de jurar, de<br />

joelhos, fidelidade ao rei da Inglaterra e pagar os tributos que<br />

quiser. Não se esqueçam de que este crápula entregou sua<br />

própria filha Lourdes ao senhor de Abbeville por um punhado<br />

de moedas de ouro e um pedaço de terra naquela região.<br />

To<strong>dos</strong> concordaram imediatamente, pois logo se<br />

lembraram desta e de muitas outras barbaridades de que<br />

Martin fora capaz.<br />

— Realmente, meu irmão tem razão. Não podemos de<br />

forma alguma nos revelar a Martin. E se ele souber que<br />

pretendemos evacuar a cidade levando os pagadores de seus<br />

impostos, é bem capaz que acabemos dependura<strong>dos</strong> por uma<br />

corda, no centro da praça principal. — Concluiu Etiènne e<br />

to<strong>dos</strong> mais uma vez concordaram.<br />

A noite fria já avançava pela madrugada, e a todo<br />

momento alguém bocejava demonstrando sinais de cansaço. A<br />

reunião chegava ao final, to<strong>dos</strong> os assuntos haviam sido<br />

exaustivamente debati<strong>dos</strong>.<br />

Ficou decidido que Gien e seu irmão Gourdon iriam para<br />

Calais, a fim de espreitar os acontecimentos naquela cidade<br />

litorânea. Quando ocorresse qualquer sinal de invasão inglesa,<br />

eles imediatamente retornariam a Amiens para que então os<br />

planos de fuga fossem coloca<strong>dos</strong> em prática.<br />

To<strong>dos</strong> foram se despedindo e se retirando um a um, de<br />

forma silenciosa, para que não chamassem a atenção <strong>dos</strong><br />

homens que estavam na taberna. Por fim, ficaram Michel e seu<br />

braço direito, Leon. Michel sempre confiou muito em Leon,<br />

foram cria<strong>dos</strong> no mesmo vilarejo, cresceram juntos e passaram<br />

muitos momentos difíceis na infância e adolescência. Sempre<br />

21


que Michel precisou de ajuda, Leon estava pronto para acudilo,<br />

sem nunca cobrar nada em troca.<br />

Michel segurou a mão de Leon e com o coração aflito lhe<br />

pediu que cuidasse de Etiènne, pois ele temia por sua vida e<br />

ainda não confiava em Grassac. Leon disse ao amigo que não<br />

se preocupasse, pois seguiria os dois para onde quer que<br />

fossem e cuidaria para que nada de ruim acontecesse a<br />

Etiènne, pois gostava muito dele e o considerava também<br />

como se fosse seu irmão. Michel deu, então, um forte abraço<br />

em Leon e agradeceu. Leon virou-se e saiu rapidamente pela<br />

portinhola.<br />

Sentado sozinho na pequena sala de reuniões do<br />

Conselho, Michel pensou alto, falando consigo mesmo:<br />

— Deus te proteja e a meu irmão. Espero que ele não<br />

tenha cometido um grande erro.<br />

<br />

Etiènne e Grassac cavalgavam juntos, cortando a<br />

madrugada fria. Mais à frente iam Gien, Gourdon e Paul.<br />

Estavam a cavalgar na direção do Grande Bosque, por onde<br />

pretendiam cortar caminho até o centro da cidade. De repente,<br />

Grassac puxou as rédeas de seu cavalo com força, fazendo-o<br />

parar repentinamente. Etiènne, assustado, olhou por sobre os<br />

ombros, parou também seu cavalo fazendo uma meia lua, e<br />

voltou trotando lentamente até Grassac.<br />

— O que foi, Grassac? Aconteceu alguma coisa? —<br />

Grassac fitou Etiènne com uma expressão austera.<br />

— Preciso que confies em mim mais uma vez. Sei que<br />

prometeu ficar a meu lado todo o tempo, mas tenho que fazer<br />

algo urgente, e que não pode ficar para outro momento.<br />

— O que pode ser tão urgente para ser feito no meio da<br />

madrugada?<br />

O frio estava penetrando em seus corpos até os ossos, e os<br />

cavalos não paravam de bufar, expelindo uma fumaça<br />

resultante do ar quente de suas respirações em contato com o<br />

22


ar gélido. Etiènne aguardava a resposta de Grassac, que havia<br />

baixado a cabeça.<br />

— Sinto muito, Etiènne, mas não posso falar. Ou você<br />

confia em mim, ou não. Prometo que depois não sairei um só<br />

momento de seu lado, mas agora eu lhe imploro que confie na<br />

minha palavra e me deixe fazer o que preciso.<br />

Etiènne baixou a cabeça e respirou fundo. Sabia que seu<br />

irmão não aprovaria isso e, agora, até mesmo ele sentia-se<br />

receoso de que pudesse ser traído por Grassac.<br />

— Está bem! — respondeu Etiènne — Mas com uma<br />

condição. Você terá que me acompanhar até minha casa. Vai<br />

entrar comigo e então você poderá ir.<br />

— Está bem, mas vamos correr, porque senão eu não<br />

conseguirei fazer o que preciso a tempo.<br />

Os dois partiram numa velocidade desesperada,<br />

lembravam até as grandes corridas a cavalo que aconteciam<br />

em Paris, nas épocas de festa.<br />

Ao chegarem à casa de Etiènne, desmontaram e entraram<br />

apressadamente pela porta. Os cavalos estavam exaustos e<br />

ofegantes.<br />

À espreita da casa de Etiènne já se encontrava Leon, atrás<br />

de uns arvore<strong>dos</strong> a cerca de trinta metros de distância. Leon<br />

observava atentamente os movimentos que aconteciam no<br />

interior da casa, através de uma janela lateral. Viu quando<br />

uma ou duas velas foram acesas, iluminando pouco o<br />

ambiente e prejudicando sua observação.<br />

Começou a cair uma chuva torrencial, prejudicando ainda<br />

mais sua visão, devido à distância. De súbito, a luz que vinha<br />

de dentro da casa se apagou, deixando-o apreensivo. Notou<br />

um vulto saindo da casa, mas como a visibilidade estava<br />

muito prejudicada, não pôde distinguir quem era. Ficou<br />

irritado e tentou forçar a vista, mas era impossível enxergar<br />

nas condições em que estava. O vulto contornou rapidamente<br />

os cavalos, montou e saiu em disparada na direção do<br />

arvoredo onde ele estava escondido. Leon se agachou e puxou<br />

23


um ramo de folhagens, para se esconder ainda mais. Foi então<br />

que pôde ver o cavalo branco de Grassac passar velozmente, a<br />

apenas 2 metros de onde se escondera.<br />

Leon correu até seu cavalo, que havia deixado amarrado<br />

alguns metros mais para trás, montou e foi atrás de Grassac,<br />

desesperado, pensando como Etiènne podia deixar que ele<br />

saísse assim, no meio da madrugada, ou ainda, se Grassac não<br />

teria causado algum mal a Etiènne, e estava agora a fugir.<br />

Quando Leon entrou no bosque, temia não conseguir<br />

alcançar Grassac, pois apesar de ter se apressado, perdeu<br />

muito tempo ao correr até seu cavalo. Porém, após ter<br />

cavalgado alguns metros dentro do bosque, Leon observou<br />

que o cavalo de Grassac estava amarrado a uma árvore e que<br />

Grassac estava sentado em um tronco velho caído. Leon<br />

surgiu como que do nada, e numa agilidade incrível, tão logo<br />

deteve sua montaria, desmontou desembainhando sua espada,<br />

levando a ponta da lâmina ao peito de Grassac, que estava de<br />

cabeça baixa, coberta por seu capuz.<br />

— Então, seu verme, o que você fez com Etiènne!? Vamos!<br />

Diga suas últimas palavras antes de perder o pescoço!<br />

Foi então que o capuz foi jogado para trás, revelando que<br />

não era Grassac, e sim Etiènne, usando as roupas dele.<br />

— Degolaria o irmão mais novo de seu melhor amigo? —<br />

Leon ficou estupefato. Tamanha foi sua surpresa, que até<br />

deixou cair sua espada, como se ela tivesse ficado pesada<br />

demais para que ele a segurasse.<br />

— Mas, mas, Etiènne... Por quê? O que está havendo?<br />

— Nada de mais, meu amigo Leon. Simplesmente eu<br />

conheço meu irmão o suficiente para saber que ele o mandaria<br />

atrás de mim, como já o fez outras vezes, o que eu percebi,<br />

mas não falei nada. Afinal, não é ruim ter um anjo da guarda<br />

que use tão bem uma espada como você.<br />

Etiènne explicou a Leon que Grassac precisava resolver<br />

um problema urgente, e que não poderia ser acompanhado.<br />

Sabendo que seria seguido, resolveu levá-lo até sua casa, para<br />

24


que trocassem de roupas e de cavalos. Assim, enquanto Leon<br />

seguiu Etiènne, Grassac conseguiu sair da casa sem ser visto<br />

por Leon e foi fazer o que precisava. Leon ficou furioso e disse<br />

a Etiènne que Michel não iria gostar nem um pouco de saber o<br />

que tinha acontecido. Etiènne, muito irreverente, deu de<br />

ombros e disse que sabia o que estava fazendo.<br />

<br />

Pela manhã, quando os primeiros indícios de que o dia<br />

iria começar apareceram no céu, pois as pesadas nuvens<br />

negras que cobriam Amiens já estavam clareando um pouco,<br />

num lugar próximo ao castelo de Martin, o senhor de Amiens<br />

se encontrava com Gallard Gellion, seu agente secreto. Martin<br />

estava com um ar apreensivo e com um aspecto horrível de<br />

quem não dormira bem. Talvez pela ansiedade de saber quem<br />

eram os membros do Conselho, momento que há muitos dias<br />

vinha esperando.<br />

Assim que Gallard chegou, desceu de sua montaria e veio<br />

cumprimentar Martin. — Bom dia, senhor Martin. Trago<br />

excelentes informações. Creio que o Conselho de<br />

Conspiradores chegou a seu fim.<br />

25


M<br />

CAPÍTULO II<br />

As chamas da traição<br />

artin e Gallard conversaram demoradamente sobre as<br />

novas informações obtidas na fria madrugada que<br />

passara. Agora que to<strong>dos</strong> os membros do Conselho haviam<br />

sido revela<strong>dos</strong>, começaram a planejar uma forma rápida e<br />

eficaz de destruí-los. O dia estava claro quando Martin deixou<br />

Gallard e retornou a seu castelo. As próximas horas seriam<br />

decisivas.<br />

Logo que chegou ao castelo, ordenou que o chefe da<br />

guarda viesse à sua presença. Alain Dumas era seu nome. <strong>Era</strong><br />

um homem alto, de cabelos negros, cavanhaque e muito<br />

musculoso, o mais alto de toda a guarda. Tinha uma expressão<br />

forte e uma voz rouca que impunham respeito.<br />

Alain Dumas servia a Martin já fazia mais de oito anos.<br />

<strong>Era</strong> como um cão de guarda fiel ao dono. Desde que chegou a<br />

Amiens e se apresentou ao serviço de Martin, conquistou a<br />

confiança de seu senhor e a obediência <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>. Dono de<br />

um carisma sem igual, to<strong>dos</strong> os seus subordina<strong>dos</strong> o<br />

respeitavam e admiravam. O seguiriam onde quer que fosse,<br />

pois possuía um enorme poder de liderança.<br />

Assim que Alain chegou à presença de Martin, foi<br />

ordenado que o acompanhasse até as salas subterrâneas do<br />

castelo. Desceram as escadas de acesso ao subterrâneo e<br />

chegaram a uma pequena porta de madeira escura. Há muitos<br />

anos que esta porta estava fechada. O próprio Alain nunca<br />

havia descido até esta parte do castelo. Martin destrancou a<br />

porta e a empurrou com um pouco de dificuldade. Um<br />

rangido alto ecoou pelo comprido e escuro corredor além da<br />

porta.<br />

26


Quando passaram pela porta e a tocha iluminou o<br />

corredor, Alain pôde perceber que, além de muitas teias de<br />

aranha, havia, ao longo do corredor, outras três portas, todas à<br />

direita da entrada.<br />

Martin foi à frente desviando-se das enormes teias de<br />

aranha que haviam se formado ao longo <strong>dos</strong> anos, e Alain o<br />

seguiu. Após terem passado em frente às três portas, ao final<br />

do corredor, Martin ergueu o braço e segurou uma tocha que<br />

estava presa à parede, puxando-a violentamente para baixo.<br />

Ao fazer isto, um forte clangor soou, provocando ecos por<br />

todo o corredor, e a parede de rochas se deslocou para frente.<br />

<strong>Era</strong> uma passagem secreta.<br />

Alain estava admirado com tudo o que via e também<br />

muito ansioso em saber por que Martin o levara até aquele<br />

lugar. Tentou imaginar o que estaria esperando atrás daquela<br />

parede de rochas.<br />

Martin empurrou um pouco mais a parede, para que<br />

ambos pudessem entrar. Os dois ultrapassaram a porta secreta<br />

e a tocha iluminou o lugar. Alain ficou ainda mais<br />

impressionado. Nunca, em toda sua vida, havia visto tantos<br />

mecanismos de tortura reuni<strong>dos</strong> em um só lugar, como os que<br />

ele estava vendo naquele momento.<br />

Martin percebeu a fisionomia de espanto em Alain, que<br />

estava boquiaberto.<br />

— Não se assuste, meu amigo, este lugar já não é usado<br />

há mais de vinte anos. Você pode perceber isto pela<br />

quantidade de poeira e teias de aranha.<br />

— Eu nunca imaginei que meu senhor possuísse uma<br />

câmara de torturas tão completa aqui no castelo. — disse<br />

Alain, ainda com um ar de surpresa.<br />

— Este lugar foi muito útil para conseguir tudo o que<br />

tenho hoje. Numa época onde havia mais homens rebeldes e<br />

valentes aqui em Amiens, o controle do povo era mais difícil e<br />

fui obrigado a usar meios convincentes para arrancar<br />

informações das pessoas, além de manter a ordem.<br />

27


— Nossa! — suspirou Alain. — Foi meu senhor quem<br />

construiu tudo isto?<br />

— Não, quer dizer, um ou outro método foi criado pelo<br />

meu pai, anos atrás, mas a maior parte eu consegui negociar<br />

com a Santa Inquisição. A Igreja também possui méto<strong>dos</strong><br />

bastante convincentes de diálogo com os hereges e infiéis.<br />

— E aqui neste lugar meu senhor matou muitos homens<br />

desta cidade, arruaceiros e infiéis, por assim dizer? — indagou<br />

Alain com um sorriso cínico.<br />

Martin olhou em volta com um ar irônico e deu um forte<br />

suspiro, andando vagarosamente entre as peças de tortura.<br />

— Meu fiel amigo, nós não temos o poder de tirar a vida<br />

de ninguém. Isto fica a cargo de Deus. Torturei muitas pessoas<br />

naquela época, mas nem todas morreram, porque Deus foi<br />

misericordioso e não as chamou, permitiu que continuassem<br />

vivas. Ele é quem decide quem vai e quem fica, não eu, nem<br />

você. Somos isentos de qualquer culpa. — Alain deu um<br />

sorriso displicente, como quem ri de algo absurdo. — Sei que<br />

sempre foi um homem fiel aos meus serviços, e sei também<br />

que sempre foi um grande e verdadeiro cavaleiro, respeitando<br />

a ordem <strong>dos</strong> cavaleiros com muita dignidade, mas quando um<br />

homem assume determinadas posições na vida, como a que<br />

fui instado a assumir, ele é obrigado a usar méto<strong>dos</strong><br />

alternativos, que nem sempre são de seu agrado, mas<br />

infelizmente são necessários.<br />

Martin fazia-se de vítima. Sempre teve Alain como um fiel<br />

guardião, e lhe confiara o comando de toda a guarda, mas não<br />

sabia se ele compactuaria com seus méto<strong>dos</strong> desumanos e com<br />

a prática de pequenas atrocidades. Ele sabia que Alain era um<br />

homem muito poderoso, e precisava dele a seu lado. Contava<br />

com sua liderança para capturar Michel Montbard e os demais<br />

membros do Conselho de Conspiradores.<br />

Com muita astúcia, Martin tentava manter o apoio de<br />

Alain, fingindo ser um homem bom, que simplesmente fora<br />

vítima das circunstâncias e tivera que usar estes méto<strong>dos</strong> para<br />

28


manter a ordem na cidade. — Meu amigo Alain, por muitos<br />

anos fui obrigado a sacrificar várias pessoas para manter a<br />

ordem e a paz em Amiens. Você mesmo é testemunha de que<br />

estas salas subterrâneas estão fechadas há anos e eu já estava<br />

até com idéia de vender todas estas peças de volta à Igreja. —<br />

Martin tentava convencer Alain na expectativa de que seu<br />

melhor homem não o abandonasse. Seria desastroso perder<br />

Alain num momento tão crucial como aquele.<br />

— Por que meu senhor me trouxe até aqui? Deve haver<br />

algum motivo especial, ou não? — Martin assentiu com a<br />

cabeça, passou o braço pelos ombros de Alain e o conduziu<br />

lentamente até uma porta no lado oposto da câmara de<br />

torturas.<br />

— Sim, é verdade! Eu tenho um motivo para trazê-lo até<br />

aqui. Por diversas vezes pensei fazer isso antes, mas a<br />

vergonha me impedia. Agora, a necessidade me obrigou a isto.<br />

Mais do que nunca preciso de seus serviços, meu amigo.<br />

Exatamente para não ser obrigado a voltar ao passado, preciso<br />

de apoio e ajuda. — Com uma voz mansa e tranqüila, Martin<br />

tentava manter o controle e persuadir Alain. — Você sabe<br />

muito bem <strong>dos</strong> boatos que vêm chegando a Amiens, sobre<br />

uma possível invasão inglesa à França, não sabe?<br />

— Sim, todo o povo comenta e está muito temeroso.<br />

— Pois é, estes malditos boatos fizeram com que um<br />

grupo de idiotas criasse um Conselho cujos propósitos não<br />

interessam ao rei da França, muito menos à cidade de Amiens.<br />

O seu líder é Michel Montbard e precisamos dar um fim a este<br />

Conselho.<br />

— E de que tipo de assunto estes homens estão tratando?<br />

Já ouvi falar deste Michel Montbard, e ele é um homem muito<br />

querido entre as pessoas de Amiens. Está sempre disposto a<br />

ajudar a to<strong>dos</strong>.<br />

— Eu sei, mas ele é um traidor de Amiens. Está tramando<br />

uma fuga em massa da cidade. Onde já se viu? Um<br />

desgraçado como este levar o povo de uma cidade inteira a<br />

29


deixar seus lares por causa de um boato! Vê agora porque<br />

quero acabar com este Conselho!? Para que ele não acabe com<br />

minha cidade e não leve desgraça a centenas de famílias. —<br />

Martin estava sendo muito convincente, mas na verdade ele<br />

pensava em manter seu luxo e riqueza através <strong>dos</strong> altos<br />

impostos que cobrava àquelas pessoas.<br />

— Estou entendendo agora, este Michel se aproximou das<br />

pessoas como uma pessoa bon<strong>dos</strong>a, prestativa e amiga,<br />

conseguindo assim a confiança deles, para que possa levar<br />

adiante seu plano de retirá-los de Amiens.<br />

— Isso, é exatamente isso! — afirmou Martin.<br />

— Mas o que é que ele tem a ganhar com isso, por que ele<br />

levaria tantas pessoas embora daqui, e para onde?<br />

— Não sei, talvez queira explorá-las, tirar dinheiro delas,<br />

mas isso não importa, o meu dever é impedir que meu povo<br />

seja iludido por falsas idéias de um lunático!<br />

— E o que meu senhor pretende fazer?<br />

Alain, convencido de que Martin realmente tinha boas<br />

intenções, já estava disposto a ajudá-lo. Não sabia que o povo<br />

guardava grande ódio a Martin, por tudo que ele lhes fizera<br />

no passado. Alain nunca foi de conversar com as pessoas do<br />

povo, sempre manteve a postura de capitão da guarda, não se<br />

misturando aos habitantes da pequena Amiens. Sempre que<br />

fazia uma visita à taberna com seus homens, as pessoas, por<br />

sua vez, também o evitavam e faziam comentários aos<br />

cochichos, que ele nunca teve curiosidade de saber sobre o que<br />

seriam. A grande verdade, que ele nunca fora capaz de<br />

perceber, é que Amiens sempre fora uma cidade oprimida. No<br />

passado, por torturas e sacrifícios, e agora, pelo medo imposto<br />

por sua própria presença e a de seus solda<strong>dos</strong>.<br />

— Atrás desta porta existe um grande corredor que vai<br />

dar muito além do castelo. — Martin continuou a falar — É<br />

por onde os mortos eram leva<strong>dos</strong> e também pode servir para<br />

uma fuga, caso seja necessário.<br />

— Fuga!? Fuga de quem?<br />

30


— Nossa fuga. Estou muito preocupado com Michel. Ele é<br />

capaz de incitar o povo não só a fugir de Amiens, mas a<br />

invadir e destruir este castelo. — Martin tentava retratar<br />

Michel, para Alain, como um homem extremamente perigoso.<br />

— Isto jamais vai acontecer enquanto eu estiver no<br />

comando da guarda, meu senhor, e honestamente não acredito<br />

que o povo fosse tão ousado a ponto de tentar uma coisa<br />

dessas. — mais uma vez Alain soltou aquele sorriso<br />

displicente.<br />

— Confio muito em você, Alain, mas cuidado com o<br />

excesso de confiança, ele pode ser sua ruína. — Martin falou<br />

isto com uma expressão séria.<br />

Continuaram conversando ainda por cerca de duas horas<br />

dentro da câmara de torturas. Martin e Alain traçaram juntos<br />

o que seria o plano de captura de to<strong>dos</strong> os membros do<br />

Conselho. Ficou decidido que o primeiro a ser capturado seria<br />

o taberneiro, pois a taberna ficava muito afastada e não<br />

poderiam esperar até a noite, hora em que estaria muito cheia,<br />

dificultando a prisão. Guardas seriam espalha<strong>dos</strong> pelo bosque<br />

para que ninguém pudesse ir até a taberna e, se alguém<br />

tentasse passar à noite, seria capturado.<br />

Os demais membros do Conselho seriam captura<strong>dos</strong> em<br />

seus próprios lares, assim que a noite caísse. A ordem era<br />

trazer to<strong>dos</strong> aprisiona<strong>dos</strong> e com vida, e incendiar suas casas<br />

por traição à França.<br />

Martin disse a Alain que to<strong>dos</strong> seriam julga<strong>dos</strong> perante o<br />

povo e ficariam presos no castelo mas, na verdade, tencionava<br />

torturá-los e decapitá-los em praça pública.<br />

Assim que Alain saiu, Martin ordenou que alguns<br />

homens limpassem e colocassem em funcionamento todas as<br />

peças de tortura. As três portas ao longo do corredor eram<br />

prisões, que também já estavam sendo preparadas para seus<br />

futuros habitantes, os membros do Conselho.<br />

Pela passagem secreta da câmara de torturas, Alain saiu<br />

com cerca de quarenta homens, fortemente arma<strong>dos</strong>. Foram<br />

31


em busca de Dízier, o taberneiro. Logo em seguida, saíram<br />

mais trinta homens para fazer a guarda e preparar as<br />

armadilhas no bosque, por onde a maioria <strong>dos</strong> freqüentadores<br />

da taberna costumava passar.<br />

Dentro do castelo, to<strong>dos</strong> os outros guardas estavam de<br />

prontidão. To<strong>dos</strong> os postos de segurança foram reforça<strong>dos</strong> e as<br />

trancas, todas verificadas.<br />

Catherine, vendo todo aquele alvoroço, começou a ficar<br />

assustada. Procurou por Martin, que foi encontrado nas<br />

despensas do castelo, coordenando uma nova arrumação<br />

pessoalmente.<br />

— Meu senhor, desculpe o incômodo, mas estou muito<br />

apreensiva. O que está acontecendo? Por que todo este<br />

movimento? Os ingleses estão chegando?<br />

Martin estava muito suado e ofegante, um pouco por<br />

cansaço e um pouco por euforia e ansiedade, pelos<br />

acontecimentos que estariam por vir.<br />

— Não diga isso! — Martin repreendeu-a com uma voz<br />

forte. — Essa história de ingleses não passa de um maldito<br />

boato, eles nunca vão invadir a França, muito menos Amiens e<br />

as cidades vizinhas. O rei Philipe VI jamais permitiria que isso<br />

acontecesse. — Respondeu com muita firmeza e confiança.<br />

— Então por que todo este movimento dentro do castelo,<br />

por que tantos guardas arma<strong>dos</strong> por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>? Meu<br />

senhor está estocando provisões na despensa?<br />

— Não! Tudo o que está acontecendo é apenas para<br />

garantir o nosso luxo e riqueza por mais um bom tempo.<br />

Agora chega de perguntas idiotas e vá ordenar às serviçais<br />

que preparem um grande banquete para o almoço. Hoje será<br />

um dia histórico para Amiens.<br />

— Sim, meu senhor! — Catherine virou-se e saiu das<br />

despensas cheia de cólera. Já não agüentava mais ser tratada<br />

com indiferença e grosseria por Martin. Em seu íntimo, ela<br />

sempre pensava que um dia ele pagaria por todo o mal que<br />

fizera a ela e a todas as pessoas de Amiens.<br />

32


Há muitos anos que Catherine sofria secretamente um<br />

medo e angústia muito grandes. Certa vez, foi surrada por<br />

Martin, quando descobriu que ele procurava serviçais no meio<br />

da madrugada para satisfazer seu insaciável desejo por sexo.<br />

Houve uma ocasião em que uma delas havia ficado grávida, e<br />

quando Martin descobriu, deu sumiço na pobre mulher.<br />

Catherine tinha quase certeza de que ele a matara, pois o<br />

seguira na noite em que levou a serviçal até as salas<br />

subterrâneas e, depois de longo tempo, retornou só.<br />

<br />

Quando Alain chegou com seus homens à taberna de<br />

Dízier, ainda faltavam cerca de duas horas para o almoço. O<br />

lugar encontrava-se completamente deserto, a não ser por um<br />

homem que aparentava estar embriagado, sentado em uma<br />

das mesas do canto da taberna, segurando uma caneca de<br />

vinho.<br />

Alain entrou acompanhado por quatro homens, enquanto<br />

os demais cercavam todo o lugar.<br />

Dízier estava atrás do balcão, enxugando algumas canecas<br />

que acabara de lavar. — Bom dia, Dízier — disse Alain —<br />

estamos aqui para levá-lo até o castelo do senhor Martin.<br />

Dízier, apreensivo, levou a mão lentamente ao cabo de<br />

sua espada que estava debaixo do balcão, dizendo: — E por<br />

que deveria ir até o castelo? Fiz algo que fosse contra as leis<br />

tirânicas de seu senhor? É quase hora do almoço e muitas<br />

pessoas vêm comer em minha taberna. — Alain percebeu que<br />

Dízier tentava pegar algo sob o balcão.<br />

— Se eu estivesse em seu lugar colocaria as mãos<br />

novamente sobre o balcão e aceitaria meu convite sem criar<br />

problemas. Neste momento, existem mais de trinta homens<br />

em torno desta taberna. Você não venceria a to<strong>dos</strong>. Lutar<br />

cansa e depois, nem to<strong>dos</strong> estão arma<strong>dos</strong> apenas com espadas.<br />

Guardas! — quando Alain gritou, chamando a atenção de seus<br />

homens, três <strong>dos</strong> quatro solda<strong>dos</strong> que o acompanhavam<br />

33


dentro da taberna armaram suas bestas e apontaram na<br />

direção de Dízier.<br />

O homem bêbado assustou-se com o grito de Alain e com<br />

a presença <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> arma<strong>dos</strong>, levantando-se bruscamente<br />

e deixando cair no chão a pesada caneca de vinho, o que fez<br />

um enorme estardalhaço. Assusta<strong>dos</strong> com o barulho, to<strong>dos</strong><br />

voltaram-se rapidamente para o homem bêbado e dois <strong>dos</strong><br />

guardas dispararam suas bestas simultaneamente, cravando<br />

suas setas no peito do homem, que tombou para trás, caindo<br />

sobre os bancos de madeira.<br />

Tudo se passou muito rápido e Dízier, aproveitando a<br />

situação, correu para a porta <strong>dos</strong> fun<strong>dos</strong> da taberna. To<strong>dos</strong><br />

perceberam e, quando o terceiro guarda com a besta mirou<br />

Dízier, Alain o empurrou no momento do disparo, soltando<br />

um grito de repreensão. Foi o que desviou a pontaria e fez<br />

com que a seta atingisse a perna esquerda de Dízier, ao invés<br />

do tórax, o que provavelmente o teria matado. Dízier tombou<br />

gritando de dor, enquanto Alain ainda repreendia seu<br />

soldado. — Está louco!? Quer que o senhor Martin nos<br />

enforque a to<strong>dos</strong>? Ele foi bem claro em suas ordens! Devemos<br />

levar to<strong>dos</strong> os animais e alimentos da taberna, e também o<br />

taberneiro, vivo! — Alain ficara furioso com a imprudência de<br />

seu soldado.<br />

— Perdoe-me, capitão, foi tudo muito rápido e perdi o<br />

controle, por favor, perdoe-me! Não acontecerá novamente.<br />

Alain prezava muito seus homens e tinha um grande<br />

poder de liderança, sabia que uma punição ou repreensão<br />

muito rígida perante os outros seria humilhante, e ele jamais<br />

envergonhara um homem perante outros.<br />

— Mais tarde falaremos sobre isso, vamos continuar com<br />

a missão. Mandem os outros homens entrarem e carreguem as<br />

carroças com os alimentos. — concluiu Alain.<br />

Em pouco tempo, todo o estoque de provisões da taberna<br />

estava pronto para ser levado ao castelo de Martin. Passado<br />

pouco mais de meia hora, um soldado veio até Alain.<br />

34


— Capitão, está tudo preparado para partirmos. O que<br />

faremos com o homem morto dentro da taberna?<br />

— Nada, queimem tudo.<br />

— Mas, capitão...<br />

— Queimem! — gritou asperamente Alain, que montou<br />

em seu cavalo e cavalgou até a carroça onde estava Dízier,<br />

ferido e todo amarrado. Alain o fitou e, com um sorriso na<br />

face, afastou-se e ordenou a partida <strong>dos</strong> homens.<br />

— Veja pela última vez tudo o que você construiu na vida<br />

e não soube preservar, por ter escolhido juntar-se a um bando<br />

de traidores imun<strong>dos</strong>. — falou em voz alta para que Dízier<br />

ouvisse, enquanto cavalgava para a frente da comitiva. Dízier,<br />

por sua vez, cheio de dores, com a seta ainda cravada na<br />

perna, fez um esforço e virou a cabeça, para olhar sua taberna<br />

e celeiro sendo consumi<strong>dos</strong> por enormes labaredas. Sentiu<br />

grande angústia e teve muito medo.<br />

<br />

Em sua pequena casa, Michel, sem imaginar o que<br />

acontecia do outro lado da cidade, estava assando um<br />

suculento peixe, que havia pescado pela manhã às margens do<br />

rio Somme, quando Leon chegou, batendo a sua porta.<br />

Trocaram cumprimentos, e Michel logo o convidou para o<br />

almoço. O peixe já estava exalando um cheiro muito<br />

agradável, quase pronto para ser saboreado, e Leon aceitou o<br />

convite de muito bom grado. Sentaram-se à mesa e<br />

começaram a conversar.<br />

Leon relatou os fatos que haviam ocorrido no final da<br />

madrugada anterior, acerca de Etiènne e seu novo amigo,<br />

Grassac. Michel ficou furioso quando soube que seu<br />

imprudente irmão deixara Grassac sair de sua vigilância logo<br />

após a reunião. Deu um violento murro na mesa,<br />

resmungando bastante.<br />

Leon prosseguiu, dizendo que ficaram durante toda a<br />

manhã providenciando os utensílios para a fuga, e até então<br />

35


Grassac não havia retornado. Por fim, disse que Etiènne<br />

também estava muito preocupado e fora até a casa <strong>dos</strong> irmãos<br />

Ballec, para apressar-lhes a partida para as cidades litorâneas,<br />

pois afirmara estar com um pressentimento muito ruim e<br />

temia que, se esperassem mais tempo, algo pudesse sair<br />

errado.<br />

— Então, mais uma vez aquele inútil tomou decisões por<br />

sua conta e risco!? — exclamou Michel, ainda mais furioso. —<br />

Espero que os irmãos Ballec tenham a sensatez de não dar<br />

ouvi<strong>dos</strong> a meu irmão, sem antes nos consultar.<br />

— Mas Michel, eu mesmo apoiei esta idéia, não podemos<br />

nos arriscar. Se algo de ruim acontecer, é bom que Gien e<br />

Gourdon estejam longe daqui. — Leon falou com um certo ar<br />

de arrependimento, pois viu que Michel estava muito<br />

descontente com tudo o que acontecera.<br />

— Claro, Leon, mas minha idéia agora é outra. Se este<br />

Grassac não aparecer até a noite, vamos dar início à fuga<br />

amanhã bem cedo. — explicou Michel — Dízier disse que já<br />

armazenou provisões suficientes para uma viagem de até<br />

quarenta dias.<br />

— E as outras pessoas, amigo? Não podemos deixá-los!<br />

Muitas famílias gostariam de nos acompanhar e deixar este<br />

lugar. Ninguém suporta mais a tirania daquele louco, que se<br />

diz dono da cidade. Vamos deixá-los entregues à guerra que<br />

se aproxima? Sinceramente não sei o que poderia ser pior,<br />

viver sob as leis de Martin Lacroix ou enfrentar uma guerra.<br />

— Não, levaremos to<strong>dos</strong> que queiram nos acompanhar.<br />

Afinal, este sempre foi o nosso propósito, tirar daqui todas as<br />

pessoas de bem, que queiram construir um lugar novo, um<br />

lugar bom, sem maldade e sem guerras. Para isso criamos o<br />

Conselho, mas primeiro precisamos levar todas as provisões e<br />

os equipamentos para um lugar seguro. Depois que<br />

estivermos acampa<strong>dos</strong> e organiza<strong>dos</strong>, viremos buscar as<br />

outras pessoas, aos poucos. — Leon assentiu com a cabeça.<br />

Michel tinha razão, jamais poderiam sair de Amiens com uma<br />

36


enorme caravana de centenas de pessoas, como se fosse um<br />

passeio pelo bosque, sem chamar a atenção. Depois, seria<br />

muito melhor levar as pessoas aos poucos, evitando assim<br />

riscos desnecessários.<br />

— O que vamos fazer então, meu amigo? — perguntou<br />

Leon, com um ar triste, sentindo-se culpado por ter apoiado<br />

Etiènne.<br />

— Vamos comer o meu peixe antes que ele queime! De<br />

barriga cheia, pensaremos melhor. — Michel levantou e foi<br />

buscar o almoço. Serviu uma caneca de vinho a Leon e<br />

dividiram o peixe. Enquanto se deliciavam, Michel combinou<br />

com Leon de ir à casa <strong>dos</strong> irmãos Ballec ao anoitecer, para<br />

verificar se realmente haviam partido.<br />

Após almoçarem, passaram o resto da tarde decidindo<br />

pequenos detalhes da fuga, definindo as tarefas que cada um<br />

deveria executar quando todas as pessoas fossem reunidas.<br />

Acreditavam que, dentro de no máximo dez dias, tudo estaria<br />

preparado. As horas foram passando até que o dia começou a<br />

escurecer, prenunciando a chegada da noite.<br />

Tinham começado a se preparar para a visita aos irmãos<br />

Ballec, quando perceberam o som de muitos cascos batendo<br />

no chão, do lado de fora. A casa de Michel ficava num lugar<br />

afastado do movimento da cidade e não era comum ver<br />

pessoas na região, àquela hora. Michel correu até uma das<br />

janelas e viu espantado, por uma fresta, muitos solda<strong>dos</strong> de<br />

Martin cercando sua casa. Correu até a mesa, onde sua espada<br />

estava e a pegou, com uma grande ira estampada em seu<br />

rosto.<br />

— Aquele desgraçado do Grassac deve ter nos traído! Os<br />

homens de Martin estão lá fora, por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>! — disse<br />

Michel a Leon, com um brilho de ódio nos olhos.<br />

— Será!? Não pode ser! Que faremos agora!?<br />

Leon demonstrava um grande espanto e surpresa, além<br />

de estar muito mais assustado que Michel. Pareciam estar<br />

atordoa<strong>dos</strong>, perdi<strong>dos</strong> e sem saber o que fazer. Andavam sem<br />

37


parar de um lado para o outro da casa, não acreditando no que<br />

estava acontecendo. Depois de tantos meses de segredo, tantos<br />

planos, e agora estavam prestes a enfrentar a Guarda de<br />

Amiens.<br />

— Daqui só me tiram morto! — Michel estava<br />

ensandecido, segurava firme sua espada e de vez em quando<br />

batia com seus copos na pesada mesa de madeira.<br />

— Calma! — gritou Leon. — Não devemos nos precipitar!<br />

Ainda não sabemos o que está acontecendo, ou o que pode ter<br />

acontecido aos outros.<br />

— Devem ter sido captura<strong>dos</strong>, talvez até estejam mortos<br />

— resmungava Michel. Ouviram-se batidas na porta e, logo<br />

em seguida, uma voz se pronunciou:<br />

— Em nome de Martin Lacroix, senhor de Amiens,<br />

viemos buscar Michel Montbard, acusado de traição ao rei<br />

Philipe VI, da França! Abram a porta ou queimaremos a casa!<br />

Reconheceram a voz de Alain Dumas, capitão da Guarda<br />

de Amiens, que falava altivamente. Michel dirigiu-se até a<br />

porta. Leon percebeu sua intenção e segurou-o a tempo.<br />

— Meu Deus, Michel! Está louco!? — a idéia de Michel era<br />

abrir a porta e cravar sua espada no peito do primeiro soldado<br />

que aparecesse à sua frente, mas Leon sabia que isso<br />

acarretaria a morte certa para ambos. — Calma, amigo, não<br />

sejamos precipita<strong>dos</strong>. Não é o momento certo para heroísmos<br />

e sim de sensatez.<br />

Por um momento, Leon pensou que seria difícil convencêlo<br />

a se entregar, mas era a única saída que tinham. Pelo<br />

menos, iriam durar mais algumas horas.<br />

Do lado de fora havia muita agitação, cavalos de um lado<br />

para outro, homens correndo para cima e para baixo, muitas<br />

vozes se misturando, parecia que estavam se organizando<br />

para uma verdadeira guerra. Alain era o mais agitado, sabia<br />

que não seria tão fácil pegar Michel Montbard como foi com<br />

Dízier. Alain estava preparando um esquema especial para<br />

tentar capturá-lo sem que houvesse luta. <strong>Era</strong> uma grande<br />

38


chance de melhorar seu conceito perante Martin, levar Michel<br />

Montbard vivo.<br />

— Atenção, homens! — gritou aos seus solda<strong>dos</strong>. —<br />

Estejam prepara<strong>dos</strong> e vejam como é que se arranca um rato de<br />

seu buraco. — Alain, segurando um arco armado, baixou-o até<br />

que a ponta de sua seta tocasse a chama da tocha que um de<br />

seus homens segurava, de pé a seu lado. A seta, que já estava<br />

preparada para se incendiar, rapidamente ficou em chamas.<br />

Alain levantou o arco e apontou para o telhado da casa,<br />

disparando a seta flamejante, que cruzou o ar fazendo um arco<br />

até atingir a palhoça que cobria a casa de Michel. Lentamente<br />

a casa começou a se incendiar, mas, a cada minuto que<br />

passava, o fogo se alastrava com mais rapidez. Em poucos<br />

instantes, a fumaça causada pelas labaredas começou a<br />

dominar o interior da casa, fazendo com que Michel e Leon<br />

começassem a tossir sufoca<strong>dos</strong>, praguejando contra Martin.<br />

Ambos estavam com os olhos ardendo e lacrimejando muito.<br />

Quase sem ar, já não tinham mais opção, sequer podiam<br />

pensar em alguma saída. Pedaços de madeira em chamas<br />

começavam a cair do telhado em fogo. Precisavam de<br />

oxigênio, ar puro, precisavam respirar. Abriram a porta e<br />

correram para fora da casa cambaleantes, sem enxergar<br />

absolutamente nada em meio à nuvem de fumaça que os<br />

cercava.<br />

Quando completaram cinco ou seis passos, dois cavaleiros<br />

saíram da lateral da casa, lado a lado, com uma distância de<br />

três metros aproximadamente entre eles, segurando uma<br />

grande rede trançada. Vieram cavalgando em grande<br />

velocidade com aquela rede esticada. Ao passarem por Michel<br />

e Leon, largaram-na, fazendo com que os dois caíssem e se<br />

enroscassem na rede, como dois peixes captura<strong>dos</strong>.<br />

Enquanto ainda rolavam presos à rede, devido ao<br />

violento impacto causado pelos cavaleiros em alta velocidade,<br />

os solda<strong>dos</strong> soltavam urras de alegria.<br />

39


— Verifiquem quem estava com Michel! — ordenou<br />

Alain.<br />

Um soldado aproximou-se <strong>dos</strong> dois cuida<strong>dos</strong>amente e<br />

observou o rosto <strong>dos</strong> prisioneiros.<br />

— Capitão! O outro é Leon Troujard!<br />

— Então, hoje é nosso dia de sorte! Pegamos dois ratos<br />

grandes na mesma ratoeira! — Todas deram altas gargalhadas<br />

e zombaram <strong>dos</strong> prisioneiros.<br />

Alain ordenou que um pequeno destacamento fosse até a<br />

casa de Leon fazer uma vistoria e queimar tudo. Preparou o<br />

retorno ao castelo de Martin, para onde conduziria o líder do<br />

Conselho e seu melhor amigo. Já estava bem escuro quando<br />

partiram, mas fizeram uma cavalgada tranqüila de regresso. A<br />

única preocupação de Alain era saber como Martin reagiria,<br />

sabendo que os outros membros do Conselho não haviam sido<br />

captura<strong>dos</strong>.<br />

40


N<br />

CAPÍTULO III<br />

Muitas revelações<br />

o final da noite, Alain retornava trazendo seus solda<strong>dos</strong> e<br />

os prisioneiros. Chegaram à beira do enorme fosso que<br />

circundava o castelo e se identificaram. Os homens que<br />

guardavam a entrada baixaram lentamente a ponte levadiça e<br />

suspenderam a treliça, para que Alain pudesse entrar com<br />

seus solda<strong>dos</strong>. Passaram em fila dupla, segurando tochas para<br />

iluminar o caminho.<br />

Quando Martin soube que seus homens haviam<br />

retornado, foi rapidamente ao encontro de Alain para saber<br />

como fora a missão.<br />

Encontraram-se na torre de armas do castelo, onde os<br />

solda<strong>dos</strong> depositavam seus pertences de combate, como<br />

espadas, bestas, aljavas, escu<strong>dos</strong> e lanças, antes de descansar.<br />

Alain percebeu que Martin entrara agitado e tenso.<br />

— Boa noite, senhor — Alain olhou rapidamente para<br />

Martin, desviando o olhar em seguida, e continuou se<br />

despojando de seu armamento.<br />

— Conseguiu pegá-los? Estão to<strong>dos</strong> presos? — indagou<br />

Martin, demonstrando grande ansiedade.<br />

Alain estava cônscio de que Martin ficaria furioso ao<br />

saber que nem to<strong>dos</strong> haviam sido captura<strong>dos</strong>. Despiu a cota<br />

de malha, jogando-a sobre os outros objetos, e mais uma vez<br />

olhou para Martin.<br />

— Não, apenas Leon e Michel, os irmãos Ballec...<br />

— O quê!? — Martin deu um grito de espanto e ódio ao<br />

mesmo tempo, interrompendo as explicações de Alain, que<br />

por sua vez, baixara a cabeça. Martin ficou encolerizado, seus<br />

olhos faiscavam de ira ao ouvir que o capitão de sua guarda<br />

41


fracassara numa missão tão importante. — Seu idiota! Como é<br />

que pôde falhar numa missão tão importante como essa?<br />

Ordenei que capturasse sete homens e você só me traz três! E<br />

ainda assim quase matou Dízier pela manhã!<br />

Alain estava nervoso, nunca recebera uma reclamação<br />

sequer de seu senhor, e agora estava ali, sendo<br />

implacavelmente acusado de um fracasso pelo qual na<br />

verdade não era culpado.<br />

— Senhor, ninguém nos escapou — mais uma vez Alain<br />

tentava explicar o que acontecera. — O fato é que os outros<br />

homens que buscávamos prender não foram encontra<strong>dos</strong> em<br />

parte alguma. Procuramos por to<strong>dos</strong> os cantos da cidade, eles<br />

não estão em Amiens.<br />

— Eu ordeno que as buscas sejam redobradas. Quero estes<br />

homens presos em meu castelo até amanhã, antes do<br />

anoitecer. Onde estão os dois prisioneiros que trouxeste<br />

agora? Não os quero junto de Dízier, ficarão to<strong>dos</strong> separa<strong>dos</strong>.<br />

— Já foram leva<strong>dos</strong> para as salas subterrâneas, senhor.<br />

Foram coloca<strong>dos</strong> em salas separadas, mas há outra pessoa com<br />

Leon. Quando fomos prendê-lo, encontramos uma senhora,<br />

que diz ser a tia dele. Seu nome é Claudia. Não podíamos<br />

queimar a casa de Leon com ela dentro.<br />

Martin deu um sorriso sarcástico.<br />

— Não vejo porque não, mas isso não é problema. Talvez<br />

ela possa ter alguma utilidade. Agora verei como estão meus<br />

nobres convida<strong>dos</strong>. Quanto a você, Alain, junte seus homens e<br />

reinicie as buscas, imediatamente!<br />

— Meu senhor, os homens estão exaustos, precisam<br />

descansar um pouco!<br />

— Não interessa! — mais uma vez Martin bradou<br />

asperamente. — Quero aqueles traidores presos! Agora vá!<br />

— Sim, senhor. — Alain assentiu com a cabeça e ficou<br />

observando Martin retirar-se sem dizer nem mais uma<br />

palavra. Sabia que, se não encontrasse os irmãos Ballec,<br />

Etiènne e o outro homem, as coisas iriam ficar ainda piores.<br />

42


Alain pensava em como chegar até seus homens para pedir<br />

algo tão absurdo. Tinham acabado de chegar esgota<strong>dos</strong> e<br />

teriam de sair mais uma vez, madrugada afora, em busca <strong>dos</strong><br />

homens que já haviam procurado cansativamente desde a<br />

madrugada anterior.<br />

Alain ficou refletindo algum tempo e decidiu que seria<br />

melhor chamar apenas aqueles em que mais confiava e tinha<br />

certeza de que o acompanhariam, mesmo cansa<strong>dos</strong>. Pensou<br />

que sair com um pequeno grupo de homens de confiança seria<br />

muito melhor do que com toda a companhia, certamente<br />

repleta de solda<strong>dos</strong> descontentes com a situação, podendo lhe<br />

causar ainda mais problemas.<br />

No início da madrugada, Alain saiu com mais três<br />

homens de sua confiança, e foram à caça.<br />

<br />

Martin, ao chegar às salas subterrâneas, foi ter com<br />

Michel, que estava na última sala do sombrio corredor. Pediu<br />

para que o guarda abrisse a tranca da porta. Um forte clangor<br />

ecoou pelo corredor e a porta abriu-se. Martin entrou em<br />

companhia de mais dois guardas, que seguravam tochas para<br />

iluminar o local. A sala não era grande, de modo que, quando<br />

entraram, o lugar ficou muito bem iluminado. Com uma<br />

expressão de contentamento, Martin observou Michel<br />

acorrentado nas rochosas paredes do fundo da pequena sala.<br />

Seu aspecto era horrível, parecia ter saído de um linchamento,<br />

todo sujo, arranhado, com alguns hematomas pelos braços e<br />

rosto, além de estar com as roupas em trapos. Lentamente,<br />

com as mãos para trás, Martin se aproximou de Michel. Ficou<br />

parado à sua frente, pensativo. Michel, por sua vez, ao<br />

perceber que alguém se aproximara, com um pouco de<br />

dificuldade e sentindo muitas dores, levantou a cabeça e<br />

encarou-o. Martin deu um sorriso.<br />

— Então, caro traidor, como está se sentindo agora,<br />

acorrentado como um marginal molambento!?<br />

43


Com ironia, Martin iniciou uma pequena provocação:<br />

— Guardas, providenciem água fresca para meu nobre<br />

hóspede, parece-me que ele está com muita sede!<br />

Michel limitava-se a ouvir as palavras de seu inimigo.<br />

— Diga-me uma coisa, pobre infeliz, não está arrependido<br />

de ter tramado planos contra o representante legal do rei<br />

Philipe aqui nesta cidade? Você faz idéia do que irá lhe<br />

acontecer?<br />

Neste momento, Michel quebrou seu silêncio e, com<br />

algum esforço, revidou com palavras.<br />

— Vá para o inferno, seu porco asqueroso!<br />

Martin sacou uma adaga afiada que pendia de seu cinto e<br />

levou a lâmina fria ao pescoço de Michel, forçando-a com<br />

cuidado, apenas para intimidá-lo.<br />

— Escuta aqui, seu verme, cuidado com o que fala, pois se<br />

está vivo até agora é por minha vontade! Mais uma ofensa e<br />

lhe arranco a cabeça aqui mesmo!<br />

Martin forçou ainda mais a lâmina e Michel esticou-se<br />

mais, tentando evitar o corte em sua garganta.<br />

Um guarda se aproximou, trazendo uma caneca na mão.<br />

— Senhor, a água que pediu.<br />

Martin tomou a caneca da mão do guarda e bebeu um<br />

grande e demorado gole.<br />

— Ótimo, a água está fresca como pedi. Água é algo que<br />

não falta em meu castelo, nem mesmo para os prisioneiros. Ao<br />

terminar de pronunciar estas palavras, Martin atirou o<br />

restante da água no rosto de Michel. — Entretanto, não é<br />

necessária a um futuro cadáver. Guardas! Vamos embora! —<br />

gritou Martin. — O cavalheiro precisa descansar.<br />

To<strong>dos</strong> se retiraram da pequena sala, deixando Michel<br />

solitário em meio à escuridão, cheio de dúvidas e medo,<br />

perguntando-se por quantos dias mais ele teria que passar por<br />

aquilo, até que fosse executado. Teve um calafrio ao pensar<br />

que poderia ir para a guilhotina. Como seria ficar ajoelhado,<br />

44


com a cabeça no cepo, aguardando o momento da lâmina<br />

impie<strong>dos</strong>a cortar-lhe o pescoço?<br />

De repente lembrou-se de seu irmão Etiènne. O que<br />

poderia ter-lhe acontecido? Tentou organizar as idéias e teve<br />

certeza de que, no fundo, a culpa do que estava acontecendo<br />

deveria ser atribuída ao tal Grassac, e claro, ao próprio<br />

Etiènne, por ter levado aquele traidor para a reunião do<br />

Conselho na noite anterior. Eu sabia que isto acabaria<br />

acontecendo, concluiu.<br />

Michel sentiu saudade do tempo em que era criança e<br />

brincava na vila, junto ao seu amigo Leon, correndo para<br />

to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>, fingindo que eram honra<strong>dos</strong> cavaleiros do rei,<br />

e que defendiam o grande castelo de Paris.<br />

Só, na escuridão, Michel sentiu-se muito fraco e<br />

impotente. Começou a chorar com grande agonia, temeroso<br />

do que teria que enfrentar, nos próximos dias, ou até mesmo<br />

nas próximas horas.<br />

Na sala ao lado estavam Leon e sua tia Claudia. Assim<br />

como Michel, Leon estava acorrentado à parede do fundo. Sua<br />

tia Claudia, que já não tinha mais idade e nem saúde para<br />

ficar se cansando, estava sentada em um pequeno banco de<br />

madeira, posto ao lado de Leon, limpando-lhe as feridas com<br />

um pedaço limpo de tecido que rasgara de sua própria roupa.<br />

Leon percebeu o olhar triste e cheio de lágrimas de sua tia<br />

e tentou acalmá-la.<br />

— Titia, a senhora não deve ter medo. Nada vai lhe<br />

acontecer, não irão lhe fazer mal algum. Só a trouxeram para<br />

aumentar o meu sofrimento. Depois que me torturarem, irão<br />

deixá-la em paz. Um pouco de compaixão deve existir neste<br />

idiota do Martin.<br />

— Querido, este homem não sabe o que é compaixão,<br />

piedade ou carinho. Ele não tem escrúpulos, não tem coração.<br />

Tudo o que lhe importa é riqueza e poder. Sempre foi assim.<br />

Desde que assumiu a cidade, sua ambição só cresceu.<br />

45


— Mas titia, ele jamais faria mal à senhora, veja sua idade.<br />

Ele pode ser egoísta, prepotente e ambicioso, mas ele ainda é o<br />

senhor da cidade, e não sujaria as mãos com o sangue de uma<br />

mulher com a idade da senhora.<br />

— Leon, meu querido, há muitas coisas que você precisa<br />

saber sobre este homem terrível. Talvez você venha a me odiar<br />

por não ter lhe contado antes, mas sinto que se eu não o fizer<br />

agora, não terei outra oportunidade.<br />

Leon, por um segundo, ficou espantado e com medo.<br />

— Pare com isso, tia Claudia! Está falando como uma<br />

pessoa que está prestes a morrer! Não estou gostando desta<br />

conversa, é melhor ficarmos cala<strong>dos</strong>.<br />

— Não, não há mais tempo para silêncio e você terá que<br />

me escutar com muita atenção. Por mais que seja horrendo,<br />

tudo que lhe direi agora é a mais pura verdade. Talvez você<br />

tenha oportunidade de confirmar tudo, algum dia. — Claudia<br />

falava com uma seriedade que nunca usara antes para<br />

conversar com seu sobrinho, nem mesmo nas vezes em que<br />

chamava sua atenção. Leon ficou ainda mais apreensivo. —<br />

Antes de começar a falar, colocarei isto em seu pescoço. —<br />

Claudia levantou-se, tirou um cordão de prata que estava em<br />

torno do próprio pescoço e passou-o para Leon. Do cordão<br />

pendia um pequeno amuleto que Leon não conseguiu ver<br />

bem. — Este cordão foi de seu pai.<br />

— Do meu pai!? O que a senhora sabe sobre meu pai? Por<br />

que não me entregou este cordão antes? — Por um momento,<br />

Leon ficou furioso com sua tia e cheio de dúvidas.<br />

— Preste atenção no que irei lhe dizer, depois poderá me<br />

julgar como achar mais conveniente. Quero apenas que saiba<br />

que eu e sua mãe fomos as irmãs mais unidas de toda a<br />

família. Tudo que fiz, foi a pedido dela e para sua proteção.<br />

Leon tinha pouquíssimas lembranças de sua mãe e<br />

nenhuma de seu pai. Tentou adivinhar o que se passava, mas<br />

realmente não conseguia fazer idéia. Logo agora, à beira do<br />

extermínio, saberia algo sobre suas origens. Seja lá qual fosse a<br />

46


história que sua tia iria lhe contar naquele momento, fora<br />

muito bem escondida durante to<strong>dos</strong> estes anos em que vivera<br />

com ela.<br />

— Sempre cuidei de você como se fosse meu próprio<br />

filho. E acredito que, se minha irmã pudesse vê-lo hoje,<br />

sentiria orgulho por tudo o que fiz por ti. Mas não temos<br />

tempo para saudades, devo lhe contar tudo que sei agora,<br />

antes que não haja mais tempo.<br />

Leon já estava ficando irritado novamente.<br />

— Fale de uma vez, titia, seja lá o que for, já estou curioso<br />

demais. E quero saber tudo sobre este cordão e meu pai.<br />

— Martin Lacroix é seu pai!<br />

— O quê!? — Leon deu um gritou e fez uma expressão de<br />

espanto e ódio, misturado com repulsa. — Ficou louca, tia<br />

Claudia? Como pode dizer uma coisa dessas? Minha mãe<br />

jamais teria se envolvido com um pústula desses! Como ousa<br />

falar isto!? Saia de perto, tia Claudia, eu não quero mais<br />

escutar uma palavra, pelo amor de Deus, saia daqui, saia! —<br />

Leon se debatia desesperadamente, acorrentado à parede.<br />

Talvez, se estivesse solto, tivesse agredido violentamente sua<br />

tia.<br />

— Não, não sairei coisa nenhuma. Ficarei a seu lado e<br />

falarei tudo que eu sei. Terá que ouvir cada palavra, já disse<br />

antes, depois julgue-me como quiser, mas irá me ouvir agora,<br />

entendeu? O que estou falando não é mentira, e sim verdade.<br />

Por que teria eu motivos para lhe contar uma mentira destas?<br />

— Leon baixou a cabeça e cerrou as mãos quase que cravando<br />

as unhas nas palmas, tamanha era a fúria que o dominava. —<br />

Há muitos e muitos anos atrás sua mãe era serviçal no castelo<br />

de Martin. <strong>Era</strong> uma das mulheres mais bonitas de todo o<br />

castelo. Martin nunca se satisfez com sua esposa, na verdade<br />

ele só se casou com Catherine por causa de sua herança, que<br />

na época era uma verdadeira fortuna. Pois bem, Martin<br />

sempre teve o hábito de ir ao quarto das serviçais à noite e<br />

levá-las para outros aposentos, para satisfazer seus desejos e<br />

47


fantasias. A maioria das serviçais gostava desta aventura, até<br />

se ofereciam, mas não sua mãe, ela sempre o recusou. Como<br />

eu disse, ela era a mais bela do castelo. Numa noite de festa no<br />

castelo, Martin havia bebido demais e foi atrás de sua mãe.<br />

Com a ajuda de três guardas a levou e a obrigou a satisfazê-lo.<br />

Foram os piores dias da vida de sua mãe. — Leon estava<br />

ouvindo tudo aquilo e seus olhos injeta<strong>dos</strong> faiscavam ainda<br />

mais de ódio, a cada palavra de sua tia. — As semanas foram<br />

se passando e sua mãe descobriu que estava grávida. Tentou<br />

esconder de Martin porque tinha consciência de que, se por<br />

acaso ele descobrisse, mandaria matá-la. O segredo não durou<br />

muito tempo, pois as outras serviçais também sabiam do<br />

acontecido e logo a notícia se espalhou. Até mesmo as aias de<br />

Catherine souberam e logo contaram para sua senhora. Numa<br />

noite, Martin desceu atrás de sua mãe e a levou para a câmara<br />

de torturas. Lá, alguns guardas a espancaram até que ela<br />

ficasse inconsciente. Foi uma dádiva ela não ter perdido você<br />

naquela noite. Os guardas a levaram para a floresta e<br />

amarraram-na nua a uma árvore, esperando que as criaturas<br />

da noite viessem famintas atrás dela, atrás do cheiro de seu<br />

sangue, que lhe escorria pelo corpo. Sua mãe só foi salva<br />

porque um <strong>dos</strong> guardas que participou daquela barbárie<br />

retornou na madrugada e a trouxe para casa enrolada em sua<br />

capa. Foi quando pude cuidar dela. Ficou escondida até teu<br />

nascimento, confinada entre as paredes de minha casa. Do<br />

guarda, nunca mais tive notícias. Talvez ele não quisesse se<br />

arriscar mais do que o fez e não apareceu mais. Sua mãe<br />

morreu quando você completou cinco anos. Ela ficou doente<br />

com uma peste que afetou quase a metade <strong>dos</strong> habitantes de<br />

Amiens. Não me pergunte por quê, mas nem eu nem você<br />

fomos contamina<strong>dos</strong>, ainda que debaixo do mesmo teto.<br />

Talvez não fosse a nossa hora. Deus foi misericordioso<br />

conosco, e nos poupou.<br />

Claudia parou de falar por um momento e olhou para<br />

Leon, que estava com os olhos cheio de lágrimas.<br />

48


— Este cordão 1, como disse, fora de seu pai, Martin. Sua<br />

mãe arrancou-lhe do pescoço no momento em que conseguiu<br />

soltar um <strong>dos</strong> braços das mãos de um <strong>dos</strong> guardas que a<br />

seguravam. Ela tentou atingir o rosto de Martin com suas<br />

unhas, mas ele se esquivou e ela rasgou-lhe o peito,<br />

arrancando-lhe o amuleto, que caiu ao chão. Após saciar seu<br />

desejo, Martin a deixou chorando, abandonada no aposento.<br />

Depois do pranto, ela recolheu os restos de suas roupas<br />

rasgadas, apanhou o cordão caído e retirou-se, ferida e<br />

humilhada, em direção a seu quarto. Sua mãe sofreu muito<br />

naquela época, Leon. Eu me recordo bem o quanto ela ficou<br />

amargurada. Sempre que pegava o amuleto que guardara, as<br />

lembranças da noite terrível voltavam a sua mente e ela<br />

chorava sem cessar.<br />

— Por quê!? — Interrompeu Leon, com voz trêmula,<br />

mordendo os lábios já banha<strong>dos</strong> de sangue, tamanha era a<br />

força com que pressionava seus dentes.<br />

— O que, meu querido? O que você disse? — Claudia não<br />

entendera o que seu sobrinho lhe falara.<br />

— Por que ela guardou o cordão?<br />

— Bem, no início ela pretendia mostrar para Catherine,<br />

contando-lhe tudo o que havia sucedido, mas o pavor a<br />

impedia. Pavor de Martin, pavor de perder a vida. Depois,<br />

quando percebeu que havia ficado grávida, resolveu guardálo<br />

para seu filho. Sua mãe sempre rogou a Deus que a criança<br />

que se formava em seu ventre fosse um menino, um menino<br />

que ao crescer pudesse reivindicar seus direitos à herança do<br />

senhor de Amiens, e que assumisse seu devido lugar, na<br />

esperança de que Amiens se tornasse um lugar decente para<br />

se viver. Ela depositava todas as esperanças nisso.<br />

1 Este cordão de prata, que pertencera a Martin Lacroix e é entregue a Leon por sua<br />

tia Claudia, possui um pequeno amuleto pendurado com a figura de uma águia com as asas<br />

abertas, sobre duas cabeças de dragão, e fora achado por Martin nas proximidades da<br />

Montanha Serena, nas cercanias da cidade de Amiens, há muitos anos.<br />

49


— Como um bastardo pode ser o governante de uma<br />

cidade, minha tia, como? — Leon sentia uma mistura de<br />

revolta, vergonha e indignação.<br />

— Não diga isso, meu filho! Você é um homem bom,<br />

forte, cheio de vida, bonito. Toda esta cidade seguiria um líder<br />

como você, Leon, acredite!<br />

Por alguns instantes fez-se um silêncio sepulcral dentro<br />

da pequenina sala. Claudia pensava o quanto seu sobrinho<br />

querido não estaria sofrendo com aquela revelação cruel e o<br />

que ele poderia estar pensando naquele momento de dor e<br />

silêncio. Será que sua ira seria tão grande a ponto de matar o<br />

próprio pai? Não, ela não podia acreditar nisso. <strong>Era</strong> mais<br />

crível que Leon tentasse converter o cretino do pai em um<br />

homem bom e honesto. Apesar de tudo, também Martin não<br />

sabia que tinha um filho vivo. Seria uma surpresa para ele e a<br />

chave seria o cordão. O que aconteceria? Estes pensamentos<br />

dominavam Claudia, que não tirava os olhos um só segundo<br />

de seu sobrinho amado.<br />

— O que Michel irá dizer!? — Quebrou-se o silêncio. —<br />

Um grande amigo, que tem sido um verdadeiro irmão, tem<br />

por inimigo mortal o meu p... esta criatura infeliz que agora<br />

descubro ser meu pai. Por que me contou isto, tia Claudia?<br />

— Meu querido, eu havia guardado segredo e desistido<br />

de lhe contar tudo o que disse hoje sobre seu pai, mesmo<br />

porque, você sempre falava sobre aquelas histórias doidas de<br />

deixar Amiens e encontrar um novo lugar para construir<br />

casas, apenas com boas pessoas.<br />

— Não são histórias doidas, minha tia, iremos sair deste<br />

lugar horroroso muito antes do que a senhora imagina.<br />

— Leon, meu querido, está na hora de acordar para a<br />

realidade. Por isso lhe revelei este segredo que guardo há<br />

tantos anos, mesmo antes de você nascer. Você e Michel estão<br />

acorrenta<strong>dos</strong> neste calabouço e não podem fazer mais nada.<br />

Você precisa convencer seu pai a libertá-lo para que possa<br />

interceder por seu amigo.<br />

50


— De forma alguma! Não estamos sós nesta empresa,<br />

minha tia! Outros homens de bondade também estão<br />

envolvi<strong>dos</strong> e irão logo nos tirar daqui.<br />

— Que Deus seja misericordioso conosco uma vez mais,<br />

caso seus amigos não apareçam para nos salvar. — Mais uma<br />

vez fizeram um breve silêncio até que Claudia continuou a<br />

falar. — Viste, foi por isso que nunca lhe contei nada, para não<br />

atrapalhar seus planos, pois você estava muito longe de<br />

realizar os desejos de sua mãe. Eu não podia e nem queria<br />

interferir em seus planos e ideais. Mas agora... agora as coisas<br />

mudaram muito. Estamos aqui presos em um lugar que já foi<br />

ocupado por muitas pessoas que saíram daqui para a morte.<br />

Não podia morrer sem antes lhe revelar toda a verdade sobre<br />

seu pai.<br />

— Já pedi para a senhora não falar assim, tia Claudia! —<br />

Leon, apesar do medo, tentava manter a fé em seus amigos e<br />

mais uma vez repreendia sua tia.<br />

— Sei bem o que estou dizendo, mas vou mudar de<br />

assunto e falarei mais sobre sua infância.<br />

A tia de Leon continuou narrando ainda vários fatos<br />

acerca da infância e da mãe dele. Leon, aturdido, estava ainda<br />

em estado de choque e não mais balbuciou uma palavra<br />

sequer. Limitou-se a ouvir tudo o que sua tia tinha para<br />

contar-lhe. Ao final, depois de umas duas horas, Claudia,<br />

sentada no pequeno banco de madeira crua, recostou a cabeça<br />

no corpo do sobrinho que, devido a tudo o que passara e lhe<br />

fora revelado, agora estava apoiado sobre as frias rochas com<br />

a cabeça enterrada no peito, entregue ao cansaço, dormindo.<br />

<br />

Em uma pequena restinga do litoral de Calais, Gien e<br />

Gourdon se aqueciam perto de uma fogueira que fizeram logo<br />

ao cair da noite. O fogo crepitava e iluminava a pequena<br />

clareira aquecendo-os com certa dificuldade. O lugar estava<br />

muito úmido, pois chovera o dia inteiro e fazia um frio<br />

51


implacável. Mal podiam se mexer de tanta friagem. Olhavam<br />

para as bruxuleantes chamas da fogueira e conversavam sobre<br />

como fora rápida e tranqüila a viagem que fizeram de<br />

Abbeville até aquele local. Os caminhos estavam vazios e com<br />

uma estranha serenidade a viagem inteira fora silenciosa e<br />

quase não se viu ninguém, contrastando com o caminho que<br />

haviam percorrido entre Amiens e Abbeville. Na única parada<br />

que fizeram em toda a viagem, na cidade de Abbeville,<br />

encontraram um povo desesperado, com muita agitação e<br />

desordem em toda a cidade.<br />

Logo descobriram que o pavor da iminente invasão<br />

inglesa não assolava apenas a cidade de Amiens. Muitas<br />

famílias em Abbeville estavam deixando o lugar e fugindo<br />

para o sudeste, com destino à cidade de Reims, ou para o sul<br />

do país, às cidades de Paris e Versalhes, por medo da guerra.<br />

Viram carruagens de to<strong>dos</strong> os tipos, cheias de baús, mobílias e<br />

pessoas com olhares assusta<strong>dos</strong>.<br />

Procuraram saber sobre a filha de Martin Lacroix e<br />

descobriram que até seu casamento, que estava marcado para<br />

o final daquele rigoroso inverno com o senhor de Abbeville,<br />

havia sido adiado. Nem mesmo tão importante acontecimento<br />

era superior à ameaça da perigosa invasão inglesa que<br />

atormentava os corações <strong>dos</strong> cidadãos de Abbeville.<br />

Após algumas horas, quando a madrugada já avançava<br />

silenciosa e a fogueira já se transformara apenas em gravetos<br />

avermelha<strong>dos</strong> em pura brasa, Gourdon jogou um pouco mais<br />

de lenha para alimentar o fogo e se aproximou de Gien. Os<br />

dois irmãos puxaram uma coberta adicional e deitaram-se<br />

para descansar. Decidiram que, numa madrugada fria<br />

daquelas, não valeria a pena ficar de vigia, acorda<strong>dos</strong> à noite<br />

toda. Nem os demônios teriam coragem de sair naquela noite.<br />

Aos primeiros sons da alvorada, com vários pássaros<br />

cantarolando e anunciando uma efêmera melhora no tempo,<br />

Gien Ballec foi o primeiro a acordar, espreguiçando-se<br />

lentamente e levantando meio corpo, ainda enrolado no<br />

52


cobertor. Após um longo bocejo, ao virar-se e dar uma olhada<br />

ao redor, quase morreu de susto ao ver um terceiro cavalo<br />

amarrado próximo aos dele e de seu irmão. Levantou-se<br />

rapidamente e da tranqüilidade passou ao medo e à incerteza.<br />

Quem chegara sorrateiramente? Onde estaria o dono do<br />

misterioso cavalo? Com o coração na boca e sentindo intenso<br />

calor, apesar da fria manhã, Gien, nervoso e suarento, sacudiu<br />

seu irmão bruscamente, fazendo com que levantasse<br />

assustado, censurando-o com uma série de impropérios. Mas,<br />

logo que percebeu do que se tratava, também ficou perplexo e<br />

temeroso.<br />

Perguntavam-se como não haviam se apercebido da<br />

presença de um estranho durante a fria madrugada, mas o que<br />

mais os intrigava era porque o misterioso intruso não os<br />

incomodara, simplesmente ignorando-os. Logo a resposta foi<br />

dada. Inesperadamente um vulto irrompeu de um <strong>dos</strong><br />

inúmeros arbustos que cercavam a clareira, quase os matando<br />

de susto. Com suas espadas em punho e mais trêmulas que<br />

um sino após a badalada, alinharam-se lado a lado, em<br />

posição de defesa. Se bem, que no estado de nervos em que se<br />

encontravam, bastava que o suposto inimigo emitisse um grito<br />

de ataque que os dois camponeses tivessem desfalecido no<br />

mesmo instante.<br />

Para fortuna <strong>dos</strong> irmãos Ballec, o misterioso homem era<br />

Grassac, o mesmo que lhes fora apresentado na última reunião<br />

do Conselho. Tão logo notaram a presença do amigo,<br />

começaram a relaxar. Largaram as espadas e deixaram-se cair<br />

senta<strong>dos</strong>, recuperando a respiração e os batimentos cardíacos.<br />

Grassac aproximou-se lentamente, trazendo duas gordas<br />

lebres abatidas, que serviriam de desjejum naquela manhã fria<br />

e já agitada para os pobres irmãos. Saudou-os e sentou-se com<br />

eles, desejando-lhes bom dia.<br />

— Desculpem, vejo que os assustei. Não era minha<br />

intenção, apenas não quis incomodar o sono de vocês.<br />

53


— Você deve ter percebido que não temos nada de<br />

lutadores ou grandes guerreiros. — Falou Gien, ainda um<br />

pouco nervoso. Ainda que Grassac fosse uma pessoa<br />

conhecida há dois dias, não sabiam o suficiente para confiar<br />

nele.<br />

— Sim, para ser honesto, percebi isso no mesmo dia que<br />

os vi naquela reunião. Nem mesmo Etiènne é um grande<br />

espadachim, ainda que já saiba manusear uma espada.<br />

Conheço guerreiros ao olhar dentro <strong>dos</strong> olhos deles, e só vi<br />

dois naquele grupo. Leon e Michel.<br />

— Mas Etiènne usa macha<strong>dos</strong> de batalha como ninguém!<br />

É capaz de alvejar um inimigo mesmo a vinte metros de<br />

distância. — Retrucou Gourdon, a favor de seu amigo.<br />

— Acha que poderia nos ensinar a lutar como grandes<br />

guerreiros? Será que aprenderíamos? — Gien se empolgara<br />

com as palavras de Grassac e já o tirava por grande guerreiro.<br />

— Sim, meus amigos, eu poderia lhes ensinar a arte da<br />

espada e to<strong>dos</strong> os seus segre<strong>dos</strong>. Mas daí a se tornarem<br />

grandes guerreiros vai depender de até onde vocês estarão<br />

dispostos a ir, pois um grande guerreiro não teme por sua<br />

vida e, agindo assim, vence to<strong>dos</strong> os temerosos. Mas isto não<br />

pode ser agora. O que me traz aqui são os últimos<br />

acontecimentos em Amiens. Muitas coisas aconteceram no<br />

mesmo dia em que vocês deixaram a cidade.<br />

Os irmãos ficaram apreensivos e imaginaram o pior.<br />

Notaram que a fisionomia de Grassac ficara séria, com um ar<br />

severo.<br />

— O que sucede, amigo, conte-nos! — pediu Gourdon.<br />

— Houve um imprevisto. O amigo de vocês chamado<br />

Paul na verdade se chama Gallard e não tem nada de<br />

lenhador. Este cretino é um mercenário cruel, que infiltrou-se<br />

no grupo de vocês, provavelmente para receber algo em troca<br />

de revelar seus nomes a Martin Lacroix. — Os dois irmãos<br />

sobressaltaram-se, e ficaram receosos do que estavam<br />

ouvindo, afinal Paul já os acompanhava há dois anos. —<br />

54


Calma! Tudo o que estou lhes falando poderá ser provado, tão<br />

logo cheguemos a Amiens. E devemos retornar o quanto<br />

antes, porque senão as coisas podem piorar ainda mais. Tenho<br />

certeza de que, a estas alturas, Martin já sabe quem são os<br />

membros de vosso Conselho, pois antes de sair da cidade de<br />

Amiens, presenciei ocultamente o encontro entre Martin e<br />

Gallard.<br />

— Mas não pode ser! Não posso acreditar nisso!<br />

— Mantenha a calma. Estou atrás deste Gallard já faz seis<br />

longos anos. Ele é o culpado pela morte de meus pais. Fez com<br />

que eles fossem condena<strong>dos</strong> por traição ao senhor da cidade<br />

onde vivíamos e sentencia<strong>dos</strong> à forca. Mas isto é uma longa<br />

história e não podemos perder tempo. O que importa é que o<br />

encontrei e agora vingarei meus pais. De certa forma também<br />

estarei ajudando vocês.<br />

— O que faremos? Não sei o que pensar, nem como agir.<br />

Precisamos examinar o litoral e levar notícias a Michel.<br />

— Eu também sei disso. Portanto, comeremos estas lebres<br />

e partiremos tão logo tenhamos verificado a orla. Gien,<br />

prepare a lenha e o assado, enquanto eu e seu irmão vamos<br />

fazer a inspeção do litoral. Ao entardecer sairemos deste lugar,<br />

e amanhã, em torno da hora média estaremos chegando a<br />

Amiens. Lá encontraremos Michel e ele nos dirá o que fazer.<br />

Ele também precisa saber urgentemente qual a verdadeira<br />

identidade do lenhador, para se prevenir.<br />

Rapidamente começaram a faina de organizar as coisas no<br />

acampamento. Apesar de muito desconfiado, Gien concordou<br />

com o planejado e aceitou a ordem de Grassac. O medo de<br />

fazer algo errado e desagradar aos demais membros do<br />

Conselho, era muito maior do que o medo de ser traído por<br />

Grassac. Os irmãos Ballec sempre foram considera<strong>dos</strong> como<br />

grandes amigos e fiéis ao grupo.<br />

Logo em seguida, Grassac e Gourdon partiam em direção<br />

à beira da restinga, para fazer a vistoria de grande parte da<br />

orla de Calais. Gien, como combinado, ficara a preparar a<br />

55


comida de to<strong>dos</strong>. Naquele mesmo dia, ao entardecer, após<br />

comprovarem que várias embarcações inglesas podiam ser<br />

avistadas ao longe, retornariam às pressas à cidade de<br />

Amiens, sem sequer imaginar o caos que lá encontrariam.<br />

56


N<br />

CAPÍTULO IV<br />

Uma visão inesperada<br />

os dois últimos dias, Etiènne ficara escondido na<br />

montanha Serena, em Amiens. Tivera a grande sorte de<br />

perceber toda a movimentação de Alain e seus solda<strong>dos</strong> nas<br />

proximidades de sua casa, no dia em que capturaram Michel e<br />

Leon. Presenciou, oculto atrás de uma das inúmeras árvores à<br />

beira do rio Somme, o trágico desenlace do encarceramento de<br />

seu irmão e seu amigo, os líderes do Conselho. Apavorado,<br />

Etiènne, sem saber o que fazer, tentou encontrar Paul, o<br />

lenhador, por toda a cidade, esgueirando-se <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>.<br />

Não conseguiu encontrá-lo e, após aguardar por várias horas,<br />

presumiu que este pudesse ter se rendido aos homens de<br />

Martin Lacroix, ou ter sido igualmente capturado. Quando<br />

retornou à casa <strong>dos</strong> irmãos Ballec, o desespero foi completo. A<br />

casa de seus queri<strong>dos</strong> amigos também estava completamente<br />

em cinzas.<br />

Etiènne ainda tentou atravessar o bosque e buscar o apoio<br />

de Dízier, sem imaginar que o taberneiro já havia sido<br />

capturado. De qualquer forma, este objetivo também foi<br />

frustrado logo que chegou à entrada do bosque. O lugar<br />

estava repleto de solda<strong>dos</strong> por toda parte. Os homens de<br />

Martin Lacroix haviam fechado todas as passagens e não<br />

havia como contornar o bosque, a menos que encontrasse um<br />

caminho alternativo pela montanha Serena.<br />

Em seu desespero, Etiènne procurou, de alguma forma, se<br />

livrar das garras <strong>dos</strong> homens de Martin. A única saída era<br />

refugiar-se nas montanhas, ou na casa de Paul, que ficava um<br />

pouco mais distante do centro de Amiens. Talvez até pudesse<br />

encontrar o lenhador, já que não o havia encontrado pela<br />

57


cidade. Lá chegando, verificou que o lugar estava vazio.<br />

Agora mais do que nunca, acreditava que ele também devia<br />

ter sido capturado, e permanecer em sua casa seria uma<br />

grande estupidez.<br />

Após incontáveis minutos de tensão tentando encontrar<br />

uma solução inteligente, Etiènne convenceu-se de que não<br />

tinha mais escolha. Devia de fato subir a montanha Serena e<br />

aguardar alguns dias, até que pudesse retornar à cidade e<br />

verificar se a movimentação diminuíra. O maior inconveniente<br />

seria conseguir abrigo nas perigosas entranhas da sinistra<br />

montanha, e ainda, conseguir provisões para garantir sua<br />

alimentação. Com o espírito destruído e grande amargura no<br />

coração, Etiènne subiu a montanha, sentindo-se derrotado,<br />

humilhado e incapaz. Tudo que tinha na vida era seu irmão<br />

Michel, que lhe dera a alegria de participar de um movimento<br />

fraterno tão importante. De uma união que tentaria levar todo<br />

um povo à felicidade, estabelecendo-se em uma terra nova,<br />

onde não haveria injustiças.<br />

Naquela noite, Etiènne dormiu ao relento, onde o frio e a<br />

solidão o cobriram silenciosos, em meio a uma vegetação<br />

sombria, que parecia rir e zombar de sua desgraça. Passou a<br />

madrugada inteira inquieto, com pesadelos e sobressaltos<br />

repentinos em seu perturbado sono.<br />

No dia seguinte, ao amanhecer cheio de orvalho sobre o<br />

corpo fazendo com que ficasse com as roupas úmidas, Etiènne<br />

levantou assustado, e por um momento pensou que havia<br />

sonhado, ou melhor, havia tido um enorme pesadelo. Mas<br />

uma simples olhada ao redor fez com que encarasse a dura<br />

realidade. Tudo era verdade, tinha realmente acontecido.<br />

Diante da triste situação, começou a vagar pela mata,<br />

procurando alguma caça e, ao mesmo tempo, tentando<br />

organizar as idéias, para agir de forma ligeira e eficaz. Passou<br />

muitas horas caminhando e não conseguiu encontrar nada,<br />

58


nem caça, nem idéias. Sabia da existência de uma grande<br />

gruta, próxima ao topo do lado oeste da montanha, e resolveu<br />

descansar um pouco antes de procurá-la para o novo pernoite.<br />

Já abatido pela péssima noite e pela incômoda fome que se<br />

pronunciava, ficou ali um bom tempo, preso num labirinto de<br />

pensamentos, que não o levavam a lado algum.<br />

<br />

Os dias em Amiens foram se tornando cada vez mais<br />

agita<strong>dos</strong>, principalmente depois <strong>dos</strong> incêndios na taberna de<br />

Dízier e nas casas de Michel Montbard, <strong>dos</strong> irmãos Ballec e de<br />

Leon Troujard. Apesar da carência de provas concretas, to<strong>dos</strong><br />

na cidade atribuíram tais incêndios aos supostos invasores<br />

ingleses. O rebuliço que se seguiu foi incomensurável. Já se<br />

ouviam pessoas comentando sobre massacres nas cidades<br />

vizinhas, que teriam sido totalmente incendiadas.<br />

O que inicialmente parecia ser uma excelente estratégia<br />

para aniquilar os membros do Conselho, acabou se<br />

transformando em uma grande desgraça para Martin Lacroix.<br />

Muitas famílias, apavoradas com a iminente invasão <strong>dos</strong><br />

ingleses, começaram a abandonar seus lares e fugir da cidade.<br />

A desordem era completa pelas ruas de Amiens.<br />

Martin Lacroix, sem o controle da situação, vendo que as<br />

coisas haviam saído muito mal, enviou dois terços de suas<br />

tropas para os limites da cidade, na tentativa de impedir que<br />

os moradores a abandonassem.<br />

O caos era completo, com muitos moradores presos em<br />

sua própria cidade, acampa<strong>dos</strong> em grandes grupos, próximos<br />

ao limite sul de Amiens, sendo vigia<strong>dos</strong> pelas tropas de<br />

Martin.<br />

Aproveitando a oportunidade da maioria <strong>dos</strong> habitantes da<br />

cidade ter se dispersado, Martin ordenara que fosse preparada<br />

a execução de seus prisioneiros. Havia decidido que a punição<br />

59


para os traidores de Amiens seria a tortura, seguida de<br />

decapitação. Executaria os principais membros do Conselho<br />

em público, como demonstração, para os poucos habitantes<br />

que ainda estavam na cidade, do que acontecia com os<br />

inimigos do rei Philipe. Claro que a acusação era ilícita e<br />

infundada, criada por Martin como desculpa para eliminar<br />

seus inimigos, de acordo com os preceitos da França. Uma<br />

acusação de traição à França era, logicamente, algo muito<br />

sério, mas conduzida de forma mais cautelosa. Na verdade,<br />

acusa<strong>dos</strong> e acusadores deveriam apresentar-se em Paris, o fato<br />

deveria ser apresentado ao rei, e somente este poderia julgar e<br />

condenar, conforme os preceitos de seu reinado.<br />

Em algumas vilas, povoa<strong>dos</strong> e cidades francesas,<br />

aconteciam torturas, execuções e abuso de poder por parte de<br />

seus governantes diretos, mas isto, até certo ponto, era sabido<br />

e “permitido” pelo rei. Afinal, para manter a ordem e o<br />

respeito em tempos tão conturba<strong>dos</strong>, de vez em quando era<br />

preciso força, e disso o rei Philipe entendia bem. O problema é<br />

que nem tudo era permitido. Usar o nome do rei para<br />

condenar e executar cidadãos franceses por traição à França,<br />

sem o conhecimento de sua majestade, era algo inaceitável.<br />

<strong>Era</strong> como se fosse um desaforo, ou melhor, passar por cima da<br />

autoridade maior. Este seria o segundo grande erro de Martin.<br />

Começava a se afundar em seus próprios planos, e logo estaria<br />

cometendo mais erros graves. Os carrascos, animadíssimos<br />

com a decisão de Martin, logo se puseram a trabalhar na<br />

montagem do macabro cenário de execução.<br />

Martin Lacroix estava indócil, não acreditava que enfim o<br />

grande dia chegara. Iria eliminar de uma vez por todas o<br />

maldito Conselho que tanto atormentara suas noites de sono<br />

durante meses. Havia decidido que tão logo fossem<br />

executa<strong>dos</strong> seus prisioneiros, as fronteiras de sua cidade<br />

seriam liberadas, pois nada mais teria a temer. Os moradores<br />

60


de Amiens acabariam retornando a seus lares sem a orientação<br />

eficaz que Michel e seu grupo poderiam lhes oferecer.<br />

<br />

Etiènne, com aparência horrível e ainda mais abatido,<br />

após um longo descanso, continuou perambulando através da<br />

Montanha Serena, ainda sem encontrar o rumo certo da gruta.<br />

Faminto e cansado, tropeçava a todo momento em pedras e<br />

enormes raízes de carvalho, que se enroscavam pelo chão.<br />

Pensava se não estaria perdido, pois acreditava estar passando<br />

pelo mesmo lugar várias vezes.<br />

Mais um dia estava se acabando e as trevas começavam a<br />

cobrir a floresta da montanha. Etiènne explodia de dor de<br />

cabeça e sentia-se tonto. Cambaleante, recostou-se em uma<br />

grande rocha e, por sorte, percebeu uma fenda quase que<br />

oculta no lado direito da rocha, na parte anterior. <strong>Era</strong> a<br />

entrada de uma gruta escura como breu. Tentava olhar através<br />

da escuridão, procurando um possível dono da gruta, talvez<br />

um animal feroz, mas não conseguia enxergar nada. Forçava a<br />

vista, mas era impossível vencer a escuridão. Lentamente,<br />

apoiando-se com uma das mãos à fria rocha, e com a outra<br />

estendida à frente, foi avançando em direção ao desconhecido.<br />

De súbito, surgiu um clarão, e Etiènne viu algo que parecia<br />

estar se aproximando vagarosamente. Parecia ser alguém<br />

andando em sua direção, mas não ouvia passos. Havia um<br />

profundo silêncio. Ficou apreensivo, temeroso. O suor lhe<br />

escorria pelas têmporas e seu batimento cardíaco se acelerou,<br />

rompendo o silêncio que imperava no interior da gruta. Podia<br />

ouvir seu próprio coração retumbando e ecoando por toda<br />

parte.<br />

Quando aquilo ou, aquele, como explicar aquela<br />

aparição... Chegou perto de Etiènne, ele simplesmente<br />

desfaleceu, ao ouvir uma voz suave e melodiosa — O que<br />

61


procuras neste lugar ? — O baque seco do corpo de Etiènne<br />

contra o solo da gruta foi o último som que ecoou naquela<br />

escuridão, até que ele despertasse novamente.<br />

<br />

Grassac e Gien, ao chegarem às praias mais ermas de<br />

Calais, avistaram as embarcações inglesas se aproximando e<br />

perceberam que a situação iria esquentar antes do que<br />

imaginavam. Devem ter contado cerca de quarenta enormes<br />

galeões, fora as embarcações de menor porte. Pela experiência<br />

de Grassac, aquela frota devia trazer no mínimo uns cinco mil<br />

solda<strong>dos</strong> ingleses. Considerando que o rei inglês, Eduardo IV,<br />

era um excelente estrategista de guerra, no mínimo mais duas<br />

frotas deste porte deveriam estar aportando em praias<br />

próximas às cidades vizinhas a Calais. Não imaginavam estar<br />

presenciando o início de uma guerra que se tornaria famosa<br />

na história da humanidade, a Guerra <strong>dos</strong> Cem Anos.<br />

Juntaram seus pertences apressadamente e partiram mais<br />

rápido do que nunca, retornando a Amiens, para levar a<br />

informação aos membros do Conselho. Passaram pelo<br />

acampamento e Gourdon mal teve tempo de arrumar suas<br />

coisas, sendo praticamente obrigado a largar vários utensílios<br />

para trás.<br />

No caminho, apesar da velocidade em que galopavam,<br />

desviando-se de galhos e pedras pelo acidentado percurso que<br />

faziam, Grassac, sem dar muita atenção aos obstáculos, ia<br />

sempre mais à frente que os camponeses, refletindo em algo<br />

que vinha há alguns dias ocupando sua mente: o falso<br />

lenhador, cujo verdadeiro nome era Gallard Gellion.<br />

Gallard era um verdadeiro mercenário, daqueles que, ao invés<br />

de usar a espada, usava a língua ferina. Entregava pessoas<br />

procuradas, inocentes ou não, fazia intrigas entre pessoas<br />

poderosas, usava o dom da palavra com sabedoria, e<br />

62


principalmente, era uma pessoa que não tinha nada nem<br />

ninguém a que se prender, o que tornava o seu trabalho muito<br />

mais fácil, pois assim deixava de ser uma pessoa vulnerável.<br />

Há alguns anos, Gallard teria entregue o pai de Grassac à<br />

Santa Inquisição, pois era procurado como herege, por um <strong>dos</strong><br />

maiores inquisidores da época. Por isso, Grassac tivera que<br />

mentir aos irmãos Ballec, com medo de suas reações ao vê-lo<br />

envolvido em um assunto como heresia. Como saber se iriam<br />

acreditar em sua versão da história? Decidiu que revelaria a<br />

verdade numa outra ocasião.<br />

Grassac aprendeu muitas lições com seu pai, e a mais<br />

importante foi a de honrar seus compromissos e palavra e,<br />

sobretudo, amar e respeitar a vida e as pessoas. Seu pai, assim<br />

como seu avô, foram Cavaleiros Templários (Cavaleiros do<br />

Templo de Salomão), e fizeram muitas obras em nome de<br />

Deus. Sabia que seu pai não era herege, e que fora queimado<br />

vivo injustamente pelos loucos que, sob a bandeira da justiça e<br />

de Deus, faziam o que queriam para satisfazer a própria<br />

vontade e alimentar o ego. Desde aquele dia fatídico, a vida de<br />

Grassac nunca mais fora a mesma. É fato que os Templários<br />

tinham sido declara<strong>dos</strong> hereges pela Igreja e a maioria deles<br />

fora capturada e executada. Mas nem to<strong>dos</strong> haviam se<br />

desvirtuado do verdadeiro caminho da doutrina de sua<br />

Ordem. Seu pai era um homem bom e honesto, seguia a<br />

verdadeira doutrina com fidelidade, mas cedeu, tanto quanto<br />

seu avô, aos encantos femininos e às tentações do amor,<br />

abandonando a Santa Ordem, para formarem suas famílias.<br />

Atônito, viu seu amado pai sucumbir em chamas,<br />

gritando alucinado de dor, uma cena que jamais sairia de sua<br />

mente enquanto vivesse. Tentou acudi-lo e logo foi preso e<br />

levado a intenso interrogatório. Os acusadores queriam a todo<br />

custo encontrar evidências de que ele também era herege,<br />

assim como seu pai. Apesar das astutas investidas, nada<br />

63


conseguiram provar e Grassac teve de ser libertado. No<br />

interrogatório, acabou por conhecer o delator de seu pai, e a<br />

partir deste dia jurou não morrer antes de vingá-lo.<br />

Não sabia ainda como iria se comportar frente a Gallard<br />

quando estivessem a sós, mas ansiava por este momento mais<br />

do que qualquer coisa na vida. E com estes pensamentos,<br />

sobre seu pai e sobre Gallard, continuava seu galope<br />

desvairado, fazendo com que o pobre cavalo de Etiènne<br />

praticamente voasse, devorando quilômetros e mais<br />

quilômetros, distanciando-se ainda mais <strong>dos</strong> irmãos<br />

camponeses. O que Grassac não esperava era encontrar a<br />

situação calamitosa que ocorria em Amiens, muito menos que<br />

praticamente metade <strong>dos</strong> membros do Conselho estivessem<br />

presos no castelo de Martin Lacroix. Teriam que pensar em<br />

algum plano rápido e eficaz para reverterem a dramática<br />

situação.<br />

Quando já se aproximavam de Abbeville, viram inúmeras<br />

colunas de fumaça ao longe que, pela direção, só poderiam ser<br />

provenientes de Amiens. Gourdon e Gien trocaram olhares, já<br />

presumindo o pior. Teriam momentos difíceis pela frente.<br />

<br />

Ao despertar, Etiènne viu-se num lugar cheio de cristais<br />

reluzentes por toda a sua volta. Estava deitado sobre um<br />

enorme cristal liso, envolto por um comprido manto prateado,<br />

cujo material era de difícil identificação. Uma mistura entre<br />

seda e cetim, que fazia o manto reluzir tanto quanto o resto do<br />

ambiente. Seus olhos estavam incomoda<strong>dos</strong> com a<br />

luminosidade do lugar, e com a mão protegendo a vista,<br />

tentava se acostumar à claridade. À medida em que sua visão<br />

ia se acostumando, aos poucos ia tentando identificar os<br />

objetos que ali se encontravam, to<strong>dos</strong> muito estranhos e<br />

desconheci<strong>dos</strong>. Não sabia onde estava e muito menos há<br />

64


quanto tempo estivera desacordado. Tentava lembrar como foi<br />

parar ali e não conseguia. A única coisa de que se lembrava<br />

era da floresta e da fome que, por sinal, estava ainda mais<br />

agressiva agora.<br />

Confuso, Etiènne tentou sair do cristal em que estava<br />

deitado. Cobriu-se com a manta, pois fazia frio onde estava, e<br />

colocou um pé no chão. Percebeu que estava descalço. Aí se<br />

deu conta de que não usava suas vestes, e sim uma comprida<br />

túnica branca, de tecido fino e leve.<br />

Ao levantar-se, ouviu uma voz suave — Não devias se<br />

levantar ainda, precisa se alimentar. — Etiènne virou-se<br />

bruscamente, assustado, e viu uma cena inesquecível. Uma<br />

mulher, se é verdade que aquilo era uma mulher, de pele<br />

branca como a neve, vestida com uma túnica parecida com a<br />

que estava trajando, de cabelos longos e lisos, negros como o<br />

ébano, lustrosos como a mais fina seda da Pérsia, vindo em<br />

sua direção. A criatura possuía um par de asas não muito<br />

grandes, revestidas de plumas brancas, cinzas e prateadas, e<br />

segurava uma tigela de cristal, quase que invisível, cheia de<br />

morangos enormes.<br />

Mudo, sem forças para emitir uma palavra sequer, Etiènne<br />

ficou ali, congelado. Não movia um músculo de seu corpo.<br />

Apesar da enorme fome, nem deu muita atenção aos<br />

suculentos morangos da tigela. Simplesmente não conseguia<br />

tirar os olhos de tão bela imagem. Apesar de temeroso, não<br />

podia acreditar que aquele ser celestial fosse capaz de alguma<br />

maldade, tamanha era a sua beleza e suavidade, ao falar e ao<br />

caminhar.<br />

— Trouxe estes dramos para ti, sei que estás faminto e<br />

precisas te alimentar. Não tenhas medo, são muito nutritivos.<br />

Etiènne estendeu a mão e pegou a tigela. Não sabia muito<br />

bem como agir e apenas falou seu nome:<br />

65


— Meu nome é Etiènne Montbard, e sou da cidade de<br />

Amiens. Estou à procura de um abrigo...<br />

— Não precisas me falar nada, apenas alimente-se para que<br />

não adoeça. — Com estas palavras pegou um <strong>dos</strong> enormes<br />

morangos e levou-o à boca de Etiènne, que não teve coragem<br />

de recebê-lo desta forma e tomou-o em sua própria mão. —<br />

Meu nome é Sindazel e, como podes perceber, não sou uma<br />

mulher comum. Na verdade, apesar de sermos muito<br />

parecidas, não sou como as mulheres de tua raça.<br />

Etiènne a interrompeu — Como assim da minha raça!? Não<br />

é humana? O que é, então? E que lugar é este? Por acaso estou<br />

morto? Isto é o Paraíso? — De repente, Etiènne começou a<br />

fazer inúmeras perguntas sem parar, até que Sindazel falou<br />

novamente.<br />

— Calma! Não fique assustado, posso te revelar algumas<br />

coisas e tentar esclarecer tudo. Sou da raça <strong>dos</strong> Vangis, e<br />

habitamos este lugar há milênios. Tu não estás morto, e meu<br />

lar não é o Paraíso que pensas. — Sindazel aproximou-se de<br />

Etiènne e colocou a mão em seu rosto. Nunca em toda a sua<br />

vida Etiènne experimentara tal sentimento, a mão macia de<br />

Sindazel em seu rosto e a proximidade daquela criatura<br />

perfumada o deixaram em êxtase. Apesar de não deixar<br />

transparecer, Sindazel estava na verdade consultando a mente<br />

de Etiènne, pois tinha este poder.<br />

Com a proximidade, Etiènne não resistiu e passou um olhar<br />

pelo corpo de Sindazel, tentando identificar se era perfeito<br />

tanto quanto seu rosto e cabelo. Mas, neste mesmo instante,<br />

Sindazel afastou-se rapidamente e virou-se envergonhada. —<br />

Sei que és um homem bom, e não devia pensar nisso. Já disse<br />

como somos muito diferentes, e acrescento, somos muito<br />

distantes também.<br />

Sem saber o que dizer diante da constrangedora situação<br />

que criara, Etiènne não sabia se devia desculpar-se ou deixar o<br />

66


assunto de lado, mas continuava admirando Sindazel, que<br />

agora de costas mostrava as maravilhosas asas e, a essa<br />

distância, o belo corpo que a túnica tentava ocultar. Os cabelos<br />

negros escorrendo entre as asas atingiam quase a cintura de<br />

Sindazel. Etiènne estava vidrado em sua anfitriã.<br />

— Meu pai pode ajudar-te em teu objetivo, mas somente tu<br />

poderás libertar o teu irmão. — Bastaram estas palavras e o<br />

encanto quebrou-se. Etiènne, como que voltando a si,<br />

esqueceu-se de contemplar Sindazel e voltou sua atenção para<br />

o que ela acabara de falar. — Há muitos anos esperávamos por<br />

este dia, e eu fico feliz por ter sido a primeira Vangi a conhecer<br />

um homem, um ser humano. Meu pai o conduzirá até as terras<br />

onde teu povo iniciará uma nova vida.<br />

Interrompendo o discurso de Sindazel, Etiènne questionou<br />

como ela sabia tanto sobre sua vida e missão.<br />

— Como soubeste que procuro um novo lar? E como soube<br />

que meu irmão está preso? Por acaso estava me vigiando?<br />

— Não! Quer dizer, em parte sim! — desta vez foi Sindazel<br />

quem ficou constrangida e ruborizada. Como dizer que<br />

invadiu a mente de Etiènne? — Eu o acompanhei de longe<br />

durante os dois últimos dias e noite, e acabei descobrindo<br />

algumas coisas porque falaste dormindo, em teus pesadelos.<br />

— apesar de não ser nada comum um Vangi mentir, Sindazel<br />

viu-se encurralada e não encontrou outra alternativa. Como<br />

no primeiro encontro entre Vangis e <strong>Homens</strong> já revelar um<br />

trunfo, mostrando um <strong>dos</strong> seus mais importantes poderes?<br />

Etiènne, que era forte o suficiente para vencer tentações,<br />

decidido resolveu ignorar as explicações da mulher Vangi e<br />

retirar-se do lugar.<br />

— Não importa! Quero ir embora! Agradeço a comida e<br />

hospitalidade, mas preciso resolver meus problemas e tentar<br />

resgatar meu irmão. Agradeça a seu pai, mas posso me virar<br />

sozinho na busca de um lugar para habitar. Não tenho mais<br />

67


tempo a perder, não tenho a vida toda para ficar aqui! Então,<br />

vai me mostrar a saída ou terei que encontrá-la sozinho? —<br />

Sindazel não esperava esta atitude de Etiènne e ficou confusa.<br />

Na verdade, também estava experimentando sensações que<br />

nunca sentira antes. Estaria se envolvendo com Etiènne, por<br />

ele ser tão diferente de seu povo, impulsivo e tempestuoso.<br />

Havia trocado sua roupa, examinado seu corpo em detalhes,<br />

invadido a privacidade de seus pensamentos e,<br />

principalmente, quando ele falou em não ter a vida toda, isto a<br />

comoveu e mexeu verdadeiramente com seus sentimentos.<br />

Teve compaixão por ele, carinho e afeto. Os Vangis são eternos<br />

até que suas vidas sejam tiradas por assassinato ou acidente.<br />

Não adoecem e não morrem do cansaço da vida.<br />

— É necessário que eu o apresente a meu pai. Pois tu vens<br />

para que uma antiga profecia seja realizada! Enquanto vestes<br />

tuas roupas, irei chamá-lo.<br />

— Minhas roupas, Humpf! Quem tirou minhas roupas?<br />

— Estão ali sobre aquele cristal, irei chamar meu pai, ele lhe<br />

revelará sobre os desígnios que o aguardam — sem responder<br />

o óbvio a Etiènne, Sindazel saiu apressadamente por uma<br />

fenda que dificilmente ele imaginaria ser uma passagem. O<br />

jovem ficou solitário por alguns instantes. Perdido em seus<br />

pensamentos, tentando encontrar uma razão para estar ali<br />

naquele estranho lugar. Teria sido um chamado de Deus? Por<br />

um momento deixou suas dúvidas de lado e tornou a pensar<br />

em Sindazel, naquela criatura linda, deliciosamente<br />

perfumada.<br />

Essa criatura pensa que é esperta. Vou deixá-la numa<br />

situação complicada. Não vou colocar roupa nenhuma, quero<br />

ver a reação dela diante de seu pai, pensou Etiènne, querendo<br />

deixá-la constrangida diante de seu pai. Mas já tinha um plano<br />

em mente para reverter a situação constrangedora. Mesmo<br />

68


porquê, deveria estar preparado para a reação do papai Vangi,<br />

também.<br />

Passa<strong>dos</strong> alguns instantes, Sindazel retornou acompanhada<br />

de um Vangi que devia ter quase dois metros de altura. Ao<br />

contrário das asas dela, as de seu pai eram maiores e ainda<br />

mais exuberantes. Alto sim, porém forte, com músculos bem<br />

distribuí<strong>dos</strong> por todo o corpo. Cabelos doura<strong>dos</strong> e<br />

encaracola<strong>dos</strong> que lhe escorriam pelos ombros como uma<br />

cascata de ouro reluzente, os olhos grandes e verdes como<br />

uma esmeralda. Apresentava uma face austera, mas jovial e<br />

bela ao mesmo tempo. Parecia um arcanjo do Senhor. Ao<br />

contrário da túnica que Sindazel usava, aquele Vangi vestia<br />

uma túnica curta, com uma espécie de cordão prateado<br />

dividindo-a em parte inferior e superior, sem mangas. Ao<br />

olhar para Etiènne, o Vangi deu uma estridente gargalhada,<br />

revelando dentes belíssimos, brancos como pérolas, perfeitos.<br />

Etiènne, sem entender o motivo da graça, ficou quieto,<br />

observando aquele ser esplendoroso.<br />

— Filha, destes roupas femininas para nosso hóspede!? — e<br />

o pai de Sindazel continuava sorrindo. Como dizem, o feitiço<br />

virou contra o feiticeiro, pois agora era Etiènne o<br />

constrangido. E Sindazel riu-se com a galhofa de seu pai.<br />

— Meu nome é Granuzael! Minha filha já havia me falado<br />

sobre ti e eu esperava ansiosamente para poder conversar<br />

alguns instantes contigo. — O Vangi colocou a mão no ombro<br />

de Etiènne, esperando uma reação positiva. Quase que<br />

intimidado, Etiènne sentou-se novamente no grande cristal<br />

onde estivera deitado.<br />

Quebrando um pouco o clima, Etiènne questionou como os<br />

Vangis, pelo menos Granuzael e Sindazel, falavam tão bem e<br />

fluentemente a língua francesa. E teve que se contentar com a<br />

resposta óbvia, pois não estavam também na França? A única<br />

diferença é que viviam dentro de profundas cavernas.<br />

69


Etiènne, insistiu em afirmar que tratavam-se de anjos do<br />

Senhor, e que estava no Paraíso, mas como Sindazel,<br />

Granuzael dissuadiu-o dessa idéia, ratificando o que a filha<br />

revelara anteriormente. <strong>Era</strong>m apenas de uma raça muito<br />

parecida com a <strong>dos</strong> seres humanos, todavia, com muitas,<br />

muitas distinções.<br />

Granuzael revelou a Etiènne sobre a profecia existente na<br />

terra para onde deveria conduzir seu povo, afirmando que<br />

seria a semente de uma nova era, num lugar maravilhoso que<br />

abrigara todas as raças superiores que já existiram no mundo,<br />

antes mesmo da era <strong>dos</strong> homens. Segundo a Profecia e, na<br />

interpretação <strong>dos</strong> Vangis, acreditavam que seriam eles, os<br />

Vangis, que levariam os homens para a nova terra.<br />

Etiènne ouviu a tudo incrédulo, mas sentia-se ao mesmo<br />

tempo maravilhado. <strong>Era</strong>, sem a menor sombra de dúvida, uma<br />

dádiva de Deus, estar entre os eleitos que povoariam aquela<br />

nova terra da qual Granuzael lhe contava. Não poderia ser<br />

apenas uma mera coincidência, o fato de estarem buscando<br />

novas terras, e estar ali diante daquele criatura fantástica,<br />

falando-lhe sobre uma Antiga Profecia. Tinha de ser algo<br />

especialmente divino o que estava vivenciando.<br />

Granuzael contava maravilhas sobre a nova terra que<br />

esperava por Etiènne, e este o ouvia cada vez mais<br />

entusiasmado. Alertou-o, contudo, sobre perigos que ele<br />

desconhecia, pois também encontraria muitos obstáculos, <strong>dos</strong><br />

quais se absteve de falar, pois não queria assustar o homem,<br />

ou mesmo deixá-lo temeroso de conhecer a nova terra.<br />

70


A<br />

CAPÍTULO V<br />

O arauto do rei<br />

o retornar de sua segunda patrulha, Alain informou a seu<br />

senhor que infelizmente não fora possível encontrar os<br />

demais membros do Conselho e que era óbvio, que eles já não<br />

estavam mais na cidade. Martin irritou-se com a situação e<br />

lamentou muito não estar com to<strong>dos</strong> captura<strong>dos</strong>.<br />

Transtornado, decidiu executar os que já estavam presos<br />

imediatamente, e ordenou que os preparativos da execução<br />

fossem concluí<strong>dos</strong> com brevidade. Gallard Gellion, mais<br />

calmo e não envolvido tão emocionalmente ao caso quanto<br />

Martin, orientou-o a não executar to<strong>dos</strong> os prisioneiros de<br />

uma só vez, para evitar que havendo uma possível fuga, não<br />

lhe escapassem to<strong>dos</strong>. <strong>Era</strong> mais prudente ir eliminando-os um<br />

a um. Apesar de Martin detestar concordar com as idéias de<br />

outras pessoas, teve que admitir que o sugerido pelo<br />

mercenário era mais prudente, e assim ordenou que fosse.<br />

Após uma longa e ansiosa espera, os carrascos apareceram<br />

trazendo Michel Montbard arrastado pelos braços. Estava<br />

muito fraco, pois mal se alimentara nos últimos dois dias de<br />

cativeiro. Os demais preparativos continuavam a ser<br />

providencia<strong>dos</strong> e se tudo corresse de acordo com o planejado<br />

pelo perverso senhor de Amiens, no final da tarde estaria se<br />

vendo livre para sempre do pobre Michel. As horas passavam<br />

e cada vez mais a situação se complicava para os<br />

Conspiradores.<br />

A notícia da execução não fora divulgada bem cedo para o<br />

povo, como era o costume nos casos de condenação, então a<br />

71


execução fora reprogramada para aquele dia ao final da tarde.<br />

Mas ainda assim, poucas pessoas compareceram ao castelo<br />

para presenciar o fato, pois muitas estavam nas regiões<br />

limítrofes com Beauvais, ao sul de Amiens. Em outras<br />

ocasiões, este tipo de programação contava com a presença de<br />

praticamente um terço da população de Amiens.<br />

Um sol cálido banhava o cenário de execução, mantendo o<br />

clima frio que lembrava a permanência do rigoroso inverno.<br />

De pé, com as mãos atadas por trás do corpo e um capuz<br />

escuro ocultando sua cabeça, Michel aguardava seu destino<br />

manifestar-se. Medo e angústia o dominavam com mais<br />

intensidade naquele momento, que antecedia sua morte.<br />

Sentia um nó apertando sua garganta e ficou imaginando o<br />

quanto foi bom viver naquela cidade e tudo o que poderia ter<br />

realizado por aquele povo sofrido se os planos tivessem saído<br />

de acordo com o que havia planejado.<br />

Chegara o momento! Seus amigos, Leon e Dízier,<br />

permaneciam encarcera<strong>dos</strong> como aconselhou Gallard, sem<br />

saber que Michel já estava prestes a ser executado. Do lado de<br />

fora, no pátio central do castelo, Martin subiu ao cadafalso<br />

para confirmar que seu prisioneiro estava devidamente<br />

amarrado. Após certificar-se de que tudo estava preparado<br />

como havia ordenado, esticou um papiro que trazia enrolado<br />

em sua mão, dirigiu-se aos poucos curiosos que estavam<br />

presenciando a condenação e começou a pronunciar a<br />

acusação de Michel Montbard. Enquanto Martin falava, os<br />

irmãos Ballec seguindo o plano traçado por Grassac,<br />

chegavam às portas do castelo com uma grande carroça<br />

abarrotada de feno. Vieram dissimulando não saber o que se<br />

passava, para fazer queixa do incêndio ocorrido em suas<br />

casas. Na verdade, o objetivo era introduzir Grassac no castelo<br />

para que ele tentasse libertar os prisioneiros e atrasar ao<br />

72


máximo a execução de Michel, com a esperança de também<br />

libertá-lo.<br />

Alain, o capitão da guarda, sempre atento a tudo, percebeu<br />

a agitação com seus solda<strong>dos</strong> à entrada do castelo e alertou<br />

seu senhor, que interrompeu o discurso desviando o olhar<br />

para a contenda. Aos poucos, os empurrões e troca de<br />

impropérios foram dando lugar a agressões mais violentas de<br />

ambas as partes aumentando ainda mais o tumulto. Agora<br />

vários curiosos já chegavam perto incitando os envolvi<strong>dos</strong> na<br />

briga.<br />

Não demorou muito e outros solda<strong>dos</strong> juntaram-se aos<br />

sentinelas da entrada. Chegaram de espadas em punho<br />

acertando os irmãos camponeses com a lateral das lâminas,<br />

dando lambadas em seus braços e pernas. Gien sofreu um<br />

pequeno corte em uma das pancadas desferidas pelos<br />

solda<strong>dos</strong>. Cederam à pressão <strong>dos</strong> guardas e se renderam, mas<br />

ainda clamavam por justiça e aos bra<strong>dos</strong> culpavam Martin<br />

pela situação da cidade e pelos incêndios ocorri<strong>dos</strong> nos<br />

últimos dias. A situação não estava de todo resolvida e o<br />

tumulto ainda permanecia, porém em direção ao centro do<br />

pátio principal do castelo.<br />

A carroça foi imediatamente confiscada pela guarda e<br />

conduzida ao estábulo, mas..., Gallard, com um tom de voz<br />

incisivo, ordenou que os solda<strong>dos</strong> parassem onde estavam.<br />

Martin olhou surpreso para Gallard sem saber o motivo de<br />

tamanha insolência. Afinal, como podia um estranho dar<br />

ordens a seus homens?<br />

— Senhor, perdoe-me a precipitação, mas aquela carroça<br />

pode nos trazer surpresas desagradáveis, se me permite<br />

explicar?<br />

— Não é preciso! — retrucou Martin com um olhar de<br />

desprezo. Entendera exatamente o que o mercenário e espião<br />

queria dizer, pois era um homem sagaz, ordenando na mesma<br />

73


hora que seus solda<strong>dos</strong> verificassem o enorme monte de feno<br />

com suas lanças.<br />

— O que está me intrigando muito é ver estas duas<br />

criaturas surgirem às portas de meu castelo, depois de tantas<br />

buscas infrutíferas realizadas por meus homens. — Comentou<br />

Martin, referindo-se aos irmãos camponeses.<br />

Neste momento, os irmãos Ballec apesar do frio,<br />

começaram a transpirar muito devido a tensão. Temiam que o<br />

plano fosse por descoberto e acabassem to<strong>dos</strong> presos. Já<br />

haviam se acalmado, mas ao ver as incessantes estocadas de<br />

lança no monte de feno começaram a perder o controle<br />

novamente, mas agora haviam vários solda<strong>dos</strong> ao redor.<br />

Gallard, ao ver o nervosismo <strong>dos</strong> irmãos camponeses, teve<br />

uma nova idéia e a revelou a Martin.<br />

— Senhor, não vamos perder tempo e correr riscos<br />

desnecessários. Que tal incendiar esta carroça. Assim teríamos<br />

certeza de que qualquer possível risco se transformará em<br />

cinzas. — e deu um ligeiro sorriso ao concluir a frase.<br />

A insatisfação de Martin aumentava cada vez mais com os<br />

incessantes palpites do mercenário. Mas teve que concordar<br />

mais uma vez com a ilustre idéia de Gallard e ordenou que<br />

ateassem fogo à carroça.<br />

Neste momento, os Ballec não agüentaram mais e o<br />

desespero, enfim, venceu o medo. Os dois se agitaram como<br />

loucos e escaparam aos guardas, começando uma correria<br />

desvairada. Esta atitude fugia completamente do plano<br />

original traçado por Grassac. De certa forma, acabaram<br />

ajudando. Devido à fuga e ao corre-corre, as atenções<br />

voltaram-se para os dois camponeses proporcionando uma<br />

excelente oportunidade para Grassac. Ao contrário do que<br />

muitos podiam imaginar, o forasteiro vinha agarrado aos<br />

eixos da carroça, oculto na parte inferior, por baixo do estribo.<br />

Nenhuma lança o atingiria neste ponto, mas do fogo não teria<br />

74


como escapar. Rápido e sorrateiro como uma raposa, soltou-se<br />

e rolou para o lado oposto ao tumulto, ficando escondido atrás<br />

da carroça. Um soldado mais desgarrado do grupo ouviu um<br />

baque seco quando o corpo de Grassac caiu ao solo.<br />

Desconfiado, contornou a carroça cautelosamente, mas foi<br />

surpreendido pela agilidade do forasteiro que com um golpe<br />

rápido e certeiro, desacordou o soldado. Arrastou-o para<br />

próximo de si, e aos poucos, mas sempre agitado e com muita<br />

atenção, foi se compondo com as vestes do soldado<br />

desmaiado. Quando finalmente ficou pronto, colocou suas<br />

próprias roupas na carroça, pegou uma tocha que estava<br />

pendurada próxima a entrada lateral <strong>dos</strong> aposentos da guarda<br />

e incendiou a carroça. Arrastou o soldado desacordado que<br />

estava perto da carroça em chamas, e o recostou sobre a<br />

parede, deixando-o em segurança. Chegou a olhar a correria<br />

de longe, mas não deu muita atenção, pois tinha que agir com<br />

muita rapidez. Tudo parecia perfeito para seu plano de<br />

penetrar no Castelo, até o triste desenlace da situação.<br />

Gourdon, percebendo o fogo, parou de correr e ficou<br />

amargurado observando a carroça. Parecia estar hipnotizado<br />

pelas chamas. Teve uma terrível sensação de perda. De<br />

repente, uma lança surgiu-lhe peito a fora. Uma fisgada<br />

terrível e o ar lhe faltou no mesmo instante em que, de olhos<br />

arregala<strong>dos</strong>, segurou o pedaço de lança que brotara de seu<br />

peito. Caiu de joelhos ao solo, tombando para o lado em<br />

seguida. Ainda agonizou por alguns segun<strong>dos</strong> antes de dar<br />

seu último suspiro.<br />

Gien, aos prantos, correu em direção a seu querido irmão<br />

sem acreditar no que acabara de presenciar. Todas as pessoas<br />

que estavam achando graça da correria de Gourdon e <strong>dos</strong><br />

guardas, ficaram em murmúrios. A grande maioria, curiosos,<br />

não sabia nem o que se passava.<br />

75


A carroça em chamas ficou esquecida por preciosos<br />

minutos, ajudando a Grassac, que alheio ao triste desfecho da<br />

situação com seus amigos, havia entrado apressadamente no<br />

estábulo, cumprimentando alguns solda<strong>dos</strong> que lá estavam.<br />

Como a guarda de Martin era muito numerosa, muitos nem se<br />

conheciam, o que facilitou ainda mais o plano de Grassac.<br />

<br />

Uma morte e um incêndio. Dois acontecimentos que não<br />

estavam planeja<strong>dos</strong> por Martin. Pelo menos não a morte de<br />

Gourdon, ele esperava liquidar Michel. De certa forma, estes<br />

fatos acabaram atrapalhando os planos de execução <strong>dos</strong><br />

demais membros do Conselho. Pareciam ser o prenúncio de<br />

grandes problemas. Martin caminhava inquieto de um lado<br />

para outro, como se pensasse indefinidamente que decisões<br />

deveria tomar diante de tais circunstâncias. Ergueu a cabeça a<br />

procura de Alain que havia se afastado, mas não o encontrava.<br />

As pessoas começavam a deixar o local da tragédia,<br />

reprovando a atitude do soldado assassino. Gien<br />

inconformado com a morte do irmão, fora capturado e<br />

arrastado aos gritos, pela guarda do castelo. Gallard também<br />

demonstrava apreensão e estava impaciente. Sabia que<br />

enquanto to<strong>dos</strong> os membros do Conselho não fossem<br />

executa<strong>dos</strong>, não receberia a quantia que havia sido combinada<br />

com o senhor de Amiens, pelos seus serviços de informante.<br />

— Senhor Martin, creio que a execução de Michel não<br />

dependa de platéia, podemos matá-lo agora mesmo! —<br />

comentou Gallard, simulando um ar de serenidade.<br />

Martin fitou-o por alguns segun<strong>dos</strong>, como que reprovando<br />

a idéia apenas com seu olhar penetrante para logo em seguida<br />

deixar Gallard só, sem resposta alguma. Martin dirigiu-se para<br />

alguns guardas que ainda estavam por perto e indagou-os<br />

sobre Alain. Um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>, respondeu e gesticulou com as<br />

76


mãos, mostrando o caminho do estábulo a seu senhor.<br />

Quando tomou o caminho do local indicado pelo soldado,<br />

mais uma vez foi interrompido, desta vez por dois cavaleiros<br />

de sua guarda, que entraram no castelo a uma velocidade<br />

incrível. Assustado, Martin parou e aguardou que os<br />

cavaleiros se aproximassem. Mal os cavaleiros chegaram perto<br />

e já sofreram a ira de Martin, que os reprimiu sem piedade.<br />

— O que pensam estar fazendo!? Querem ser castiga<strong>dos</strong>!?<br />

Isto aqui não é local de baderna!! Exijo já uma explicação!!! —<br />

Realmente o dia não estava sendo <strong>dos</strong> melhores para Martin.<br />

Sempre manteve ordem dentro do castelo, mas não era o que<br />

acontecia nas últimas horas. Os cavaleiros chegaram a se<br />

ajoelhar pedindo perdão a Martin, e logo em seguida se<br />

explicaram. Disseram a Martin que o motivo de tanta afobação<br />

era trazer com rapidez a informação de que um arauto do rei<br />

Philipe havia chegado a Amiens trazendo uma mensagem<br />

importante, e que em pouco tempo ele chegaria ao castelo.<br />

Martin ficou espantado com a notícia. Com certeza este era um<br />

acontecimento inesperado e sabia que as coisas iriam se<br />

complicar. Teve um péssimo pressentimento. Ordenou que<br />

levassem Michel novamente para sua prisão e que<br />

desmontassem o cadafalso o quanto antes. Gallard se<br />

aproximara mais uma vez, com o intuito de forçar Martin a<br />

eliminar Michel enquanto havia tempo, mas foi reprimido<br />

severamente e ordenado que ficasse em seus aposentos até<br />

que ele resolvesse a situação com o arauto do rei. Gallard<br />

ainda insistiu em ficar ao lado de Martin durante a visita do<br />

arauto, se oferecendo como conselheiro já que possuía<br />

bastante conhecimento em Paris e talvez até pudesse<br />

identificar melhor as intenções do rei.<br />

— Claro que não! — foi a resposta de Martin. — Já<br />

esqueceu que enviei dois mensageiros a Paris e não tive<br />

nenhuma informação? Sequer regressaram a Amiens. Não<br />

77


quero que um estranho interfira nos assuntos políticos de<br />

minha cidade com Paris. Saberei resolver as necessidades do<br />

rei sem atrapalhar meus planos. Agora vá para seus aposentos<br />

e não me incomode mais!! Você está ficando cada vez mais<br />

desagradável e costumo fazer coisas “desagradáveis” com<br />

quem me incomoda.<br />

Gallard entendera exatamente o recado e com um cinismo<br />

teatral, fez uma mesura, pediu licença e retirou-se para seus<br />

aposentos. Já duvidava que fosse receber o pagamento <strong>dos</strong><br />

serviços presta<strong>dos</strong> ao asqueroso Martin Lacroix. Começava a<br />

pensar se não era hora de mudar o rumo <strong>dos</strong> acontecimentos e<br />

deixar a cidade. Mas uma coisa era certa, se não recebesse seu<br />

dinheiro, mataria o arrogante senhor de Amiens, estava<br />

decidido.<br />

Em poucos instantes a paz voltou a reinar no castelo de<br />

Martin, e tudo estava novamente em seu lugar, exceto um<br />

pequeno incidente que acontecia no grande estábulo. Alain se<br />

afastara do tumulto por desconfiar do incêndio na carroça e<br />

perceber que o soldado que a incendiara, se afastou<br />

estranhamente para dentro do estábulo, deixando para trás<br />

todo o tumulto que ocorria no pátio central.<br />

Ao se aproximar da carroça em chamas e examiná-la<br />

atentamente, não teve mais dúvidas, algo muito errado estava<br />

acontecendo. Após contornar a carroça, identificou um de seus<br />

solda<strong>dos</strong> encostado à parede, praticamente desnudo. Correu<br />

até o infeliz e verificou sua respiração. Um alívio repentino. O<br />

homem vivia e estava apenas desmaiado. Alain correu para o<br />

estábulo em busca do misterioso homem que havia feito<br />

aquilo. Ao entrar em grande velocidade com espada em<br />

punho, to<strong>dos</strong> que estavam no estábulo descansando se<br />

sobressaltaram e levantaram assusta<strong>dos</strong>. Indagaram a Alain o<br />

que estava acontecendo e ele apenas perguntou se passou<br />

alguém estranho por ali naquele momento. Um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong><br />

78


afirmou que havia passado um guarda novo por eles. Alain<br />

ordenou que os solda<strong>dos</strong> o acompanhassem na busca do<br />

homem misterioso, pois se tratava de um invasor.<br />

Apressaram-se em se compor e se armar, para logo em<br />

seguida seguir Alain. Espalharam-se e iniciaram a caçada ao<br />

invasor.<br />

Perdido em meio aos corredores do castelo, Grassac<br />

procurava inutilmente pelos membros do Conselho<br />

aprisiona<strong>dos</strong>. Mas já considerava tolice seu próprio plano e<br />

estava com pouca esperança de encontrá-los. Por desígnio do<br />

destino, calhou de encontrar-se não com os prisioneiros, mas<br />

com Gallard Gellion, o culpado pela morte de seu pai, ao<br />

entrar em mais um <strong>dos</strong> diversos corredores do castelo.<br />

Gallard, a exemplo da fria noite em que viu Grassac na<br />

reunião do Conselho, não imaginava que Grassac o procurava.<br />

Na verdade, sequer lembrava do inquérito em que fez parte<br />

da acusação e morte do pai de Grassac há seis anos. Ao se<br />

encontrarem, ambos vacilaram por alguns instantes. Nenhum<br />

<strong>dos</strong> dois podia mais enganar um ao outro. Gallard que se<br />

passara por Paul o lenhador, encontrado livre e solto nos<br />

corredores do castelo de Martin, num momento em que toda a<br />

guarda de Amiens procurava os membros do Conselho e<br />

Grassac por sua vez, que para Gallard, fazia parte do<br />

Conselho, ali a sua frente, composto com as vestes da Guarda<br />

de Amiens. Apesar da situação ridícula, os instantes vacilantes<br />

passaram e logo Grassac empunhou sua espada de forma<br />

ameaçadora para Gallard, que recuou assustado.<br />

— Cretino! — gritou Grassac. — Pelo visto continua<br />

vagando pelas cidades e ganhando dinheiro com a morte de<br />

gente inocente! — Continuou com a espada em punho e<br />

andando na direção de Gallard.<br />

— De que estás falando? Nem lhe conheço direito! Você me<br />

vê e já me insulta com acusações infundadas!? — Gallard<br />

79


tentava ganhar tempo e raciocinar, mas estava<br />

demasiadamente nervoso e acuado.<br />

— Você mata tanta gente que nem lembra das vítimas ou<br />

da dor que causa aos parentes delas, mas isso irá acabar. Hoje<br />

terminam seus dias de mercenário e tenho certeza que estarei<br />

poupando a vida de muitos inocentes que ainda iriam morrer<br />

por sua causa. Mas antes de acabar contigo quero que saibas<br />

quem sou eu.<br />

— Você está equivocado, deve estar procurando a pessoa<br />

errada. Eu não sou lenhador! Tenha calma, vamos conversar<br />

pacificamente, tenho certeza de que poderemos chegar a um<br />

acordo, se é que me entende. — Gallard, falava gaguejando e<br />

sem ordenar as palavras. Estava muito tenso. Já não sabia se o<br />

estranho procurava por ele ou pelo falso lenhador que ele<br />

fingia ser. Procurava explicações, mas não as encontrava.<br />

Numa coisa o estranho havia acertado, de fato muitas pessoas<br />

inocentes morreram para aumentar sua fortuna.<br />

Gallard, possuidor de uma sorte sem igual, foi salvo pela<br />

chegada de Alain e mais três solda<strong>dos</strong>. Quando Alain entrou<br />

no corredor onde estava ocorrendo a confusão, Grassac virouse<br />

assustado e teve uma grande surpresa, pois reconhecera<br />

alguém que não via há muitos anos. Alain, também surpreso,<br />

reconheceu o homem que salvara sua vida anos atrás, em uma<br />

enchente ocorrida na cidade de Chinon. Naquela época, Alain<br />

ficara preso entre as lascas de madeira destroçadas da carroça<br />

que o conduzia e despencara de uma ribanceira devido à força<br />

da enxurrada. Apesar de muito forte, por causa da altura<br />

Alain não conseguia mexer-se e, não fosse o aparecimento<br />

providencial de Grassac, teria morrido afogado. Por muitos<br />

meses Alain acompanhou Grassac procurando recompensá-lo<br />

pelo feito e acabaram se tornando grandes amigos. Mais tarde,<br />

porém, quando Grassac seguiu seu pai em uma viajem a Jafa,<br />

para acompanhar uma caravana de peregrinos à Jerusalém,<br />

80


eles se separaram e jamais haviam encontrado-se novamente,<br />

até aquele momento.<br />

Aquela interminável troca de olhares foi o suficiente para<br />

que Gallard tentasse dar um empurrão em Grassac e passar<br />

para o lado de Alain. Como o intruso era muito forte, o<br />

encontrão que o mercenário tentara não funcionou e Gallard<br />

acabou caindo ao chão, bem à frente de Grassac. No mesmo<br />

instante, levou a ponta de sua espada à garganta do<br />

mercenário.<br />

— Maldito seja! Pensa que vai escapar? — Grassac estava<br />

furioso e confuso ao mesmo tempo. Mantinha Gallard sob a<br />

espada, mas novamente virou o rosto para falar com Alain. Os<br />

solda<strong>dos</strong> já apontavam suas bestas para Grassac, aguardando<br />

a ordem de seu capitão.<br />

— Grassac, meu amigo. Tenha calma. Não sei o que está se<br />

passando, mas quero ajudá-lo a sair deste lugar com vida.<br />

Mesmo que você esteja envolvido com estes Conspiradores,<br />

intercederei por você junto a meu senhor, — Alain jamais<br />

esqueceria que foi salvo por um amigo — mas preciso que<br />

você colabore e se entregue agora. — Alain usava um tom de<br />

voz amigável, para não dar a impressão de que o pedido fosse<br />

uma ordem arrogante, o que poderia complicar as coisas.<br />

Grassac, envolvido demais com sua vingança naquele<br />

momento, recusou a oferta de seu amigo, insistindo que<br />

cumpriria a promessa de matar o culpado pela morte de seu<br />

pai.<br />

— Não seja tolo, você estará me obrigando a fazer o que<br />

não quero. Somos amigos e não gostaria de ter que presenciar<br />

sua morte. Eu lhe imploro, em nome de nossa amizade, se<br />

entregue e evite o pior...<br />

Enquanto Alain falava mansamente, a ira de Grassac<br />

aumentava e, de súbito, ergueu a espada violentamente para<br />

desferir um golpe fatal em seu inimigo. Gallard, aterrorizado,<br />

81


encolheu-se todo e colocou a mão nos olhos, como se isso fosse<br />

adiantar alguma coisa. Alain então arregalou os olhos e deu<br />

um grito desesperado. O que falou aos berros foi o suficiente<br />

para por fim a difícil situação. — Não faça isso! Uma pessoa já<br />

morreu lá fora! Não quero que você também morra, somos<br />

amigos! Ao ouvir estas palavras, Grassac sustentando sua<br />

espada no alto, pronto para com toda sua força acabar com a<br />

vida de Gallard, titubeou e, com um olhar espantado, virou-se<br />

pela terceira vez para seu antigo amigo, baixando lentamente<br />

a espada. Lembrou de seus amigos camponeses, que haviam<br />

ficado no pátio.<br />

— O que você está dizendo? Alguém morreu lá fora?<br />

Como? — sem acreditar no que acabara de ouvir, Grassac<br />

perguntou sobre o que acabara de ser falado por Alain.<br />

Pensou no pior. Quem morrera? Gien ou Gourdon? Por alguns<br />

instantes chegou a pensar que podia ser precipitação de sua<br />

parte concluir sobre o assunto. Talvez não fosse nenhuma<br />

pessoa conhecida.<br />

Gallard, mais uma vez tentando se aproveitar da distração<br />

de Grassac, rastejou silenciosamente como um réptil para além<br />

do corredor. Estava muito suarento e seu coração parecia até<br />

estufar o peito, tamanho era seu desespero. Talvez em toda<br />

sua vida nunca estivera tão próximo da morte como naquele<br />

episódio.<br />

— Infelizmente a balbúrdia acabou em morte.<br />

— Mas quem morreu!? Indagou grosseiramente Grassac.<br />

— Um camponês chamado Gourdon Ballec. Você o<br />

conhecia, não? — Ao ver a expressão de angústia de seu<br />

amigo, percebeu que a resposta seria positiva. Grassac<br />

limitou-se a baixar a cabeça. Ficou pensativo. Havia<br />

simpatizado muito com os camponeses Ballec, sobretudo com<br />

Gourdon, que o acompanhara dias atrás até as praias ermas de<br />

Calais.<br />

82


— Vejo que o plano de vocês, seja lá qual for, não foi muito<br />

feliz. Agora por favor, largue a espada e vamos conversar. —<br />

Grassac novamente levantou o olhar e encarou Alain. Olhou<br />

para trás e percebeu que Gallard fugira. Indignado, triste e<br />

decepcionado, assumindo como sua a culpa pela morte do<br />

amigo camponês, estendeu a espada vagarosamente e a<br />

entregou a Alain. Tão logo o capitão da guarda reteve em suas<br />

mãos a espada de Grassac, os demais solda<strong>dos</strong> que estavam<br />

atrás de Alain, avançaram e agarraram brutalmente os braços<br />

do intruso. Alain os repreendeu e disse que conduziria o<br />

prisioneiro pessoalmente, não sendo necessária aquela atitude.<br />

— Vocês podem se retirar! — Entregando a espada de<br />

Grassac a um <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong>, fez com que saíssem de sua<br />

presença. — Agora me diga, amigo, o que você está fazendo<br />

aqui em Amiens e envolvido com esta gente? — Alain queria<br />

juntar as peças do quebra-cabeça que se formara. Estava<br />

curioso principalmente pelo fato de ter vasculhado cada<br />

centímetro de Amiens e ver que os camponeses surgiram<br />

como que do nada, às portas do castelo. Sabia que seu senhor<br />

iria exigir explicações detalhadas.<br />

Aos poucos, Alain foi descobrindo alguns fatos que ainda o<br />

intrigavam, como por exemplo o aparecimento de Grassac<br />

sem que ninguém percebesse, e até mesmo o <strong>dos</strong> camponeses.<br />

Na verdade, quando os três chegaram a Abbeville, logo<br />

souberam <strong>dos</strong> últimos acontecimentos em Amiens e<br />

elaboraram o plano para chegar até o castelo de Martin com<br />

segurança. Negociaram o cavalo de Gien em Abbeville e<br />

conseguiram a velha carroça com feno. Grassac entrou em<br />

Amiens se passando por um camponês daquela cidade,<br />

trazendo os irmãos ocultos por baixo do feno. Uma vez em<br />

Amiens, próximos ao castelo trocaram de posição, mas<br />

Grassac, ao invés de oculto pelo feno da carroça, agarrado por<br />

baixo <strong>dos</strong> estribos. Para passar a fronteira era tranqüilo ficar<br />

83


sob o feno, mas não para entrar no castelo de Martin. De fato,<br />

foi melhor ter ficado por baixo da carroça.<br />

Alain, também descobriu que o envolvimento de Grassac<br />

com os camponeses havia sido mero acaso, destinos cruza<strong>dos</strong>,<br />

pois sua intenção era na verdade, vingar a morte de seu pai.<br />

Grassac mentiu e não revelou nenhum detalhe pertinente ao<br />

Conselho, limitava-se a dizer que participou apenas de um<br />

encontro com seus membros, com o intuito de encontrar<br />

Gallard, a quem já seguia os passos há um bom tempo.<br />

Conduzindo Grassac até as salas subterrâneas, o encarcerou<br />

na mesma cela de Dízier. Prometeu-lhe interceder junto a seu<br />

senhor por sua liberdade e disse que voltaria a falar com ele<br />

ainda naquele dia.<br />

Grassac percebeu que Dízier estava ferido e se aproximou<br />

dele para verificar seu estado. Diferentemente <strong>dos</strong> outros<br />

prisioneiros, Grassac não ficara acorrentado. Dízier, com uma<br />

aparência muito sofrida, apontou para o fundo da cela.<br />

Grassac virou-se e viu Gien, acorrentado à parede rochosa.<br />

Deu dois tapinhas de leve no ombro de Dízier e se aproximou<br />

do amigo camponês. Estava cheio de escoriações. Olhou para<br />

o amigo, aproximou-se e recostou a cabeça dele<br />

confortavelmente em seu ombro. — Seja forte, amigo! — ao<br />

ouvir estas palavras Gien mais uma vez não se conteve e caiu<br />

em lágrimas. Sentia muita dor pela perda inestimável. Tudo<br />

que fizera na vida sempre teve a presença de seu irmão<br />

Gourdon. Grassac passou o resto da tarde e a noite inteira em<br />

vigília, confortando seu amigo com muitas palavras de fé que<br />

aprendera com seu falecido pai.<br />

<br />

Mais um dia findava e Martin aguardava com grande<br />

ansiedade a chegada do arauto do rei. Sua agitação era tanta<br />

que nem conseguira fazer sua visita rotineira às margens do<br />

84


io Somme, no final da tarde. Continuava inconformado com<br />

tudo que acontecera durante a tarde em seu castelo. Por duas<br />

vezes Alain tentou abordá-lo para falar sobre os fatos que<br />

haviam ocorrido nos corredores do castelo, mas não obteve<br />

êxito. Martin, que até o momento ignorava o episódio entre<br />

Grassac e Gallard, estava evitando falar com to<strong>dos</strong>, tentava<br />

apenas concentrar-se para receber o arauto do rei com<br />

tranqüilidade, sem deixar transparecer que muitos problemas<br />

estavam assolando Amiens.<br />

Trajando uma vistosa roupa negra com detalhes em cinza e<br />

prata e, também de luvas negras, apareceu no pátio para<br />

verificar se a ordem já havia se restabelecido. Ficou satisfeito<br />

com o que viu. Tudo estava em seu devido lugar e todas as<br />

tochas estavam acesas como ordenado. A imagem do castelo<br />

de Amiens à noite, com todas as suas tochas acesas, era algo<br />

extraordinário. Difícil acreditar como tamanha beleza, podia<br />

abrigar tanta maldade.<br />

Quando a noite já estava bastante adiantada, o impaciente<br />

Martin resolveu dirigir-se à Torre de Vigia de seu castelo, com<br />

a intenção de tentar avistar os envia<strong>dos</strong> de Paris. Subiu os<br />

degraus de pedra polida da imponente torre, uma das maiores<br />

em toda a região norte francesa, e ficou a observar ao longe a<br />

estrada principal que conduzia à entrada do castelo. Via<br />

praticamente toda a cidade. Amiens ficava sempre muito<br />

iluminada, mas naquela noite, poucas casas estavam com suas<br />

lanternas e tochas acesas. Nunca em toda sua vida presenciara<br />

a cidade tão apagada como naquela noite.<br />

Desceu as escadas da torre e pediu que chamassem um <strong>dos</strong><br />

solda<strong>dos</strong> que lhe informaram sobre a presença do arauto em<br />

Amiens. Já não acreditava que a uma hora daquelas alguém<br />

ainda pudesse chegar. O soldado que lhe trouxera a<br />

informação já não se encontrava mais de serviço, mas o outro<br />

85


que lhe acompanhara estava dobrando seu turno e<br />

apresentou-se prontamente.<br />

— Diga-me bom rapaz, você chegou a ver se o arauto de<br />

Nossa Majestade, o rei Philipe VI, vinha em direção a Amiens?<br />

Martin, apesar da tensão, estava falando serenamente com<br />

seu soldado. Procurava obter informações que esclarecessem o<br />

mistério. Por quê, afinal de contas, o homem não havia<br />

chegado? A dúvida estava consumindo Martin em<br />

curiosidade.<br />

— Meu senhor, na verdade nós vimos que o arauto do rei,<br />

acompanhado de três cavaleiros de elite, trazia um estandarte<br />

real de Paris e, a cada grupo de cidadãos que encontravam,<br />

paravam seus cavalos e conversavam com as pessoas.<br />

— O que conversavam exatamente? — indagou Martin.<br />

— Difícil dizer, meu senhor, mas sempre gesticulavam<br />

muito e apontavam para as casas de Leon, Gien e Gourdon.<br />

Ao ouvir esta última declaração, Martin franziu a testa,<br />

ergueu a cabeça e esfregou o queixo com sua mão, como se<br />

tivesse mergulhado em um pensamento profundo. Mas nem<br />

teve tempo de refletir sobre estas preciosas informações, pois<br />

ouvira o sentinela da torre anunciar a chegada de pessoas pela<br />

entrada principal. Sua breve meditação foi interrompida e,<br />

mais uma vez encheu-se de ansiedade. To<strong>dos</strong> os guardas<br />

ficaram de prontidão. — Suspendam a treliça! — gritou o<br />

homem da torre.<br />

Os guardiões da entrada então, começaram a rodar o pivô<br />

da engrenagem que fazia suspender a treliça. Enquanto a<br />

treliça subia lentamente, outros responsáveis pela descida da<br />

ponte levadiça, que fazia as vezes de portão, foram descendoa.<br />

— Senhor, é uma guarnição da fronteira sul que está<br />

chegando! Comunicou o homem da torre.<br />

86


Martin dispensou o soldado que estava a seu lado e<br />

apressou-se em encontrar seus homens que chegavam da<br />

fronteira. Os homens entraram a trote, e foram desmontando<br />

um a um de seus exaustos cavalos. Alguns escudeiros<br />

apareceram e vieram conduzir os cavalos ao estábulo do<br />

castelo. Os recém chega<strong>dos</strong> cumprimentaram os guardas da<br />

entrada e vieram na direção de Martin. Na verdade, eram<br />

apenas seis solda<strong>dos</strong>. To<strong>dos</strong> baixaram a cabeça em reverência<br />

a seu senhor e, o soldado que vinha mais a frente esticou o<br />

braço entregando um papiro enrolado e amarrado por uma<br />

fita cor de ocre, com o selo do reino. Martin olhou apreensivo<br />

para o papiro, tomou-o da mão do soldado e perguntou sobre<br />

o que se tratava. Sabia que era um documento oficial do reino.<br />

— Meu senhor, o arauto do rei pediu que este documento<br />

chegasse em vossas mãos. Viemos o mais rápido possível.<br />

— Há quanto tempo vocês estão com este documento? Por<br />

que não trouxeram isto mais cedo? Martin começava a se<br />

enfurecer novamente.<br />

— Mas senhor, recebemos este documento no início da<br />

noite. Os cavaleiros e o arauto ficaram na fronteira sul durante<br />

toda a tarde interrogando os grupos de acampa<strong>dos</strong>. — o pobre<br />

soldado tentava explicar a situação ao incompreensível<br />

senhor.<br />

— Isto não pode ser coisa boa! — exclamou em tom severo.<br />

— Podem descansar, irei verificar o conteúdo deste papiro. —<br />

Com um gesto de desprezo, ordenou que os solda<strong>dos</strong> se<br />

retirassem.<br />

— Senhor, tem mais uma coisa — o soldado continuou a<br />

falar. — O arauto do rei nos indagou sobre o cerco que<br />

fazíamos em nossa própria cidade.<br />

— O quê!? Ele perguntou sobre isso? E o que vocês<br />

responderam? — neste momento Martin mais uma vez<br />

87


perdera o controle e falava aos gritos. — Espero que não<br />

tenham complicado ainda mais a situação!<br />

— Dissemos que o cerco era para a captura de perigosos<br />

assassinos, que estavam amedrontando o povo da cidade, mas<br />

ele fez pouco caso da informação. Não creio que tenha<br />

acreditado. Martin estava sério, ouvindo as palavras de seu<br />

soldado e, ao mesmo tempo tentando imaginar quais seriam<br />

os passos do misterioso arauto.<br />

— Tem algo mais que queira falar? — indagou Martin.<br />

— Sim, meu senhor. Preciso falar ainda sobre algo muito<br />

desagradável. — O soldado baixou a cabeça por um momento<br />

e continuou a falar. — Muitos solda<strong>dos</strong> estão deixando seus<br />

postos nas fronteiras e juntando-se a seus familiares.<br />

— O que!? Deserções nas minhas fileiras? Não vou tolerar<br />

isto! Quero que estes malditos covardes sejam presos e<br />

puni<strong>dos</strong> imediatamente! — A fúria de Martin chegava a seu<br />

limite. Transtornado, retirou-se gritando uma série de<br />

impropérios desqualificando seus solda<strong>dos</strong>, deixando a to<strong>dos</strong><br />

estupefatos em ver tamanha ira.<br />

Ao entrar no pórtico principal, dirigiu-se à sala de<br />

audiências e ordenou que procurassem Alain, para que viesse<br />

a sua presença. Sentou em uma das inúmeras cadeiras que<br />

ficavam dispostas em semicírculo dentro do salão, e abriu o<br />

documento que lhe fora entregue pelo soldado.<br />

Leu atentamente cada frase do papiro, mas não conseguia<br />

acreditar no que estava lendo. Uma mensagem onde o próprio<br />

rei Philipe VI ordenava que ele assumisse o comando da 6ª<br />

infantaria que seria enviada a Calais, nas próximas três<br />

semanas. Outras surpresas ainda mais desagradáveis estavam<br />

no documento real.<br />

Caríssimo,<br />

88


Como sabes estamos atravessando um momento difícil<br />

perante nossos vizinhos ingleses. O insaciável desejo de conquistas<br />

do rei Eduard IV nos coloca mais uma vez à beira da guerra. Estou<br />

recrutando os melhores estrategistas para combater esta ameaça<br />

inglesa.<br />

Apresente-se à 6ª Infantaria na cidade de Calais dentro de três<br />

semanas. A tropa já foi despachada. O Duque Gilles de Guanion irá<br />

assumir o comando da cidade de Amiens no período em que estiver<br />

fora. Ele chegará nos próximos dias.<br />

Prepare metade <strong>dos</strong> suprimentos da cidade para que sejam<br />

envia<strong>dos</strong> às tropas em Calais. Estes suprimentos devem ser<br />

entregues sem falta na próxima semana, ao Duque Labouche.<br />

O papiro, ao invés de uma assinatura, possuía uma marca<br />

de prensa do anel real para garantir sua autenticidade. Depois<br />

de tanto trabalho, como permitir que outra pessoa assumisse<br />

seu lugar na cidade. Martin não iria aceitar isso tão facilmente.<br />

Não se cansava de ler o documento, principalmente as frases<br />

“apresente-se à 6ª Infantaria...” e a outra “O Duque Gilles de<br />

Guanion irá assumir o comando da cidade de Amiens...”<br />

Levantou-se bruscamente e deu grito que ecoou por todo o<br />

salão de audiências: — Jamais! — justamente quando Alain<br />

chegava.<br />

— O que houve, meu senhor? — assustado, perguntou a<br />

Martin o que se passava. O senhor de Amiens entregou o<br />

documento a Alain e fez um gesto com a cabeça para que ele o<br />

lesse. Alain leu rapidamente os três parágrafos que<br />

compunham o texto real, e também não conseguiu acreditar.<br />

— E agora, meu senhor, o que será feito?<br />

— Nada! Vou ignorar este documento. Ele nunca chegou às<br />

minhas mãos! — tomou o documento das mãos de Alain e o<br />

rasgou em vários pedaços.<br />

— Meu senhor?<br />

89


— Cale-se! Agora sei porque o astucioso arauto não quis<br />

me entregar pessoalmente este maldito papiro. Mas isso não<br />

fica assim! Ele conhece bem o costume traiçoeiro <strong>dos</strong> nobres<br />

do norte. Prepare seus melhores homens imediatamente!<br />

Vamos atrás deste safado e garantir que as informações de<br />

Amiens não cheguem a Paris.<br />

— Mas senhor, estaremos indo contra a vontade do rei?<br />

Alain estava surpreso com a atitude de Martin, afinal, acabara<br />

de capturar meia dúzia de homens por traição ao rei, e estava<br />

prestes a trair o mesmo rei por ordem de seu insano senhor.<br />

— Estou cansado do rei. Não consegue dirigir nem seu<br />

próprio território, e agora quer manipular as cidades a seu bel<br />

prazer? A França já está dividida há muitos anos, e os fiéis ao<br />

rei é que devem pagar o preço da guerra? Chega! Amiens<br />

agora será independente, como tantos outros territórios. Ele<br />

que lute sua guerra.<br />

— Mas senhor isso vai acabar mal...<br />

— Alain! Não há tempo para lamúrias, ou está comigo, ou<br />

pode ir a Paris se juntar ao rei. Mas se estiver comigo, vá e<br />

prepare os homens agora!<br />

— Sim senhor! — Alain saiu confuso com tudo que estava<br />

acontecendo. Na verdade, nem sabia ao certo o que fazer. Mas<br />

uma coisa era verdade, por longos oito anos fora Martin que<br />

lhe dera uma condição na vida, não o rei de Paris. Então<br />

seguiria Martin. Não o deixaria naquele momento. Sabia que<br />

as coisas iriam piorar muito, pois acabaria no meio de duas<br />

guerras, uma entre a própria França, e outra com os ingleses<br />

que se passassem por Calais, avançariam sobre Abbeville e<br />

Amiens.<br />

Em menos de meia hora, saíram em disparada pelo portão<br />

do castelo, Martin em uma suntuosa armadura de guerra, e<br />

sua vistosa cota de malha, acompanhado de Alain que<br />

sustentava um estandarte de Amiens e uma dúzia de seus<br />

90


melhores guerreiros. A maioria deles excelente no manuseio<br />

de macha<strong>dos</strong> de guerra. Uma arma muito usada pelos<br />

franceses quando em meio a um combate. Alguns franceses<br />

chegavam a usar três ou quatro macha<strong>dos</strong> de combate, pois os<br />

arremessavam e à medida que avançavam, podiam ir<br />

recolhendo novamente suas armas. Martin não sabia que<br />

novas surpresas o aguardavam durante a fria madrugada.<br />

<br />

Seguindo Granuzael, Etiènne passou por diversos<br />

corredores de cristal, até encontrar uma espécie de patamar<br />

rebaixado, que só podia se chegar após descer um pequeno<br />

lance de escadas, com degraus também lapida<strong>dos</strong> em puro<br />

cristal, que passava por uma pequena brecha em um <strong>dos</strong><br />

corredores. Ficou chocado ao ver o que lhe cercava, e o mais<br />

impressionante, o que estava abaixo de seus olhos, ao<br />

debruçar em uma longa amurada, tão reluzente quanto tudo<br />

que o cercava.<br />

Ao olhar para frente, em qualquer direção, podia<br />

contemplar um teto de cristais que se perdia no horizonte, não<br />

importando qual ponto cardeal admirasse. <strong>Era</strong> como um mar<br />

de cristais sobre sua cabeça, numa cor avermelhada, mas bem<br />

fraca, tendendo ao rosa. As depressões em determina<strong>dos</strong><br />

pontos daquele teto esplendoroso, se é que se podia chamar<br />

aquilo de teto e, a seu modo de ver, infinito, pois não<br />

conseguia ver os limites, faziam parecer raios de luz,<br />

acentuando a cor <strong>dos</strong> cristais em suas extremidades. <strong>Era</strong> uma<br />

visão de riscos luminosos por todo o céu de cristais sobre sua<br />

cabeça. Hipnotizado por tamanha beleza, foi desperto de seu<br />

transe pela forte voz de Granuzael.<br />

— Lá embaixo, vós podereis começar a nova vida que<br />

esperam. — falava a respeito de seus companheiros e do povo<br />

que queriam conduzir a uma nova terra — Já esperávamos por<br />

91


isso há muito tempo! — levou Etiènne até a frente do patamar,<br />

e lhe mostrou a surpreendente imagem. Aproximadamente a<br />

uns quinze mil metros abaixo, em direção ao centro da Terra,<br />

ele pôde ver uma enorme floresta, que se estendia por<br />

quilômetros. Pôde observar também que havia montanhas,<br />

rios, planícies, enfim, havia todo tipo de terreno e tudo parecia<br />

muito sereno. Pensou se não seria ali o Paraíso, o Éden, onde<br />

encontrariam os anjos do Senhor.<br />

— Não! Não penses que este lugar é o Paraíso que os<br />

homens tanto sonham um dia herdar. Na verdade, vós ireis<br />

começar uma nova vida neste lugar, e encontrareis muitos<br />

obstáculos até conseguirem se estabelecer definitivamente e<br />

viver dias de paz. — o comentário de Granuzael fora austero e<br />

intimidador.<br />

— Que tipo de obstáculo poderemos encontrar em um<br />

lugar tão belo como este? — questionou Etiènne.<br />

— Os obstáculos que o próprio destino vos revelará. Agora<br />

vamos voltar, tu tens uma missão importante.<br />

— Que missão seria essa? — indagou.<br />

— Tens que buscar teu irmão. Ele precisa de tua ajuda neste<br />

momento. Vamos! — Granuzael encolheu suas enormes asas e<br />

passou a frente de Etiènne, acenando para que ele o seguisse.<br />

Retornando ao salão principal, por onde haviam descido as<br />

escadas até o fabuloso patamar, Granuzael pediu a sua filha<br />

que conduzisse Etiènne até a floresta. O francês estava ansioso<br />

em poder voltar e reencontrar seu irmão. Queria contar-lhe<br />

tudo o que vira e preparar a viagem o quanto antes. Granuzael<br />

despediu-se de Etiènne com um carinhoso abraço. Sentiu-se<br />

alegre e verdadeiramente feliz, com aquele reconfortante<br />

abraço de um ser tão sobrenatural. Sentiu o perfume no ar,<br />

uma enorme paz caiu sobre ele. Estava admirado com aquele<br />

Vangi esplendoroso. Apertou-lhe a mão, e deixou-o, com certa<br />

relutância.<br />

92


Sindazel acompanhou Etiènne pelas rochosas paredes de<br />

cristal. Andaram bastante até que aos poucos, as brilhosas e<br />

alvas pedras de cristal foram dando lugar às cinzentas e<br />

escuras rochas da gruta por onde ele havia entrado.<br />

Ainda andaram por longo tempo entre fendas enormes e<br />

sombrias até chegarem à entrada da gruta. <strong>Era</strong> como se fosse<br />

um gigantesco labirinto. Voltar sozinho até a aquele lugar, o<br />

qual Sindazel o informara que se chamava Vangilla, seria<br />

impossível. Jamais conseguiria se lembrar por onde passar<br />

dentro de toda aquela escuridão. Pensava como Sindazel<br />

podia se movimentar com tanta facilidade naquele jogo de<br />

paredes rochosas. Ao chegarem bem próximos à saída da<br />

gruta, Sindazel segurou a mão de Etiènne, e fez com que ele<br />

olhasse dentro de seus olhos. A beleza dela era descomunal.<br />

Fitando os olhos da bela Vangi, ele falou com palavras<br />

entrecortadas:<br />

— Nunca mais iremos nos ver, não é verdade?<br />

— Nossas vidas são muito diferentes. Conhecê-lo foi uma<br />

honra muito grande para mim. Tu não imaginas o quanto meu<br />

povo esperou por este momento, e justo eu, tive este<br />

maravilhoso privilégio.<br />

— Responda-me, por favor... Eu poderei vê-la novamente?<br />

— Não creio! Mas quero que saibas, quando estiveres em<br />

tua nova morada, estarei te acompanhando to<strong>dos</strong> os dias de<br />

tua vida. — Sindazel estendeu seus braços a Etiènne,<br />

entregando-lhe um reluzente cordão prateado, porém, não de<br />

uma prata comum, mas de algum material desconhecido para<br />

ele. O cordão trazia um amuleto exatamente igual ao que<br />

Claudia, a tia de Leon, havia dado a seu sobrinho na noite em<br />

que foram encarcera<strong>dos</strong>. —Aceite este presente, é a insígnia de<br />

nosso povo. Leve-o sempre com você, junto a seu peito. Estarei<br />

presente em cada momento, onde quer que vá, lá estarei eu,<br />

acompanhando-o em espírito.<br />

93


— Eu aceito! — Etiènne ficara emocionado. — Levarei não<br />

só o presente, mas também seu belo rosto e sua doce voz,<br />

eternamente em meu coração. Não importa o que diga agora,<br />

Sindazel. Mas eu prometo que iremos nos ver novamente,<br />

antes do que possa imaginar! — Exclamou com uma certeza<br />

de que somente ele era capaz. Estava encantado com a Vangi,<br />

e imaginar que não a reencontraria futuramente era algo que<br />

não podia aceitar. Por que teria o destino o levado até aqueles<br />

seres? Apenas para que indicassem uma nova terra? Não,<br />

certamente o seu encontro com Sindazel ocultava algo mais.<br />

Seu peito arfava com uma emoção inexplicável. Sempre fora<br />

muito espontâneo com suas novas amizades, se entregando de<br />

todo o coração, mas diante de Sindazel, não era apenas sua<br />

peculiar espontaneidade que lançava seu coração em<br />

abrasadoras chamas de desejo, que o consumiam enquanto<br />

caminhavam. Que tipo de feitiço teria aquela criatura lançado<br />

sobre ele, para que se sentisse tão atraído? Como explicar?<br />

Estava amando Sindazel!<br />

— Não diga isso, como podes prometer algo que não está a<br />

teu alcance? Como podes prometer me reencontrar? Tu, a<br />

quem encontrei pelas mãos do destino. Não pode controlar o<br />

destino. Vou considerar tuas palavras como um sau<strong>dos</strong>o<br />

desejo em meu coração. — ao dizer estas palavras, mais uma<br />

vez Sindazel aproximou-se de Etiènne e passou sua suave mão<br />

no rosto dele, fazendo-o desfalecer. Etiènne acordaria minutos<br />

mais tarde, em segurança, próximo a entrada da gruta<br />

recostado em uma pedra lisa. Teria retrucado, se houvesse<br />

chance, dizendo que Deus era o verdadeiro Caminho e destino<br />

de to<strong>dos</strong>, sendo bon<strong>dos</strong>o e cari<strong>dos</strong>o com seus devotos servos,<br />

e por Sua mão Santa, iria reencontrá-la. No fundo, Etiènne<br />

acreditava que Sindazel e seu pai eram verdadeiros anjos do<br />

Senhor.<br />

94


Sindazel voltou para seu lar e procurou seu pai<br />

imediatamente. Estava eufórica com o que acontecera e queria<br />

muito conversar com ele. O fato de ter excitado Etiènne mexeu<br />

muito com Sindazel, pois as vangis, ao contrário de como<br />

acontece com as mulheres humanas, só conseguem estimular<br />

os homens de sua raça quando estão em período de<br />

fertilidade. E nenhuma Vangi em toda Vangilla, ficou fértil<br />

nos últimos quarenta anos. Isto já vinha preocupando o povo<br />

Vangi há muito tempo.<br />

Quase não se continha de alegria, acreditando que estivesse<br />

fértil, mas descobriria mais tarde, que tudo não passara de um<br />

mal entendido. Descobriria que na verdade, os homens<br />

ficavam estimula<strong>dos</strong> a qualquer momento, não dependendo<br />

da fertilidade de suas mulheres. Ficaria decepcionada por um<br />

tempo, mas depois sua estima e paixão por Etiènne cresceriam<br />

de uma forma incontrolável. Granuzael conversou<br />

demoradamente com sua filha, e temeu que pudesse ter de<br />

enfrentar problemas sérios entre seu povo por causa das novas<br />

sensações de Sindazel. Em breve seu receio se tornaria<br />

realidade.<br />

Enquanto os problemas não apareciam, toda a Vangilla<br />

estava em festa, porque a velha profecia do Dragão Dourado<br />

enfim estaria se concretizando.<br />

Os Filhos da Luz<br />

Serão trazi<strong>dos</strong> pelas Asas da Eternidade!<br />

Os Filhos da Floresta<br />

Testemunharão o alvorecer de seus últimos dias!<br />

Tudo será renovado, e uma nova era eclodirá!<br />

95


D<br />

CAPÍTULO VI<br />

Surpresas agradáveis<br />

urante a fria madrugada em que o senhor de Amiens<br />

estava fora da cidade, fato que não ocorria há muitos<br />

meses, os prisioneiros amarguravam mais uma noite de<br />

sofrimento e tensão. Alguns com sérios ferimentos e outros<br />

com o orgulho destruído. Restava apenas a esperança de mais<br />

um dia de vida ou, quem sabe, um milagre que os pudesse<br />

salvar.<br />

Grassac aproximou-se de Dízier para verificar seu grave<br />

ferimento, como vinha fazendo desde que fora levado por<br />

Alain Dumas àquele cárcere. Sentou perto do taberneiro e<br />

ficou conversando acerca <strong>dos</strong> últimos acontecimentos.<br />

Principalmente pelos momentos vivi<strong>dos</strong> entre ele e os irmãos<br />

camponeses na cidade de Calais. Confirmara a veracidade das<br />

informações que chegavam diariamente das cidades<br />

litorâneas. A invasão inglesa era iminente. Dízier aproveitou o<br />

momento de prosa e também contou ao forasteiro como fora<br />

capturado. Confessou que o julgava culpado pelo<br />

encarceramento de to<strong>dos</strong> e, ficou decepcionado ao saber que o<br />

verdadeiro traidor do grupo era Paul Drassarc, o lenhador, ou<br />

melhor, Gallard Gellion, seu verdadeiro nome. Como<br />

puderam conviver com um traidor durante tanto tempo sem<br />

nada perceberem, pensou Dízier. <strong>Era</strong> difícil aceitar essa<br />

lamentável falha. <strong>Era</strong>, na verdade, imperdoável! Não estariam<br />

agora prestes a pagar com suas próprias vidas pelo erro de


julgamento, de alguém que sequer confirmaram, em nenhum<br />

momento, a história de seu passado? Quantos homens que se<br />

diziam isola<strong>dos</strong> e solitários, praticamente vivendo em reclusão<br />

em seu próprio lar, seriam falsos como aquele Gallard Gellion,<br />

dizendo que sonhavam com uma nova terra, para viver longe<br />

de tiranos como Martin Lacroix? A culpa lhe caía com um<br />

peso ainda maior e insuportável, pois fora ele mesmo quem<br />

decidira aceitar o falso lenhador como membro do Conselho,<br />

numa noite em que Etiènne o havia levado à sua taberna. Não<br />

obstante, teria de dividir essa culpa com o próprio Etiènne,<br />

que conheceu Gallard, pelo nome de Paul Drassarc, numa de<br />

suas longas caçadas pela montanha Serena e foi facilmente<br />

convencido por aquele homem eloqüente e sedutor, a<br />

acreditar em suas falsas histórias e desejos. Comovido,<br />

acreditando que aquele homem era como seu próprio irmão<br />

ou seu fiel amigo Leon Troujard, caiu no ardil e levou-o até<br />

Dízier.<br />

Grassac e o taberneiro ficaram conversando durante horas.<br />

<strong>Era</strong> como se fosse a última conversa de suas vidas. Apesar do<br />

rigoroso frio e da umidade do calabouço, os dois se perderam<br />

na prosa e depois <strong>dos</strong> malfada<strong>dos</strong> acontecimentos, falaram<br />

ainda de vários assuntos sobre suas vidas.<br />

Já estava praticamente amanhecendo e os dois exaustos<br />

haviam decidido descansar, quando ouviram o barulho de<br />

correntes e chaves. Ficaram apreensivos. Grassac afastou-se<br />

ligeiramente para uma das paredes e ficou sentado, de costas<br />

para a rocha e pernas esticadas. Com a cabeça abaixada e<br />

olhos semicerra<strong>dos</strong>, fingia dormir. Porém, muito atento. Dízier<br />

também fingia dormir, mas o medo era superior a sua atenção.<br />

Ferido, fraco e com muitas dores, nada podia fazer a não ser<br />

esperar pelo pior a cada vez que a porta de seu cativeiro se<br />

abria.<br />

Um último estalar metálico soou antes que o sinistro som<br />

do ranger da porta ecoasse dentro da cela. O incômodo<br />

barulho não durou mais do que dois segun<strong>dos</strong>. A porta não<br />

97


havia se aberto totalmente, concluiu Grassac. Abriu<br />

lentamente um <strong>dos</strong> olhos e percebeu um vulto entrando na<br />

cela. Trajava roupas escuras e usava um capuz cobrindo a<br />

cabeça. Ficou ainda mais atento à situação. De qualquer forma,<br />

não estava acorrentado e ainda podia se defender, ainda que<br />

fosse apenas com suas próprias mãos. O misterioso indivíduo<br />

se aproximou primeiramente de Gien, que estava acorrentado<br />

na parede do fundo. Grassac não perdia um movimento<br />

sequer do visitante noturno. Observou que se curvara para<br />

identificar o camponês e logo em seguida se afastou. Olhou ao<br />

redor da escuridão. Percebeu Dízier deitado no meio do fétido<br />

ambiente. Outra olhada para o lado e, por um instante Grassac<br />

pensou que o misterioso homem pudesse ter percebido que ele<br />

o estava espiando. O estranho parou na direção de Grassac e<br />

ficou observando de longe. Parecia decidir-se sobre avançar<br />

ou não. Logo a dúvida de Grassac terminara, pois o homem<br />

veio cautelosamente em sua direção. Apesar de sua<br />

experiência, Grassac estava nervoso com as circunstâncias.<br />

Afinal, estava muito escuro e ele desarmado. O homem ao se<br />

aproximar de Grassac tirou a mão de dentro da roupa escura<br />

com um objeto pequeno. Grassac percebeu o movimento mas<br />

não pôde identificar o que era. Seu nervosismo aumentava a<br />

cada passo do desconhecido. Quando faltavam apenas dois<br />

passos para chegar a Grassac, segurou o objeto com as duas<br />

mãos levando-o sobre a cabeça, agachou-se e desferiu um<br />

golpe na direção do peito de Grassac.<br />

Quando percebeu o movimento <strong>dos</strong> braços do atacante,<br />

Grassac recolheu rapidamente as duas pernas e de um só<br />

golpe, atingindo-o no peito, atirou longe o homem de capuz.<br />

A violência com que os pés de Grassac atingira o homem fora<br />

tão grande que ele deixou cair o objeto que carregava. O som<br />

pesado de um metal batendo ao solo era inconfundível.<br />

Tratava-se de um punhal, adaga ou outro tipo de lâmina que<br />

agora, estava perdido no breu. Grassac levantou-se<br />

desesperado atrás do possível punhal. O misterioso homem<br />

98


correu em direção a porta, mas trombou com o guarda que ao<br />

ouvir o barulho, tentava entrar abruptamente na cela. O<br />

choque entre o sombrio homem e o carcereiro fora<br />

providencial. Grassac, que rapidamente se pôs de pé após o<br />

duro golpe desferido em seu atacante, aproveitou a<br />

oportunidade da patética cena e avançando sobre o soldado<br />

tirou-lhe a espada e encurralou os dois homens. Não pôde<br />

conter sua satisfação após identificar, à luz das tochas no<br />

corredor, que o homem que havia tentado lhe matar era o<br />

próprio Gallard Gellion.<br />

— Mas que grande surpresa! Tentaste me matar e agora<br />

será a vítima, pobre coitado! — Grassac falava e ao mesmo<br />

tempo intimidava com a espada Gallard e o carcereiro. O<br />

mercenário, apavorado, procurava ficar atrás do carcereiro,<br />

fazendo-o de escudo humano.<br />

— Calma, você está cometendo um erro! Eu posso tirá-los<br />

daqui, pense bem... como irão sair do castelo? Eu tenho um<br />

esquema perfeito, você precisa me ouvir... — Gallard, a<br />

despeito de sua bela voz e eloqüência, mais uma vez falava<br />

nervosamente e sem parar, tentando dissuadir Grassac de<br />

matá-lo, o que a esta altura parecia ser impossível.<br />

— Não importa! — respondeu — Chegaste ao dia de teu<br />

Juízo Final. Não viverá para ver a próxima aurora. Que Deus<br />

seja pie<strong>dos</strong>o com você, víbora! Pois de mim, não terás piedade,<br />

assassino amaldiçoado!<br />

Dízier, que arrastou-se até a porta da cela, chamou a<br />

atenção de Grassac sobre os outros companheiros e, que ele<br />

estaria trocando a oportunidade de salvar a to<strong>dos</strong> por uma<br />

vingança pessoal, que já havia o consumido por anos.<br />

— Pense amigo, o que lhe é mais importante no momento?<br />

Tirar a vida de um homem que nunca teve escrúpulos, ou<br />

salvar a vida de vários amigos que sempre quiseram o bem<br />

aos outros. — Dízier falava em tom de imploração — Sabes<br />

que não temos muito tempo de vida aqui. Provavelmente<br />

amanhã já irão matar um ou dois de nós. Pense em Gien, o<br />

99


irmão dele morreu pela nossa causa, por tentar nos salvar.<br />

Faça com que a morte dele seja compensada. Nos ajude a sair<br />

daqui!<br />

— Sim, ouça seu amigo — interrompeu Gallard — afinal,<br />

minha morte não irá modificar o passado, se é que me<br />

entende...<br />

— Cale-se! — gritou Grassac — Não quero ouvir mais a sua<br />

maldita voz, a não ser para nos dizer como sairemos daqui!<br />

Após isso decidirei o que fazer contigo!<br />

— Mas como saberei que não me matará!?<br />

— Não interessa! De qualquer modo não tem muita<br />

escolha, ou nos ajuda, ou morre agora mesmo!<br />

Grassac obrigou o carcereiro a abrir todas as celas e<br />

destrancar os grilhões que prendiam seus amigos. To<strong>dos</strong><br />

ficaram admira<strong>dos</strong> ao ver Grassac com um uniforme da<br />

guarda de Amiens, os tirando do cativeiro. Estavam esgota<strong>dos</strong><br />

e não questionaram nada naquele momento, apenas<br />

limitaram-se a seguir as instruções de Grassac.<br />

Com uma das tochas, Grassac retornou à cela onde estivera<br />

preso e procurou o objeto metálico que havia caído durante a<br />

confusão. Encontrou um pequeno punhal e o guardou na<br />

cintura, travando-o entre o cinto de couro do uniforme que<br />

estava usando e abdômen.<br />

Com voz firme, ordenou que Gallard os mostrasse o<br />

caminho da saída. Michel estava intrigado com a aspereza<br />

com que Grassac falava com seu amigo lenhador, o suposto<br />

Paul. Teria uma grande decepção ao saber do verdadeiro<br />

nome e objetivo do traidor.<br />

Gallard os conduziu até o final do corredor e puxando a<br />

tocha-alavanca, que já era de seu conhecimento, abriu a<br />

passagem secreta para os ex-prisioneiros, que ao entrarem na<br />

oculta sala de torturas, ficaram horroriza<strong>dos</strong> com os<br />

equipamentos ali escondi<strong>dos</strong>. Enquanto Gien vigiava a<br />

passagem do corredor para a sala de torturas, um a um saíam<br />

os membros do Conselho, a exceção de Leon, que apoiava sua<br />

100


tia Claudia pelo braço. To<strong>dos</strong> foram atravessando a macabra<br />

sala até chegarem à porta que dava para a saída secreta que os<br />

levaria ao bosque.<br />

Antes de deixarem o castelo, Grassac ainda prendeu o<br />

carcereiro a uma das tenebrosas máquinas de tortura.<br />

Certificou-se de que o homem ficara bem amarrado e<br />

devidamente amordaçado.<br />

Aos empurrões, conduziu Gallard através do túnel pelo<br />

qual seus amigos já haviam passado. O túnel era muito escuro<br />

e com a pouca luminosidade produzida pela tocha que<br />

carregava, podia perceber que as rochosas paredes estavam<br />

recobertas por muito lodo. O cheiro era horrível e haviam<br />

incontáveis ratos ziguezagueando pela passagem. Chegando<br />

ao final do túnel, passaram pela abertura que saía por trás de<br />

uma folhagem densa. A esta altura, to<strong>dos</strong> já estavam<br />

conversando e tentando esclarecer tantas dúvidas que<br />

pairavam no ar. Dízier, extremamente abatido, estava deitado<br />

na relva, muito ofegante. Seu ferimento piorara bastante.<br />

Para surpresa de to<strong>dos</strong>, Grassac tão logo surgiu das<br />

folhagens, desferiu um violento soco na face de Gallard,<br />

desacordando-o. Michel, mesmo abatido e muito ferido,<br />

esboçou uma reação e partiu na direção de Grassac, mas foi<br />

seguro por Gien instintivamente.<br />

Grassac, então aproveitou a oportunidade e esclareceu os<br />

fatos a to<strong>dos</strong>, que ouviam estupefatos tudo que o forasteiro<br />

revelava. Parte da conversa era do conhecimento de Gien, que<br />

concordava com o que Grassac ia dizendo assentindo com a<br />

cabeça, olhando para seus amigos.<br />

Ao final do discurso, Michel de cabeça baixa, aproximou-se<br />

do forasteiro e repousando sua mão direita no ombro de<br />

Grassac, levantou a cabeça encarando-o nos olhos e pediu-lhe<br />

desculpas pelo mal juízo que fizera dele. Sentiu imensa alegria<br />

em saber que seu irmão Etiènne, no fundo, tinha razão.<br />

Grassac percebeu que naquele momento, nascia grande<br />

confiança nele e, sentindo compaixão pelo irmão de seu<br />

101


amigo, puxou-o contra seu peito e deu-lhe um forte abraço, em<br />

sinal de que o perdoava pela dúvida a seu respeito.<br />

Preocupado com a segurança de to<strong>dos</strong>, Gien chamou a<br />

atenção para que saíssem logo do local onde estavam, pois em<br />

breve iriam descobrir sobre a fuga deles.<br />

Os convidou para que o acompanhassem até a casa de um<br />

tio seu, que era dono de uma das mais famosas ferrarias<br />

daquela região da França.<br />

— Meu tio não irá se importar em nos esconder até que<br />

tudo se acalme novamente. Lá estaremos protegi<strong>dos</strong>.<br />

— Gien tem toda a razão — concordou prontamente<br />

Grassac — Vocês devem seguí-lo para que se salvem. Eu irei<br />

atrás de Etiènne e o levarei até vocês. Gien me ensinará o<br />

caminho até a ferraria. To<strong>dos</strong> estão de acordo com isto?<br />

Michel, apesar de seu coração pedir para que<br />

acompanhasse Grassac na busca de seu irmão, sabia que não<br />

estava em condições físicas e acabaria o atrapalhando. Olhou<br />

para os outros amigos incitando a aprovação de to<strong>dos</strong>. Dízier e<br />

Gien assentiram com a cabeça. Michel voltou-se para Leon e<br />

percebeu que seu grande amigo estivera mergulhado em<br />

profunda conturbação. <strong>Era</strong> como se houvesse uma pesada<br />

sombra sobre seu semblante. Estava muito sério e cabisbaixo.<br />

Estranhou, mas voltou-se para Grassac e concordou.<br />

— Sim, to<strong>dos</strong> estão de acordo. Mas... o que vai fazer com<br />

Paul... quero dizer, com este salafrário?<br />

— Eu pensava em tirar-lhe a vida mas, Dízier tem razão. Já<br />

perdi muito tempo com esta loucura e mesmo que eu o mate,<br />

não me livrarei das terríveis lembranças e nem trarei meu pai<br />

de volta à vida. — Grassac por um momento fitou Gallard<br />

desacordado no solo e continuou falando — Talvez eu devesse<br />

cortar-lhe a língua ferina? Não! Vou amarrá-lo e o deixarei<br />

preso atrás destes arbustos. Quem sabe os ratos venham fazer<br />

amizade com ele. Afinal, não são da mesma laia? Talvez até<br />

sejam parentes, mas temo estar ofendendo aos pobres ratos.<br />

102


Agora vão, o dia já está clareando e logo teremos companhia.<br />

Deixem que cuido do traidor.<br />

Gien deu as instruções para Grassac de como ele deveria<br />

fazer para chegar à ferraria de seu tio e, logo após juntou-se<br />

aos demais companheiros e partiram.<br />

<br />

Os primeiros raios solares começaram a traspassar as finas<br />

nuvens em mais uma das belas auroras de Amiens. O tempo já<br />

não estava tão sombrio e o canto <strong>dos</strong> pássaros podia ser<br />

ouvido com clareza em to<strong>dos</strong> os recantos da Montanha Serena.<br />

Etiènne acordou assustado, olhou ao seu redor tentando<br />

identificar onde estava. A lembrança de Sindazel ainda era<br />

muito forte em sua mente. Não conseguia esquecer tão bela<br />

imagem. Deu um forte suspiro e recostando-se novamente à<br />

rocha sobre a qual dormira, ficou imaginando como faria para<br />

reencontrar aquele maravilhoso ser, por quem estava<br />

perdidamente apaixonado em seu coração.<br />

Estava em seu transe contemplativo quando, de repente,<br />

percebeu assustado que uma raposa avançava velozmente em<br />

sua direção pelo seu flanco esquerdo, emitindo um rosnado<br />

louco e exibindo suas afiadas presas. Sem ação, aguardou<br />

boquiaberto o ataque da feroz criatura que, ao saltar sobre ele,<br />

foi atingida por uma enorme seta. A raposa simplesmente<br />

despencou sobre Etiènne, mas o violento impacto foi a única<br />

contusão sofrida por ele. A seta havia atingido um ponto vital<br />

da fera. Muito assustado, desvencilhou-se do animal morto e<br />

levantou, procurando com muita curiosidade, e ainda com o<br />

coração quase à boca, o autor de tão precisa pontaria.<br />

Vagarosamente caminhava em sua direção, um homem<br />

trajando uma indumentária já conhecida pelos franceses. O<br />

uniforme <strong>dos</strong> arqueiros de elite do reino bretão.<br />

Instintivamente agarrou sua acha de arremesso num<br />

movimento de defesa, encostando-se sobre a rocha na qual<br />

estivera descansando há pouco e sonhando com Sindazel.<br />

103


Procurando demonstrar amistosidade, o arqueiro agachouse<br />

e largou a seus pés, o longo arco que trazia nas mãos, e<br />

ainda deixou também a pequena arcobalista que vinha<br />

pendurada em sua cintura. Exibindo suas mãos vazias e<br />

falando um “francês” impecável, o inglês tentou um pacífico<br />

contato com Etiènne.<br />

— Amigo, não tenha medo! Estou aqui em paz. — sua voz<br />

era tranqüila, e ganhou suavidade ao misturar-se com o<br />

cantarolar matinal <strong>dos</strong> pássaros. Mesmo assim, Etiènne não<br />

estava nada tranqüilo, e questionou ao inglês como alguém<br />

trajando tal uniforme poderia estar em paz?<br />

— Muito engraçado, não consigo imaginar como um<br />

maldito arqueiro inglês aparece aqui, na França, vestindo um<br />

uniforme de guerra, possa estar falando de paz!?<br />

— Sei que é difícil imaginar, ou melhor, acreditar. Mas será<br />

que não mereço crédito? Acabei de livrar-te das presas de uma<br />

raposa. Se quisesse poderia ter acertado seu coração, mas não<br />

o fiz. Ou mesmo poderia apreciar como mero espectador, a<br />

conclusão do ataque da fera. Não quero feri-lo, muito pelo<br />

contrário, sou apenas um desertor precisando ser acolhido na<br />

terra de minha falecida mãe, que Deus a tenha em seus<br />

misericordiosos e acalentadores braços.<br />

O estrangeiro continuou conversando calmamente com<br />

Etiènne, que estava atento a qualquer movimento suspeito que<br />

o inglês viesse a fazer.<br />

— Não me julgue como um idiota. Sei que a esta altura já<br />

estaria com uma seta em meu peito. Porém, o que me intriga, é<br />

o fato de querer se aproximar. Por qual motivo seria tua<br />

deserção? — Etiènne fez a primeira de uma série de perguntas<br />

que faria ao estranho.<br />

Possuía um hábito que se irmão Michel considerava um<br />

defeito muito grande. Se envolvia com qualquer estranho com<br />

uma facilidade impressionante. Em menos de uma hora<br />

Etiènne já estaria se tornando espontaneamente amigo do<br />

inglês. Apesar desta atitude, sendo a única exceção o falso<br />

104


lenhador, Etiènne jamais errara na escolha de suas amizades e,<br />

todas elas sempre lhe foram muito úteis na vida.<br />

Após uma série de explicações e depois de responder a<br />

inúmeras e incansáveis perguntas de Etiènne, o arqueiro<br />

bretão finalmente conquistou a confiança do francês. Afinal,<br />

era impossível imaginar que alguém pudesse inventar uma<br />

estória com tantos detalhes como a que o estrangeiro havia<br />

contado a ele.<br />

O nome do inglês era Peter Wells, o qual seria<br />

carinhosamente substituído num futuro próximo, pelo apelido<br />

de Pete (Pit). De cabelos claros e franzino, Peter não negava<br />

ser um arqueiro. Não precisava ser muito musculoso para<br />

utilizar seu longo arco, ou sua arcobalista.<br />

Peter Wells, era filho de uma francesa chamada Jacqueline,<br />

com um lorde bretão. Ainda muito nova, fora levada para a<br />

Inglaterra e obrigada a viver como escrava deste lorde. A<br />

jovem francesa havia sido entregue como tributo por um<br />

corrupto senhor feudal de Lyon, tirando-a do seio de sua<br />

família.<br />

Peter falou a Etiènne sobre algumas histórias bizarras que<br />

sua mãe sempre lhe contava a respeito <strong>dos</strong> ingleses. Seu sonho<br />

sempre fora voltar à terra de origem de sua mãe e viver uma<br />

vida por ela, uma vida que ela sempre sonhara e lhe tiraram a<br />

oportunidade de ter.<br />

Para isso e, seguindo orientações de sua sau<strong>dos</strong>a mãe,<br />

Peter, desde cedo conquistou a confiança de seu severo pai.<br />

Dedicou-se muito na academia para tornar-se arqueiro de elite<br />

e esperou com grande ansiedade o dia em que seria enviado à<br />

França. Já havia participado de duas batalhas, mas ambas<br />

ocorridas no sul da Escócia. Agora, finalmente teve sua grande<br />

oportunidade e, na primeira noite em território francês, fugiu<br />

do acampamento rumando o mais rápido que podia para o<br />

sul, vindo parar acidentalmente à frente de Etiènne. Mas digase<br />

de passagem, um acidente que se tornou uma agradável<br />

105


surpresa, pois Peter salvara a vida de Etiènne e encontrara a<br />

pessoa que mudaria para sempre sua vida.<br />

Passaram o dia inteiro conversando muito. Peter contou a<br />

Etiènne sobre as batalhas na Escócia, das quais havia<br />

participado. Narrou como os arqueiros ingleses, centenas,<br />

direcionavam suas setas para o exército inimigo, que perdiam<br />

muitos guerreiros e ficavam com a disposição reduzida. O<br />

inimigo ficava horrorizado ao ver o céu escurecer com as<br />

hastes das centenas de setas-punhal que vinham zunindo<br />

alucinadamente em sua direção. Este tipo de seta, conseguia<br />

mesmo perfurar até as armaduras do inimigo. Etiènne não<br />

podia imaginar naquele momento, mas seus compatriotas<br />

iriam testemunhar num futuro próximo, com o preço de suas<br />

próprias vidas nas cidades de Crecy, Poitier e Agincourt, o<br />

poder de que Peter acabara de relatar, durante a Guerra <strong>dos</strong><br />

Cem Anos.<br />

<br />

No dia seguinte, Etiènne acordou e ficou surpreso. Peter<br />

havia acordado bem antes e conseguido alimento suficiente<br />

para os próximos três dias. <strong>Era</strong> um arqueiro experiente e os<br />

vários anos que passou na academia, o tornariam um<br />

sobrevivente mesmo nos mais inóspitos pontos das florestas,<br />

se um dia precisasse. Sabia onde encontrar alimento seguro,<br />

raízes nutritivas, diversos frutos silvestres e animais de caça.<br />

Passaram quase uma semana juntos, se conhecendo,<br />

trocando informações valiosas sobre técnicas de combate e<br />

sobrevivência na floresta.<br />

Ao passar uma semana, Etiènne teve grande felicidade.<br />

Grassac subiu a montanha Serena com um pequeno grupo de<br />

homens e mulheres, foragi<strong>dos</strong> da própria cidade de Amiens.<br />

Etiènne não reconheceu nenhum <strong>dos</strong> amigos entre os que<br />

chegaram com Grassac. O encontro <strong>dos</strong> dois amigos foi<br />

marcado por um forte abraço, e Etiènne logo apresentou Peter<br />

a Grassac. Houve uma certa resistência no início por parte do<br />

106


grupo em aceitar o inglês, mas Grassac colaborou bastante<br />

para que a aceitação do estrangeiro fosse breve. O próprio<br />

Peter, durante os dias que ficou com os novos conheci<strong>dos</strong>, deu<br />

muitas provas de lealdade e que realmente era um desertor do<br />

exército inglês.<br />

— Sabe, estou surpreso! Você nem conhecia o inglês e me<br />

ajudou para que as pessoas o aceitassem! — Exclamou<br />

Etiènne.<br />

— Confio em você, isso me basta. E depois, não há nada<br />

que ele possa fazer de errado que eu não venha a perceber.<br />

Fique tranqüilo.<br />

Grassac, no fundo, confiava muito mais em sua própria<br />

experiência do que nos julgamentos precipita<strong>dos</strong> de Etiènne.<br />

Sabia que podia dar conta do inglês caso fosse necessário, por<br />

isso preferiu terminar prematuramente com a polêmica do<br />

grupo de pessoas, para evitar maiores problemas.<br />

Etiènne, havia perguntado com aflição a Grassac sobre o<br />

paradeiro de seu irmão Michel e os outros amigos. Ficou<br />

muito contente ao saber que to<strong>dos</strong> haviam escapado do castelo<br />

e estavam bem na ferraria do tio de Gien. Lamentou<br />

profundamente a morte de Gourdon Ballec, pois gostava<br />

muito do divertido camponês, sempre alegre e cheio de vida.<br />

Enquanto conversavam sobre o Conselho e as<br />

possibilidades de fuga, Peter ia conquistando a amizade das<br />

pessoas do grupo de foragi<strong>dos</strong>, com suas histórias sobre a<br />

Inglaterra e suas batalhas, além é claro, de procurar estar<br />

sempre servindo aos novos conheci<strong>dos</strong>, mostrando-se<br />

prestativo a todo o momento.<br />

107


A<br />

CAPÍTULO VII<br />

Novos rumos, novos tempos<br />

pós três semanas e, ainda sem notícias de Martin Lacroix,<br />

Catherine, muito apreensiva, ordenou que quase todas as<br />

patrulhas envolvidas no bloqueio de Amiens regressassem ao<br />

castelo para organizar uma busca a seu marido e senhor.<br />

No fundo de seu coração, sentia um certo alívio e até<br />

desejava que ele tivesse sido detido pela guarda do rei Philipe,<br />

mas precisava ter certeza do que realmente havia acontecido.<br />

Se ele estivesse preso e impossibilitado de governar Amiens,<br />

acreditava que com um novo líder na cidade, ela talvez<br />

pudesse tomar as decisões que há muito tempo maquinara, de<br />

mudar-se para Roma, onde vivia seu irmão mais velho. Já<br />

começava a imaginar que poderia levar uma vida tranqüila,<br />

feliz e sem me<strong>dos</strong>.<br />

Por outro lado, se Martin regressasse ou fosse encontrado<br />

pela patrulha que ela estava imaginando preparar para a sua<br />

busca, sabia que iria passar por maus momentos. A fuga <strong>dos</strong><br />

prisioneiros e o fim do bloqueio à cidade iriam irritá-lo<br />

profundamente. Com certeza, estava pondo em risco sua<br />

própria integridade física, mas preferiu prosseguir com seus<br />

planos de desvendar o que realmente havia acontecido com<br />

seu marido. Pior aconteceria a ela se fugisse para Roma e ele<br />

conseguisse interceptá-la antes de completar a fuga.<br />

Catherine, já há muito tempo, temia por sua vida dentro<br />

do castelo, e estava disposta a fugir de Amiens na primeira


oportunidade, mas desconfiava de quase to<strong>dos</strong> à sua volta,<br />

por isso resistia a esta tentação. Já havia despachado<br />

secretamente uma boa quantidade de roupas e utensílios<br />

pessoais, através de uma de suas aias de confiança, para além<br />

das fronteiras de Amiens.<br />

Estava tudo preparado para sua fuga, que seria amparada<br />

por outra de suas aias, caso esta necessidade viesse a se<br />

confirmar.<br />

<br />

Com o fim do bloqueio ocasionado pelo reagrupamento<br />

de patrulhas ordenado por Catherine, muitas pessoas saíram<br />

da cidade. Os membros do Conselho tiveram sua grande<br />

oportunidade de fuga nestes dias. Foram rápi<strong>dos</strong> e planejaram<br />

tudo da ferraria do tio de Gien. Mesmo sem os suprimentos<br />

que foram reti<strong>dos</strong> pelo senhor de Amiens, decidiram que a<br />

partida deveria ser imediata. O único e enorme problema<br />

ainda a resolver, era encontrar Etiènne, que continuava<br />

desaparecido. Ninguém obteve qualquer notícia do irmão<br />

mais novo <strong>dos</strong> Montbard. Mesmo Grassac, que havia saído em<br />

busca do irmão de Michel, ainda não retornara com alguma<br />

novidade, estando também desaparecido nos últimos vinte<br />

dias.<br />

Mal sabiam eles, Grassac já havia encontrado Etiènne com<br />

seu novo conhecido, o inglês Peter. Ele não retornou logo para<br />

a ferraria porque não achou muito prudente levar o inglês com<br />

eles, apesar de Peter falar a língua francesa tão bem como<br />

qualquer nativo de Amiens.<br />

Grassac achou melhor preparar a estrutura de fuga a<br />

partir do acampamento na montanha, que já contava com um<br />

enorme grupo de pessoas. Durante as últimas duas semanas,<br />

havia conseguido um bom número de fugitivos apesar do<br />

bloqueio. Agora, sem o bloqueio, planejava buscar em<br />

segurança os outros membros do Conselho.<br />

109


Os três senta<strong>dos</strong> ao redor de uma fogueira, acertavam os<br />

últimos detalhes da busca aos demais companheiros. Etiènne,<br />

a despeito da incredulidade <strong>dos</strong> amigos quando mencionara<br />

pela primeira vez sobre a Vangilla, resolveu contar aos dois<br />

amigos, desta vez com to<strong>dos</strong> os detalhes de que era capaz de<br />

lembrar-se, sobre o que lhe acontecera na gruta, e sobre<br />

Sindazel. Ouviram a tudo com muita paciência e ficaram<br />

maravilha<strong>dos</strong> com a história. De vez em quando se<br />

entreolhavam, como que buscando apoio um no outro para<br />

acreditar naquela fantasia toda. Peter, mais cético que Grassac<br />

quanto ao que Etiènne narrava, questionava vários detalhes.<br />

Etiènne foi explicando tudo pacientemente, mas por fim<br />

exibiu aos amigos o cordão que Sindazel lhe dera. O brilho do<br />

estranho material emudeceu os companheiros de Etiènne.<br />

— Eu nunca vi nada igual a isso! — comentou surpreso,<br />

Peter, olhando em seguida para Grassac.<br />

— Posso pegar? Indagou Grassac.<br />

— Claro, mas não irei tirar do pescoço. Ajoelhou-se<br />

próximo ao amigo, colocando o cordão ao alcance das mãos de<br />

Grassac.<br />

Peter, também, louco de curiosidade, esticou o braço e<br />

segurou o cordão, admirando-o.<br />

Os dois ficaram com os olhos arregala<strong>dos</strong>, ainda<br />

incrédulos de que tudo o que ouviram pudesse ser verdade.<br />

— Agora chega! Acreditam em mim?<br />

Os dois se entreolharam e assentiram com a cabeça.<br />

— Mas Etiènne, você tem que concordar que é uma<br />

história absurda e impossível de acreditar! — Comentou<br />

Grassac.— Por Deus! Terei ingerido a mesma erva<br />

alucinógena que você? Mas creio em sua história, amigo.<br />

— Sim, eu sei! É difícil acreditar, mas é a mais pura<br />

verdade e será nossa salvação. Agora temos realmente uma<br />

nova terra para buscar e viver! — Etiènne falava com fervor e<br />

com um intenso brilho nos olhos. E sempre pensava em rever<br />

Sindazel, em seus desejos mais secretos.<br />

110


Ficou até difícil de se concentrarem novamente no<br />

planejamento para a busca <strong>dos</strong> demais membros do Conselho,<br />

mas algumas horas a mais foram suficientes para que tudo<br />

fosse acertado.<br />

Se desfizeram das roupas do inglês e conseguiram junto<br />

às outras pessoas do grupo, roupas mais adequadas para Peter<br />

que, trajando roupas civis, desceu à cidade com Grassac para<br />

buscar Michel Montbard e os outros.<br />

Na ferraria, to<strong>dos</strong> estavam ainda muito apreensivos com<br />

os tumultos nas ruas de Amiens. Já sabiam que o bloqueio<br />

havia terminado, mas temiam por suas vidas. Tentavam<br />

organizar suprimentos através do tio de Gien, e aos poucos<br />

foram conseguindo bastante alimento e roupas.<br />

Leon continuava mergulhado em profun<strong>dos</strong><br />

pensamentos, ao lado de sua tia Claudia. Praticamente não<br />

participou de nenhuma ação ou decisão junto a Gien, Michel e<br />

Dízier.<br />

De tudo que fora conversado, organizado e decidido, com<br />

toda certeza a mais incômoda situação resolvida fora a<br />

exclusão de Dízier do grupo, devido ao estado grave de sua<br />

saúde. Seus ferimentos não permitiriam que ele fizesse uma<br />

longa jornada, porque além de colocar em risco sua própria<br />

vida, atrasaria demasiadamente a grande caravana que estava<br />

se pensando em fazer para sair de Amiens. Ficou decidido que<br />

ele ficaria na ferraria, aos cuida<strong>dos</strong> do tio de Gien, já que não<br />

tinha parentes e sua taberna havia sido totalmente incendiada.<br />

— Amigo, não se preocupe! Eu voltarei para buscá-lo<br />

assim que estivermos estabeleci<strong>dos</strong> num local seguro. É uma<br />

promessa! — Afirmou Michel, vendo que seu amigo estava<br />

profundamente abatido com a decisão, pois era um <strong>dos</strong> líderes<br />

e mentor do movimento. Depositara todas as esperanças de<br />

sua vida nessa empreitada, e agora estava ficando de fora.<br />

Mas Dízier sabia que esta era a decisão mais sensata. Não<br />

havia como negar isso. Não podia ser egoísta a ponto de<br />

colocar em risco to<strong>dos</strong> os outros amigos por causa de seu<br />

111


desejo de sair de Amiens. Até certo ponto, achou merecido o<br />

seu destino, por ter aceito o falso lenhador entre eles, outrora.<br />

<br />

<strong>Era</strong> bem cedo, quando ouviram-se fortes batidas na porta<br />

da ferraria. To<strong>dos</strong> acordaram assusta<strong>dos</strong>, mas antes mesmo<br />

que pudessem começar com as elucubrações, novas batidas<br />

vieram seguidas de identificação.<br />

— Podem abrir, sou eu, Grassac, vosso amigo!<br />

— Estamos abrindo, aguarde um momento. — respondeu<br />

Michel em tom grave, como que querendo espantar o susto.<br />

Mais tranqüilos, os homens se encaminharam em direção<br />

à porta, mas antes de abri-la, procuraram certificar-se de que<br />

Grassac estava só.<br />

— Quem está o acompanhando?<br />

— É um foragido de Calais, uniu-se a nós. Estamos com<br />

Etiènne na montanha Serena. Já temos dezenas de seguidores<br />

e to<strong>dos</strong> aguardam ansiosos o momento de partirmos!<br />

Michel abriu a porta e os fez entrar apressadamente. Por<br />

alguns instantes a alegria dominou o semblante de to<strong>dos</strong> que<br />

entre sorrisos, se abraçavam como se fosse um reencontro de<br />

meses de separação. Grassac, apresentou Peter aos amigos e<br />

em seguida iniciaram os preparativos para que se<br />

transferissem da ferraria para o acampamento na montanha.<br />

Antes do meio-dia, os amigos partiram da ferraria do<br />

amigável e atencioso tio do camponês Gien, para o agitado<br />

acampamento onde se encontravam os futuros peregrinos,<br />

cheios de esperança, mas ainda receosos de serem captura<strong>dos</strong><br />

pelos guardas de Amiens.<br />

Despediram-se de Dízier e de Gien com uma enorme<br />

tristeza em seus corações. Estava sendo difícil para eles<br />

encarar Dízier, com seus olhos mareja<strong>dos</strong>, sendo obrigado a<br />

ficar de fora de seu sonho.<br />

112


Michel reforçou ao amigo com veemência que o viria<br />

buscar assim que estivessem em local seguro, e<br />

definitivamente estabeleci<strong>dos</strong>.<br />

Saíram e em pouco mais de duas horas chegavam ao<br />

acampamento na montanha. A alegria de Michel e Etiènne ao<br />

se reencontrarem foi comovente. Após tanto sofrimento, após<br />

estar a um passo da morte, Michel estava ali, abraçado a<br />

Etiènne como se este fosse um filho amado. Sentiu os joelhos<br />

fraquejarem e caiu aos pés de seu irmão mais novo, com as<br />

lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto. Mais uma vez estavam<br />

juntos os irmãos Montbard.<br />

Apesar de todas as atitudes irresponsáveis de Etiènne, o<br />

amor que Michel sentia por seu irmão era imenso, e o fazia<br />

perdoá-lo por to<strong>dos</strong> os seus erros.<br />

Mas desta vez, Michel sabia em seu íntimo que ele, e não<br />

Etiènne, fora o errado em não ter acreditado no julgamento<br />

quanto ao errante Grassac, quanto à sua sinceridade e<br />

prestabilidade, que por fim e certamente com a ajuda de muita<br />

sorte, acabou os salvando das masmorras do castelo de Martin<br />

Lacroix.<br />

Os preparativos para a partida da grande caravana foram<br />

prontamente assumi<strong>dos</strong> por Michel, Etiènne e Grassac, que<br />

contaram com a ajuda de Peter, já que Leon continuava com o<br />

comportamento estranho e insistia em manter-se isolado do<br />

grupo, apenas na companhia de sua tia Claudia.<br />

Os dias foram passando e quase tudo estava pronto para a<br />

partida, até que chegou o momento em que Etiènne<br />

compartilhou com seu irmão as novidades e as informações<br />

sobre a gruta, Sindazel, Vangilla e a revelação das novas<br />

terras.<br />

Foram momentos difíceis porque Michel não acreditou<br />

em nada de que seu irmão relatara. Grassac mais uma vez se<br />

envolveu na contenda <strong>dos</strong> irmãos Montbard, tentando fazer<br />

com que Michel se acalmasse.<br />

113


— Amigo, a princípio eu também não acreditei na história<br />

de seu irmão, mas a riqueza <strong>dos</strong> detalhes e o cordão que ele<br />

agora carrega no peito me fizeram mudar de idéia. Considero<br />

que Etiènne mereça um crédito.<br />

— Grassac! Eu não posso colocar em risco a vida de<br />

centenas de pessoas, acreditando nesta história absurda de<br />

Etiènne, de visões de criaturas com asas e cidades fantásticas<br />

de cristal!<br />

— Sabe, Michel, nos conhecemos muito pouco ainda, mas<br />

já é o suficiente para ver que você se acha muito superior ao<br />

seu irmão. Isto o cega para as coisas boas de que ele é capaz de<br />

conquistar e o torna uma pessoa arrogante!<br />

— Ora, não se trata disso!<br />

— Claro que sim! Já notei o seu ar de superioridade. Você<br />

acha que por ser mais velho é o mais sábio, o mais experiente.<br />

Não dá oportunidades a seu irmão para que ele desenvolva<br />

suas próprias buscas, fica por perto o inibindo a todo tempo.<br />

Obrigando-o a sentir-se como uma sombra sua!<br />

Grassac estava sério, falava de forma austera e dura com<br />

Michel. A conversa era definitiva. Estava decidido a<br />

conquistar a liberdade de idéias para seu amigo Etiènne,<br />

dando um corte decisivo em Michel, que de fato, passou a<br />

vida podando as idéias e desejos de seu irmão mais novo,<br />

como se fosse sempre o dono da verdade.<br />

Custou, mas Grassac convenceu Michel de que ele deveria<br />

dar mais crédito a seu irmão, e parar de a todo momento<br />

condenar suas idéias, ao invés de analisá-las com mais<br />

seriedade e credulidade.<br />

Mais dois dias se passaram e tudo estava preparado para<br />

a saída da enorme caravana, contando com centenas de<br />

pessoas, não só de Amiens, mas a esta altura, de vários pontos<br />

da região norte da França.<br />

Já estava ficando demasiadamente arriscado esperar mais<br />

tempo, devido a enorme quantidade de pessoas reunidas no<br />

acampamento da montanha. Várias colunas de fumaça subiam<br />

114


por entre as árvores diariamente, provenientes das dezenas de<br />

fogueiras que realizavam para se esquentarem e preparar seus<br />

assa<strong>dos</strong>.<br />

<br />

As coisas não iam bem ao norte, na região de Calais.<br />

Milhares de solda<strong>dos</strong> do exército inglês já ocupavam as praias,<br />

com centenas de tendas. Arqueiros de elite, campeões,<br />

piqueiros e escaramuçadores se espalhavam como um mar de<br />

homens por toda a parte. Os comandantes se reuniam em<br />

concílios para decidir os últimos detalhes da invasão.<br />

Apesar de terem desembarcado numa região mais erma<br />

de Calais, já se sentiram vitoriosos por não encontrarem<br />

qualquer embarcação inimiga defendendo a costa. Seria uma<br />

questão de tempo para dominar as cidades vizinhas e<br />

subjugar os franceses.<br />

Muitos já haviam abandonado seus lares. O rei Philipe VI<br />

já havia enviado uma força para guarnecer Beauvais, e<br />

contava ainda com dois exércitos da Picardia, que estavam em<br />

Boulogne.<br />

Mas a maior força estava concentrada em Troyes, com<br />

uma cavalaria de quatrocentos paladinos aproximadamente e<br />

cerca de mil homens de infantaria. Esta força seria mantida<br />

fora de qualquer combate, pois destinava-se à proteção de<br />

Paris, caso as tropas inglesas conseguissem chegar tão longe.<br />

Todo esse movimento militar, somado às fracassadas<br />

articulações diplomáticas do rei Philipe, que já havia apelado<br />

ao Papa por uma intervenção, através <strong>dos</strong> monges da Abadia<br />

de Saint-Michel, colocou o povo franco em desespero.<br />

Finalmente os boatos passaram à realidade. A guerra era<br />

inevitável e com isso, não iria demorar muito para que<br />

descobrissem a rota de fuga do Conselho de Conspiradores de<br />

Amiens, e centenas de pessoas a fossem procurar como<br />

alternativa para fugir desesperadamente <strong>dos</strong> tempos incertos<br />

que se avizinhavam.<br />

115


Na véspera da partida, o alvoroço entre as pessoas do<br />

acampamento na montanha era enorme. Vários grupos de<br />

velhos e novos amigos haviam se formado, famílias inteiras<br />

reunidas, diversos animais arrebanha<strong>dos</strong> que serviriam como<br />

alimento durante a jornada que os esperava, debatiam-se<br />

alucina<strong>dos</strong>, em meio a tanta movimentação.<br />

Michel, convocou Etiènne para que fossem até a gruta,<br />

tentar fazer contato com a suposta criatura que seu irmão<br />

havia descrito, a fim de definir como e por onde passariam<br />

com cerca de quase duas mil pessoas. Nem mesmo Michel<br />

acreditou que conseguiriam reunir tantas pessoas. Não era<br />

mais possível esperar, tinham de partir.<br />

Juntos, os irmãos Montbard subiram até a fenda rochosa<br />

que dava acesso à gruta. Até este ponto, os detalhes narra<strong>dos</strong><br />

por Etiènne estavam precisos, mas Michel continuava<br />

incrédulo de que tal ser de descrições celestiais pudesse<br />

realmente existir.<br />

Entraram na gruta silenciosamente. Michel, seguia<br />

Etiènne que levava um archote à frente, iluminando de<br />

maneira parca o sombrio local. Na verdade, uma escuridão<br />

terrível os envolvia. Michel já imaginava a reação de<br />

inquietação <strong>dos</strong> peregrinos ao passar por tal lugar, e<br />

secretamente malograva a idéia da gruta ser uma passagem<br />

para uma saudável terra desconhecida.<br />

Andaram cerca de quinze metros além da entrada<br />

rochosa. Etiènne parou e voltando-se para Michel, levou o<br />

dedo indicador aos lábios, sinalizando a seu irmão que ficasse<br />

em silêncio. As batidas do coração de Etiènne podiam ser<br />

ouvidas por seu irmão. A situação era inquietante e ao mesmo<br />

tempo ridícula, aos olhos de Michel. Então Etiènne gritou com<br />

força o nome da Vangi.<br />

— Sindazel! Sindazel!<br />

A voz de Etiènne correu pelas obscuras entranhas da<br />

montanha, mas a única resposta foi o eco de sua própria voz<br />

116


etumbando várias vezes dentro da gruta. Repetiu o chamado<br />

algumas vezes, e sempre a resposta era o eco de sua voz.<br />

Michel deu dois tapinhas no ombro de seu irmão, e pediu-lhe<br />

que encerrassem as tentativas. Sindazel não aparecera!<br />

Etiènne olhou para seu irmão com uma enorme tristeza. A<br />

parca luminosidade que o archote produzia foi suficiente para<br />

que Michel visse os olhos mareja<strong>dos</strong> de seu irmão. Talvez<br />

estivesse se sentindo humilhado e completamente<br />

desacreditado. Viu que apertava com força, o amuleto que<br />

agora tornara-se inseparável de seu irmão mais novo, e que ele<br />

mordia os lábios tentando conter suas lágrimas e agonia.<br />

Comovido em ver seu irmão sofrendo daquela forma, pela<br />

primeira vez, Michel foi solidário com a causa de Etiènne.<br />

— Já que sua amiga não vem, vamos nós procurar os<br />

caminhos da gruta!<br />

Ao ouvir isso, Etiènne abraçou seu irmão com grande<br />

alegria, nem podia acreditar no que tinha acabado de ouvir.<br />

— Irmão! Você não imagina o quanto isso é importante<br />

para mim! Vamos, vamos encontrar o caminho!<br />

Michel correspondeu com um sorriso, mas no fundo de<br />

seu coração não acreditava que fossem encontrar algo. Apenas<br />

não queria deixar Etiènne arrasado, e resolveu encorajá-lo a<br />

seguir com sua idéia, que particularmente, achava absurda.<br />

Passaram horas na gruta, cobrindo as extensões de ponta<br />

a ponta, tateavam e forçavam as rochas à procura de possíveis<br />

entradas falsas, mas nada encontravam. Já estavam exaustos e<br />

a ponto de desistir, quando Michel encontrou algo muito<br />

significativo, que possivelmente estava ali para indicar o<br />

caminho a Etiènne.<br />

Havia percebido uma mancha clara em contraste com o<br />

negrume da gruta, e intrigado aproximou o archote da rocha<br />

manchada. Para seu espanto, havia uma inscrição na parte<br />

superior da escura rocha, dizendo:<br />

Seja bem-vindo!<br />

117


A julgar pelo brilho que emanava das cintilantes palavras<br />

estampadas na fria rocha, Michel, percebeu que nenhuma<br />

espécie de tintura conhecida fora usada para escrever aquela<br />

frase, que por sinal, tinha cada letra desenhada precisamente!<br />

Olhou maravilhado e boquiaberto para seu irmão, esperando<br />

que ele se pronunciasse. Etiènne, deu um sorriso, suspirou<br />

aliviado, e limitou-se a dizer — Eis o caminho!<br />

Os dois avançaram, sentiram um estranho vento frio<br />

sobre suas cabeças, e o archote deu visão a uma enorme<br />

passagem, que descia levemente, como se fosse um túnel sem<br />

fim. <strong>Era</strong> largo o suficiente para que passassem duas dúzias de<br />

bois lado a lado, e bastante alto.<br />

— A não ser pela escuridão, a caravana não terá<br />

problemas para passar por este largo túnel. — disse Michel. —<br />

mas onde será que isso termina?<br />

— Não tema meu irmão! Termina em nossas novas terras.<br />

Em nosso paraíso, onde viveremos felizes e sem opressão! —<br />

retrucou Etiènne, muito confiante.<br />

Decidiram então, que a partida da caravana seria no dia<br />

seguinte, e voltaram para o acampamento, que a essa altura<br />

mais parecia uma cidade, tamanha era a quantidade de<br />

barracas, pessoas e animais.<br />

<br />

Na manhã seguinte, no dia em que os líderes do Conselho<br />

resolveram partir pelo caminho de Etiènne, através da gruta<br />

onde conhecera Sindazel, a alegria do enorme grupo de<br />

peregrinos que já estava reunido era indescritível. To<strong>dos</strong> se<br />

abraçavam, sorriam e apertavam as mãos uns <strong>dos</strong> outros.<br />

Seguiram anima<strong>dos</strong>, para um mundo desconhecido, sem saber<br />

sobre os perigos e aventuras que os aguardavam. Não tardaria<br />

para que a euforia se transformasse em medo e discórdia.<br />

Antes do final da tarde, toda a caravana já havia entrado<br />

pela gruta, e já avançava pelos sombrios e rochosos corredores<br />

da montanha. Mas para aflição de Michel e Etiènne, antes<br />

118


mesmo que to<strong>dos</strong> os peregrinos tivessem passado sob a<br />

misteriosa inscrição “Seja bem vindo!”, o descontentamento e<br />

os questionamentos já dominavam a maior parte <strong>dos</strong><br />

peregrinos, que não se conformavam com a escuridão, apesar<br />

de dezenas de tochas garantirem uma boa visibilidade dentro<br />

do espaçoso túnel.<br />

As primeiras horas pareciam intermináveis, e alguns já<br />

começavam a dizer que estavam perdi<strong>dos</strong>, ou que aquela<br />

descida os levaria incontestavelmente para o inferno. Mas<br />

muitos continuavam firmes e mantinham sua fé sobre a busca<br />

das novas terras, apesar de também incomoda<strong>dos</strong> com a<br />

interminável descida e com a escuridão.<br />

Os que seguiam à frente e puxavam a caravana, a cada<br />

hora pareciam diminuir o ritmo da marcha, sempre fazendo<br />

um enorme esforço com suas vistas para tentar enxergar uma<br />

luz no fim do túnel.<br />

119


A<br />

CAPÍTULO VIII<br />

A longa peregrinação<br />

constante caminhada sem descanso, não tardaria a<br />

aumentar o descontentamento por parte <strong>dos</strong> peregrinos.<br />

O cansaço começava a se manifestar até mesmo nos mais<br />

fortes, que já vinham apoiando i<strong>dos</strong>os e crianças como<br />

podiam.<br />

O ar parecia ficar mais escasso a cada metro que<br />

avançavam. A agonia aumentava a cada minuto. Grassac, a<br />

esta altura, era o único a manter um semblante sério, isento de<br />

medo ou sofrimento. Vinha escoltando a enorme caravana, ao<br />

lado de Etiènne e Peter.<br />

De repente, to<strong>dos</strong> pararam a caminhada. Um murmúrio<br />

percorreu as fileiras até chegar ao final da caravana. Grassac,<br />

mantendo sua serenidade, partiu em galope pelo flanco direito<br />

da enorme caravana, em direção aos que iam à frente.<br />

Ao chegar, encontrou uma roda de pessoas, e no centro<br />

estavam Michel e um <strong>dos</strong> peregrinos, trocando empurrões e<br />

uma vergonhosa série de impropérios. O motivo da discussão<br />

era justamente a calamitosa situação em que to<strong>dos</strong> se<br />

encontravam, praticamente esgota<strong>dos</strong> de cansaço em uma<br />

interminável descida para o inferno! Grassac chegou numa<br />

boa hora, pois outros peregrinos já se uniam ao violento e<br />

descontente senhor que tentava atingir Michel com seu cajado,<br />

aos gritos. Grassac desmontou rapidamente de seu corcel e foi


abrindo passagem pelos que se amontoavam para assistir a<br />

contenda. Ao chegar no meio da confusão, Grassac postou-se<br />

ao lado de seu amigo Michel e pediu calma aos furiosos<br />

companheiros de jornada. Michel tentava explicar a Grassac o<br />

motivo da fúria das pessoas, mas sua voz era abafada pelos<br />

gritos da descontente multidão. Não há nada mais perigoso a<br />

um indivíduo do que o descontentamento das massas.<br />

Grassac, sacou sua espada e em voz alta desafiou a to<strong>dos</strong><br />

que ali estavam, convidando-os para acabar de vez com o<br />

sofrimento. Sem hesitar ou demonstrar qualquer sinal de<br />

nervosismo, continuava austero, encarando um a um os<br />

peregrinos revoltosos.<br />

— Muito bem! Se for briga o que querem, aqui estou!<br />

Venham! Vamos acabar logo com isso! Mas garanto-lhes que<br />

seria mais sensato nos organizarmos e pensar em algo mais<br />

construtivo do que ficarmos nos matando!<br />

— Nós já estamos mortos! — gritou um <strong>dos</strong> peregrinos.<br />

— É isso mesmo — vociferou outro, — nós estamos indo<br />

direto para nossas sepulturas no fundo da terra! — concluindo<br />

tomado de revolta.<br />

— Eu quero lhes fazer uma proposta! Irei sozinho daqui<br />

por diante, e se eu não voltar até que a chama desta tocha se<br />

apague, vocês devem retornar à floresta, o que me dizem?<br />

Ninguém precisa dar mais um passo sequer. Eu irei sozinho, à<br />

frente!<br />

Um novo murmúrio percorreu os peregrinos. Michel<br />

olhou para Grassac incrédulo. Não obstante, disse que<br />

pretendia acompanhá-lo.<br />

— Não, você tem que ficar com Leon e manter as coisas<br />

em ordem. Não podemos arriscar depois de tanta caminhada.<br />

Imagino que estejamos perto do lugar que teu irmão falou.<br />

Ainda há pouco, senti uma brisa fresca vinda lá da escuridão.<br />

121


— Também senti, mas achei que era alucinação. Nem<br />

mesmo eu acredito mais no tal paraíso de Etiènne. Não sei por<br />

que, mas acho que logo agora que resolvi lhe dar ouvi<strong>dos</strong>,<br />

sinto ter errado.<br />

— Nada disso! Não se preocupe, Etiènne está certo!<br />

Confio nele!<br />

— É amigo, espero que esteja certo.<br />

— E estou, pode ter certeza! E Leon, o que há com ele?<br />

Grassac percebeu que Leon estava alheio à contenda,<br />

isolado, taciturno, próximo a uma carroça. Nem mesmo se<br />

prontificou a socorrer Michel com os peregrinos revolta<strong>dos</strong>.<br />

— Não sei Grassac. Desde o início da caminhada ele tem<br />

se mantido calado e sério. Tentei conversar com ele várias<br />

vezes, mas logo ele se afastava, com respostas curtas e<br />

evasivas.<br />

— Não se preocupe, irei falar com ele antes de partir. —<br />

Grassac então, virou-se novamente para a multidão e<br />

perguntou: — Então, já decidiram? Continuamos a caminhada<br />

juntos, nos matamos aqui e agora, ou devo ir adiante, em<br />

busca de respostas?<br />

A multidão se entreolhava sem responder ao<br />

questionamento de Grassac. O peregrino que agredira Michel<br />

então resolveu se pronunciar.<br />

— Que você vá sozinho ao inferno! Tenho certeza de que<br />

não voltarás!<br />

Ao ouvir estas palavras, os demais peregrinos<br />

concordaram com o velho e começaram a gritar para que<br />

Grassac fosse só.<br />

— Como queiram!<br />

Grassac deu dois tapinhas nos ombros de Michel,<br />

embainhou sua espada e foi em direção a Leon.<br />

Ao se aproximar do companheiro, Grassac estendeu a<br />

mão, oferecendo ajuda a Leon, que acabara de tropeçar e cair<br />

122


ao chão. Leon, por sua vez, ignorou a mão de Grassac e pôs-se<br />

de pé, limpando suas mãos batendo uma na outra, mas sequer<br />

se dignou a olhar para Grassac.<br />

— Algum problema amigo? — questionou Grassac.<br />

— Não, nenhum problema. — respondeu secamente ao<br />

amigo, deu as costas e saiu caminhando em direção ao seu<br />

cavalo, que estava amarrado a uma das carroças. Grassac,<br />

nada satisfeito com a atitude de Leon, foi atrás do<br />

companheiro e lhe segurou pelo braço, insistindo em<br />

conversar com ele.<br />

— Espera, não terminei de falar com você!<br />

— Pois eu já! Se me der licença, estou de partida! —<br />

respondeu Leon.<br />

— Partida!? Achei que estávamos indo juntos buscar a<br />

realização de um mesmo ideal? Onde vais!?<br />

— Não, meu ideal não é mais o mesmo que o de vocês.<br />

Irei me posicionar ao centro da caravana!<br />

Leon montou em seu cavalo e partiu ligeiramente, em<br />

direção oposta à descida, buscando posicionar-se longe <strong>dos</strong><br />

amigos para que pudesse continuar suas reflexões sem mais<br />

importunações como a que Grassac, inadvertidamente,<br />

acabara de lhe fazer. Nem mesmo se despediu de Michel,<br />

partiu a um galope ligeiro, voando como uma seta!<br />

Grassac ficou estupefato com a atitude de Leon, sacudiu a<br />

cabeça e voltou para conversar com Michel sobre tais atitudes.<br />

Os dois ficaram alguns minutos discutindo o assunto, sem<br />

chegar a grandes conclusões.<br />

Grassac, então despediu-se de Michel e pediu para que ele<br />

mantivesse, na medida do possível, os peregrinos uni<strong>dos</strong> até<br />

seu retorno. Michel assentiu com a cabeça e deu um forte<br />

abraço no amigo, esperançoso de que seu retorno fosse breve e<br />

favorável.<br />

123


Etiènne e Peter, alheios ao que havia ocorrido na frente do<br />

grupo, percebendo que a caravana estacionara, resolveram<br />

recostar-se às rochosas paredes do enorme túnel para<br />

descansar. Muitos peregrinos fizeram o mesmo, pois to<strong>dos</strong><br />

estavam exaustos. A escuridão parecia ajudar a esgotar suas<br />

energias com incrível eficiência.<br />

— Então, Peter, como acha que irá acabar essa jornada. —<br />

indagou Etiènne.<br />

— Não sei meu nobre amigo, não sei, mas temo por<br />

nossas vidas se isso aqui terminar numa alcova sem saída!<br />

— Acredite-me, chegaremos a uma terra maravilhosa.<br />

— Sim, sim, Deus queira!<br />

— Diga-me nobre arqueiro, o que sente quando atira uma<br />

seta num homem, à distância.<br />

— Depende muito da situação, Etiènne — respondeu<br />

Peter franzindo a testa, um tanto constrangido com a<br />

pergunta. — Estás me tirando por covarde, por certo. Achas<br />

que somente tem coragem o homem que porta um machado<br />

de batalha, ou uma espada? Não, cada um nasce com um Dom<br />

distinto, e isso nos difere.<br />

— Não o estou julgando, Peter. Apenas gostaria de matar<br />

minha curiosidade em relação aos arqueiros. Mas se esta<br />

conversa o incomoda, mudemos de assunto!<br />

— Nem sempre ficamos perfila<strong>dos</strong> aguardando uma<br />

ordem para lançarmos nossas setas a esmo em direção às<br />

hostes inimigas além de trezentos metros à nossa frente.<br />

Existem ocasiões, em que somos convoca<strong>dos</strong> para eliminar<br />

alvos seleciona<strong>dos</strong>, mesmo entre nosso próprio meio. —<br />

pigarreou duas ou três vezes e continuou — Certa vez, fui<br />

convocado para eliminar um nobre escocês, que era aliado fiel<br />

ao nosso reino, que entretanto, devido a um jogo de interesses,<br />

teve sua morte encomendada. Cumpri meu dever de militar!<br />

Obedeci ordens superiores, mas deplorei aquela atitude.<br />

124


Quando um homem está num campo de batalha, está armado<br />

e consciente de que pode tombar a qualquer momento ou no<br />

primeiro descuido, seja pela lâmina sedenta de sangue de um<br />

oponente corpo-a-corpo, seja por uma seta, perdida ou<br />

direcionada. Mas um homem desarmado, sem qualquer<br />

proteção, e que sequer era um militar inimigo. Isso me<br />

perturbou por um longo tempo!<br />

Etiènne prestava atenção ao amigo inglês, desejoso de<br />

conhecer mais profundamente sua natureza.<br />

— A partir desta data, todas as noites antes de uma<br />

batalha, ao colocar as setas que seleciono para carregar em<br />

minha aljava, eu as rezo, uma a uma. Rezo para que Deus seja<br />

misericordioso com as almas que elas Lhe encaminharam<br />

durante a batalha.<br />

— Mesmo para as almas <strong>dos</strong> francos?<br />

— Ora, vamos! Jamais estive num conflito direto com seu<br />

povo, Etiènne! Conterrâneos de minha amada e sau<strong>dos</strong>a mãe,<br />

que Deus a tenha. Mas lhe asseguro, que rezo, sim, para to<strong>dos</strong><br />

os inimigos, pois to<strong>dos</strong> são filhos de Deus.<br />

— Acredito nisso, mas não creia que inimigos venham a<br />

ter misericórdia por você, se um dia cair nas mãos deles!<br />

— Não espero misericórdia, e não creio que isso venha a<br />

acontecer um dia, pois não estamos a caminho de uma nova<br />

terra, onde vosso objetivo é instaurar uma cidade pacífica?<br />

Não me vanglorio do dom do arco, de forma que não terei<br />

dificuldades em trocá-lo por uma vida de paz. Também tenho<br />

meus sonhos. — Nesse momento, baixou os olhos e, mesmo à<br />

escuridão, Etiènne pôde notar o sorriso sonhador de Peter. —<br />

Sonho em casar-me cedo, e criar muitos filhos. Desejo ter uma<br />

família feliz, para compensar a infância sombria que fui<br />

obrigado a viver.<br />

— Não se preocupe, amigo. To<strong>dos</strong> nós realizaremos<br />

nossos sonhos na nova terra, lhe prometo!<br />

125


126


A<br />

CAPÍTULO IX<br />

Um novo despertar<br />

sofreguidão com que os peregrinos se esforçavam para<br />

aguardar o retorno de Grassac era incomensurável. Após<br />

mais algumas discussões, chegaram à conclusão de que<br />

deveriam continuar a jornada, para não perder mais tempo,<br />

mesmo antes de Grassac retornar. E assim, apesar de uma<br />

minoria demonstrar-se irritada e totalmente desfavorável a<br />

essa idéia, o desejo da maioria prevaleceu e retomaram a<br />

vagarosa marcha. Alguns simplesmente cambaleavam com<br />

seus pés errantes, como verdadeiros zumbis, e quase<br />

permitiam-se levar pela inclinação da descida, muito mais do<br />

que por suas próprias pernas. Quase to<strong>dos</strong> estavam<br />

desanima<strong>dos</strong> e cabisbaixos, com uma profunda tristeza<br />

constante no olhar. Ninguém mais do grupo de descontentes<br />

ousava exaurir suas últimas energias com reclamações<br />

exasperadas. Agora, havia um medo e descontentamento<br />

vela<strong>dos</strong>, que cada um carregava dentro de si como se fosse um<br />

enorme e insuportável fardo.<br />

O ar parecia ficar mais escasso a cada metro que<br />

avançavam. A agonia continuava aumentando a cada minuto<br />

dentro daquela escuridão sufocante.<br />

Mais de quarenta horas haviam se passado desde o início<br />

eufórico na floresta da Montanha Serena, à entrada da gruta<br />

onde Etiènne havia se encontrado com Sindazel, quando algo<br />

inesperado ocorreu. Uma forte lufada de vento atingiu os


peregrinos que iam à frente da caravana, inclusive Michel. Os<br />

archotes se apagaram e inúmeras folhas de árvores atingiam<br />

as pessoas, que assustadas, pensando que pudessem ser<br />

enormes morcegos, corriam no breu desordenadamente aos<br />

gritos de pavor, temendo pelo que restava de suas vidas.<br />

Em vão, Michel tentou acalmar a multidão de peregrinos<br />

desespera<strong>dos</strong>, que se alastrava por toda a caravana como uma<br />

enorme onda de terror, fazendo com os que vinham mais atrás<br />

se apavorassem sem saber sequer as razões do alvoroço que se<br />

havia desencadeado.<br />

A confusão parecia incontrolável, mas uma idéia surgiu à<br />

mente de Michel, e este num ato desesperado de tentar<br />

controlar a desordem, anunciou que haviam chegado ao local<br />

prometido por seu irmão Etiènne. Os peregrinos se acalmaram<br />

diante daquela declaração e caminharam aos tropeços em<br />

direção a Michel, que subitamente se arrependera do que<br />

falou, pois sabia que desta vez lhe tirariam a vida quando<br />

descobrissem que havia mentido. Mas para a fortuna de<br />

Michel, e de to<strong>dos</strong> os peregrinos, Grassac irrompeu de repente<br />

do breu, erguendo uma solitária tocha acesa em sua mão.<br />

— Povo de Amiens! Encontrei a terra maravilhosa que<br />

procuramos! É verdade, estamos a menos de duas milhas!<br />

Os peregrinos escutaram aquela notícia com grande<br />

entusiasmo. Alguns caíram de joelhos, cheios de lágrimas nos<br />

olhos, agradecendo a Deus por terem sido salvos.<br />

Michel suspirou aliviado, e em silêncio, também<br />

agradeceu a Deus por seu irmão Etiènne não ter se enganado,<br />

levando-o a conduzir aquelas pessoas para um trágico fim.<br />

<br />

No castelo de Martin Lacroix, a rotina estava<br />

completamente alterada. As aias de Catherine solidarizaramse<br />

vendo o desespero de sua senhora, e esbaforidas,<br />

continuavam organizando incansavelmente as coisas que<br />

128


Catherine havia ordenado que separassem e arrumassem para<br />

sua viagem à Roma.<br />

Ansiosa para partir, temendo o regresso a qualquer<br />

momento de seu cruel senhor, Catherine conduzia<br />

pessoalmente a arrumação.<br />

O entardecer já começava a ceder seu lugar às trevas da<br />

noite quando uma comitiva originária de Abbeville adentrou<br />

no castelo. Alguns cavaleiros escoltavam a bela carruagem,<br />

enfeitada com as flâmulas daquela cidade, e um portaestandarte<br />

anunciava que alguém de grande importância fazia<br />

parte daquele grupo.<br />

Catherine foi interrompida por um <strong>dos</strong> guardas do<br />

castelo, que anunciava a presença da comitiva de Abbeville.<br />

Assustada, apressou-se em verificar de sua janela, a fim de<br />

tentar identificar quem poderia ser a uma hora tardia<br />

daquelas, já caindo a noite. Seria alguma trágica notícia a<br />

respeito de sua sofrida filha, que fora a seu contragosto<br />

oferecida por Martin, ao senhor daquela cidade?<br />

Chamou uma de suas aias e ordenou que lhe trouxessem<br />

uma bacia com água fresca e uma toalha. Rapidamente<br />

refrescou o rosto, lavou as mãos e dirigiu-se ao átrio principal<br />

do castelo, onde a carruagem estava estacionada.<br />

Quebrando to<strong>dos</strong> os protocolos, Lourdes já havia<br />

descido da carruagem, e aguardava sua mãe com grande<br />

entusiasmo, afinal, algo de bom o medo da guerra trouxe, pois<br />

Lourdes estava de volta à Amiens. O casamento com o senhor<br />

de Abbeville fora adiado, pois o nobre governante preferiu<br />

aguardar os acontecimentos à distância.<br />

Lourdes parecia estar ainda mais bela do que nunca,<br />

vinha com seus longos cabelos doura<strong>dos</strong> e ondula<strong>dos</strong>, soltos<br />

ao vento. Algo tinha feito com que a jovem de apenas<br />

dezesseis anos tivesse amadurecido rapidamente nos últimos<br />

meses. Os olhos com uma cor de mel, quase amarelos,<br />

combinavam com seus cabelos, mas seu olhar estava mais<br />

triste do que Catherine estivera acostumada a contemplar.<br />

129


Teria sofrido ela alguma injúria ou mau trato em Abbeville?<br />

Não, na verdade, sua mãe descobriria mais tarde que o<br />

desgosto da filha a havia endurecido.<br />

O reencontro de mãe e filha foi uma enorme emoção.<br />

Entre lágrimas e sorrisos, as duas se abraçavam como se<br />

estivessem longe uma da outra há anos, quando apenas<br />

poucos meses as haviam separado.<br />

— Minha filha, que alegria vê-la novamente! Estava tão<br />

amargurada, pois estou de partida para Roma e temia não<br />

encontrá-la por longos anos!<br />

— Minha mãe, o que está dizendo!? Por quê vocês irão<br />

para Roma? Não me enviaria ao menos um aviso?<br />

— Depois que você partiu minha filha, muitas coisas<br />

aconteceram por aqui. O senhor da cidade está<br />

enlouquecendo, e com sua loucura e tirania irá trazer<br />

sofrimento a muita gente. Eu não agüento mais essa vida de<br />

servidão e maus tratos. Estou angustiada minha querida, eu<br />

preciso, eu quero ir para Roma e lá viverei com meu tio Brian.<br />

— Mas e meu pai!? Ele não irá permitir isso! A senhora<br />

poderá sofrer uma séria punição por tentar abandoná-lo!<br />

— Por isso não tenho muito tempo, meu anjo. Quero<br />

aproveitar enquanto ele está fora da cidade para fugir o<br />

quanto antes. Pretendo sair amanhã bem cedo. Foi uma<br />

dádiva de Deus sua vinda justamente hoje, antes de minha<br />

partida. Há muita coisa que precisamos conversar, minha<br />

querida, muita coisa. Vamos subir.<br />

— Claro minha mãe, claro.<br />

As duas deram as mãos e subiram as escadas da entrada<br />

principal, que conduz ao interior do grande salão, onde<br />

geralmente Martin costumava despachar suas ordens à guarda<br />

de sua cidade.<br />

Catherine e Lourdes ficaram conversando durante<br />

horas. A madrugada já avançava quando escutaram o som de<br />

diversos cascos do lado de fora. Catherine, sobressaltou-se.<br />

Não podia acreditar que Martin pudesse ter regressado a<br />

130


poucas horas antes de sua fuga. Correu aflita até a janela para<br />

ver o que estava acontecendo, mas, à pouca luz <strong>dos</strong> archotes<br />

que iluminavam parcamente o átrio principal, não pôde<br />

identificar Martin em meio aos homens que estavam lá fora.<br />

Percebeu um certo alvoroço entre os solda<strong>dos</strong>, que pareciam<br />

cercar alguém que falava e gesticulava muito.<br />

Voltou até a cama onde Lourdes estava sentada.<br />

— Minha filha, alguma coisa está acontecendo,<br />

precisamos ir embora, já! Não há mais tempo, temo que seu<br />

pai esteja de volta antes do amanhecer. Estou com um<br />

pressentimento ruim.<br />

— Minha mãe, eu tenho medo! Tenho medo da<br />

desolação e fúria que podem se abater sobre meu pai. Ele irá<br />

atrás de nós, e nos punirá severamente!<br />

— Se não partirmos já, temo que de qualquer forma<br />

venhamos a sofrer em suas mãos!<br />

— Não minha mãe! Eu não posso fazer isso! Não posso,<br />

tenho muito medo!<br />

Catherine entristeceu-se. Seus olhos se encheram de<br />

lágrimas e ela abraçou a filha com ternura.<br />

— Você saberá onde estou, e se um dia puder ir à Roma,<br />

te acolherei com o amor e o carinho que sempre tive por você<br />

minha querida. Rezarei todas as noites pelo seu bem estar.<br />

Lourdes se agarrou com força à sua mãe e, chorando,<br />

implorou por seu perdão por não ter coragem de acompanhála.<br />

As duas desceram juntas, e várias aias acompanhavam<br />

Catherine, trazendo seus utensílios, roupas e jóias. Uma<br />

carruagem estivera de prontidão para partir durante os<br />

últimos dois dias, e agora, era chegada a hora.<br />

Catherine estava muito apreensiva, o frio cortante da<br />

madrugada lhe fazia doer to<strong>dos</strong> os ossos do corpo. Estava<br />

ofegante, esfregava as mãos com força e seu olhar vasculhava<br />

por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong> a procura do cocheiro que a conduziria. O<br />

homem não estava próximo à carruagem. Catherine ordenou a<br />

131


uma de suas aias que o procurasse, enquanto dava suas<br />

últimas recomendações à filha.<br />

Não tardou para que a serviçal voltasse com o cocheiro,<br />

que estivera em calorosa discussão com a guarda do castelo.<br />

Sucedeu que, homens fiéis ao Duque Gilles de Guanion que<br />

fora designado para assumir a posição de Martin Lacroix,<br />

haviam chegado ao castelo, e as ordens eram para que<br />

ninguém deixasse o castelo até sua chegada, que se daria<br />

ainda em uma semana.<br />

O desespero de Catherine foi imediato! Dirigiu-se<br />

pessoalmente para falar com os homens do Duque, exigindo<br />

que sua carruagem pudesse deixar o castelo, mas sua<br />

intervenção foi inútil.<br />

— Senhora, não podemos abrir exceções, as ordens do<br />

Duque foram bem claras! Não queira colocar nosso pescoço<br />

em perigo. Imploro para que tenha paciência, logo tudo estará<br />

resolvido!<br />

— Mas isto é um absurdo! Como podem manter-me<br />

presa em minha própria casa!?<br />

— Esta propriedade pertence ao rei Philipe VI e à<br />

França. Apenas cumpro meu dever!<br />

— O meu dever é saber onde está meu marido, o<br />

verdadeiro senhor de Amiens!<br />

— Seu marido é um traidor da França e está sendo<br />

procurado como criminoso! O novo e único senhor de Amiens<br />

é o Duque Gilles de Guanion!<br />

Furiosa e horrorizada, Catherine deu as costas ao<br />

soldado e voltou para a carruagem. Precisava pensar em algo.<br />

Talvez alguém da guarda de Amiens pudesse ajudá-la, mas<br />

qual <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> agiria contra a vontade, do futuro senhor de<br />

Amiens? O pior havia acontecido, de alguma forma, Martin<br />

Lacroix havia falhado em sua tentativa de silenciar o arauto do<br />

rei, e agora era procurado como criminoso. Será que seus<br />

homens se voltariam contra ele? Quantos lhe seriam fiéis<br />

depois de tanta arrogância como senhor da cidade?<br />

132


Uma coisa era certa, ele não iria deixar sua cidade nas<br />

mãos de outro nobre sem tentar reavê-la, pela força. Mas o que<br />

isso importava agora para Catherine? Precisava descobrir um<br />

meio de fugir daquela loucura toda antes que fosse tarde<br />

demais.<br />

Catherine sabia que, em último caso, poderia escapar<br />

pela passagem secreta <strong>dos</strong> calabouços. Mas mesmo que saísse,<br />

como iria para Roma sem levar todas as suas roupas e<br />

pertences?<br />

Enquanto não conseguia encontrar uma solução para<br />

sua fuga, o tempo ia passando, e o perigo do retorno de<br />

Martin aumentava a cada dia, à mesma proporção que<br />

aumentava sua angústia.<br />

Já haviam se passado cinco dias, além da data prevista<br />

para a chegada do Duque Gilles de Guanion, quando uma<br />

enorme quantidade de solda<strong>dos</strong> chegou à Amiens, sob o<br />

comando do próprio Martin Lacroix.<br />

Seu semblante era austero, não conseguindo disfarçar<br />

seu ódio ao ver o caos que reinava em sua cidade. A maior<br />

parte <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> que o acompanhavam, seguiam em direção<br />

ao castelo, ao passo que alguns pequenos grupos, por<br />

determinação do próprio Martin Lacroix, haviam se<br />

dispersado pela cidade, em busca de informações, além de<br />

manter os homens de sua guarda, os que haviam ficado na<br />

cidade para segurança do povo, fiéis a ele.<br />

Seu regresso fora triunfal pois Alain Dumas, seguido por<br />

alguns solda<strong>dos</strong> de sua confiança, entrou no castelo pela<br />

passagem secreta, e uma vez dentro, não foi difícil com seu<br />

poder de liderança convencer os homens a se manterem fiéis a<br />

Martin. Os solda<strong>dos</strong> do Duque Gilles de Guanion foram<br />

imediatamente feitos prisioneiros, e antes do anoitecer<br />

daquele dia, Martin Lacroix estava mais uma vez no centro de<br />

sua ambição, dentro de seu castelo, do qual coordenava o<br />

destino de Amiens e seu povo.<br />

133


Martin estava exausto, pois estivera em constantes<br />

combates nos ermos da França. Eliminou com grande<br />

dificuldade o arauto do rei, lutou contra grupos de<br />

mercenários que tentavam saquear os diversos peregrinos em<br />

fuga de várias cidades francesas, e até mesmo seu grupo de<br />

solda<strong>dos</strong>. Rechaçou todas as investidas com grande<br />

determinação. Recrutou novos homens que vagavam sós,<br />

cujas habilidades com espadas e macha<strong>dos</strong> de batalha<br />

puderam ser comprovadas nos combates que foram<br />

necessários durante as várias tentativas de seu<br />

aprisionamento, por grupos de solda<strong>dos</strong> de Paris, fiéis ao rei<br />

da França.<br />

Pensava em to<strong>dos</strong> estes recentes acontecimentos<br />

enquanto despia sua maltratada armadura, quando foi<br />

interrompido por batidas em sua porta. Com um forte grito,<br />

solicitou que o visitante se identificasse. <strong>Era</strong> Alain Dumas.<br />

— Entre, Alain, a porta está aberta!<br />

— Meu senhor, perdoe-me incomodá-lo, mas trago<br />

informações inquietantes.<br />

— Do que se trata? Conseguiu saber o motivo de<br />

tamanha desordem na cidade? Conseguiu saber o motivo pelo<br />

qual os solda<strong>dos</strong> liberaram as fronteiras da cidade? Executarei<br />

pessoalmente o culpado por esta traição e desordem!<br />

— Meu senhor, os problemas são ainda maiores do que<br />

esperava.<br />

Martin era um sujeito tão arrogante quanto impaciente, e<br />

bastou lançar seu olhar fulminante para que Alain se<br />

apressasse a esclarecer os problemas.<br />

— Quando entramos no castelo, pela passagem do<br />

calabouço, encontramos o cadáver de Gallard Gellion no<br />

túnel. Estava desfigurado, com dezenas de ratos sobre o que<br />

ainda restava de sua carcaça.<br />

Martin ficou surpreso, e pensativo. Essa, na verdade, lhe<br />

era uma boa notícia, pois não precisaria mais pagar pelos<br />

serviços do linguarudo. Mas quem o teria matado?<br />

134


— Alguma pista de quem fez isso?<br />

— To<strong>dos</strong> os Conspiradores fugiram! Eles devem ter<br />

assassinado Gallard Gellion!<br />

— O quê!? — A cólera apoderou-se instantaneamente de<br />

Martin, que levantou de forma brusca de onde estava sentado<br />

ouvindo o capitão de sua guarda. Segurou Alain com força<br />

pelos braços, e espumando de raiva perguntou como uma<br />

tragédia assim poderia ter acontecido. — Como!? Como<br />

puderam escapar daquelas celas!?<br />

Um sombrio pensamento passou pela mente de Alain.<br />

Teria a fuga ocorrido por causa de seu velho amigo Grassac?<br />

A esta altura, ele não poderia saber, mas arrependeu-se em<br />

seu íntimo de não ter ordenado que ele fosse acorrentado<br />

como os demais prisioneiros.<br />

— Meu senhor, iremos apurar com brevidade o que<br />

aconteceu. O carcereiro foi encontrado desfalecido, amarrado<br />

e amordaçado na câmara de torturas. Neste momento ele está<br />

se recuperando do estado precário em que se encontra.<br />

— Não! Ele precisa ser interrogado imediatamente!<br />

Precisamos saber de tudo com urgência. Quando e como<br />

aconteceu a fuga!? Ele precisa dizer isso já! — Martin andava<br />

de um lado para o outro, alimentado por um ódio crescente<br />

em seu coração. — Eles devem ter algo a ver com o caos que<br />

está na cidade!<br />

— Meu senhor, o homem não é capaz de falar, está entre<br />

a vida e a morte. Está há dias sem água e comida, talvez não<br />

sobreviva. Não podemos colher seu depoimento agora.<br />

— Mas que desgraça!! E quando este infeliz poderá<br />

falar!? Quem está cuidando dele!?<br />

— Está nas mãos do médico do castelo, mas as<br />

esperanças são remotas — Alain estava nervoso, pois ainda<br />

não tinha terminado de dizer tudo. — As fronteiras, meu<br />

senhor.<br />

— Sim! Precisamos saber o que aconteceu!<br />

135


— A senhora Catherine... ela ordenou que os guardas<br />

deixassem as fronteiras e fossem à vossa procura.<br />

— O quê! Ela cometeu um enorme erro, um enorme erro,<br />

Alain! E ela terá de pagar por ele! Agora deixe-me só, irei<br />

refletir sobre uma punição adequada para ela. Será um bom<br />

exemplo para mostrar ao que resta do povo, que a lei em<br />

Amiens é cumprida, mesmo que tenha de se punir os meus<br />

familiares. — Martin dissimulou um pequeno sorriso, mas por<br />

dentro, dava gargalhadas. Adorava maltratar Catherine, e<br />

agora, uma oportunidade de ouro se apresentava para isso.<br />

— Há mais uma questão envolvendo a senhora<br />

Catherine, meu senhor.<br />

— Diga-me!<br />

— Ela pretendia fugir. Há uma carruagem à disposição<br />

dela, com to<strong>dos</strong> os seus pertences, jóias e roupas. Segundo o<br />

cocheiro, já há dias ela tentava partir. Será que ela não<br />

esperava mais que meu senhor estivesse vivo? Talvez ela<br />

estivesse com medo da guerra que se aproxima.<br />

— Não, Alain. Não creio que ela estivesse fugindo da<br />

guerra, mas logo saberei a verdade.<br />

— Ela está trancada em seu quarto. Quais são suas<br />

ordens, meu senhor?<br />

— Vigiem-na! Ela não deve deixar este castelo antes de<br />

ser julgada por seus atos!<br />

— Sim, meu senhor!<br />

Alain curvou-se diante de Martin e caminhou em<br />

direção à porta, mas antes de sair, ainda tinha mais uma<br />

informação a dar. — Sua filha Lourdes está com ela no quarto,<br />

meu senhor.<br />

Martin olhou para Alain, e com o braço esticado<br />

gesticulou a mão, indicando-lhe que ele devia retirar-se.<br />

Mergulhou em pensamentos sombrios, procurando encontrar<br />

uma opção divertida para punir e torturar Catherine. Afinal,<br />

ela teria que pagar pelos problemas que causou. Fosse ela uma<br />

mulher amada, e ele teria esquecido tudo, mas desde o<br />

136


nascimento de Lourdes, ele passou a odiá-la mortalmente.<br />

Sempre maltratou as duas, mas muito mais a filha do que sua<br />

esposa, porque ele sabia que Lourdes não era sua filha<br />

legítima. Pensava ter se livrado dela definitivamente com a<br />

negociação em Abbeville, mas ela estava de volta. Pensou se<br />

não poderia se livrar das duas de uma única vez, mas como, e<br />

por quê, condenaria sua filha? De que crime ela seria julgada?<br />

Não, ele teria que pensar em outra forma de se livrar da<br />

pequena bastarda. Assim ele sempre pensava nela,<br />

secretamente, pois nunca a amara ou sentira qualquer afeto<br />

pela menina.<br />

137


O<br />

CAPÍTULO X<br />

Nouvelle Amiens<br />

clima do local em que se encontravam os peregrinos de<br />

Amiens era bem mais agradável do que o impie<strong>dos</strong>o frio<br />

que assolava a cidade que deixaram. <strong>Era</strong> um clima fresco e<br />

reconfortante. O ar que respiravam era suave, de uma pureza<br />

nunca antes experimentada por nenhum deles. Passaram duas<br />

semanas tranqüilas, conhecendo as belezas daquele novo e<br />

aprazível lugar. Tudo era belo e muito diferente do que<br />

conheciam. As árvores, as folhagens, as flores, o céu de<br />

coloração rosada, até mesmo a terra que pisavam parecia ser<br />

incrivelmente estranha.<br />

Etiènne, Michel, Grassac e Peter, conversavam próximos<br />

a uma fogueira crepitante que haviam acendido, sobre o<br />

destino de todas aquelas pessoas. Michel, e to<strong>dos</strong> os outros<br />

concordaram, era favorável que continuassem a caminhada<br />

até encontrarem um lugar mais distante da saída da enorme<br />

caverna que haviam atravessado. A proximidade da saída da<br />

caverna era demasiadamente perigosa, porque temiam que<br />

Martin Lacroix pudesse descobrir a rota, e viesse como um<br />

feroz cão de caça atrás deles.<br />

Isso, de fato, aconteceria muito antes do que<br />

imaginavam. Em parte devido ao ódio cego e inesgotável<br />

desejo de encontrá-los, para matá-los a to<strong>dos</strong>, e em parte,<br />

porque muitos <strong>dos</strong> próprios peregrinos, uma vez acostuma<strong>dos</strong><br />

com a passagem da caverna, não tardariam a ir e vir através


dela, transformando-a numa rota comum para várias<br />

finalidades, como visitas de parentes que haviam ficado em<br />

Amiens, na tentativa de também trazê-los para o novo lugar,<br />

ou o reabastecimento de produtos que certamente não<br />

encontrariam na nova terra, mas sabiam que haveria em<br />

Amiens com abundância. Assim, ele acabaria por descobrir<br />

onde entravam as pessoas, mas isso ainda levaria muito tempo<br />

para acontecer e, Sindazel, usando de seus poderes, retardaria<br />

ainda mais este acontecimento, fazendo com que as tropas de<br />

Martin Lacroix, ou ele próprio, não encontrassem o caminho<br />

através da gruta. De fato, em várias incursões, a parede de ar<br />

havia impedido a passagem <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> de Amiens. Mas o<br />

destino se mostraria indiferente aos poderes <strong>dos</strong> Vangis, e<br />

numa surpreendente virada <strong>dos</strong> acontecimentos, Martin<br />

Lacroix acabaria por conseguir atravessar a passagem, seguido<br />

por dezenas de solda<strong>dos</strong>.<br />

Mas não nos adiantemos tanto no curso da história,<br />

porque muita coisa ainda acontece antes da chegada de<br />

Martin Lacroix, ao lugar que os homens haviam batizado de<br />

<strong>Virgo</strong>. Batizaram assim a nova terra, por acreditarem que<br />

haviam chegado a um local completamente virgem, jamais<br />

pisado antes por outras pessoas.<br />

Ao redor da fogueira, no momento em que discutiam o<br />

rumo que deveriam tomar, Leon aproximou-se lentamente, e<br />

pôs fim ao seu silêncio, deixando a to<strong>dos</strong> perplexos com o que<br />

acabara de pronunciar de forma altiva.<br />

— Tomei uma decisão! Irei erguer aqui, neste lugar onde<br />

estamos, uma cidade chamada Nouvelle Amiens!<br />

Os companheiros de Leon, até aquele momento,<br />

ignoravam sua opinião, uma vez que por si só, havia escolhido<br />

o silêncio e a solidão durante dias, mas ficaram choca<strong>dos</strong> ao<br />

ouvir estas palavras, enunciadas de forma eloqüente e<br />

decidida. Olharam-se uns aos outros, e tentaram perscrutar o<br />

pensamento de cada um a respeito desta atitude inusitada.<br />

Michel, como era o mais chegado a Leon, desde tempos<br />

139


emotos de quando ainda eram crianças, contestou a decisão<br />

do amigo.<br />

— Leon, é uma opção perigosa, meu amigo. Estamos<br />

aqui justamente questionando sobre esta possibilidade.<br />

Leon virou-se para Michel, e com um olhar quase<br />

glacial, respondeu de forma enfática. — Não é uma opção a<br />

ser considerada por vocês! É a minha decisão, e apenas a estou<br />

comunicando face à amizade que sempre tivemos. Se<br />

quiserem partir, como planejam, não me incomodarei e<br />

tampouco farei qualquer oposição. — Ao terminar de<br />

pronunciar estas palavras, Leon deu as costas aos amigos e<br />

caminhou em direção ao lugar onde estivera em profunda<br />

reflexão, desde o dia em que os peregrinos se estabeleceram<br />

naquele local.<br />

Michel, sempre um pavio curtíssimo, encolerizou-se<br />

imediatamente com a atitude de Leon, considerando uma<br />

enorme arrogância de sua parte, e já levantava-se com o<br />

intuito de exigir de Leon, no mínimo, maior consideração<br />

pelos que ali estavam, por tudo que haviam passado juntos<br />

nos últimos meses. Mas desta vez, foi seu irmão Etiènne o<br />

primeiro a impedi-lo de fazer isso, com a ajuda de Grassac.<br />

Custou, mas os dois conseguiram dissuadi-lo da idéia de<br />

interpelar Leon naquele momento.<br />

Difícil julgar se os dias que sucederam esta inesperada<br />

noite foram mais difíceis do que a própria travessia da<br />

passagem pela enorme gruta da Montanha Serena, mas o fato<br />

é que Leon não só quebrou o silêncio como tomou para si, de<br />

uma forma estranhamente soberba, a liderança do grupo,<br />

discutindo calorosamente com Michel em várias<br />

oportunidades sobre a questão de não estabelecer naquele<br />

local a nova morada de seus seguidores.<br />

Após quase três semanas instala<strong>dos</strong> em <strong>Virgo</strong>, e depois<br />

de muitas discussões sem que houvesse qualquer<br />

entendimento entre Michel e o novo e transtornado Leon,<br />

aconteceu a inevitável fissura na amizade <strong>dos</strong> dois. Michel<br />

140


euniu-se com seus companheiros que ainda lhe eram fiéis, e<br />

informou que partiriam em dois dias, sem a companhia de<br />

Leon, que havia se tornado extremamente desagradável nos<br />

últimos dias.<br />

Leon, por sua vez, não se fez de rogado com a decisão de<br />

Michel, e não tardou a fazer sua campanha para que os<br />

peregrinos não seguissem os irmãos Montbard, e optassem<br />

por ficar ali, com ele, onde ergueriam juntos a cidade de<br />

Nouvelle Amiens.<br />

Não demorou muito para que um enorme rebuliço<br />

tomasse conta <strong>dos</strong> peregrinos que se dividiam entre as<br />

possibilidades apresentadas. Ficar perto de Amiens, ou partir<br />

para ainda mais longe, através de caminhos ainda<br />

desconheci<strong>dos</strong>, para manter a maior distância possível do<br />

tirano Martin Lacroix? O fato é que muitos ali ainda não<br />

conseguiam aceitar a idéia de se distanciar de Amiens e<br />

muitos haviam aceitado o infortúnio desta fuga apenas para se<br />

livrar do jugo de Martin, mas tinham desejo de um dia poder<br />

retornar à Amiens.<br />

Foi assim, sem saber as razões pelas quais seu amigo<br />

Leon havia mudado tanto, que Michel, seu irmão Etiènne, e os<br />

amigos Peter e Grassac, deixaram para trás uma parte do<br />

sonho de estabelecerem to<strong>dos</strong> juntos uma nova morada.<br />

Leon, por sua vez, sentia que ainda não podia dizer a<br />

verdade para Michel, mas no fundo de seu coração, ele queria<br />

uma chance de poder mudar seu pai, o tirano Martin, para<br />

depois disso esclarecer tudo. Ele sabia que Michel não<br />

concordaria com nada disso, e principalmente, jamais<br />

acreditaria ou aceitaria Martin Lacroix tão facilmente. Não<br />

conseguiu, contudo, esconder sua amargura no dia em que o<br />

amigo o deixava. Aproximou-se de Michel, e falou com<br />

serenidade: — Obscuros são os caminhos que escolhemos, mas<br />

tenho certeza de que os rumos que as coisas tomam a partir de<br />

hoje, mostrar-se-ão apropria<strong>dos</strong>, muito em breve.<br />

141


— As coisas não precisavam ter chegado a este ponto,<br />

Leon. Parto com uma única certeza em meu coração. Você não<br />

é mais nada em minha vida! — enfatizou Michel.<br />

— Um dia você entenderá. Cuide-se, e cuide de Etiènne,<br />

ele ainda é muito afoito.<br />

— Ele vai sobreviver, pois escolheu seguir a opção mais<br />

sensata. Apesar de tudo, desejo-lhe paz, e espero que um dia<br />

se reencontre, e se arrependa de toda esta tolice. Adeus!<br />

Michel deu as costas e montou em seu cavalo, para em<br />

seguida assumir a dianteira da nova caravana que o<br />

aguardava para partir. Dois terços <strong>dos</strong> peregrinos optaram por<br />

seguir viagem junto ao que restara do Conselho formado por<br />

Michel, e assim, aquela multidão pôs-se mais uma vez a trilhar<br />

caminhos desconheci<strong>dos</strong>.<br />

<br />

Faziam apenas algumas horas que Michel e to<strong>dos</strong> os que<br />

haviam optado segui-lo partiram quando os peregrinos fiéis a<br />

Leon ouviram um barulho crescente que se assemelhava ao de<br />

inúmeros cavalos se aproximando e, de fato, puderam<br />

constatar que ao longe uma enorme nuvem de poeira subia do<br />

solo. Logo despontaram os primeiro cavaleiros que, ao<br />

avistarem a caravana, interromperam sua cavalgada e ficaram<br />

observando de longe, esperando que os demais guerreiros<br />

chegassem até eles.<br />

Ficaram, o povo de Leon, por assim dizer, e a cavalaria<br />

desconhecida, para<strong>dos</strong>, a uma distância de aproximadamente<br />

duas milhas entre uns e outros, sobre a vasta planície.<br />

O murmúrio era geral em ambos os la<strong>dos</strong>. Enquanto os<br />

seguidores de Leon questionavam-se sobre qual seria a origem<br />

de tal cavalaria, se seriam ingleses ou guerreiros de Amiens<br />

conduzi<strong>dos</strong> por Martin Lacroix, os cavaleiros misteriosos por<br />

sua vez, estranharam a presença de tantas pessoas nessa<br />

região praticamente desértica.<br />

142


Entre os francos de Amiens, to<strong>dos</strong> estavam muito<br />

preocupa<strong>dos</strong>. Já haviam passado por inúmeras situações<br />

difíceis até a chegada do vale onde se encontravam, e<br />

justamente agora, quando estavam em número muito<br />

reduzido devido à partida de Michel e muitos outros,<br />

encontravam-se diante de uma preocupante, para não dizer,<br />

desesperadora situação.<br />

Leon conversou nervosamente a respeito da atual<br />

circunstância com alguns aldeões que estavam mais próximos.<br />

Não poderiam se defender de um ataque pesado, como o de<br />

uma cavalaria inteira. É verdade que várias pessoas da<br />

caravana possuíam habilidade com espada e machado de<br />

guerra. Muitas pessoas, inclusive, que já serviram em outra<br />

época ao exército de Paris, ou mesmo à Guarda de Amiens,<br />

mas o total de guerreiros ali encontrado não seria suficiente<br />

para evitar um massacre.<br />

Estavam discutindo o que fariam quando alguém gritou<br />

e os alertou de que alguns cavaleiros avançavam em suas<br />

direções.<br />

— Veja Leon! Alguns cavaleiros se aproximam! —<br />

exclamou um <strong>dos</strong> peregrinos, chamado Maurice Lassance.<br />

— Irão nos dizer o que pretendem. Com certeza não é<br />

Martin, do contrário já teria iniciado um ataque<br />

impie<strong>dos</strong>amente. — comentou Leon.<br />

— Mas senhor, eu não estava acreditando que pudesse<br />

ser o calhorda. Onde ele conseguiria tantos cavaleiros? Veja<br />

quanta gente tem do outro lado.<br />

Leon olhou irritado para Maurice, como que reprovando<br />

o impropério destinado a seu pai, mas tentou evitar polêmicas<br />

àquela altura. Poderia até mesmo correr risco de vida se<br />

descobrissem que Martin Lacroix era seu pai; então, preferiu<br />

manter a conversa o mais naturalmente possível com o rapaz.<br />

— É verdade, aquela cavalaria é enorme! Deve haver mais de<br />

quinhentos homens.<br />

143


Cinco cavaleiros vinham galopando na direção <strong>dos</strong><br />

peregrinos, que estavam temerosos por seus destinos. O<br />

cavaleiro mais adiantado trazia um enorme estandarte em<br />

cores azul turquesa e prata, com o formato de duas luas<br />

crescentes sobrepostas em tonalidades diferentes de azul.<br />

Conforme os cavaleiros se aproximavam, a exuberância<br />

de suas armaduras e elmos ia se revelando a olhos incrédulos,<br />

tamanha era sua beleza. As armaduras eram reluzentes, mas<br />

de azul bem escuro, a exemplo do azul turquesa<br />

predominante no estandarte. As mesmas luas crescentes e<br />

sobrepostas podiam ser vistas nos compri<strong>dos</strong> escu<strong>dos</strong> e<br />

também em seus coletes metálicos. Um <strong>dos</strong> cavaleiros se<br />

destacava pela altura, e por sua capa esverdeada. To<strong>dos</strong> os<br />

outros usavam capas azul bem escuro, quase um azul noturno.<br />

O cavaleiro da capa diferente avançou um pouco mais em<br />

relação aos outros, e segurou as rédeas de sua montaria,<br />

contemplando todas aquelas pessoas.<br />

Leon, entendendo que o cavaleiro havia parado para<br />

esperar que alguém fosse até ele, caminhou vagarosamente em<br />

direção ao misterioso guerreiro. Enquanto caminhava,<br />

mantinha fixo seus olhos no magnífico elmo, tentando<br />

encontrar os olhos que estavam muito bem ocultos por trás<br />

daquela viseira tão intimidadora quanto reluzente.<br />

Quando faltavam apenas uns cinco ou seis passos para<br />

chegar ao cavaleiro, Leon desembainhou sua espada<br />

lentamente, com o intuito de deitá-la ao solo, em sinal de paz;<br />

contudo, antes mesmo que pudesse ter retirado toda a espada,<br />

outros dois cavaleiros flanquearam aquele que parecia ser o<br />

líder, e duas enormes lanças pontiagudas foram apontadas em<br />

direção ao peito de Leon.<br />

Assustado, mas não intimidado, após parar seu<br />

movimento por alguns segun<strong>dos</strong>, Leon continuou a sacar a<br />

espada ainda mais vagarosamente, mantendo seus olhos<br />

firmes no cavaleiro de capa esverdeada. O clima ficara tenso,<br />

144


em ambos os la<strong>dos</strong>, mas naquela posição, Leon não poderia<br />

mais oferecer qualquer risco para os estranhos cavaleiros.<br />

Ao terminar de retirar a espada, Leon abaixou-se sobre<br />

um joelho, e com as duas mãos, a deitou sobre aquela estranha<br />

terra, dizendo — Somos um povo pacífico, e nossas armas<br />

somente são usadas para nossa defesa.<br />

O suposto líder <strong>dos</strong> cavaleiros ergueu uma das mãos, e<br />

ato contínuo, os dois lanceiros que o flanqueavam ergueram<br />

suas lanças e as retornaram para a posição firme e ereta de<br />

antes. Leon percebeu que a postura <strong>dos</strong> cavaleiros era<br />

impecável. As lanças mantinham-se firmes como se<br />

estivessem plantadas no solo, mas estavam apenas sendo<br />

seguradas pelos cavaleiros. Nenhum movimento era<br />

percebido. Ficou admirado com tamanho poder de<br />

concentração.<br />

O cavaleiro da capa esverdeada desceu de sua montaria<br />

e caminhou até Leon que, mais uma vez se surpreendera, pois<br />

apesar da aparência exuberante e pesada daquelas armaduras,<br />

o cavaleiro desmontou e caminhou como se estivesse usando<br />

vestes leves, e o mínimo barulho de metais podia ser ouvido.<br />

Num francês impecável, o cavaleiro misterioso iniciou<br />

uma série de perguntas a Leon, que atônito com a beleza da<br />

voz de seu interlocutor, pouco pôde esclarecer naquele<br />

momento.<br />

— Mas ao menos, podes me dizer de onde vens?<br />

— Claro, somos oriun<strong>dos</strong> de um povo simples. Vivíamos<br />

to<strong>dos</strong> numa cidade chamada Amiens. Infelizmente, uma<br />

guerra nos afugentou de nossos lares e acabamos chegando<br />

até aqui, à procura de um lugar onde pudéssemos viver em<br />

paz.<br />

— Mas como chegaram até aqui? Quem os trouxe?<br />

— É uma história muito estranha, não creio que você<br />

possa acreditar. — Leon sabia que ninguém iria acreditar<br />

naquela conversa de Etiènne, porque mesmo ele ainda não<br />

145


havia acreditado, e achava que fora tudo fruto da imaginação<br />

do jovem Montbard.<br />

Leon notou que à medida em que conversavam, o<br />

cavaleiro procurava analisar insistentemente suas orelhas, e<br />

por mais de uma vez, foi obrigado a esfregá-las com as mãos,<br />

achando que pudesse haver algum inseto, ou alguma folha<br />

agarrada. Até que não suportou mais a curiosa atitude do<br />

cavaleiro e questionou: — Há algo errado com minhas<br />

orelhas?<br />

O cavaleiro deu um sorriso, e finalmente retirou o elmo<br />

que lhe ocultava quase toda a cabeça, deixando fora apenas os<br />

lábios, o queixo e a parte inferior de seu nariz. — Na verdade,<br />

nunca havia visto antes orelhas tão engraçadas. — Os dois<br />

lanceiros que ainda estavam monta<strong>dos</strong>, mais próximos de seu<br />

líder, também não puderam conter as gargalhadas.<br />

Leon notou que as orelhas do cavaleiro eram pontudas,<br />

como se fossem orelhas de um duende, e também não pôde<br />

deixar de manifestar sua estranheza. — Oras, mas o que é<br />

isso? E as minhas orelhas é que são engraçadas? O que<br />

aconteceu com você? Alguma espécie de tortura? — Leon<br />

continuava examinando suas próprias orelhas, achando<br />

ridícula toda aquela situação, enquanto os cavaleiros não<br />

conseguiam parar de rir.<br />

Os lanceiros também desmontaram e tiraram seus<br />

elmos, revelando a Leon que to<strong>dos</strong> eles possuíam orelhas<br />

pontudas. — Meu Pai do Céu, mas que espécie de gente é<br />

essa? — resmungou alto, ainda admirado com o que estava<br />

presenciando.<br />

— Somos to<strong>dos</strong> elfos, guerreiros do reino de Eluannar!<br />

— Elfos!? E o que são elfos!? Alguma espécie de povo<br />

amaldiçoado?<br />

— Não meu jovem Leon? Não somos um povo<br />

amaldiçoado, pelo menos não éramos até a chegada de vosso<br />

povo.<br />

146


— Como assim? Viemos em paz, não queremos tomar<br />

nada de ninguém. Mesmo que quiséssemos, somos na maioria<br />

fazendeiros, aldeões sem qualquer instrução de guerra —<br />

afirmava Leon, com medo de que pudesse acontecer alguma<br />

represália devido ao último comentário que ouvira.<br />

— É tudo uma questão de tempo e aprendizado. Não<br />

somos como vocês, humanos. Como eu disse, somos elfos! —<br />

enfatizou. — Somos uma raça de seres diferentes. Apesar da<br />

aparência muito familiar, as maiores diferenças estão dentro<br />

de nós, e não externamente.<br />

— Isso tudo é muito incrível!<br />

— Sim, imagino que seja muito difícil para entender<br />

agora, mas com tempo irá conhecer e aprender muito mais!<br />

Leon, ainda preocupado com a afirmativa de que os<br />

elfos não eram amaldiçoa<strong>dos</strong> até a chegada do povo de<br />

Amiens, tornou a tocar neste assunto.<br />

— Mas... o que quis dizer com “Não éramos<br />

amaldiçoa<strong>dos</strong> até a nossa chegada”?<br />

— Bom, haverá tempo para falarmos sobre isso. Por<br />

hora, quero apresentar-me. Sou Lasthion, capitão da guarda<br />

de fronteiras, e esses dois são meus lanceiros Asgadhir e<br />

Althinor — os dois fizeram uma breve reverência com a<br />

cabeça — o cavaleiro que traz o estandarte é meu filho,<br />

Althalion, e o outro é nosso cavaleiro de armas, Lothanir.<br />

— Vai ser bem difícil guardar o nome de vocês — sorriu<br />

Leon, achando engraça<strong>dos</strong> to<strong>dos</strong> aqueles nomes.<br />

Após feitas todas as apresentações, Lasthion ordenou<br />

que seu filho, Althalion, despachasse alguns batedores para<br />

certificar-se de que estavam seguros naquele local, e enviou<br />

um mensageiro escoltado ao reino de Plarionthil, o maior de<br />

to<strong>dos</strong> os reinos élficos, informando da era <strong>dos</strong> homens.<br />

<br />

Os elfos esperavam há muito tempo, A era <strong>dos</strong> homens,<br />

mas ao contrário de como fora, eles achavam que essa chegada<br />

147


fosse acontecer de forma mágica, cercada de fenômenos<br />

sobrenaturais. Até certo ponto, o encontro acabou<br />

acontecendo de uma maneira muito tranquilizadora para os<br />

elfos.<br />

A enorme curiosidade era mútua, e logo, elfos e homens<br />

estavam mistura<strong>dos</strong> procurando conhecer tudo o que podiam<br />

acerca uns <strong>dos</strong> outros.<br />

Lasthion era o mais entusiasmado de to<strong>dos</strong>, e ficou o<br />

tempo inteiro ao lado de Leon, para cima e para baixo, mas<br />

sempre escoltado por seus lanceiros Asgadhir e Althinor.<br />

Prometeu ajudar Leon a erguer ali uma vila, mas o alertou <strong>dos</strong><br />

muitos perigos a que estariam expostos, principalmente sobre<br />

os orcs da tribo Drumbaidai.<br />

Pela descrição que Lasthion fizera, Leon ficou incrédulo<br />

ao ouvir sobre os orcs e ao mesmo tempo, atemorizado. Mas o<br />

destino estava sendo benevolente com Leon e com os que<br />

escolheram ficar com ele, porque Lasthion se admiraria pelos<br />

homens, e iria cumprir todas as promessas feitas a Leon. Não<br />

só ajudaria a erguer uma grande vila, como proveria recursos<br />

e proteção nos primeiros anos, mantendo os orcs sempre<br />

afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> homens.<br />

A amizade entre Lasthion e Leon foi se consolidando a<br />

uma velocidade incrível. Os dois realizaram juntos o<br />

planejamento e a construção de Nouvelle Amiens com muita<br />

empolgação e muito carinho. Cada coluna, cada casa, a praça,<br />

tudo construído com a ajuda <strong>dos</strong> elfos, levando o toque<br />

especial da beleza arquitetônica que lhes é peculiar.<br />

Leon estava tão encantado que por um longo tempo<br />

adiou seus planos de encontrar seu pai para tentar uma<br />

aproximação amigável.<br />

Lasthion, por sua vez, entregue em sua admiração pelos<br />

homens, conseguiu fazer com que o rei de Eluannar recebesse<br />

Leon no palácio, para conhecê-lo. Leon ainda voltou a<br />

Eluannar mais duas vezes posteriormente, para aprender<br />

sobre <strong>Virgo</strong> com os elfos, e também aprender a língua élfica.<br />

148


A primeira coisa que aprendeu foi como os elfos se<br />

referiam àquele lugar que os homens haviam batizado de<br />

<strong>Virgo</strong>. Entre os elfos, o lugar era conhecido como Thalide.<br />

149


A<br />

CAPÍTULO XI<br />

Encontros e separações<br />

caminhada de Michel e seus seguidores fora<br />

demasiadamente árdua. Atravessaram toda a Planície de<br />

Prata, cruzando as nascentes de dois perigosos rios, até que<br />

costeando a montanha de <strong>Virgo</strong>, pudessem chegar a uma<br />

imensa cadeia de montanhas muito íngremes e de rochas<br />

negras, a que batizaram de Montanhas Negras.<br />

Foram três longas semanas de uma caminhada muito<br />

vagarosa por causa <strong>dos</strong> mais i<strong>dos</strong>os e das crianças. Apesar de<br />

poucos obstáculos, como os rios que tiveram que atravessar e<br />

a escassez de alimentos que os obrigou a fazer um<br />

racionamento, a travessia da Planície de Prata transcorreu sem<br />

maiores sustos. Michel não sabia, mas vinha sendo observado<br />

a algumas milhas por um pequeno e sorrateiro bando de<br />

goblins, que esperava uma oportunidade para investir em sua<br />

caravana e pilhar seus pertences.<br />

Etiènne, sem desconfiar do perigo que to<strong>dos</strong> corriam,<br />

vinha há dias falando incessantemente a respeito de Sindazel,<br />

e afirmava a todo tempo que, tão logo encontrassem um lugar<br />

onde pudessem se estabelecer, ele partiria em busca daquela<br />

criatura esplêndida, por quem se apaixonara.<br />

— Grassac, você não acredita, mas se tivesse conhecido<br />

Sindazel, me daria razão.


— Pois é Etiènne, você tem de admitir que é uma<br />

história muito fantástica para que eu possa acreditar sem<br />

confirmar com meus próprios olhos.<br />

— Então, não mereço crédito? Afinal, chegamos ao lugar<br />

que eu havia mencionado, graças à ajuda de Sindazel.<br />

— Se ela for mesmo bela como descreve, quem sabe não<br />

tem uma irmã que eu possa conhecer?<br />

— Pode esquecer isso! Não existe a menor possibilidade<br />

de levar alguém comigo nessa busca. Irei encontrá-la sozinho,<br />

e mesmo que tenha uma irmã, certamente não será para seu<br />

bico! — exclamou furioso Etiènne, mas no fundo, teve ciúmes<br />

só em pensar que outros homens poderiam se aproximar de<br />

sua Sindazel. — Essa raça é muito superior, não vai querer se<br />

misturar com os homens, eu sou uma exceção porque fui o<br />

primeiro a ter contato com eles.<br />

Grassac deu um largo sorriso — Entendo.<br />

<br />

Ainda cansa<strong>dos</strong>, começaram a se organizar para<br />

acampar aos pés das Montanhas Negras. A noite caía<br />

bruscamente, ao contrário de como estavam acostuma<strong>dos</strong> em<br />

Amiens, mas isso eles aprenderam rápido nos dias que se<br />

passaram.<br />

Algumas fogueiras foram acesas, e não tardou para que<br />

o manto negro da noite os cobrisse a to<strong>dos</strong>. Apesar do clima<br />

mais ameno em <strong>Virgo</strong>, as noites eram sempre mais frias, o que<br />

os obrigava a proteger-se em mantas e cobertas.<br />

Ninguém sabe ao certo como aconteceu, nem quem foi o<br />

primeiro a se deparar com aquelas horrendas criaturas, mas<br />

um grito de pavor cortou a noite, sobressaltando a to<strong>dos</strong>.<br />

Estava muito escuro, vultos passavam de um lado para<br />

outro, ora carregando sacos, ora brandindo pequenas espadas<br />

e emitindo um som tenebroso, como se fossem guinchos de<br />

enormes morcegos.<br />

151


Michel, estava junto de Etiènne no momento em que<br />

toda aquela confusão começou. Segurava uma tocha com uma<br />

das mãos, e a espada com a outra. Ficaram de costas um para<br />

outro, cada um defendendo a retaguarda de seu par.<br />

Peter, correu para uma pedra alta, mas pouco podia<br />

fazer com seu enorme arco, porque a visibilidade era quase<br />

nenhuma. Grassac era o único que estava, de fato, enfrentando<br />

os inimigos, uma vez que era seu turno de vigia e<br />

prontamente correu em direção ao pavoroso grito que uma<br />

mulher emitira em seu desespero, ao ser atacada por um <strong>dos</strong><br />

goblins.<br />

Custou para que entendesse o que se passava, mas o<br />

instinto pela sobrevivência o fez matar vários <strong>dos</strong> goblins que<br />

tentavam matá-lo.<br />

Os guinchos <strong>dos</strong> monstrinhos eram pavorosos, e a<br />

gritaria das mulheres e crianças apavoradas no meio da noite<br />

aumentava ainda mais o terror que to<strong>dos</strong> estavam sentindo.<br />

O tumulto já durava cerca de vinte minutos quando uma<br />

trombeta rouca se fez ecoar estremecendo a noite. Parecia o<br />

som de um berrante, muito alto, e como se fossem domina<strong>dos</strong><br />

por um medo incompreensível, os goblins largaram tudo o<br />

que estavam fazendo e saíram aos guinchos, desespera<strong>dos</strong>, em<br />

direção à floresta, embrenhando-se em meio à vegetação e as<br />

árvores.<br />

— Estão to<strong>dos</strong> bem!? — Grassac, exausto, tentava<br />

contato com Michel e Etiènne — Michel!? Etiènne!?<br />

O primeiro a se aproximar fora Peter, que desceu do alto<br />

da rocha onde havia se alojado, para avisar a Grassac que uma<br />

enorme fileira de tochas vinha em sua direção, pelo lado oeste<br />

das Montanhas Negras.<br />

— Que outras surpresas nos aguardam? — questionou<br />

Grassac, levantando o cadáver de um <strong>dos</strong> goblins que matara<br />

e revelando seu asqueroso rosto ao amigo britânico.<br />

— Meu Deus! Mas que demônio é isso!? — espantado<br />

com as feições horrorosas do goblin, Peter fez o sinal da cruz e<br />

152


afastou-se de Grassac, advertindo-o para que largasse aquele<br />

demônio e se afastasse.<br />

— Calma Peter, esse já está morto! Seja lá o que for, não<br />

causará mais mal a ninguém. — Grassac ainda ficou um<br />

tempo analisando as feições demoníacas da criatura. — Quem<br />

diria que um dia eu encontraria um demônio assim? Talvez<br />

seja um sinal de Deus para que eu retome os trabalhos de meu<br />

falecido pai.<br />

— Que tipo de trabalho seu pai fazia, Grassac?<br />

— Ele foi um Cavaleiro Templário, mas sua ordem foi<br />

totalmente esmagada e perseguida pelo clero da própria<br />

Igreja. Hoje os que ainda vivem, escondem-se e sobrevivem<br />

sob a doutrina de uma nova ordem secreta.<br />

A conversa de Peter e Grassac fora interrompida por<br />

Michel e Etiènne, que chegaram esbafori<strong>dos</strong> junto aos amigos,<br />

a fim de saber melhor o que se passava.<br />

Quase não houve tempo para maiores esclarecimentos,<br />

pois imediatamente à chegada <strong>dos</strong> irmãos Montbard, um<br />

enorme contingente de seres estranhamente pequenos podia<br />

ser avistado ao longo. Marchavam de forma cadenciada, e<br />

traziam dezenas de tochas fazendo com que um forte clarão<br />

irrompesse no local.<br />

Com a luminosidade, puderam observar com grande<br />

curiosidade e medo aquelas criaturas troncudas mas muito<br />

robustas, protegidas por reluzentes armaduras e elmos, e<br />

carregando enormes macha<strong>dos</strong> de batalha que fariam inveja<br />

aos mais experientes forjadores francos.<br />

Tratava-se de uma enorme e bem organizada tropa de<br />

anões, oriundas do reino de Bakkim. Os anões, por sua vez,<br />

também ficaram muito impressiona<strong>dos</strong> com toda aquela gente<br />

estranha. Jamais tiveram conhecimento <strong>dos</strong> homens, e num<br />

primeiro momento, acreditaram que estavam encontrando<br />

com algum grupo de elfos.<br />

153


Um murmúrio percorreu as fileiras da tropa de anões até<br />

que, mais uma vez, a trombeta <strong>dos</strong> anões soou, e em seguida,<br />

to<strong>dos</strong> silenciaram.<br />

Um único anão caminhou vagarosamente na direção <strong>dos</strong><br />

peregrinos, a passos firmes e barulhentos. Parou diante de<br />

Michel e seus companheiros, e fitou um a um, com olhar<br />

surpreso. Com uma linguagem rude e gutural, pronunciou<br />

algumas palavras indescritíveis, em tom ameaçador.<br />

Os companheiros se entreolharam, sem saber ao certo<br />

como reagir diante de tão inusitada situação. To<strong>dos</strong> ainda<br />

seguravam suas armas. Peter, um pouco mais à distância,<br />

tinha o anão bem na mira de seu longo arco.<br />

Etiènne, afoito como sempre, deu um passo na direção<br />

do anão anunciando que estavam ali apenas defendendo-se de<br />

uma horda de monstros tenebrosos.<br />

O anão imediatamente deu as costas aos homens ali<br />

para<strong>dos</strong>, e caminhou em direção ao seu grupo. To<strong>dos</strong> ficaram<br />

pasmos com a arrogância daquela criatura pequena e<br />

insignificante.<br />

— Seria uma ótima idéia revermos a questão do nome<br />

que escolhemos para este lugar — comentou Grassac. — De<br />

virgem, não tem nada! Por enquanto, parece que estamos<br />

to<strong>dos</strong> tendo um pesadelo.<br />

— Sou obrigado a concordar — concordou Michel, e os<br />

demais, ainda assusta<strong>dos</strong> com o desenrolar da agitada noite,<br />

assentiram com a cabeça, também concordando.<br />

Enquanto os anões faziam uma enorme algazarra, vários<br />

<strong>dos</strong> franceses peregrinos se aproximaram de Michel e seus<br />

companheiros, movi<strong>dos</strong> pela curiosidade.<br />

Aquele impasse durou ainda cerca de cinco minutos. Os<br />

anões pareciam discutir calorosamente acerca <strong>dos</strong> peregrinos<br />

que estavam ali, e muito provavelmente, deviam estar<br />

decidindo o que fariam a respeito.<br />

154


— Talvez tenhamos invadido a terra dessa gente —<br />

cogitou Michel, muito apreensivo, demonstrando um<br />

expressivo ar de preocupação.<br />

— Seja como for, não poderemos sair daqui no meio da<br />

madrugada com aqueles demônios soltos por aí! Teremos de<br />

fazer um acordo com esse povo de meia altura! — asseverou<br />

Grassac.<br />

— Isso é verdade, não vamos nos arriscar. Já estamos<br />

muito expostos aqui nesse lugar desconhecido. E depois, que<br />

outras surpresas ainda poderemos encontrar? — Michel, a<br />

essa altura, não discordaria de Grassac por nada nesse mundo.<br />

— Já viram demônios, agora estamos aí, diante de uma<br />

legião de anões bizarros, arma<strong>dos</strong> até os dentes. Quem sabe<br />

agora acreditem que Sindazel existe, e ela é exatamente como<br />

descrevi a vocês?<br />

Etiènne, apesar de estar apreensivo, tanto quanto seus<br />

amigos, não pôde deixar de sentir-se um pouco mais<br />

confortável para falar de Sindazel. Afinal, depois de tantas<br />

criaturas bizarras que jamais haviam visto, de fato, por que<br />

não poderia existir algo como sua amada?<br />

Michel e Grassac se olharam, e por um ínfimo momento<br />

se descontraíram, erguendo as sobrancelhas, um para o outro,<br />

como que ainda não dando muito crédito a Etiènne. Mesmo<br />

Grassac, que era o maior entusiasta de Etiènne, não conseguia<br />

acreditar sobre Sindazel.<br />

Já não bastava o estado de tensão em que ainda se<br />

encontravam, novos gritos puderam ser ouvi<strong>dos</strong>, oriun<strong>dos</strong> de<br />

um ponto pouco mais distante de onde estavam naquele<br />

momento. To<strong>dos</strong> correram na direção <strong>dos</strong> gritos, receosos de<br />

que as criaturas demoníacas pudessem ter retornado.<br />

Ao chegarem no local, uma mulher ajoelhada estava em<br />

prantos, gritando de angústia, diante de uma criança que<br />

parecia ter ainda uns oito ou nove anos de idade.<br />

A criança estava desacordada, e suas vestes estavam<br />

banhadas em sangue. Algum demônio daqueles teria cortado<br />

155


seu ventre, e a mulher, que na verdade era a mãe da menina<br />

ferida, acreditava que havia perdido sua filha.<br />

O alarde também chamou a atenção <strong>dos</strong> anões, e desta<br />

vez, vários deles vierem correndo também ao local do novo<br />

tumulto. Faziam uma enorme barulheira, gesticulando muito e<br />

conversando numa linguagem rude. Dois deles agacharam-se<br />

perto da mulher, que aos prantos, se abraçou ao corpo da<br />

filha, tentando protegê-la daquelas criaturas bizarras.<br />

O anão que anteriormente havia chegado mais perto de<br />

Michel, em tom conciliador, ainda que com sua tenebrosa voz<br />

gutural, falou à mulher — Minha senhora, não tenha medo,<br />

esses bravos guerreiros são exímios doutores na arte da cura.<br />

Se houver algo que possa ser feito, eles farão!<br />

O francês pronunciado pelo anão era muito precário,<br />

mas ainda assim, podia-se entender o que ele queria dizer. A<br />

mulher, muito aflita, em inconsolável desespero, não se<br />

desgrudava de forma alguma de sua filha.<br />

Grassac, chegou próximo à mulher, abraçou-a e tentou<br />

convencê-la a soltar sua filha, a fim de que os anões pudessem<br />

socorrê-la. Estes, alheios ao desespero da mulher, limitavamse<br />

a preparar um estranho líquido numa pequena gamela, com<br />

uma espécie de raiz que ralavam apressadamente sobre o<br />

preparado.<br />

Michel, sempre ranzinza e desconfiado de tudo,<br />

reclamou do fedor daquela raiz ralada. Depois que se<br />

distanciou definitivamente de Leon, Michel havia se tornado<br />

visivelmente mais irritado e menos tolerante com tudo do que<br />

já sempre fora outrora.<br />

— Meu Deus! Espero que isso não seja para beber,<br />

certamente matará a pobre criança! — comentou Michel,<br />

fazendo uma cara de nojo para os dois anões que<br />

concentravam-se no estranho preparado. Na verdade, era um<br />

ungüento à base de raízes medicinais muito gordurosas, que<br />

os anões cultivavam no interior de suas cavernas.<br />

156


— Não se preocupe, criatura — interferiu o anão. — Esse<br />

ungüento é capaz de ressuscitar até mesmo dragões —<br />

afirmou o anão.<br />

Após aquecer levemente a gamela, os anões ensoparam<br />

um tecido com o espesso preparado, como que<br />

transformando-o num emplastro, Cobriram a ferida da<br />

menina, que se contorceu ao primeiro contato do estranho<br />

medicamento. Limparam bem o local da ferida, e foram<br />

examinando cuida<strong>dos</strong>amente a gravidade do ferimento.<br />

Os anões pediram que to<strong>dos</strong> se afastassem, inclusive a<br />

mãe da menina. Ela relutou muito antes de aceitar a idéia de<br />

ter que se afastar da filha, mas com a insistência de Michel e<br />

Grassac, garantindo que era para o bem da menina, e que<br />

talvez aqueles anões pudessem ser a única esperança, ela<br />

cedeu.<br />

Enquanto os dois anões curandeiros cuidavam da<br />

menina ferida, o outro anão, o que conseguia falar a língua<br />

francesa precariamente, chamou a atenção de Michel para que<br />

se afastassem um pouco mais de to<strong>dos</strong> os outros. Etiènne<br />

mostrou-se imediatamente contrário a esta idéia.<br />

— Não existem segre<strong>dos</strong> entre nós! Não há nada que<br />

Michel possa saber, que to<strong>dos</strong> nós também não possamos<br />

compartilhar! — esbravejou Etiènne, partindo para cima do<br />

anão, que não se intimidou.<br />

— Etiènne, por favor! — Michel tentou acalmar o irmão<br />

mais novo, mantendo-o afastado do anão com uma das mãos.<br />

— Não sei quem são to<strong>dos</strong> vós, mas vos garanto que<br />

estão correndo perigo — asseverou o anão. — Vocês deram<br />

sorte de terem se deparado com estes goblins. Se tivessem<br />

encontrado com orcs, poderiam estar to<strong>dos</strong> mortos agora, não<br />

teria sobrado ninguém!<br />

— O que são goblins e orcs? — indagou Grassac.<br />

— São criaturas do mal, que surgiram numa época em<br />

que as trevas dominaram estas terras, quando todas as<br />

157


criaturas perversas andavam livremente espalhando o terror<br />

entre to<strong>dos</strong> os povos de todas as raças.<br />

— Vejo que a vida nestas terras é muita agitada e cheia<br />

de hostilidades. Já não tenho certeza de que chegarmos até<br />

aqui fora uma boa idéia — declarou Michel.<br />

— Não conheço vossa história, a não ser por uma antiga<br />

lenda que minha raça jamais acreditou. Mas no que depender<br />

<strong>dos</strong> anões, poderemos estabelecer trata<strong>dos</strong> de paz e amizade<br />

que, tenho certeza, nos beneficiará a to<strong>dos</strong>! Não obstante, caso<br />

vosso povo mostre-se semelhante aos odiosos elfos, não<br />

hesitaremos em forçá-los a deixar este lugar o mais<br />

rapidamente possível!<br />

— Nada sabemos sobre elfos! — tomou a palavra<br />

Etiènne. — Mas no que diz respeito ao nosso grupo, já nos<br />

sentimos devedores da oportuna intervenção de sua tropa,<br />

que nos salvou a to<strong>dos</strong>. A quem devemos dirigir nosso sincero<br />

agradecimento?<br />

— Chamo-me Bakhin, general em exercício desta<br />

valorosa tropa que está sob meu comando. Levarei vosso<br />

agradecimento a nosso reino, anunciando vossa chegada a<br />

Azur.<br />

Etiènne fez uma mesura em reverência ao anão, e foi<br />

imitado por seus amigos Peter e Grassac. Michel olhou de<br />

soslaio para ambos, um pouco contrariado e um pouco<br />

enciumado por seu irmão ter-lhe tomado a palavra.<br />

O anão também curvou-se diante <strong>dos</strong> homens e retirouse<br />

para junto de sua tropa.<br />

Não demorou muito tempo até que os dois anões<br />

curandeiros deixassem a menina descansando, com os<br />

cuida<strong>dos</strong> que lhe aplicaram, e dirigiram-se a seu general, o<br />

anão que se apresentara como sendo Bakhin.<br />

Momentos depois, Bakhin voltou ao encontro <strong>dos</strong><br />

homens e, dirigindo-se a Etiènne com seu vocabulário rude da<br />

língua francesa, afirmou que a menina se salvaria. To<strong>dos</strong><br />

158


comemoraram a notícia, e o grupo de Bakhin se prontificou a<br />

acampar nas proximidades, oferecendo proteção aos homens.<br />

<br />

Por alguns dias, os anões mantiveram-se acampa<strong>dos</strong><br />

com o povo de Amiens, e fizeram amizade com todas as<br />

pessoas. Eles podiam ser feios e esquisitos, mas eram muito<br />

prestativos, cordiais, e quando humora<strong>dos</strong>, garantiam a<br />

alegria de to<strong>dos</strong>. Ouviram falar com espanto sobre as riquezas<br />

<strong>dos</strong> reinos <strong>dos</strong> anões, e ficaram admira<strong>dos</strong> ao saber que<br />

existiam tantas criaturas fantásticas que ainda poderiam<br />

conhecer naquele lugar.<br />

Ficaram impressiona<strong>dos</strong>, sobretudo, com as histórias<br />

acerca de dragões e elfos, principalmente estes últimos, que os<br />

anões relatavam como se fossem criaturas perigosíssimas,<br />

dissimuladas, falsas e traiçoeiras.<br />

A conversa tornou-se mais interessante quando Bakhin<br />

começou a falar sobre os Vangis. Etiènne ficou louco ao ouvir<br />

a descrição da raça que era exatamente como Sindazel.<br />

— Você conhece os Vangis!? Sabe como posso chegar até<br />

eles? — por um instante Etiènne pareceu esquecer tudo à sua<br />

volta, e ficou vidrado em Bakhin.<br />

O anão fitou Etiènne por alguns segun<strong>dos</strong>. — Ninguém<br />

pode chegar até os Vangis, a menos que eles mesmos o levem<br />

à sua cidade.<br />

— Eu estive na cidade deles. Conheci Granuzael e<br />

Sindazel.<br />

— Você é uma pessoa afortunada. Jamais conheci<br />

alguém que tivesse ido ao céu de Azur. Mas já ouvi falar de<br />

Granuzael, uma espécie de ministro da Vangilla.<br />

— Azur? — questionou Etiènne. — É a segunda vez que<br />

o ouço falar neste nome, desde a noite em que nos<br />

conhecemos. O que significa esta palavra?<br />

159


— Sim, Azur é o nome pelo qual conhecemos este<br />

mundo em que vivemos, e para seu conhecimento, chamamos<br />

de Vangilla toda a abóbada celeste de nosso mundo.<br />

— Sim, este último nome eu conheço, pois eles mesmos<br />

chamam sua morada de Vangilla — confirmou Etiènne.<br />

— Aqui existem muitos nomes para uma mesma coisa.<br />

Mas você acaba se acostumando — sorriu Bakhin, com<br />

cortesia. O anão cultivara uma grande simpatia por Etiènne.<br />

Michel, atento a tudo que Bakhin procurava ensinar<br />

para eles a respeito de <strong>Virgo</strong>, finalmente foi obrigado a<br />

acreditar em seu irmão acerca de Sindazel e <strong>dos</strong> Vangis.<br />

— Então, quer dizer que Sindazel existe mesmo!<br />

Neste momento, Grassac levantou-se e deu dois leves<br />

tapas no ombro de Michel, insinuando que mais uma vez,<br />

Etiènne não o havia enganado, e com ar de satisfação afastouse<br />

do grupo por alguns instantes.<br />

Um brilho de esperança surgiu no olhos de Etiènne.<br />

Agora, ele voltou a acreditar que seria possível encontrar<br />

novamente Sindazel.<br />

Depois deste dia, Etiènne não desgrudou mais um<br />

minuto sequer de Bakhin. Onde um estava, o outro poderia<br />

ser facilmente encontrado.<br />

Etiènne, começou a cultivar em seu interior um enorme<br />

desejo de partir com Bakhin para o outro lado das Montanhas<br />

Negras. Queria conhecer o reino onde morava Bakhin, e<br />

também, queria descobrir uma forma de reencontrar Sindazel.<br />

Não revelou logo esse desejo secreto a seu irmão Michel, mas<br />

sabia que o momento de Bakhin deixá-los já estaria se<br />

aproximando. Precisava tomar uma decisão antes que isso<br />

acontecesse.<br />

Michel, por sua vez, estava decidido a construir sua<br />

morada aos pés daquelas montanhas, porque o lugar era<br />

muito agradável, a despeito da inesperada recepção pelo<br />

bando de goblins. Tinham ali perto, um amplo terreno para<br />

plantio, um açude nas proximidades e uma cachoeira pouco<br />

160


mais acima de onde estavam acampa<strong>dos</strong>. Enfim, para Michel,<br />

a busca havia terminado, já estavam no lugar que sonharam.<br />

Os anões, muito prestativos, permaneceram mais tempo<br />

junto aos homens e os ajudaram a erguer as primeiras<br />

construções, com muito entusiasmo. Mas não podiam ficar ali<br />

para sempre, e assim, chegou o dia em que teriam de deixar os<br />

homens à sua própria sorte.<br />

Enquanto Bakhin organizava sua gente, Etiènne chamou<br />

seu irmão para uma conversa reservada, e em poucos minutos,<br />

estariam emburra<strong>dos</strong> um com o outro, mas nada, nada<br />

mesmo, demoveria de Etiènne, a idéia de partir com Bakhin.<br />

Desta vez, nem mesmo Grassac concordou com essa idéia de<br />

seu amigo Etiènne, afinal, ainda não haviam se estabelecido<br />

de fato naquele lugar, e sua ausência faria muita falta.<br />

Mas não haviam argumentos no mundo que pudessem<br />

fazer Etiènne mudar de idéia. O pensamento constante em<br />

Sindazel o bloqueava para qualquer outro assunto ou decisão<br />

importante que fosse necessária tomar.<br />

Foi ali mesmo, aos pés das Montanhas Negras, numa<br />

das regiões mais inóspitas de <strong>Virgo</strong>, que o povo <strong>dos</strong> homens<br />

oriun<strong>dos</strong> de Amiens e conduzi<strong>dos</strong> por Michel e seus<br />

companheiros ergueu sua tão sonhada nova cidade.<br />

Não havia mais o velho Conselho de Conspiradores. Da<br />

cúpula do grupo, restou apenas o próprio Michel. Nem<br />

mesmo seu irmão Etiènne ficaria ali, para ver nascer o fruto de<br />

tantos meses de planejamento e tanto sofrimento.<br />

Michel, recordou com sau<strong>dos</strong>ismo o tempo em que se<br />

reuniam escondi<strong>dos</strong> no celeiro de Dízier. Já fazia tanto tempo.<br />

Lembrou <strong>dos</strong> irmãos Ballec, de seu antigo amigo Leon, do<br />

falso lenhador, que por tanto tempo esteve com ele, sem nada<br />

perceber. Recordou-se da promessa feita a Dízier, de que o<br />

buscaria assim que tivessem encontrado a nova moradia. E<br />

lembrou de tantos outros que participaram do movimento,<br />

mas com menor grau de importância.<br />

161


Grassac aproximou-se, acompanhado de Peter, ambos<br />

trazendo canecas com um capitoso e encorpado vinho.<br />

— Michel, trouxemos um excelente vinho oferecido pelo<br />

povo pequeno. — Grassac se acostumou a referir-se aos anões<br />

como “o povo pequeno”. Também ele havia se admirado pelos<br />

pequenos anões. A despeito de serem assustadores dentro<br />

daquelas imponentes armaduras, portando enormes e afia<strong>dos</strong><br />

macha<strong>dos</strong> de batalha, eram também muito solícitos e amáveis.<br />

Verdadeiros mestres da construção, com a utilização de metais<br />

e rochas.<br />

<br />

Bakhin, ao lado de Etiènne, conduzia seus homens, ou<br />

seria melhor dizer, seus anões, a caminho de casa. Partiram<br />

bem cedo, assim que as primeiras luzes de <strong>Virgo</strong> projetaramse<br />

ao longo da rósea abóbada celeste que os cobria.<br />

No meio daqueles anões, Etiènne seguiu esperançoso de<br />

rever Sindazel. Em seu íntimo, alguma coisa lhe dizia que ele<br />

iria encontrar sua amada.<br />

162


A<br />

CAPÍTULO XII<br />

Alvorecer de uma amizade<br />

travessar as Montanhas Negras era algo extremamente<br />

perigoso de se realizar. Não fossem as trilhas conhecidas<br />

por Bakhin e seu povo, jamais conseguiriam fazer a travessia<br />

para o outro lado das montanhas. Etiènne, por várias vezes<br />

durante o percurso de subida, foi obrigado a pedir ajuda de<br />

seus companheiros anões, devido às dificuldades que teve por<br />

causa de sua altura. Para Etiènne, que não estava acostumado<br />

com escaladas tão íngremes quanto aquela, trilhas tão estreitas<br />

e vertiginosas, o fôlego era rapidamente consumido.<br />

Para chegar ao topo das Montanhas Negras, onde<br />

encontra-se o mais seguro ponto de passagem para o outro<br />

lado, levaram praticamente dois dias, a considerar que foram<br />

obriga<strong>dos</strong> a pernoitar nas encostas, já a meio caminho<br />

percorrido, quando a noite os cobriu.<br />

Além das trilhas que permitem essa travessia sobre a<br />

montanha, existe um caminho alternativo, que é tão mais<br />

rápido quanto perigoso. Uma longa e sinuosa senda corta a<br />

montanha ao meio, de leste a oeste; entretanto, apelidada de<br />

Senda da Morte, o nome lhe faz jus e já fora cenário de<br />

inúmeras emboscadas, levando milhares de anões, elfos e<br />

goblins a perecer naquela enorme e sinistra garganta rochosa.<br />

Do ponto de passagem, literalmente o cimo das<br />

Montanhas Negras, pois tratava-se do ponto mais alto de<br />

<strong>Virgo</strong>, e por conseguinte, o ponto mais próximo que Etiènne


conseguiria chegar da Vangilla por seus próprios meios,<br />

podia-se observar a beleza e a vastidão daquele magnífico<br />

lugar.<br />

Para cada ponto que Etiènne olhasse, via uma beleza<br />

distinta. Para o norte, podia acompanhar até perder de vista as<br />

encostas das Montanhas Negras. Para o oeste, e noroeste,<br />

podia ver um mar de florestas, e também a Planície de Prata,<br />

que há pouco mais de um ano havia atravessado com seu<br />

irmão e seus amigos de Amiens. Teve saudade de Michel, e<br />

lembrou com amargura de Leon, pensando como estaria<br />

passando seu antigo protetor e o grupo de pessoas que<br />

resolvera ficar com ele.<br />

Olhou então para o lado leste, e percebeu que o leste era<br />

um enorme planalto, com uma extensa floresta aos pés das<br />

Montanhas Negras, que se precipitava por uma planície mais<br />

baixa. Conseguiu identificar outra cadeia de montanhas ao<br />

longe, encerrando a planície.<br />

Para o nordeste, até onde sua vista podia alcançar,<br />

haviam apenas montanhas e mais montanhas.<br />

Por mais privilegiada que fosse sua posição, as<br />

limitações de sua visão não permitiam que ele pudesse<br />

conhecer muitas maravilhas que existiam nas mais extremas<br />

regiões de <strong>Virgo</strong>. Não era possível distinguir no meio daquele<br />

mundo de montanhas o Vale da Neblina; não podia ver no<br />

coração das florestas a oeste, o Mar Caudaloso e a encantadora<br />

Ilha Kirbuz, habitada pelos temi<strong>dos</strong> vutuks; não podia ver, a<br />

Região Vulcânica bem ao norte; não podia identificar a<br />

Floresta das Sombras, nem mesmo o tenebroso Lago Negro, às<br />

margens da Floresta Preciosa. Não pôde ver os fascinantes<br />

reinos élficos, com suas riquezas e suntuosas construções<br />

dentro das florestas. Um dia, Etiènne conheceria tudo isso.<br />

Após tentar fazer um reconhecimento de <strong>Virgo</strong>, Etiènne<br />

ergueu o rosto, e viu mais perto do que nunca, aquele<br />

maravilhoso céu de cristais rosa<strong>dos</strong>, e daquela distância, tão<br />

164


perto, chegava a ficar com dor nos olhos ao tentar contemplar<br />

por muito tempo aquele gigantesco e mágico teto de vidro.<br />

Fechou os olhos e manteve seu rosto erguido, ficou<br />

concentrado, como se estivesse tentando fazer contato com<br />

Sindazel, ou tentando se fazer perceber por sua amada.<br />

— Etiènne! — interrompeu Bakhin. — Precisamos descer<br />

logo, não podemos demorar aqui em cima.<br />

— Sabe Bakhin, estava aqui pensando, se não existe<br />

mesmo uma forma de chegar à Vangilla, sem ser levado pelos<br />

Vangis.<br />

— Acredite amigo. Não existe outra forma. Mesmo que<br />

houvesse um caminho para Vangilla, o poder mágico <strong>dos</strong><br />

Vangis não permitiria que você chegasse perto demais.<br />

Etiènne, finalmente cedeu e baixou o rosto olhando na<br />

direção de seu amigo anão. Bakhin, percebeu o olhar de<br />

profunda tristeza em seu amigo, aquele olhar peculiar das<br />

pessoas apaixonadas que não conseguem alento em nada,<br />

quando não podem estar vivendo intensamente a paixão que<br />

lhes consome a alma.<br />

— Está certo, Bakhin! Voltemos ao caminho.<br />

— Infelizmente, não posso ajudá-lo, Etiènne, mas tenho<br />

certeza de que ainda irá conhecer tantas coisas em Azur que,<br />

não tardará muito para que consiga esquecer os Vangis.<br />

— Não são os Vangis, mas apenas Sindazel. Podia jurar<br />

que senti seu cheiro agora há pouco, enquanto olhava para o<br />

céu rosado e recordava dela.<br />

Bakhin fez uma careta, incrédulo, e virou-se<br />

resmungando algumas palavras em seu rudimentar idioma de<br />

anão.<br />

Em poucos minutos tudo estava organizado e puseramse<br />

novamente em marcha.<br />

A descida das Montanhas Negras a partir do ponto de<br />

passagem no cimo da montanha, era mais tranqüila para o<br />

lado leste, devido à altura ser bem menor. As Montanhas<br />

Negras delimitavam, na verdade, dois níveis de altitude em<br />

165


<strong>Virgo</strong>, sendo todo o lado leste, muito mais elevado do que o<br />

lado oeste.<br />

Levaram apenas metade de um dia para chegar aos pés<br />

das montanhas pelo lado leste, à entrada da mais linda<br />

floresta de <strong>Virgo</strong>, a Floresta Dourada.<br />

A floresta faz jus ao nome, já que as árvores em sua<br />

grande maioria, eram de uma espécie que produzia um<br />

saboroso fruto de cor amarelada, lembrando muito o brilho do<br />

ouro. As folhas desta espécie de árvore, também ficavam<br />

douradas ao ressecarem. <strong>Era</strong> comum o chão da floresta estar<br />

coberto como se fosse uma espécie de tapete dourado, que na<br />

verdade, nada mais era do que o acúmulo de milhares de<br />

folhas que caíram e ressecaram ao longo do tempo.<br />

<strong>Era</strong> comum, nas festas <strong>dos</strong> anões do reino de Bakhin,<br />

utilizarem estas folhas secas para ornamentar suas vestes nas<br />

festas que antecediam às expedições de mineração. Os anões<br />

acreditavam que o uso dessas folhas brilhantes trazia boa<br />

sorte, para que eles encontrassem pedras preciosas em<br />

abundância. Claro que não passavam de crendices, passadas<br />

de geração para geração pelos patriarcas anões desde o início<br />

<strong>dos</strong> tempos.<br />

Já estava para anoitecer, a luminosidade havia caído<br />

bastante e o céu de <strong>Virgo</strong> que estivera tão brilhante durante o<br />

dia, agora dava sinais de cansaço, e seu brilho esmaecia.<br />

Acamparam ali mesmo, aos pés das Montanhas Negras.<br />

Etiènne enrolou-se em sua manta, e recostou-se sobre uma<br />

árvore. Bakhin o havia informado de que aguardariam o<br />

amanhecer para continuar a caminhada através da Floresta<br />

Dourada, até que chegassem a Planície de Ouro, de onde<br />

seguiriam rapidamente para o reino de Bakhin, sob a<br />

Montanha das Garbas.<br />

Tudo despertava a curiosidade de Etiènne, que estava<br />

sempre ávido por aprender sobre <strong>Virgo</strong>. Quis saber o motivo<br />

do nome da montanha e o que significava. Bakhin, sempre<br />

solícito, explicou que a montanha recebeu esse nome porque<br />

166


antigamente, as garbas, uma espécie de águia enorme,<br />

habitavam o seu topo, que era bruscamente achatado<br />

permitindo-lhes que fizessem inúmeros ninhos. Depois da <strong>Era</strong><br />

Trevas, quando o poder maligno dominou aquelas regiões,<br />

elas foram obrigadas a migrar dali e nunca mais retornaram<br />

para aquele local, que lhes fora sagrado por séculos.<br />

Não raro, Etiènne passou a sonhar com as coisas que<br />

Bakhin lhe contava. Às vezes, sonhava com as garbas, com os<br />

vangis, com o reino <strong>dos</strong> anões e seus tesouros, com sua amada<br />

Sindazel, e muitas outras vezes, teria pesadelos com dragões,<br />

orcs e goblins.<br />

O dia amanheceu, e Etiènne percebeu que havia algo<br />

diferente no ar. Parecia estar mais pesado, com um cheiro<br />

forte de carne apodrecida. Percebeu a movimentação <strong>dos</strong><br />

anões, organizando tudo com rapidez, correndo para to<strong>dos</strong> os<br />

la<strong>dos</strong>.<br />

Ainda com muita preguiça, Etiènne levantou-se e fez<br />

alguns exercícios de alongamento, preparando o corpo para<br />

mais um dia de longa caminhada. Estava ansioso em<br />

prosseguir, querendo conhecer mais aquele lugar, e<br />

secretamente, desejando encontrar algo que pudesse levá-lo à<br />

Sindazel.<br />

Caminhando entre aqueles anões apressa<strong>dos</strong>, não<br />

conseguia encontrar Bakhin; então, interrompeu a atividade<br />

de um daqueles pequenos, para questionar sobre o amigo. O<br />

diálogo era algo complicado com os anões, pois em sua<br />

maioria, recusavam usar outro idioma que não fosse o seu.<br />

— Por favor, amigo, sabe onde está Bakhin? — indagou<br />

Etiènne, fazendo uma ridícula mímica para tentar fazer-se<br />

entender pelo anão, que muito a contragosto e irritado por ter<br />

sido interrompido, respondeu à pergunta. Não antes de<br />

resmungar bastante em sua língua rústica.<br />

— Humm, ele partiu antes da aurora, com um pequeno<br />

grupo de batedores. Está desconfiado de que estamos sendo<br />

segui<strong>dos</strong> por goblins selvagens.<br />

167


— Curioso, ele não me disse nada a respeito. — Etiènne<br />

ficou pensativo, tentando imaginar o motivo pelo qual Bakhin<br />

não revelara a ele, a desconfiança de estarem sendo segui<strong>dos</strong><br />

por goblins. Teria perguntado outras coisas ao impaciente<br />

anão, mas ele não se deteve muito com Etiènne e retornou<br />

resmungando para seus afazeres.<br />

Sem encontrar uma maneira de ser útil diante daquele<br />

alvoroço todo provocado pelos anões, Etiènne tornou a sentarse<br />

onde havia passado a noite, e mais uma vez mergulhou em<br />

seus pensamentos, tendo Sindazel como protagonista.<br />

Não conseguia tirar de sua mente aquela imagem<br />

angelical. Por um momento, pensou em como fora idiota, em<br />

não ter abraçado, sentido seu corpo, beijado os lábios de<br />

Sindazel. <strong>Era</strong> tarde demais para pensar nisso, e a possibilidade<br />

de nunca mais poder estar com ela novamente o torturava<br />

mais e mais a cada dia que passava.<br />

Não passou muito tempo, e um anão se aproximou de<br />

Etiènne. Curiosamente, este anão tinha uma pronúncia clara<br />

da língua francesa. Quase não acreditou que aquele anão<br />

pudesse falar tão bem sua língua, e ficou muito satisfeito.<br />

— Não gostaria de incomodar vosso descanso, mas<br />

precisamos partir imediatamente! — afirmou o anão.<br />

Etiènne estava incrédulo ao ouvir o anão proferir<br />

aquelas palavras tão perfeitas.<br />

— Onde está Bakhin? Ele já retornou?<br />

— Partiremos sem ele. Foram ordens expressas. Caso ele<br />

não retornasse até que tudo estivesse pronto para a partida,<br />

não deveríamos mais esperá-lo.<br />

— Mas não podemos deixá-lo para trás, e se ele estiver<br />

precisando de ajuda? — Etiènne estava inconformado. Ainda<br />

não estava acostumado com a frieza <strong>dos</strong> anões, quando<br />

precisavam tomar decisões, e ainda sofreria muito com isso no<br />

futuro. — Por que não organizamos outro grupo para ir em<br />

busca de Bakhin? Vamos deixá-lo à própria sorte?<br />

168


— Estou cumprindo as ordens do rei! Agora apresse-se,<br />

se não quiserdes ficar só!<br />

— O rei!? Onde está vosso rei? Irei convencê-lo a não<br />

abandonarmos Bakhin!<br />

— Bakhin, é o nosso rei!<br />

Etiènne ficou estupefato! Foi surpreendido por esta<br />

revelação e um súbito desejo de reencontrar Bakhin acendeulhe<br />

no coração. Somente naquele momento percebeu que<br />

Bakhin não revelara toda a verdade, por cautela. Um rei sábio<br />

era Bakhin, imaginou, e de repente, um turbilhão de<br />

pensamentos invadiu sua mente.<br />

Precisava encontrar seu amigo anão mais do que nunca.<br />

Que outros segre<strong>dos</strong> poderia guardar Bakhin? Quanta<br />

sabedoria não podia ter aquela criatura, que parecia ser<br />

apenas um truculento general anão, mas que na verdade era<br />

rei? Rei de um reino enorme, rico e maravilhoso, pelas<br />

descrições que o próprio Bakhin havia feito. Não teria ele,<br />

sabedoria suficiente para levá-lo até Sindazel? Claro que<br />

deveria ter!<br />

Etiènne ficou excitado com a revelação, e em sua<br />

inocência, alheio aos perigos de <strong>Virgo</strong>, não teve dúvidas de<br />

que deveria ir atrás de Bakhin.<br />

— Cumpra as ordens de seu rei! — disse Etiènne. — Eu<br />

irei atrás dele. Vosso rei pode estar precisando da ajuda de um<br />

amigo.<br />

— Criatura estranha, é você! Não conhece nada deste<br />

lugar, e sua imprudência poderá levá-lo à morte!<br />

— Não creio nisso. Vá em paz com seu povo, irei ficar<br />

bem, não se preocupe.<br />

— Isso realmente não farei, minha preocupação é<br />

regressar a salvo até nosso reino, conforme me foi ordenado.<br />

— resmungou o anão, visivelmente insatisfeito com a atitude<br />

de Etiènne.<br />

— Pois vá! — confirmou Etiènne sua intenção de ficar.<br />

169


— Venha, lhe deixarei suprimentos para quatro dias;<br />

caso não consiga encontrar-se com Bakhin, siga para a Planície<br />

de Ouro, sempre caminhando a leste, com muita pressa. Não<br />

se detenha em contemplar as belezas da Floresta Dourada, e<br />

não desvie seu caminho para o sul da floresta, pois lá vivem os<br />

Elfos Negros, que são muito traiçoeiros e perigosos.<br />

Etiènne acompanhou o anão, que provavelmente havia<br />

assumido o comando do grupo, na ausência de Bakhin, ou<br />

quem sabe, sempre fora uma espécie de general, oculto em sua<br />

importância devido à presença do rei, e pegou as provisões<br />

prometidas.<br />

Ao se despedirem, o anão confirmou a suspeita de<br />

Etiènne, pois apresentou-se como Dohrum, o general daquele<br />

pequeno contingente de batalha, do reino de Bakkin,<br />

desejando-lhe sucesso na busca por seu rei Bakhin.<br />

Etiènne agradeceu, mas ainda não conseguia aceitar a<br />

idéia daqueles anões abandonarem o próprio rei daquela<br />

forma. Não podia compreender, ainda, o perigo que Bakhin,<br />

há muito, vinha percebendo e temia pela segurança de seu<br />

povo.<br />

Bakhin havia lutado na primeira Guerra da Floresta<br />

Dourada e sabia que seu reino sob à Montanha das Garbas, era<br />

o mais vulnerável <strong>dos</strong> três reinos de anões existentes em Azur.<br />

Qualquer descuido poderia colocar em risco não apenas<br />

aquele grupo, mas todo o seu povo.<br />

Dohrum, partiu com a tropa de anões deixando Etiènne<br />

para trás. Já devia ser quase meio-dia, e não podia perder<br />

tempo. Partiu pela trilha indicada por Dohrum, onde Bakhin<br />

teria seguido bem cedo, com outros dois anões batedores.<br />

Não demorou muito tempo após a partida de Dohrum<br />

para que Etiènne estivesse completamente perdido dentro da<br />

Floresta Dourada. A falta de conhecimento daquele lugar<br />

trouxe à tona o medo do desconhecido, e só então, Etiènne se<br />

deu conta de sua insensatez. Achou que podia ajudar Bakhin,<br />

170


mas ele mesmo agora estava encrencado e precisando de ajuda<br />

para sair daquele imenso labirinto de árvores douradas.<br />

<br />

Enquanto isso, do outro lado das Montanhas Negras,<br />

Michel e Grassac, com a ajuda de Peter, trabalhavam muito na<br />

construção das primeiras moradas do que futuramente<br />

acabaria tornando-se um próspero reino. Mas esse tempo, não<br />

seria conhecido por muitos <strong>dos</strong> que ali estavam, e ainda iria<br />

demorar longos anos para acontecer.<br />

Enquanto ajudava na preparação do terreno onde seria<br />

construído o armazém, para acondicionar o que restava das<br />

provisões e to<strong>dos</strong> os utensílios necessários à construção da<br />

vila, Grassac comentou com Michel a respeito da insatisfação<br />

de muitas pessoas, por estarem dormindo ao relento, sem<br />

condições mínimas de uma vida decente, e ainda por cima,<br />

correndo risco de serem atacadas pelas horrendas criaturas vis<br />

que as surpreenderam naquele local.<br />

Depois que os anões partiram, não houve uma noite<br />

sequer de sossego. To<strong>dos</strong> temiam ser assedia<strong>dos</strong> a qualquer<br />

momento pelas terríveis criaturas demoníacas que<br />

conheceram como sendo goblins.<br />

A alegria e agitação que havia no início da aventura<br />

agora davam definitivamente seu lugar ao medo e a tristeza.<br />

O sonho de um lugar fabuloso, onde poderiam viver<br />

numa paz eterna, anuviou-se com a fadiga, o racionamento de<br />

provisões e o contato com criaturas tão medonhas e bizarras.<br />

Muitos começavam a cultivar intimamente o desejo de<br />

regressar para Amiens, que a despeito da guerra que se<br />

aproximava e da opressão imposta por Martin Lacroix,<br />

guardava algo que lhes era muito caro, e que antes não<br />

atribuíram o devido valor: a vida de que estavam habitua<strong>dos</strong> a<br />

viver.<br />

Mudanças sempre são bem vindas, sobretudo, quando a<br />

expectativa em torno destas mudanças está intimamente<br />

171


ligada ao bem estar, à melhoria da qualidade de vida;<br />

entretanto, mesmo com essa expectativa, as pessoas sofrem<br />

com o processo de adaptação, ainda mais quando este<br />

processo de adaptação passa por muitos obstáculos como<br />

haviam passado aquelas pessoas de Amiens. <strong>Era</strong> natural que a<br />

sensação de arrependimento e o desejo de desistir de tudo<br />

dominassem a maioria daquelas pessoas.<br />

Nestes momentos, a presença de um líder carismático,<br />

espirituoso, equilibrado e inteligente é que faz a diferença e<br />

pode impedir que todo um planejamento seja desmoronado.<br />

Michel, apesar de carismático e inteligente, não era nada<br />

espirituoso e muito menos equilibrado. Sempre levando tudo<br />

a ferro e fogo, e com atitudes explosivas, não tinha condições<br />

de suportar uma revolta. Não tinha condições e nem<br />

argumentos para convencer aquelas pessoas a continuarem<br />

com ele, ou melhor, com os planos de erguer ali, naquele local,<br />

suas novas moradas.<br />

Por outro lado, Grassac podia não ser muito carismático,<br />

e nem tão inteligente quanto Michel Montbard, mas como<br />

provara na travessia da caverna, era capaz, através de seu<br />

equilíbrio e sangue frio, de conter uma multidão com suas<br />

colocações espirituosas a despeito das mais adversas<br />

condições.<br />

Um podia ajudar muito ao outro, mas os objetivos de<br />

ambos eram muito diferentes.<br />

Grassac estivera com eles para encontrar Gallard Gellion<br />

e vingar a morte de seu pai. Acabou envolvendo-se demais<br />

com o grupo <strong>dos</strong> conspiradores e manteve-se com eles.<br />

Adorava, sobretudo, Etiènne. Mas agora o grupo estava<br />

totalmente desmantelado, não tinha nenhuma obrigação de ali<br />

permanecer, e nem prometera nada para Michel.<br />

— Grassac, eu não sei o que fazer! Eu já notei o<br />

descontentamento das pessoas desde a travessia na caverna, e<br />

até agora, as coisas apenas pioraram. — Michel mostrava-se<br />

visivelmente abatido quando falava sobre isso.<br />

172


— Talvez fosse melhor você fazer uma reunião com<br />

to<strong>dos</strong>, a fim de decidirem juntos o que será melhor. Quem<br />

sabe, a melhor coisa a fazer seja voltar para Amiens?<br />

— Ficou louco!? Não podemos mais voltar. Já chegamos<br />

até aqui, temos que manter viva a esperança de dias melhores<br />

e construir nossa vida neste novo mundo!<br />

— Não sei Michel, não sei. Você é o único que ainda se<br />

mantém firme neste propósito. Por quê será? Talvez sua<br />

intransigência o cegue para as opções verdadeiramente<br />

sensatas.<br />

Michel ficou irritado com a colocação de Grassac,<br />

acusando-o de insensível.<br />

— Grassac, não me venha com seus conselhos! Parece o<br />

dono da verdade quando fala, mas também é cheio de<br />

dúvidas, assim como to<strong>dos</strong> nós! Por que ainda não nos deixou,<br />

se acha que nosso propósito é uma insensatez?<br />

— Posso dizer que fiquei encantado com a jovialidade<br />

de Etiènne, com sua energia, sua forma simples de viver a<br />

vida, sua espontaneidade. Me preocupo com ele, e penso que<br />

devo partir para encontrá-lo. Ele pode precisar de mim.<br />

— Mas o que é isso? Não me venha com essa conversa<br />

fiada sobre Etiènne. Você quer nos abandonar e apenas está<br />

usando meu irmão como desculpa para isso!<br />

— Não preciso de desculpas para ir embora. Sou livre<br />

para decidir o que é melhor para minha própria vida. Poderia<br />

escolher voltar para Chinon, talvez ficar em Amiens, ou quem<br />

sabe, ajudar Leon a erguer Nouvelle Amiens. Não, mas não é<br />

nada disso que quero. Não tenho objetivos, e depois que a<br />

vingança de meu pai perdeu o sentido, encontrei conforto em<br />

estar perto de Etiènne, que é uma pessoa muito especial.<br />

— Faça o que bem entender! Se não o conhecesse, o teria<br />

por efeminado, vendo a forma como se refere a meu irmão.<br />

— Francamente Michel! Sua interpretação de minha<br />

amizade por Etiènne não importa em nada, pois tenho certeza<br />

de que está além de sua compreensão. — Grassac indignou-se<br />

173


com a colocação de Michel. — Se falo abertamente com você<br />

sobre o que considero ser o mais sensato dentro das<br />

circunstâncias em que nos encontramos, é justamente por você<br />

ser irmão de Etiènne, e não gostaria de partir deixando-o com<br />

tantos problemas que, tenho certeza, não conseguirá resolver<br />

sozinho!<br />

— Você está me subestimando! Se chegamos até aqui, foi<br />

em conseqüência de minhas estratégias, de meus<br />

planejamentos, de minhas idéias!<br />

— Você é soberbo! Não tem vergonha de desmerecer o<br />

trabalho de to<strong>dos</strong> os outros que estiveram com você? Já<br />

esqueceu de Dízier? Já esqueceu de quem descobriu o<br />

caminho para este lugar, que foi Etiènne? Já esqueceu <strong>dos</strong><br />

irmãos Ballec, que comigo, tentaram salvá-lo das garras de<br />

Martin? Já esqueceu de que contive a revolta <strong>dos</strong> peregrinos<br />

durante a travessia da caverna? — Grassac estava<br />

encolerizado, como poucas vezes estivera. — Fica aí falando<br />

como se todo o mérito fosse apenas seu. Mas aí está o ponto!<br />

Mérito de quê? De conduzir estas pessoas para o vale da<br />

morte? Acha mesmo que alguma destas pessoas tem<br />

esperança de sobreviver aqui? A comida está ficando escassa,<br />

e agora, não tem milagre que possa nos livrar daqueles<br />

monstros, caso retornem! — continuou esbravejando sem<br />

parar, como se estivesse acometido de um surto. — Será tão<br />

difícil entender o grau de dificuldade que estamos<br />

enfrentando? Talvez Leon estivesse com a razão!<br />

— Não adianta ficar aí esbravejando, Grassac! Ou está<br />

comigo, ou então pode ir embora. Siga o seu caminho, seja ele<br />

qual for. Mas saiba que o tomarei por covarde!<br />

Os dois continuaram o resto da tarde cala<strong>dos</strong>, sem<br />

dirigir a palavra um ao outro, mas continuaram trabalhando<br />

para que o armazém pudesse ser construído o mais rápido<br />

possível.<br />

Peter, que observara a contenda <strong>dos</strong> dois, manteve-se<br />

alheio ao problema, procurando concentrar-se para encontrar<br />

174


uma solução que pudesse evitar o colapso definitivo daquele<br />

grupo, mas no fundo, sabia que a única solução deveria ter<br />

como alicerce, a união daqueles dois para que as pessoas não<br />

desistissem definitivamente de estar ali.<br />

Peter pensou em ir atrás de Etiènne, a fim de contar-lhe<br />

sobre os problemas que seu irmão estava passando, mas logo<br />

descartou esta possibilidade, pois a idéia de sair sozinho por<br />

aquele lugar desconhecido, cheio de criaturas demoníacas, lhe<br />

parecia um tanto absurda. Haveria de esperar que uma nova<br />

tropa de anões pudesse passar por ali para que ele a<br />

acompanhasse, a exemplo de como fizera Etiènne.<br />

Foi quando teve a idéia de promover um concurso de<br />

arco, para descontrair aquelas pessoas, ao mesmo tempo em<br />

que poderia ensinar aquela bela arte aos peregrinos, que<br />

certamente mostrar-se-ia necessária num futuro bem próximo.<br />

A idéia teve o apoio tanto de Michel quanto de Grassac,<br />

e isso fez com que os dois se aproximassem novamente, além<br />

de ter garantido dias mais tranqüilos entre to<strong>dos</strong>.<br />

Em poucas semanas, as primeiras construções já<br />

estavam erguidas e a vida começava a caminhar de forma<br />

mais amena. As turbulências de adaptação foram superadas,<br />

os relacionamentos ficavam mais íntimos entre o povo. Novos<br />

romances surgiam, novas grandes amizades estavam sendo<br />

formadas entre aquelas pessoas, novos empolga<strong>dos</strong> arqueiros<br />

estavam sendo treina<strong>dos</strong> por Peter, enfim, o medo arrefecera,<br />

e as pessoas já podiam considerar que estavam, de fato,<br />

começando suas vidas novamente. Momentos felizes<br />

começavam a rondar o povo de Michel.<br />

O que parecia impossível havia se tornado realidade,<br />

graças à iniciativa de um bretão que, não obstante, também<br />

tinha sangue franco correndo em suas veias. Mas se<br />

dependesse apenas de Michel, nem estaria entre eles. Afinal,<br />

Peter Wells não era um arqueiro de elite do exército inimigo à<br />

França?<br />

175


Mas este tempo foi superado, e a conversa que Michel<br />

tivera com Grassac jamais seria esquecida por ele, e os efeitos<br />

poderiam ser nitidamente nota<strong>dos</strong> na atitude carinhosa em<br />

escolher como nome daquele lugar que habitariam, Nouvelle<br />

Lyon, em homenagem à mãe de Peter, Jacqueline, que nascera<br />

na cidade de Lyon.<br />

<br />

A vida, tanto em Nouvelle Amiens quanto em Nouvelle<br />

Lyon, seguia seu rumo, e as duas cidades eram erguidas<br />

pouco a pouco. Nouvelle Amiens, com a ajuda <strong>dos</strong> elfos de<br />

Eluannar tornar-se-ia próspera e rica com maior rapidez do<br />

que Nouvelle Lyon, que também seria ajudada em sua<br />

construção pelos anões do reino de Bakhin algum tempo<br />

depois.<br />

Etiènne continuou vagando pela Floresta Dourada até o<br />

anoitecer, sem nada encontrar. Nem sinal de Bakhin, e muito<br />

menos de um caminho que pudesse tirá-lo da floresta.<br />

Desde a Montanha Serena, vinha involuntariamente<br />

aperfeiçoando seus senti<strong>dos</strong> dentro das florestas, e isso foi<br />

importante para fazer com que percebesse que, enquanto não<br />

encontrasse uma diferença de folhagens no chão, que fugisse<br />

ao padrão da floresta em que estava, ele não poderia estar<br />

próximo de Bakhin.<br />

No princípio, fora relativamente fácil seguir esta<br />

mudança de padrão, mas depois, gradativamente e em várias<br />

direções, o padrão da folhagem espalhada pelo solo parecia<br />

voltar ao normal de forma suave, sem permitir um raciocínio<br />

lógico de como aquilo poderia ter ocorrido.<br />

Poderia jurar que já havia passado por pontos onde era<br />

clara a mudança de padrão, onde as folhas estavam<br />

nitidamente revoltas, amassadas, dilaceradas e espalhadas<br />

para os cantos, e depois, tudo estava normal, como se nada<br />

tivesse passado por ali, com a folhagem cobrindo o solo<br />

176


naturalmente, com folhas frescas, anunciando que nunca<br />

haviam sido pisoteadas por nada.<br />

Exausto do cansativo e infrutífero dia, Etiènne procurou<br />

uma árvore que pudesse recostar-se, de forma que tivesse uma<br />

visão mais privilegiada do terreno onde se encontrava,<br />

deixando a retaguarda o menos vulnerável possível.<br />

Por sorte, ainda se encontrava próximo às encostas das<br />

Montanhas Negras; porém, mais ao norte, quase na interseção<br />

da cadeia de montanhas, que ligava as Montanhas Negras à<br />

Montanha das Garbas, e pôde escolher um local mais próximo<br />

às paredes rochosas que, apesar de terem um aspecto<br />

assustador, garantiriam maior segurança a ele.<br />

No meio da madrugada, Etiènne teve o seu sono<br />

interrompido por gritos apavorantes, que pareciam não estar<br />

muito longe dali. Levantou-se num pulo, e com o coração<br />

acelerado, ficou atento para tentar escutar melhor de que<br />

direção vinham os gritos, mas o silencio voltou a imperar na<br />

floresta. Alguns pios noturnos, que faziam parte integrante<br />

daquela floresta, aos poucos começaram a retornar, e a<br />

preencher o total vazio que sucedeu aos gritos.<br />

Etiènne, tinha suas têmporas embebidas em suor, apesar<br />

da friagem da madrugada. Já não tinha certeza se tivera algum<br />

pesadelo horripilante, ou se realmente escutara aqueles gritos,<br />

até que mais uma vez, novos gritos rasgaram a noite,<br />

deixando-o cheio de pavor. Mas desta vez pôde identificar<br />

com clareza a direção de onde surgiram os novos gritos.<br />

Caminhou apressadamente mas com cautela, na direção<br />

<strong>dos</strong> gritos, e conforme caminhava, podia identificar novos<br />

sons, como o crepitar de uma fogueira, o amolar de lâminas e<br />

o grunhido peculiar <strong>dos</strong> asquerosos goblins, que ele conhecera<br />

a poucos dias no ataque ao acampamento <strong>dos</strong> peregrinos que<br />

acompanhavam seu irmão Michel.<br />

Redobrou sua cautela e diminuiu o passo. Agora, podia<br />

identificar com menos dificuldade, por trás de alguns<br />

arbustos, uma pequena quantidade de goblins reuni<strong>dos</strong> em<br />

177


torno de um enorme tronco, onde estavam amarra<strong>dos</strong> Bakhin<br />

e seus dois companheiros anões. A luminosidade produzida<br />

pela fogueira <strong>dos</strong> goblins era muito fraca, de modo que<br />

Etiènne não conseguia entender ao certo o que se passava, mas<br />

estava presenciando muita agitação.<br />

Bakhin, debatia-se desesperadamente, mas os outros<br />

dois anões estavam inertes. Etiènne sentiu um calafrio ao<br />

pensar que os gritos de horror poderiam ter sido <strong>dos</strong> anões,<br />

antes de terem sido brutalmente assassina<strong>dos</strong>.<br />

Foi então que, Etiènne percebeu o que estava<br />

acontecendo, ao ver um <strong>dos</strong> goblins aproximando-se de<br />

Bakhin, com uma cimitarra em brasa, enquanto outros goblins<br />

iam cortando as roupas de Bakhin para deixá-lo nu.<br />

Certamente a lâmina em brasas seria usada para queimar aos<br />

poucos o corpo de Bakhin, até que não suportasse mais a dor e<br />

viesse a sucumbir. Isso explicava os gritos desespera<strong>dos</strong> que<br />

ouvira.<br />

A aflição em ver Bakhin naquela situação deixou Etiènne<br />

hesitante por um breve momento, mas a urgência em tomar<br />

alguma atitude, o fez agir quase que de forma instintiva.<br />

Pegou seus macha<strong>dos</strong> de arremesso, e irrompeu bravamente<br />

na clareira, tomando os goblins de surpresa.<br />

Com muita agilidade, arremessou quatro pequenos<br />

macha<strong>dos</strong>, dois em direção ao goblin que portava a cimitarra<br />

em brasas, um certeiro a outro goblin que viera em sua<br />

direção, e o último, em direção a um goblin que partira para<br />

cima de Bakhin. Em segun<strong>dos</strong>, havia atirado seus macha<strong>dos</strong>, e<br />

apesar da pouca luminosidade, acertou to<strong>dos</strong> com precisão!<br />

Sacou sua espada e foi para cima <strong>dos</strong> dois goblins que<br />

ainda restavam, os que estavam com pequenos punhais<br />

cortando as roupas de Bakhin.<br />

Os dois postaram-se um de cada lado de Etiènne,<br />

exibindo suas presas temíveis, grunhindo loucamente e<br />

tentando aproximar-se.<br />

178


Etiènne, não teve dificuldades para livrar-se das duas<br />

criaturas. Avançou dois passos e com um golpe rápido,<br />

decepou a mão de um <strong>dos</strong> goblins, girando o corpo<br />

ligeiramente a tempo de decapitar o outro que avançara afoito,<br />

ao ver Etiènne de costas.<br />

O goblin que tivera a mão decepada ficou de joelhos,<br />

grunhindo desesperadamente de dor, ou quem sabe,<br />

clamando pela presença de outros goblins no local. Sem<br />

hesitar, Etiènne aproximou-se novamente deste e deu-lhe o<br />

mesmo destino do outro, impie<strong>dos</strong>amente.<br />

Ainda esbaforido, e com seu coração batendo como<br />

nunca, correu até Bakhin, tirando sua mordaça e<br />

desamarrando-o do tronco no<strong>dos</strong>o.<br />

Assim que ficou livre, Bakhin caiu no solo como uma<br />

rocha, sem forças nas pernas para manter-se de pé, tamanho<br />

era seu pavor.<br />

— Calma Bakhin, tudo estará bem agora. — afirmou<br />

Etiènne, tentando acalmar o rei anão.<br />

Visivelmente abatido, Bakhin murmurou umas poucas<br />

palavras com dificuldade, mas que Etiènne entendeu<br />

perfeitamente.<br />

— Precisamos nos afastar deste lugar.<br />

— Sim, vamos sair daqui agora mesmo.<br />

Bakhin tentava se recompor com o que restava se suas<br />

vestes, enquanto Etiènne recuperava seus macha<strong>dos</strong> de<br />

arremesso, ainda presos à asquerosa carne daquelas criaturas<br />

bizarras. Cada machado recuperado, era limpo com certo nojo<br />

por parte de Etiènne, pois o sangue daquelas criaturas vis era<br />

muito escuro, viscoso e pegajoso.<br />

Não haveria tempo para dar o funeral adequado aos<br />

outros dois anões, mas isso não pareceu contrariar muito<br />

Bakhin, que demonstrava estar ainda muito apavorado com<br />

tudo o que passara. Na verdade, foi a primeira vez na vida<br />

que havia ficado cativo de goblins, uma experiência que<br />

jamais esqueceria enquanto vivesse.<br />

179


Afastaram-se o mais rápido que puderam daquele local,<br />

sempre olhando para trás, a confirmar que não estavam sendo<br />

segui<strong>dos</strong>. Continuaram sem parar até o amanhecer, pelos<br />

caminhos que Bakhin ia indicando conforme avançavam.<br />

Quando já estavam próximos à saída da Floresta Dourada,<br />

Bakhin caiu, sem forças para prosseguir.<br />

Etiènne tentou apoiá-lo, mas também já estava exausto e<br />

o anão era muito pesado. Ficaram os dois ali, estira<strong>dos</strong> no<br />

solo, desejando desesperadamente que não tivessem sido<br />

segui<strong>dos</strong> por outros goblins.<br />

Após o amanhecer, Bakhin já parecia estar<br />

completamente recuperado. Estava muito ativo, e enquanto<br />

retomavam a caminhada não parava de falar em seu reino e<br />

seu povo.<br />

Agradeceu muitas vezes a Etiènne por ter salvo sua<br />

vida, e lhe prometeu toda ajuda que precisasse para a<br />

construção da cidade de seus amigos, do outro lado das<br />

Montanhas Negras. Em geral, os anões costumavam trocar<br />

favores, mas nunca eternizavam essas trocas em nome de uma<br />

amizade ou de um relacionamento mais duradouro. Mas com<br />

Etiènne, Bakhin manteria sua palavra, e sua amizade pelo<br />

humano seria mesmo pelo resto de seus dias.<br />

Etiènne e Bakhin fizeram todo o percurso pela Planície<br />

de Ouro em silêncio, e antes de escurecer novamente, estavam<br />

às portas da fabulosa e encantadora cidade de Bakkin.<br />

180


M<br />

CAPÍTULO XIII<br />

Pedra sobre pedra<br />

artin Lacroix estava ansioso por partir. As últimas<br />

informações provenientes da Montanha Serena,<br />

afirmavam que o próprio Alain Dumas teria finalmente<br />

encontrado o ponto de fuga <strong>dos</strong> cidadãos de Amiens, agora<br />

considera<strong>dos</strong> criminosos fugitivos por decreto.<br />

Depois da trágica morte de Catherine, condenada por<br />

traição à Amiens diante de um falso magistrado que fora<br />

previamente subornado por Martin, ele pôde dedicar-se<br />

exclusivamente à procura <strong>dos</strong> Conspiradores e de to<strong>dos</strong> os<br />

habitantes que os haviam seguido. Ele nunca sossegaria até<br />

pôr novamente as mãos em Michel Montbard.<br />

A guerra contra os bretões, já havia se iniciado, mas<br />

ainda estava se desenrolando na região litorânea, de forma<br />

que os ingleses não chegariam tão cedo em Amiens. Enquanto<br />

seus vizinhos enviavam suas tropas para a região litorânea de<br />

Calais e a França sangrava, Martin enviava seus homens em<br />

incansáveis buscas pela Montanha Serena, tentando localizar<br />

onde haviam se refugiado os traidores de sua cidade.<br />

Foram quase dois anos de buscas infrutíferas. Até<br />

mesmo às cidades circundantes a Amiens, Martin enviara seus<br />

batedores procurando encontrar alguém ou algum detalhe que<br />

pudesse levá-lo ao caminho certo.<br />

Martin, estava exultante de alegria e foi pessoalmente<br />

aguardar Alain, na torre de vigia de seu castelo.


— Senhor, temos uma informação positiva! — a alegria<br />

no semblante de Alain era clara, denunciando que havia<br />

finalmente obtido sucesso em sua missão.<br />

— Como esperei por este momento! Conte-me tudo<br />

Alain, quero to<strong>dos</strong> os detalhes! — Martin passou o braço pelo<br />

ombro de Alain, e caminhou junto a ele em direção ao salão<br />

principal.<br />

— A verdade, meu senhor, é que não encontramos o<br />

caminho, o caminho veio até nós.<br />

— Como assim? Como o caminho veio até vocês?<br />

— Não sei explicar meu senhor, mas o local da passagem<br />

revelou-se no momento em que um grupo de pessoas<br />

apareceu dentro da gruta que vasculhávamos, como que por<br />

mágica. Ao que tudo indica, essa passagem deve levar ao<br />

outro lado da Montanha Serena. Já despachei um contingente<br />

para que contornasse a montanha à procura da saída desta<br />

misteriosa caverna, que não havíamos identificado até então.<br />

— Grupo de pessoas? Mas que grupo de pessoas?<br />

Michel Montbard está entre estas pessoas?<br />

— Não, meu senhor, são pessoas comuns da cidade, que<br />

haviam se aventurado junto aos conspiradores, mas<br />

arrependeram-se e retornaram para Amiens.<br />

— Não haverá indulgência! Quero estas pessoas todas<br />

aprisionadas para que sejam julgadas por traição!<br />

— Já estão todas aprisionadas, meu senhor. Devem<br />

chegar ao castelo em poucas horas. Neste momento estão<br />

sendo escoltadas por um grupo de minha confiança. Temos<br />

muito o que interrogar.<br />

— Faremos com que estes miseráveis nos levem onde<br />

estão aqueles malditos conspiradores. Irei matar Michel<br />

Montbard com minhas próprias mãos!<br />

Aquela semana, fora muito agitada em Amiens. Martin<br />

ordenou que todas as patrulhas regressassem ao castelo, e<br />

começou a traçar com Alain, seu fiel capitão, os planos para<br />

seguir a trilha <strong>dos</strong> conspiradores.<br />

182


Vários interrogatórios foram realiza<strong>dos</strong>, e a cada<br />

testemunho <strong>dos</strong> acontecimentos que se passaram no tal lugar<br />

que chamaram de <strong>Virgo</strong>, Martin e Alain ficavam mais<br />

impressiona<strong>dos</strong>. Não acreditavam em uma só palavra do que<br />

diziam os prisioneiros, e estes foram submeti<strong>dos</strong> à intensa<br />

tortura. Não obstante, os relatos eram sempre os mesmos e<br />

condizentes uns com os outros. Resolveram, então, ouvir<br />

atenciosamente tudo o que diziam.<br />

Ouviram falar <strong>dos</strong> orcs e <strong>dos</strong> elfos, souberam da<br />

prosperidade de Nouvelle Amiens, o que indignou<br />

particularmente a Martin; souberam ainda da separação entre<br />

Leon e Michel, e principalmente, do motivo que fez com que<br />

aquele grupo de pessoas voltasse para Amiens.<br />

Sucedeu que, após os primeiros meses de labor, quando<br />

a cidade de Nouvelle Amiens já estava amadurecida, devido<br />

em grande parte à ajuda <strong>dos</strong> elfos de Eluannar, muitas hordas<br />

de orcs começaram a investir contra o povo de Leon Troujard,<br />

não dando trégua às pessoas, e impedindo que os elfos<br />

pudessem retornar com segurança à Nouvelle Amiens,<br />

trazendo a ajuda que sempre ofereceram.<br />

O que Martin Lacroix não imaginava é que enquanto<br />

interrogava cansativamente aquele grupo de pessoas que<br />

haviam regressado de Nouvelle Amiens, o homem pelo qual<br />

nutria um ódio mortal já estava também em Amiens. Michel<br />

Montbard, havia chegado na manhã do mesmo dia em que<br />

aqueles desafortuna<strong>dos</strong> da cidade de Leon haviam sido presos<br />

por Alain.<br />

Resolvido a engendrar um plano para surpreender os<br />

homens de Nouvelle Amiens, Martin Lacroix iniciou os<br />

preparativos para ir ao encontro <strong>dos</strong> traidores. Em uma<br />

semana ficara tudo pronto, e pessoalmente, liderou a<br />

campanha.<br />

Enquanto o enorme contingente militar organizado por<br />

ele atravessava a gruta da Montanha Serena em direção a<br />

<strong>Virgo</strong>, um forte tremor de terra abalou a superfície de Amiens,<br />

183


fazendo com que parte da grande caverna desmoronasse, com<br />

enormes blocos de rocha despencando e rolando por cima de<br />

muitos solda<strong>dos</strong>. O desabamento fora catastrófico,<br />

bloqueando definitivamente a passagem entre Amiens e<br />

<strong>Virgo</strong>. Aproximadamente, um quinto <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> fora<br />

esmagado pelo desabamento, além de ter deixado muitos<br />

homens do outro lado <strong>dos</strong> escombros, antes que pudessem ter<br />

passado pelo ponto onde iniciava o declive, separando-os da<br />

maioria <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> que já haviam passado. Apavora<strong>dos</strong>,<br />

saíram da gruta e retornaram à floresta para decidir o que<br />

fazer.<br />

O enorme estrondo provocado pelas rochas que<br />

desabaram, era como o som de incessantes trovoadas ecoando<br />

dentro da caverna, e atemorizara não só os que haviam ficado<br />

impossibilita<strong>dos</strong> de prosseguir mas também aqueles que já<br />

haviam passado pelo ponto de declive do corredor dentro da<br />

gruta. Martin e Alain, que vinham liderando a coluna de<br />

solda<strong>dos</strong>, ainda sem saber ao certo o que acontecera, rumaram<br />

assusta<strong>dos</strong> para o final da coluna, que lhes ia abrindo<br />

passagem conforme cavalgavam na direção oposta.<br />

Constataram que haviam caído em desgraça, porque<br />

pelo tamanho <strong>dos</strong> blocos de rocha que estavam impedindo a<br />

passagem, levariam anos para conseguir removê-los, e isso<br />

considerando que a profundidade do desabamento não tivesse<br />

sido demasiadamente extensa. Eles não sabiam, mas quase<br />

toda a gruta acima deles havia desmoronado, e aquela<br />

passagem nunca mais voltaria a ser usada por nenhum ser<br />

humano.<br />

O destino separou Amiens e <strong>Virgo</strong>, separou Martin<br />

Lacroix de Amiens, Michel Montbard de seu sonho dourado.<br />

<strong>Era</strong> um acontecimento que traria mudanças drásticas para os<br />

homens e seus destinos.<br />

<br />

184


Não restava outra opção para Martin e seus homens, a<br />

não ser continuar descendo a caverna em direção a <strong>Virgo</strong>.<br />

Numa atitude sensata, tentando acalmar a tensão e aplacar o<br />

medo que dominara aqueles homens, Alain Dumas procurou<br />

conversar com cada grupo de solda<strong>dos</strong>, dizendo que outras<br />

passagens deveriam existir para seu retorno, e que eles as<br />

encontrariam. To<strong>dos</strong> pensavam em seus parentes e suas vidas<br />

que ficaram para trás, em Amiens. Estavam receosos de nunca<br />

mais poder retornar, o que de fato, aconteceria, e jamais<br />

voltariam a ver a luz do sol sobre Amiens.<br />

A jornada de Martin continuou tão vagarosa quanto<br />

silenciosa. <strong>Era</strong> como se o objetivo daquela missão tivesse sido<br />

soterrado com parte da tropa pelo desmoronamento da gruta.<br />

<strong>Era</strong> possível perceber o desânimo no semblante daqueles<br />

homens, que continuavam caminhando rumo ao<br />

desconhecido, sem saber ao certo como terminaria aquela<br />

campanha.<br />

Muitas horas depois, quando Martin e seus homens<br />

chegaram à Nouvelle Amiens, não encontraram um vilarejo<br />

humilde e desprotegido como imaginaram; muito ao<br />

contrário, Nouvelle Amiens era uma verdadeira fortaleza,<br />

erguida com a ajuda <strong>dos</strong> elfos, com uma arquitetura<br />

completamente estranha aos olhos de Martin. Os enormes<br />

muros esverdea<strong>dos</strong> que cercavam Nouvelle Amiens, ergui<strong>dos</strong><br />

com um tipo de rocha que fora trazida de dentro da Grande<br />

Floresta pelos elfos de Eluannar, eram reluzentes como se<br />

fossem revesti<strong>dos</strong> de algum tipo de metal.<br />

Martin, estava boquiaberto diante daquela onipotente<br />

muralha, e não foi capaz de disfarçar sua surpresa diante de<br />

Nouvelle Amiens.<br />

Alain, tentando distrair os homens e chamar a atenção<br />

de Martin para que este saísse do transe em que ficara,<br />

ordenou que dois grupos fossem forma<strong>dos</strong>, a fim de flanquear<br />

a cidade à procura da entrada.<br />

185


Recuperado da apatia momentânea, Martin exigiu para<br />

si o comando da tropa, impedindo que prosseguissem com as<br />

ordens do capitão. Contrariado, ao ver suas ordens serem<br />

impugnadas, Alain dirigiu-se até Martin, solicitando ao<br />

senhor de Amiens para que pudessem ter uma conversa<br />

reservada.<br />

Os dois caminharam alguns metros em direção à<br />

muralha e, quando sentiram-se à vontade para falar sem que<br />

fossem escuta<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong>, Alain revelou suas<br />

intenções.<br />

— Senhor, temos de rever nossa posição. Precisamos<br />

descobrir o que nos aguarda do outro lado destes onipotentes<br />

muros antes de prosseguirmos com nossa missão.<br />

— O que quer dizer com revermos nossa posição? —<br />

indagou Martin, espantado. — Estamos diante de nosso<br />

propósito. Sei o que há atrás destes muros. Há uma turba de<br />

criminosos e traidores, que devem ser condena<strong>dos</strong> e<br />

castiga<strong>dos</strong> por seu delito!<br />

Martin, sequer mencionara a palavra julgamento, pois<br />

em sua mente, to<strong>dos</strong> já estavam previamente condena<strong>dos</strong>. A<br />

idéia de poder finalmente vingar-se de Michel, Etiènne, Leon e<br />

to<strong>dos</strong> os outros, não permitia que ele raciocinasse sobre as<br />

circunstâncias em que se encontrava, e Alain, no fundo, queria<br />

alertá-lo para isso.<br />

— Mas senhor, seria mais prudente se soubéssemos,<br />

primeiramente, até que ponto esta gente está armada para um<br />

confronto. E o mais importante, e que não podemos esquecer,<br />

é que estamos isola<strong>dos</strong> neste lugar, sem saber se um dia<br />

poderemos voltar para Amiens. — Apesar de aflito, Alain<br />

procurava manter o tom das palavras de forma amigável,<br />

ainda que seu desejo fosse esbravejar contra seu intransigente<br />

senhor. — Acredito — continuou — que o mais prudente<br />

neste momento seja buscarmos um caminho alternativo que<br />

possa nos conduzir de volta à Amiens.<br />

186


Martin ficou pensativo, encarando Alain por um breve<br />

momento e depois olhou para o alto, como que procurando<br />

uma resposta no acalentador azul do céu, que não pôde<br />

encontrar. Encontrou apenas a afirmação de que estavam, de<br />

fato, isola<strong>dos</strong> num lugar desconhecido, sob um céu rosado,<br />

diferente de tudo o que vira na vida.<br />

— Quem sabe — prosseguiu Alain — essas pessoas<br />

sejam as únicas capazes de nos guiar de volta para Amiens,<br />

por caminhos que desconhecemos.<br />

Martin detestava ser contrariado, mas nas ocasiões em<br />

que as opções óbvias não eram as suas, sempre cedia. E assim,<br />

resolveu escutar Alain, porque mesmo que eles conseguissem<br />

levar adiante o aprisionamento daquelas pessoas, para onde<br />

eles as conduziriam? Estavam verdadeiramente perdi<strong>dos</strong> e<br />

isola<strong>dos</strong> num mundo desconhecido e talvez Alain tivesse<br />

razão, talvez os inimigos de outrora, viessem se tornar os<br />

salvadores da ocasião.<br />

— Penso que o dia de minha vingança não está muito<br />

longe. — Martin voltou a falar. — Pode ser uma boa idéia,<br />

depois de tanto tempo, aparecermos como visitantes<br />

amistosos, a fim de beneficiarmo-nos com informações que<br />

nos ajudem a concluir nosso objetivo em um momento mais<br />

propício.<br />

Alain, ficou aliviado ao ver que Martin cedera. Temia<br />

por sua segurança e pela segurança de seus homens.<br />

Acreditava que já haviam morrido solda<strong>dos</strong> demais por causa<br />

da insanidade de Martin Lacroix.<br />

— Está escurecendo rápido — observou Alain. — Meu<br />

senhor deseja acampar neste local? Ou prefere procurar a<br />

entrada da cidade, para nos anunciarmos?<br />

Martin, não permitiria que seu orgulho sofresse um<br />

golpe, e como já havia cancelado a ordem de Alain, não<br />

voltaria atrás diante da tropa. Mas estaria cometendo um<br />

grande erro.<br />

— Acamparemos por aqui esta noite! — ordenou.<br />

187


— Sim, meu senhor. Com sua licença, tomarei os<br />

procedimentos necessários para que preparem nosso<br />

acampamento.<br />

Martin assentiu com a cabeça, e com um breve gesto de<br />

sua mão, dispensou seu capitão.<br />

Alain, afastou-se de Martin caminhando para onde os<br />

solda<strong>dos</strong> haviam ficado e dirigiu-se à tropa, ordenando que<br />

preparassem a área para o acampamento. Pessoalmente, Alain<br />

selecionou os homens que fariam a vigilância daquela noite,<br />

protegendo o perímetro que estavam ocupando.<br />

<br />

Ainda não estava totalmente escuro, mas várias<br />

fogueiras já crepitavam pelo acampamento de Martin, quando<br />

um pequeno grupo de cavaleiros se aproximou pelo lado<br />

esquerdo da muralha, portando tochas e um vistoso<br />

estandarte, à maneira <strong>dos</strong> elfos, mas eram, na verdade,<br />

homens de Nouvelle Amiens.<br />

Os sentinelas correram para alertar a tropa, e o alvoroço<br />

que se seguiu pôde ser percebido por Martin em sua luxuosa<br />

tenda, onde conversava com Alain a respeito da abordagem à<br />

cidade de Nouvelle Amiens.<br />

— Senhor! Senhor! — gritou um <strong>dos</strong> sentinelas que<br />

estava posicionado do lado de fora da tenda de Martin.<br />

— Mensageiros! Acabaram de chegar alguns<br />

mensageiros da cidade de Nouvelle Amiens!<br />

Martin e Alain saíram da tenda, ansiosos. O sentinela os<br />

conduziu até o lado norte do acampamento, onde a alguns<br />

metros, podiam observar os homens de Nouvelle Amiens,<br />

com um luxuoso estandarte desfraldado, tremulando com a<br />

brisa comum do curto entardecer de <strong>Virgo</strong>.<br />

Martin, jamais poderia imaginar que estaria diante de<br />

uma situação assim. Sequer reconhecia aquelas pessoas, que a<br />

pouco mais de dois anos deveriam ser míseros camponeses e,<br />

188


agora, estavam trajando armaduras belíssimas, que nem<br />

mesmo em Paris havia testemunhado algo tão magnífico.<br />

Um escudeiro adiantou-se com um rolo de pergaminho,<br />

ajoelhou-se diante de Martin, baixou a cabeça e estendeu o<br />

braço, indicando que o pergaminho era destinado a ele.<br />

Martin, hesitou em pegar o pergaminho, mas ao<br />

procurar os olhos de Alain, este levantou as sobrancelhas e em<br />

seguida assentiu com a cabeça, animando-o para que o<br />

pergaminho fosse aceito. Martin estava confuso, mas sentiu-se<br />

seguro ao ver Alain ao seu lado, e então pegou o pergaminho<br />

das mãos do escudeiro, que imediatamente fez uma mesura e<br />

pediu licença, retornando em seguida para perto de seu grupo.<br />

Os segun<strong>dos</strong> pareciam durar uma eternidade, e o<br />

pergaminho parecia ter um peso insuportável para Martin,<br />

que o agarrava com força entre seus de<strong>dos</strong>. Os homens de<br />

Nouvelle Amiens não arredaram pé do lugar onde estavam, e<br />

pareciam esperar que Martin lesse a mensagem a ele<br />

destinada.<br />

Intimamente, Martin chegou a pensar em ordenar que<br />

seus solda<strong>dos</strong> investissem contra aqueles homens, que não<br />

passavam de traidores de sua cidade, mas isso não fora o<br />

planejado; então, visivelmente nervoso, puxou a fita que<br />

prendia o pergaminho e o desenrolou.<br />

Ao desenrolar o pergaminho, percebeu que havia um<br />

medalhão em seu interior, que rolou pelo papiro e quase foi ao<br />

chão, mas foi seguro agilmente por Martin. Ao ver o<br />

medalhão, sentiu um frêmito percorrer-lhe pelo dorso.<br />

Reconhecera imediatamente aquele objeto, e o apertou entre<br />

os de<strong>dos</strong>.<br />

Leu atenciosamente cada palavra escrita, e conforme<br />

avançava na leitura, surpreendia-se ainda mais com seu<br />

conteúdo. Por fim, enrolou novamente o pergaminho e foi<br />

tomado por um turbilhão de dúvidas. Naquele momento,<br />

Martin fora invadido por uma sensação de completo<br />

isolamento do mundo, onde apenas ele e sua angústia<br />

189


permaneceram frente a frente, sem que ninguém pudesse<br />

acompanhar o que se passava dentro dele.<br />

— Meu senhor, está tudo bem? — indagou Alain.<br />

Martin não respondeu, continuava com o semblante<br />

preocupado, e dirigiu-se para os cavaleiros de Nouvelle<br />

Amiens com passos vacilantes.<br />

— Diga a seu senhor, que refletirei sobre os fatos<br />

revela<strong>dos</strong> neste pergaminho. Ao amanhecer, enviarei uma<br />

mensagem a ele.<br />

— Temos ordens de não partirmos sem o senhor. A noite<br />

é traiçoeira em <strong>Virgo</strong>. Ele insistiu para que não os deixássemos<br />

fora da proteção <strong>dos</strong> muros da cidade.<br />

— Levará pelo menos duas horas para desmontarmos<br />

tudo, e então, já será noite.<br />

Alain percebeu que seu senhor ficara estranho após ter<br />

lido o pergaminho. Notou que Martin estava falando de forma<br />

cordial com os estranhos, e o mais absurdo e inacreditável a<br />

seus olhos, aceitando como senhor o líder daquele grupo que<br />

até antes do entardecer era considerado criminoso. Imaginou<br />

se a farsa de seu senhor estava sendo tão perfeita que até<br />

mesmo ele estivesse sendo enganado.<br />

— Acredite, estaremos bem! Pode regressar para a<br />

segurança de sua cidade. Quando amanhecer, terei decidido<br />

sobre o que fazer e como proceder.<br />

— Pois bem, senhor. Faremos como deseja.<br />

Os cavaleiros de Nouvelle Amiens, estavam ao mesmo<br />

tempo irradiantes e constrangi<strong>dos</strong>. Irradiantes, porque<br />

estavam ali diante do tirano que tanto os atormentara no<br />

passado e agora tratava-os com dignidade, sem a necessidade<br />

de se humilharem para dirigirem-se a ele. Isso lhes trouxe uma<br />

enorme satisfação, os fez sentirem-se homens honra<strong>dos</strong>, como<br />

se estivessem lavando a própria alma diante do ordinário que<br />

tanto os fizera sofrer. Ao mesmo tempo, ficaram<br />

constrangi<strong>dos</strong> porque teriam de voltar à cidade sem trazer<br />

Martin em segurança, conforme fora ordenado por Leon.<br />

190


As noites de <strong>Virgo</strong>, não faziam muita cerimônia para se<br />

apresentar, e sempre caíam abruptamente.<br />

Martin, recolheu-se à sua luxuosa tenda e ficou lendo o<br />

pergaminho de Leon diversas vezes, segurando com uma das<br />

mãos o medalhão que lhe fora entregue pelo escudeiro, ora<br />

girando-o entre os de<strong>dos</strong>, ora contemplando-o como quem<br />

viajasse no tempo, para um passado remoto, que já havia<br />

muito estava enterrado e esquecido. Entre uma leitura e outra<br />

pensou, “os fantasmas jamais adormecem, e quando menos se<br />

espera, eles se revelam diante de nossos incrédulos olhos”.<br />

Quando a madrugada ia demasiadamente avançada,<br />

Martin finalmente fora vencido pelo cansaço, e a despeito da<br />

excitação que estava sentindo, desmaiou de sono, mergulhado<br />

nos pensamentos sobre tudo o que lera.<br />

Do outro lado da muralha, na protegida Nouvelle<br />

Amiens, Leon estava ansioso por saber qual fora a reação de<br />

Martin, seu pai, ao ler o pergaminho que lhe fora entregue.<br />

Como reagiria aquele homem ao tomar conhecimento de seu<br />

conteúdo, que revelava ao tirano tudo o que sucedera com a<br />

antiga serva de quem havia se aproveitado numa longínqua<br />

noite de Amiens, mandando executá-la após descobrir que<br />

havia ficado grávida. Como reagiria aquele homem sem<br />

escrúpulos, ao descobrir que Leon Troujard, na verdade, era<br />

seu filho legítimo. Há muito tempo aguardava este momento,<br />

e já havia se preparado devidamente para esse dia. Ansiava<br />

por conseguir converter seu pai a uma vida mais digna e<br />

honrada.<br />

Quando fora informado por seus guardiões de que<br />

Martin se aproximava de Nouvelle Amiens, Leon correu para<br />

colocar em prática o que havia planejado.<br />

Mas ao regressarem e apresentarem-se diante de Leon,<br />

os homens que foram ao encontro de Martin relataram que ele<br />

ficara um pouco perturbado ao ler o pergaminho. Relutou em<br />

acompanhá-los, prometendo uma resposta nas primeiras<br />

191


horas do dia seguinte. Leon ficou visivelmente contrariado,<br />

mas não havia mais o que fazer, a não ser aguardar com<br />

grande expectativa durante uma noite insone, o desfecho<br />

daquele momento tão esperado. Agradeceu a seus homens, e<br />

recolheu-se, sem saber que o destino lhe reservava um duro<br />

golpe.<br />

Quando amanheceu, Leon foi acordado por um de seus<br />

homens de confiança, Maurice, que lhe trazia uma trágica<br />

notícia. O acampamento <strong>dos</strong> homens de Amiens havia sido<br />

atacado por uma grande horda de orcs selvagens.<br />

Leon levantou-se apavorado, exigindo to<strong>dos</strong> os detalhes<br />

ao companheiro. Maurice, assombrado com a reação de Leon,<br />

explicou-lhe que vários sobreviventes do acampamento,<br />

chegaram bem cedo às portas da cidade, conduzi<strong>dos</strong> por Alain<br />

Dumas, e que os feri<strong>dos</strong> já estavam sendo devidamente<br />

atendi<strong>dos</strong>, recebendo toda assistência necessária.<br />

Leon, impaciente, foi até onde estavam aloja<strong>dos</strong> os<br />

solda<strong>dos</strong> de Amiens, e dirigiu-se em primeiro lugar a Alain<br />

— Mas que desgraça ocorreu com vocês!? Onde está<br />

Martin Lacroix? — Leon estava visivelmente transtornado.<br />

Seu semblante preocupado denunciava uma estranha aflição,<br />

que não passou desapercebida aos olhos de Alain.<br />

— Não o encontramos. Depois do ataque surpresa que<br />

nos foi infligido por aquelas criaturas bizarras, muitos<br />

correram para to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>.<br />

— E você não estava próximo a seu senhor?<br />

— Não, no momento do ataque acabamos por ficar<br />

cerca<strong>dos</strong> em dois grupos isola<strong>dos</strong>. Acreditei que meu senhor<br />

estivesse no outro lado. Ao custo de muita luta conseguimos<br />

romper o cerco de nosso grupo e os orcs debandaram. Mas ao<br />

nos unirmos aos demais solda<strong>dos</strong>, constatei que o senhor<br />

Martin não estava com eles. Eu estava preocupado, sobretudo,<br />

com sua filha Lourdes, que ele insistiu em trazer nesta<br />

campanha com medo de que ela pudesse fugir de Amiens em<br />

sua ausência. Infelizmente, ela também desapareceu.<br />

192


Enquanto Alain narrava os acontecimentos da<br />

madrugada, Leon o escutava tomado de nervosismo,<br />

esfregando as mãos freneticamente sem parar.<br />

— Vasculhamos os arredores — continuou Alain — e<br />

não o encontramos. Acredito que ele possa ter sido levado<br />

pelas criaturas, e imploro vossa ajuda para que possamos<br />

resgatá-lo.<br />

— Por quê não foram atrás <strong>dos</strong> malditos orcs? Vocês não<br />

conhecem esses monstros, eles não fazem prisioneiros,<br />

certamente já terão matado Martin a essa altura! — esbravejou<br />

Leon, caindo sobre um banco de madeira e levando as mãos<br />

ao rosto, sem acreditar no que estava acontecendo.<br />

Sem saber o que estava se passando, Alain ficou<br />

intrigado com a reação de Leon, tentando imaginar o motivo<br />

de toda aquela angústia por um homem que havia chegado<br />

naquelas bandas para aprisioná-lo, ou até mesmo matá-lo.<br />

— Não podíamos fazer isso. <strong>Era</strong> muito arriscado, não<br />

conhecemos a região e muito menos este novo e demoníaco<br />

inimigo. Ademais, perdemos mais da metade de nossos<br />

homens desde que partimos de Amiens, estamos<br />

enfraqueci<strong>dos</strong>.<br />

— Eu não acredito que isso esteja acontecendo comigo,<br />

eu não acredito! — Gritou Leon, furioso. — Deus maldito, por<br />

que me castigas desta forma?<br />

— Consiga-me um guia e encontrarei meu senhor.<br />

— Eu mesmo serei o guia! — exclamou Leon. —<br />

Maurice, quero vinte homens da guarda me acompanhando<br />

na busca. Quanto a você, Alain, reúna os que ainda tenham<br />

ânimo para nos acompanhar. Tenho que encontrar Martin!<br />

Em pouco menos de meia hora, saíram pelo portão<br />

principal de Nouvelle Amiens, Leon, Alain, e pouco mais de<br />

quarenta homens.<br />

Durante as buscas, Leon contou a Alain sobre o<br />

conteúdo do pergaminho e sobre a descoberta que fizera em<br />

relação a Martin Lacroix, sendo este, seu pai. Alain ficou<br />

193


estupefato com tudo o que ouviu, mas sentiu um certo alívio<br />

em seu íntimo, imaginando que agora, talvez seu senhor se<br />

tornasse um homem mais sereno. Imaginou que, com essa<br />

revelação, talvez pudesse por termo à exaustiva busca <strong>dos</strong><br />

conspiradores que já durava mais de dois anos e havia<br />

culminado na desgraça em que agora se encontravam,<br />

isola<strong>dos</strong> naquele estranho lugar. Pensando nestas hipóteses,<br />

continuou a procura de seu senhor ao lado de Leon.<br />

Por várias semanas procuraram, em vão, encontrar<br />

Martin Lacroix. Faziam incursões cada vez mais distantes em<br />

direção à Grande Floresta, mas sempre fracassavam.<br />

Chegaram a combater alguns orcs desgarra<strong>dos</strong>, mas nenhum<br />

vestígio do senhor de Amiens foi encontrado.<br />

Leon e Alain, acabaram tornando-se grandes amigos,<br />

pois saíam juntos diariamente com uma pequena escolta nas<br />

incansáveis buscas ao senhor de Amiens, até que o coração de<br />

Leon amargurou-se de tal forma que já não conseguia mais<br />

permitir espaço para esperanças. Depois de quase três meses<br />

de buscas infrutíferas, Leon caiu em depressão, e já não<br />

conseguia mais sequer sair de sua residência.<br />

Finalmente, resolveu encarar a dura realidade de que<br />

jamais tornaria a ver seu pai, e arrefeceu.<br />

194


A<br />

CAPÍTULO XIV<br />

Reencontros e compromisso<br />

pós vários meses aguardando que os elfos de Eluannar os<br />

visitassem, trazendo os generosos presentes que já<br />

estavam habitua<strong>dos</strong> a receber, o povo de Nouvelle Amiens<br />

mostrava-se mais sombrio nos últimos dias.<br />

Depois que as buscas a Martin Lacroix foram<br />

interrompidas, os orcs voltaram a investir de forma ainda<br />

mais violenta contra a cidade, e os rumores de que todas as<br />

estradas estavam sendo vigiadas por essas vis criaturas os<br />

deixavam alarma<strong>dos</strong>. Para aumentar ainda mais o sofrimento<br />

<strong>dos</strong> cidadãos de Nouvelle Amiens, Alain Dumas lhes relatara<br />

que a passagem que levava à Amiens fora soterrada com o<br />

estremecer da terra, que acabou culminando no desabamento<br />

de enormes blocos de rocha. <strong>Era</strong>m dias difíceis e to<strong>dos</strong><br />

sentiam-se entristeci<strong>dos</strong> e desesperança<strong>dos</strong>.<br />

Não havia mais como voltar para Amiens. Não havia<br />

mais como visitar os antigos amigos e parentes que ficaram<br />

para trás. Não havia mais, como trazer os víveres, forragem e<br />

especiarias que durante os últimos dois anos eles sempre<br />

encomendavam aos mensageiros para que trouxessem de<br />

Amiens.<br />

De certa forma, a existência do caminho como uma<br />

possibilidade de retorno à Amiens os deixava tranqüilos. Por<br />

mais que já estivessem adapta<strong>dos</strong> à vida em <strong>Virgo</strong>, era muito


importante para aquelas pessoas, saber que a qualquer<br />

momento podiam optar por voltar à sua terra natal.<br />

A notícia de que esta possibilidade não existia mais,<br />

entretanto, foi fundamental para que os habitantes de<br />

Nouvelle Amiens aceitassem definitivamente que suas vidas<br />

em <strong>Virgo</strong>, jamais poderia ser abandonada e tornara-se fato<br />

consumado.<br />

Daquele dia em diante, era preciso que eles se<br />

esforçassem ainda mais para que sua cidade prosperasse e se<br />

tornasse vigorosa, pois agora, aquela era a cidade onde<br />

terminariam seus dias, mesmo que em alguns casos, muito a<br />

contragosto.<br />

<strong>Era</strong> comum, naqueles dias, as pessoas conversarem<br />

acerca de Amiens. Muitos faziam planos de rotas comerciais<br />

entre as duas cidades, visando não só lucrar com tais<br />

atividades, mas principalmente, garantir que nada lhes<br />

faltasse enquanto ali permanecessem. Outros, ainda, faziam<br />

planos de retornar quando a guerra com os ingleses<br />

terminasse, ou simplesmente, quando Martin Lacroix não<br />

fosse mais o soberano do local. Mas todas essas conversas, e<br />

muitas outras que sempre tomavam Amiens como tema,<br />

foram naturalmente passando à nostalgia, dando lugar, cada<br />

semana com mais força, a temas como os lugares<br />

desconheci<strong>dos</strong> de <strong>Virgo</strong>, as riquezas naturais daquele lugar, o<br />

crescimento de Nouvelle Amiens, e muitos outros assuntos<br />

pertinentes à sua nova realidade de habitantes definitivos<br />

naquela terra.<br />

A aceitação de que estavam fada<strong>dos</strong> a morrer em <strong>Virgo</strong>,<br />

sem oportunidade de voltar a Amiens, não seria rápida.<br />

Mesmo depois que se passassem muitos anos, algumas<br />

pessoas lembrariam com saudade e tristeza de sua terra natal.<br />

Um <strong>dos</strong> fatores que ajudou a amenizar a dor e o<br />

sentimento de perda, foi o nascimento <strong>dos</strong> primeiros homens<br />

em <strong>Virgo</strong>, em Nouvelle Amiens. Desta forma, os homens<br />

começaram a criar verdadeiras raízes naquele lugar, pois os<br />

196


que jamais conheceram Amiens, por mais belas as histórias<br />

que pudessem escutar sobre a terra de seus antepassa<strong>dos</strong>,<br />

nunca se ocupariam com sonhos de uma terra que não fosse a<br />

que eles nasceram. Se por um lado, os velhos sempre<br />

procuravam um motivo para relembrar de Amiens, por outro,<br />

os mais jovens e adultos não se cansavam de falar de suas<br />

aventuras em <strong>Virgo</strong>, cada vez mais fantásticas e fabulosas para<br />

as crianças nascidas ali.<br />

Bastaram apenas três gerações em <strong>Virgo</strong> para que a<br />

velha Amiens e a velha França passassem à sombra, onde<br />

apenas os muito i<strong>dos</strong>os, à beira da senilidade, se recordassem<br />

vagamente desses dias.<br />

Mas esse tempo vai muito à frente de nossa época, e não<br />

seria justo com nossos heróis deixarmos de narrar seus feitos<br />

nesta nova era de <strong>Virgo</strong>.<br />

Foi então, nesse clima de tensão, com todas essas tristes<br />

notícias espalhando-se rapidamente como um vírus entre<br />

aquelas pessoas, que Leon Troujard decretou, pela primeira<br />

vez desde que assumira a liderança daquele povo, um feriado<br />

para o dia seguinte, convocando as pessoas para que<br />

pudessem comparecer a um pronunciamento seu. Não haveria<br />

nenhum tipo de trabalho naquele dia. Nem mesmo na<br />

construção <strong>dos</strong> prédios públicos de Nouvelle Amiens, que<br />

estavam em fase de conclusão, e era a obra que mais atraía a<br />

dedicação e o carinho de Leon.<br />

To<strong>dos</strong> ficaram muito apreensivos com este fato inédito,<br />

e especularam sobre os desígnios que estariam fada<strong>dos</strong> a<br />

suportar.<br />

Ao anoitecer, as três tabernas existentes em Nouvelle<br />

Amiens ficaram abarrotadas de gente. Cada cidadão com uma<br />

versão mais estapafúrdia do que a de outro a respeito do que<br />

seria pronunciado por Leon no dia seguinte. As pessoas<br />

temiam, principalmente, que alguma razão as levasse a<br />

abandonar Nouvelle Amiens. Eles não se conformavam com o<br />

desmoronamento da caverna que os levou ao total isolamento,<br />

197


mas tinham um medo muito maior, talvez potencializado pelo<br />

fato de que não tinham mais como regressar a sua cidade<br />

natal, de ter que deixar Nouvelle Amiens às pressas.<br />

Alguns mais versa<strong>dos</strong> na criação de boatos chegavam a<br />

dizer que quem provocara o desabamento foram os orcs<br />

selvagens, e que provavelmente estes mesmos orcs já estariam<br />

a caminho de Nouvelle Amiens para também destruí-la.<br />

Toda essa especulação estava servindo apenas para<br />

alarmar ainda mais as pessoas, e isso divertia alguns boateiros,<br />

que se regozijavam ao ver a cara de pavor das pessoas ao<br />

escutarem suas histórias bizarras.<br />

O povo sabia que a guarda de Nouvelle Amiens, criada<br />

a pouco menos de um ano por Leon, a despeito de possuir<br />

belas armaduras e armamentos confecciona<strong>dos</strong> e forneci<strong>dos</strong><br />

pelo povo élfico de Eluannar, era muito limitada. Contava<br />

com pouco mais de cinqüenta homens sem qualquer<br />

experiência de batalha. Mesmo contando com alguns solda<strong>dos</strong><br />

de Amiens que agora estavam entre eles, incorpora<strong>dos</strong> à<br />

guarda da cidade por Leon, não seriam capazes de resistir a<br />

um ataque maciço, fosse ele proveniente de orcs, goblins ou<br />

mesmo de ingleses. Em caso de cerco, poderiam resistir por<br />

vários meses, por possuírem uma fantástica reserva de<br />

provisões dentro das muralhas. Mas sem ajuda, acabariam por<br />

sucumbir.<br />

A noite avançava com um certo ar de cinismo entre as<br />

bebedeiras e os boatos. Os bêba<strong>dos</strong>, começavam a revelar-se<br />

entre os assusta<strong>dos</strong> e boateiros, dando mostras de total<br />

descontrole de seus atos. Não demorou muito para que as<br />

brigas ocupassem o lugar das rodinhas de história, exibindo<br />

um <strong>dos</strong> mais tristes cenários da miséria humana. A discórdia<br />

era entre pais e filhos, principalmente a respeito <strong>dos</strong> caminhos<br />

que deveriam ser toma<strong>dos</strong> por Leon. Uns querendo exaltar<br />

Amiens, e os outros defendendo a nova pátria. Irmãos se<br />

agredindo fisicamente, numa disputa insana de quem era<br />

portador da razão, como se isso fosse garantir que seus<br />

198


argumentos deveriam prevalecer. Enfim, homens que<br />

acreditavam cegamente possuir a sabedoria e a verdade<br />

necessárias para a situação que se apresentava, brigavam,<br />

entorpeci<strong>dos</strong> pelo vinho, como um bando de delinqüentes.<br />

<br />

Em Nouvelle Lyon, onde a cidade era mais modesta em<br />

tamanho e beleza, à exceção da infestação de orcs, que podia<br />

ser notada em qualquer parte de <strong>Virgo</strong>, as pessoas estavam<br />

alheias aos últimos acontecimentos que fervilhavam em<br />

Nouvelle Amiens, do outro lado da Planície de Prata.<br />

Não sabiam que Martin Lacroix havia chegado a <strong>Virgo</strong><br />

com um grande número de solda<strong>dos</strong>, e que este desaparecera<br />

num ataque de orcs; não sabiam do desmoronamento da<br />

caverna que era o elo de ligação entre <strong>Virgo</strong> e Amiens; não<br />

sabiam que Michel Montbard, ainda se encontrava em<br />

Amiens, quando este desmoronamento ocorreu, e que ele não<br />

teria mais como voltar para sua cidade.<br />

Alheios, sim, mas muito inquietos, estavam os<br />

habitantes de Nouvelle Lyon, e dois deles, em especial,<br />

mostravam-se ainda mais agita<strong>dos</strong>. Grassac e Peter, que<br />

passaram a noite em claro, conversando sobre o notável<br />

aumento da presença de orcs nos bosques que cercavam a<br />

cidade, presenciavam cala<strong>dos</strong> as primeiras luzes rosadas da<br />

manhã. O amanhecer cor de rosa já não parecia tão estranho<br />

quanto há dois anos atrás, mas sempre merecia contemplação,<br />

porque sem a menor sombra de dúvida, aquele céu luminoso<br />

acendendo-se gradativamente era o evento natural mais lindo<br />

daquele lugar.<br />

Absortos em sua contemplação, não se aperceberam da<br />

chegada de um velho e amado amigo, Etiènne Montbard, que<br />

regressava de Bakkin.<br />

— Se eu fosse um orc, teria duas novas cabeças para<br />

levar como troféus — exclamou Etiènne, assustando os amigos<br />

com sua repentina presença.<br />

199


— Deus do Céu! Que susto! — disse Peter.<br />

— Não tenha tanta certeza disso, meu amigo —<br />

resmungou Grassac, tentando disfarçar o susto que levara,<br />

mas ao mesmo tempo, exibindo um enorme sorriso de<br />

satisfação ao rever o amigo querido.<br />

Abraçaram-se calorosamente, como amigos que não se<br />

viam há muito tempo. Na verdade, Etiènne os visitou no<br />

semestre anterior, para lhes contar sobre todas as maravilhas<br />

que havia conhecido do outro lado das Montanhas Negras,<br />

sobre o maravilhoso reino de seu amigo Bakhin e seus<br />

incontáveis habitantes. Agora voltava, não para contar sobre<br />

suas aventuras do outro lado, mas por estar demasiadamente<br />

preocupado com seu irmão e seus amigos, devido à intensa<br />

atividade <strong>dos</strong> orcs nos últimos meses.<br />

— Me conte, Etiènne, como chegou aqui tão cedo? Não<br />

me diga que passou toda a madrugada caminhando? —<br />

perguntou Grassac, ainda admirado e feliz por rever Etiènne.<br />

— Não há motivo para que eu me preocupe, eu estava<br />

bem acompanhado com um grupo de orcs que conheci, e<br />

tornaram-se meus amigos. — respondeu Etiènne, em tom<br />

zombeteiro, gozando com a cara <strong>dos</strong> amigos, rindo bastante.<br />

— Você é mesmo um gaiato — concluiu Grassac.<br />

— Mas então, como chegou aqui a uma hora dessas? —<br />

Peter reforçou a pergunta do amigo.<br />

— Não caminhei por toda a noite, apenas uma parte<br />

dela. Mesmo os orcs precisam dormir. Agem como crianças<br />

travessas, lutam contra o sono durante quase toda noite, mas<br />

nas últimas três horas da madrugada é muito difícil encontrar<br />

um que tenha resistido ao sono. To<strong>dos</strong> dormem neste período.<br />

Eu poderia ter chegado pouco depois do anoitecer, pois já<br />

havia feito a travessia das Montanhas Negras, mas assim que<br />

anoiteceu procurei logo um abrigo. Retomei a caminhada<br />

apenas quando a madrugada já estava bem avançada.<br />

— Não é prudente vagar solitário nestes dias —<br />

repreendeu Grassac — em que orcs andam às dezenas por<br />

200


to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>. Nem mesmo os goblins, tão comuns nesta<br />

região, têm aparecido ultimamente.<br />

— Agora não tem mais perigo, já estou entre amigos.<br />

— Onde está Bakhin?<br />

— Onde está meu irmão?<br />

Grassac e Etiènne perguntaram ao mesmo tempo. O<br />

primeiro, onde estaria o rei anão, que no semestre anterior<br />

acompanhara Etiènne com uma forte escolta até Nouvelle<br />

Lyon, e Etiènne, indagando sobre seu irmão, Michel<br />

Montbard.<br />

Sorriram embaraça<strong>dos</strong>, mas a boa educação permitiu a<br />

Grassac satisfazer rapidamente a curiosidade do visitante.<br />

— Michel viajou para Amiens. Foi buscar Dízier, como<br />

prometera ao taberneiro, lembra-se?<br />

— Sim, como iria esquecer-me? Eu não estava lá quando<br />

ele fez a tal promessa, mas da forma como me contou, dizendo<br />

que as lágrimas de esperança derramadas por Dízier foram a<br />

coisa mais comovente que viu na vida, foram suficientes para<br />

me emocionar também.<br />

— Sim, eu estava lá. E seria uma injustiça muito grande<br />

de Michel se ele não cumprisse sua palavra e não fosse buscar<br />

Dízier.<br />

— Eu também me lembro deste dia. Realmente, esta<br />

promessa não poderia ser quebrada por Michel. Na minha<br />

opinião, acho que esperar dois anos chegou a ser um castigo<br />

desnecessário para o pobre taberneiro — concluiu Peter.<br />

Etiènne olhou com reprovação para Peter que,<br />

desconcertado, procurou remedar suas próprias palavras.<br />

— Claro que muitas coisas inesperadas aconteceram e<br />

exigiram que Michel estivesse sempre presente conosco. Não<br />

quis dizer que a atitude dele tenha sido proposital, perdoemme.<br />

— Tudo bem — exclamou Etiènne.<br />

Grassac, por sua vez, manteve-se neutro, pois jamais<br />

esquecera suas desavenças com Michel por ocasião da<br />

201


construção da cidade, de forma que não se sentia nem um<br />

pouco propenso a fazer qualquer colocação sobre o assunto.<br />

— Mas então, meu irmão foi para Amiens, sozinho!? —<br />

Etiènne fez essa pergunta demonstrando uma certa decepção,<br />

e ao mesmo tempo cobrando <strong>dos</strong> amigos, por quê nenhum <strong>dos</strong><br />

dois havia acompanhado seu irmão em tão longa, perigosa e<br />

cansativa viagem.<br />

— Calma Etiènne, não seja precipitado em seu<br />

julgamento. Claro que fizemos de tudo para que ao menos um<br />

de nós acompanhasse Michel, mas você, mais do que<br />

ninguém, sabe o quanto seu irmão é teimoso e cabeça dura! —<br />

defendeu-se Grassac. — Já nos desentendemos incontáveis<br />

vezes nesses últimos dois anos por conta de sua intransigência<br />

nata.<br />

Mais uma vez Etiènne disse que estava tudo bem, e que<br />

perdoaria os amigos se estes lhe conseguissem um bom<br />

desjejum e boas acomodações, pois pretendia ficar até que seu<br />

irmão retornasse de Amiens. O que ele ainda não sabia, mas<br />

também não demoraria a saber, é que Michel não podia voltar<br />

de Amiens. A passagem já não existia mais.<br />

Os primeiros dias da estada de Etiènne em Nouvelle<br />

Lyon foram muito tranqüilos e agradáveis. Ajudou no<br />

planejamento da expansão da cidade, que já estava<br />

começando a ser desenhado por seu irmão, e prometeu<br />

conseguir com Bakhin mais ajuda material e alguma mão-deobra<br />

para que a expansão ocorresse mais rapidamente.<br />

Etiènne, mostrava-se orgulhoso pelo trabalho que seu irmão e<br />

os amigos haviam realizado e continuavam realizando por<br />

aquelas pessoas que estavam realmente vivendo dias muito<br />

felizes. Claro, dias felizes, sim, mas também estavam<br />

assustadas com a questão <strong>dos</strong> orcs, que mostravam-se cada<br />

vez mais numerosos naquelas paragens. Mas nenhum<br />

incidente grave havia ocorrido com os cidadãos de Nouvelle<br />

Lyon.<br />

<br />

202


O dia já estava claro em <strong>Virgo</strong> e a brisa forte da manhã,<br />

comum na região da Planície de Prata, fazia com que aquela<br />

multidão de pessoas de Nouvelle Amiens, estivesse bem<br />

agasalhada, de braços cruza<strong>dos</strong> ou esfregando as mãos de<br />

tempos em tempos.<br />

To<strong>dos</strong> aguardavam com grande ansiedade a presença de<br />

Leon, num murmúrio que mais parecia uma canção de<br />

angústia. Um palanque fora improvisado num <strong>dos</strong> pontos da<br />

cidade onde era possível reunir o maior número de pessoas.<br />

Pela quantidade de gente que estava amontoada ali naquela<br />

manhã, podia-se dizer que apenas os muito enfermos ou<br />

i<strong>dos</strong>os, que não eram capazes de caminhar, haviam faltado à<br />

convocação de Leon Troujard.<br />

Os minutos pareciam ter transformado-se em horas<br />

intermináveis, mas quando um silêncio fúnebre se apoderou<br />

da multidão, Leon, surgiu acompanhado de Alain Dumas no<br />

alto do palanque que fora improvisado.<br />

Leon trazia um comprido papiro onde havia rascunhado<br />

durante a madrugada, as palavras que pretendia proferir a seu<br />

povo naquela fria manhã.<br />

A guarda de Nouvelle Amiens, à exceção <strong>dos</strong> sentinelas<br />

da entrada da cidade e das torres de vigia espalhadas pela<br />

muralha que a cercava, estava quase toda presente,<br />

envolvendo o palanque numa espécie de cerca humana,<br />

dando um tom mais solene ao momento.<br />

Nervoso e pigarreando um pouco, Leon preparava-se<br />

para iniciar o seu pronunciamento.<br />

<br />

Naquela mesma manhã, entretanto, muito distante dali e<br />

sob o cálido sol do outono francês, e não sob o avermelhado<br />

céu de <strong>Virgo</strong>, Michel Montbard, em Amiens, caminhava sobre<br />

um terreno isolado dentro da propriedade do tio de Gien<br />

Ballec, acompanhado do próprio Gien, que o conduzira até<br />

uma pequena lápide dedicada ao taberneiro Dízier.<br />

203


Michel, ajoelhou-se diante da pequena lápide, incrédulo,<br />

testemunhando que um de seus grandes amigos e idealizador<br />

maior do sonho que conquistara, estava ali, sepultado.<br />

— Como foi que aconteceu? — perguntou Michel, com<br />

uma amargura daquelas que nos dá um nó na garganta,<br />

fazendo com que até mesmo a saliva torne-se pesada, espessa<br />

e difícil de engolir.<br />

— Ele nunca se recuperou daqueles ferimentos. Sua<br />

tristeza, estando entrevado na cama, aumentava a cada mês.<br />

No início, ele ainda falava muito de vocês, mas com um<br />

carinho especial por ti, a quem ele transformou numa espécie<br />

de salvador que a qualquer momento entraria pela porta da<br />

casa de meu tio, para levá-lo.<br />

Michel, cerrou os punhos com força e as lágrimas<br />

começaram a brotar-lhe nos olhos. Tentou lutar contra a<br />

emoção, mas quanto mais lutava, mais vulnerável ficava aos<br />

seus sentimentos. Os lábios começaram-lhe a tremer, e ele<br />

inutilmente tentou conter esta reação, mordendo-os.<br />

Gien continuou:<br />

— Depois de três meses, ficou ainda pior. Tinha<br />

pesadelos todas as noites, delirava em febre. Meu tio acredita<br />

que ele tenha enlouquecido por causa da obsessão de que você<br />

viria buscá-lo. Ele começou a dizer coisas impossíveis, de que<br />

tinha conversado com você, de que você o avisou que estaria<br />

chegando, coisas assim.<br />

Michel levou uma das mãos à testa, apoiando sua<br />

cabeça, e começou a soluçar. Não era mais possível conter as<br />

lágrimas, e uma dor de culpa e remorso apoderou-se dele.<br />

— Michel? Não fique assim, ele não podia ser salvo.<br />

— Mas podia ter conhecido Nouvelle Lyon antes de<br />

morrer — respondeu Michel, amargurado, num tom choroso.<br />

Gien sacudiu a cabeça, coçou a orelha, e achou melhor<br />

deixar o amigo sozinho naquele momento.<br />

— Vou deixá-lo só, por algum tempo. Estarei dentro da<br />

casa se precisar de algo — disse.<br />

204


— Você não terminou de dizer como ele morreu!<br />

— Não durou muito mais tempo depois <strong>dos</strong> delírios.<br />

Acho que, pouco mais de duas semanas, e estava totalmente<br />

consumido pelas infecções e loucura. — Gien fez uma<br />

pequena pausa e depois concluiu: — Um médico esteve<br />

acompanhando o estado de Dízier, e no final, determinou que<br />

a causa da morte foi a elevada temperatura, que não<br />

conseguíamos mais conter. Morreu de hipertermia.<br />

— Morreu de desgosto! — retrucou Michel, assumindo a<br />

culpa pela morte de Dízier, ainda mostrando-se arrasado.<br />

— Não diga uma bobagem dessas. Dízier estava<br />

debilitado, com ferimentos que insistiam em não cicatrizar,<br />

apesar de to<strong>dos</strong> os cuida<strong>dos</strong> que lhe dispensamos. Você não<br />

estava aqui para saber como foi difícil tentar curá-lo. Se ele<br />

tivesse sido tratado com brevidade, talvez ainda estivesse vivo<br />

hoje e voltaria para essa tal Nouvelle Lyon com você, mas o<br />

tempo que ele perdeu naquele calabouço de Martin Lacroix é<br />

que foi o verdadeiro culpado por tirar as chances dele ter<br />

recebido o devido tratamento a tempo e ser curado!<br />

Gien falava com carinho, pois sabia que o amigo estava<br />

muito angustiado com o destino que Dízier tivera.<br />

— Vamos, Michel, vamos entrar e irei preparar um bom<br />

chá que costuma dar ânimo até mesmo para os dias mais<br />

difíceis do meu tio.<br />

Michel, levantou-se ainda envolto em lágrimas. Aceitou<br />

com prazer o ombro oferecido por Gien para se sustentar e<br />

acompanhou seu amigo de volta para a casa onde estava<br />

abrigado desde a ocasião em que haviam fugido das garras de<br />

Martin Lacroix. Logo partiria para Nouvelle Lyon, acreditava.<br />

Pigarreou duas ou três vezes sobre a mão esquerda<br />

cerrada, e com a outra mão, esticando o papiro ao alcance de<br />

sua vista, Leon começou seu discurso.<br />

“Povo de Nouvelle Amiens,<br />

205


Vós to<strong>dos</strong> sabeis o quanto tenho dedicado meus dias ao<br />

labor para a glória da cidade que vos abriga e protege. Vós<br />

to<strong>dos</strong> sabeis, que deleguei responsabilidades diversas, a<br />

muitos concidadãos que se mostraram dispostos a realizar um<br />

trabalho voluntário difícil, para organizarmos nossa estrutura,<br />

que é baseada num regime democrático onde não permitimos<br />

espaço para a tirania, que outrora sentimos através das mãos<br />

de meu próprio pai, Martin Lacroix! — Neste momento, um<br />

murmúrio e uma inquietação agitaram a massa. Muitos ainda<br />

não sabiam desse fato. Leon ergueu o braço, pedindo silêncio<br />

para que pudesse prosseguir com seu pronunciamento. —<br />

Como é de vosso conhecimento, a rota que nos ligava à<br />

Amiens já não existe mais e agora estamos confina<strong>dos</strong> para<br />

sempre nesta região. Apesar <strong>dos</strong> temores de to<strong>dos</strong> nós, não<br />

temos o que reclamar, pois fomos recebi<strong>dos</strong> com amor pelos<br />

elfos de Eluannar, que tanto se empenharam em nos ajudar a<br />

erguer nossa cidade, e fomos agracia<strong>dos</strong> com uma boa terra,<br />

que não nos deixa faltar forragem e víveres, que nos abastece<br />

com uma riqueza a que nunca estivemos acostuma<strong>dos</strong>.<br />

Portanto, em razão de estarmos isola<strong>dos</strong> nesta boa terra,<br />

onde já fizemos importantes amigos, nós, de Nouvelle<br />

Amiens, temos a responsabilidade de nos preparar e nos<br />

conduzir para uma nova era. A era <strong>dos</strong> homens em <strong>Virgo</strong>! —<br />

Esta ultima frase foi pronunciada com firmeza e eloqüência,<br />

fazendo com que a multidão o ovacionasse, com vários gritos<br />

de elogio a seu trabalho. Mais uma vez, ergueu o braço<br />

pedindo silêncio, e prosseguiu — É por isso que os convoquei<br />

hoje, porque to<strong>dos</strong> devem estar cientes dessa enorme<br />

responsabilidade que caiu sobre nós! — Pigarreou mais duas<br />

ou três vezes, antes de continuar. — Como sabem, os orcs<br />

selvagens voltaram a nos assediar, e não podemos de forma<br />

alguma, ser subjuga<strong>dos</strong> por essas criaturas demoníacas. Não<br />

devemos apenas nos defender atrás de nossos muros, mas<br />

erradicar de nossa região, para sempre, esses malditos<br />

monstros! — Novos aplausos e ovação ocorreram por parte do<br />

206


povo. — Eis ao meu lado, Alain Dumas, capitão da guarda de<br />

Amiens, que agora, está ao serviço de nossa cidade. Assim<br />

como ele, tantos outros homens, solda<strong>dos</strong> treina<strong>dos</strong> de<br />

Amiens, se integraram à nossa guarda. Por um lado,<br />

aumentando nossa proteção, mas por outro, aumentando as<br />

despesas de nossa cidade. — Um novo murmúrio percorreu a<br />

massa, que já começava a temer pelas próximas palavras de<br />

Leon. — E foi pensando na responsabilidade da qual lhes falei,<br />

que tomei uma decisão que irá desagradar a muitos. A partir<br />

do próximo mês, haverá um aumento no imposto de<br />

segurança territorial, e além disso, será criado um novo<br />

imposto para que possamos captar recursos suficientes para<br />

iniciar a organização de um exército para Nouvelle Amiens.<br />

Será criado o imposto militar. Contudo, este último imposto<br />

ficará a cargo do povo decidir sobre o quanto será pago,<br />

mensalmente, para a glória de nossa cidade!”<br />

As pessoas se entreolharam incrédulas, como se tudo o<br />

que acabaram de ouvir fosse um pronunciamento do próprio<br />

Martin Lacroix, e não de seu filho. Não obstante, sabiam que<br />

deveriam responsabilizar-se pelo futuro, não só da cidade,<br />

quanto o de suas próprias famílias, e diferentemente de como<br />

Martin Lacroix agiria, seu filho lhes dava a oportunidade de<br />

decidir sobre o caminho a seguir, ainda que as opções fossem<br />

amargas, pois teriam que contribuir e não podiam fugir à<br />

responsabilidade. Os orcs eram uma ameaça real, e poderiam<br />

dizer quantas outras ameaças ainda surgiriam naquele lugar?<br />

Leon encerrou seu pronunciamento com elogios aos<br />

cidadãos de Nouvelle Amiens, e marcou uma nova data onde<br />

seria realizada uma avaliação das sugestões quanto ao novo<br />

imposto que necessitava ser criado, o imposto militar.<br />

207


A<br />

CAPÍTULO XV<br />

A tempestade se aproxima<br />

beleza do céu de <strong>Virgo</strong> era incontestável, mas nos dias<br />

chuvosos, quando densas nuvens cobriam os luminosos<br />

cristais avermelha<strong>dos</strong>, devido à condensação de vapores, o<br />

lugar tornava-se medonho. A escuridão provocada pelas<br />

nuvens de chuva colocava <strong>Virgo</strong> totalmente às escuras,<br />

fazendo com que dia e noite tornassem-se uma só longa<br />

escuridão. Nos dias em que a condensação de vapores em<br />

<strong>Virgo</strong> era muito intensa, geralmente na mesma época em que<br />

ocorria o verão na França, as chuvas tornavam-se torrenciais,<br />

muitas vezes obrigando as pessoas a permanecerem longos<br />

perío<strong>dos</strong> confinadas em seus lares, limitando-se a sair somente<br />

se fosse inevitável, como por exemplo, para repor as provisões<br />

em suas despensas, ou em caso de emergência, saúde, e outras<br />

situações graves.<br />

Foi num desses dias chuvosos, apesar do perigo que eles<br />

representam para os viajantes de <strong>Virgo</strong>, que um grupo de<br />

Eluannar, depois de muitos meses, apareceu inesperadamente<br />

às portas de Nouvelle Amiens.<br />

Os portões foram abertos tão logo o estandarte de<br />

Eluannar fora identificado, e os visitantes foram conduzi<strong>dos</strong><br />

até a Casa de Governo, onde normalmente Leon era<br />

encontrado, agora sempre ao lado de Maurice e Alain Dumas,<br />

que passou a ser seu braço direito.


Os elfos estavam com suas vestimentas totalmente<br />

encharcadas devido à chuva, e hesitaram em entrar na Casa de<br />

Governo no estado em que se encontravam. Dois jovens<br />

rapazes apareceram trazendo toalhas e foram extremamente<br />

gentis, ajudando os elfos a desfazerem-se das pesadas capas<br />

que inutilmente tentavam protegê-los da chuva.<br />

Alguns momentos depois, Leon apareceu na recepção,<br />

onde os elfos já o aguardavam mais à vontade. Notou que não<br />

conhecia nenhum <strong>dos</strong> elfos ali presentes, e achou ainda mais<br />

estranho que seu grande amigo Lasthion não estivesse com<br />

eles, depois de tanto tempo sem os visitar.<br />

— Sejam bem vin<strong>dos</strong>! — arriscou Leon, um pouco<br />

apreensivo com a inusitada visita, num tempo tão ruim.<br />

— Obrigado, senhor — pronunciou-se um <strong>dos</strong> elfos que,<br />

pela ornamentação que trazia em suas vestes, parecia ser o<br />

líder daquele pequeno grupo — mas infelizmente os tempos<br />

tornaram-se muito sombrios, e nossa visita não se trata apenas<br />

de uma mera casualidade. — O tom de voz do elfo era grave.<br />

— É verdade. Tenho pensado muito em vosso povo<br />

ultimamente, pois não tendo nenhuma notícia, e estando as<br />

estradas infestadas de orcs selvagens, ficamos priva<strong>dos</strong> de<br />

nossos contatos neste fim de mundo. — reclamou Leon.<br />

— Lasthion, também se preocupa muito com vosso<br />

povo, e tem sido veemente junto a nosso rei ao tentar<br />

convencê-lo de que é necessário destacar uma legião inteira<br />

para proteger Nouvelle Amiens. Ele os ama, e se preocupa<br />

com vocês. Não pense que ele vos esqueceu.<br />

Leon ficou desconcertado e também muito<br />

envergonhado por reclamar da ausência <strong>dos</strong> elfos que tanto<br />

lhe ajudaram na construção de sua cidade.<br />

— Meu nome é Tarlhion. Como eu dizia, infelizmente<br />

não estou nesta terra distante, a passeio. — a expressão<br />

austera de Tarlhion e a eloqüência grave de sua voz não<br />

permitiam qualquer margem a descontração, por mais que<br />

Leon preferisse quebrar aquela aura de seriedade que os elfos<br />

209


trouxeram. — Estou aqui para trazer um convite muito<br />

especial, a pedido do rei de Plarionthil, o maior de to<strong>dos</strong> os<br />

reinos élficos.<br />

— Plarionthil! — exclamou surpreso Leon.<br />

— Sim! Haverá um grande colóquio sobre a recente<br />

atividade <strong>dos</strong> orcs.<br />

Leon olhou para Alain e balançou a cabeça como que em<br />

gesto de surpresa. Ainda naquela semana Leon falara a Alain<br />

sobre os orcs e a estranha movimentação que estava<br />

percebendo. Temia pela segurança da cidade, principalmente<br />

depois que os solda<strong>dos</strong> de Amiens foram ataca<strong>dos</strong>, o que<br />

acabou culminando no desaparecimento de seu pai, Martin<br />

Lacroix.<br />

— O rei Galanderin — continuou Tarlhion — teme por<br />

uma nova época de trevas. Vários batedores já informaram<br />

que um enorme exército de orcs, de diversas tribos, está se<br />

reunindo na região do Deserto Naissaras, aos pés das Colinas<br />

Íngremes. O rei teme por to<strong>dos</strong> os povos, raças e nações, e<br />

quer a presença do representante de cada um deles.<br />

— Mas por que não vieram elfos de Plarionthil trazer o<br />

convite? Por que Lasthion, meu amigo, não veio trazer o<br />

convite para mim? — questionou Leon.<br />

— Plarionthil é o maior de to<strong>dos</strong> os reinos, mas não<br />

pode se dar ao luxo de estender seus braços por toda a<br />

Thalide. Nouvelle Amiens pertence à jurisdição de Eluannar, e<br />

a nosso reino compete manter os povoa<strong>dos</strong> de nossa jurisdição<br />

protegi<strong>dos</strong> e informa<strong>dos</strong> sobre a mão reguladora de<br />

Plarionthil. Nem sempre foi assim, mas um tratado élfico tem<br />

mantido a paz entre nossos povos nestas condições.<br />

— Mas e Lasthion? Por que ele não pôde vir?<br />

— Lasthion está com sua legião na foz do rio Nabrandar,<br />

próximo a Planúviel, outro reino élfico, aguardando ordens<br />

para regressar.<br />

— Então, a situação é mesmo muito ruim, porque uma<br />

vez Lasthion me disse que só em momentos de extremo perigo<br />

210


ele conduzia sua legião para longe de Eluannar — concluiu<br />

Leon, com tristeza.<br />

— Permita entregar-lhe o convite.<br />

Tarlhion estendeu o braço em direção à Leon, exibindo o<br />

Thallon, um pequeno tubo ornamentado com minúsculas jóias<br />

incrustadas, no que parecia ser constituído de alguma espécie<br />

de madeira rústica, bem escura.<br />

O tubo era encaixado em duas metades, e em seu<br />

interior estava o convite do rei Galanderin, que convocava o<br />

representante daquela cidade a comparecer em seu reino, na<br />

primeira semana de Sharvar, o início do período de colheita<br />

<strong>dos</strong> elfos, um <strong>dos</strong> perío<strong>dos</strong> mais comemora<strong>dos</strong> por este povo.<br />

Leon forçou o tubo com as duas mãos, tentando abri-lo,<br />

mas nem foi preciso muito esforço, bastou exercer uma<br />

pequena pressão para que o inusitado objeto se separasse com<br />

um estalido em duas metades, fazendo com que seu conteúdo<br />

caísse no chão, diante de to<strong>dos</strong>. Leon ficou constrangido com<br />

sua atitude desajeitada, e sorriu, encabulado, abaixando-se<br />

para colher a tira de seda aonde vinha gravada a mensagem<br />

em letras élficas bordadas com finos fios de ouro.<br />

A despeito do constrangimento de Leon, Tarlhion fez<br />

questão de afirmar que a presença dele seria imprescindível,<br />

pois o rei supremo <strong>dos</strong> reis élficos não aceitaria descaso por<br />

parte de seus súditos.<br />

— Certamente não pretendo deixar de comparecer em<br />

tão importante encontro. Sempre seremos gratos ao povo<br />

élfico por toda ajuda e proteção que nos dispensaram. —<br />

Tarlhion, fez um gesto com a cabeça, aprovando as palavras<br />

de Leon. — Não obstante, não conhecemos os caminhos que<br />

conduzem a Plarionthil; como bem deve saber, o único lugar<br />

que visitamos fora de nossa cidade foi o vosso reino de<br />

Eluannar.<br />

— Quanto a esse detalhe, não há com o que se<br />

preocupar, pois estará bem acompanhado quando partir para<br />

211


Plarionthil. Lasthion virá para conduzi-lo, para garantir que<br />

chegará em segurança ao maior de to<strong>dos</strong> os reinos élficos.<br />

Leon, sentiu-se mais aliviado ao saber que seu grande<br />

amigo elfo viria para buscá-lo e acompanhá-lo até Plarionthil.<br />

Concluída a entrega do convite, com todas as<br />

recomendações possíveis feitas por Tarlhion, Leon ofereceu a<br />

seus visitantes elfos acomodações para que pudessem se<br />

refazer da cansativa viagem de Eluannar até Nouvelle<br />

Amiens, e claro, para que esperassem que o tempo permitisse<br />

uma viagem tranqüila de regresso.<br />

Tarlhion aceitou de bom grado a gentileza de Leon, e<br />

pôde desfrutar da hospitalidade <strong>dos</strong> homens enquanto<br />

permaneceu na cidade.<br />

<br />

Não existia nada mais gratificante, para o rei Bakhin, do<br />

que poder extrair das profundezas das cavernas ou das minas<br />

escavadas nas planícies o mais puro e reluzente ouro e as mais<br />

cristalinas pedras preciosas de varia<strong>dos</strong> matizes, com que os<br />

anões tanto se encantavam.<br />

Em todas as suas construções era possível perceber a<br />

riqueza com que os anões as adornavam, com milhares de<br />

pequeninas pedras incrustadas e muito ouro. Toda a cidade<br />

<strong>dos</strong> anões era de uma riqueza sem igual.<br />

O próprio Bakhin, em sua infância, pouco antes de<br />

dedicar-se à arte da guerra, esteve em muitas expedições para<br />

extração mineral com os mais experientes mineradores de seu<br />

reino. Foram tempos inesquecíveis, onde aprendera tudo o<br />

que sabia sobre cada metal e cada tipo de rocha.<br />

A Montanha das Garbas, em cujas entranhas ficava o<br />

suntuoso reino de Bakkin, tinha à sua frente, estendido como<br />

se fosse um gigantesco tapete ocre, coberto por uma extensa<br />

vegetação rasteira e avermelhada, a Planície de Ouro. Planície<br />

onde os anões mineradores de Bakkin já haviam praticamente<br />

esgotado todas as minas construídas naquele território.<br />

212


Por muitos anos, Bakhin se consumia tentando conter o<br />

desejo cada vez mais insuportável dentro de si de explorar a<br />

Floresta Dourada para construir novas minas em busca de<br />

ouro. Em seu íntimo, acreditava que toda a região abaixo da<br />

Floresta Dourada era uma imensa jazida de ouro que<br />

influenciava diretamente na florescência dourada encontrada<br />

nas folhagens das árvores daquela região.<br />

Não podia se esquecer, porém, que no passado seu povo<br />

já sofrera uma humilhante derrota para os elfos quando<br />

tentaram iniciar um desmatamento na orla daquela floresta<br />

com o intuito de ampliar suas minas. Foram muitas vidas<br />

perdidas durante a Guerra da Floresta Dourada.<br />

A região da Floresta Dourada, após a famosa guerra cujo<br />

nome foi herdado da própria região, fora transformada num<br />

protetorado de Plarionthil, e a partir de então, guarnecida e<br />

habitada pelos elfos negros.<br />

Bakhin estava relembrando todas essas coisas enquanto<br />

fitava o convite de Plarionthil que chegara a seu reino e lhe<br />

fora entregue naquela manhã.<br />

Os anões não eram muito supersticiosos, mas vários<br />

deles tinham suas crenças e seus deuses. Muitos acreditavam<br />

na velha profecia que Glabor 1 deixou talhada na Klaopala 2, e<br />

que A era <strong>dos</strong> homens em <strong>Virgo</strong> poria um fim na era <strong>dos</strong> elfos,<br />

abrindo caminho para que os anões pudessem deter soberania<br />

absoluta sobre toda Azur.<br />

Bakhin, normalmente acusado de ser ímpio entre os<br />

anões mais nobres de seu reino, sempre fora cético quanto às<br />

crendices e argumentava que nenhuma profecia poderia<br />

garantir as riquezas de seu reino, muito menos a soberania de<br />

Azur. Não obstante, passou a pensar com maior freqüência<br />

nesta profecia, tentando imaginar de que forma, aqueles<br />

1 O último e mais sábio de to<strong>dos</strong> os dragões doura<strong>dos</strong> de <strong>Virgo</strong>.<br />

2 Um monólito de ofuscante brancura, encontrado no centro do Vale<br />

da Neblina. Neste monólito, está gravada a profecia de Glabor.<br />

213


semelhantes a seu novo amigo Etiènne poderiam colocar um<br />

fim na soberania <strong>dos</strong> elfos.<br />

As minas de ouro esgotadas, a raça <strong>dos</strong> homens citada<br />

na profecia, enfim caminhava sobre Azur, os orcs presentes e<br />

numerosos como há muitos séculos não se presenciava. Tudo<br />

isso certamente deveria significar alguma coisa nova no ar, e<br />

Bakhin, pensava em como tirar proveito desses<br />

acontecimentos para beneficiar Bakkin, seu reino.<br />

A presença cada vez mais numerosa de orcs vagando<br />

pela Floresta Dourada, poderia ser uma boa desculpa para que<br />

Bakhin reivindicasse mais uma vez a soberania daquele<br />

território. Os elfos negros, que habitavam o sul daquela<br />

região, não estavam mais sendo capazes de manter o local<br />

seguro, e fechavam-se cada vez mais em suas obscuras<br />

moradias, ao passo que Plarionthil, por sua vez, há muitos<br />

anos não enviava seus observadores para o lado leste das<br />

Montanhas Negras.<br />

Não obstante a tudo isso, Bakhin temia por novos<br />

tempos de guerra, e sua amizade e gratidão por Etiènne<br />

haviam amolecido seu coração nos últimos dois anos.<br />

Desejava continuar ensinando a seu novo amigo, tudo o que<br />

pudesse sobre as maravilhas e os perigos de Azur, e pretendia<br />

manter a ajuda que vinha oferecendo a seu irmão para ampliar<br />

a cidade de Nouvelle Lyon.<br />

Bakhin sabia que uma nova guerra declarada aos elfos<br />

traria instabilidade a Azur, deixando to<strong>dos</strong> os povos ainda<br />

mais vulneráveis aos orcs, que provavelmente aguardavam<br />

encontrar o primeiro sinal de fraqueza das raças superiores<br />

para investirem impie<strong>dos</strong>amente, como fizeram os orcs<br />

Zaraidai, durante a Guerra da Agonia. O pequeno rei<br />

permanecia pensando em todas essas coisas enquanto<br />

continuava girando o Thallon em suas pequeninas, mas<br />

robustas, mãos de anão. Talvez, nunca em toda a sua longa<br />

vida, tivesse se sentido inundado com tantas dúvidas como<br />

estava naquele momento.<br />

214


Que importância poderia ter para os anões de Bakkin,<br />

um colóquio promovido por Galanderin?<br />

<br />

Enquanto isso, na região leste da Planície de Prata, o<br />

mau tempo também castigava Nouvelle Lyon, obrigando a<br />

to<strong>dos</strong> os seus moradores a ficarem confina<strong>dos</strong> dentro de suas<br />

casas.<br />

Etiènne, Grassac e Peter, a despeito da tempestade que<br />

assolava <strong>Virgo</strong> praticamente havia uma semana, divertiam-se<br />

num empolgante jogo de da<strong>dos</strong>, enquanto degustavam entre<br />

uma jogada e outra, um saboroso vinho trazido por Etiènne do<br />

reino de Bakkin e serviam-se de diversas iguarias dispostas<br />

numa bandeja de prata, colocada à proximidade de suas mãos.<br />

Entre um petisco e outro, sempre agita<strong>dos</strong> com a<br />

jogatina, teciam comentários sobre a vida em <strong>Virgo</strong>,<br />

levantando questões importantes a respeito de como<br />

poderiam expandir suas terras e criar rotas comerciais<br />

alternativas, uma vez que não havia mais qualquer esperança<br />

de se criar um vínculo com Amiens, no futuro.<br />

A conversa estava muito animada e cada um deles<br />

contribuía com idéias variadas a respeito de qual seria o<br />

caminho mais rápido para Nouvelle Lyon alcançar a<br />

prosperidade. Na opinião de Etiènne, sem dúvida alguma a<br />

prosperidade seria alcançada através de um forte laço de<br />

amizade entre eles e o reino de Bakkin. Com efeito, se a cidade<br />

já possuía uma boa estrutura, era graças aos esforços <strong>dos</strong><br />

anões e de todo o material cedido por Bakhin. Na opinião de<br />

Grassac, o importante era delinear uma ampla região para<br />

pastagem e cultivo para que a cidade pudesse ser auto<br />

suficiente, e não viesse a correr o risco de depender de outros<br />

povos para garantir suas provisões. O inglês, foi o único que<br />

lembrou de Leon e <strong>dos</strong> outros que ficaram para trás, insistindo<br />

em dizer que seria fundamental para a prosperidade <strong>dos</strong><br />

215


homens em <strong>Virgo</strong> que as duas cidades se unissem e criassem<br />

um forte vínculo comercial.<br />

Assim foi passando a madrugada, e de um tema a outro,<br />

foram dialogando sobre política, economia, religião, filosofia,<br />

guerras, até que chegaram a um tema mais complexo,<br />

mulheres. Como o vinho já havia sido demasiadamente<br />

consumido, não tardou para que os desentendimentos<br />

surgissem.<br />

— Agora, depois de tanto tempo dedicando-me à labuta<br />

para que esta cidade pudesse estar de pé, penso em procurar<br />

uma bela jovem para criar uma família. — Disse Peter.<br />

— Oras, mas o que é isso? — interrompeu Grassac. —<br />

Um rapaz novo como você, se enrabichar por uma única<br />

mulher, casar e ter filhos, bah! Você está louco, Pit?! Você<br />

devia aproveitar sua juventude e conhecer todas as mulheres<br />

de Nouvelle Lyon! — Grassac soltou uma estridente<br />

gargalhada e sorveu mais uma taça de vinho de um só gole,<br />

deixando escorrer mais vinho pelos cantos da boca do que por<br />

sua garganta.<br />

— Qual é o problema, Grassac? Deixe o rapaz decidir<br />

por si. Se esse for seu desejo, não vejo nada demais. Não é<br />

proibido apaixonar-se jovem e desejar construir uma família.<br />

— Contestou Etiènne, em favor do amigo inglês.<br />

— Sim, é verdade, mas devia ser proibido apaixonar-se<br />

por criaturas fantasiosas e jogar fora os melhores anos da vida,<br />

como você vem fazendo por conta dessa tal Sindazel!<br />

— Pode fazer pilhéria o quanto quiser, Grassac, mas hei<br />

de trazer Sindazel em meus braços para viver a meu lado aqui<br />

em Nouvelle Lyon, nem que eu leve a vida inteira para<br />

encontrá-la. Sei que um dia nos reencontraremos!<br />

— Você ficou foi maluco! Devia tirar isso da cabeça!<br />

— Acho que chegou a hora de retirar-me. Percebo que o<br />

vinho já não está lhe fazendo bem e não me interessa, muito<br />

menos, suas opiniões a respeito do que sinto por Sindazel.<br />

216


Grassac riu-se, e ao ver Etiènne afastar-se cambaleante<br />

em direção à porta, gritou — Cuidado para não sonhar com os<br />

anjos e agarrá-los, pensando que é sua mariposa encantada. —<br />

e deu outra gargalhada.<br />

Furioso, Etiènne virou-se e atirou a taça que ainda<br />

carregava consigo em direção a Grassac, mas como estava<br />

bêbado, errou o alvo e a taça voou janela afora, fazendo com<br />

que Grassac continuasse rindo ainda mais.<br />

— Cuidado, acho que você está passando <strong>dos</strong> limites. —<br />

Alertou Peter, o mais sóbrio <strong>dos</strong> três.<br />

— Que nada! Amo Etiènne e jamais desejaria algo de<br />

ruim para ele. Apenas me incomoda ver sua obsessão por essa<br />

criatura fantasiosa. Duvido que possa ser tão bela assim como<br />

ele diz. Mulheres são todas iguais, são como as frutas de um<br />

pomar. Umas são mais bonitas e apetitosas, mas isso não<br />

passa de aparência; no final, o gosto é o mesmo, e a indigestão,<br />

também!<br />

— Que comparação mais besta! As mulheres são os mais<br />

preciosos tesouros que os homens buscam! Cada uma com sua<br />

riqueza, com seus mistérios e seus encantos distintos.<br />

Nenhuma mulher é igual à outra, e por isso mesmo, a escolha<br />

de uma companheira que esteja sempre ao nosso lado é uma<br />

questão muito difícil. Etiènne já fez sua escolha e tenho certeza<br />

de que conseguirá realizar seu sonho.<br />

— Você e Etiènne parecem dois adolescentes! Não<br />

sabem nada de mulheres! Essas criaturas podem satisfazer os<br />

homens tanto quanto podem arruiná-los. Escute-me bem, pois<br />

é a história quem nos ensina, grandes homens foram<br />

manipula<strong>dos</strong> e arruina<strong>dos</strong> por mulheres, que ocultas pelas<br />

sombras da noite e com a maior desfaçatez, lhes sussurravam<br />

diretrizes incertas no leito do prazer. Creia-me, mesmo com<br />

asas de anjo, todas as mulheres na verdade são demônios!<br />

— Grassac, não sei se você está falando como templário<br />

ou se está bêbado. Mas quero evitar polêmicas, por isso, farei<br />

como Etiènne e irei repousar um pouco antes que amanheça.<br />

217


Aconselho-o a fazer o mesmo, pois você está com o aspecto<br />

horrível.<br />

Os dois mal se despediram, pois Grassac desabou antes<br />

mesmo de Peter concluir sua recomendação. O jovem inglês<br />

sacudiu a cabeça e deixou o amigo estirado entre os da<strong>dos</strong> e os<br />

restos de comida espalha<strong>dos</strong> pelo chão, como se por ali<br />

houvesse passado um vendaval derrubando tudo.<br />

218


N<br />

CAPÍTULO XVI<br />

Mensagem de Guttin<br />

os tempos de paz, normalmente os anões do reino de<br />

Bakkin celebravam uma festa sazonal, conhecida por<br />

Ukar Nogai. A despeito <strong>dos</strong> reinos élficos e até mesmo o reino<br />

de Guttin, onde seu primo Guthin era rei, estarem preparando<br />

seus exércitos para uma iminente guerra contra os orcs,<br />

Bakhin decidiu que não deixaria de promover a festa desta<br />

estação, pois ele tinha um motivo muito especial para realizála<br />

e ansiava para que chegasse logo a ocasião de comemorá-la.<br />

Durante a festa que marcava a passagem de sua 3588ª<br />

Ukar Nogai, os anões de Bakkin estavam empolgadíssimos,<br />

porque pela primeira vez em sua história, o homenageado não<br />

seria um anão, mas sim, um ser de outra raça, o francês<br />

Etiènne.<br />

No ano anterior, Bakhin teria homenageado de bom<br />

grado seu amigo Etiènne, mas na Ukar Nogai anterior, um<br />

homenageado já havia sido eleito pela nobreza de Bakkin, e<br />

não se podia mudar os planos ao preço de constranger alguém<br />

de sua própria raça, por mais relevante que fosse a<br />

justificativa. Bakhin aguardou pacientemente por essa festa<br />

para homenagear com muito júbilo aquele a quem devia sua<br />

vida.<br />

Mas nem sempre um rei pode ver realizado os seus<br />

desejos em detrimento da segurança de seu povo, e as


circunstâncias obrigariam a Bakhin, muito a contragosto, a<br />

adiar a homenagem que pretendia fazer à Etiènne.<br />

Arautos do reino de Guttin, chegaram a Bakkin numa<br />

tarde que marcava o início da estação em que se comemora a<br />

Ukar Nogai. O dia estava bonito, com uma brisa fresca e o céu<br />

de Azur intensamente luminoso. Da orla da Floresta Dourada<br />

avistaram a entrada principal da Montanha das Garbas, e<br />

podiam escutar com alegria, o cantarolar <strong>dos</strong> pássaros.<br />

Em pouco mais de duas horas, estariam diante de<br />

Bakhin, para proferir uma importante mensagem de seu<br />

primo Guthin. Ao contrário do costume élfico, e pode se dizer<br />

até mesmo <strong>dos</strong> homens, os arautos <strong>dos</strong> reinos <strong>dos</strong> anões não<br />

carregavam mensagens escritas, mas proferiam, palavra por<br />

palavra, suas mensagens ao destinatário.<br />

A confiança que os anões tinham entre si, e o<br />

compromisso que tinham com a verdade entre os seus,<br />

dispensavam a necessidade de mensagens cifradas ou escritas,<br />

garantindo a segurança das importantes informações que os<br />

três reinos anões trocavam entre si.<br />

Os arautos anões, eram os mais valorosos entre seu<br />

povo, pois eram capazes de suportar torturas terríveis quando<br />

caíam nas mãos de orcs, druzos, vutuks ou goblins, para não<br />

revelar as informações que traziam em suas mentes. No<br />

passado, muitos já pagaram com a vida o preço do silêncio.<br />

Os anões de Guttin passaram pelas colunas de rocha da<br />

entrada principal do reino sob a Montanha das Garbas,<br />

deixando para trás a beleza de <strong>Virgo</strong> e mergulhando na<br />

escuridão da caverna que levava a Bakkin. Atravessaram um<br />

longo corredor que daria num emaranhado de passagens,<br />

onde somente com a ajuda de um <strong>dos</strong> sentinelas de Bakkin<br />

poderia ser desvendado o caminho correto até a cidade.<br />

Em seu trono, Bakhin aguardava com grande ansiedade<br />

a chegada <strong>dos</strong> arautos de Guttin, <strong>dos</strong> quais já havia sido<br />

alertado por seus espiões mesmo antes que chegassem ao lado<br />

leste das Montanhas Negras.<br />

220


O pequeno grupo de anões se apresentou diante de<br />

Bakhin, que dispensou as formalidades e pediu de forma rude<br />

para que fossem breves com a mensagem, pois estava muito<br />

ocupado com os preparativos da Ukar Nogai.<br />

— Tememos que vossa majestade não possa realizar as<br />

festividades desta estação — asseverou um <strong>dos</strong> arautos.<br />

— Eu sou o rei, e em meu reino, decido o que deve e o<br />

que não deve acontecer — retrucou Bakhin, imediatamente.<br />

— Então, nosso temor é ainda maior, pois é bem capaz<br />

de que venha a reinar sobre mortos, se não der atenção às<br />

súplicas de vosso primo Guthin, que com muito pesar, enviará<br />

seu exército para combater ao lado <strong>dos</strong> elfos.<br />

— Meu primo é muito sentimental, e se deixa envolver<br />

demais por essas criaturas traiçoeiras que são os elfos! —<br />

reclamou Bakhin, mostrando-se extremamente irritado. Alisou<br />

a barba encarando os arautos de Guttin, e depois continuou<br />

com firmeza, apontando-lhes um dedo acusador: — Vocês, de<br />

Guttin, e aqueles elfos doentios, estão sendo precipita<strong>dos</strong>,<br />

usando argumentos pouco iliba<strong>dos</strong> para promover uma<br />

guerra aberta contra os orcs!<br />

— Então, rei de Bakkin, permita-nos proferir a<br />

mensagem do soberano rei de Guttin. Não insistiremos em<br />

nada mais. Partiremos em seguida!<br />

— Estou escutando! — afirmou Bakhin.<br />

O anão que discutia com o rei Bakhin então, deu um<br />

passo atrás, e com um gesto de sua mão indicou para que<br />

outro anão mais jovem, se adiantasse e proferisse a mensagem<br />

do rei Guthin.<br />

— Nobre rei de Bakkin, soberano da Montanha das<br />

Garbas, é com imensa tristeza que envio esta mensagem, para<br />

confirmar as suspeitas do povo elfo sobre a crescente ameaça<br />

de uma guerra contra os orcs. — Bakhin fitava o jovem arauto,<br />

escutando-o com pouca atenção; na verdade, ansiando que<br />

aquela ladainha terminasse com brevidade. O jovem, muito<br />

sério e sem tirar os olhos do rei, continuava com a mensagem:<br />

221


— Ao preço de muitas vidas, nossos espiões conseguiram<br />

descobrir que os orcs das tribos Trumadai e Baraidai fizeram<br />

uma aliança, com o intuito de unificar todas as demais tribos<br />

orcs, a exemplo do que os Zaraidai fizeram no passado,<br />

quando promoveram a Guerra da Agonia, trazendo o caos<br />

para to<strong>dos</strong> os povos de Azur. — o jovem arauto fez uma<br />

pequena pausa e observou que havia despertado a atenção de<br />

seu ouvinte, que se remexia em seu trono, mas não tirava os<br />

olhos de seu interlocutor. O jovem arauto, ainda muito sério,<br />

continuou — Descobrimos ainda que uma quantidade<br />

inimaginável de armas foi encomendada aos druzos de Sangar<br />

por esses orcs, que prometeram pagamento em ouro. Ouro<br />

este que pretendem extrair da Floresta Dourada, já que não<br />

possuem ainda uma força suficientemente grande para que<br />

possam roubá-lo <strong>dos</strong> ricos reinos <strong>dos</strong> anões ou <strong>dos</strong> elfos.<br />

— Espere! — Levantou-se Bakhin, de seu luxuoso trono,<br />

interrompendo a mensagem. — Os Zaraidai não unificaram as<br />

tribos no passado — lembrou o rei. — Eles impuseram-se à<br />

força, e o medo espalhado foi o fator decisivo para que as<br />

tribos orcs se submetessem a eles.<br />

O arauto mais i<strong>dos</strong>o, que discutiu com Bakhin no início<br />

do encontro, avançou novamente dois passos e concordou<br />

com o rei de Bakkin. — Sim, é verdade, é verdade! E<br />

justamente por isso, a gravidade da situação. orcs das duas<br />

maiores tribos aliando-se deliberadamente, por vontade<br />

própria, pelo desejo de um bem comum. O controle total de<br />

Azur — concluiu.<br />

Bakhin caminhava nervosamente de um lado para outro<br />

diante de seu trono, muito pensativo, enquanto o jovem<br />

arauto retomou o discurso a fim de concluir a mensagem do<br />

rei Guthin.<br />

— No momento em que transmito esta mensagem, o<br />

enorme exército de orcs formado pela aliança entre as<br />

principais tribos <strong>dos</strong> Adai e Aidai, provavelmente já tenha<br />

cruzado o Deserto Naissaras, e esteja nas cercanias do Pântano<br />

222


Hibrittatus. Portanto, mesmo que de posse destas verdadeiras<br />

informações vossa majestade opte por manter Bakkin alheio<br />

aos acontecimentos, imploro, como primo que te deseja o bem,<br />

que deixe de lado a fatuidade de se achar intocável, e ao<br />

menos organize uma força de defesa para proteger vosso<br />

povo. Mensagem de Guthin, rei soberano de Guttin.<br />

Bakhin olhou irritado para o jovem arauto, considerando<br />

aquelas palavras finais um tanto grosseiras.<br />

— A mensagem já foi recebida. Podem voltar para vosso<br />

rei e dizer-lhe que irei refletir sobre o assunto. — Exclamou<br />

Bakhin, estendendo seu curto braço para indicar aos<br />

visitantes, o caminho da saída.<br />

Os arautos de Guttin entreolharam-se sacudindo a<br />

cabeça em sinal de reprovação, e se retiraram da sala real<br />

cruzando o caminho apontado por Bakhin, onde já os<br />

aguardava um sentinela para conduzi-los à saída da cidade<br />

para fora da Montanha das Garbas. Saíram to<strong>dos</strong> consterna<strong>dos</strong><br />

da cidade de Bakkin.<br />

O rei ficou solitário em seu salão, pensativo, dominado<br />

repentinamente por uma estranha vontade de aconselhar-se<br />

com seu amigo Etiènne, que ainda não regressara de Nouvelle<br />

Lyon. Bakhin, pretendia preparar a festividade de forma a<br />

fazer uma surpresa à Etiènne, quando este regressasse para<br />

Bakkin, mas infelizmente, ele seria obrigado a mudar seus<br />

planos, e uma vez mais, adiar a homenagem a seu amigo.<br />

Bakhin podia ser turrão, intransigente, presunçoso e<br />

grosseiro, mas de maneira alguma, era estúpido. Entendeu a<br />

gravidade da situação apresentada por seu primo Guthin, e<br />

não poderia jamais, negligenciar a segurança de seu povo.<br />

<br />

Muito longe dali, na Floresta Serena, Michel Montbard<br />

espreitava com angústia a entrada da gruta que dava acesso à<br />

caverna que, outrora, dera passagem para <strong>Virgo</strong>. Faziam<br />

alguns dias que vinha vigiando a movimentação <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong><br />

223


de Amiens, que tentavam com notável insucesso desobstruir a<br />

enorme quantidade de pedras que havia desabado sobre a<br />

passagem, obstruindo o caminho.<br />

Michel ansiava pela desistência daqueles solda<strong>dos</strong> para<br />

que ele próprio pudesse aproximar-se da caverna e certificar<br />

com seus próprios olhos a catástrofe ocorrida naquele lugar.<br />

Os solda<strong>dos</strong> estavam incansáveis em seus esforços para<br />

tentar salvar seus amigos e o senhor de Amiens, mas a busca<br />

seria interrompida por ordens de um novo conde, chamado<br />

Jean-Louis Bergeon, que acabara de chegar de Paris, com<br />

ordens expressas do rei Philipe VI para que assumisse o<br />

controle da cidade de Amiens.<br />

E, desta vez, as ordens certamente seriam cumpridas,<br />

pois o sumiço do Duque Gilles de Guanion e a falta de notícias<br />

de Amiens obrigaram o rei Philipe VI a destacar uma força<br />

militar junto ao Conde Jean-Louis Bergeon para garantir que<br />

sua determinação fosse acatada por Martin Lacroix.<br />

Nem o rei da França nem o Conde Jean-Louis Bergeon<br />

poderiam imaginar que Amiens se encontrava numa situação<br />

tão calamitosa. Desprovida de seu senhor, entregue apenas às<br />

atividades da guarda do castelo, Jean-Louis Bergeon<br />

encontrou apenas um pequeno contingente do que um dia<br />

fora o temido exército regional de Amiens na Montanha<br />

Serena, e ordenou que regressassem ao castelo da cidade e se<br />

submetessem à sua autoridade.<br />

Atônitos, e cerca<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong> de Paris que<br />

acompanhavam o conde, os homens leais a Martin resignaram<br />

sem qualquer resistência, abandonando suas tentativas de<br />

salvar o antigo senhor e seus amigos.<br />

Michel, observou a tudo aliviado. Finalmente teria sua<br />

chance de tentar retornar para Nouvelle Lyon.<br />

Assim que aqueles homens abandonaram a Montanha<br />

Serena escolta<strong>dos</strong> pelos solda<strong>dos</strong> do conde Jean-Louis<br />

Bergeon, Michel apressou-se em entrar na gruta, para<br />

constatar, com grande desespero, que não podia mais voltar<br />

224


para <strong>Virgo</strong>. Não podia mais retornar à Nouvelle Lyon, a<br />

menos que conseguisse a ajuda de dezenas de homens para<br />

tentar remover todas aquelas rochas que estavam obstruindo a<br />

passagem para <strong>Virgo</strong>.<br />

O dia estava terminando e em breve a noite cobriria<br />

Amiens. Michel sentou-se desolado numa das pedras que<br />

haviam despencado, tentando encontrar uma solução para seu<br />

problema.<br />

Por um momento, imaginou se por ventura não estaria<br />

sendo castigado por Deus em ter deixado Dízier para trás,<br />

estando impedido de voltar a <strong>Virgo</strong>. Levou as duas mãos ao<br />

rosto, cobrindo a face, lembrando <strong>dos</strong> amigos que não poderia<br />

mais encontrar. Pensou em seu irmão. Como Etiènne receberia<br />

a informação de que nunca mais poderia revê-lo. Etiènne,<br />

responsável por conseguir realizar o sonho de partir de<br />

Amiens para uma nova região onde puderam construir suas<br />

novas vidas. Etiènne, o irmão irreverente que com suas<br />

loucuras e atitudes extrovertidas fora capaz de cativar tantas<br />

pessoas. Um forte desejo de rever o irmão mais novo explodiu<br />

dentro de Michel, que levantou furioso com seu destino,<br />

dando um grito de desabafo tão forte que ecoou por toda a<br />

caverna. Escutou sua voz se repetindo umas poucas vezes,<br />

diminuindo de intensidade a cada repetição.<br />

Lembrou-se mais uma vez de Etiènne, e de como eles<br />

foram parar naquele lugar. Michel lembrou-se de Sindazel!<br />

Numa atitude inexplicável, fugindo a seu<br />

comportamento, justamente ele que sempre fora incrédulo<br />

quanto à existência de Sindazel, Michel começou a gritar<br />

desvairadamente aquele estranho nome, com a esperança de<br />

que pudesse encontrar em Sindazel uma chance de voltar a<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

Ficou quase uma hora gritando o nome da Vangi, até<br />

que suas cordas vocais não puderam mais agüentar, e<br />

finalmente, se deixou cair no chão, esgotado pelo esforço.<br />

225


Ainda deitado no solo rochoso da gruta, Michel pôde<br />

ouvir, ofegante, os últimos ecos do nome Sindazel chegarem a<br />

seus ouvi<strong>dos</strong>.<br />

O suor lhe escorria pelas têmporas, misturando-se às<br />

lágrimas de angústia que começaram a brotar de seus olhos,<br />

anuviando sua vista.<br />

Mal podia entender o que acontecia, estava tonto de<br />

tanto se esforçar em gritar, e no princípio achou que aquelas<br />

luzes fossem fruto de alguma alucinação produzida por sua<br />

fadiga. Esfregou os olhos tentando secá-los com os de<strong>dos</strong><br />

indicadores das duas mãos, a fim de enxergar melhor, mas a<br />

luminosidade dentro da gruta tornara-se ainda mais intensa.<br />

Assim como seu irmão mais novo, Michel passou pela<br />

mesma experiência de Etiènne, e então pôde distinguir em<br />

meio aquele turbilhão luminoso a figura de um ser angelical<br />

aproximando-se, como que deslizando em sua direção.<br />

226


M<br />

CAPÍTULO XVII<br />

Uma viagem para o leste<br />

ichel ergueu seu braço para tocar em Sindazel, tentando<br />

certificar-se de que aquilo estava de fato acontecendo,<br />

mas a Vangi não reagiu bem a esta investida, retraindo-se um<br />

pouco e afastando-se dois passos para trás.<br />

— Vós me tirastes de um sono profundo. — falou<br />

Sindazel, com sua voz melodiosa e encantadora.<br />

Michel não conseguia acreditar naquilo, e sentiu uma<br />

profunda paz, ficando aliviado, ao ouvir aquela voz que mais<br />

parecia um suave canto. Levantou rapidamente do chão<br />

sacudindo a poeira de sua roupa com tapas por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>,<br />

ainda aturdido, abismado.<br />

Procurou desculpar-se, acreditando que devia ter sido<br />

inoportuno ao incomodar aquele ser fantástico. Não conseguia<br />

deixar de admirar a beleza da face de Sindazel. Seus olhos<br />

ilumina<strong>dos</strong> de um azul tão forte como o céu de inverno num<br />

dia ensolarado; a perfeição de sua boca, seu nariz arrebitado;<br />

aqueles cabelos lisos e negros como a mais pura seda da Índia.<br />

— Perdoe-me, por favor. Não imaginava que poderia ter<br />

perturbado seu descanso. Na verdade, fui tomado pelo<br />

desespero e acreditei que somente você poderia me ajudar,<br />

mesmo sem ainda ter aceito sua existência. — Michel estava<br />

visivelmente abalado com aquela experiência, e a exemplo de<br />

seu irmão, fascinado pela beleza daquela criatura.


Sindazel sorriu e ele pôde encantar-se ainda mais com os<br />

belos dentes da Vangi, de uma perfeição e brancura<br />

inimagináveis para um ser humano.<br />

— Não há necessidade em pedires meu perdão. Não se<br />

tratava de um descanso; na verdade, eu estava submetida a<br />

um castigo, mas a urgência de vossa causa me permitiu sair da<br />

punição.<br />

Michel não podia acreditar que uma criatura tão bela<br />

fosse merecedora de qualquer castigo, mas não quis apressarse<br />

em seus julgamentos e preferiu indagar Sindazel sobre o<br />

motivo que a levou a ser castigada.<br />

Antes mesmo que pudesse questioná-la, ela adiantou-se<br />

em responder sua pergunta, pois perscrutara sua mente de<br />

forma minuciosa.<br />

— Meu pai castigou-me com um sono profundo, por<br />

temer que eu deixasse a Vangilla, para ir atrás de seu irmão<br />

Etiènne, a quem conheci antes de to<strong>dos</strong> os Vangis.<br />

Michel, intimamente, arrependeu-se mais uma vez de<br />

não ter acreditado em seu nobre irmão.<br />

— Então, tudo o que meu irmão contou era verdadeiro.<br />

Sindazel aproximou-se de Michel, e o tempo todo<br />

perscrutando sua mente, sentia algo estranho, algo muito<br />

diferente do momento que tivera com Etiènne. Os<br />

pensamentos deste outro homem eram mais urgentes em<br />

relação à sua causa. Sua mente fervilhava com a idéia de rever<br />

seu irmão, seus amigos e sua cidade. Ela comprovou através<br />

de seus poderes que, apesar de toda fascinação que sentiu por<br />

ela, não chegou a desejá-la calorosamente como ocorrera com<br />

seu irmão mais novo. Isso a incomodou um pouco, pois<br />

esperava reviver as sensações que tivera diante de Etiènne.<br />

Michel sabia que Etiènne amava Sindazel, e agora podia<br />

confirmar com seus próprios olhos que a beleza daquela<br />

criatura era realmente de deixar qualquer coração<br />

perdidamente apaixonado.<br />

228


Sindazel colocou sua delicada mão no rosto do<br />

assustado Michel, para sentir o calor de sua pele. No fundo,<br />

ainda procurava absorver um pouco de Etiènne, mas até<br />

mesmo a pele dele passava algo novo para Sindazel,<br />

percebendo com sua mão a robustez que aquela pele<br />

apresentava em relação à de Etiènne, que era mais fina e<br />

macia.<br />

Com efeito, Michel era oito anos mais velho que o irmão,<br />

e sua barba cerrada, contrastando com a lisa pele do rosto de<br />

Etiènne, não poderia oferecer a mesma sensação à Vangi.<br />

O francês segurou delicadamente a mão de Sindazel,<br />

afastando-a de seu rosto, bem devagar. Ainda sustentou um<br />

pouco a macia mão daquela linda criatura, sentindo a energia<br />

que emanava dela, e então perguntou:<br />

— Você tem como me ajudar? Tem como abrir a<br />

passagem para que eu possa voltar a <strong>Virgo</strong>? — indagou<br />

esperançoso.<br />

— Não tenho poderes para reabrir esta passagem, mas<br />

levar-te-ei a seu povo. Meu pai sente que há uma forte<br />

mudança no mana 1 e prevê que algo importante acontecerá.<br />

Teu irmão precisará de ajuda, assim como um dia, tu<br />

precisastes da ajuda dele.<br />

— Quem é seu pai? Onde ele está agora?<br />

Sindazel ficou ressentida ao constatar que Michel era<br />

muito diferente de seu irmão, não tendo manifestado as<br />

sensações que ela tanto desejava reviver e limitando-se ao seu<br />

obsessivo desejo de regressar para <strong>Virgo</strong>, apenas<br />

questionando o que lhe era conveniente.<br />

— Meu pai é Granuzael, ministro soberano de toda a<br />

Vangilla. Ele já está nos aguardando. Está ansioso para<br />

conhecê-lo antes que possas retornar ao vosso povo.<br />

Michel percebeu que Sindazel havia ficado diferente,<br />

respondendo sua última pergunta com uma certa rispidez.<br />

1 Energia na qual toda e qualquer magia tem sua origem em <strong>Virgo</strong>.<br />

229


— Perdoe-me se fui inconveniente ao perguntar sobre<br />

seu pai, não desejava ofendê-la, apenas quero voltar a <strong>Virgo</strong>!<br />

Sindazel ficou corada de vergonha por sua atitude<br />

incomum, e também desculpou-se com Michel.<br />

— Perdoe-me, também não queria ter sido rude. Acho<br />

que o longo castigo não me fez tão bem quanto meu severo pai<br />

gostaria. Posso levá-lo agora mesmo até meu pai, se assim<br />

desejar?<br />

— Claro, por onde devemos ir?<br />

— Não te preocupes, apenas confie em mim.<br />

Sindazel passou suas mãos delicadamente sobre a<br />

cabeça de Michel, e num segundo, uma imensa escuridão o<br />

dominou por completo, fazendo-o desfalecer.<br />

Cerca de duas horas mais tarde, acordaria na câmara de<br />

Sindazel, deitado sobre o mesmo cristal que Etiènne havia<br />

estado, outrora, mas trajando suas próprias roupas. Sindazel<br />

desta vez não ousou saciar sua curiosidade sobre aquela raça,<br />

ademais, seu pai já estava aguardando que Michel despertasse<br />

para conhecê-lo e interrogá-lo sobre como estavam vivendo os<br />

humanos em sua nova morada.<br />

A conversa com Granuzael não foi muito demorada, e<br />

Michel, muito mais concentrado do que seu irmão, foi capaz<br />

de conversar com o rei <strong>dos</strong> Vangis com muita sobriedade a<br />

respeito de tudo o quanto os homens passaram nos dois anos<br />

em que já habitavam <strong>Virgo</strong>. Não podia responder por Leon,<br />

mas imaginava que deveria estar tudo bem com seu amigo de<br />

infância; do contrário, ele o teria procurado antes para pedirlhe<br />

ajuda. Se é que Michel ainda poderia considerá-lo um<br />

amigo.<br />

Granuzael, satisfeito em sua curiosidade, despediu-se de<br />

Michel e autorizou a própria Sindazel a conduzi-lo de volta a<br />

seu povo em Nouvelle Lyon.<br />

Tomada de felicidade por receber autorização de seu pai<br />

para ir até <strong>Virgo</strong>, Sindazel beijou-lhe a face afetuosamente e<br />

correu exultante de alegria para vestir seu traje de viagem, que<br />

230


na verdade não passava de uma espécie de túnica mais<br />

espessa da qual normalmente usava na Vangilla.<br />

Sem qualquer maldade, envolta pela alegria de poder<br />

voar para tão longe, trocou-se em sua câmara diante de<br />

Michel, que ficou boquiaberto com a beleza escultural do<br />

corpo de Sindazel, e finalmente cedeu à tentação, desejando-a<br />

ardentemente.<br />

A Vangi percebeu que estava sendo observada e ao ler a<br />

mente de Michel, envergonhou-se, cobrindo-se<br />

apressadamente com a túnica que acabara de despir, mas que<br />

ainda estava ao seu alcance. Ficou olhando assustada para<br />

Michel, com o coração acelerado, e ao mesmo tempo,<br />

regozijou-se por novamente viver as sensações que Etiènne<br />

despertara nela.<br />

Michel também corou ao notar que Sindazel havia se<br />

constrangido com sua indiscrição. Virou-se assustado, girando<br />

seu corpo com certa relutância e ficando de costas para<br />

Sindazel, que pôde terminar de trocar sua túnica.<br />

Sindazel aproximou-se dele e passou a mão<br />

carinhosamente sobre o seu ombro. Seu semblante<br />

demonstrava uma imensa alegria.<br />

— Vamos, está na hora de voltares para teu povo.<br />

Michel, virou o rosto e seus olhos encontraram os de<br />

Sindazel, azuis, brilhantes, radiantes como o sol. Deteve seu<br />

olhar por alguns segun<strong>dos</strong>, encantado com a beleza daquele<br />

rosto angelical. Teve vontade de beijá-la, e Sindazel soube<br />

disso, pois não deixava de perscrutar em momento algum a<br />

mente de Michel, mas ele não conseguiu esquecer seu irmão, e<br />

logo uma sensação de culpa invadiu seu coração, fazendo-o<br />

esmorecer e baixar a cabeça, apenas concordando com<br />

Sindazel — Sim, vamos.<br />

Michel levantou-se do cristal e postou-se diante de<br />

Sindazel. Não resistiu, e mais uma vez admirou-a de cima a<br />

baixo, voltando seu olhar para o rosto da vangi.<br />

231


Sindazel ergueu suas mãos a exemplo do ritual que<br />

fizera ao desacordar Michel, antes que ele fosse trazido para a<br />

Vangilla, mas Michel segurou com delicadeza os dois braços<br />

de Sindazel, dizendo: — Por favor, leve-me acordado.<br />

Ela baixou a cabeça, como numa atitude de reflexão, e<br />

após um breve momento, concordou com o francês.<br />

— Tudo bem, acompanhe-me.<br />

Os dois caminharam juntos para fora da câmara de<br />

Sindazel e seguiram por um longo corredor rochoso, rico em<br />

cristais que o cobriam por toda sua extensão, tornando-o um<br />

lugar esplendoroso.<br />

Michel não podia deixar de admirar cada detalhe<br />

daquele lugar fantástico, mas também não conseguia mais<br />

conter-se, e várias vezes lançou um olhar desejoso para o<br />

corpo esguio de Sindazel, que seguia à sua frente.<br />

Percorreram mais de cem metros ininterruptamente,<br />

passando diante de várias entradas para outros corredores, tão<br />

longos quanto aquele pelo qual caminhavam, de forma que<br />

Michel não conseguia ver onde terminavam.<br />

Ao chegarem a uma enorme porta de cristal, que<br />

apresentava o desenho de águia, toda talhada, de forma que a<br />

figura ficasse em alto relevo, Sindazel parou e pediu para que<br />

Michel a aguardasse do lado de fora. Michel, admirado com<br />

tudo o que via, assentiu com a cabeça, mas sem deixar de<br />

lançar um último olhar no belo corpo da jovem Vangi,<br />

impressionado com aquelas asas magníficas às suas costas.<br />

Sindazel demorou-se por alguns minutos que, para<br />

Michel, pareceram intermináveis, mas na verdade não se<br />

passaram nem mesmo quinze minutos do momento em que<br />

entrara através daquela magnífica porta e reapareceu,<br />

trazendo em suas mãos um misterioso bastão prateado.<br />

— Vamos, irei deixá-lo em nosso porto. Preciso preparar<br />

algumas coisas antes de partirmos.<br />

— Porto!? Partiremos em alguma embarcação?<br />

232


— Não se trata exatamente de uma embarcação, mas em<br />

breve saberás como chegaremos a vosso povo. — Sindazel<br />

sorriu, como que antevendo a surpresa de Michel no momento<br />

em que fossem partir. Seu sorriso era irradiante, com seus<br />

dentes brancos como a neve, brilhantes, reluzindo perfeitos,<br />

para deleite de Michel.<br />

Voltaram a caminhar por aquele interminável labirinto<br />

de corredores, ora passando por entradas que davam a outros<br />

corredores, ora passando por câmaras onde se podia ver<br />

vangis conversando, até chegarem a um local de declive onde<br />

começaram a descer uma escada toda formada por degraus<br />

cristalinos, que pareciam cintilar aos olhos de Michel a cada<br />

passo que ele dava. Ficou tão absorto com a beleza daqueles<br />

degraus que mal percebeu quando chegaram a um lugar<br />

amplo, onde estavam três enormes dragões brancos, que eram<br />

conheci<strong>dos</strong> na Vangilla Inferior 1 por Laithans.<br />

— Veja! Chegamos ao porto. — disse Sindazel.<br />

Ao erguer os olhos, Michel apavorou-se e deu dois<br />

passos para trás, com os braços abertos e as mãos procurando<br />

encontrar a parede para que pudesse se apoiar.<br />

— Meu Deus! — exclamou, surpreso e muito assustado.<br />

— Que monstros terríveis são esses?<br />

— Não tenhas medo, eles não vos farão qualquer mal.<br />

São velhos amigos de nossa raça.<br />

— Mas que criaturas medonhas!<br />

Os enormes lagartos esbranquiça<strong>dos</strong> fixaram seus olhos<br />

em Michel, tão admira<strong>dos</strong> quanto ele próprio, pois era a<br />

primeira vez que viam um ser humano. O menor deles, soltou<br />

um forte grunhido, atemorizando Michel.<br />

Visivelmente apavorado, correu de volta para as escadas<br />

e as subiu desesperadamente, como uma criança que foge<br />

assustada para os braços da mãe ao ouvir algum barulho<br />

estranho na escuridão da noite.<br />

1 Nome pelo qual os vangis se referem à superfície de <strong>Virgo</strong>. Para os vangis, Vanalla<br />

(<strong>Virgo</strong>) é subdividida em Vangilla Superior, onde habitam, e Vangilla Inferior.<br />

233


Sindazel riu-se mais uma vez e após repreender a<br />

traquinagem do mais jovem dragão, que se divertiu com o<br />

susto que havia dado em Michel, voltou atrás dele para<br />

tranqüilizá-lo. Subiu as escadas e encontrou-o recostado numa<br />

das paredes de cristal, mais ofegante que os cavalos de corrida<br />

de Paris após uma competição.<br />

— Não precisavas ter corrido tanto, os dragões não irão<br />

lhe fazer qualquer mal. Confie em mim.<br />

Ainda esbaforido, olhou para Sindazel sem acreditar<br />

muito naquelas palavras.<br />

— De jeito nenhum! Não voltarei àquele lugar! Jamais vi<br />

algo tão assustador em toda a minha vida! Que monstros<br />

infernais são aqueles?<br />

Sindazel, com toda calma, levou sua mão ao rosto de<br />

Michel, que sentiu-se reconfortado ao ter as mãos daquela<br />

delicada e formosa criatura em seu rosto. O conforto que<br />

sentia, entretanto, não era apenas fruto da suavidade da mão<br />

da vangi, mas também de uma de suas magias, e logo ele<br />

estava desacordado, dormindo como um bebê em sono<br />

profundo.<br />

A vangi finalmente pôde preparar-se para a viagem.<br />

<br />

Momentos mais tarde, Michel acordou com Sindazel à<br />

sua frente, ainda acariciando seu rosto, mas não estavam mais<br />

no cimo da escadaria de cristal que levava ao porto onde<br />

encontravam-se os dragões, mas novamente na câmara de sua<br />

anfitriã.<br />

— Sente-se melhor?<br />

Michel tentou erguer-se, suspirou, e deixou-se desabar<br />

novamente no cristal onde estava deitado, como que não<br />

acreditando que tudo aquilo que estava vivendo era, de fato,<br />

verdade, e não um sonho.<br />

— Não é possível me sentir mal com uma mulher tão<br />

linda como você por perto. — disse Michel, com um sorriso<br />

234


malicioso, procurando provocar algum desejo em Sindazel e<br />

ao mesmo tempo tentando recuperar-se da vergonha que<br />

passara diante <strong>dos</strong> monstros.<br />

— Vejo que estás melhor. Mas tenho de adverti-lo de<br />

que não sou uma mulher como as de vossa raça. Cometes o<br />

mesmo erro que vosso irmão, ao julgar-me desta forma.<br />

Sindazel mostrou-se contrariada com a atitude de<br />

Michel, mas no fundo, aquele desejo que ele sentia por ela, a<br />

exemplo de Etiènne, a fazia ter deliciosas sensações, que<br />

nunca sentira em sua longa existência. Levantou-se<br />

abruptamente, mas Michel segurou-a pelo braço, pedindo que<br />

esperasse.<br />

— Não vá embora ainda — Michel levantou-se e ficou<br />

de frente para Sindazel — Preciso lhe mostrar algo. — e sem<br />

que houvesse chance para a vangi entender o que se passava,<br />

ou mesmo tempo hábil para perscrutar a mente de Michel, ele<br />

a envolveu em seus braços beijando-lhe os lábios macios, com<br />

um desejo ardente.<br />

A rapidez de Michel acabou fazendo com que Sindazel<br />

vacilasse e cedesse, naquele momento, a uma sensação que lhe<br />

inundou o espírito de prazer. Mas, passado o êxtase inicial,<br />

recuperou seu autocontrole e afastou-se, assustada. O coração<br />

acelerado como nunca estivera antes, a respiração<br />

descompassada, como se aquele beijo de Michel houvesse lhe<br />

sugado todo o ar. Pela primeira vez sentiu um turbilhão de<br />

emoções dentro de si, olhando para aquele humano com<br />

desejo, mas ao mesmo tempo com medo de tudo o que estava<br />

experimentando.<br />

Os vangis não se beijavam, não tinham o costume de se<br />

acariciar através de toques, mas sim através de suas mentes.<br />

Apenas a reprodução ainda era realizada através da cópula,<br />

mas não com desejo, apenas como ato necessário para que<br />

novas vidas vangis viessem à luz do mundo. Devido às suas<br />

faculdades mágicas, e quem sabe, talvez ao mana que traziam<br />

em suas próprias asas, os desejos físicos tenham sido desde<br />

235


tempos remotos, minimiza<strong>dos</strong> e esqueci<strong>dos</strong>, ou ainda,<br />

substituí<strong>dos</strong> por outros prazeres através de suas poderosas<br />

mentes. Ademais, Sindazel era uma vangi muito nova para<br />

contatos íntimos, mesmo com os de sua raça. Granuzael temia<br />

isso, e já havia submetido sua filha a um longo sono com a<br />

esperança de que seu contato com Etiènne pudesse ser<br />

abafado e ela o esquecesse.<br />

Agora, Sindazel estava em uma situação complicada,<br />

porque dificilmente iria conseguir esconder de seu pai o que<br />

estava se passando dentro de si. <strong>Era</strong> preciso partir o quanto<br />

antes de Vangilla, para ganhar tempo e tentar recuperar sua<br />

tranqüilidade, sua serenidade, e porque não dizer, sua paz de<br />

espírito. Estava atordoada, aflita, ansiosa, sentindo um<br />

estranho calor tomando conta de seu corpo. Não conseguia<br />

tirar o beijo de sua cabeça e ainda sentia o abraço, as mãos<br />

quentes e o corpo forte de Michel. Não obstante, lembrava-se<br />

de Etiènne e perguntava-se por quê ele não teria a beijado,<br />

como fizera Michel. Teve o súbito desejo de beijar Etiènne,<br />

mas voltava a sentir Michel. Sua mente estava sendo<br />

bombardeada e sentia-se completamente vulnerável, perdera<br />

o controle, jamais seria a mesma.<br />

Pôs-se a preparar a partida o quanto antes, e ao final da<br />

tarde, tudo estava organizado. Voltou à sua câmara para<br />

buscar Michel, que havia ficado só todo o tempo depois que<br />

ela o deixara, depois daquele momento que ela não conseguia<br />

tirar de sua cabeça. Ele levantou-se espantado, e olhou para<br />

aquela criatura esplêndida com compaixão. Depois que ela o<br />

deixou, refletiu sobre sua atitude e se arrependeu, sobretudo,<br />

ao lembrar do irmão que sempre falava de Sindazel com o<br />

maior amor e saudade que já havia visto em alguém.<br />

Quando ia pedir-lhe desculpas sobre o acontecido, sem<br />

mesmo imaginar quanta transformação havia causado em<br />

Sindazel, ela o interrompeu, agitada.<br />

— Não fale nada! Não há tempo, precisamos partir<br />

agora, vamos rápido! — Sindazel estava muito aflita, e Michel,<br />

236


para não contrariá-la, ainda sentindo uma enorme culpa,<br />

limitou-se a obedecer a anfitriã.<br />

Como um gatuno que foge sorrateiramente do local<br />

onde furta, Sindazel chegou às escadas que levavam ao porto.<br />

Antes de descer, virou-se para Michel e advertiu-o<br />

severamente para que não fizesse qualquer barulho que<br />

pudesse chamar a atenção. Michel aquiesceu, mas logo<br />

lembrou-se <strong>dos</strong> dragões e hesitou.<br />

— Espere, e aqueles monstros horríveis? Não ouso<br />

descer aí novamente!<br />

— Precisa confiar, eles não vos farão nenhum mal. Os<br />

dragões são criaturas enormes e poderosas, mas estes, não são<br />

monstros, são amigos de meu povo. São os Laithans 1, que nos<br />

levam para longe quando precisamos, e em troca, cuidamos<br />

deles com todo respeito e carinho, porque são os últimos de<br />

sua espécie. Conosco, na Vangilla, eles possuem uma chance<br />

enorme de permanecer vivos e perpetuar sua espécie.<br />

— É difícil acreditar que aquelas criaturas bizarras sejam<br />

boas, como afirma. — insistiu Michel, ainda temeroso.<br />

— Se queres viajar acordado como havias me solicitado,<br />

é preciso que confies em mim. De outra forma, não poderemos<br />

partir a menos que eu o desacorde mais uma vez. — Agora a<br />

expressão de Sindazel tornara-se austera, pois estava ávida<br />

para sair logo da Vangilla Superior, temendo encontrar seu pai<br />

a qualquer momento.<br />

Michel ainda não estava convencido se realmente<br />

desejava descer aquelas escadas, mas começava a sentir-se<br />

incomodado em demonstrar tanto medo diante de Sindazel.<br />

Procurou encher-se de coragem, e concordou com ela.<br />

— Tudo bem, confio em você. Que Deus me salve!<br />

Os dois começaram a descer as escadas, Sindazel à<br />

frente, e antes que chegassem ao último degrau da descida,<br />

1 Nome atribuído à raça <strong>dos</strong> dragões brancos em toda Vanalla.<br />

237


Michel fez o sinal da cruz e mais uma vez rogou por proteção<br />

divina contra os dragões.<br />

Atravessaram de mãos dadas o enorme átrio do porto,<br />

até chegarem a um <strong>dos</strong> dragões, que já estava à espera de<br />

Sindazel, pronto para a partida.<br />

— Acreditava que não viesse mais — disse o dragão,<br />

para espanto de Michel, que mal pôde acreditar que aquele<br />

monstro era capaz de falar, e ainda por cima, seu idioma! O<br />

dragão voltou seus apavorantes olhos de serpente para<br />

Michel, vermelhos como o fogo, e percebeu seu espanto e<br />

temor.<br />

— Não temas, os amigos <strong>dos</strong> vangis são amigos <strong>dos</strong><br />

Laithans.<br />

Michel engoliu em seco e limitou-se a assentir com a<br />

cabeça, apertando a mão de Sindazel com mais força.<br />

— Laicrunallian, meu amigo, chegou a hora. — Sindazel<br />

desvencilhou-se da mão de Michel e correu para abraçar<br />

carinhosamente o pescoço de seu amigo dragão. — Será uma<br />

grande honra viajarmos juntos até Sombrorn. — disse a vangi.<br />

Michel permanecia petrificado, mudo, tal qual uma<br />

estátua de mármore, sem o menor desejo de mover-se. Assim<br />

que Sindazel largou o pescoço de Laicrunallian, o dragão<br />

ergueu-se, magnífico, majestoso. <strong>Era</strong> enorme, muito maior do<br />

que imaginara Michel, agora pálido como a lua cheia.<br />

O dragão abaixou-se novamente e deitou sua enorme<br />

asa direita para que Sindazel subisse até seu torso. A vangi<br />

agarrou Michel pela mão e praticamente o arrastou consigo,<br />

para que se posicionassem para a partida. A caminhada pela<br />

asa de Laicrunallian era breve, mas a Michel pareceu uma<br />

odisséia. Sentaram-se entre as duas asas do dragão, que correu<br />

desajeitadamente pelo porto em direção a uma das paredes de<br />

cristal, precipitando-se violentamente contra ela, com as<br />

enormes asas abertas. Michel acreditou que eles fossem se<br />

espatifar naquelas rochas de cristal e chegou a fechar os olhos<br />

tamanho era seu pavor no momento do impacto, acreditando<br />

238


por um instante que a criatura monstruosa enlouquecera, mas<br />

para sua surpresa, logo sentiu um forte vento em seu rosto, e<br />

ao abrir os olhos, encontrou-se, para seu assombro,<br />

sobrevoando <strong>Virgo</strong> com Sindazel, às costas do dragão branco.<br />

— Meu Deus! — exclamou. — Pensei que iríamos<br />

morrer, mas ainda não estou convencido de que isso não<br />

venha realmente a acontecer. — comentou com Sindazel,<br />

agarrado ao dragão como se fosse um carrapato.<br />

Sindazel ria-se como uma menina. O vento acariciando<br />

seu rosto angelical, suas plumas tremulando como se ela<br />

própria voasse e carregasse o dragão. Parecia sentir toda a<br />

natureza do planeta penetrar em seu espírito. Os primeiros<br />

minutos de vôo foram como um sonho para Sindazel, era a<br />

primeira vez que voava com um Laithan para Vanalla 1, mas<br />

para Michel, aquela experiência estava sendo um pesadelo.<br />

Somente com cerca de quinze minutos de vôo, Sindazel<br />

notou que Michel estava curvado e incrustado no torso do<br />

dragão tal qual um marisco fixo a uma rocha.<br />

— Por que não te levantas? Admire Vanalla, em toda a<br />

sua beleza e esplendor. Não perca essa oportunidade<br />

maravilhosa que Laicrunallian nos concede.<br />

Ainda curvado, suando a cântaros apesar do vento frio<br />

das alturas e com o coração batendo mais forte do que mil<br />

tambores de guerra, Michel resmungou algo que mal pôde ser<br />

escutado pela vangi, que por sua vez, não quis insistir e voltou<br />

a contemplar Vanalla, das alturas.<br />

Laicrunallian voou muito tempo até que Michel<br />

conseguisse dominar seu medo e pudesse acreditar que não<br />

iria cair. Já haviam cruzado toda a extensão da Grande<br />

Floresta quando ergueu-se e começou a olhar para baixo,<br />

ainda um pouco receoso. Sentiu-se tonto e achou que iria<br />

1 Nome atribuído pelos vangis ao lugar que os homens batizaram de<br />

<strong>Virgo</strong>. Algumas vezes, os vangis também referem-se a Vanalla como<br />

Vangilla Inferior.<br />

239


desmaiar quando Sindazel passou seus delica<strong>dos</strong> braços em<br />

torno do seu peito, recostando a cabeça em seus ombros.<br />

— Não é lindo? — perguntou.<br />

— É lindo, mas sinto-me enjoado.<br />

— Vou cuidar disso. — Com uma das mãos, a vangi<br />

esfregou seus de<strong>dos</strong> pela testa de Michel, friccionando-os em<br />

pequenos círculos, fazendo uma leve pressão ao final de cada<br />

três círculos completa<strong>dos</strong>. Repetiu esse gesto algumas vezes, e<br />

logo Michel passou a se sentir melhor, livre do enjôo.<br />

— Você opera milagres, estou me sentindo ótimo.<br />

— Veja, estamos sobre as águas! — exclamou a vangi.<br />

— Esse lugar é mesmo incrível, eu sequer imaginava que<br />

havia tanta água.<br />

— É um gigantesco lago que os elfos chamam de Mar<br />

Caudaloso. Em seu centro ficam as Ilha Kirbuz e Siamesas. A<br />

Ilha Kirbuz é habitada pelos mal<strong>dos</strong>os vutuks. Vocês nunca<br />

devem ir a essa ilha se quiserem viver. Mantenham-se sempre<br />

afasta<strong>dos</strong> desse lugar!<br />

— Elfos, vutuks, quem são esses to<strong>dos</strong>?<br />

— São outras raças de criaturas que habitam Vanalla, e<br />

existem muitas outras mais. Vocês irão conhecer todas,<br />

certamente.<br />

— Conhecemos os anões, que muito nos ajudaram na<br />

construção de Nouvelle Lyon. São criaturas austeras, mas ao<br />

mesmo tempo, muito divertidas a nossos olhos.<br />

— São criaturas vis e perigosas aos olhos <strong>dos</strong> Vangis!<br />

Aprendemos desde cedo sobre esses predadores de rochas,<br />

que a tudo procuram destruir para obter seus tesouros.<br />

— Vejo que temos opiniões divergentes a respeito <strong>dos</strong><br />

anões, talvez seja melhor mudarmos de assunto para que<br />

nossa viagem permaneça agradável. — Michel ressentiu-se<br />

por Sindazel falar mal <strong>dos</strong> anões, pois ele lhes era eternamente<br />

grato por toda ajuda que haviam fornecido nas construções de<br />

sua cidade em <strong>Virgo</strong>.<br />

240


— Não, de maneira alguma, não ficarei aborrecida por<br />

isso. Um dia descobrirás, que esse povo não é confiável.<br />

Não era o que ambos desejavam, mas o assunto sobre os<br />

anões acabou por amainar a conversa, de forma que somente<br />

voltaram a se falar quando sobrevoaram a região das<br />

Montanhas Pontiagudas, quase chegando à Floresta das<br />

Sombras. Já viajavam aproximadamente há quatro horas.<br />

— Não imaginei que a viagem seria tão longa. Será que o<br />

dragão não se cansa de voar? — Michel preocupou-se com o<br />

dragão, afinal, se ele caísse de cansaço, to<strong>dos</strong> morreriam<br />

juntos, pois a queda era enorme.<br />

— Já estamos chegando na Floresta das Sombras, logo<br />

estaremos em Sombrorn.<br />

— Sombrorn? Você já falou este nome antes, e não me<br />

preocupei em saber o que era. Não estamos indo para<br />

Nouvelle Lyon? Que lugar é esse para onde estamos indo?<br />

— Nós o deixaremos em vossa cidade, mas antes,<br />

preciso ir até Sombrorn, um reino élfico, levar um recado<br />

urgente de nosso povo para a rainha daquele reino. Terá a<br />

oportunidade de conhecer os elfos e o mais belo de to<strong>dos</strong> os<br />

seus reinos.<br />

— Elfos! — resmungou Michel.<br />

O vôo não chegou a durar mais meia hora, e<br />

Laicrunallian descia sobre Sombrorn, que podia ser vista com<br />

toda sua suntuosidade apenas do alto, uma vez que era<br />

totalmente cercada por uma densa floresta, intransponível<br />

para qualquer criatura que não fosse habitante daquele reino.<br />

Durante toda a viagem, nenhum <strong>dos</strong> dois tocara no<br />

assunto do beijo, e com a emoção de fazer seu primeiro vôo<br />

sobre Vanalla, os desejos de Sindazel arrefeceram, mas ambos<br />

voltariam a tocar neste assunto, e Sindazel, voltaria a sentir<br />

fortes emoções por Michel. Não obstante, despertaria dentro<br />

de si um incontrolável desejo de reencontrar Etiènne.<br />

241


T<br />

CAPÍTULO XVIII<br />

O Colóquio de Plarionthil<br />

ão logo o enorme dragão branco pousou, um grupo de<br />

guardiões de Sombrorn, fortemente arma<strong>dos</strong> se<br />

aproximou para cercá-los. Um <strong>dos</strong> elfos se adiantou e com um<br />

aceno de sua mão, os fez entender que os aguardava descerem<br />

do dragão para que lhe prestassem um esclarecimento.<br />

Michel, sem saber ao certo como proceder, limitou-se a<br />

aguardar os movimentos de Sindazel, que após tranqüilizar<br />

Laicrunallian, pediu ao dragão que estendesse sua bela asa<br />

para que pudessem ir ao encontro do elfo. Com movimentos<br />

suaves, Sindazel, acompanhada de Michel, desceu pela asa do<br />

dragão até chegar ao solo. Ambos pisavam pela primeira vez<br />

em suas vidas no reino de Sombrorn.<br />

— Qual a razão deste atrevimento!? Que motivo os leva<br />

a descer em nosso reino, sem prévio consentimento de nossa<br />

rainha? — indagou de forma arrogante, o elfo que<br />

aparentemente parecia liderar aquele pequeno contingente de<br />

solda<strong>dos</strong> que fazia a ronda naquele ponto do reino.<br />

— Na verdade, vossa rainha espera há um longo tempo<br />

pela mensagem que trago de Vangilla.<br />

— Não fui comunicado que receberíamos visitantes. Não<br />

estou certo de que sua informação seja verdadeira.<br />

— Neste caso, vós podeis nos conduzir até a presença de<br />

vossa rainha, e tudo será esclarecido.


— Então, acreditas mesmo que tomarei uma atitude tão<br />

insensata como a que estás me propondo? Mesmo que eu fosse<br />

tão imprudente, não poderia cometer tal erro, pois nossa<br />

rainha não se encontra em Sombrorn, está a milhas de<br />

distância daqui, participando do Colóquio de Plarionthil!<br />

— Neste caso, contarei com a hospitalidade de Sombrorn<br />

para aguardar o retorno de vossa rainha. Não me foi facultada<br />

a possibilidade de retornar para Vangilla sem conversar<br />

pessoalmente com vossa rainha.<br />

— Temo que seu desejo não possa ser realizado, pois a<br />

visita a nosso reino está fechada há séculos! Contudo, não<br />

tenho o poder de tomar as decisões a este respeito. Vos<br />

conduzirei ao nosso ministro, que decidirá vossa sorte.<br />

Quanto ao dragão, poderá servir-se de toda a floresta ao redor<br />

de Sombrorn, enquanto o ministro não se pronunciar.<br />

— Agradeço vossa atenção, tenho certeza de que tudo<br />

ficará perfeitamente bem após explicar minha tarefa a vosso<br />

ministro.<br />

Após uma breve conversa com Sindazel, o dragão<br />

levantou vôo e afastou-se de Sombrorn, com ordens de<br />

retornar ao final do entardecer para resgatá-los caso fossem<br />

proibi<strong>dos</strong> de permanecer naquele reino.<br />

Assim, Sindazel e Michel foram escolta<strong>dos</strong> até o palácio<br />

central do reino de Sombrorn, onde conheceram Ascathion, o<br />

ministro do reino e quem tinha poderes de decisão durante a<br />

ausência de Aurien, a rainha.<br />

Convencido de que estava tomando a decisão certa,<br />

Ascathion concedeu a Sindazel e Michel a oportunidade de<br />

ficarem hospeda<strong>dos</strong> em Sombrorn até que a rainha regressasse<br />

do Colóquio de Plarionthil, onde estava tomando ciência <strong>dos</strong><br />

últimos acontecimentos de <strong>Virgo</strong> e tinha a responsabilidade de<br />

defender os interesses do povo de Sombrorn.<br />

Sindazel agradeceu a atitude de Ascathion, aliviando-se<br />

por não ter que retornar a seu pai sem cumprir a missão que<br />

lhe fora confiada. Enquanto aguardaram pelo retorno de<br />

243


Aurien, puderam conhecer e apreciar as maravilhosas<br />

construções <strong>dos</strong> elfos de Sombrorn, deixando a ambos<br />

encanta<strong>dos</strong> com tanta beleza e esplendor.<br />

Enquanto a rainha não regressou de Plarionthil,<br />

passaram dias inteiros juntos, e tiveram a oportunidade de se<br />

conhecer ainda melhor, entregando-se aos desejos que<br />

dominavam a ambos. Ficaram enamora<strong>dos</strong> por várias<br />

semanas até o dia em que puderam se dirigir para Nouvelle<br />

Lyon, após Sindazel finalmente conhecer e conversar com a<br />

rainha Aurien.<br />

<br />

Em Plarionthil, momentos antes de se iniciarem os<br />

procedimentos de abertura para o Colóquio convocado por<br />

Galanderin, rei soberano da Thalide, ao qual to<strong>dos</strong> os demais<br />

reinos élficos prestavam contas, um grande alvoroço se<br />

apoderou do povo élfico ao tomarem ciência que Lasthion<br />

acabara de adentrar o reino. <strong>Era</strong> sabido e comentado entre<br />

to<strong>dos</strong> que Lasthion traria consigo representantes <strong>dos</strong> homens,<br />

Leon Troujard e Alain Dumas. A curiosidade e a ansiedade<br />

eram tamanhas que foi com grande dificuldade que a comitiva<br />

de Eluannar conseguiu atravessar pela multidão e chegar até o<br />

local onde os mais nobres elfos tomavam posição para o início<br />

do Colóquio.<br />

Admira<strong>dos</strong> com a semelhança <strong>dos</strong> homens entre eles<br />

próprios, ficaram surpresos que fossem, de fato, as criaturas a<br />

que a profecia de Glabor fazia alusão.<br />

Leon e Alain estavam fascina<strong>dos</strong> com toda aquela<br />

multidão de elfos que os cercava, bem como, com a riqueza<br />

daquele reino escondido no coração da Grande Floresta. Leon,<br />

que por sua vez tivera a oportunidade de conhecer o belíssimo<br />

reino de Eluannar, em duas ocasiões, mal podia acreditar que<br />

estava presenciando um reino muito superior em to<strong>dos</strong> os<br />

aspectos ao reino de seu amigo elfo Lasthion.<br />

244


Após muito esforço, conseguiu-se restabelecer a ordem,<br />

e to<strong>dos</strong> estavam devidamente posiciona<strong>dos</strong>, senta<strong>dos</strong> em<br />

suntuosas cadeiras que, lado a lado e em três fileiras uma atrás<br />

da outra, formavam uma enorme meia lua diante de uma<br />

comprida mesa onde sentavam-se os reis <strong>dos</strong> cinco reinos<br />

élficos da Thalide, ou de <strong>Virgo</strong>, se considerarmos o nome<br />

escolhido pelos homens para aquelas terras.<br />

No centro, tomava lugar Galanderin, o supremo<br />

soberano elfo. Imediatamente à sua esquerda, estava Aurien,<br />

rainha de Sombrorn, que tinha a seu lado o rei de Planúviel,<br />

Gildrion. Ao lado direito de Galanderin, estavam senta<strong>dos</strong><br />

Elledrin, rei de Flonthoriel, e Asdarthil, rei de Eluannar, a<br />

quem Leon já fora apresentado pouco tempo atrás.<br />

Em meio a um incessante murmúrio de vozes que<br />

insistiam em não se calar, Galanderin levantou-se de sua<br />

cadeira e, erguendo os braços, solicitou pacientemente que os<br />

últimos tagarelas pusessem termo às suas conversações.<br />

Assim que o silêncio tomou conta do gigantesco salão,<br />

Galanderin iniciou seu discurso.<br />

— Ilustres representantes de to<strong>dos</strong> os povos da Thalide!<br />

Agradeço a presença de meus nobres súditos para uma vez<br />

mais debatermos sobre assuntos prementes, que em hipótese<br />

alguma poderiam ser adia<strong>dos</strong>. Os dois assuntos, já do<br />

conhecimento de to<strong>dos</strong> aqui presentes, a profecia de Glabor, o<br />

velho dragão dourado, e o aumento da movimentação <strong>dos</strong><br />

orcs nos últimos meses, requerem uma atenção especial, uma<br />

vez que podem estar intrinsecamente liga<strong>dos</strong>! — Esta<br />

declaração causou vários comentários inquietando a to<strong>dos</strong>, e<br />

deixou Leon muito desconfortável. Não fosse Lasthion<br />

segurar-lhe o braço, forçando-o a ficar em seu lugar, teria se<br />

levantado para retrucar tal comentário malicioso. Após um<br />

breve momento, ao reinar novamente o silêncio, Galanderin<br />

continuou: — Há muito tempo desejei convocar os<br />

representantes de to<strong>dos</strong> os povos para debater sobre o dia em<br />

que os homens chegariam em nossas Terras, mas os<br />

245


compromissos assumi<strong>dos</strong> por Plarionthil não me permitiram<br />

realizar este desejo. Agora, apressado pelo depoimento de um<br />

de nossos irmãos distantes, fui obrigado a abster-me de muitas<br />

tarefas importantes para estar hoje diante de vós! —<br />

Galanderin fez uma pequena pausa para servir-se de um<br />

líquido que estava numa taça de cristal diante de si, sobre a<br />

mesa, a fim de refrescar a garganta antes de prosseguir.<br />

— Para que to<strong>dos</strong> vós tomem ciência da gravidade <strong>dos</strong><br />

problemas que assolam a Thalide, convido nosso irmão<br />

distante para que vos fale o que, outrora, me revelou. Por<br />

favor, Udour, aproxime-se e exponha suas inquietações.<br />

De uma das cadeiras da primeira fileira diante da mesa<br />

<strong>dos</strong> reis élficos, Udour levantou-se e caminhou até o centro do<br />

anfiteatro onde se desenrolava o colóquio. Ao verem Udour<br />

no centro das atenções, novamente ocorreu certa inquietação<br />

entre os elfos. Com efeito, Udour, era um representante <strong>dos</strong><br />

elfos negros, uma raça distinta de elfos que habitavam uma<br />

região ao sul da Floresta Dourada, a leste de <strong>Virgo</strong>. Famosos<br />

por não se envolverem em nenhuma questão que diz respeito<br />

à Thalide, era espantoso para to<strong>dos</strong> os elfos <strong>dos</strong> cinco reinos<br />

testemunharem sua presença diante deles.<br />

Um pouco desconcertado e sem saber ao certo como<br />

proceder, Udour ficou de frente para os nobres que estavam<br />

na tribuna, e de costas para os reis, cometendo assim uma falta<br />

grave. Antes mesmo que iniciasse seu pronunciamento, foi<br />

advertido por alguns elfos de Planúviel que estavam logo à<br />

sua frente para que ele se dirigisse aos reis.<br />

Refeito de sua gafe, e já posicionado de frente para os<br />

reis, Udour falou: — Nobres soberanos da Thalide, conforme<br />

havia relatado ao Supremo Soberano Galanderin, rei <strong>dos</strong> reis,<br />

nosso povo encontra-se temeroso com as atividades <strong>dos</strong> orcs,<br />

que infestaram de forma inquietante a Floresta Dourada. Meu<br />

irmão, Idour, que ao meu lado é um <strong>dos</strong> governantes de nosso<br />

povo, pessoalmente saiu há alguns meses atrás em busca de<br />

informações mais consistentes, acompanhado por vários de<br />

246


nossos guerreiros, mas infelizmente, até hoje não regressou<br />

desta diligência que assumiu. Tememos que o pior tenha<br />

acontecido, pois a atividade daqueles malditos orcs aumenta a<br />

cada dia, e nenhuma proteção é estendida à nossa região. Caso<br />

os orcs venham a descobrir nossa Cidade Oculta, não teremos<br />

condições de resistir a um longo cerco!<br />

Assim que Udour concluiu este pronunciamento,<br />

Galanderin levantou-se mais uma vez e demonstrou apoiar o<br />

elfo negro.<br />

— Udour! Suas preocupações são pertinentes, e a<br />

despeito da falha na segurança nas regiões ao leste da Thalide,<br />

da qual você dá testemunho diante desta nobre assembléia,<br />

iremos buscar a melhor forma de repará-la, enviando duas<br />

legiões para a Floresta Dourada, a fim de limpar aquela região<br />

da presença maléfica <strong>dos</strong> orcs!<br />

— Vossa Majestade não está querendo insinuar que a tal<br />

falha na segurança seja responsabilidade de Sombrorn, por<br />

certo!? — levantou-se Aurien, interrompendo o rei de<br />

Plarionthil, indignada com o comentário malicioso de<br />

Galanderin.<br />

— Vossa Majestade está exaltando-se<br />

desnecessariamente! Sequer suscitei nome de responsáveis,<br />

mas antes, entendo que é responsabilidade de to<strong>dos</strong> nós a<br />

segurança <strong>dos</strong> povos da Thalide. O que obviamente não quer<br />

dizer, que na região leste, o zelo de Sombrorn seria muito<br />

apreciado por toda a nação élfica!<br />

— Ora! Vossa Majestade duvida do zelo com que<br />

observamos a segurança em nossas terras e floresta? Se a<br />

Floresta Dourada está infestada de orcs, certamente são<br />

provenientes de tribos do oeste, pois dou garantias que<br />

nenhum Zaraidai atravessou a Floresta das Sombras em<br />

direção ao sul de Sombrorn.<br />

A discussão ficou calorosa entre Galanderin e Aurien,<br />

enquanto ao mesmo tempo os demais presentes se dividiam<br />

247


em opiniões a respeito da segurança por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong> da<br />

Thalide.<br />

— É muito fácil para Vossa Majestade, ocupando uma<br />

posição geográfica privilegiada em relação aos demais reinos<br />

do oeste, maldizer nossa diligência quanto à segurança da<br />

Thalide! E você, Udour! — Aurien olhou furiosa para o elfo<br />

negro. — Não está impedido de solicitar a ajuda de nossos<br />

reinos, mas a perfídia natural <strong>dos</strong> elfos negros não será<br />

tolerada por Sombrorn, portanto, cuidado com as palavras! A<br />

propósito, por qual razão vosso irmão Idour saiu tão<br />

displicentemente da Cidade Oculta para buscar informações<br />

sobre orcs? Gostaria muito de saber que ele abandonou<br />

aquelas idéias mirabolantes de fazer contato com orcs na<br />

tentativa de possíveis alianças com aquela raça amaldiçoada!<br />

Desconcertado com as palavras da rainha Aurien, Udour<br />

respondeu — Vossa Majestade pode ficar tranqüila, pois<br />

quanto a isto, posso afirmar que Idour já não mais tentava<br />

contato com os orcs desde o término da Guerra da Agonia.<br />

— Longe vai a época em que os elfos e to<strong>dos</strong> os seus coirmãos<br />

podiam acreditar apenas nas palavras. O sumiço de<br />

vosso irmão é muito coincidente com o aumento da atividade<br />

<strong>dos</strong> orcs, em minha opinião! — concluiu Aurien.<br />

— Ora! Agora é Vossa Majestade que trai a confiança<br />

que Udour está depositando em nós, acusando-o de pérfido e<br />

mentiroso! Então, Vossa Majestade acredita mesmo que Idour<br />

colocaria em risco seu irmão, sua cidade e seu povo? Não se<br />

esqueça de que é preciso calma neste momento, para que não<br />

sejam tomadas decisões equivocadas as quais não poderemos<br />

reparar! Vocês de Sombrorn sempre foram os maiores<br />

causadores de dissensão entre os elfos, mesmo depois da<br />

aliança <strong>dos</strong> cinco reinos! Pensei que com a morte de Limanoh<br />

poderíamos contar com tempos mais tranqüilos, mas vejo que<br />

Vossa Majestade segue fielmente os passos de vosso falecido<br />

pai!<br />

248


— Já não me interesso por questões passadas, e no que<br />

me diz respeito, seguirei a conduta que possa garantir a<br />

sobrevivência de meu reino, mesmo que seja nos moldes de<br />

meu pai!<br />

— Não vamos continuar neste assunto, é tempo de<br />

decidirmos sobre a segurança da Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos<br />

negros e da Floresta Dourada! Não se esqueçam de que<br />

Bakhin será o primeiro a se aproveitar daquelas terras caso<br />

venham a cair nas mãos <strong>dos</strong> orcs. Com a desculpa de que<br />

foram eles os salvadores da região, irão reivindicar para si a<br />

possessão daquelas terras, como já tentaram fazer em outra<br />

época!<br />

— Desta afirmativa, o nobre soberano queira me<br />

desculpar, mas sou totalmente contra! — Levantou-se,<br />

indignado, um robusto anão que tomava assento junto a<br />

outros de sua raça, na extremidade esquerda da segunda<br />

fileira de cadeiras que compunham a assembléia. Este anão,<br />

era Guthin, rei de Guttin, um reino a norte de <strong>Virgo</strong>, próximo<br />

às regiões vulcânicas, e como primo de Bakhin, intercedera em<br />

seu favor. — Meu primo não é tolo a ponto de permitir que<br />

orcs permaneçam impunemente perambulando próximos a<br />

seu reino, mas isso não quer dizer que tomaria para si as terras<br />

pertencentes aos elfos negros!<br />

— Nobre anão! Gostaria de acreditar em vossa<br />

afirmativa, contudo, não podemos nos esquecer de que no<br />

passado, vosso primo já tentou, sem sucesso, apoderar-se da<br />

Floresta Dourada. Enviamos o convite para que ele<br />

comparecesse a este importante colóquio, mas como pode<br />

comprovar, ele preferiu abster-se das responsabilidades que<br />

nos une a to<strong>dos</strong> para o bem <strong>dos</strong> povos da Thalide! Esta recusa<br />

em comparecer ao colóquio, além de uma deselegante afronta,<br />

nos leva a crer que os pensamentos de Bakhin não são tão<br />

claros a respeito do futuro da Floresta Dourada — retrucou<br />

Galanderin, fazendo com que Guthin se sentasse novamente,<br />

sem argumentos para prosseguir em defesa de seu primo.<br />

249


Depois desta vergonhosa interpelação por parte do rei de<br />

Plarionthil, resolveu abster-se de qualquer comentário e ficou<br />

apenas ouvindo o desenrolar do colóquio, sem mais<br />

interferências.<br />

Restabelecida a ordem, mais uma vez, Galanderin<br />

voltou a dirigir-se a to<strong>dos</strong>, detalhando o que já havia<br />

planejado junto a seus conselheiros. Na opinião do rei de<br />

Plarionthil, era natural que os orcs estivessem mais agita<strong>dos</strong><br />

ultimamente, pois havia muito tempo que não se<br />

manifestavam, e já era ocasião de que houvessem reposto suas<br />

populações, outrora dizimadas. Mas tranqüilizando a to<strong>dos</strong>,<br />

garantiu que esta agitação e atividades não passavam de<br />

distúrbios isola<strong>dos</strong> que seriam facilmente desbarata<strong>dos</strong> por<br />

uma ou duas legiões élficas.<br />

À tal declaração, a rainha Aurien de Sombrorn foi<br />

veementemente contra, alegando que a negligência <strong>dos</strong> elfos<br />

para com a segurança na Thalide os havia tornado cegos para<br />

um problema infinitamente maior ao que se suspeitava.<br />

Todavia, vencida pela maioria da assembléia — na verdade,<br />

fora a única a defender a idéia de que o movimento <strong>dos</strong> orcs<br />

era de uma gravidade sem precedentes — foi obrigada a<br />

silenciar-se, poupando-se de ser considerada demasiadamente<br />

intransigente.<br />

<br />

O colóquio desenrolou-se durante todo o dia e até bem<br />

tarde da noite. Com alguma dificuldade, os temas em questão<br />

foram considera<strong>dos</strong> e exaustivamente discuti<strong>dos</strong> pelos<br />

representantes de quase to<strong>dos</strong> os reinos e povoa<strong>dos</strong> que ali se<br />

encontravam.<br />

Após muitas desavenças e calorosas discussões, acerca<br />

de assuntos que envolviam os reinos élficos, mas que não<br />

fazem parte desta história, conseguiu-se focalizar, finalmente,<br />

os assuntos que deveriam ser aborda<strong>dos</strong> durante o colóquio.<br />

250


Quanto à profecia de Glabor, que fazia alusão aos<br />

homens dizendo que estes chegariam à Thalide para por<br />

termo às civilizações élficas, receando que pudesse tornar-se<br />

realidade, Galanderin obrigou a Leon, que este jurasse<br />

fidelidade de sua cidade para com os elfos, submetendo-se às<br />

suas leis, tornando-se assim, um novo súdito de Plarionthil e<br />

<strong>dos</strong> cinco reinos élficos. No início, ficou um tanto relutante,<br />

mas observando que não era o momento adequado para<br />

contrariar o soberano de Plarionthil, e incentivado por<br />

Lasthion, a quem devia imensamente pela ajuda prestada<br />

durante a construção de Nouvelle Amiens, dissimulou seu<br />

descontentamento e acatou a proposta de Galanderin.<br />

A respeito da intensa atividade <strong>dos</strong> orcs e a solicitação<br />

de apoio de Udour, o elfo negro, ficou determinado que duas<br />

legiões de Eluannar seriam deslocadas para a Floresta<br />

Dourada para erradicar daquela região to<strong>dos</strong> os orcs que<br />

fossem encontra<strong>dos</strong>. Um exército de Guttin seria deslocado<br />

para o sul da Planície de Bronze e apoiaria esta operação,<br />

impedindo que possíveis reforços das hostes malignas <strong>dos</strong><br />

orcs pudessem atravessar o deserto Naissaras em socorro <strong>dos</strong><br />

que estivessem no conflito da Floresta Dourada.<br />

<br />

Ao retornar para Sombrorn, Aurien fora informada por<br />

Ascathion, seu ministro, de que era aguardada por uma vangi<br />

que chegara há alguns dias em companhia de um humano.<br />

A rainha recebeu Sindazel e Michel Montbard em sua<br />

sala de audiências, e após receber as informações que<br />

Granuzael havia lhe enviado através de sua filha, concedeu a<br />

ambos a hospitalidade de seu reino, permitindo que ficassem<br />

pelo tempo que lhes aprouvesse.<br />

251


N<br />

CAPÍTULO XIX<br />

Mar de acampamentos<br />

o cimo das Montanhas Negras, no mais alto ponto de<br />

passagem por terra entre os la<strong>dos</strong> leste e oeste de <strong>Virgo</strong>,<br />

reuniam-se milhares de goblins, praticamente cobrindo toda a<br />

extensão plana ao longo das montanhas. Não paravam de<br />

chegar novos grupos de goblins a cada hora. O ar estava<br />

impregnado devido ao mau cheiro proveniente <strong>dos</strong><br />

excrementos daquelas criaturas, que preparavam-se para<br />

invadir a Floresta Dourada, mas ainda aguardavam a chegada<br />

<strong>dos</strong> orcs Trumadai. Convenci<strong>dos</strong> pelos orcs de que receberiam<br />

metade <strong>dos</strong> despojos da guerra e de que ao termo <strong>dos</strong><br />

combates eles herdariam e poderiam viver em paz na região<br />

das Montanhas Pontiagudas, os goblins não hesitaram em<br />

aderir à nefasta aliança com os Trumadai.<br />

Na verdade, os goblins não tinham muita alternativa,<br />

pois sempre foram persegui<strong>dos</strong> pelos orcs, que os pilhavam e<br />

escravizavam em todas as oportunidades que encontravam. O<br />

pavor que os goblins possuem pelos orcs já seria o suficiente<br />

para que se submetessem, mas como desta feita havia uma<br />

promessa, um pacto, ainda que não pudesse ser totalmente<br />

confiável, os goblins se reuniram aos milhares para ajudar os<br />

temi<strong>dos</strong> orcs.<br />

Os Trumadai por sua vez, bem como seus alia<strong>dos</strong>, os<br />

Baraidai, já haviam atravessado o Pântano Hibrittatus, e<br />

bastariam apenas mais dois dias para que chegassem ao ponto


de subida das Montanhas Negras. Como uma enorme praga<br />

negra, pronta para devastar tudo o que encontrasse pela<br />

frente, a massa de orcs se aproximava para desencadear uma<br />

das maiores batalhas na história de <strong>Virgo</strong>, após a época da<br />

Guerra da Agonia. Empunhando suas espadas curvas, tão<br />

parecidas com as cimitarras mouras, trazendo seus escu<strong>dos</strong><br />

em forma oval, a infantaria seguia flanqueando centenas de<br />

seus arqueiros, emitindo seus grunhi<strong>dos</strong> roucos e pavorosos,<br />

sedentos de sangue e prontos a promover uma carnificina.<br />

Pela quantidade de orcs Trumadai e Baraidai que<br />

caminhavam rumo à Floresta Dourada e o ajuntamento de<br />

goblins no cimo das Montanhas Negras, o Colóquio de<br />

Plarionthil havia cometido um enorme equívoco em seu<br />

julgamento. O perigo que os elfos negros estavam correndo<br />

era muito maior do que se previra.<br />

<br />

Mais uma madrugada estava findando em Nouvelle<br />

Lyon. A luminosidade do céu de <strong>Virgo</strong> começava a incendiarse<br />

em tonalidades de rosa bem escuro, pouco a pouco,<br />

clareando para o habitual rosa que iluminava a tudo com<br />

tremenda intensidade, formando o dia.<br />

A enorme sede administrativa de Nouvelle Lyon, que na<br />

verdade também servia como morada para Michel e seus<br />

amigos, localizava-se num <strong>dos</strong> pontos mais altos da cidade.<br />

Com quatro andares e dividido por diversos cômo<strong>dos</strong> entre<br />

suas escadarias, o prédio abrigava aposentos, salas de reunião,<br />

repartições administrativas e, na cobertura, possuía três<br />

pequenas sacadas em forma de meia lua, de onde se podia<br />

observar praticamente to<strong>dos</strong> os pontos de Nouvelle Lyon.<br />

Etiènne, levantou-se cedo naquela manhã. Estava mais<br />

frio que de costume, fazendo-o lembrar-se <strong>dos</strong> dias de inverno<br />

em Amiens. Caminhou até a sacada do prédio em que se<br />

encontrava e levou um susto ao perceber que diante <strong>dos</strong><br />

portões da cidade havia um verdadeiro mar de tendas<br />

253


espalhadas por toda a parte, até onde sua vista podia alcançar.<br />

Ficou estarrecido com aquela visão e correu alarmado para<br />

avisar a seus companheiros. Entrou pelo aposento de Grassac<br />

gritando por seu nome como se fosse um furacão,<br />

sobressaltando o amigo.<br />

— O que é isso!? O que está acontecendo? — indagou<br />

Grassac, assustado.<br />

— Levante-se rápido, vamos chamar Peter. Há um<br />

enorme exército às nossas portas. Temo que seja Martin<br />

Lacroix e sua guarda.<br />

— Você está louco, Etiènne. Bebeu muito vinho na noite<br />

passada e seu delírio deve ser fruto de algum pesadelo. Ainda<br />

é muito cedo, deixe-me dormir. — Grassac, depois do susto,<br />

deixou-se dominar pela sonolência e desabou novamente em<br />

seu leito, cobrindo-se até a cabeça.<br />

Etiènne, inconformado com a incredulidade do amigo,<br />

deu-lhe as costas e já deixava o quarto quando o som de<br />

trombetas cortaram o ar e irromperam pela janela do cômodo,<br />

como se prenunciassem muitos problemas. Certamente não<br />

estava enganado a esse respeito e deteve-se, virando-se<br />

novamente para o amigo.<br />

— Escute, Grassac, escute os sons de meu pesadelo.<br />

Acredita agora no que eu lhe disse? — Etiènne estava<br />

impaciente. — Levante dessa cama e vamos ver o que pode ser<br />

feito, e rápido!<br />

Nesse ínterim, ouviram as badaladas do sino da<br />

pequena Igreja que Michel havia construído em Nouvelle<br />

Lyon, para sua comunidade. Agora Grassac não tinha mais<br />

dúvidas de que algo diferente realmente acontecia lá fora, pois<br />

o sino somente soava antes do anoitecer, para chamar os fiéis a<br />

participar da missa. Grassac levantou-se e tratou de vestir-se<br />

apressadamente. Os dois desceram e caminharam até a<br />

pequena casa de Peter, que ficava a pouco mais de duas<br />

quadras do prédio de Michel, onde seu irmão e Grassac<br />

estavam.<br />

254


Ao chegarem, Peter já estava pronto, pois também<br />

ouvira o sino e percebera que algo estranho havia acontecido.<br />

— Estava me preparando para ir até vocês. Também<br />

ouviram o sino? O que estará acontecendo?<br />

— Ainda não sabemos ao certo, — respondeu Etiènne —<br />

mas há um enorme exército às portas da cidade. Vi com meus<br />

próprios olhos, são centenas e centenas de tendas brancas.<br />

Temo que seja Martin Lacroix; contudo, onde esse miserável<br />

teria conseguido tantos homens?<br />

— Bom, não conheço este homem de que tanto falaram e<br />

ainda temem, mas certamente ele nada mais é do que um<br />

homem.<br />

— É um homem perverso! — retrucou Etiènne.<br />

— Senhores, vamos deixar a conversa para outra hora.<br />

— reclamou Grassac. — Vejamos o que se passa. Peter, chame<br />

os arqueiros que treinou e os envie para as ameias da muralha<br />

frontal da cidade, eu e Etiènne iremos com mais alguns<br />

voluntários ao encontro <strong>dos</strong> visitantes.<br />

— Acha isso prudente? — Peter estava receoso.<br />

— Precisamos saber o que se passa. Essa gente chegou<br />

como se fossem fantasmas na calada da noite e ninguém<br />

notou! Nem mesmo os sentinelas que temos nos torreões<br />

notaram sua presença, e não creio que seja Martin com seus<br />

solda<strong>dos</strong>. Há algo diferente no ar. O que mais me intriga é<br />

como os sentinelas não se deram conta da presença dessa<br />

gente toda?<br />

— Espero que esteja certo, Grassac, porque senão, que<br />

Deus seja pie<strong>dos</strong>o e nos ofereça uma morte rápida.<br />

— Tenha fé, irmão, Deus está sempre conosco!<br />

Antes mesmo de deixarem a porta da casa de Peter,<br />

viram um pequeno destacamento de cavaleiros desconheci<strong>dos</strong><br />

subindo a rua em sua direção, acompanha<strong>dos</strong> por alguns<br />

homens que, sabiam ser da guarda da cidade.<br />

255


— Bom, — disse Grassac — parece-me que nossa<br />

conversa fora demasiadamente longa, para não dizer, nossa<br />

atitude!<br />

Os três ficaram se entreolhando por alguns momentos e<br />

depois voltaram a acompanhar atentamente o grupo de<br />

cavaleiros que se aproximava deles.<br />

<strong>Era</strong>m sete os cavaleiros que cavalgavam subindo a rua,<br />

sendo cinco, os elfos que normalmente formavam o grupo de<br />

seus arautos, e os outros dois, ninguém mais que Alain Dumas<br />

e Leon Troujard, juntos.<br />

A poucos metros de distância, os cavaleiros detiveramse<br />

e um <strong>dos</strong> homens de Nouvelle Lyon veio até Etiènne.<br />

— Senhor, Leon deseja ver vosso irmão Michel. Eu<br />

expliquei que vosso irmão não se encontra na cidade, mas ele<br />

insistiu que trata-se de um assunto muito urgente. Na<br />

ausência de vosso irmão, pediu para falar convosco.<br />

Etiènne, tornou a olhar para Grassac, como que pedindo<br />

um conselho, mas Grassac não esboçou qualquer reação,<br />

limitando-se a esperar a decisão de seu amigo.<br />

— Pois bem, ao menos querem conversar. Vejo que não<br />

estão tomando nenhum posicionamento hostil e isso muito me<br />

tranqüiliza. Que se aproximem.<br />

O jovem rapaz então acenou para os outros<br />

companheiros com gestos positivos, autorizando que os<br />

cavaleiros se aproximassem. Os visitantes apearam de onde<br />

estavam e fizeram o resto do percurso caminhando<br />

vagarosamente até chegarem a Etiènne e seus companheiros.<br />

— Salve, sau<strong>dos</strong>o amigo! — anunciou Leon, com um<br />

tom amigável.<br />

Etiènne franziu o cenho ao ver Alain ao lado de Leon,<br />

tentando entender como poderiam estar ali juntos.<br />

— Salve! — cumprimentou Etiènne. — Estou realmente<br />

muito surpreso. Que ventos os trazem tão longe e, o que faz<br />

este sujeito ao seu lado?<br />

256


A despeito do ódio demonstrado por Etiènne, Grassac<br />

cumprimentou seu velho amigo Alain, que retribuiu com um<br />

leve e sincero sorriso, vendo que seu amigo estava bem. Os<br />

elfos perceberam o pesado ar de hostilidade criado por<br />

Etiènne, e ficaram atrás, aguardando que Leon os introduzisse<br />

na conversa.<br />

— Não se preocupe, amigo. Alain é um homem honrado<br />

e agora me acompanha. Muitas coisas aconteceram nestes<br />

últimos dois anos que estivemos afasta<strong>dos</strong>.<br />

— Sim, muitas coisas aconteceram e é uma pena que não<br />

tenham acontecido estando to<strong>dos</strong> nós juntos. Mas vejo que fez<br />

novas amizades. — Etiènne inclinou o rosto suavemente,<br />

indicando os elfos atrás de Leon e Alain.<br />

— É verdade, nós fizemos muitas amizades em Nouvelle<br />

Amiens e aprendemos muitas coisas sobre <strong>Virgo</strong> com a ajuda<br />

de nossos novos amigos, os elfos de Eluannar.<br />

Etiènne os examinou com bastante atenção, pois as<br />

referências de Bakhin os colocava abaixo da escória de falsos e<br />

perversos marginais. Mas Etiènne os contemplou em sua<br />

beleza, altos, vigorosos, elegantes em suas armaduras<br />

metálicas esverdeadas e reluzentes. Os elfos percebendo a<br />

curiosidade de Etiènne, não aguardaram mais que Leon os<br />

introduzisse na conversa e aproveitaram a oportunidade para<br />

se apresentar. Lasthion aproximou-se em primeiro lugar.<br />

— Permita-me apresentar. Sou Lasthion, de Eluannar, às<br />

suas ordens. — Lasthion inclinou-se um pouco, fazendo uma<br />

reverência a Etiènne.<br />

— Seja bem vindo à Nouvelle Lyon, se vem em paz.<br />

Certamente Etiènne não esquecera do enorme exército<br />

estacionado às portas da cidade.<br />

— Estou conduzindo minha legião para além das<br />

Montanhas Negras, e viemos pedir vossa autorização para que<br />

possamos ficar dois dias acampa<strong>dos</strong> em vosso território.<br />

— Vejo que escolheram um belo nome para a cidade. —<br />

interrompeu Leon.<br />

257


— Sim, meu irmão quis homenagear Peter, pois sua mãe<br />

nascera em Lyon. Peter nos foi muito valioso na construção de<br />

nossa cidade.<br />

Peter ficou encabulado, limitando-se a sorrir<br />

envergonhado, quando to<strong>dos</strong> os olhares assestaram em sua<br />

direção.<br />

Etiènne não tirava os olhos de Lasthion, tentando<br />

imaginar o que poderia aquele exército de elfos desejar do<br />

outro lado das Montanhas Negras, na Floresta Dourada.<br />

— Poderia nos esclarecer o motivo de todo este exército<br />

rumando para o outro lado das Montanhas Negras?<br />

— Lamentamos — respondeu — que vossa cidade não<br />

tenha sido identificada e convidada para participar do<br />

Colóquio que ocorreu em Plarionthil, o maior de to<strong>dos</strong> os<br />

reinos élficos, sobre o que está acontecendo em <strong>Virgo</strong>, que é<br />

como chamam essas terras a qual conhecemos por Thalide.<br />

— E o que exatamente está acontecendo em <strong>Virgo</strong>? —<br />

perguntou Etiènne, muito curioso.<br />

— Os orcs preparam-se para devastar a Floresta<br />

Dourada, onde moram nossos mais distantes parentes, os elfos<br />

negros, e viemos prestar-lhes socorro, e impedir que tal<br />

devastação venha a acontecer.<br />

— Porventura, vocês não notaram uma maior<br />

movimentação de orcs nos últimos meses? — indagou Leon.<br />

— Sim, notamos, sim. Os orcs se proliferaram bastante<br />

por essas regiões nos últimos meses, mas em compensação, os<br />

goblins, outras criaturas malévolas, praticamente<br />

desapareceram de nossa região quando a atividade <strong>dos</strong> orcs<br />

aumentou.<br />

— Não é possível imaginar o que pode estar<br />

acontecendo, em toda sua amplitude, mas há muitos temores e<br />

fatos muito estranhos estão confundindo os reis élficos, bem<br />

como os reis anões. — comentou Lasthion.<br />

— E por falar em anões, — Etiènne interrompeu —<br />

acredito que o rei Bakhin possa resolver os problemas da<br />

258


Floresta Dourada, uma vez que seu reino é o mais próximo<br />

daquela região.<br />

Desta vez quem franziu a testa foi Lasthion, que muito<br />

contrariado, retrucou a afirmativa de Etiènne. — Não tenha<br />

tanta certeza disso! Bakhin mostrou-se contra nossa incursão<br />

nesta guerra durante o Colóquio de Plarionthil, no qual sequer<br />

compareceu. Não passa de um oportunista que tal como uma<br />

ave carniceira, irá aguardar que a Floresta Dourada seja<br />

dizimada, para só então cair sobre os orcs e limpar a região,<br />

com o intuito de encher aquela região de minas e escavações<br />

em busca de ouro. — Lasthion ficara visivelmente irritado.<br />

— Não acredito que Bakhin faça isso! Ele não permitirá<br />

que orcs vagueiem livremente por suas terras.<br />

— Não são suas terras, são terras <strong>dos</strong> elfos negros que,<br />

assim como to<strong>dos</strong> os elfos, amam a natureza e as florestas, e<br />

não as devastam em busca de ouro.<br />

O clima agora voltava a ficar pesado, e não mais entre os<br />

velhos amigos, mas entre Etiènne e Lasthion, até então,<br />

desconheci<strong>dos</strong>. Grassac, vendo que a conversa tomava um<br />

rumo sinistro, interveio, procurando acalmar os ânimos<br />

exalta<strong>dos</strong> de ambos.<br />

— Cavaleiros, cavaleiros, ainda é muito cedo, sugiro que<br />

possamos nos dirigir para o prédio de Michel onde poderemos<br />

comer algo e conversar com mais calma.<br />

— É verdade, — concordou Etiènne — perdoem-me se<br />

pareci rude ao não convidá-los antes. Podemos ir até nossa<br />

sede, de onde meu irmão controla o andamento das coisas em<br />

Nouvelle Lyon. Lá, teremos mais conforto e poderemos<br />

conversar melhor. — Etiènne, dispensou os demais homens<br />

que haviam acompanhado os visitantes, para que retornassem<br />

a seus postos, ordenando a um deles que cuidasse de seus<br />

cavalos. Depois, caminharam até a sede da cidade para<br />

discutir sobre os temas acerca da guerra que se aproximava.<br />

Durante o breve percurso de duas quadras no regresso<br />

ao prédio, Etiènne comentou com Grassac o quanto era<br />

259


estranho que eles a todo tempo fossem obriga<strong>dos</strong> a estar sob a<br />

sombra de guerras e combates.<br />

— Gostaria que Bakhin estivesse conosco agora, —<br />

comentou Etiènne — ao menos ele poderia defender sua<br />

posição diante desses elfos arrogantes.<br />

— Pense pelo lado positivo, — disse Grassac — você<br />

poderá voltar a Bakkin em segurança, caso resolva voltar para<br />

lá. Pode ir sob a proteção da legião desse elfo.<br />

— Sim, eu estava pensando nesta possibilidade. Não<br />

obstante, gostaria de reencontrar meu irmão antes de deixar<br />

Nouvelle Lyon. Se eu partir agora, não poderei retornar tão<br />

cedo, porque quando eu retornar a Bakkin, irei dedicar-me a<br />

encontrar Sindazel.<br />

— Etiènne! Você devia esquecer este assunto. Estamos<br />

vivendo há mais de dois anos neste lugar e ela sequer<br />

apareceu uma única vez. Sabe Deus o que possa ter acontecido<br />

com essa criatura.<br />

— Tenho certeza de que ela está bem. Não sei explicar,<br />

mas sinto que ela está bem e que deseja me ver novamente.<br />

— Bom, não vou insistir. Não adianta tentar convencer<br />

homens apaixona<strong>dos</strong>, tornam-se inflexíveis como a lâmina de<br />

uma espada, pronta a retalhar qualquer argumento que não<br />

seja favorável à sua paixão. — os dois sorriram e continuaram<br />

a caminhar, agora de braços nos ombros, um do outro.<br />

Durante as conversas que duraram quase três horas,<br />

Etiènne ficou a par <strong>dos</strong> assuntos que foram debati<strong>dos</strong> no<br />

Colóquio de Plarionthil. Lasthion contou detalhadamente<br />

sobre tudo o que fora discutido, bem como as conclusões e<br />

decisões que os reis haviam tomado durante o Colóquio.<br />

Ouvia fascinado sobre to<strong>dos</strong> aqueles reis, reinos, ameaças e<br />

temor. Descobrira em pouco tempo, que <strong>Virgo</strong> era um lugar<br />

muito mais rico do que imaginava. Soube também, <strong>dos</strong><br />

últimos acontecimentos ocorri<strong>dos</strong> em Nouvelle Amiens, da<br />

chegada de Martin Lacroix e seus solda<strong>dos</strong> e do<br />

desafortunado destino que tivera às portas de Nouvelle<br />

260


Amiens, quando os orcs os atacaram na madrugada da mesma<br />

noite que haviam chegado. Desesperou-se ao saber do<br />

desabamento da Grande Caverna, que fazia a única ligação<br />

conhecida entre Amiens e <strong>Virgo</strong>. Levou as mãos ao rosto e não<br />

conseguiu conter seu pavor, concluindo que nunca mais<br />

voltaria a ver seu irmão Michel. A única informação que Leon<br />

omitira fora sobre a paternidade de Martin Lacroix em relação<br />

a ele. Julgou que seria melhor manter essa informação em<br />

sigilo, uma vez que não tinha mais esperanças de reencontrar<br />

seu pai.<br />

A notícia do desabamento da Grande Caverna foi como<br />

uma punhalada em Etiènne, que exigiu ficar só durante o resto<br />

do dia e afastou-se do grupo, mas não sem antes oferecer a<br />

Lasthion que desfrutasse de tudo o que lhe fosse necessário e<br />

útil enquanto permanecesse em Nouvelle Lyon.<br />

— Sei que isso deve ter sido um violento golpe para<br />

Etiènne, mas ao menos não ficará mergulhado numa eterna<br />

expectativa de reencontrar Michel. — disse Leon à Grassac.<br />

— Você acha mesmo que não tem como Michel retornar<br />

para <strong>Virgo</strong>? A passagem foi totalmente interrompida?<br />

— Sim, infelizmente.<br />

— Pobre Etiènne, aos poucos está perdendo to<strong>dos</strong> os que<br />

ama. Ele sofreu muito com sua decisão de nos deixar, Leon.<br />

Considerou a perda de um grande amigo na ocasião. Para ele,<br />

fora como se um velho companheiro tivesse morrido.<br />

Leon olhou para Grassac, e estendeu seu braço,<br />

segurando seu ombro — Grassac, era preciso, acredite-me!<br />

Grassac fitou os olhos de Leon e percebeu que algo de<br />

grave havia acontecido naquela época. Desde que fugiram do<br />

castelo de Martin, percebera que Leon ficara muito estranho.<br />

Algo havia mudado profundamente dentro dele, mas não<br />

imaginava o que poderia ser; contudo, naquele instante,<br />

entendeu que algum importante segredo obrigara Leon a ter<br />

aquela atitude dois anos atrás, e retribuiu àquele olhar de<br />

261


quem pede compreensão com um pequeno suspiro e uma<br />

piscadela.<br />

— Tudo bem, fique tranqüilo.<br />

Na orla leste da Floresta Dourada, três contingentes<br />

inteiros de guerreiros anões do reino de Bakkin, acampavam,<br />

entusiasma<strong>dos</strong> com a possibilidade de combater novamente.<br />

Durante muitos anos não ocorriam guerras em Azur, de forma<br />

que estavam to<strong>dos</strong> enferruja<strong>dos</strong> e acreditavam que matar uma<br />

boa quantidade de orcs seria um delicioso exercício para que<br />

seus bravos guerreiros voltassem à velha forma, como na<br />

época em que foram destemi<strong>dos</strong> durante a Guerra da Agonia.<br />

Bakhin, na verdade, não pretendia participar <strong>dos</strong><br />

combates, mas limitaria suas tropas fora da Floresta Dourada<br />

apenas impedindo que os orcs fugissem para a Planície de<br />

Ouro, caso isso viesse a acontecer. Além disso, apenas<br />

guarneceria os caminhos que levavam a seu reino, para<br />

garantir a segurança de seu povo. Os contingentes de Bakkin<br />

sequer levaram seus carros pesa<strong>dos</strong> de combate, acreditando<br />

que a guerra não passava de pura imaginação <strong>dos</strong> elfos e de<br />

seu primo Guthin. Em sua opinião, os orcs jamais chegariam a<br />

atravessar as Montanhas Negras, e mesmo que o fizessem, não<br />

seriam numerosos o suficiente sequer para dar conta <strong>dos</strong> elfos<br />

negros, quanto mais ameaçar seu poderoso reino. Sem temer o<br />

perigo que se avizinhava, Bakhin comandava pessoalmente<br />

um de seus contingentes.<br />

Entre seus combatentes de elite, perfilavam os guerreiros<br />

de machado de duas achas, os mais devastadores anões em<br />

combate, que ceifavam impie<strong>dos</strong>amente tudo que aparecia em<br />

sua frente. Mal podiam esperar pela oportunidade de entrar<br />

em ação, levando o terror aos malévolos orcs com seus afia<strong>dos</strong><br />

macha<strong>dos</strong> de guerra.<br />

<br />

262


Em Nouvelle Lyon e em todas as grandes cidades e<br />

reinos de <strong>Virgo</strong>, o assunto era a guerra. Ela seria mesmo<br />

inevitável, e mostraria todas as suas faces, com dor, desespero,<br />

mutilações e mortes. Vidas que seriam perdidas para sempre<br />

em meio a rios de sangue, na irônica tentativa de, com tanta<br />

carnificina, tornar o mundo em que viviam num lugar um<br />

pouco mais seguro. A guerra! A única dúvida que pairava no<br />

ar era sobre as proporções que ela tomaria, bem como, os<br />

efeitos que ela teria sobre to<strong>dos</strong> os povos. Cada nação, cada<br />

raça, cada rei ou governante, ansiava por um combate breve,<br />

de pequenas proporções, de poucas perdas, com uma vitória<br />

rápida e esmagadora sobre os selvagens orcs.<br />

Lasthion, preparava-se para deixar Nouvelle Lyon e<br />

partir com sua legião. Seu objetivo era dividir sua legião em<br />

duas frentes de batalha, uma protegendo a entrada da Senda<br />

da Morte e outra impedindo a subida pela trilha da montanha<br />

que dava acesso à passagem alta. Pelos seus cálculos,<br />

conseguiriam chegar aos dois pontos que davam passagem<br />

para o lado leste da Thalide antes <strong>dos</strong> orcs, assim, impedindo<br />

que eles atravessassem as montanhas, até que Tarlhion viesse<br />

com sua legião para cercá-los. A estratégia parecia ser bem<br />

simples, e se tudo saísse como esperavam os orcs seriam<br />

massacra<strong>dos</strong> ainda do lado oeste das montanhas, entre as<br />

legiões de Lasthion e Tarlhion. Sequer seria necessária a ajuda<br />

<strong>dos</strong> elfos negros, ou <strong>dos</strong> anões de Guthin, que chegariam<br />

certamente com grande atraso, já que viriam pelo caminho das<br />

Colinas Íngremes.<br />

Etiènne ouviu duas suaves batidas em sua porta.<br />

— Entre!<br />

A porta abriu-se, vagarosamente, e ele pôde ver Peter,<br />

que hesitou ao ver como Etiènne estava abatido.<br />

— Lasthion vai partir e deseja saber se não quer<br />

acompanhá-lo nesta campanha.<br />

— Onde está Grassac? — perguntou Etiènne. — Não o<br />

vejo desde ontem. Por onde ele anda?<br />

263


— Passou a noite no acampamento <strong>dos</strong> elfos, desejoso de<br />

conhecer mais a respeito daquele povo.<br />

— Você irá com eles, Peter?<br />

— Faz muito tempo que não participo de uma guerra.<br />

Gostaria de ir, mas temo pela segurança de nossa cidade.<br />

Penso que pode não ser uma boa idéia deixar a cidade.<br />

— Eu nunca estive numa guerra. — afirmou Etiènne.<br />

— É o lugar mais triste em que um homem pode estar.<br />

Contudo, é onde os homens experimentam as sensações mais<br />

vibrantes de sua existência. A garganta seca, o coração<br />

explodindo em batidas ensandecidas, o turbilhão de vozes e<br />

gritos no empurra-empurra que exala o cheiro da morte. A<br />

expectativa de derrubar seus oponentes antes que estes<br />

possam acabar com sua vida. É uma visita ao inferno, sem<br />

garantia de retorno.<br />

— Por que é preciso que existam? Dizemo-nos cultos e<br />

civiliza<strong>dos</strong>, mas há séculos resolvemos nossos problemas<br />

através do fio da espada. Gerações e gerações de devastação,<br />

com milhares de mortes, para quê? Sempre a desculpa e a<br />

esperança de que dias melhores surgirão, mas o passado nos<br />

mostra que, a única certeza de que dispomos é que teremos<br />

mais e mais guerras.<br />

— Penso que as guerras somente acabarão quando não<br />

houver mais nenhum homem vivo. — disse Peter.<br />

— Infelizmente, sou obrigado a concordar com você, Pit.<br />

Não obstante, devemos manter a esperança sempre viva,<br />

porque sem ela, apenas o caos dominará o mundo.<br />

Peter continuou parado, aguardando a decisão de<br />

Etiènne, que hesitava. Sabia que o amigo estava muito abalado<br />

com o que acontecera na Grande Caverna, desanimado,<br />

taciturno.<br />

— Leon gostaria muito que você o acompanhasse na<br />

campanha. — resolveu animar Etiènne.<br />

Etiènne finalmente venceu seu solitário ostracismo e<br />

dignou-se a olhar para Peter — Diga-lhes que iremos!<br />

264


Peter demonstrou-se contente com a decisão, e após<br />

pedir licença, retornou a Lasthion e Leon com a resposta de<br />

Etiènne.<br />

A desilusão de não poder rever o irmão cedera ao desejo<br />

de reencontrar seu amigo anão. Agora, este desejo se fez mais<br />

forte novamente e ele ainda não conseguira esquecer Sindazel,<br />

a quem iria procurar até os confins de <strong>Virgo</strong>.<br />

265


E<br />

CAPÍTULO XX<br />

Explode a guerra<br />

nquanto Grassac retornava para a cidade, passando em<br />

meio a dezenas de tendas élficas, percebeu um murmúrio<br />

entre os elfos que olhavam para o alto. Curioso, também virou<br />

seu rosto para o céu, na direção em que os elfos olhavam e viu<br />

com espanto, a aproximação de um enorme dragão, que<br />

segun<strong>dos</strong> depois, passou num vôo rasante sob suas cabeças<br />

elevando-se novamente a certa altura para logo em seguida<br />

descer numa clareira, nas proximidades de onde estavam.<br />

Vários elfos correram na direção do local onde o dragão<br />

havia pousado. Grassac, morrendo de curiosidade, os seguiu<br />

apressado. Foram se desvencilhando de arbustos e folhagens<br />

ansiosos para chegarem até o dragão, mas a floresta naquele<br />

ponto era muito cerrada, o que dificultou bastante o avanço<br />

<strong>dos</strong> elfos e de Grassac.<br />

Desorienta<strong>dos</strong> e quase perdi<strong>dos</strong>, os elfos resolveram<br />

retornar ao acampamento, temendo sobretudo, uma<br />

repreensão de seus capitães ou mesmo do próprio Lasthion.<br />

Grassac insistiu, e continuou desbravando a densa mata<br />

à procura do dragão. Ao ouvir uma respiração tão forte como<br />

se fossem curtas rajadas de vento, acautelou-se, e continuou<br />

em direção a este som, silenciosamente, esgueirando-se de<br />

árvore em árvore.<br />

Chegou até a clareira e ficou abismado com o tamanho<br />

da criatura, que agora jazia no solo como se estivesse morta,


com uma das asas esticadas como se fosse a lona de uma<br />

gigantesca tenda de campanha. A criatura continuava<br />

ofegante, com sua terrível respiração.<br />

Grassac ficou imóvel, temendo ser descoberto pelo<br />

magnífico dragão branco. Analisava cada detalhe daquela<br />

fantástica criatura, quando percebeu um estranho movimento<br />

sobre o corpo do animal e avistou, estarrecido, Michel em<br />

companhia daquele ser angelical, que imediatamente tomara<br />

por Sindazel, considerando as maçantes e insistentes<br />

descrições que Etiènne sempre fizera de sua amada.<br />

Continuou quieto e escondido, apenas observando tudo<br />

o que se passava. Ainda temia o belo, mas ao mesmo tempo<br />

pavoroso, gigantesco lagarto de asas à sua frente. Michel e<br />

Sindazel terminaram de descer através da asa de<br />

Laicrunallian. Ao que parecia, estavam se despedindo,<br />

segurando as mãos um do outro. Então, Grassac testemunhou,<br />

enojado, Michel abraçar Sindazel e beijá-la apaixonadamente<br />

durante segun<strong>dos</strong> que lhe pareceram uma eternidade.<br />

Indignado, irrompeu pela clareira assustando aos dois, e<br />

também ao dragão, que levantou-se com uma agilidade<br />

incrível, grunhindo de maneira atemorizante para Grassac,<br />

que por sua vez, também se assustara chegando a cair para<br />

trás ao ver as afiadas presas da besta-fera.<br />

— Grassac!? — espantou-se Michel, que<br />

automaticamente ergueu seu braço, advertindo Laicrunallian<br />

para não avançar sobre seu amigo. — Não tenha medo, Lai, eu<br />

o conheço, é de minha cidade.<br />

Sindazel procurou ficar mais próxima do dragão,<br />

preparando-se para usar uma de suas magias caso fosse<br />

necessário intervir por sua própria segurança.<br />

— O que está fazendo aqui? Quem são to<strong>dos</strong> aqueles ao<br />

redor da cidade?<br />

— São elfos de Eluannar! — disse Grassac, sisudo.<br />

267


— Então este é o exército do qual a rainha Aurien havia<br />

nos falado — confirmou Michel, olhando de soslaio para<br />

Sindazel.<br />

— Não vai apresentar sua companheira?<br />

Laicrunallian olhava curioso para Grassac. Seus olhos de<br />

víbora, vermelhos como dois rubis, o encaravam tentando<br />

desvendar o enigma daquelas indagações perceptivelmente<br />

cheias de ódio, a seus olhos de dragão.<br />

— Ah, sim — constrangeu-se Michel. Olhou para<br />

Sindazel e esticou-lhe um braço, pedindo para que ela se<br />

aproximasse um pouco mais. Sindazel caminhou até Michel e<br />

segurou-lhe a mão. — Esta é Sindazel, uma vangi a quem<br />

devo ser eternamente grato por ter me conduzido de volta,<br />

quando minha esperança de regressar a <strong>Virgo</strong> havia morrido.<br />

A vangi exibiu todo o esplendor de seu sorriso. Grassac<br />

jamais havia conhecido tamanha beleza em sua vida. Não<br />

obstante, ainda permanecia fiel a Etiènne, e o que ele<br />

presenciara ali era tido como uma traição infame. Não podia<br />

aceitar que Michel traísse seu próprio irmão, e não perderia a<br />

oportunidade de lhe dirigir ásperas palavras.<br />

— Vejo que está se esmerando para agradecê-la! —<br />

Grassac fez uma pequena reverência em direção a bela vangi.<br />

— Sou Grassac, amigo fiel de Etiènne Montbard, às suas<br />

ordens.<br />

O simples pronunciar do nome de Etiènne fez com que<br />

Sindazel automaticamente soltasse a mão de Michel e recuasse<br />

um passo. Então, resolveu usar de sua magia para perscrutar a<br />

mente de Grassac. Através dele, viu o ódio e a repugnância<br />

que haviam nascido naquele homem diante daquele<br />

desafortunado momento. Pôde perceber também o motivo<br />

daqueles sentimentos em Grassac, e sentiu o quanto Etiènne<br />

estivera enamorado por ela todo este tempo, mantendo-a em<br />

seu coração.<br />

268


— Você fala demais! — exasperou-se Michel. — Espero<br />

que seja mais discreto ao regressarmos para Nouvelle Lyon, a<br />

fim de evitar um mal desnecessário.<br />

Os olhos de Grassac encheram-se de amargura e<br />

estavam mareja<strong>dos</strong> de ódio por Michel. — O mal, deve ser<br />

evitado antes de mais nada, a partir de nossas atitudes, e não<br />

na esperança de que outros o evitem por nós. — Grassac, fez<br />

uma mesura para Sindazel, mas não tornou a encarar o<br />

dragão, virou-se e voltou apressado para a brecha da clareira<br />

de onde surgira.<br />

Michel correu até Grassac e segurou-o pelo braço,<br />

forçando-o para que se virasse e o encarasse.<br />

— Estou avisando, Grassac, não quero nenhum<br />

comentário a respeito de Sindazel com Etiènne. Se fizer isso...<br />

— Se eu fizer isso, o que vai acontecer!? — gritou<br />

Grassac encolerizado. — Está me ameaçando? Acha que tenho<br />

medo de você? Ninguém manda em minha vida, mas você,<br />

não passa de um escravo de seus me<strong>dos</strong>, um choramingão que<br />

sempre tirou todas as oportunidades de seu irmão mais novo e<br />

agora rouba-lhe também sua amada. Você é um porco sujo,<br />

Michel! — Grassac mantinha os punhos cerra<strong>dos</strong>, a um fio de<br />

descontrolar-se e agredir Michel, a quem estava odiando<br />

profundamente.<br />

— Vá para o inferno! — repeliu Michel. — Meu recado<br />

está dado, e sinceramente, seria melhor que você fosse embora<br />

de Nouvelle Lyon, pois já estou farto de ter o dono da verdade<br />

como uma sombra incômoda!<br />

— Você acabará sozinho, seu monte de estrume!<br />

Os dois afastaram-se em direções opostas, mas ambos<br />

sabiam que o assunto não estaria encerrado. Michel, conhecia<br />

bem a amizade de Grassac por seu irmão e já se preparava<br />

para enfrentar uma grande dificuldade com Etiènne.<br />

Sindazel, por sua vez, sofreu calada sem demonstrar a<br />

Michel que a revelação através de Grassac havia novamente<br />

despertado seu desejo por Etiènne.<br />

269


Veio despedir-se de Sindazel, mas ela negou-lhe um<br />

novo beijo. Levou sua delicada mão angelical até sua fronte,<br />

beijando-lhe a testa, desejando sorte e prometendo que estaria<br />

sempre por perto. Michel, entendeu que estavam se separando<br />

naquele momento por um longo período, porque certamente<br />

ela precisaria voltar com Laicrunallian para Vangilla.<br />

— Espero que tenha um bom regresso, meu amor.<br />

Aguardarei com grande ansiedade seu retorno, agora que já<br />

sabe onde é meu lar.<br />

Sindazel aquiesceu, mas sem dizer qualquer palavra,<br />

subiu lentamente sobre a asa de Laicrunallian e partiu amuada<br />

com o que acontecera.<br />

<br />

Lasthion, estava muito atrasado, calculara errado os<br />

tempos de locomoção e os Trumadai e Baraidai haviam<br />

iniciado a subida das Montanhas Negras um dia antes a<br />

grande velocidade. Os primeiros orcs já despontavam no cimo<br />

da montanha e encontravam os milhares de goblins já<br />

posiciona<strong>dos</strong> para iniciar a invasão da Floresta Dourada.<br />

O encontro entre os orcs e goblins aconteceu como de<br />

costume, com muita algazarra, provocação e pilhéria de uns<br />

para com os outros. Não tardou para que vários focos de<br />

desentendimentos surgissem, e por um momento, parecia que<br />

a guerra seria travada ali mesmo, apenas entre eles.<br />

Entretanto, um novo grupo de orcs despontou no cimo da<br />

montanha, mais ferozes do que os outros, grunhindo<br />

violentamente. Mostravam seus dentes afia<strong>dos</strong>, pontiagu<strong>dos</strong><br />

como punhais, intimidando aos demais que estavam à sua<br />

frente. <strong>Era</strong>m os grão-orcs da tribo Trumadai. Alguns orcs<br />

comuns traziam os estandartes horripilantes <strong>dos</strong> Trumadai,<br />

que não passavam de peles de animais ressecadas em<br />

farrapos, tingidas de um vermelho escuro, rubro como o<br />

sangue, exibindo o desenho de um tridente. Provavelmente, os<br />

orcs dessa tribo tenham se inspirado nas armas usadas pelos<br />

270


druzos, seus vizinhos que habitam as profundezas da região<br />

vulcânica.<br />

Os orcs eram naturalmente indisciplina<strong>dos</strong> entre si, mas<br />

na presença de seus líderes tribais, conseguiam encontrar um<br />

certo grau de obediência, mas ainda assim, era preciso que os<br />

mais intoleráveis fossem decapita<strong>dos</strong> por seus líderes diante<br />

<strong>dos</strong> demais para que a ordem pudesse ser restabelecida, ao<br />

menos até o próximo distúrbio.<br />

É quase impossível controlar uma grande quantidade de<br />

orcs amontoa<strong>dos</strong> que, possuindo uma natureza extremamente<br />

violenta, simplesmente não conseguem conter sua sede por<br />

destruição. Não obstante, naquele dia, os orcs estavam mais<br />

controla<strong>dos</strong> e concentra<strong>dos</strong> do que habitualmente são<br />

encontra<strong>dos</strong> em situação semelhante, diante de seus líderes<br />

tribais e às vésperas de um grande combate. Os focos de<br />

desentendimento foram inevitáveis, claro, mas considerando a<br />

enorme concentração de orcs e goblins reuni<strong>dos</strong> naquele<br />

lugar, foram irrisórios se compara<strong>dos</strong> a encontros bem<br />

menores ocorri<strong>dos</strong> em outras épocas, em que seus líderes<br />

sofreram para manter o controle.<br />

Havia, alguma coisa estranha pairando sobre aquela<br />

enorme massa negra de violência e pavor, que os fazia<br />

respeitar sobrenaturalmente os grão-orcs. Havia, algum poder<br />

sinistro controlando aquelas criaturas. De todas as suposições<br />

levantadas no Colóquio de Plarionthil, as mais temidas eram a<br />

de que os dragões negros poderiam estar controlando os orcs,<br />

ou então, que os Zaraidai houvessem se insurgido<br />

ocultamente, iniciando uma nova onda de terror em <strong>Virgo</strong>,<br />

como fizeram na Guerra da Agonia. Uma coisa era certa,<br />

aquela organização não era tão simples como muitos<br />

supuseram, e certamente, não estava sendo liderada apenas<br />

por orcs.<br />

Um <strong>dos</strong> grão-orcs subiu numa rocha, elevando-se mais<br />

que os outros, e observando a vastidão de elmos enegreci<strong>dos</strong><br />

de seus solda<strong>dos</strong>, iniciou o discurso a seu exército:<br />

271


— Povo das trevas! Goblins, orcs Turmadai e Baraidai.<br />

Hoje iniciaremos uma nova era de terror, que nos levará à<br />

glória do Caos, sob o comando de nosso novo mestre!<br />

Os orcs urravam de alegria batendo seus escu<strong>dos</strong> ovais,<br />

lanças e espadas, sedentos pela carnificina que não tardaria.<br />

Sabiam que naquele mesmo dia começariam uma grande<br />

guerra. O ar impregnado e o fedor produzido pelos goblins,<br />

agora era multiplicado pela aglomeração <strong>dos</strong> orcs, que<br />

urinavam em to<strong>dos</strong> os lugares, em suas próprias pernas ou até<br />

mesmo nas pernas de seus companheiros, fazendo pilhérias e<br />

achando tudo divertido.<br />

— O mestre afirma que a terra pertence aos ímpios,<br />

porque ela veio do Caos e no Caos deve permanecer! Ele nos<br />

ajudará a trazer de volta o Caos! — o grão-orc Trumadai, a<br />

despeito da barulheira ensurdecedora que aquelas criaturas<br />

faziam, urrando, grunhindo e chocando seus escu<strong>dos</strong> uns com<br />

os outros, bradava com ênfase, as incitações proferidas por seu<br />

mestre. Os pavorosos solda<strong>dos</strong> pareciam enlouqueci<strong>dos</strong>.<br />

Os chefes tribais reuniram-se rapidamente com os<br />

líderes <strong>dos</strong> goblins e acertaram os detalhes do ataque.<br />

Decidiram que os goblins se precipitariam para a Floresta<br />

Dourada numa primeira onda de ataque, enquanto os orcs<br />

aguardariam do cimo da montanha, e somente avançariam<br />

quando identificassem a presença de outras forças que não<br />

fossem a <strong>dos</strong> elfos negros. Isso não foi recebido com muita<br />

alegria pelos goblins, mas não foram loucos de se oporem aos<br />

violentos orcs. Os Trumadai aguardariam pela presença <strong>dos</strong><br />

arqueiros Baraidai antes de descerem para o combate, pois<br />

eles seriam responsáveis por assestar suas setas de fogo em<br />

direção à região onde ficavam os elfos negros, incendiando<br />

suas moradas, fazendo com que se precipitassem<br />

obrigatoriamente em direção aos goblins. Isso era tudo o que<br />

precisavam saber os goblins.<br />

Contraria<strong>dos</strong>, e temendo por sua sorte na guerra, os<br />

pequenos goblins partiram desconfia<strong>dos</strong>. Não obstante à<br />

272


inquietação que inicialmente os dominava, o rufar <strong>dos</strong><br />

tambores de guerra <strong>dos</strong> orcs e seus pavorosos grunhi<strong>dos</strong>, logo<br />

incendiaram-lhes o espírito, fazendo com que se precipitassem<br />

montanha abaixo em direção à Floresta Dourada com imensa<br />

ferocidade, empunhando suas afiadas espadas curtas,<br />

tropeçando uns nos outros como uma violenta avalanche<br />

incontrolável.<br />

Durante a correria desenfreada, alguns goblins<br />

acabaram sendo empurra<strong>dos</strong> ou escorregaram nas escarpas<br />

rochosas, espatifando-se no fundo do precipício sem que isso<br />

pudesse lhes distrair a atenção ou conter sua fúria<br />

ensandecida.<br />

Mal os goblins chegaram à Floresta Dourada, tomaram a<br />

direção que os levaria à Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros,<br />

auxilia<strong>dos</strong> pelo mapa que lhes fora entregue por Idour, o<br />

traidor de sua própria raça. Embrenharam-se na floresta e<br />

avançaram sem descanso com seus gritos enlouqueci<strong>dos</strong>,<br />

numa corrida alucinada ao encontro da carnificina que<br />

almejavam com um desejo maligno.<br />

Os últimos goblins ainda desciam do cimo da montanha<br />

quando um novo grupo de orcs selvagens chegou pelo lado<br />

oeste do topo da montanha Imediatamente, procuraram Idour<br />

com grande agitação e avisaram-lhe sobre a aproximação do<br />

exército <strong>dos</strong> elfos ao local onde era possível a subida da<br />

montanha. Com grande entusiasmo, Idour ergueu seu rosto e<br />

aspirou o ar profundamente. Sua face negra e altiva brilhou<br />

sob a luz quente e avermelhada que emanava <strong>dos</strong> cristais,<br />

enquanto contemplava o maravilhoso céu de <strong>Virgo</strong>, ouvindo o<br />

som tenebroso <strong>dos</strong> orcs ao seu redor.<br />

— Tudo caminha como planejado — comentou. —<br />

Esmagaremos os elfos de Eluannar na Senda da Morte e<br />

arrasaremos a Floresta Dourada.<br />

<br />

273


Quando Lasthion chegou ao local de subida das<br />

Montanhas Negras para posicionar sua legião à passagem do<br />

caminho que levava ao lado leste de <strong>Virgo</strong>, encontrou o local<br />

mergulhado em uma imundície descomunal, com<br />

excrementos de orcs por toda a parte, carregando o ar com seu<br />

fétido cheiro, tornando-o pesado e insuportável. Os elfos se<br />

enojaram ao ver aquilo, e procuraram evitar aquele cheiro<br />

horrendo ao máximo possível, cobrindo seus narizes com as<br />

mãos, com uma expressão de amargura e desgosto. Ao ver que<br />

os orcs haviam se antecipado e utilizado o caminho que<br />

transpunha a montanha por cima, através das trilhas, Lasthion<br />

não teve outra opção a não ser retornar com sua legião para<br />

utilizar a passagem através da Senda da Morte, um sombrio e<br />

terrível desfiladeiro que levava à Floresta Dourada, uma<br />

estreita fenda que dividia as Montanhas Negras em duas<br />

partes. Esta passagem era praticamente evitada por to<strong>dos</strong> os<br />

mercadores e até mesmo por grandes tropas. Apesar de ser o<br />

mais rápido caminho entre as Montanhas Negras que ligava<br />

os la<strong>dos</strong> oeste e leste de <strong>Virgo</strong>, era o caminho menos utilizado<br />

por to<strong>dos</strong>, tamanha era sua fama de desgraçar a vida de<br />

muitos que por ali ousaram passar.<br />

A legião de Lasthion entrou na Senda da Morte entre as<br />

Montanhas Negras no início daquela tarde, prosseguindo<br />

lentamente e com atenção redobrada, pois aquele local era<br />

famoso pelo expressivo número de emboscadas ocorridas.<br />

Não obstante, Lasthion conduzia uma legião inteira, e não<br />

uma pequena caravana errante; isso o fazia acreditar que os<br />

orcs não seriam tão ousa<strong>dos</strong> em tentar confrontá-lo<br />

abertamente naquele imenso corredor traiçoeiro. Além disso,<br />

em breve sua retaguarda estaria protegida, uma vez que a<br />

legião de Tarlhion, que viria em vários galeões através do Mar<br />

Caudaloso, a esta altura já deveria estar desembarcando nas<br />

praias próximas ao Pântano Hibrittatus.<br />

A tropa caminhava em silêncio olhando para as enormes<br />

rochas negras que a cercava. Às vezes, alguns olhavam para o<br />

274


alto, procurando erguer suas cabeças para enxergar além do<br />

cimo das montanhas, como que procurando tomar fôlego para<br />

sentirem-se mais alivia<strong>dos</strong>. A passagem em alguns pontos<br />

tornava-se muito estreita, permitindo que apenas quatro<br />

pudessem passar ombro a ombro, mas na maior parte do<br />

sinuoso percurso, a distância entre as rochas das duas<br />

montanhas era em média de quarenta escu<strong>dos</strong> coloca<strong>dos</strong> lado<br />

a lado. Ainda assim, esse espaço não era confortável para uma<br />

batalha.<br />

Quando Lasthion havia percorrido dois terços do<br />

caminho, aconteceu o inimaginável. Ao terminar de perfazer<br />

uma suave curva para a direita e chegar a uma longa reta, os<br />

elfos avistaram ao longe o exército de orcs <strong>dos</strong> Trumadai,<br />

encerrando a passagem.<br />

Lasthion, não poderia continuar a menos que<br />

enfrentasse os orcs que, ao avistarem sua legião, iniciaram<br />

enfureci<strong>dos</strong> uma tremenda barulheira misturando seus<br />

grunhi<strong>dos</strong> com o som metálico de seus escu<strong>dos</strong> sendo<br />

golpea<strong>dos</strong> impie<strong>dos</strong>amente por suas próprias lâminas com<br />

extrema violência, na intenção de intimidar os elfos.<br />

O local estreito não permitia manobras difíceis, mas<br />

Lasthion ordenou que os arqueiros se posicionassem<br />

apressadamente à frente da legião, o que Peter comentou com<br />

Grassac e Etiènne ser uma imprudência. Explicou que, caso os<br />

orcs arremetessem contra eles, não haveria tempo hábil para<br />

reposicionar os lanceiros à frente, e assim, os arqueiros<br />

acabariam por ser massacra<strong>dos</strong> no tumulto que se seguiria.<br />

Contudo, Lasthion, com fervor e confiando na ignorância <strong>dos</strong><br />

orcs, manteve sua ordem. Um regimento inteiro de arqueiros<br />

veio com dificuldade para a dianteira em meio a empurrões e<br />

imprecações de seus próprios companheiros.<br />

— Não temam, os orcs são estúpi<strong>dos</strong> e quando os<br />

atingirmos com nossa arqueria, correrão para a floresta onde<br />

os perseguiremos e os massacraremos, um por um, até o<br />

último!<br />

275


Os homens se entreolharam. Como não estavam<br />

acostuma<strong>dos</strong> a combater orcs, tranqüilizaram-se com as<br />

palavras confiantes de Lasthion.<br />

Enquanto os arqueiros de Eluannar ainda se<br />

posicionavam para aguardar a ordem de iniciar seus disparos,<br />

do outro lado do caminho surgiu um cavaleiro em meio aos<br />

orcs, montado num reluzente cavalo negro. Segurando uma<br />

comprida lança que trazia em sua ponta as insígnias élficas de<br />

Idour, o cavaleiro fez com que seu cavalo empinasse. Lasthion<br />

empalideceu de imediato, incrédulo, observando imóvel<br />

aquela cena. Os músculos de sua face se tensionaram e uma<br />

nuvem de medo a cobriu por um momento.<br />

Os homens perceberam a mudança súbita no confiante<br />

espírito de Lasthion e tornaram a ficar preocupa<strong>dos</strong>.<br />

— O que se passa? — perguntou Etiènne, que jamais<br />

havia participado de uma guerra em sua vida e estava muito<br />

apreensivo com tudo. Sentia o medo querendo dominá-lo a<br />

cada passo que dera durante a caminhada, mas ali, diante <strong>dos</strong><br />

monstros pavorosos, havia finalmente cedido ao medo pleno.<br />

— Fomos traí<strong>dos</strong>! — disse Lasthion, ainda pálido como a<br />

luz do luar. — A batalha será muito mais difícil do que eu<br />

imaginava.<br />

— Meu Deus, então vamos retroceder, vamos recuar<br />

para a planície. — cogitou Etiènne.<br />

— Se recuarmos agora morreremos rapidamente. Por<br />

conseguinte, estaremos deixando nossos irmãos elfos negros à<br />

mercê da selvageria louca desses monstros lidera<strong>dos</strong> por<br />

Idour, esse traidor miserável.<br />

— Mas como lutaremos dentro desta ratoeira!?<br />

— Etiènne tem razão, não podemos arriscar uma batalha<br />

nessas condições! — afirmou Michel, com os demais homens<br />

concordando.<br />

— Não posso vos obrigar a permanecer neste combate<br />

sangrento, que é inevitável. Vocês ainda não conhecem sobre a<br />

vida na Thalide e não posso exigir que o vosso sangue seja<br />

276


derramado tão prematuramente. Peço-lhes que regressem<br />

para Nouvelle Lyon e aguardem nosso retorno.<br />

— Em absoluto! — exclamou Leon Troujard. — Não o<br />

deixarei neste momento, Lasthion. Os elfos muito ajudaram ao<br />

povo de Nouvelle Amiens e agora usarei minha lâmina ao<br />

vosso lado contra essas criaturas desprezíveis!<br />

— E eu o acompanharei, para vingar meu senhor! —<br />

completou Alain Dumas, franzindo a testa.<br />

Lasthion fez uma mesura em agradecimento a Leon e<br />

Alain, voltando seus olhos para Etiènne logo em seguida.<br />

Michel, ficou consternado, pois sempre fora uma espécie<br />

de líder, mas agora via-se relegado a segundo plano, perdendo<br />

lugar até para seu irmão mais novo. Grassac, percebendo a<br />

consternação de Michel, apressou-se a dizer: — Seguirei<br />

Etiènne, seja qual for sua decisão!<br />

Michel e Grassac cruzaram os olhares, faiscando de ódio<br />

um pelo outro. Peter, percebendo a animosidade entre os dois<br />

amigos, também opinou, procurando acalmar os ânimos.<br />

— Devemos ficar to<strong>dos</strong> juntos. Penso que cada um de<br />

nós tem muito a contribuir nesta guerra, e também, muito a<br />

aprender com ela, caso possamos sair vivos dessa situação.<br />

Michel baixou a cabeça, enterrando seu queixo no peito,<br />

visivelmente abalado e contrariado. Por fim, ergueu o rosto<br />

em direção ao irmão mais novo que estava muito apreensivo<br />

diante da iminente batalha e o exortou para que to<strong>dos</strong><br />

ficassem uni<strong>dos</strong> em torno <strong>dos</strong> elfos.<br />

— Fiquemos juntos! — disse Etiènne, não com tanta<br />

firmeza quanto desejava, mas convenceu.<br />

Passado o desagradável momento entre os homens que<br />

ali se encontravam, respeitado por Lasthion com enorme<br />

paciência, o elfo então conclamou Leon a acompanhá-lo até<br />

diante do cavaleiro inimigo, que aguardava a meia distância<br />

entre os dois exércitos, para estabelecer suas exigências, que<br />

possivelmente seria a retirada da legião élfica e a não<br />

intromissão em assuntos pertinentes ao leste da Thalide. Leon,<br />

277


aproximou sua montaria de Lasthion e os dois cavalgaram<br />

juntos na direção de Idour. Todavia, quando se aproximaram<br />

e estavam a menos de dez metros de distância de Idour, o elfo<br />

negro fez meia volta com sua montaria e cavalgou com pressa<br />

para perto do horrendo exército de orcs que liderava.<br />

Lasthion interrompeu sua cavalgada, baixando a cabeça.<br />

Neste momento, soube que não haveriam exigências.<br />

— Não haverá nenhuma exigência ou acordo.<br />

Leon, percebendo a situação, limitou-se a apressar<br />

Lasthion a fazer o mesmo que Idour, voltar apressadamente<br />

para perto de sua legião a fim de organizar os seus para o<br />

confronto inevitável.<br />

<br />

Não houve qualquer oportunidade para que Lasthion<br />

conseguisse organizar sua legião. Os orcs avançaram<br />

enlouqueci<strong>dos</strong> para cima <strong>dos</strong> elfos com gritos horripilantes e<br />

grunhi<strong>dos</strong> ferozes, atemorizando principalmente, Etiènne.<br />

Os arqueiros elfos que haviam se posicionado à frente,<br />

disparavam suas setas praticamente em linha reta, em direção<br />

àquelas monstruosas criaturas que cambaleavam e<br />

despencavam aos montes enquanto muitos mais passavam<br />

por sobre os cadáveres <strong>dos</strong> que jaziam à sua frente, numa<br />

onda sem fim de terror, até alcançarem os arqueiros e se<br />

lançarem violentamente contra eles, brandindo suas lâminas<br />

curvas.<br />

Os arqueiros elfos resistiram bravamente substituindo<br />

seus arcos imediatamente por suas lâminas, quando os orcs<br />

estavam a apenas três ou quatro passos de os alcançarem. O<br />

barulho seco <strong>dos</strong> corpos se chocando, os gritos de horror e<br />

também de incentivos ao morticínio, mistura<strong>dos</strong> ao clangor<br />

<strong>dos</strong> escu<strong>dos</strong> e tilintar das lâminas, davam o tom para a canção<br />

da morte. Cadáveres começavam a se amontoar no<br />

desfiladeiro, inteiros ou em pedaços, com vísceras<br />

misturando-se a membros corta<strong>dos</strong> transformando o terreno<br />

278


de batalha numa espécie de chão movediço e escorregadio,<br />

enquanto a luta feroz acontecia sobre um verdadeiro rio de<br />

sangue.<br />

Lasthion e Leon tiveram grande dificuldade para chegar<br />

até o segundo regimento, que se agitava aguardando o<br />

momento em que entrariam em combate, mas quando esse<br />

momento chegasse, significaria dizer que to<strong>dos</strong> os arqueiros à<br />

sua frente teriam tombado, o que de fato, aconteceria.<br />

Após os primeiros vinte minutos, que pareciam ter<br />

durado horas, Lasthion já se posicionava junto ao regimento<br />

que estava logo atrás <strong>dos</strong> arqueiros, que continuavam a<br />

tombar em grande velocidade, por mais experientes e<br />

aguerri<strong>dos</strong> que fossem. Os orcs vinham aos montes e com uma<br />

ferocidade incrível, sem se importar com suas vidas, impondo<br />

uma pressão impie<strong>dos</strong>a sobre os elfos de Eluannar.<br />

Lasthion, estava impaciente, empunhando sua espada e<br />

caminhando no pouco espaço que a tropa abriu para ele.<br />

Bradava para que to<strong>dos</strong> se mantivessem firmes em suas<br />

posições e que forçassem seus companheiros para frente,<br />

impedindo que os orcs se impusessem fazendo-os recuar pela<br />

pressão.<br />

Não demorou muito para que os orcs alcançassem o<br />

segundo regimento da legião de Lasthion e sua própria espada<br />

já estava rasgando a carne daqueles monstros terríveis com<br />

uma violência quase que incontrolável. Mas Lasthion sabia<br />

que precisava manter-se consciente de tudo o que se passava,<br />

e a cada dois ou três orcs que matava, procurava se afastar,<br />

dando lugar imediatamente a seus fiéis lanceiros Asgadhir e<br />

Althinor, recuando entre suas fileiras para tentar coordenar a<br />

defesa ao lado de Lothanir.<br />

Mas os orcs não paravam de surgir diante <strong>dos</strong> elfos,<br />

mesmo que a um alto preço, pois cada elfo cobrava caro por<br />

sua vida eliminando entre três e cinco orcs, antes de tombar.<br />

Uma agitação enorme vinha <strong>dos</strong> regimentos<br />

posiciona<strong>dos</strong> na retaguarda. Os homens, à exceção de Leon<br />

279


que continuava lutando bravamente junto a Lasthion e<br />

Lothanir na frente de batalha, estavam juntos no terceiro<br />

regimento com Althalion, que logo seria alcançado pela<br />

violenta massa assassina <strong>dos</strong> orcs. Mas antes mesmo que isso<br />

viesse a acontecer, Alain Dumas surgiu diante de Leon e<br />

Lasthion, em meio a toda aquela loucura, dizendo que a legião<br />

estava sendo atacada pela retaguarda.<br />

— Estamos cerca<strong>dos</strong>, seus solda<strong>dos</strong> dizem que orcs nos<br />

atacam pela entrada da senda, seremos massacra<strong>dos</strong>!<br />

Alain estava visivelmente abalado, mas não apenas ele,<br />

pois o murmúrio em meio ao tilintar do aço era geral em torno<br />

desta informação. A legião de Lasthion estava cercada dentro<br />

da Senda da Morte. Leon estava meio curvado, como se seu<br />

braço pesasse trinta quilos, tamanho era seu cansaço de tanto<br />

brandir a espada. Lasthion, por sua vez, estava tão cansado<br />

quanto seu amigo humano, mas não podia permitir que a<br />

tropa ficasse abalada com a novidade e precisava incendiar o<br />

coração de seus solda<strong>dos</strong>.<br />

— Tarlhion deve estar chegando com sua legião. Nós<br />

vamos resistir até que ele chegue para nossa salvação! —<br />

bradou Lasthion, como num último esforço de fôlego para<br />

tentar fazer com que o escutassem, mas o som de sua voz fora<br />

facilmente abafado pela barulheira insana da canção da morte.<br />

Apenas alguns puderam ouvir sua voz que se<br />

incendiaram de esperança, e domina<strong>dos</strong> pelo ódio e repulsa<br />

que sentiam pelos orcs, precipitaram-se sobre eles com<br />

enorme fúria, mas logo estariam to<strong>dos</strong> mortos. Alain, Leon,<br />

Lothanir e Lasthion recuaram mais um pouco para juntaremse<br />

aos outros no terceiro regimento, que começava a organizar<br />

a próxima camada de defesa contra o avanço <strong>dos</strong> orcs. Mas a<br />

esta altura, o avanço ocorria tanto à sua frente, quanto à sua<br />

retaguarda. Sua legião era pressionada e esmagada a cada<br />

minuto. Sua única esperança, era Tarlhion.<br />

O que Lasthion não sabia, é que neste exato momento,<br />

outra tribo de orcs, os Maradai, aguardava em grande número<br />

280


o desembarque de Tarlhion próximo ao Pântano Hibrittatus.<br />

Nenhum espião ou informante fora capaz de descobrir que os<br />

Maradai também estavam coaduna<strong>dos</strong> com os Baraidai e<br />

Trumadai. A aliança entre os orcs era muito maior do que<br />

imaginavam, sob a liderança de Idour, o elfo negro que tinha<br />

informações estratégicas precisas sobre as táticas militares <strong>dos</strong><br />

elfos nobres. O próprio Idour determinara o posicionamento<br />

<strong>dos</strong> Maradai, pois sabia que Eluannar mandaria uma legião<br />

pelo Mar Caudaloso para juntar-se a outra que viria por terra.<br />

Idour era o melhor informado entre to<strong>dos</strong> os exércitos e o mais<br />

perspicaz general já conhecido pelos elfos.<br />

A ociosidade <strong>dos</strong> séculos e a falta de visão <strong>dos</strong> elfos para<br />

o perigo crescente, custaria muito caro, conforme a rainha<br />

Aurien professara no Colóquio de Plarionthil. Muitas vidas<br />

poderiam ter sido poupadas se os povos élficos não se<br />

tivessem permitido mergulhar no ostracismo de décadas,<br />

enclausura<strong>dos</strong> em seus suntuosos reinos.<br />

A legião de Lasthion continuava resistindo à investida<br />

traiçoeira <strong>dos</strong> orcs Baraidai; entrementes, não poderiam ser<br />

salvos por Tarlhion e nem mesmo pelo exército de Bakhin,<br />

ainda estacionado à orla leste da Floresta Dourada. O combate<br />

feroz já durava quase quatro horas, com centenas de mortos<br />

em ambas as fileiras, numa luta como nunca houvera antes.<br />

Ao contrário das batalhas em campo aberto, a contenda num<br />

desfiladeiro estreito como aquela senda que cortava as<br />

Montanhas Negras era muito mais difícil e demorada porque<br />

não havia como romper as fileiras inimigas que se obrigavam<br />

a ficar coesas e compactas entre as paredes rochosas.<br />

O terceiro regimento se preparava para o combate, e<br />

com eles, estavam posiciona<strong>dos</strong> os homens e o próprio<br />

Lasthion, logo à frente ao lado de seu filho Althalion. Já<br />

podiam sentir o movimento frenético <strong>dos</strong> elfos que estavam<br />

mais adiante; em poucos minutos, os primeiros orcs surgiram<br />

furiosos entre os remanescentes elfos do que um dia fora o<br />

segundo regimento da legião de Lasthion.<br />

281


Com um grito de combate, Lasthion incentivou seus<br />

solda<strong>dos</strong> a avançarem contra os orcs. Com eles, avançaram<br />

também os homens, sentindo suas gargantas secas e ao mesmo<br />

tempo amargas diante da carnificina que os aguardava.<br />

Etiènne, brandindo dois pequenos macha<strong>dos</strong> de batalha,<br />

logo precipitou-se ensandecido contra as monstruosas<br />

criaturas, desferindo violentos golpes certeiros sobre os elmos<br />

de seus adversários, rachando-os e observando aquele sangue<br />

escuro aspergir sobre to<strong>dos</strong> à sua volta. Não tardou para que<br />

ele próprio estivesse banhado em sangue amigo e inimigo.<br />

To<strong>dos</strong> lutaram bravamente, subjugando muitos orcs que<br />

se aventuraram a investir contra aquela elite de bravos<br />

guerreiros, verdadeiros campeões. Contudo, a fadiga<br />

começava a tomar conta deles. Peter, o arqueiro bretão, que se<br />

posicionara numa saliente rocha a cerca de dois metros de<br />

altura, pouco atrás de seus companheiros, já havia esgotado<br />

sua aljava, e agora, de espada em punho, esperava que os orcs<br />

se aproximassem um pouco mais para unir-se a seus<br />

companheiros.<br />

Pela primeira vez no dia os orcs temeram seus<br />

oponentes. Ao ver que não conseguiam mais avançar,<br />

arrefeceram sua fúria, até então supostamente incontrolável,<br />

hesitando em continuar, mas não paravam de bater seus<br />

escu<strong>dos</strong> e brandir suas lâminas curvas, ainda ameaçando seus<br />

inimigos. Um verdadeiro mar de cadáveres e sangue separava<br />

agora as duas hostes inimigas, cerca de trinta metros uma da<br />

outra.<br />

Michel, exausto e suarento, apoiando seu braço sobre o<br />

ombro de seu irmão Etiènne, mal conseguindo respirar,<br />

pretendia falar algo, mas vendo o rosto cansado de seu irmão<br />

mais novo tomado por sangue e suor, limitou-se a dar uma<br />

pequena piscadela, procurando ficar novamente ereto,<br />

recompondo-se.<br />

Então, percebeu que Grassac, posicionado um pouco<br />

mais distante ao longo da fileira, fitava-o com uma gana<br />

282


impossível de se ocultar, como que reprovando a atitude de<br />

falsidade que Michel adotara em relação a seu irmão Etiènne.<br />

Leon, alheio à animosidade existente entre Grassac e<br />

Michel, aproximou-se do primeiro e, muito ofegante, pediu<br />

auxílio para remover alguns cadáveres que estavam<br />

amonta<strong>dos</strong> diante deles. Banhado em sangue e suor, Grassac<br />

cuspiu em direção a Michel, mostrando seu total desprezo<br />

pelo caráter do irmão de seu amigo Etiènne.<br />

<strong>Homens</strong> e elfos se entregaram à penosa faina de resgatar<br />

os corpos de seus companheiros, enquanto ao som das<br />

trompas de retirada os orcs retornavam à Floresta Dourada,<br />

onde a luta contra os elfos negros continuava acirrada.<br />

Ainda que centenas de orcs tenham sucumbido na<br />

emboscada que Idour havia preparado para os elfos, na Senda<br />

da Morte, não foram menores as baixas do lado de Lasthion,<br />

que se amargurava e se condenava em ter lançado sua legião<br />

àquela desafortunada campanha.<br />

Logo, a noite os cobriu com seu manto de trevas, e uma<br />

vez recuperado os corpos de seus amigos, os Elfos<br />

providenciaram a uma certa distância de onde estavam, uma<br />

enorme pira para queimar a carcaça de inúmeros orcs que<br />

jaziam espalha<strong>dos</strong> pela passagem.<br />

Lasthion, depois que recebera a notícia de que os orcs à<br />

sua retaguarda também haviam cessado as investidas, mas<br />

continuavam cerrando-lhes a passagem de regresso, ordenou<br />

que a vigilância fosse redobrada, temendo que os orcs<br />

pudessem voltar a atacá-los durante a madrugada.<br />

Apesar <strong>dos</strong> temores e da agitação <strong>dos</strong> elfos, nada<br />

aconteceu durante aquela madrugada quente, sufocada pelo<br />

fedor nauseante da carne queimada <strong>dos</strong> orcs mortos, que<br />

espalhou-se pelo ar ao som <strong>dos</strong> tambores agourentos <strong>dos</strong><br />

Baraidai, que não cessaram um segundo sequer durante toda a<br />

noite.<br />

283


N<br />

CAPÍTULO XXI<br />

Demonstração de poder<br />

a vasta Planície de Ouro, mais precisamente na orla leste<br />

da Floresta Dourada, continuavam posiciona<strong>dos</strong> os anões<br />

de Bakkin, aguardando impacientes, uma decisão de seu rei.<br />

O dia começava a clarear lentamente. Aos poucos, o rei<br />

anão podia observar com maior clareza a densa névoa que<br />

emergia da floresta, como que estivesse clamando por ajuda<br />

em sua agonia, ainda ardendo em chamas nos diversos pontos<br />

onde os goblins batalharam contra os elfos negros durante<br />

toda a madrugada.<br />

A batalha sucedera sob a incessante chuva de setas<br />

flamejantes atiradas pelos orcs da tribo Baraidai, do cimo das<br />

Montanhas Negras, que não tiveram qualquer preocupação<br />

com os goblins e não economizaram óleo, fogo ou setas,<br />

disparando a esmo penhasco a baixo, em direção à Floresta<br />

Dourada, condenando à morte tanto seus alia<strong>dos</strong> goblins<br />

quanto os elfos negros.<br />

Bakhin contemplava o cenário medonho provocado por<br />

aquela névoa que subia por toda parte, quando foi informado<br />

por seus batedores de que os goblins ainda estavam lutando<br />

contra os elfos negros em uma batalha desigual, pois os orcs<br />

da tribo Baraidai haviam se unido a eles no final da<br />

madrugada para a luta corpo-a-corpo. Com um profundo<br />

suspiro, depois de certa relutância e sofrendo o peso da


insatisfação e ansiedade de suas tropas, finalmente resolvera<br />

intervir.<br />

— É chegada a hora! É chegada a hora em que os elfos<br />

lembrar-se-ão do dia em que os anões de Bakkin salvaram<br />

seus irmãos negros das garras horrendas <strong>dos</strong> orcs! Avante<br />

guerreiros de Bakkin! Pelos túmulos de nossos ancestrais,<br />

avante! Mostremos a essas criaturas asquerosas o valor de<br />

nossa raça!<br />

E ao ouvir essas palavras, os anões de Bakkin seguiram<br />

seu rei adentrando a Floresta Dourada sem hesitar, toma<strong>dos</strong><br />

por uma fúria acumulada em séculos contra os goblins e os<br />

orcs.<br />

À medida que avançavam e encontravam focos de<br />

goblins dispersos do corpo principal de suas hostes, os anões<br />

os massacravam sem sofrer qualquer baixa, aumentando seu<br />

moral e confiança, gradativamente.<br />

Brandindo seus enormes macha<strong>dos</strong> de batalha de duas<br />

achas, varriam tudo o que encontravam pela frente, e a<br />

despeito dessa guerra ser travada dentro de uma floresta, o<br />

que não lhes permitia utilizar seus carros de guerra, os anões<br />

estavam avançando com uma velocidade razoável, cobrindo<br />

vários trechos mapea<strong>dos</strong> por Bakhin como sendo os mais<br />

importantes pontos possivelmente ocupa<strong>dos</strong> por seus<br />

inimigos.<br />

Mas Bakhin não sabia que o líder daquela contenda era<br />

Idour, o engenhoso elfo negro que traiu sua própria raça em<br />

troca de poder e riqueza, e ainda não sabia a dimensão exata<br />

do que estava enfrentando, acreditando estar diante apenas de<br />

um amontoado e desordenado grupo de goblins e orcs. Não<br />

foram apenas os elfos <strong>dos</strong> grandes reinos que estiveram cegos<br />

durante os últimos anos, mas também os anões, que pagariam<br />

caro por essa negligência da vigilância.<br />

Idour, mergulhado em sua ambição, arquitetara seus<br />

planos há muito tempo, tendo preparado tudo<br />

meticulosamente, antevendo os possíveis passos que seus<br />

285


inimigos poderiam dar. Sabia que estaria pondo em risco sua<br />

própria vida naquele macabro jogo de combates, se fosse<br />

derrotado. Não obstante, procurou garantir sua vitória não só<br />

com sua astúcia e argúcia, mas também com suas habilidades<br />

militares. Preparou uma surpresa para a batalha decisiva, que<br />

seria usada naquele mesmo dia que parecia estar destinado à<br />

glória <strong>dos</strong> valorosos anões guerreiros de Bakkin.<br />

<br />

Os elfos de Eluannar, sob o comando de Lasthion,<br />

voltaram a marchar pela Senda da Morte rumo à Floresta<br />

Dourada, tão logo perceberam que o dia estava preste a se<br />

anunciar, após uma terrível noite insone. Desviando <strong>dos</strong> restos<br />

mortais <strong>dos</strong> orcs que não haviam sido crema<strong>dos</strong>, e ainda<br />

recuperando alguns cadáveres de elfos que não haviam sido<br />

identifica<strong>dos</strong> durante a noite, lentamente foram se<br />

aproximando da floresta, ainda sob o terrível som <strong>dos</strong><br />

tambores orcs, que aumentava à mesma proporção em que se<br />

aproximavam do final da senda.<br />

Durante a caminhada, Michel aproveitou a distração de<br />

seu irmão, que seguia ao lado de Peter e Leon, para<br />

aproximar-se de Grassac com o intuito de sondar o que este<br />

teria conversado com seu irmão, já que ficaram juntos toda a<br />

madrugada, afasta<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> demais companheiros.<br />

— Espero que a loucura da sangrenta batalha não tenha<br />

lhe obliterado o juízo durante a madrugada, e não tenhas<br />

cedido à tentação de revelar a meu pobre irmão o que se<br />

passou entre eu e Sindazel. — disse Michel, em tom sarcástico.<br />

— Procure satisfazer sua curiosidade diretamente com<br />

seu irmão, e lhe imploro, pela Santa Virgem, que não volte a<br />

dirigir-me a palavra, pois não terei misericórdia de ti, cão, se<br />

insistires em me importunar com tua falsidade e arrogância.<br />

— retrucou Grassac, mostrando que ficara extremamente<br />

irritado com a inoportuna abordagem.<br />

286


Temendo a atitude de Grassac e, ao mesmo tempo,<br />

desejando irritá-lo, Michel insistiu numa tentativa<br />

desafortunada de convencê-lo a manter silêncio sobre o<br />

ocorrido, dizendo:<br />

— Espero, já que mencionaste o santo nome da Santa<br />

Virgem, que, como filho de um Cavaleiro Templário, tenhas<br />

melhor discernimento em relação à sua amizade com meu<br />

irmão do que vosso pai possa ter mostrado com outros de sua<br />

pervertida ordem.<br />

Neste momento, Grassac perdeu o controle e partiu<br />

violentamente para cima de Michel. Os dois rolaram pelo solo<br />

ainda umedecido, uma lama formada de terra e sangue da<br />

batalha do dia anterior, entre socos e pontapés, como se<br />

fossem dois arruaceiros comumente encontra<strong>dos</strong> em tabernas<br />

de baixa categoria.<br />

Espanta<strong>dos</strong>, sem entender o que se passava, os elfos<br />

correram para apartar a briga, afastando-os em meio a uma<br />

incessante troca de impropérios. Logo, to<strong>dos</strong> os que seguiam à<br />

frente da legião se aproximaram do tumulto ocasionado pelos<br />

dois, para averiguarem o que estava acontecendo.<br />

Etiènne, incrédulo, ao ver seu irmão e seu grande amigo<br />

como protagonistas daquela degradante cena diante de to<strong>dos</strong><br />

aqueles elfos e de seus outros companheiros homens,<br />

esbravejou furioso, repreendendo-os por uma atitude tão<br />

vergonhosa num momento como aqueles, onde centenas de<br />

elfos haviam sacrificado suas vidas na batalha. Sem saber o<br />

exato motivo da briga <strong>dos</strong> dois, descarregando todo seu<br />

nervosismo e tensão acumula<strong>dos</strong> devido à situação em que se<br />

encontravam, Etiènne explodiu em lágrimas após a repreensão<br />

que submetera a seu irmão e a Grassac, coisa que jamais<br />

pensou fazer algum dia.<br />

Os elfos o olharam com compaixão, entendendo que<br />

Etiènne estava tomado pelo desespero, como já haviam<br />

presenciado muitas vezes em seus próprios companheiros,<br />

quando de suas primeiras experiências em batalhas.<br />

287


Leon aproximou-se de Etiènne, que caíra de joelhos e<br />

tinha seu rosto mergulhado em ambas as mãos, e o abraçou,<br />

ajudando-o a se erguer para logo em seguida afastá-lo do<br />

tumulto.<br />

Grassac obteve o apoio de Peter e de seu antigo amigo,<br />

Alain Dumas, enquanto Michel, totalmente envergonhado<br />

pelo acontecido, teve o apoio alentador de Althinor, que<br />

cuida<strong>dos</strong>amente procurou estancar o sangue que lhe escorria<br />

pelo rosto, minando de um pequeno corte em seu supercílio.<br />

Lasthion chamou Lothanir e outros dois elfos que<br />

estavam próximos, ordenando-lhes que cuidassem de Michel<br />

durante o resto do percurso que ainda faltava cruzar para<br />

alcançarem a floresta. Caminhou até Grassac para certificar-se<br />

de que estava tudo em ordem. Constatou com alívio que<br />

estava bem, a não ser por algumas escoriações que não eram<br />

tão sérias e não poderiam comprometer sua destreza com a<br />

espada durante os próximos combates.<br />

Permitindo-se ao silêncio, a fim de respeitar os<br />

prováveis problemas que os homens tinham entre si, Lasthion<br />

não comentou o incidente, e em tom firme, ordenou que a<br />

marcha continuasse.<br />

Durante o resto do trajeto, Michel e Grassac trocaram<br />

olhares incendia<strong>dos</strong> várias vezes, mas mantiveram-se à<br />

distância um do outro. Etiènne, ainda envergonhado, não só<br />

pela atitude de seus companheiros mas principalmente pela<br />

sua explosão de nervos diante da legião élfica, seguiu ao lado<br />

de Peter evitando tanto Michel quanto Grassac.<br />

Quando finalmente a legião de Lasthion avistou entre as<br />

brumas, mais uma vez, os primeiros arbustos da floresta, o<br />

som <strong>dos</strong> tambores orcs pareciam se afastar. Toma<strong>dos</strong> pelo<br />

desejo de sair logo daquele desfiladeiro fatal, to<strong>dos</strong><br />

aumentaram o ritmo da marcha para que atingissem logo a<br />

floresta.<br />

À medida em que deixavam o desfiladeiro, foram<br />

tomando o rumo da direção sul da floresta, caminho que os<br />

288


levaria diretamente para a Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros,<br />

onde esperavam encontrar abrigo para os feri<strong>dos</strong>, além de<br />

resistir até a chegada <strong>dos</strong> reforços da legião comandada por<br />

Tarlhion.<br />

Caminhavam apressa<strong>dos</strong> utilizando uma velha trilha<br />

conhecida por Lasthion, mas volta e meia eram aborda<strong>dos</strong> por<br />

pequenas hostes de goblins afoitos que, a despeito de os<br />

atrasarem, eram facilmente elimina<strong>dos</strong> pelos experientes<br />

guerreiros elfos.<br />

Já haviam percorrido cerca de duas milhas floresta<br />

adentro, em direção ao sul, quando ouviram um estrondo<br />

ensurdecedor e sentiram a terra tremer violentamente sob seus<br />

pés. Gritos desespera<strong>dos</strong> podiam ser ouvi<strong>dos</strong> provenientes de<br />

várias direções, deixando a to<strong>dos</strong> ainda mais aterroriza<strong>dos</strong>. O<br />

que teria provocado aquilo? Indagavam-se uns aos outros<br />

quando outro estrondo, ainda mais perto, fez o chão<br />

estremecer outra vez, violentamente.<br />

Percebendo que alguma arma misteriosa estava<br />

provocando aquele pavoroso estrago, Lasthion ordenou a seus<br />

solda<strong>dos</strong> que redobrassem a velocidade. Em pouco tempo, em<br />

meio a outros estron<strong>dos</strong> misteriosos, logo estavam entregues a<br />

uma correria desenfreada que só fora contida quando um<br />

agudo assobio, seguido de um estrondo imensurável, os<br />

mergulhou em desgraça. Finalmente, tiveram a infelicidade de<br />

descobrir a que se deviam aqueles estron<strong>dos</strong> que faziam o<br />

chão tremer, pois bem no meio das fileiras da legião de<br />

Lasthion, um pesado projétil flamejante dizimou quase<br />

metade do sexto regimento.<br />

A imagem causada pela poderosa arma misteriosa era<br />

aterradora, em meio às chamas que logo começaram a devorar<br />

tudo e to<strong>dos</strong> que estavam próximos a um raio de<br />

aproximadamente vinte metros do ponto de impacto. <strong>Era</strong><br />

possível ver vários elfos correndo e gritando como<br />

verdadeiras labaredas vivas, logo jazendo carboniza<strong>dos</strong> no<br />

solo. Vários que não foram atingi<strong>dos</strong> pelo fogo ficaram<br />

289


aturdi<strong>dos</strong> pelo impacto, alguns com as mãos cobrindo suas<br />

orelhas pontudas que sangravam com o rompimento de seus<br />

tímpanos.<br />

O fogo e o desespero dividiu a legião de Lasthion.<br />

Muitos se afastaram do corpo principal da tropa,<br />

embrenhando-se floresta a dentro, agonia<strong>dos</strong>, em várias<br />

direções diferentes tentando sair daquele inferno.<br />

Em meio àquela confusão, Etiènne chamou a atenção de<br />

Lasthion para um grupo de elfos negros, to<strong>dos</strong> vestindo<br />

armaduras de batalha, que avançavam em sua direção pelo<br />

lado esquerdo, onde os homens estavam reuni<strong>dos</strong>. O grupo se<br />

aproximou deles com muita agitação, mas não demonstraram<br />

qualquer sinal de ameaça, a despeito de estarem trajando suas<br />

reluzentes couraças de combate.<br />

Logo, Lasthion reconheceu Udour, o elfo negro que<br />

esteve no Colóquio de Plarionthil e que respondeu por seu<br />

povo naquela ocasião. Udour, por sua vez, também<br />

reconheceu o comandante da combalida legião e se aproximou<br />

para trocar informações, anunciando sua total desolação com<br />

o rumo <strong>dos</strong> acontecimentos.<br />

A situação era ainda pior do que se podia esperar.<br />

Udour contou a Lasthion e seus companheiros que a Cidade<br />

Oculta <strong>dos</strong> elfos negros fora violentamente massacrada. A<br />

resistência havia durado por toda a madrugada, mas<br />

sucumbiu logo aos primeiros raios de luz daquele dia, que se<br />

anunciou como o crepúsculo <strong>dos</strong> elfos negros.<br />

Quase a ponto de desistir de tudo, naquele momento de<br />

loucura em que um general se vê diante da derrota iminente,<br />

Lasthion, encarando as faces quase sem vida de seus solda<strong>dos</strong>,<br />

notando os semblantes suplicantes por algum milagre que os<br />

pudesse salvar, conteve-se. Não podia permitir-se abater tão<br />

profundamente a ponto de entregar-se à desolação, porque<br />

estavam a seu lado os valorosos homens que tão bravamente<br />

resistiram na Senda da Morte.<br />

290


O general elfo olhou a desolação ao seu redor, e pousou<br />

seu olhar sobre os olhos de Etiènne, que segurava seus<br />

pequenos macha<strong>dos</strong> de batalha, um em cada mão,<br />

aguardando com grande ansiedade uma ordem que pudesse<br />

executar. Estava desfigurado, exausto, cheio de olheiras e com<br />

a face sombria, da mesma forma como ficam aqueles que<br />

esperam a morte.<br />

Percebendo que Lasthion estava perdendo o controle da<br />

situação, que por sua vez era realmente desesperadora, Leon<br />

caminhou até seu amigo elfo e o indagou secretamente sobre o<br />

destino a que estariam fada<strong>dos</strong>, uma vez que estavam<br />

praticamente sem lugar para onde ir. Não restavam muitas<br />

opções, teriam que voltar para a Senda da Morte e tentar<br />

retornar ao lado oeste de <strong>Virgo</strong>, ou tentar uma derradeira<br />

investida contra a cidade tombada <strong>dos</strong> elfos negros, na<br />

esperança de, uma vez lá, resistirem até a chegada da legião<br />

de Tarlhion.<br />

Mal houve tempo para que deliberassem sobre a melhor<br />

decisão a tomar, porque tão logo Leon se aproximou de<br />

Lasthion, vários gritos de alerta puderam ser ouvi<strong>dos</strong> de to<strong>dos</strong><br />

os la<strong>dos</strong>. Os orcs surgiram e se lançaram impie<strong>dos</strong>amente<br />

sobre elfos e homens, que atônitos, se defenderam como<br />

puderam.<br />

Mas esta última investida <strong>dos</strong> ferozes orcs, foi a mais<br />

cruel e a que causou as mais importantes baixas na legião de<br />

Lasthion e seus alia<strong>dos</strong> homens. Surgiam aos montes de to<strong>dos</strong><br />

os la<strong>dos</strong>, obrigando o grupo a se dividir para que pudessem<br />

defender os flancos direito e esquerdo, bem como a<br />

retaguarda. Em pouco tempo, tornaram-se pequenos grupos<br />

isola<strong>dos</strong> e cerca<strong>dos</strong>, afasta<strong>dos</strong> uns <strong>dos</strong> outros, tentando<br />

rechaçar o furioso ataque das hostes malignas.<br />

Na defesa do flanco esquerdo, Etiènne tombara ferido<br />

mortalmente com três setas cravadas em seu peito, e duas em<br />

sua perna esquerda. Peter, que tentou defendê-lo tanto quanto<br />

pôde, teve seu braço direito decepado por um terrível orc que<br />

291


causava pavor a to<strong>dos</strong> que combatia, brandindo sua<br />

imponente cimitarra com toda fúria que lhe era possível. Mas<br />

antes de tombar, conseguiu cravar um punhal no coração do<br />

orc, ao mesmo tempo que o cavaleiro Lothanir traspassou o<br />

ventre da criatura hedionda, que ao sucumbir, acabou caindo<br />

por sobre sua última vítima.<br />

Em outro ponto mais distante, os que haviam se dirigido<br />

para defender a retaguarda também haviam sido dizima<strong>dos</strong>.<br />

Os dois únicos sobreviventes foram salvos graças à inusitada<br />

retirada <strong>dos</strong> orcs, que pareciam ter percebido que logo<br />

estariam cerca<strong>dos</strong> pelas chamas que vinham devorando a<br />

floresta. Entre estes sobreviventes, estava Grassac, que jazia<br />

sobre uma poça de seu próprio sangue com uma ferida muito<br />

feia em sua perna, sem a mínima condição de caminhar.<br />

Arrastou-se até um arbusto e lá ficou, estirado, ofegante,<br />

sofrendo e orando para que alguém o pudesse resgatar. Olhou<br />

ao redor e constatou que os vários elfos que o acompanhavam<br />

na defesa da retaguarda jaziam dilacera<strong>dos</strong> por toda parte.<br />

Não conseguindo mais ver qualquer movimentação adiante,<br />

supôs que a contenda chegara ao fim, sem entretanto acreditar<br />

que poderia sair vivo daquele lugar.<br />

O outro sobrevivente, que havia lutado no grupo da<br />

retaguarda, era Michel Montbard, que encontrou Grassac<br />

solitário em meio às folhagens do arbusto. O destino colocava<br />

em suas mãos a vida daquele que guardava um segredo que<br />

poderia destruir sua amizade com seu irmão Etiènne.<br />

Ao se aproximar de Grassac, os dois se entreolharam<br />

longamente, antes que Michel quebrasse o gelo. Sem qualquer<br />

compaixão pelo amigo moribundo, dirigiu-se a ele de forma<br />

arrogante, desprezando sua sorte.<br />

— Então, aí está o valente Grassac, caído sem o habitual<br />

ar de arrogância que lhe é peculiar. — Grassac gemeu e<br />

contorcendo-se de dor, procurou sentar-se, apoiando-se sobre<br />

as mãos. Seu olhar estava incendiado de ódio por Michel,<br />

292


ainda incrédulo que Deus o tivesse abandonado naquelas<br />

circunstâncias.<br />

— Seu cão, maldito! — vociferou Grassac, indignado —<br />

Faz logo o que teu perverso coração manda, traidor.<br />

Aproveita-te enquanto estou ferido e desarmado, pois só<br />

assim poderá silenciar-me! Se eu sair vivo desta guerra, direi a<br />

Etiènne o canalha que és!<br />

— É uma grande tentação, — respondeu Michel — mas<br />

tenho uma dívida com você, por ter me tirado da masmorra<br />

do castelo de Martin Lacroix, em Amiens, de forma que meu<br />

senso de generosidade obriga-me a não me aproveitar da<br />

situação.<br />

— Pois então, que me ajude a sair deste inferno!<br />

— De forma alguma! O fato de não lhe tirar a vida não<br />

quer dizer que o ajudarei a sair daqui. Deixo-te a tua própria<br />

sorte, e que você consiga se livrar <strong>dos</strong> orcs de acordo com tua<br />

bravura soberba. Mas creio que os orcs não venham mais te<br />

importunar, pois logo a floresta inteira estará ardendo em<br />

chamas. Adeus, filho de templário, espero que São Pedro o<br />

receba com alegria quando entrares no Céu! — Após dizer<br />

essas palavras, Michel deixou Grassac para trás, entregue a<br />

sua própria sorte, e partiu ouvindo as imprecações de seu<br />

antigo companheiro.<br />

<br />

Michel ainda teve de caminhar cerca de meia milha a<br />

procura <strong>dos</strong> outros até conseguir encontrar o grupo. Quando<br />

finalmente se aproximou, foi tomado por um incrível<br />

desespero ao constatar que muitos haviam perecido na<br />

sangrenta batalha. Notou que Leon estava agachado ao lado<br />

do corpo de Lasthion, tentando consolar Althalion, seu filho,<br />

que pranteava inconsolável a perda do pai. To<strong>dos</strong> estavam<br />

inconforma<strong>dos</strong> com a queda do valoroso comandante elfo.<br />

Os fiéis lanceiros Asgadhir e Althinor, depois de muita<br />

resistência na tentativa de defender seu líder, também haviam<br />

293


tombado a seu lado. Michel, ficou apreensivo com o estado de<br />

seu irmão. Olhou ao redor tentando localizá-lo, mas foi<br />

Lothanir, quem o avistou primeiro e veio lhe informar sobre a<br />

sorte de seu irmão.<br />

Lothanir explicou que no calor da batalha, haviam se<br />

separado do grupo principal para defender o flanco esquerdo,<br />

mas que infelizmente muitos haviam tombado, como o<br />

próprio Udour, irmão do traidor Idour, e muitos de seus<br />

companheiros elfos, tanto da legião do falecido Lasthion<br />

quanto <strong>dos</strong> combatentes elfos negros. Após uma breve pausa,<br />

revelou que Peter e Etiènne estavam gravemente feri<strong>dos</strong>, o<br />

primeiro com um braço amputado, e o outro, seu irmão,<br />

provavelmente não teria chances de sobreviver se não fosse<br />

tratado o mais rapidamente possível.<br />

Michel ficou transtornado naquele momento. Sua<br />

apreensão não pôde ser aplacada nem mesmo ao ver que o<br />

corpo de Etiènne estava sob os cuida<strong>dos</strong> emergenciais de dois<br />

elfos, curandeiros oficiais da legião. Então, lembrou-se de<br />

Sindazel, e intimamente, entre a dor de ter traído seu irmão e a<br />

louca paixão que sentia pela Vangi, desejou que ela pudesse<br />

estar ali para curar seu amado irmão com seus poderes<br />

magníficos.<br />

Percebendo a presença de Michel, Alain aproximou-se e<br />

indagou sobre o destino de seu amigo Grassac e <strong>dos</strong> outros<br />

que haviam lutado na retaguarda. Uma sombra passou pela<br />

mente de Michel, como que lembrando da atitude covarde que<br />

tivera com seu antigo companheiro. Mas Michel, com um<br />

cinismo teatral, alegou que teria visto Grassac morto, e que as<br />

chamas já estavam consumindo tudo onde haviam perdido a<br />

luta na tentativa de rechaçar os orcs. Alain, ainda tentou<br />

insistir com Michel de que gostaria de voltar ao local onde o<br />

amigo perecera, para certificar-se de que ele realmente estava<br />

morto, mas ele o dissuadiu desta idéia.<br />

Michel, garantindo que ele próprio tinha verificado o<br />

corpo de Grassac e que não havia mais nada o que fazer pelos<br />

294


mortos, alegou que tinham que ser breves em ajudar aos que<br />

ainda estavam vivos e feri<strong>dos</strong>, entre estes, seu próprio irmão,<br />

Etiènne.<br />

Vasculharam apenas as proximidades, sem, entretanto,<br />

se distanciarem até o local onde Grassac havia tombado. A<br />

desolação era enorme, e tão logo organizaram o que restou da<br />

devastação, seguiram em direção à Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos<br />

negros, ao comando de Althalion que automaticamente<br />

assumiu o comando no lugar de seu pai. Althalion resolvera<br />

adotar a estratégia de seu pai, que consistia em retomar a<br />

cidade <strong>dos</strong> elfos negros para que pudessem se defender e<br />

resistir até que chegassem reforços da legião de Tarlhion ou<br />

<strong>dos</strong> guerreiros anões lidera<strong>dos</strong> pelo rei de Bakkin.<br />

Assim como seu pai, Althalion, também não imaginava<br />

que tais reforços jamais chegariam.<br />

<br />

Tarlhion, naquela mesma manhã enquanto Lasthion era<br />

atacado dentro da floresta, ao desembarcar nas proximidades<br />

do Pântano Hibrittatus, fora emboscado pelos orcs Maradai e<br />

tivera muitas baixas em suas fileiras. Não conseguindo<br />

atravessar as Montanhas Negras, ficara acampado diante da<br />

pequena planície que se estendia diante da Senda da Morte,<br />

aguardando que alguns batedores lhe pudessem trazer<br />

informações mais precisas sobre o que se passava do outro<br />

lado.<br />

Tendo sua legião combalida e sem o retorno <strong>dos</strong><br />

batedores que haviam sido captura<strong>dos</strong> e elimina<strong>dos</strong> pelos orcs<br />

que ainda se encontravam próximos à entrada da Senda da<br />

Morte pelo lado oeste, Tarlhion não teve outra alternativa e foi<br />

obrigado a manter posição defensiva.<br />

O rei Bakhin, por sua vez, após ter comandado uma<br />

investida magnífica diante <strong>dos</strong> goblins e <strong>dos</strong> Baraidai floresta<br />

adentro, fora surpreendido pela poderosa arma de Idour e<br />

teve muitas baixas em seu exército, ficando finalmente cercado<br />

295


ao norte da Floresta Dourada, sem condições sequer de ajudar<br />

a si próprio, esperando também a ajuda de reforços,<br />

maldizendo a si próprio por não ter dado ouvi<strong>dos</strong> a seu primo<br />

Guthin, que o havia alertado sobre as proporções daquela<br />

maldita guerra.<br />

Os da<strong>dos</strong> da sorte estavam lança<strong>dos</strong>, mas o cenário que<br />

se desenhava era desesperador tanto para os que vieram<br />

socorrer os elfos negros, quanto para os que vieram defender a<br />

Floresta Dourada, dependendo se a causa era comentada por<br />

elfos ou por anões.<br />

<br />

Nem sempre o destino que nos aguarda é exatamente o<br />

mesmo que acreditamos ser e, a despeito de nossos mais<br />

desesperadores momentos, uma mudança pode ocorrer a<br />

qualquer instante, alterando por completo o estado das coisas<br />

que se apresentam diante de nossas vidas. Assim foi, que<br />

naquele início de tarde quando, diante da orla leste da Floresta<br />

Dourada chegou o imponente exército de Sombrorn, com mais<br />

de quarenta mil guerreiros elfos formando um verdadeiro<br />

oceano de combatentes tomando grande extensão da Planície<br />

de Ouro.<br />

Ao contrário das legiões de Eluannar e do limitado<br />

exército de Bakkin, as legiões de Sombrorn vieram preparadas<br />

para uma guerra de grandes proporções, trazendo centenas de<br />

equipamentos e instrumentos de guerra, além de todo suporte<br />

logístico necessário a uma campanha de longa duração. O<br />

exército de Aurien, não viera para uma batalha, mas sim, para<br />

uma verdadeira guerra. Viera disposto a perseguir seus<br />

inimigos até os confins da Thalide.<br />

Idour, sabendo que um grande número de orcs havia<br />

perecido nos dois primeiros dias de combate, estava cônscio<br />

de que a aliança <strong>dos</strong> exércitos orcs sob seu comando não seria<br />

suficiente para combater as legiões de Sombrorn; além disso,<br />

tendo sua mortífera engenhosidade se danificado pelo<br />

296


excessivo uso, ordenou retirada total, recuando através das<br />

Colinas Íngremes, buscando refúgio nos longínquos redutos<br />

<strong>dos</strong> orcs Trumadai ao norte de <strong>Virgo</strong>, na região vulcânica.<br />

Encontrando poucos focos de resistência dentro do que<br />

restava da Floresta Dourada, as primeiras incursões realizadas<br />

pelos solda<strong>dos</strong> de Sombrorn foram suficientes para conseguir<br />

resgatar Bakhin e o que restara de seus três contingentes, bem<br />

como, Althalion e os sobreviventes que estavam com ele.<br />

Os maiores obstáculos para os guerreiros de Sombrorn<br />

foram os incêndios e as densas nuvens de fumaça que cobriam<br />

todo o lugar, mas no final, conseguiram resgatar a grande<br />

maioria <strong>dos</strong> feri<strong>dos</strong> que estavam perdi<strong>dos</strong> ou encurrala<strong>dos</strong>.<br />

Havia uma quantidade incomensurável de mortos<br />

carboniza<strong>dos</strong> dentro da floresta, e para tristeza <strong>dos</strong> elfos,<br />

praticamente toda a raça de elfos negros havia sucumbido<br />

naquele dia fatídico.<br />

Nem to<strong>dos</strong> os corpos puderam ser resgata<strong>dos</strong>, mas no<br />

final daquela tarde, haveria um sepultamento simbólico pelos<br />

que pereceram em defesa <strong>dos</strong> elfos negros. Um monumento<br />

aos mortos seria erguido diante da dizimada Floresta Dourada<br />

para que to<strong>dos</strong>, ao passar por aquele local, pudessem se<br />

lembrar <strong>dos</strong> irmãos, filhos e companheiros que ali ofereceram<br />

suas vidas em combate pela proteção de sua raça.<br />

297


Q<br />

CAPÍTULO XXII<br />

Nas mãos do destino<br />

uando a noite caiu trazendo sua escuridão, a dor e o<br />

sofrimento estavam presentes entre os sobreviventes que<br />

haviam sido salvos pelo exército de Sombrorn. O pequeno<br />

grupo de Althalion estava reunido ao redor de uma fogueira,<br />

conversando acerca da desdita que os acompanhara nos dois<br />

dias de batalha que calaram para sempre, muitos de seus<br />

destemi<strong>dos</strong> companheiros.<br />

Passariam aquela noite sob a proteção de seus<br />

salvadores, recebendo to<strong>dos</strong> os cuida<strong>dos</strong> que pudessem ser<br />

observa<strong>dos</strong> pelos atenciosos elfos de Sombrorn. A despeito do<br />

que diziam sobre aquele reino, eram na verdade os elfos mais<br />

dedica<strong>dos</strong> para com seus iguais, sem jamais reclamar pela<br />

devolução <strong>dos</strong> favores que sempre prestavam aos elfos <strong>dos</strong><br />

demais quatro reinos de <strong>Virgo</strong>.<br />

Entre os elfos de Eluannar, porém, um pouco mais<br />

afasta<strong>dos</strong> da fogueira principal onde estava Althalion,<br />

estavam Michel, Leon e Alain, apreensivos com a situação de<br />

Etiènne, que naquele exato momento estava na tenda <strong>dos</strong><br />

curandeiros de Sombrorn. Aguardavam impacientes o retorno<br />

de algum elfo que pudesse lhes esclarecer sobre o que se<br />

passava com Etiènne, e principalmente, sobre o seu estado de<br />

saúde. Sabiam que era deveras grave, mas queriam acreditar<br />

que ele pudesse ser salvo pelas mãos daquela raça tão exótica.<br />

298


Aguardaram quase três horas até que aparecesse algum<br />

elfo para lhes trazer notícias. Olharam aflitos, quando<br />

perceberam que um <strong>dos</strong> elfos curandeiros de Eluannar que<br />

havia socorrido Etiènne na floresta após sua queda, vinha em<br />

direção a eles. Michel se antecipou ao elfo. Tomado pela<br />

ansiedade e ávido por notícias de seu irmão, agarrou-o pelos<br />

braços e olhou profundamente em seus olhos.<br />

— Nobre amigo, por favor, me diga, como está meu<br />

irmão? Ele está bem? Poderá ser salvo?<br />

O elfo, com um olhar impassível, demonstrou uma<br />

ligeira insatisfação com a forma insolente pela qual fora<br />

abordado por Michel; não obstante, compreendia sua aflição e<br />

logo suavizou seu rigoroso olhar, deixando de franzir o cenho.<br />

— Caríssimos, infelizmente, as notícias que vos trago<br />

não são as melhores. — o elfo fez uma pequena pausa,<br />

olhando para os outros que estavam ao lado de Michel. — O<br />

estado de vosso amigo é gravíssimo, e nada podemos fazer<br />

com o material que temos disponível, tampouco, com o<br />

material que os elfos de Sombrorn trouxeram consigo. Será<br />

preciso que o vosso amigo siga para o reino de Sombrorn, que<br />

é o mais próximo de to<strong>dos</strong> os nossos reinos élficos, e talvez, o<br />

único onde possa haver poderosos elfos curandeiros que<br />

venham a salvar sua vida.<br />

Os amigos se entreolharam, estupefatos, não querendo<br />

acreditar que a situação pudesse ser tão grave.<br />

Michel ficara lívido com a notícia, e com uma voz<br />

alquebrada, quase sem som, indagou — Mas é tão grave<br />

assim? Será que haverá tempo hábil para chegar até<br />

Sombrorn? Será que ele vai agüentar?<br />

— Acredite-me! — respondeu o elfo. — Não há outra<br />

esperança para vosso amigo, a não ser que seja conduzido<br />

deste local para Sombrorn, onde terá melhor assistência e uma<br />

chance, ainda que pequena, de sobreviver. Mas se ele<br />

299


permanecer aqui, ou se for levado para outro local, certamente<br />

encontrará a morte.<br />

Michel continuava pálido como o brilho de uma lua<br />

cheia, e caiu de joelhos, levando as mãos ao rosto sem<br />

acreditar no que estava acontecendo. Leon aproximou-se do<br />

amigo e agachou-se a seu lado, tentando confortá-lo. Passou o<br />

braço sobre seu ombro, sussurrou algumas palavras de<br />

consolo ao seu ouvido dizendo-lhe que chorar seria bom<br />

naquele momento, como que incentivando-o a não tentar<br />

conter sua tristeza. Alain Dumas, um pouco mais recatado e<br />

sem ter qualquer intimidade com Michel, preferiu ficar a certa<br />

distância, respeitando o momento de dor do companheiro de<br />

Leon.<br />

— Uma comitiva partirá logo ao amanhecer com destino<br />

à Sombrorn, levando vosso amigo — disse o elfo.<br />

Michel ergueu o rosto em direção ao elfo, ainda com os<br />

olhos mareja<strong>dos</strong> de tristeza. — Eu acompanharei meu irmão.<br />

Não o deixarei sozinho — afirmou.<br />

— Lamento — retrucou o elfo, — mas isso não será<br />

possível, pois o reino de Sombrorn não recebe aqueles que não<br />

tenham sido previamente convida<strong>dos</strong>. É um reino fechado. A<br />

rainha Aurien é muito austera quanto às regras de seu reino.<br />

— Mas eu já estive antes em Sombrorn. Ela não me<br />

negará entrar ao lado de meu irmão.<br />

— Entretanto, a rainha não está presente no momento,<br />

de forma que os elfos que retornarão ao reino conduzindo<br />

vosso irmão não aceitarão que outra pessoa os acompanhe.<br />

Ademais, amanhã cedo, no mesmo horário vós partireis com<br />

cinco legiões para o lado oeste da Thalide. Poderão retornar<br />

com toda segurança aos vossos lares.<br />

Michel baixou a cabeça, percebendo que seria inútil<br />

tentar convencer ao elfo de que ele iria acompanhar seu irmão,<br />

e preferiu deixar a questão para a manhã seguinte junto aos<br />

elfos de Sombrorn, na expectativa de convencê-los.<br />

300


Apesar da angústia e medo que dominavam os corações<br />

daqueles três homens e <strong>dos</strong> elfos de Eluannar, a madrugada<br />

transcorreu quieta, a não ser por algumas gargalhadas que<br />

surgiam de tempos em tempos nas rodas <strong>dos</strong> solda<strong>dos</strong> de<br />

Sombrorn, que ainda não haviam sentido a amargura da<br />

derrota e ainda estavam confiantes em sua tremenda força.<br />

Aguardavam ansiosos o alvorecer para iniciar a perseguição<br />

aos orcs que haviam recuado para o cimo das Montanhas<br />

Negras.<br />

Entre um e outro comentário, olhavam de soslaio para os<br />

sentinelas de Sombrorn, austeros, com suas reluzentes<br />

armaduras prateadas que, ao brilho das fogueiras, exibiam<br />

uma luminosidade que parecia emanar das próprias placas<br />

metálicas que as constituíam. Os elmos daqueles elfos eram<br />

horripilantes, formavam dois proeminentes bicos pontiagu<strong>dos</strong><br />

que saíam da mandíbula, em formato curvo para cima, como<br />

se fossem duas enormes presas. Acima da viseira, também<br />

apresentavam duas pequenas saliências em forma de curtos<br />

chifres, um logo acima de cada olho. As joelheiras e<br />

cotoveleiras metálicas também eram providas de espetos<br />

pontiagu<strong>dos</strong>, de forma que, numa luta corpo-a-corpo,<br />

pudessem furar seus oponentes em qualquer parte de seu<br />

corpo e a qualquer momento. De repente, pareceu a Michel<br />

que aquelas carcaças metálicas possuíam vida própria,<br />

tamanha era a firmeza com que se portavam em seus postos,<br />

sem um movimento qualquer que pudesse demonstrar que<br />

estavam apenas revestindo um elfo. Já tinha visto sangue e<br />

morte suficientes, mas não conseguiu evitar que viessem à sua<br />

mente imagens daqueles solda<strong>dos</strong> de Sombrorn confrontando<br />

as terríveis criaturas a que chamavam de orcs. Enquanto<br />

pensava nestas lutas que inevitavelmente se tornariam<br />

realidade a partir do dia seguinte, adormeceu.<br />

<br />

301


Os preparativos para a partida já haviam sido<br />

providencia<strong>dos</strong> e logo ao primeiro sinal de luminosidade, as<br />

trombetas de Sombrorn soaram advertindo as legiões, que era<br />

chegada a hora da partida. Muitos estavam ansiosos em<br />

prosseguir, principalmente os elfos de Eluannar que não<br />

haviam sucumbido nos dois dias de batalha, pois desejavam<br />

mais do que tudo, retornar a seus lares. Mas nem to<strong>dos</strong><br />

partiriam rumo a oeste; um pequeno grupo se preparava para<br />

retornar à Sombrorn, conduzindo o corpo moribundo de<br />

Etiènne numa luxuosa carruagem, na esperança de que sua<br />

vida pudesse ser salva.<br />

Michel se aproximou deste grupo acompanhado de<br />

Alain e Leon, determinado a não deixar que seu irmão fosse<br />

levado sem que pudesse acompanhá-lo. Contudo, ao<br />

chegarem a uma certa distância da carruagem, foram<br />

intercepta<strong>dos</strong> pelo mesmo elfo que na madrugada anterior<br />

advertira Michel de que ele não poderia acompanhar seu<br />

irmão até Sombrorn.<br />

— Amigos, — disse o elfo em um tom brando, querendo<br />

demonstrar simpatia e talvez angariar confiança — eu vos<br />

imploro que não insistam em tentar acompanhar este grupo<br />

até Sombrorn. Vossa presença apenas irá retardar a viagem e<br />

acarretar em futuros problemas.<br />

Michel encarou o elfo com uma terrível ira emanando de<br />

seu olhar, como que exigindo que o elfo se retirasse de sua<br />

frente, antes que ele pudesse passar à agressão física. Seus<br />

companheiros ficaram alarma<strong>dos</strong> com a possibilidade de que<br />

Michel perdesse a paciência e, conseqüentemente, o controle.<br />

O elfo, por sua vez, mudou a fisionomia amigável e assumiu<br />

uma postura mais agressiva, retribuindo o olhar de ferocidade<br />

para seu interlocutor. Ambos ficaram por algum tempo se<br />

consumindo com os olhares incendia<strong>dos</strong>, até que foram<br />

interrompi<strong>dos</strong> por uma voz melodiosa, imediatamente<br />

reconhecida por Michel.<br />

302


— Deixe, Clariothir! Deixe-me conversar com ele alguns<br />

instantes e mostrar-lhe o melhor caminho.<br />

Michel não podia acreditar, mas ao olhar por sobre os<br />

ombros do elfo ao qual a voz se dirigira, constatou com seus<br />

próprios olhos que era Sindazel, magnífica, radiante, belíssima<br />

como mil auroras, quem acabava de sair da carruagem em que<br />

seu irmão havia sido colocado.<br />

O elfo, Clariothir, apenas afastou-se para o lado fazendo<br />

uma mesura em direção à Sindazel, abrindo passagem para<br />

que a Vangi se aproximasse.<br />

Leon e Alain, que até então não haviam estado na<br />

presença de uma vangi, ficaram maravilha<strong>dos</strong> com aquela<br />

criatura esplendorosa caminhando suavemente como se<br />

flutuasse no ar, ao invés de andar. Maravilharam-se com suas<br />

vestes cintilantes e ficaram impressiona<strong>dos</strong> com suas asas<br />

cheias de plumas belíssimas.<br />

— Então, nos reencontramos antes do que eu supunha,<br />

mas infelizmente, diante de uma situação triste e delicada.<br />

Michel, ainda incrédulo, não conseguiu dizer uma<br />

palavra sequer. Travava em seu íntimo uma verdadeira<br />

batalha, porque aquela mulher vangi era agora sua amada,<br />

mas sabia que seu irmão também a amava. Tentou organizar<br />

os pensamentos, mas não conseguiu. Estava visivelmente<br />

abalado e envergonhado diante de Sindazel, como se estivesse<br />

sendo pressionado a escolher um novo caminho, como se<br />

estivesse sendo pressionado, a deixar Sindazel com seu irmão,<br />

mas ao mesmo tempo, o ardente desejo por sua amada o fez<br />

titubear, chegando a pensar se não seria melhor que seu irmão<br />

morresse para que ele pudesse ficar livremente com a vangi.<br />

<strong>Era</strong>m pensamentos horríveis e dolorosos, que invadiram sua<br />

mente como uma onda terrível e devastadora. Não conseguia<br />

se controlar e, para seu desespero, Sindazel desfrutava<br />

horrorizada o privilégio de ler estes pensamentos sombrios e<br />

conflitantes.<br />

303


— Talvez seja melhor que nada seja dito neste momento.<br />

— Sindazel olhou para Michel com certa compaixão, como a<br />

mulher que olha para seu amado sem, contudo, amá-lo da<br />

mesma forma que outrora — Mas preciso insistir na<br />

mensagem de Clariothir. A rainha Aurien não vos permitirá<br />

entrar em Sombrorn.<br />

Michel, com a ajuda de Sindazel, conseguiu sair de sua<br />

luta interior, pois a vangi transmitiu-lhe uma incrível<br />

suavidade com seu olhar, ajudando-o a recuperar-se do<br />

desespero momentâneo. Então, ainda lívido e sem acreditar no<br />

que estava lhe acontecendo, conseguiu balbuciar algumas<br />

palavras.<br />

— Mas o que será de meu irmão? Como deixá-lo aos<br />

cuida<strong>dos</strong> de estranhos?<br />

— Eu sou uma estranha?<br />

— Não, claro que não! Mas eu não sabia que estaria<br />

aqui! Como chegou? Onde está Laicrunallian?<br />

— Ele regressou à Vangilla depois de me deixar com as<br />

legiões da rainha Aurien, a meu pedido. Não quero mais<br />

voltar para meu povo. Na verdade, depois que nos<br />

despedimos, eu decidi reencontrar Etiènne. — Ao dizer isso,<br />

Sindazel inclinou um pouco o rosto e olhou para o chão, sem<br />

conseguir encarar Michel, pois estava naquele exato momento,<br />

insinuando que não mais teriam a mesma intimidade<br />

celebrada antes da guerra.<br />

— Mas, o que aconteceu? — Michel ficou ruborizado<br />

diante da situação. — O que saiu errado comigo?<br />

Sindazel, voltou a olhar para Michel, mas agora, não<br />

com tanta compaixão quanto antes, pois os pensamentos que<br />

lhe roubou, revelaram-lhe muito mais do que havia sido<br />

revelado da primeira vez que se encontraram, ou nas vezes<br />

que estiveram juntos em Sombrorn. Revelara-lhe uma<br />

maldade até então desconhecida, que a decepcionou<br />

profundamente.<br />

304


Ao mesmo tempo, Michel lembrou-se de sua atitude<br />

diante de Grassac, temendo que, de alguma forma, Sindazel<br />

tivesse descoberto sobre o acontecido. Mas isso não era<br />

verdade, até aquele exato momento.<br />

— Então, vossos pensamentos continuam o traindo, e<br />

posso somar com tristeza, mais essa terrível maldade a seus<br />

estranhos atos. Será que essa é a natureza <strong>dos</strong> homens? Será<br />

que vós homens, sois assim tão singularmente instáveis?<br />

Michel estava arrasado, envergonhado de uma forma<br />

que nunca estivera em toda sua vida. Mas nem mesmo seu<br />

arrependimento poderia trazer-lhe de volta a dignidade que,<br />

um dia, Sindazel julgara ter encontrado nele. E para seu<br />

infortúnio a vangi continuou...<br />

— É inacreditável que um ser possa ter essa misteriosa<br />

capacidade de ambigüidade, de bondade e maldade<br />

simultâneas, não se dedicando a um único caminho, tendo<br />

desta forma, um caráter mascarado, fazendo com que se<br />

tornem uma raça tão desprezível quanto não confiável.<br />

Preferia não falar mais sobre isso! O momento é delicado<br />

como eu disse, e se não nos apressarmos, temo que Etiènne<br />

possa morrer. Não julgarei to<strong>dos</strong> os homens ou toda uma raça<br />

pela atitude de apenas um, mas confesso que estou<br />

decepcionada e temerosa de que vosso povo seja todo<br />

constituído <strong>dos</strong> mesmos elementos. Temo por encontrar em<br />

Etiènne, em quem apenas vi a bondade, os mesmos traços de<br />

maldade que você me revelou!<br />

Sindazel fora implacável com Michel, mas sentiu um<br />

certo alívio em poder desabafar daquela forma, a dor que<br />

vinha sentindo por ter se aventurado com ele. Há dias vinha<br />

se consumindo por ter traído, principalmente, aquele que lhe<br />

amava com maior sinceridade e havia lhe dedicado seu<br />

coração.<br />

— Não posso acreditar no que está acontecendo!<br />

305


— Por favor, deixe-nos partir e levar Etiènne, pois meus<br />

poderes apenas serão suficientes para mantê-lo vivo até<br />

chegarmos à Sombrorn. Não tenho como curá-lo, e a única<br />

pessoa que talvez possa fazer isso é a própria rainha Aurien,<br />

com seus profun<strong>dos</strong> conhecimentos de magia.<br />

Michel, voltou-se para seus amigos, que permaneciam<br />

estupefatos com a beleza daquela vangi, e tentou conseguir<br />

apoio em sua causa infrutífera, mas percebeu que estava<br />

verdadeiramente só. Olhou então para o elfo Clariothir, que<br />

agora, sustinha um sorriso tão malicioso quanto triunfante, e<br />

logo percebeu que não tinha mais opções, a não ser resignar-se<br />

diante de Sindazel e permitir sua partida.<br />

— Acredito que o que vou lhe dizer agora não vai surtir<br />

qualquer efeito, mas gostaria que soubesse que, em toda a<br />

minha vida, jamais senti um amor tão grande quanto o que<br />

senti por você, Sindazel. Talvez, em nome desse amor, eu não<br />

tenha conseguido controlar meus impulsos. O medo de perdêla<br />

superou minha sensatez, e levou- me a pensar e fazer coisas<br />

más.<br />

— Michel, — interrompeu Sindazel — isso não é<br />

necessário! Irei retribuir vosso amor tentando salvar a vida de<br />

teu irmão, o qual tenho certeza de que também ama e deseja<br />

bem, do fundo de sua alma.<br />

Michel assentiu com a cabeça e finalmente resignou-se,<br />

amargurado. Sentiu-se derrotado em seu coração.<br />

Sindazel entrou na carruagem acompanhada do elfo<br />

curandeiro, Clariothir, e os dois partiram com um pequeno<br />

séquito de solda<strong>dos</strong> de Sombrorn, rumo à Floresta das<br />

Sombras, região onde ficava aquele povo e sua rainha<br />

feiticeira, Aurien.<br />

Sozinhos, os três homens retornaram para os amigos<br />

elfos de Eluannar e, ao lado de Althalion e Lothanir,<br />

aguardaram pacientemente a partida das legiões que os<br />

306


levariam pela detestada Senda da Morte de volta ao lado oeste<br />

de <strong>Virgo</strong>.<br />

Durante a viagem de regresso, não foram molesta<strong>dos</strong><br />

por nenhum orc. Atravessaram lentamente o que sobrara da<br />

Floresta Dourada, quase totalmente em cinzas e fumaça,<br />

mergulhada numa desolação sem igual. Michel, que estava<br />

profundamente atormentado, ficou mudo durante toda a<br />

viagem.<br />

307


E<br />

CAPÍTULO XXIII<br />

Cicatrizando feridas<br />

tiènne estava deitado em uma cama macia, coberta por<br />

belíssimos lençóis que pareciam ter sido confecciona<strong>dos</strong> a<br />

partir de alguma espécie de cetim, muito cintilante, porém<br />

mais fino e macio. Acordou com o corpo muito dolorido. Ao<br />

abrir os olhos, percebeu que estava em algum lugar<br />

desconhecido, ou ao menos, que não se lembrava de algum<br />

dia ter estado naquele ambiente. Olhou ao seu redor tentando<br />

identificar onde poderia estar, checando cada objeto que<br />

estava ali presente. O quarto era amplo e pouco mobiliado.<br />

Além de uma cômoda e uma suntuosa cadeira em um <strong>dos</strong><br />

cantos, havia uma pequena mesa redonda ao lado de sua<br />

cama, com um jarro de prata e uma caneca igualmente<br />

luxuosa, com várias pedras preciosas incrustadas. Olhou para<br />

o teto, e percebeu que era ricamente decorado, com uma<br />

espécie de folhagem artificial, de um brilho magnífico, que<br />

dava vida ao ambiente, trazendo uma agradável e<br />

reconfortante sensação.<br />

Com algum esforço, recostou-se na cabeceira da cama e<br />

notou as bandagens que lhe faziam voltas sobre o peito.<br />

Esticou o braço e pegou o jarro, levando-o até o rosto para<br />

sentir o cheiro do que havia dentro, na tentativa de identificar<br />

o seu conteúdo. Um odor suave anunciava que seu líquido<br />

parecia ser alguma espécie de bálsamo refrescante. Derramou<br />

308


um pouco do espesso líquido sobre a caneca, e sorveu-o com<br />

grande prazer. Ficou maravilhado com o sabor e efeito<br />

revigorante, quase que instantâneo, que aquela bebida lhe<br />

proporcionara. Não obstante, Etiènne sentia fome, e tentou<br />

imaginar há quanto tempo estivera desacordado sem se<br />

alimentar. Uma vontade súbita de caminhar e ampliar seu<br />

conhecimento a respeito daquele estranho local apoderou-se<br />

dele, mas sua tentativa de sair da cama fora frustada por uma<br />

forte fisgada na perna, o que lhe fez perceber que estava sem<br />

condições de se levantar. Gemeu de dor, voltando a recostarse<br />

no batente da cama. Neste momento, a porta do cômodo<br />

onde estava abriu-se e uma jovem elfa adentrou. <strong>Era</strong> linda,<br />

exuberante, com traços perfeitos. O cabelo dourado como o<br />

sau<strong>dos</strong>o sol das manhãs de inverno em Amiens, balançava<br />

suavemente, escorrendo pelos ombros da elfa. Possuía uma<br />

tez branca, quase translúcida, semi-coberta por finos teci<strong>dos</strong><br />

na cor salmão, com alguns detalhes em branco e fios de ouro.<br />

Etiènne ficou admirado com a beleza daquela<br />

desconhecida jovem, que trazia nas mãos uma bandeja repleta<br />

de iguarias para pousar sobre a cômoda.<br />

A elfa percebeu, com grande entusiasmo, que Etiènne<br />

estava acordado.<br />

— Vejo que nosso hóspede está se recuperando muito<br />

bem. Logo estará forte e vigoroso como um Bantha 1.<br />

A voz melodiosa daquela bela criatura o fez lembrar de<br />

Sindazel, e por um momento, a despeito da magnífica beleza<br />

da elfa, Etiènne sentiu uma profunda dor no peito. Não uma<br />

dor física, provavelmente mais fácil de suportar, mas uma dor<br />

de saudade, uma saudade de alguém que ele jamais<br />

conseguira esquecer, e que o desejo de reencontrar o consumia<br />

a cada novo dia de sua vida.<br />

1 Animal de grande porte, semelhante aos paquidermes,<br />

normalmente encontrado no Deserto Naissaras.<br />

309


Percebendo que Etiènne mudara seu semblante,<br />

passando da aparência de surpresa para uma de<br />

descontentamento, a elfa apressou-se em recuperar a bandeja<br />

deixada sobre a cômoda e a levou até a pequena mesa ao lado<br />

da cama.<br />

— Não quero incomodar vosso descanso, mas<br />

diariamente tenho trazido alimentos na esperança de sua<br />

breve recuperação, espero que estejam de acordo com vosso<br />

gosto.<br />

Etiènne saiu de seu transe e voltou a contemplar a elfa,<br />

que falava suavemente, movendo seus hipnotizantes lábios<br />

vermelhos, como se fossem rubis desenha<strong>dos</strong> perfeitamente.<br />

Seu rosto era especialmente delicado; além daqueles belos<br />

lábios, a elfa tinha um pequenino e arrebitado nariz acima<br />

deles e olhos verdes como a mais brilhante das esmeraldas,<br />

sob sobrancelhas finas e suavemente arqueadas. Tudo era<br />

perfeitamente proporcional, e mesmo as estranhas orelhas<br />

pontiagudas eram delicadas e belas.<br />

A elfa sustentou seu olhar para Etiènne, demonstrando<br />

compaixão por seu estado de convalescença, mas não hesitou<br />

em reprimir o criterioso olhar masculino de seu paciente.<br />

— Onde estou? Parece incrível, mas sempre que fico<br />

desacordado, quando desperto, encontro-me nos mais<br />

estranhos lugares; contudo, com as mais lindas criaturas que<br />

estes olhos já puderam contemplar nesta vida.<br />

A elfa ficou corada e desconcertada. A exemplo de<br />

Sindazel, teve e aproveitou a oportunidade de conhecer<br />

intimamente aquela criatura tão frágil, mas ao mesmo tempo,<br />

tão imponente. O fato de sua vida ser tão efêmera, cativa<br />

ainda mais o coração <strong>dos</strong> elfos, e não foi difícil acontecer da<br />

elfa apaixonar-se por Etiènne, a exemplo do que ocorrera com<br />

a vangi.<br />

310


— Agradeço seu elogio, mas agora você precisa se<br />

alimentar, pois ao saber que despertastes, a rainha desejará<br />

conhecê-lo!<br />

— Rainha? Afinal, que lugar é este, onde estou? —<br />

voltou a perguntar Etiènne.<br />

— Está no reino de Sombrorn, o reino de Aurien, sua<br />

majestade e anfitriã!<br />

— Nossa! Como foi que parei aqui? A última coisa de<br />

que me lembro é da gritaria e do tilintar das espadas em meio<br />

a uma densa névoa quando, de repente, tudo escureceu e ficou<br />

mortalmente silencioso. Há quanto tempo estou aqui?<br />

A elfa, muito paciente, não desejando sair tão<br />

rapidamente do lado de seu amor platônico, sentou-se na<br />

cama ao lado de Etiènne, e se dispôs a responder suas<br />

perguntas.<br />

— Fazem mais de vinte dias que está em nosso reino.<br />

Não sei quanto tempo levou para que chegasse até aqui, mas<br />

quando chegou, as esperanças de que sua vida pudesse ser<br />

salva, já quase não existiam. Não fosse Sindazel, você não<br />

conseguiria sequer ter chegado à Sombrorn com vida.<br />

— Sindazel! — exclamou Etiènne, com o coração<br />

subitamente acelerado, como se fosse explodir dentro de seu<br />

peito. — Ela esteve comigo, me salvou? Onde ela está? Desejo<br />

vê-la.<br />

A elfa entristeceu-se ao ver a alegria esfuziante de<br />

Etiènne ao simples fato de mencionar o nome da vangi, mas<br />

procurou não revelar este sentimento a ele.<br />

— Não vá ser ingrato com nossa rainha! — repreendeuo.<br />

— Sindazel apenas garantiu que você pudesse chegar com<br />

vida até nosso reino, mas quem o salvou verdadeiramente foi<br />

nossa amada rainha, com sua bondade e sabedoria! — a elfa<br />

procurou não ser muito rude, mas ao mesmo tempo, queria<br />

tentar retirar um pouco do mérito de Sindazel.<br />

311


— Claro, serei eternamente grato a todas as rainhas<br />

élficas deste lugar, mas por Jesus Cristo, onde está Sindazel?<br />

— insistiu Etiènne.<br />

— Lamento, mas não será possível encontrá-la neste<br />

momento. Ela foi obrigada a voltar para sua cidade.<br />

Granuzael, seu pai, veio pessoalmente buscá-la.<br />

Etiènne ficou profundamente abatido com esta última<br />

informação. Deixou-se cair recostado, mais uma vez, na cama.<br />

A elfa compadeceu-se dele ao ver o olhar triste que o<br />

dominara. Passando a mão delicadamente em seu rosto,<br />

advertiu-o mais uma vez para que se alimentasse e procurasse<br />

se recuperar logo, para poder encontrar a rainha.<br />

Ao se levantar, tomou a jarra para si e notou que Etiènne<br />

havia bebido a infusão de ervas élficas que havia preparado<br />

para ele, e disse que faria mais. Ao dirigir-se para a porta,<br />

Etiènne a chamou.<br />

— Espere, por favor! Quero agradecer-lhe por tudo o<br />

que tem feito por mim. Se algum dia eu puder ajudar você ou<br />

a qualquer elfo de Sombrorn como compensação pela<br />

dedicação e hospitalidade que me ofereceram, eu o farei sem<br />

reservas! — a elfa deu um sorriso maravilhoso, dominada de<br />

satisfação e exibindo seus reluzentes dentes brancos. — Qual o<br />

seu nome? — perguntou Etiènne.<br />

— Sou conhecida por Arthea, a principal curandeira da<br />

rainha Aurien, às suas ordens. E você, já sabemos que chamase<br />

Etiènne, de quem ouvimos muito falar antes mesmo de<br />

vossa chegada a nosso reino. — Então, ainda com seu belo<br />

sorriso estampado no rosto, a elfa deixou o aposento.<br />

— Arthea, Arthea — repetiu, encantado, Etiènne.<br />

<br />

Ao final do entardecer, quando Arthea regressou ao<br />

aposento onde Etiènne estava repousando, foi dominada de<br />

medo ao constatar que ele não estava na cama. Olhou<br />

312


assustada ao redor, mas não o viu. Então, sentiu uma brisa<br />

sobre o rosto, e percebeu que ele havia se retirado para a<br />

varanda do aposento. Caminhou até ele, surpresa em vê-lo de<br />

pé já no primeiro dia que acordara.<br />

— Não devia fazer esforço, seu estado ainda requer<br />

muito cuidado e os excessos irão atrapalhar vossa<br />

recuperação.<br />

Etiènne olhou para Arthea, indagando-a sobre a vida em<br />

Sombrorn, e sobre a vida de seus elfos.<br />

Ficaram conversando durante duas horas e nem<br />

perceberam o tempo passar. Arthea contou tudo o que podia<br />

sobre seu povo, e Etiènne, ouviu atentamente, sempre<br />

comparando tudo o que ouvia com o que Bakhin afirmara há<br />

tempos atrás. Achava absurdo como aquelas duas raças<br />

distintas eram tão magníficas em suas peculiaridades, mas se<br />

odiavam tanto.<br />

Enquanto Arthea falava, Etiènne se regozijava com sua<br />

doce voz e eloqüência encantadoras. Admirava sua beleza<br />

com uma ternura que não ousava sentir por outra pessoa<br />

desde que conhecera Sindazel, sua amada. Mas Arthea,<br />

possuía alguma magia, algo místico que o fascinava e ele não<br />

sabia como se livrar dessa hipnose. Quanto mais Arthea<br />

falava, movendo ligeiramente seus maravilhosos e suaves<br />

lábios vermelhos, mais Etiènne queria escutar e contemplar<br />

aquele rosto lindo e jovial.<br />

As visitas de Arthea eram constantes, e sua presença<br />

dominava cada vez mais o coração de Etiènne, que andava<br />

sôfrego e solitário, desesperançado de um dia poder realizar<br />

seu mais sagrado desejo, o de reencontrar e se entregar à<br />

Sindazel.<br />

Arthea, percebendo que estava conseguindo influenciar<br />

Etiènne e desejosa de conseguir conquistar-lhe, procurava<br />

sempre tornar as tardes de seu paciente agradáveis, com<br />

longos passeios pelos magníficos jardins de Sombrorn.<br />

313


Foi num desses passeios, quando Etiènne já estava quase<br />

totalmente curado de seus ferimentos, sentindo-se<br />

inteiramente à vontade com a jovem elfa, dominado por uma<br />

estranha sensação de que já a conhecia há muitos anos e já não<br />

mais suportando aquela companhia tão amável, tão doce e tão<br />

encantadora como a própria primavera de Amiens, que<br />

Etiènne segurou-lhe as mãos com ternura, revelando-lhe que a<br />

estava amando de uma forma apaixonada, arrebatadora. A<br />

elfa não conteve um belíssimo e reluzente sorriso de<br />

felicidade, chegando mesmo a ficar com os olhos cheios de<br />

lágrimas de tanta alegria que estava sentindo. Seu peito arfava<br />

de tanta emoção, com o coração lhe batendo violentamente<br />

dentro do peito, que temeu desfalecer nas mãos do amado.<br />

Etiènne, percebendo que o sentimento da elfa era<br />

recíproco, senão mais violento que o seu, foi dominado por<br />

um desejo ardente de tomá-la em seus braços e não hesitou,<br />

abraçou-a com paixão, beijando-lhe os doces lábios com uma<br />

voluptuosidade que a fez sentir-se nas nuvens.<br />

Etiènne e Arthea agora passavam muito mais tempo<br />

juntos, num constante desvendar mútuo <strong>dos</strong> mistérios um do<br />

outro, íntima e incansavelmente. Tornavam-se cada vez mais<br />

apaixona<strong>dos</strong> a cada encontro amoroso, os quais duravam<br />

horas em que se esgotavam de tanto prazer.<br />

Os dias foram passando, até que chegou o momento em<br />

que Etiènne fora convocado por Ascathion, ministro de<br />

Sombrorn, a comparecer perante a rainha Aurien. Estava<br />

totalmente recuperado. Sua beleza e vigor físico estavam<br />

restaura<strong>dos</strong>, sentia-se forte como nunca, pois a que homem<br />

mortal uma paixão avassaladora não poderia tornar quase um<br />

imortal? Etiènne estava sentindo uma vitalidade fluir por seu<br />

corpo, por suas veias, como nunca sentira antes. Nem mesmo<br />

o fogo e o desejo por Sindazel o haviam elevado àquelas<br />

alturas vertiginosas que Arthea o havia erguido.<br />

314


Etiènne se apresentou à rainha Aurien, que o aguardava<br />

em um suntuoso salão, todo ornamentado com estranhos<br />

objetos que pareciam estar craveja<strong>dos</strong> de pedras preciosas,<br />

mas que Etiènne não conseguia distinguir o que eram ou para<br />

que serviam. A rainha, ao vê-lo entrar no salão, aguardou que<br />

ele se aproximasse sem demonstrar qualquer ansiedade, e<br />

antes mesmo que Etiènne pudesse chegar perto o suficiente<br />

para lhe prestar uma reverência em sinal de respeito e<br />

submissão, a rainha ergueu-se e alertou para que<br />

permanecesse àquela distância.<br />

Etiènne parou, fazendo um pequeno movimento com a<br />

cabeça, como que concordando com a ordem determinada<br />

pela rainha. Fitou-a com grande admiração, mas sem sustentar<br />

o olhar por mais do que três ou quatro segun<strong>dos</strong>, temendo ser<br />

repreendido, e logo baixou os olhos, aguardando que a nobre<br />

elfa o conduzisse à conversa que desejasse. Em seu íntimo,<br />

assombrado pela beleza de Aurien, que era muito superior<br />

tanto à de Sindazel quanto à de sua Arthea, pensou<br />

desesperado como conseguiria conversar com aquela criatura<br />

sem admirar-lhe a beleza estonteante. Ficou principalmente<br />

impressionado com o olhar dominador que parecia emitir<br />

verdadeiros raios daqueles olhos cinza claro. <strong>Era</strong>m lin<strong>dos</strong>,<br />

fascinantes!<br />

— Não temas — disse a rainha. — Em meu reino, não<br />

precisas te constranger nem mesmo diante da rainha —<br />

asseverou, com um tom de voz amigável. Não era uma voz<br />

melodiosa como a de Sindazel ou a de Arthea, mas uma voz<br />

imperiosa, rouca e potente, como se fosse mesmo a voz de<br />

uma deusa.<br />

Etiènne fez uma longa e solene reverência.<br />

— Em que posso ser útil, majestade?<br />

— Eu gostaria de conhecer melhor os homens, e acredito<br />

que posso contar com sua cooperação para instruir-me nas<br />

nuanças existentes entre nossas raças. Afinal, não somos tão<br />

315


diferentes na aparência, exceto talvez pelo número de<br />

variantes a respeito da tonalidade da cor de pele e cabelos que<br />

percebi durante o Colóquio de Plarionthil e aqui em meu<br />

próprio reino, em outros de vossa raça. Nós, elfos, temos um<br />

padrão físico notável, como já pudestes constatar andando<br />

entre nosso povo. Somos uma raça longeva, superada apenas<br />

pelos vangis. Mas vocês, homens, não duram uma primavera<br />

élfica para presenciar o amadurecimento <strong>dos</strong> séculos. Como<br />

pode uma raça possuir uma existência tão ínfima, tão<br />

desprezível, tão efêmera? — Etiènne ouvia com atenção sua<br />

interlocutora. — Sabe, meu jovem homem, tenho meditado<br />

sobre esta questão e posso assegurar-lhe que não consigo, em<br />

minha sabedoria, encontrar respostas para este enigma!<br />

Aurien se aproximou de Etiènne, andou vagarosamente<br />

observando-o, fazendo um círculo em torno de seu hóspede,<br />

procurando analisá-lo de to<strong>dos</strong> os ângulos. <strong>Era</strong> bela, e ao<br />

mesmo tempo intrigante para aquela nobre elfa, a presença<br />

daquele homem em seu reino, uma criatura de outra raça, uma<br />

nova raça que até bem pouco tempo atrás, não havia<br />

aparecido em seu mundo, não havia se mostrado na Thalide.<br />

Após uma volta completa ao redor de Etiènne, a rainha<br />

elfa parou em sua frente, olhando-o profundamente dentro<br />

<strong>dos</strong> olhos. Etiènne ficou corado só de pensar na beleza divina<br />

daquela elfa diante de seus olhos. Sem demonstrar qualquer<br />

sinal de incômodo com a mudança na cor do rosto de Etiènne,<br />

que passou do seu tom natural para o carmesim, Aurien<br />

continuou falando de perto, na face de Etiènne. Este podia<br />

sentir o hálito refrescante de Aurien, e admirar ainda mais<br />

maravilhado, aquela feição perfeita, que mais parecia ter sido<br />

produzida pelas próprias mãos de Deus.<br />

— Contudo, apesar de vocês, seres humanos, possuírem<br />

uma miserável existência individual, estão destina<strong>dos</strong>,<br />

segundo a profecia do Dragão Dourado, talhada na pedra<br />

Klaopala, a dominar o mundo, a suplantar todas as raças<br />

316


superiores existentes, até mesmo os vangis e os elfos! —<br />

vociferou Aurien, demonstrando neste momento, pela<br />

primeira vez, uma certa indignação pelo fato.<br />

Etiènne percebeu que os anões sequer eram lembra<strong>dos</strong><br />

como uma raça superior, nem mesmo pela rainha.<br />

— Majestade, perdoe-me, mas nada sabem os homens<br />

sobre esses desígnios, isso eu posso garantir, de boa fé.<br />

— Eu, rainha de Sombrorn, sempre fui céptica quanto a<br />

esta profecia. Criada a partir da mente adoecida de um velho<br />

Dragão Dourado, que enlouqueceu vivendo solitário por<br />

tantos séculos naquele 1vale amaldiçoado por todas as eras.<br />

Mas confesso, que essa fragilidade de vossa raça, além de me<br />

surpreender, me faz, de uma forma incompreensível, temer<br />

que a profecia seja verdadeira e venha a se concretizar.<br />

Portanto, eu desejo conhecer melhor vossa raça, e reitero meu<br />

desejo de que você, de quem há muito ouço falar, seja meu<br />

confidente sobre estas questões. Garanto que nada lhe faltará<br />

em meu reino, e lhe concederei tudo o que desejar. É meu<br />

desejo, que os elfos e os homens sejam como irmãos, por toda<br />

a eternidade!<br />

— Agradeço, majestade, em nome de to<strong>dos</strong> os homens<br />

honestos e de bom coração, e coloco-me à vossa disposição! —<br />

Etiènne ajoelhou sobre uma perna diante da rainha, baixando<br />

sua cabeça, demonstrando, ao estilo franco, que estava ao<br />

serviço de sua majestade elfa.<br />

— Em breve, — disse Aurien, agora com uma voz mais<br />

suave do que a usada até aquele momento — haverá um novo<br />

Colóquio em Plarionthil, e é meu desejo que estejas a meu<br />

lado, pois antes que possa realizar-se a profecia da pedra<br />

Klaopala, tenho meus próprios desígnios a realizar. Agora,<br />

podes retornar ao vosso aposento. Quando eu precisar de<br />

1 A região que a rainha Aurien faz referência nesta passagem é<br />

conhecida como Vale da Neblina, situado no coração da Região das<br />

Montanhas, e foi onde seu pai pereceu em luta durante a Guerra da Agonia.<br />

317


vossa ajuda ou de vosso conhecimento sobre os homens, será<br />

chamado. Se precisar de algo, não hesite em transmitir-me<br />

através de Ascathion, meu ministro, ou mesmo Arthea. Ela é<br />

uma serva fiel, e a melhor curandeira de meu reino!<br />

— Obrigado, majestade. Gostaria apenas de agradecer,<br />

em tempo, a vida que me foi assegurada por vossa sabedoria e<br />

precisão, sem as quais a esta altura eu seria mais um homem<br />

morto. Jamais poderei em toda minha vida, retribuir este gesto<br />

de bondade, seja com palavras, seja com tesouros. Portanto,<br />

apesar de ser da raça <strong>dos</strong> homens e possuir uma vida breve,<br />

eu a ofereço de todo o coração, e de agora em diante, enquanto<br />

viver, torno-me seu servo!<br />

Aurien sorriu magnificamente, e apesar de majestosa,<br />

fez uma mesura para seu novo servo, encantada com Etiènne.<br />

Etiènne ficou vários dias desejando ser chamado pela<br />

rainha novamente, mas isso não ocorreu. Arthea teve ciúmes,<br />

porque ele falava de sua rainha num estado de<br />

deslumbramento preocupante, mas ela sabia, em seu íntimo,<br />

que a rainha não se envolveria com um ser humano. Ao<br />

menos, queria acreditar nisso com todas as suas forças.<br />

Com o coração saciado de tanto amor que Arthea lhe<br />

oferecia, não havendo novas convocações por parte da rainha,<br />

Etiènne sentiu um enorme desejo de rever seu amigo Bakhin.<br />

Depois de muito discutir com Arthea, que se mostrou<br />

relutante quanto a saída de Etiènne de Sombrorn, decidiu, a<br />

despeito da insistência da elfa em dizer que os tempos ainda<br />

não eram seguros para uma viagem apesar da guerra estar<br />

ocorrendo no extremo oeste da Thalide, enviar uma carta ao<br />

reino de Bakkin, anunciando que ele partiria em um mês para<br />

visitar o velho amigo.<br />

Até mesmo a rainha Aurien, ao saber <strong>dos</strong> planos de<br />

Etiènne, finalmente o convocou para informar-se mais<br />

detalhadamente sobre o que Etiènne tinha em mente, e tentou<br />

evitar que ele deixasse Sombrorn naquela época, mas não<br />

318


conseguiu contê-lo, pois o coração de Etiènne podia ser<br />

apaixonado, mas nunca encarcerado, sempre cedendo aos seus<br />

mais inusita<strong>dos</strong> impulsos.<br />

A rainha Aurien, observando a agonia de sua principal<br />

curandeira, que temia pela vida de seu amado, concedeu ao<br />

francês, uma pequena guarnição com trinta valorosos<br />

guerreiros elfos, para que o acompanhassem a Bakkin no<br />

momento de sua partida. Etiènne tentou, em vão, dissuadir a<br />

rainha desta cortesia, pois temia a reação de Bakhin ao vê-lo<br />

chegar com tantos elfos em seu reino, mas a rainha mostrou-se<br />

impassível diante das argumentações de Etiènne. Para maior<br />

sossego do coração de Arthea, seu amado partiu, quando<br />

chegou a data prevista, na companhia <strong>dos</strong> guerreiros de elite<br />

seleciona<strong>dos</strong> pela própria rainha para aquela viagem.<br />

319


O<br />

CAPÍTULO XXIV<br />

Nouvelle Lyon<br />

s primeiros dias após o retorno de Michel Montbard à<br />

Nouvelle Lyon, foram muito agita<strong>dos</strong>, não somente pelo<br />

trabalho que ficara acumulado durante sua ausência enquanto<br />

estivera em Amiens, e logo em seguida, na Guerra da Floresta<br />

Dourada, mas principalmente, pelo fato de que a cidade havia<br />

recebido muitos elfos feri<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> recentes combates que<br />

haviam sido trava<strong>dos</strong> na Senda da Morte, e também nas<br />

proximidades do Pântano Hibrittatus, pelos solda<strong>dos</strong> de<br />

Tarlhion.<br />

Alain Dumas e Leon Troujard foram incansáveis na<br />

ajuda ao amigo Michel, sobretudo, na tentativa de lhe<br />

restaurar o ânimo que tanto se abatera depois da fatídica<br />

despedida de Sindazel. Passavam horas do dia ao lado dele,<br />

indo e vindo entre as dezenas de tendas espalhadas diante <strong>dos</strong><br />

muros da cidade, onde fora improvisado um pequeno<br />

hospital. Sempre antes do anoitecer, dirigiam-se para o prédio<br />

administrativo, e ainda o ajudavam a organizar as pendências<br />

burocráticas.<br />

Somente poucos minutos antes de dormir, é que<br />

conseguiam reunir-se um pouco mais relaxa<strong>dos</strong>, saboreando o<br />

excelente vinho procedente de Eluannar. Mas ainda assim, o<br />

assunto não fugia aos dois temas mais aborda<strong>dos</strong> naqueles<br />

últimos dias, a guerra contra os orcs e a esperança sobre a<br />

320


ecuperação de Etiènne que havia ficado aos cuida<strong>dos</strong> de<br />

Sindazel.<br />

Os dias foram passando, e a medida em que a rotina<br />

voltava ao normal na cidade de Nouvelle Lyon, Leon Troujard<br />

começava a falar com sau<strong>dos</strong>ismo de sua própria cidade,<br />

como que preparando Michel para sua partida, que deveria<br />

ocorrer em breve.<br />

Um <strong>dos</strong> últimos trabalhos que realizaram juntos em<br />

Nouvelle Lyon fora a ampliação do cemitério que ficava<br />

próximo à capela, o qual passou a receber honrosamente,<br />

alguns mortos do povo élfico, a pedido de Althalion.<br />

Muitos elfos foram salvos pelas mãos <strong>dos</strong> homens de<br />

Nouvelle Lyon, e Althalion, a exemplo de seu falecido pai,<br />

guardou grande respeito e amor pelos homens. Muitas foram<br />

as promessas de ajuda que seriam enviadas de Eluannar para<br />

as melhorias que Michel gostaria de realizar em sua cidade.<br />

Da mesma forma, Althalion garantiu a Leon que também<br />

Nouvelle Amiens continuaria recebendo toda a ajuda que<br />

desejasse de seu reino.<br />

As notícias sobre a guerra, chegavam de tempos em<br />

tempos, e ao que parecia, as legiões de Sombrorn estavam<br />

travando violentas batalhas ao norte do Deserto Naissaras<br />

contra a nata <strong>dos</strong> orcs Baraidai, que estava sendo liderada pelo<br />

próprio Idour, o elfo negro traidor. Souberam também que os<br />

exércitos de Guttin, haviam suportado bravamente o assédio<br />

<strong>dos</strong> orcs em seu próprio reino, e que conseguiram fazer com<br />

que recuassem, com grande demonstração de força e coragem<br />

de seu povo.<br />

Althalion, ao saber dessas notícias, julgou ter chegado o<br />

momento oportuno para sua partida, e convocou Lothanir<br />

para que este providenciasse os preparativos necessários para<br />

a partida de sua legião.<br />

Ao ser informado da decisão de Althalion, Michel ficou<br />

duplamente triste, pois nascera uma grande amizade entre ele<br />

321


e o filho de Lasthion, e além disso, sabia que quando os elfos<br />

de Eluannar partissem, Leon e Alain também partiriam com<br />

eles.<br />

Naquela mesma noite, enquanto conversavam sobre a<br />

prosperidade de Nouvelle Lyon, e especulavam sobre o futuro<br />

<strong>dos</strong> homens nos próximos anos em <strong>Virgo</strong>, Leon resolveu<br />

revelar a seu amigo, o que acontecera com ele e porque ele<br />

agira de forma tão sombria e estranha quando deixaram<br />

Amiens rumo à expedição que realizaram até aquele lugar.<br />

— Michel, há tempos venho protelando um assunto que<br />

desejo muito conversar com você.<br />

Michel estava conversando com Althalion, mas ao notar<br />

a seriedade de Leon quando este lhe dirigiu esta frase, ajeitouse<br />

na confortável cadeira de ébano que ocupava, como que<br />

para garantir que escutaria melhor o que o amigo tinha a lhe<br />

dizer. Com um gesto de sua mão, indicou que Leon podia<br />

prosseguir. Alain, ao perceber qual seria o assunto, pois Leon<br />

já o alertara que tinha intenção de abordar este tema antes de<br />

partirem em regresso para Nouvelle Amiens, levantou-se e<br />

dirigiu-se para a sacada do salão que ocupavam, procurando<br />

deixar os dois mais à vontade. Althalion, percebendo a<br />

intenção de Alain Dumas, também fez o mesmo, e insinuou a<br />

Lothanir que também deveria acompanhá-lo. Os dois elfos<br />

foram ao encontro de Alain, e ao perceber que estava a sós<br />

com Michel, Leon retomou a conversa.<br />

— Lembra-se de minhas estranhas atitudes desde que<br />

saímos <strong>dos</strong> calabouços do castelo de Martin Lacroix?<br />

Sabendo que algo importante seria revelado naquele<br />

momento, Michel esticou o braço e tornou a encher de vinho a<br />

taça de Leon, e logo em seguida, sua própria taça, dando um<br />

demorado gole. Um filete de vinho escorreu-lhe pelo canto da<br />

boca, o qual ele limpou com o lado superior de sua mão<br />

direita e assentiu com a cabeça, como que afirmando ao amigo<br />

que lembrava do fato. Contudo, seu olhar demonstrou que a<br />

322


lembrança não era agradável, mas Leon não lhe deu muito<br />

tempo para que em seus pensamentos, tentasse adivinhar o<br />

que poderia ter acontecido, e logo foi falando o que sucedera<br />

na ocasião.<br />

— Pois agora, irei lhe revelar a razão pela qual adotei<br />

aquela postura, e preferi, a despeito do sofrimento que eu<br />

também senti, fazer com que vocês se afastassem de mim.<br />

— Nada — interrompeu Michel — poderá justificar a<br />

arrogância e a grosseria que você nos dispensou naquela<br />

ocasião. Eu nunca consegui entender, que tipo de enfermidade<br />

ou maldição havia se apossado de você! Talvez seja melhor<br />

esquecermos este triste passado, e nos dedicarmos à nossa<br />

amizade como sempre fizemos. Arranquemos este<br />

pergaminho de nossa história, e continuemos a ser bons<br />

amigos.<br />

— Eu lamento, profundamente, a dor causada por<br />

minha atitude. Contudo, não poderei mais guardar este<br />

segredo e, se for realmente meu amigo, irá procurar entender<br />

o que se passou dentro de mim e como meu fardo fora, e ainda<br />

é, muito pesado.<br />

— Pela Santa Virgem! Então, diga logo o que pode ter<br />

sido assim tão horrível a ponto de mudar vosso<br />

comportamento tão drasticamente diante de seus mais íntimos<br />

amigos!<br />

— Eu descobri... — Leon baixou os olhos e fez uma<br />

pequena pausa, procurando forças para prosseguir — Eu<br />

descobri, através de uma fonte segura e inquestionável, além<br />

de algumas evidências, que sou na verdade filho de Martin<br />

Lacroix! — confessou, sem se permitir maiores rodeios.<br />

Michel, olhando seriamente para o amigo, no primeiro<br />

momento não conseguiu acreditar, mas Leon falara tão<br />

gravemente que foi obrigado, apesar de toda a resistência que<br />

sua mente lhe impunha, a crer naquele absurdo que acabara<br />

323


de ser revelado e retumbava em seus ouvi<strong>dos</strong> como se fossem<br />

mesmo os tambores agourentos <strong>dos</strong> orcs.<br />

Antes que Michel pudesse sair de seu transe de surpresa<br />

e indignação, Leon completou.<br />

— Como eu poderia dizer a meu amigo, meu melhor<br />

amigo e praticamente um irmão, que havia descoberto que seu<br />

mais terrível inimigo era meu próprio pai de sangue? Eu<br />

mesmo não pude acreditar, não quis acreditar, e fiquei<br />

horrorizado ao saber desta infeliz verdade. Por um longo<br />

tempo pensei em tirar minha própria vida, que já não valia<br />

mais nada. O que mais poderia aspirar, o filho bastardo de um<br />

crápula, tirano e sanguinário? Foi então que passei de meu<br />

estado de mortificação para um estado de esperança, pois, se<br />

alguma coisa eu podia esperar naquele momento, era tentar<br />

converter meu pai perverso num homem digno.<br />

Michel, assombrado com o que acabara de ouvir,<br />

sacudiu a cabeça negativamente, e tomou outro enorme gole<br />

de sua taça de vinho.<br />

— Não diga nada, ainda! Deixe-me terminar! — Leon,<br />

inquieto, suava vistosamente, tanto pelo calor do vinho,<br />

quanto pelo que revelava, há muito guardado em seu coração.<br />

— Por isso, pensei que a melhor coisa a fazer era, antes de<br />

mais nada, afastar-me de vocês, para tentar realizar meu<br />

sonho, minha esperança, de recuperar meu pai. Seria a maior<br />

alegria de minha vida se conseguisse transformá-lo num<br />

homem digno.<br />

— Impossível! — garantiu Michel.<br />

Leon ergueu a mão, pedindo paciência ao amigo, e<br />

continuou:<br />

— Mas eu precisava tentar, precisava! Pensei em<br />

construir Nouvelle Amiens, e depois que tudo estivesse em<br />

ordem, em paz, desejava ir até Amiens e encontrá-lo, para<br />

oferecer-lhe uma nova perspectiva de vida, ao meu lado, ao<br />

lado de seu filho! Mas o destino não quis que as coisas<br />

324


acontecessem desta forma, e apesar de meu pai ter chegado às<br />

portas de Nouvelle Amiens, não pude encontrá-lo face a face.<br />

— Martin Lacroix! Em <strong>Virgo</strong>?! — sobressaltou-se Michel,<br />

temendo as perigosas possibilidades que poderiam advir deste<br />

fato. — Então a víbora conseguiu realmente chegar aqui,<br />

mesmo com o desabamento da Grande Caverna!<br />

— Sim, ele chegou com parte de suas tropas e se<br />

posicionou diante <strong>dos</strong> muros de Nouvelle Amiens. Despachei<br />

uma mensagem até ele, revelando a verdade sobre minha<br />

paternidade e o convidando a entrar na cidade pacificamente,<br />

como meu pai, para conversarmos sobre nossa possível<br />

aliança. Pensava que poderia iniciar a edificação de meus<br />

planos, mas naquela mesma noite, durante a madrugada,<br />

foram ataca<strong>dos</strong> por centenas de orcs e foram dispersa<strong>dos</strong>. Os<br />

que conseguiram escapar para a cidade, foram salvos e<br />

protegi<strong>dos</strong>. Muitos pereceram no ataque surpresa <strong>dos</strong> orcs, e<br />

muitos outros ficaram desapareci<strong>dos</strong>, e entre estes,<br />

encontrava-se meu próprio pai e minha meia irmã Lourdes.<br />

Michel, ainda aterrorizado com tudo o que ouvia, de<br />

repente foi atingido em seu ponto fraco, pois já flertara com a<br />

jovem Lourdes quando morava em Amiens, sem contudo<br />

jamais ter a oportunidade de conversar com a moça. Mas o<br />

simples som de seu nome o fez lembrar com nostalgia daquele<br />

tempo, agora tão distante, mas também o fez lembrar de<br />

Sindazel. Para não se perder nestes pensamentos, insistiu com<br />

Leon de que sua missão seria tão inglória quanto infrutífera,<br />

afirmando que não havia qualquer esperança para um homem<br />

como Martin Lacroix.<br />

— O que pretende fazer quando voltar?<br />

— Alain já se comprometeu comigo, e assim que<br />

retornarmos, iremos promover incansáveis buscas para tentar<br />

localizar meu pai e minha irmã.<br />

— Leon, eu o tenho como um irmão, mas confesso que<br />

me dói ouvi-lo chamar aquele homem de pai. Não obstante, se<br />

325


um dia reencontrá-lo, espero que saiba o que está fazendo,<br />

pois temo por sua vida. E o que terá sido feito de Nouvelle<br />

Amiens durante todo esse tempo em que esteve ausente? Não<br />

tem se preocupado com sua cidade, será que tudo está bem?<br />

Você fala com entusiasmo das coisas que realizou por lá, com<br />

a ajuda de Lasthion, que Deus o tenha, mas quem ficou à<br />

frente da administração em sua ausência?<br />

— Amigo, não tema por minha vida, antes disso, reze<br />

para que eu possa ter a chance de reencontrar meu pai e<br />

realizar meu sonho de convertê-lo. — Michel fez uma careta.<br />

— Quanto à Nouvelle Amiens, ficou nas mãos de Maurice<br />

Lassance, um verdadeiro cavaleiro que foi muito prestativo<br />

durante a construção da cidade, e mostrou-se muito<br />

inteligente e consciencioso. Você não o conheceu<br />

profundamente, mas certamente o conhecerá quando nos<br />

visitar em nossa cidade.<br />

Os dois amigos ainda ficaram conversando alguns<br />

minutos, lembrando com saudade <strong>dos</strong> bons tempos de<br />

Amiens, mas depois chamaram Alain e os elfos de volta para<br />

participarem daquela gostosa sessão de nostalgia. Os elfos<br />

ficaram maravilha<strong>dos</strong> ao ouvir sobre a vida <strong>dos</strong> homens em<br />

sua cidade natal e como tudo aconteceu até os conduzir àquele<br />

lugar, a que chamaram <strong>Virgo</strong>, mas conheciam entre seu povo<br />

como Thalide.<br />

No final daquela semana, Michel subiu ao torreão que<br />

ficava ao lado das ameias das muralhas de sua cidade para<br />

despedir-se de seus amigos, que partiram em direção à<br />

Planície de Prata, rumo ao extremo oeste de <strong>Virgo</strong>.<br />

Althalion, ao lado de Lothanir, conduzia o que havia<br />

restado da legião de seu pai de volta ao reino de Eluannar.<br />

Leon Troujard, ao lado de Alain Dumas, voltavam<br />

acompanhando os elfos, porém, sua caminhada seria mais<br />

breve e ficariam em Nouvelle Amiens. Consigo, levavam a<br />

esperança de reencontrar Martin Lacroix.<br />

326


Depois de alguns dias, com a partida <strong>dos</strong> elfos e de seu<br />

amigo Leon, Michel dedicou-se ainda mais às tentativas de<br />

fazer com que Peter Wells recuperasse seu abalado espírito<br />

devido à mutilação que sofrera durante a recente Guerra da<br />

Floresta Dourada. Michel havia lhe designado uma série de<br />

responsabilidades burocráticas, nomeando-o co-regente de<br />

Nouvelle Lyon, mas ainda assim, nada conseguia conformar<br />

Peter da desdita a que fora submetido.<br />

Michel morria de pena ao ver o amigo pelos cantos,<br />

lamuriando-se de seu triste destino, tornando-se a cada dia<br />

que passava mais ranzinza e intransigente. Nada estava bom<br />

para Peter, e de tudo ele reclamava. Algumas vezes, Michel<br />

teve que perder a paciência e esbravejar com ele, atitude que<br />

era imediatamente repreendida pelo inglês, dizendo que<br />

Michel era impie<strong>dos</strong>o ao tratar um aleijado daquela forma.<br />

Mas esse tormento não durou por muito tempo, porque<br />

numa tranqüila manhã de primavera, quando o correio de<br />

Sombrorn chegou trazendo uma carta de seu irmão, Etiènne,<br />

Michel foi correndo contar a Peter, cheio de alegria de ter<br />

recebido notícias de seu amado irmão, quando encontrou-o<br />

morto, caído com uma adaga cravada em seu coração, ainda<br />

com seu punho cerrado segurando-a com firmeza.<br />

Com o único braço que tinha, Peter tirou a própria vida,<br />

não suportando viver mutilado, sem mais poder atirar com<br />

seu arco, sem mais poder ser completo como viera ao mundo.<br />

Michel derramou lágrimas ao ver o companheiro morto<br />

daquela forma, e tentou imaginar como deveria estar sendo<br />

insuportável o sofrimento do amigo para que chegasse àquela<br />

atitude insana de tirar a própria vida.<br />

Antes mesmo de tomar qualquer atitude, sentou-se ao<br />

lado do cadáver do amigo e, não com tanta alegria quanto<br />

entrara, quebrou o lacre da carta e procurou ler em voz alta,<br />

como se o inglês, cujo corpo jazia inerte a seu lado, pudesse<br />

ouvi-lo.<br />

327


Amado irmão,<br />

Faz tempo que desejava lhe escrever, mas a vida em<br />

Sombrorn é estranhamente agitada, e os dias terminam tão logo<br />

começam. Quero que saibas que estou gozando de perfeita saúde,<br />

recuperando-me rapidamente com os cuida<strong>dos</strong> que a rainha Aurien<br />

me dispensou e nas próximas semanas estarei fazendo uma visita a<br />

meu grande amigo Bakhin.<br />

Apesar da rainha me afirmar que estás bem, espero que esta<br />

possa encontrá-lo com saúde, tanto quanto aos meus queri<strong>dos</strong><br />

amigos Peter e Grassac.<br />

Tenho algumas novidades para lhe contar, pois conheci uma<br />

elfa maravilhosa chamada Arthea, que ajudou muito em minha<br />

recuperação. Creio que eu esteja acometido por alguma<br />

enfermidade desconhecida, pois estamos enamora<strong>dos</strong>, apesar de<br />

ainda lembrar com grande saudade de Sindazel. Mas tenho certeza<br />

de que eu e Arthea, seremos muito felizes em <strong>Virgo</strong>.<br />

Carinhosamente e com saudades, do irmão que te ama,<br />

328<br />

Etiènne Montbard.<br />

Michel foi dominado por uma crise de tristeza e chorou<br />

convulsivamente, olhando incrédulo para o corpo sem vida de<br />

Peter, lembrando de sua maldade diante de Grassac e<br />

condenando-se por ter traído seu irmão mais novo com<br />

Sindazel. As lágrimas lhe escorriam pela face como se fosse o<br />

próprio rio Somme que brotava-lhe <strong>dos</strong> olhos. Demorou muito<br />

tempo até que conseguisse se recompor e pedir ajuda para que<br />

o corpo de Peter fosse removido.<br />

Os habitantes de Nouvelle Lyon ficaram horroriza<strong>dos</strong><br />

com o que acontecera com Peter, e no dia do funeral,<br />

perceberam que Michel estava muito abatido, magro e<br />

curvado, como se carregasse um fardo insuportável. Muitos


tentaram consolar Michel, mas ele jamais voltaria a ser a<br />

mesma pessoa alegre e cheia de vida que fora em Amiens.<br />

329


B<br />

CAPÍTULO XXV<br />

Honras e lembranças<br />

akhin havia sido avisado da chegada de Etiènne com<br />

antecedência, e estava muito ansioso para reencontrar seu<br />

amigo humano. Ordenou que fosse providenciado um grande<br />

banquete para oferecer a seu visitante, lamentando muito não<br />

poder honrá-lo com uma grande festa, como desejava antes<br />

<strong>dos</strong> acontecimentos que culminaram na recente Guerra da<br />

Floresta Dourada. Os anões de Bakkin, eram muito prenda<strong>dos</strong><br />

na organização de festas, e apesar de estarem preparando<br />

apenas o que deveria ser um banquete, se esmeraram bastante<br />

na realização do mesmo, quase tornando-o uma verdadeira<br />

festa. Havia todo tipo de iguarias com diversos temperos,<br />

doces e frutos. Estavam dispostos a mostrar que, também na<br />

culinária, eram muito providentes.<br />

Quando Etiènne surgiu diante do salão real onde Bakhin<br />

o aguardava, o rei anão perdeu toda sua compostura e,<br />

abandonando as formalidades que sua posição exigia diante<br />

de seus súditos, levantou-se com grande estardalhaço<br />

dirigindo-se ao amigo, tomado de alegria.<br />

— Amigo Etiènne! Que alegria imensa!<br />

— Salve rei Bakhin! — Etiènne curvou-se longamente<br />

em sinal de reverência, e ficou sobre um joelho apenas,<br />

demonstrando sua humildade diante do nobre rei e amigo.


— Levante-se, levante-se! — disse Bakhin, abraçando<br />

calorosamente o francês pela cintura, pois Etiènne, de pé,<br />

tinha o dobro da altura de Bakhin.<br />

Os dois amigos ficaram juntos toda a tarde, e ao<br />

anoitecer, quando seria oferecido o banquete, o rei Bakhin<br />

solicitou a presença de Etiènne em seu aposento real, para que<br />

pudessem conversar a sós, longe da bajulação e intransigência<br />

de seus súditos, pois uma coisa era peculiar ao povo de<br />

Bakkin, não sabiam medir sua própria inconveniência,<br />

estando sempre se metendo onde não eram chama<strong>dos</strong> e<br />

tinham sempre uma desculpa para toda e qualquer<br />

intervenção nos assuntos alheios. Tão logo Etiènne chegou ao<br />

aposento de Bakhin, o rei anão trancou a porta atrás deles e,<br />

demonstrando uma enorme alegria, sem conseguir conter sua<br />

excitação pelo momento que se aproximava, pediu que<br />

Etiènne o acompanhasse.<br />

Sem entender bem o que Bakhin estava tramando, mas<br />

inteiramente envolvido e comovido pela enorme alegria<br />

demonstrada por seu amigo anão, Etiènne foi obedecendo<br />

suas instruções, sem nada questionar, temendo quebrar o<br />

clima de suspense que estava no ar.<br />

— Esta será uma grande noite! — afirmou Bakhin.<br />

— O que está tramando, amigo?<br />

— Calma, não seja demasiadamente curioso. Tudo a seu<br />

tempo! Mas em primeiro lugar, irei lhe mostrar algo que<br />

venho guardando há muitos anos e que guardei para uma<br />

ocasião especial como essas.<br />

— É difícil não ficar curioso diante de tanto mistério. —<br />

Etiènne sorriu para seu anfitrião.<br />

— Veja! — exclamou Bakhin, apontando para uma<br />

saliência no fundo de seu imenso aposento real. — Veja o que<br />

está atrás daquela pilastra.<br />

Etiènne se aproximou da pilastra e olhou por trás da<br />

saliência que ela proporcionava em relação à parede do fundo<br />

do aposento. Ficou impressionado ao descobrir que, na<br />

331


verdade, aquela pilastra era uma passagem para outro amplo<br />

aposento, e nele, ao contrário da rústica mas rica mobília que<br />

havia no cômodo anterior, aquele era pouco ornamentado,<br />

cheio de vegetação desconhecida. Etiènne estava espantado,<br />

mas ao mesmo tempo, ainda mais curioso em descobrir o que<br />

se tratava aquilo tudo e o mistério que o anão estava fazendo.<br />

Bakhin entrou logo atrás de Etiènne.<br />

— Agora, irei lhe dar o primeiro presente desta noite!<br />

Etiènne não cansava de sorrir, mas agora, já<br />

demonstrava certa ansiedade. Notou que Bakhin puxou uma<br />

pequena arca de dentro de uma gruta que estava coberta por<br />

uma estranha folhagem, e ao abrir a arca, ficou admirado ao<br />

ver o forte brilho que saíra de dentro dela.<br />

O anão retirou de dentro da arca um reluzente escudo<br />

em forma de V, com umas inscrições indecifráveis. Estendeu<br />

seus curtos e troncu<strong>dos</strong> braços em direção a Etiènne, lhe<br />

entregando a bela peça de guerra. Logo em seguida, tornou a<br />

mergulhar os braços dentro da arca, e retirou um magnífico<br />

elmo prateado, com os detalhes muito semelhantes ao que<br />

tinha conhecido em Sombrorn.<br />

— Este elmo e este escudo que está segurando agora<br />

foram recupera<strong>dos</strong> no Vale da Neblina, onde Limanoh, o<br />

antigo rei de Sombrorn, tombou diante <strong>dos</strong> Zaraidai após uma<br />

semana de resistência, diante da Pedra Klaopala, durante a<br />

Guerra da Agonia.<br />

Etiènne ficou assombrado com a possibilidade de que o<br />

próprio Bakhin, pudesse ter tirado a vida do elfo de Sombrorn.<br />

— Não precisa me olhar desta maneira. Não fui eu que<br />

tirei a vida de Limanoh. Como estou afirmando, ele pereceu<br />

diante das hostes <strong>dos</strong> orcs Zaraidai. — O anão fitou Etiènne,<br />

alisou a barba e refletiu por um momento se estava tomando a<br />

decisão certa, mas, afinal de contas, por que ele deveria<br />

guardar aquelas coisas?<br />

— Você deve estar se perguntando por que, eu estou lhe<br />

presenteando com essas peças. Sabe, eu sou um velho anão, e<br />

332


jamais pretendi fazer amizade com essa raça de orelhas<br />

pontudas, portanto, essas coisas não me são úteis, mas ainda<br />

assim, as guardei to<strong>dos</strong> esses anos acreditando que um dia<br />

elas pudessem se tornar úteis, e vejo que não errei em meu<br />

julgamento.<br />

— Não estou compreendendo! — disse Etiènne.<br />

— Veja bem! Tenho grande amizade e estima por ti.<br />

Vosso povo, vossa raça, é nova nestas terras e vocês<br />

precisarão, com certeza, de toda ajuda que puderem para se<br />

firmar nesta região hostil. Os elfos de Sombrorn são os mais<br />

temi<strong>dos</strong> e mais poderosos de Azur. Entregue estas peças de<br />

volta para Aurien, que é a rainha de Sombrorn e filha única de<br />

Limanoh, e terá a gratidão daquela feiticeira para o resto de<br />

seus dias. Diga que lhe presenteei com essas peças, o que não<br />

deixa de ser verdade, e que você, ao saber quem era seu antigo<br />

proprietário, resolveu restituir tão preciosa relíquia a seus<br />

verdadeiros donos.<br />

— Sim, agora entendo. Não sei como agradecê-lo por<br />

essa cortesia e confiança, Bakhin, mas garanto que a rainha<br />

Aurien ficará ainda mais grata a vós, que guardou em<br />

segurança por to<strong>dos</strong> estes anos, as armas do pai dela.<br />

— Não confie demais nos elfos! — retrucou o anão. —<br />

Mas garanta a boa vontade de Sombrorn com esta dádiva que<br />

estou lhe oferecendo, por amizade e apreço que tenho por ti.<br />

— Eu já pretendia firmar meus laços com Sombrorn,<br />

entretanto, de uma outra forma. — sorriu Etiènne.<br />

— Humm... Vejo que seu gosto pelas fêmeas decaiu<br />

desde que o conheci. Antes estava apaixonado por uma vangi,<br />

e agora, por uma elfa, que horror!<br />

— Acredite-me, o que sinto por Sindazel jamais irá<br />

desaparecer de meu coração, contudo, encontrei uma paz<br />

inacreditável numa bela elfa de Sombrorn. Você a conhecerá<br />

em breve, a menos que me proíba de voltar a Bakkin na<br />

companhia dela.<br />

333


Bakhin fez uma terrível careta de desaprovação, mas não<br />

teve coragem de proibir o amigo.<br />

— Não o proibirei, mas quando isso acontecer, minhas<br />

barbas já terão caído! Mas por enquanto, vamos retornar ao<br />

banquete, pois à mesa, poderá mostrar que seu gosto por<br />

comida é mais criterioso que por mulheres — o anão deu uma<br />

pequena piscadela para seu amigo.<br />

Os dois retornaram ao cômodo real de Bakhin, e em<br />

seguida se dirigiram para o enorme salão onde seria<br />

promovido o banquete em homenagem a Etiènne. As<br />

surpresas ainda não haviam acabado, e logo que entrou no<br />

salão, ao lado de Bakhin, foi surpreendido pela presença de<br />

seu irmão Michel Montbard, que já estava confortavelmente<br />

posicionado numa cadeira que fora disposta próxima à mesa<br />

da realeza, onde o próprio Etiènne sentar-se-ia.<br />

Ao ver seu irmão, correu em sua direção como uma<br />

criança sau<strong>dos</strong>a do pai que volta de uma longa viagem, e ao<br />

abraçá-lo com força, percebeu como seu irmão havia<br />

definhado desde a última vez que estiveram juntos na Guerra<br />

da Floresta Dourada. Mas a alegria de reencontrar o irmão foi<br />

superior a qualquer outra pergunta que desejasse fazer, e<br />

tornou a abraçá-lo com grande emoção. Bakhin aproximou-se<br />

<strong>dos</strong> dois e regozijou-se ao constatar a alegria de Etiènne.<br />

— Acho que fiz bem em ter mandado trazer seu irmão<br />

para esta ocasião; afinal de contas, Nouvelle Lyon não é tão<br />

longe assim de Bakkin.<br />

— Você é incrível meu amigo! Esta, sem dúvida alguma,<br />

foi a melhor surpresa que poderia ter me preparado! Estou<br />

muito feliz de reencontrar meu amado irmão.<br />

— Ainda não acabou, ainda não acabou! Mas vamos nos<br />

sentar, creio que vocês queiram conversar bastante antes que a<br />

comida seja servida. Irei resolver algumas questões, mas<br />

voltarei, é claro, para desfrutar do maravilhoso jantar que será<br />

servido em vossa homenagem.<br />

334


Os irmãos Montbard ficaram inteiramente à vontade, e<br />

conversaram sobre como passaram as últimas semanas, desde<br />

os acontecimentos pós-guerra. Michel notou que Etiènne<br />

estava muito mais belo e saudável do que antes, e que adotou<br />

uma postura mais firme até mesmo ao falar.<br />

Não teve coragem de falar sobre Sindazel, e muito<br />

menos de revelar sobre tudo o que acontecera. Todas as vezes<br />

que Etiènne tocava no nome da vangi durante a conversa,<br />

Michel sentia-se desconfortavelmente irritado, e logo<br />

procurava mudar o rumo da prosa. Contou a Etiènne sobre o<br />

suicídio de Peter, e mentiu ao falar sobre Grassac, dizendo que<br />

seu amigo havia sucumbido durante a guerra. Etiènne ficou<br />

chocado com os destinos de Peter e Grassac.<br />

O resto da noite transcorreu maravilhosamente bem,<br />

com Bakhin fazendo um belo discurso em favor de Etiènne,<br />

enaltecendo sua humildade, coragem e nobreza, garantindo<br />

uma vez mais, que o reino de Bakkin estaria sempre disposto a<br />

oferecer apoio aos homens. Ao finalizar seu discurso, Bakhin,<br />

ainda de pé e diante de to<strong>dos</strong> os presentes, anunciou que<br />

naquele momento entregaria a Etiènne um presente que havia<br />

forjado com suas próprias mãos, como prova do afeto e da<br />

enorme amizade que criara por seu amigo francês.<br />

Ao terminar de falar, Bakhin ergueu sobre sua cabeça<br />

dois belíssimos macha<strong>dos</strong> de combate, com reluzentes lâminas<br />

avermelhadas e vigorosos cabos, ambos craveja<strong>dos</strong> de pedras<br />

preciosas. Bakhin esmerou-se para produzir aquelas duas<br />

peças, e to<strong>dos</strong> ficaram encanta<strong>dos</strong> com a beleza daquelas<br />

achas.<br />

Com efeito, Bakhin era um excelente artífice, e apesar de<br />

durante longos anos não ter produzido absolutamente nada,<br />

provou que ainda era exímio na arte da forja e presenteara o<br />

amigo com magníficas peças feitas por suas próprias mãos.<br />

Etiènne recebeu o presente das mãos do próprio rei<br />

Bakhin, fazendo uma reverência a seu anfitrião. Ao pegar os<br />

macha<strong>dos</strong>, rodopiou-os em suas mãos com tamanha destreza<br />

335


que deixou os anões encanta<strong>dos</strong>. O peso daqueles macha<strong>dos</strong><br />

era perfeito, e Etiènne alegrou-se imensamente pelo presente<br />

dado por Bakhin.<br />

— Não tenho palavras para agradecer tamanha<br />

demonstração de amizade. Sinto-me honrado com tudo o que<br />

vosso povo sempre fez por meu irmão e por Nouvelle Lyon, e<br />

a única coisa que posso dizer, é que sempre que for preciso,<br />

estes macha<strong>dos</strong> rubros como o fogo, que me foram<br />

presentea<strong>dos</strong> por Bakhin, estarão dispostos ao favor do reino<br />

de Bakkin!<br />

Neste momento, to<strong>dos</strong> os anões presentes urraram de<br />

alegria, batendo suas pesadas canecas de vinho nas mesas,<br />

como que demonstrando sua satisfação e regozijo pelo<br />

reconhecimento de Etiènne ao carinho que lhe dedicaram.<br />

Etiènne e Michel, dormiram em Bakkin naquela noite,<br />

extasia<strong>dos</strong> pela conversa e bebida que os acompanharam<br />

durante todo o banquete, mas no dia seguinte, logo cedo,<br />

despediram-se do rei Bakhin e partiram cada um para seu<br />

destino. Etiènne voltava para Sombrorn, ansioso por<br />

reencontrar Arthea, e Michel, voltava para sua cidade,<br />

Nouvelle Lyon.<br />

<br />

Etiènne, acompanhado de alguns elfos de Sombrorn, que<br />

haviam firmado acampamento nas mediações da Montanha<br />

das Garbas, onde era o reino de Bakkin, não teve um regresso<br />

muito tranqüilo à Sombrorn. Quando atravessavam a orla<br />

oeste do Lago Negro, em direção à Floresta das Sombras,<br />

foram surpreendi<strong>dos</strong> por uma horda de orcs Grunkdai,<br />

provenientes das Montanhas Lunares.<br />

Estes orcs, ao contrário de todas as outras tribos<br />

conhecidas, eram os únicos a usar macha<strong>dos</strong> como armas, a<br />

exemplo <strong>dos</strong> anões. Lançaram-se sobre a comitiva de Etiènne<br />

com uma fúria alucinante, brandindo seus pesa<strong>dos</strong> macha<strong>dos</strong>,<br />

aterrorizando os poucos elfos que acompanhavam Etiènne. Foi<br />

336


uma luta covarde, pois haviam quase seis orcs para cada elfo<br />

de Sombrorn, e por mais que fossem excelentes guerreiros, um<br />

a um iam sucumbindo à investida <strong>dos</strong> perversos monstros.<br />

Etiènne, empunhou seus macha<strong>dos</strong> novos, que Bakhin havia<br />

lhe presenteado, e juntou-se aos elfos demonstrando grande<br />

destreza com suas novas armas, ora rechaçando os orcs que<br />

vinham em sua direção, ora arrasando o crânio de outros mais<br />

descuida<strong>dos</strong> ao seu redor.<br />

A luta prosseguia, mas o cansaço estava esgotando os<br />

poucos elfos que restavam e também a Etiènne. Ficaram<br />

acua<strong>dos</strong> na orla do lago, já com os pés dentro d’água, sem<br />

nenhuma opção de fuga, a menos que tentassem nadar<br />

naquelas águas sombrias, o que não era nada aconselhável,<br />

pois no Lago Negro, habitavam serpentes aquáticas<br />

gigantescas, capazes de engolir um elfo inteiro numa única<br />

arremetida contra suas vítimas.<br />

Muitos orcs foram mortos durante o combate, mas<br />

restavam vários deles ainda mais furiosos e toma<strong>dos</strong> de desejo<br />

pelo sangue daqueles poucos elfos que ainda resistiam<br />

bravamente.<br />

Para a sorte de Etiènne, quando a esperança parecia<br />

finalmente tê-lo abandonado, um pequeno grupo de<br />

cavaleiros de armadura dourada e reluzentes como o sol, de<br />

capas pretas lustrosas, surgiram ao norte, e lançaram-se contra<br />

os orcs que os cercavam. Os elfos começaram a gritar de<br />

alegria, pois reconheceram aqueles cavaleiros que acabavam<br />

de chegar e souberam que estariam salvos. <strong>Era</strong>m os<br />

destemi<strong>dos</strong> Cavaleiros Yasmunthil, os guerreiros monges <strong>dos</strong><br />

antigos elfos, temi<strong>dos</strong> em toda a Thalide! Estes guerreiros<br />

habitam a região do Vale da Neblina, sendo cavaleiros tão<br />

solitários quanto ocultos, pois jamais se revelavam, apenas<br />

conheci<strong>dos</strong> como os Yasmunthil, que significava algo parecido<br />

com “Espectro Elfo”.<br />

Os Yasmunthil lutavam como verdadeiros mestres da<br />

guerra, demonstrando segurança, domínio, destreza e acima<br />

337


de tudo, presença de espírito. Percebiam os golpes ao seu<br />

redor, e os aparavam ou rechaçavam com magnífica precisão e<br />

agilidade, deixando seus oponentes tão atônitos quanto<br />

apavora<strong>dos</strong>, pois nenhum golpe, por mais inesperado que<br />

fosse, conseguia atingir um Yasmunthil. Rolavam por suas<br />

capas, faziam piruetas e giravam no ar com tamanha leveza<br />

que pareciam voar. Estavam em um pequeno grupo de quatro<br />

cavaleiros, e suas presenças naquele local deveria mesmo ser<br />

atribuída a uma dádiva divina, pois os Yasmunthil já não<br />

deixavam sua região há décadas.<br />

Não demorou muito para que os Grunkdai, ao<br />

perceberem que não conseguiriam abater aqueles poderosos<br />

cavaleiros doura<strong>dos</strong> em suas capas negras, batessem em<br />

retirada.<br />

Após a luta, os Yasmunthil se aproximaram <strong>dos</strong> elfos<br />

sobreviventes do grupo de Sombrorn, que imediatamente se<br />

curvaram em agradecimento por lhes terem salvo as vidas.<br />

Um <strong>dos</strong> Yasmunthil falou em uma língua irreconhecível<br />

para Etiènne, mas um de seus companheiros de Sombrorn,<br />

traduziu a mensagem, informando-o de que o procuravam.<br />

Etiènne, espantado, sem conseguir imaginar por que razão<br />

estaria sendo procurado por aqueles cavaleiros doura<strong>dos</strong>,<br />

sobressaltou-se, ficando apreensivo. Contudo, deu dois passos<br />

à frente, em direção ao Yasmunthil, e fez uma curta mesura,<br />

como que revelando-se e colocando-se à disposição do<br />

estranho.<br />

O cavaleiro tornou a falar outras palavras<br />

irreconhecíveis, dirigindo-se a Etiènne que, constrangido por<br />

não entender o que o estranho falava, olhou para seu amigo,<br />

insinuando que aguardava sua nova intervenção na<br />

interpretação do que fora falado. O elfo prontamente atendeu<br />

ao olhar suplicante de Etiènne, e informara que o Yasmunthil<br />

dizia que outro grupo os estava procurando, e com eles havia<br />

uma pessoa querendo reencontrá-lo.<br />

338


Etiènne foi tomado por uma incrível emoção,<br />

acreditando que finalmente reencontraria Sindazel e poderia<br />

encará-la frente à frente, na tentativa de eliminar todas as suas<br />

dúvidas sobre a decisão que queria tomar em relação à Arthea.<br />

Virou-se para o Cavaleiro Yasmunthil, e sentiu uma enorme<br />

gratidão por aquele ser incógnito e quase sobrenatural.<br />

Com o olhar tomado de alegria, pediu a seu<br />

companheiro de Sombrorn que indagasse ao cavaleiro<br />

dourado sobre o que deveria fazer. Deveria acompanhá-los ou<br />

aguardar naquele local a chegada <strong>dos</strong> outros cavaleiros? Mas<br />

antes mesmo que o elfo pudesse se dirigir ao Yasmunthil, o<br />

outro grupo <strong>dos</strong> cavaleiros doura<strong>dos</strong> já podia ser avistado<br />

mais ao norte, vindo em sua direção. To<strong>dos</strong> olharam para os<br />

novos Yasmunthil que se aproximavam, e Etiènne, ainda mais<br />

ansioso e com o coração retumbando aceleradamente dentro<br />

do peito, tentava identificar Sindazel entre eles, mas não<br />

conseguiu encontrá-la. Quando os novos Yasmunthil se<br />

juntaram a eles, Etiènne ficou surpreso quando um deles veio<br />

diretamente em sua direção, e o tomou nos braços, com um<br />

afetuoso e caloroso abraço, resmungando algumas palavras<br />

que ele sequer conseguiu ouvir direito, tamanha fora sua<br />

estupefação.<br />

Numa reação instintiva ao surpreendente abraço,<br />

Etiènne, que ficara com seus braços abertos, fechou-os<br />

envolvendo lentamente o corpo daquele estranho, tentando<br />

retribuir a demonstração de carinho que lhe fora dispensada.<br />

O cavaleiro, então, afastou-o e retirou seu belíssimo<br />

elmo dourado, que mais lembrava a cabeça de um dragão,<br />

com duas pequenas asas de morcego artisticamente<br />

trabalhada em ouro em suas laterais.<br />

Ao revelar-se, aquele rosto mais do que conhecido de<br />

Etiènne, injetado e banhado em lágrimas, encheu-o de<br />

felicidade, pois tratava-se de ninguém mais que, seu grande<br />

amigo Grassac! Emocionado, precipitou-se novamente sobre o<br />

339


amigo, e agora, abraçou-o com toda alegria, agradecendo a<br />

Deus pela grata surpresa num momento mais que oportuno.<br />

— Ainda bem que meus novos companheiros o<br />

encontraram a tempo. Se demorassem mais um pouco, teria<br />

perdido o único e verdadeiro amigo que tenho!<br />

— Não acredite nisso, tínhamos tudo sob controle! Seus<br />

companheiros doura<strong>dos</strong> quase não fizeram nada, ficaram<br />

apenas com as sobras. — Grassac fez uma careta de incrédulo<br />

para Etiènne, sorrindo extasiado de tanta felicidade.<br />

— Como se eu pudesse acreditar nisso! — os dois riram,<br />

se abraçaram e caminharam juntos por algum tempo, à beira<br />

do lago. Os Yasmunthil, reuniram-se aos elfos de Sombrorn e<br />

amontoaram as carcaças <strong>dos</strong> orcs, para queimá-las. Trataram<br />

<strong>dos</strong> elfos que estavam com alguns ferimentos, improvisaram<br />

um breve funeral para os companheiros mortos e, logo em<br />

seguida, sentaram-se em círculo, aguardando o retorno <strong>dos</strong><br />

dois humanos que pareciam colocar em dia meses de conversa<br />

perdida.<br />

Grassac, apesar de ainda guardar um ódio mortal por<br />

Michel Montbard, poupou seu amigo Etiènne da verdade,<br />

quando este o indagou sobre como havia sobrevivido após a<br />

Guerra da Floresta Dourada, se seu irmão mais velho o havia<br />

informado de sua morte. Muito a contragosto e com certa<br />

relutância, Grassac confirmou a versão de seu traidor<br />

afirmando que, na verdade, não fora encontrado por ninguém<br />

e havia sido dado como morto. Assim, também mentiu para<br />

Etiènne, abreviando ao máximo o assunto e acentuando mais<br />

o fato sobre como fora parar junto aos Yasmunthil, sem<br />

revelar-lhe a atitude desumana de Michel na Guerra da<br />

Floresta Dourada. Limitou-se a contar um pouco sobre sua<br />

nova vida e de como estava feliz ao lado daqueles elfos<br />

maravilhosos e dedica<strong>dos</strong>, que muito o estavam ensinando<br />

sobre a vida em <strong>Virgo</strong>, e to<strong>dos</strong> os seus perigos.<br />

Após uma demorada conversa, os dois despediram-se<br />

emocionadamente, mas não sem excessivas promessas de que<br />

340


procurariam um ao outro assim que cumprissem, cada um,<br />

suas pendentes questões. Grassac, iria concluir seu<br />

treinamento com seus salvadores, os Cavaleiros Yasmunthil, e<br />

Etiènne, conforme revelara ao amigo, estava retornando à<br />

Sombrorn para unir-se em matrimônio com Arthea, de quem<br />

lhe falara com nítida alegria na alma, fato que deixou Grassac<br />

mais aliviado, pois acreditava que Sindazel havia esquecido<br />

Etiènne, preterindo-o por causa de Michel.<br />

Após um caloroso abraço, finalmente separaram-se.<br />

Etiènne, ainda ficou observando seu amigo distanciar-se para<br />

o oeste, junto aos Cavaleiros Yasmunthil. Rezou uma prece<br />

secretamente em seu coração, rogando a Deus que zelasse por<br />

seu amigo, e que pudessem se rever o mais breve quanto fosse<br />

possível. Tão logo Grassac sumiu de vista, Etiènne e seus<br />

companheiros de Sombrorn, que agora contavam apenas onze,<br />

retomaram seu caminho ao norte, pois pretendiam chegar ao<br />

reino antes de anoitecer.<br />

<br />

Quando chegou à Sombrorn, Etiènne logo foi<br />

interpelado por Ascathion, o ministro do reino, que fora<br />

incumbido de lhe tomar todas as informações possíveis<br />

referentes à sua visita até o reino de Bakkin. Exausto da<br />

cansativa viagem, e sobretudo, muito abatido devido ao<br />

confronto com os orcs Grunkdai na região do Lago Negro,<br />

Etiènne não se demorou muito com Ascathion, resumindo ao<br />

máximo possível tudo o que havia acontecido. Ao final da<br />

breve conversa, Etiènne entregou a Ascathion as armas e<br />

armadura de Limanoh, informando que as havia recebido<br />

como presente do próprio rei Bakhin, mas ao saber que<br />

pertencerá ao pai da rainha, decidiu que fossem restituídas à<br />

Aurien. O ministro arregalou os olhos, incrédulo diante<br />

daquela atitude de Etiènne, que ao invés de manter consigo<br />

aquele admirável e precioso conjunto de armas e armadura,<br />

espontaneamente resolveu entregá-los à sua rainha.<br />

341


Ascathion fez uma curta mesura para Etiènne,<br />

encantado com sua generosidade e nobreza de espírito.<br />

Os dois se afastaram e Etiènne foi ao encontro de sua<br />

amada. Apesar de estar dentro do reino de Sombrorn, ainda<br />

precisava caminhar um longo trecho até as muralhas<br />

interiores que protegiam o conjunto de habitações onde<br />

morava.<br />

Etiènne observou que Arthea o aguardava nos portões<br />

desta muralha que leva ao interior da região de habitações.<br />

Muito aflita, num estado de nervos que jamais havia<br />

encontrado nela antes, viu sua amada correr em sua direção,<br />

atirando-se aos prantos em seus braços, sem conseguir se<br />

controlar. Ficou confuso e pesaroso ao vê-la neste estado de<br />

desespero.<br />

Tentou acalmá-la, mas era inútil, pois Arthea não<br />

conseguia parar de chorar, agarrada a Etiènne com tanta<br />

violência que o estava machucando. Atônito, ele tentou<br />

confortá-la em seus braços, e aguardou pacientemente que ela<br />

se acalmasse por si, tal como um pai aguarda, sôfrego, o choro<br />

de um filho enfermo silenciar.<br />

Arthea, por fim, arrefeceu o sofrimento e soltou Etiènne,<br />

mas seu rosto ainda estava tomado de tristeza. Seus lin<strong>dos</strong><br />

olhos verdes estavam mergulha<strong>dos</strong> em uma vermelhidão<br />

sofrida, de quem chorara por várias horas. Etiènne acariciou<br />

seu rosto com ternura, limpando-lhe as lágrimas com seu dedo<br />

polegar e segurando suas mãos com delicadeza.<br />

— O que aconteceu minha amada? Que tristeza enorme<br />

é essa que se apossou de você?<br />

— Meu amor, tenho medo de perdê-lo! Não quero mais<br />

ficar sem você! Não quero que me deixe, nunca!<br />

— Mas por que está assim? Por que acha que irei deixála?<br />

Terei me demorado tanto em Bakkin, para supor uma coisa<br />

dessas?<br />

— Prometa que não irá me abandonar! Prometa que<br />

realizaremos nossos planos e celebraremos a primeira união<br />

342


entre homens e elfos com o nosso amor! — Arthea estava<br />

demonstrando-se muito fragilizada, e praticamente suplicava<br />

um voto de fidelidade a Etiènne.<br />

— Meu amor! Meu amor, eu não a abandonarei! Mas<br />

agora, quero que me conte o motivo desta crise!<br />

— Sindazel!<br />

Etiènne ficou assombrado ao ouvir o nome da vangi<br />

sendo proferido por Arthea. Ficou lívido, e mal conseguiu<br />

esconder a afetação que o nome de Sindazel lhe causara.<br />

— O que tem Sindazel? — perguntou Etiènne, tentando<br />

inutilmente dissimular que havia ficado abalado ao ouvir o<br />

nome da vangi.<br />

— Ela está em Sombrorn! Veio encontrá-lo!<br />

— Calma, meu amor. Quero que confie em mim. Nada<br />

irá nos separar, nem mesmo Sindazel. Todavia, acredito que<br />

este encontro seja importante. Eu sabia que mais cedo ou mais<br />

tarde nos encontraríamos novamente. Deixe-me falar com ela,<br />

prometo-lhe que tudo ficará bem conosco.<br />

— Você tem certeza de que realmente quer encontrá-la?<br />

— É preciso, meu amor. Esperei mais de quatro anos por<br />

este momento, embora tenha sido com outra perspectiva antes<br />

de conhecê-la aqui em Sombrorn. Mas se eu não souber o que<br />

vou sentir diante de Sindazel, se eu não vencer esta angústia<br />

que ainda domina meu coração, não poderei entregar-me de<br />

corpo e alma aos nossos sonhos.<br />

— E se ela... se ela conquistar de vez seu amor?<br />

Etiènne tornou a abraçar Arthea, dizendo em seu<br />

ouvido:<br />

— Não estou correndo este risco, pois meu amor está<br />

protegido dentro de seu coração, minha amada.<br />

Arthea, agarrou-se com força a seu homem, jurando-lhe<br />

entre lágrimas que haveria de o amar por toda sua vida.<br />

Depois de prometer a Etiènne que o aguardaria em casa, os<br />

dois despediram-se com um demorado beijo. Cheia de<br />

angústia, observou seu amado afastar-se em direção ao palácio<br />

343


central, onde, conforme informou a Etiènne, Sindazel estava<br />

hospedada há vários dias. Arthea retornou para sua casa,<br />

conforme prometera a Etiènne, mas com o coração pesado.<br />

<br />

Sindazel aguardava por Etiènne num amplo cômodo<br />

que lhe fora cedido pela própria rainha Aurien. Passou vários<br />

dias em Sombrorn esperando pelo retorno de seu amado.<br />

Quando foi avisada de que ele havia regressado e já se<br />

encontrava no palácio onde estava, foi tomada por uma<br />

enorme alegria.<br />

Quando Etiènne bateu à sua porta, mal pôde conter sua<br />

felicidade. Com o peito arfando foi correndo recebê-lo, cheia<br />

de amor para dedicar-lhe, após tanto tempo e tantos<br />

desencontros. Ao abrir a porta, os dois se entreolharam,<br />

ofegantes, ambos com o batimento cardíaco acelerado como<br />

nunca. Sindazel lançou-se sobre Etiènne abraçando-o,<br />

recostando a cabeça em seu peito e envolvendo-o por inteiro<br />

com suas magníficas asas.<br />

Etiènne mal podia acreditar que Sindazel estava ali, em<br />

seus braços, com o corpo colado ao seu e oferecendo-lhe a<br />

mais deliciosa sensação de felicidade que jamais<br />

experimentara em sua vida, tamanha havia sido sua ansiedade<br />

em reencontrá-la. Sentiu o corpo macio de Sindazel, seu<br />

cheiro, as plumas de suas asas sobre seu próprio corpo<br />

pareciam enfeitiçá-lo. Não resistindo à tentação, também a<br />

abraçou, agora forçando-a com firmeza contra seu próprio<br />

corpo e acariciando seus negros cabelos se<strong>dos</strong>os.<br />

— Por que você não respondia aos meus chama<strong>dos</strong>? —<br />

indagou Etiènne. — Passei dias, semanas, meses e anos<br />

clamando por você. Por que não veio me encontrar?<br />

— Meu amor! Muitas coisas aconteceram e impediramme<br />

de vir a teu encontro. Não fazia idéia do que era o amor,<br />

até que nos conhecemos, mas somente depois de certo tempo e<br />

certas experiências dei-me conta de que estava perdidamente<br />

344


apaixonada por ti. Perdoe-me! Perdoe-me por ter me<br />

demorado tanto, meu amor.<br />

Afastando-se um pouco de Sindazel, segurou suas mãos<br />

com a cabeça baixa por alguns segun<strong>dos</strong> e então ergueu o<br />

rosto com o olhar injetado, dizendo:<br />

— Deus é testemunha de quanto amor eu sinto por você,<br />

Sindazel. É testemunha de quanto sofrimento suportei por sua<br />

ausência, por seu silêncio, e ainda assim, jamais perdi um<br />

mínimo que fosse deste amor que tenho por você!<br />

— Meu amor, que bom! Agora poderemos ficar juntos,<br />

por todo o tempo que quiser. Nem mesmo Granuzael poderá<br />

impedir nossa união!<br />

— Não, Sindazel. Você não compreende; apesar de ainda<br />

amá-la do fundo de minha alma, não poderemos mais nos<br />

unir, pois já assumi um compromisso com outra pessoa, e<br />

mesmo que eu quisesse, não poderia traí-la!<br />

Sindazel não acreditou no que acabara de ouvir,<br />

enrubescendo e sentindo-se de certa forma, ela própria traída.<br />

Valendo-se de seus poderes, perscrutou a mente de Etiènne, e<br />

ao descobrir o motivo pelo qual Etiènne havia falado daquela<br />

forma, desatou a chorar, inundando de lágrimas seus belos<br />

olhos azuis, transformando-os em dois minúsculos oceanos de<br />

tristeza.<br />

Etiènne, não podendo suportar a tristeza de sua amada,<br />

também foi banhado por suas lágrimas.<br />

— Sinto muito, meu amor, estou sentindo-me<br />

dilacerado!<br />

— Como pôde permitir isso? — questionou. — Como<br />

pudestes trocar-me por outra, sem ao menos ter deixado de<br />

me amar? Não consigo entender, porque, sim, tu me amas, sou<br />

capaz de saber estas coisas sem mesmo me confessares, mas<br />

não sou capaz de entender o que o fez abandonar-me, em<br />

nome de Arthea!<br />

345


Etiènne olhou assustado para a vangi, pois como ela<br />

descobrira que Arthea era sua companheira? Teria, Arthea,<br />

conversado algo com Sindazel?<br />

— Como sabe? Como sabe que é Arthea?<br />

— Não importa! Como disse, sou capaz de descobrir o<br />

que preciso sem que haja a necessidade de respostas verbais.<br />

Como vangi, tenho certos poderes, mas isso não vem ao caso;<br />

o que me deixa arrasada, é não entender como pôde se deixar<br />

apaixonar por outra mulher, sentindo tanto amor por mim.<br />

— Você jamais entenderá o coração <strong>dos</strong> homens!<br />

— Talvez você tenha razão, porque isto é inconcebível, e<br />

não consigo aceitar o que está fazendo comigo! Me amas<br />

profundamente, e ainda assim pretende deixar-me só.<br />

— Bendito é o homem que consegue canalizar todo o seu<br />

amor para uma única mulher, e agraciada a mulher que<br />

conseguir absorver para si todo o fogo de desejo e paixão que<br />

consomem a alma de um homem!<br />

— Etiènne, pense no que está fazendo. Eu mesma<br />

poderei conversar com Arthea, se desejar. Ela há de entender<br />

que nosso amor precede ao que existe entre vocês. Não deixe<br />

que uma aventura com esta elfa possa suplantar os<br />

sentimentos que existe entre nós.<br />

— Gostaria muito que as coisas fossem tão simples como<br />

coloca, mas o que sinto por Arthea não é o fogo de uma<br />

aventura passageira. Por favor, não me peça para fazer o que<br />

não posso. Preciso voltar para Arthea, mas antes de deixá-la,<br />

quero que saiba, Sindazel, que jamais deixarei de te amar, e<br />

pensarei em você to<strong>dos</strong> os dias pelo resto de minha vida!<br />

— Por favor, não vá ainda. Precisamos conversar mais<br />

um pouco, precisamos encontrar uma solução para esta<br />

situação inusitada. Em nome do amor que sentes por mim,<br />

fique mais um pouco e deixe-me pensar em algo.<br />

— Não posso, você não sabe o quanto está sendo difícil<br />

para mim tomar esta decisão, não posso mais ficar!<br />

346


— Então me beije antes de ir, por favor, não me deixe<br />

sem ao menos permitir que conheça seus lábios e sinta seu<br />

amor fluindo para dentro de mim através de seu beijo.<br />

— Não, por Deus! Não posso fazer isso! Por mais que eu<br />

deseje este beijo, não posso!<br />

Etiènne ficou louco com a proposta de Sindazel, queria<br />

correr e fugir dali, mas ao mesmo tempo, queria se atirar aos<br />

braços da vangi e beijá-la como sempre sonhou,<br />

apaixonadamente.<br />

— Eu poderia usar meus poderes para conseguir<br />

dominar sua mente e roubar este beijo, mas percebo em você<br />

uma dignidade e nobreza tão grande, que não irei fazer isso,<br />

mas imploro, meu amor, me beije, me beije uma única vez,<br />

não me deixe ir embora sem provar do seu amor.<br />

Sindazel caminhou novamente até bem próximo a<br />

Etiènne, abrindo os braços e cerrando os olhos, esperando<br />

receber o beijo tão desejado.<br />

Sem conseguir mover-se do lugar, e tomado pelo<br />

desespero de quem precisa tomar uma decisão que não quer,<br />

acabou sucumbindo à tentação e mergulhou em Sindazel,<br />

beijando-a loucamente com toda a paixão contida que sentia<br />

por ela.<br />

Embalado pelo beijo, encheu-se do desejo de tocar os<br />

seios de Sindazel, consumando definitivamente, o que já<br />

estava considerando uma horrível traição contra Arthea, mas<br />

ao pensar na elfa, afastou-se bruscamente de Sindazel.<br />

— Adeus!<br />

Foi a última palavra que a vangi ouviu de Etiènne, que<br />

retirou-se apressadamente do cômodo onde estavam. Sem<br />

coragem de abrir os olhos, Sindazel levou as mãos ao rosto e<br />

permaneceu imóvel, mergulhada numa profunda tristeza.<br />

<br />

Enquanto Sindazel e Etiènne se encontravam, Ascathion<br />

fora até sua majestade, a rainha Aurien, para anunciar-lhe<br />

347


sobre o que Etiènne relatara e, principalmente, entregar-lhe as<br />

armas e armadura de Limanoh, seu falecido pai.<br />

Atônita, ao rever a bela armadura de Limanoh, Aurien<br />

abraçou as peças com grande emoção, e apesar de não se<br />

deixar abater por sentimentos na frente de quem quer que<br />

fosse, desde a morte de seu pai, desta vez não conseguiu<br />

conter as lágrimas ao relembrar do dia em que o vira pela<br />

última vez saindo de Sombrorn, trajando aquela suntuosa<br />

armadura de guerra.<br />

— Como conseguiu isso?<br />

— Segundo Etiènne, os anões de Bakkin encontraram o<br />

corpo de vosso pai, que jazia no campo <strong>dos</strong> mortos após a<br />

derrota de nosso exército no Vale da Neblina. Ao reconhecer o<br />

rei, os anões se apoderaram de suas armas e armadura, para<br />

que fossem entregues a Bakhin, que por sua vez, as guardou<br />

até esta ocasião, em que as usou para presentear nosso<br />

hóspede.<br />

— Então, porque ele não quis manter o presente? Afinal,<br />

os anões não o presentearam com os despojos de que sequer<br />

faziam jus? Raça maldita!<br />

— De fato, apesar de não terem comparecido a tempo<br />

para a batalha, ficaram com os despojos daquele dia, pois os<br />

orcs sobreviventes bateram em retirada.<br />

— Majestade, permita-me uma observação, o importante<br />

é que os objetos de vosso pai foram resgata<strong>dos</strong> e guarda<strong>dos</strong><br />

por to<strong>dos</strong> estes anos, e pelo estado das peças, percebo que<br />

tiveram o maior zelo e respeito. Agora, estão novamente em<br />

poder de vossa majestade, que poderá, se desejar, uma vez<br />

mais empunhar a temida espada mestra de Sombrorn.<br />

Ainda abraçada à armadura de seu pai, Aurien insistiu<br />

em saber o motivo pelo qual Etiènne desdenhara de tal<br />

presente.<br />

— Majestade, ao tomar conhecimento de que tais peças<br />

pertenceram a vosso pai, nosso hóspede não hesitou em<br />

devolvê-las, abrindo mão de seu direito em ficar com elas.<br />

348


— É incrível ver um humano desprezar um tesouro<br />

inestimável como este. São peças adornadas em ouro e pedras<br />

preciosas que mesmo os anões dariam suas vidas para ficar<br />

com elas. É ainda mais incrível que Bakhin tenha se permitido<br />

privar-se destas ricas peças. Que poder este humano poderá<br />

Ter exercido sobre o maldito anão, para que ele lhe<br />

presenteasse com tanta riqueza?<br />

— Não tenho certeza, majestade, mas talvez, para esta<br />

raça de criaturas, estes humanos, nem toda a riqueza constituise<br />

de ouro ou pedras preciosas. Quem sabe consigam entender<br />

como tesouros a honra, a justiça e o amor? Talvez estes<br />

sentimentos possam ser toma<strong>dos</strong> por estas estranhas criaturas<br />

como tesouros ainda mais caros que quaisquer outros que<br />

sejam de natureza material.<br />

— Talvez, Ascathion, talvez.<br />

Com um semblante preocupado e seus belos olhos<br />

acizenta<strong>dos</strong> ainda mareja<strong>dos</strong>, tornou a abraçar a armadura de<br />

seu pai e ficou um longo tempo meditando sobre a atitude de<br />

Etiènne.<br />

<br />

Arthea, estava aguardando Etiènne na sacada de seu<br />

aposento, que dava para os maravilhosos jardins de<br />

Sombrorn, cheios de suas ricas e coloridas flores que<br />

perfumavam todo o reino com seus diferentes cheiros<br />

adocica<strong>dos</strong>. Encostada na parede, com o olhar ainda injetado e<br />

perdido na imensidão de cristais que cobriam <strong>Virgo</strong> com suas<br />

matizes rosadas, sentiu um frêmito correr-lhe pelo corpo<br />

quando ouviu, assustada, o enorme grasnado de<br />

Laicrunallian. Correu até o limite do parapeito de sua sacada,<br />

e observou o vôo em curva que o enorme dragão branco fez ao<br />

longo das muralhas de Sombrorn, partindo rumo ao oeste.<br />

Num átimo, sua sensação de medo e angústia foram<br />

substituí<strong>dos</strong> por alívio e esperança, pois sabia que<br />

349


Laicrunallian estava partindo para Vangilla levando Sindazel<br />

consigo.<br />

Correu para dentro de seu quarto, a tempo de ver<br />

Etiènne transpondo a luxuosa porta, com um sorriso que a fez<br />

sentir uma felicidade inundando-lhe a alma como um<br />

verdadeiro maremoto de emoções.<br />

— Sou o seu Etiènne, para sempre!<br />

Arthea atirou-se em seus braços, e o beijou<br />

apaixonadamente, abraçando-o com fervor, acariciando o<br />

rosto e as costas de seu amado num movimento contínuo e ao<br />

mesmo tempo desesperado, como que buscando senti-lo, para<br />

certificar-se que era verdade que ele estava ali, com ela.<br />

— Tive tanto medo, meu amor! — disse a elfa.<br />

— Não há mais nada a temer, minha doce amada. Você<br />

semeou em meu coração um amor que, brotou com tanta<br />

força, que jamais conseguirei viver sem você. Acredite-me,<br />

guardarei com respeito o carinho e amor que sinto por<br />

Sindazel, mas hoje, eu me entrego a você sem quaisquer<br />

dúvidas, para vivermos um para o outro, pelo resto de nossos<br />

dias.<br />

Apesar de profundamente triste e não ter certeza<br />

absoluta do que estava prometendo para Arthea, Etiènne<br />

precisava a todo custo, dissimular sua angústia, para não<br />

despertar a desconfiança em sua companheira.<br />

Arthea, por sua vez, comovida e cheia de seu amor,<br />

compreendeu as palavras de Etiènne, e em seu íntimo,<br />

regozijou-se por ter prevalecido à vangi, conquistando seu<br />

homem quando imaginava estar tudo perdido. Sorriu,<br />

radiante, com aqueles lábios macios e vermelhos como rubis,<br />

mostrando aqueles perfeitos dentes brancos como pérolas, e<br />

abraçou seu amado novamente, com força.<br />

— Eu te amo, eu te amo!<br />

— Eu também te amo, minha vida! Te quero para<br />

sempre! — Etiènne a beijou, com amor verdadeiro, um amor<br />

que estivera há muito tempo perdido dentro de seu coração,<br />

350


mas agora havia encontrado seu destino. Amava as duas e não<br />

sabia como suportaria viver longe de Sindazel, mas sabia que<br />

o compromisso assumido naquele momento com Arthea<br />

deveria ser intocável e respeitado com toda a sua força.<br />

<br />

Assim como o coração de Etiènne, confuso e cheio de<br />

paixão, também reage a própria humanidade, caminhando por<br />

esta e por todas as terras, sejam elas reais ou fantasiosas, tenha<br />

sido no passado, possa ser agora, ou talvez no futuro, mas<br />

sempre, sempre caminhando com as mesmas peculiaridades<br />

natas aos corações de cada um <strong>dos</strong> homens, com paixão.<br />

Normalmente aflitos e tumultua<strong>dos</strong>, mas sempre desejosos de<br />

encontrar algo novo que, muitas vezes, sem mesmo ter certeza<br />

do que se trata, precisam buscar, vivenciar e desvendar, para<br />

desta forma garantir sua vitalidade. Às vezes, o coração de um<br />

homem mergulhado em suas paixões, é sôfrego e abatido,<br />

chegando mesmo a quase interromper sua atividade, mas no<br />

momento seguinte, através de uma nova brisa, um novo<br />

suspiro, bate forte e violento mais uma vez, como que<br />

dizendo: Estou vivo!<br />

Ele é capaz de nos levar aos mais remotos lugares dentro<br />

de nossa própria consciência, lugares sombrios e<br />

desconheci<strong>dos</strong> que nos revelam as muitas faces da<br />

humanidade, refletindo-se em nosso próprio ser. Medo, receio,<br />

angústia, dor, sofrimento, to<strong>dos</strong> elementos que fazem parte de<br />

nossas vidas, mas que enriquecem assustadoramente a busca<br />

de cada um de nós, que superando inúmeros e sucessivos<br />

obstáculos, insistimos em prosseguir adiante. Obstáculos que<br />

surgem a cada nova trilha, a cada nova tentativa desesperada<br />

de fuga <strong>dos</strong> problemas que nos afligem a to<strong>dos</strong>, obstáculos<br />

que forçam ainda mais nossos corações a explorar todas as<br />

suas forças.<br />

E há, sem sombra de dúvida, poderosas forças que<br />

nascem dentro de nossos corações, uma vez que sejam<br />

351


submeti<strong>dos</strong> à estes obstáculos, porque despertam outros<br />

elementos antagônicos aos cita<strong>dos</strong> anteriormente. Fé,<br />

esperança, compaixão, felicidade, amor. Um coração completo<br />

é aquele que desvenda to<strong>dos</strong> os seus mistérios e revela to<strong>dos</strong><br />

os seus elementos. Um coração completo é aquele que<br />

encontra o seu próprio equilíbrio, entre o bem e o mal, entre a<br />

alegria e a tristeza. Felizes os homens que encontram este<br />

equilíbrio, pois em seus corações, poderão brotar com<br />

plenitude as sementes de um amor verdadeiro.<br />

Aos homens, fora concedida a oportunidade de escolher<br />

seus próprios caminhos, seja para o bem, seja para o mal. Uma<br />

perigosa dádiva, mas que nos permite tomar esta decisão, não<br />

em um único momento, e muito menos definitivamente, mas a<br />

cada metro percorrido em nossa longa caminhada pela vida,<br />

às vezes solitários, outras vezes, apoia<strong>dos</strong> em outros<br />

peregrinos que vamos conhecendo em nossas trilhas.<br />

Algumas trilhas passam diante de nossos olhos, sem que<br />

ousemos aventurarmo-nos a conhecê-las, enquanto outras,<br />

menos encorajadoras, passam por <strong>Virgo</strong>, e de repente, nos<br />

sentimos convida<strong>dos</strong> ou instiga<strong>dos</strong> a segui-las, mas são<br />

apenas fantasiosas, e não podem nos receber<br />

verdadeiramente.<br />

Mas revelam, sim, e como revelam, que nossas vidas<br />

humanas são efêmeras, e que nosso tempo neste mundo é<br />

curto demais para arrependimentos, intransigências e até<br />

mesmo para demasia<strong>dos</strong> sofrimentos.<br />

Etiènne lutou e sobreviveu, encontrou amigos e<br />

inimigos, sofreu e amou intensamente. Encontrou muitos<br />

obstáculos, momentos de desolação, de desespero, mas<br />

também momentos de alegria e de felicidade. Teve opções, fez<br />

escolhas, certas ou erradas, quem saberá dizer? Mas fez suas<br />

escolhas, sempre seguindo os caminhos que seu coração<br />

indicava, assim como a maioria <strong>dos</strong> desbravadores de nossa<br />

raça fizeram em nossa história.<br />

352


Viverá ao lado de Arthea por muitos anos em Sombrorn,<br />

e apesar de jamais conseguir esquecer Sindazel, a amará com<br />

toda sua alma. Terá seus filhos com a elfa, os educará com<br />

amor e carinho como um bom pai, mas há algo certo para<br />

to<strong>dos</strong> os homens mortais, e não pensem que irei dizer que é a<br />

morte, em absoluto! Existe outra coisa na vida <strong>dos</strong> homens<br />

mortais que também é certa, tão certa quanto a própria morte<br />

que acabamos de lembrar. É a jornada! Sim, a jornada de<br />

nossas vidas, com suas surpresas, seus obstáculos, suas novas<br />

trilhas, elas não param de surgir diante de nós, pois nosso<br />

coração continua a bater. Somente quando ele parar não<br />

haverá novas opções, novas tentações, novas provações. A<br />

jornada <strong>dos</strong> homens continuará, sempre. Mesmo quando se<br />

passarem muitos séculos e a profecia da Pedra Klaopala se<br />

consumar, mesmo quando não existirem mais os elfos, os<br />

anões, os orcs e todas as outras raças superiores, a jornada <strong>dos</strong><br />

homens por todas as terras continuará os envolvendo em<br />

muitas outras aventuras. A história <strong>dos</strong> homens não termina<br />

em nosso tempo...<br />

Fim<br />

353


Apêndices


Vangis<br />

C<br />

APÊNDICE A<br />

As raças superiores<br />

ertamente, estes são os seres mais belos e maravilhosos de<br />

todas as criaturas que viram a luz deste mundo. Não<br />

apenas por sua magnífica aparência, mas também pelo sentido<br />

que dão às suas próprias vidas, assumindo um compromisso<br />

de bondade e caridade que passa de geração para geração, e já<br />

perdura por muitos séculos. Estes seres de aparência angelical,<br />

bem caracterizada pelas pinturas da época renascentista,<br />

remontam à <strong>Era</strong> Gênesis, e acredita-se, foi a primeira raça<br />

superior a habitar não só este lugar, a que chama de 1Vanalla,<br />

mas sim, todo o planeta.<br />

Habitantes da região superior de <strong>Virgo</strong>, que forma uma<br />

gigantesca crosta de cristais rosa<strong>dos</strong> cobrindo toda a extensão<br />

do lugar, referenciam-se a este lugar como 2Vangilla. Existem<br />

muitas colônias de vangis por toda esta área, e eles são muito<br />

numerosos. Todo este “Céu Vítreo” é constituído por milhares<br />

de gigantescas estalactites de cristal rockzala, uma espécie de<br />

cristal que possui a mesma dureza que um quartzo, e que<br />

chegam a medir até dezoito metros de comprimento. Na<br />

1 Vanalla é o nome pelo qual os vangis conhecem <strong>Virgo</strong>.<br />

2 Vangilla é a morada <strong>dos</strong> vangis, cidade de cristais situada sobre a crosta de rochas<br />

cristalinas que cobrem toda a Vanalla.


maioria das vezes, possuem enormes fendas que formam<br />

compri<strong>dos</strong> túneis. A maior parte destes túneis leva ao interior<br />

deste fabuloso habitáculo onde os vangis edificaram suas<br />

cidades, mas muitos deles terminam numa intrincada rede de<br />

túneis menores, um verdadeiro labirinto de canais que levam<br />

a <strong>Virgo</strong>, intensas correntes de ar oxigenando suas diversas<br />

regiões.<br />

Os vangis, assim como os elfos, são muito pareci<strong>dos</strong> com<br />

os seres humanos no que tange sua morfologia externa. Não<br />

fossem suas proeminentes omoplatas pneumáticas cobertas<br />

por uma bela plumagem, o que lhes dá o aspecto de seres<br />

ala<strong>dos</strong>, poderíamos dizer que se tratavam de humanos.<br />

É impressionante como determinadas características<br />

persistem nestas criaturas, além <strong>dos</strong> séculos. To<strong>dos</strong> os vangis<br />

do sexo feminino possuem cabelos negros e olhos azuis.<br />

To<strong>dos</strong>, sem exceção, ao passo que os vangis do sexo oposto,<br />

possuem cabelos loiros e olhos verdes. Não é possível<br />

encontrar uma única exceção entre eles neste sentido. Outra<br />

característica interessante, que os distingue bem, são os<br />

cabelos. To<strong>dos</strong> os vangis do sexo masculino possuem cabelos<br />

cachea<strong>dos</strong>, ao passo que suas fêmeas possuem cabelos longos<br />

e completamente lisos e se<strong>dos</strong>os.<br />

É uma raça poderosa que possui alguns poderes de<br />

magia, e sua fonte de mana 1 está em suas próprias asas.<br />

Raramente os vangis são encontra<strong>dos</strong> na parte inferior de<br />

<strong>Virgo</strong> e só descem à superfície quando percebem que sua<br />

intervenção é extremamente necessária para manter o<br />

equilíbrio entre as forças naturais e sobrenaturais que atuam<br />

naquele lugar.<br />

Estas criaturas fantásticas possuem hábitos muito<br />

peculiares. Um <strong>dos</strong> mais interessantes é a forma como se<br />

vestem. Usam teci<strong>dos</strong> simples, entretanto cintilantes, em<br />

forma de túnica. A única diferença entre as vestimentas <strong>dos</strong><br />

1 Forças sobrenaturais que, uma vez controladas com o poder da mente, revertem-se<br />

em poderosas armas que podem ser usadas contra objetos ou pessoas.<br />

356


vangis do sexo masculino para as suas companheiras, é a<br />

utilização de uma espécie de cordão que usam no abdômen,<br />

fazendo com que a túnica fique dividida em duas partes, além<br />

do seu comprimento ser inferior, chegando apenas à altura<br />

<strong>dos</strong> joelhos.<br />

Pacíficos, raramente usam qualquer tipo de arma, e<br />

quando ataca<strong>dos</strong> ou em perigo, limitam-se a se defender com<br />

suas poderosas magias.<br />

Suas magias naturais não são muito numerosas. A<br />

principal magia que possuem é a levitação, e ao contrário do<br />

que muitos podem pensar, os vangis não são capazes de voar<br />

batendo suas asas. Na verdade, eles levitam através do mana<br />

de suas asas, e as usam para impulso e direcionamento de seu<br />

corpo, quando suspenso no ar. Outra magia muito importante<br />

que um vangi possui, é a de criar paredes de ar, onde uma<br />

barreira invisível impede a passagem de quaisquer criaturas e<br />

objetos. É com esta magia que eles mantém as entradas da<br />

Vangilla sempre fechadas, permitindo que apenas os de sua<br />

raça possam entrar e sair a qualquer tempo. São os únicos<br />

capazes de usar esta magia. Para eles, passar por estas paredes<br />

de ar, é tão simples quanto atravessar uma queda d’água.<br />

As entradas da Vangilla nunca ficam abertas, estão<br />

sempre bloqueadas para evitar a presença indesejável de<br />

intrusos ou inimigos naturais, como as garbas ou os wyverns.<br />

Apesar de sua morfologia externa ser muito semelhante a<br />

<strong>dos</strong> homens, à exceção das asas que surgem de suas<br />

omoplatas, o cruzamento entre humanos e vangis é<br />

impossível. Não existe a menor possibilidade de fecundação,<br />

uma vez que as diferenças são enormes em termos de<br />

ovulação e óvulos, comparando as fêmeas das duas raças.<br />

Uma lenda <strong>dos</strong> Vangis<br />

A história mais comum e contada entre os Vangis é a de<br />

um jovem casal, Glatael e Ariel, que no terceiro século da <strong>Era</strong><br />

357


Gênesis, desceu à superfície de <strong>Virgo</strong> para socorrer uma pobre<br />

criança elfa que estava ferida e perdida na Grande Floresta. O<br />

casal nunca mais retornou à Vangilla, e na ocasião, um grande<br />

grupo de vangis desceu em busca <strong>dos</strong> desapareci<strong>dos</strong>. Este<br />

grupo foi liderado por Zaluzael, um enorme e temido vangi,<br />

por ser considerado cruel, o que não era nada comum entre os<br />

de sua raça.<br />

Com efeito, Zaluzael, com seus olhos verdes como uma<br />

esmeralda, mas olhar frio como as mais remotas e geladas<br />

regiões conhecidas, era famoso por ter interrompido o<br />

processo vital de quase trinta vangis na Vangilla.<br />

A verdade a respeito do que sucedera com o casal de<br />

vangis desapareci<strong>dos</strong>, ninguém sabia. Quando Ariel e Glatael<br />

chegaram ao solo, perto do vilarejo de Combos 1, na região do<br />

reino de Plarionthil, eles se concentraram uni<strong>dos</strong> para tentar<br />

localizar o pequeno elfo através da percepção.<br />

Sentiram então, a presença de uma grande dor, um<br />

sofrimento e medo vin<strong>dos</strong> de poucos metros adiante do ponto<br />

onde estavam. Rapidamente o casal se dirigiu para a fonte de<br />

sofrimento que haviam percebido, com o objetivo de aliviar a<br />

agonia do pequeno elfo.<br />

Quando chegaram próximos ao local começaram a ouvir<br />

gritos agonizantes, e cautelosamente continuaram a caminhar<br />

na direção deste som macabro para ver o que acontecia.<br />

Ficaram horroriza<strong>dos</strong> ao testemunhar a cena de tortura que<br />

cinco guerreiros do Império de Nouvelle Amiens estavam<br />

proporcionando ao jovem elfo.<br />

Os gritos de dor do pequenino elfo eram aterrorizantes.<br />

Glatael e Ariel estavam tão impressiona<strong>dos</strong> com a cena que<br />

nem perceberam a chegada de mais três guerreiros do<br />

Império, às suas costas. Chegaram sorrateiramente e quando<br />

estavam próximos o suficiente para uma abordagem, um <strong>dos</strong><br />

guerreiros desferiu um violento golpe de espada sobre Glatael,<br />

1 Pequeno vilarejo élfico, que pertenceu à jurisdição de Plarionthil.<br />

358


cortando-lhe a cabeça. Com o susto e apavorada ao ver seu<br />

parceiro tombar sem cabeça, ao seu lado, Ariel ficou imóvel, e<br />

num segundo movimento, o mesmo guerreiro cortou-lhe as<br />

asas com outro violento golpe. Dor e pavor tomaram conta do<br />

lindo rosto de Ariel, agora caída de joelhos ao solo. Sem suas<br />

asas, perdera sua fonte de mana e toda a sua energia. Estava<br />

completamente indefesa.<br />

Os impie<strong>dos</strong>os guerreiros do Império torturaram e<br />

violentaram Ariel até que ela perdesse a consciência, e ainda<br />

um pouco mais depois disso, deixando-a num estado<br />

deplorável.<br />

Ariel foi a vangi que mais sofreu em toda a história de sua<br />

raça, desde tempos imemoriais.<br />

Zaluzael, com sua experiência em buscas e usando sua<br />

magia de percepção, não demorou muito para descobrir onde<br />

estava Ariel. Ao ver a cena de horror à sua frente, Zaluzael<br />

parou e olhou fixamente para o pequeno elfo, pendurado de<br />

ponta a cabeça e completamente queimado, em uma árvore.<br />

Em seguida olhou para o corpo de Glatael sem cabeça, e<br />

finalmente, para Ariel, ainda inconsciente, sem suas asas, sem<br />

sua vestimenta e com o corpo coberto de feridas e hematomas.<br />

Ficou tentando imaginar quem poderia ter sido o responsável<br />

por tamanha atrocidade e por quê?<br />

O fato, é que Zaluzael e seus companheiros levaram Ariel<br />

de volta para Vangilla, onde se recuperou e pôde relatar esta<br />

triste história a seus irmãos e amigos. Na época, houve uma<br />

grande polêmica entre os vangis, onde muitos defenderam a<br />

idéia de que as missões deviam ser interrompidas e que <strong>Virgo</strong><br />

deveria ser abandonado definitivamente à sua própria sorte.<br />

Esta ferida ficou marcada até os dias de hoje entre os<br />

vangis e eles passaram a considerar os humanos, a partir deste<br />

acontecimento, a raça mais perigosa, violenta e destrutiva de<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

359


Elfos<br />

E<br />

sta é a raça superior mais importante da região inferior de<br />

<strong>Virgo</strong>, e sua importância se dá, justamente, pelo fato de<br />

terem sido eles, os elfos, os primeiros a erguerem grandes<br />

reinos. Foram os elfos que criaram o calendário,<br />

documentaram toda a história do lugar e foram também os<br />

primeiros a aprender a usar o mana que se manifestava em<br />

<strong>Virgo</strong>, desenvolvendo uma enorme série de magias.<br />

Os elfos são quase idênticos aos homens em sua<br />

morfologia externa, diferenciando-se apenas por suas orelhas<br />

pontudas em sua extremidade superior.<br />

As maiores diferenças entre elfos e humanos, ocorrem nos<br />

aspectos fisiológicos. Os elfos são seres longevos que, se não<br />

morrem acidentalmente, chegam a viver até novecentos anos.<br />

Apesar de alcançarem idades tão avançadas, não<br />

aparentam fisicamente o desgaste que seria natural e<br />

perceptível nos seres humanos. Eles conseguem manter uma<br />

aparência jovial por vários séculos. Em geral, as marcas da<br />

velhice em um elfo manifestam-se rapidamente, quando já<br />

estão bem próximos de seu fim, mas ainda assim, conseguem<br />

manter os traços da beleza em seus rostos.<br />

Estes seres são apaixona<strong>dos</strong> pela natureza, vivem em<br />

harmonia constante com as florestas e suas árvores<br />

centenárias. Costumam dizer que cada árvore tem dentro de<br />

si, o espírito de um elfo.<br />

Além da natureza, são apreciadores de canções e poesias,<br />

e destacam-se pelas lindas melodias que conseguem elaborar<br />

com a ajuda de harpas e flautas. Existem também muitos elfos<br />

trovadores.<br />

É um povo amigável, procurando sempre estar em paz<br />

com to<strong>dos</strong>. Admiram muito os que também respeitam a<br />

360


natureza. Mas toda esta amabilidade pode ser substituída por<br />

uma grande agressividade contra to<strong>dos</strong> aqueles que se<br />

dedicam a devastar indiscriminadamente as preciosas matas e<br />

florestas que tanto amam.<br />

Entre as raças selvagens de <strong>Virgo</strong>, as mais odiadas pelos<br />

elfos é a <strong>dos</strong> orcs, porque são os maiores destruidores da<br />

natureza. Inúmeras foram as guerras entre os povos élficos e<br />

as tribos de orcs, desde o início <strong>dos</strong> tempos.<br />

Os anões, apesar de não serem considera<strong>dos</strong> de uma raça<br />

selvagem, também sofrem uma forte pressão <strong>dos</strong> elfos, por<br />

causa de um velho conflito acontecido há tempos remotos<br />

entre estes dois povos, na Primeira Guerra da Floresta<br />

Dourada, em 1715 da <strong>Era</strong> Nova.<br />

Esta guerra aconteceu devido à descoberta de uma grande<br />

jazida de ouro, logo à entrada da floresta, por parte <strong>dos</strong> anões<br />

de Bakkin, que iniciaram um desmatamento alucinado para<br />

conseguir extrair todo o ouro que estava sob aquele solo. Os<br />

anões sempre afirmaram que a Floresta Dourada é a região<br />

mais rica em ouro de todas as regiões de <strong>Virgo</strong>.<br />

Esta guerra durou quase três anos, e só foi interrompida<br />

por causa de outra guerra de maior importância, que ficou<br />

famosa e conhecida como a Guerra da Agonia.<br />

Anões e elfos fizeram uma trégua para que se<br />

defendessem <strong>dos</strong> orcs sanguinários. Foram tempos difíceis, e<br />

os elfos viveram muitos anos mergulha<strong>dos</strong> em guerras.<br />

A situação entre elfos e anões voltou a ficar muito ruim a<br />

partir de 2471 da <strong>Era</strong> Nova, quando estourou a Segunda<br />

Guerra da Floresta Dourada. Mas desta vez, a disputa não<br />

havia sido pelo ouro daquele lugar, mas pela proteção da<br />

Cidade Oculta <strong>dos</strong> elfos negros, conforme fora narrado nesta<br />

aventura que apresentou a chegada <strong>dos</strong> homens a <strong>Virgo</strong>.<br />

Alguns anos depois desta Segunda Guerra da Floresta<br />

Dourada, as relações entre eles voltará a melhorar e será<br />

possível encontrar anões e elfos juntos, ainda que com certa<br />

361


dificuldade, por guardarem muito ressentimento uns <strong>dos</strong><br />

outros.<br />

Os elfos estão dividi<strong>dos</strong> em cinco 1 grandes reinos, quatro<br />

<strong>dos</strong> quais, ficam na Grande Floresta, considerada o santuário<br />

<strong>dos</strong> elfos. O outro, fica mais afastado, na longínqua Floresta<br />

das Sombras, na extremidade nordeste de <strong>Virgo</strong>. Além <strong>dos</strong><br />

reinos, existem também muitas vilas élficas espalhadas por<br />

todas as florestas, até mesmo na Floresta do Fogo, próxima à<br />

região vulcânica.<br />

Uma história <strong>dos</strong> Elfos<br />

Muitas foram as passagens importantes <strong>dos</strong> elfos sobre o<br />

solo de <strong>Virgo</strong>. Realizaram diversas proezas, viveram inúmeros<br />

momentos de dificuldade, e to<strong>dos</strong> esses acontecimentos mais<br />

importantes que os envolveram durante eras, são lembra<strong>dos</strong> e<br />

canta<strong>dos</strong> hoje, pelos quatro cantos do que chama de Thalide.<br />

Para se conhecer to<strong>dos</strong> os fatos marcantes que ocorreram<br />

com este povo durante sua evolução, desde o início <strong>dos</strong><br />

tempos, seria necessário ler uma dúzia de livros espessos, que<br />

se encontram no reino élfico de Sombrorn, em poder de sua<br />

rainha Aurien.<br />

Esta importante obra é conhecida pelos elfos como os<br />

livros de lumithas. Essa palavra procura dar significado a algo<br />

como, Luz <strong>dos</strong> Tempos, e foi criada a partir da fusão de duas<br />

outras palavras élficas, lumin, que significa luz, claridade e<br />

athas, que significa o tempo, mais precisamente, tempo<br />

passado, antigo.<br />

Durante vários anos a palavra foi usada em sua forma<br />

original, ou seja, luminathas, mas com o passar <strong>dos</strong> anos o<br />

povo élfico deu-a uma conotação mais coloquial,<br />

transformando-a numa única e nova palavra para designar<br />

esta famosa coleção de livros, "lumithas".<br />

1 Por ordem de criação, Plarionthil, Flonthoriel, Planúviel, Eluannar e Sombrorn.<br />

362


Os doze livros que compõem a lumithas foram escritos por<br />

ordem de Limanoh, pai de Aurien, na época de seu reinado.<br />

Na verdade, a ordem foi para que os livros fossem escritos<br />

apenas para registro histórico, mas na época, Limanoh não<br />

fazia idéia de como esta obra se tornaria tão grande, em<br />

quantidade de livros, e em importância para toda a raça e<br />

cultura élficas.<br />

O relato de toda a saga élfica, desde o primeiro reino,<br />

passando pelas sucessivas migrações de seu povo para a<br />

criação de novos reinos, as diversas batalhas e os grandes<br />

romances que envolveram os nobres elfos, estão nas lumithas.<br />

Na ocasião, foram convoca<strong>dos</strong> de to<strong>dos</strong> os reinos, os mais<br />

sábios elfos e os principais escritores para que fosse realizada<br />

esta divina obra. Foram anos e anos de labor. Quando todo o<br />

trabalho ficou pronto, a lumithas era composta de nove<br />

volumes. Os três volumes mais recentes relatam os<br />

acontecimentos da <strong>Era</strong> Nova, até os dias de hoje, e são bem<br />

menos poéticos que os volumes anteriores, pois foram escritos<br />

por elfos menos românticos, por ordem da rainha Aurien,<br />

filha de Limanoh.<br />

O último volume da lumithas, o de número doze, contém<br />

to<strong>dos</strong> os fatos importantes ocorri<strong>dos</strong> durante a Guerra da<br />

Agonia, mostrando como se dera a participação <strong>dos</strong> reinos<br />

élficos nesta guerra épica e, depois, como ocorreu a Unificação<br />

das Cinco Coroas, encerrando o lumithas.<br />

Após to<strong>dos</strong> estes acontecimentos foi que os humanos<br />

chegaram à Thalide. A partir de suas cidades de Nouvelle<br />

Amiens e Nouvelle Lyon, que foram os alicerces da edificação<br />

de sua raça em <strong>Virgo</strong>, os homens prosperaram muito<br />

rapidamente, erguendo seus reinos com espantosa velocidade,<br />

mas isto não consta nos doze livros que formam o lumithas, e<br />

na verdade, são relatos de tempos futuros, que não são<br />

aborda<strong>dos</strong> sequer nesta obra que apenas visou relatar a<br />

chegada <strong>dos</strong> humanos e seus primeiros passos em <strong>Virgo</strong>.<br />

363


A chegada <strong>dos</strong> homens causou um grande alarde entre o<br />

povo élfico, principalmente entre os mais antigos, que<br />

acreditavam que com isto, os dias de seu povo estariam perto<br />

de seu crepúsculo, conforme anunciava a velha profecia<br />

gravada por Glabor, o dragão dourado, na Pedra Klaopala.<br />

Os acontecimentos que sucederam à chegada <strong>dos</strong> homens<br />

em <strong>Virgo</strong>, e como se dera seu próspero desenvolvimento junto<br />

às outras raças, podem ser encontra<strong>dos</strong> no livro de Jacques<br />

Panais, claro, com um enfoque voltado principalmente para os<br />

olhos <strong>dos</strong> homens. O título da obra de Jacques Panais,<br />

"Caminhos da Terra", foi escolhido por ter sido fruto de<br />

grandes viagens feitas por ele, nos mais diversos territórios de<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

<br />

Jacques Panais foi um famoso escritor do reino de<br />

Nouvelle Lyon, viajou para muitos lugares remotos e<br />

perigosos em busca de informações para enriquecer sua obra.<br />

Informações sobre to<strong>dos</strong> os feitos <strong>dos</strong> homens desde sua<br />

chegada à <strong>Virgo</strong>. Conheceu lugares fantásticos, reinos de elfos<br />

e anões. Conheceu pessoalmente a rainha Aurien, que muito<br />

lhe ajudou, permitindo que desfrutasse da leitura de vários<br />

livros da enorme biblioteca de Sombrorn. Teve até mesmo<br />

acesso ao lumithas.<br />

O livro de Jacques Panais ficou pronto em 2055 da <strong>Era</strong><br />

Nova, e ele faleceu em 2061, seis anos após ter concluído sua<br />

obra, numa viagem que fez a Bronner. Sua caravana foi<br />

emboscada por uma horda de orcs, quando passavam por<br />

uma trilha através das Colinas Íngremes.<br />

364


Anões<br />

M<br />

ineiros por natureza, os anões são os representantes da<br />

raça superior cuja cultura é uma das mais originais de<br />

<strong>Virgo</strong>, ou Azur, se usarmos o nome pelo qual se referem a<br />

estas terras. Não só pela prática da mineração em si, mas todo<br />

um conjunto de hábitos e costumes que eles passaram de<br />

geração para geração desde a <strong>Era</strong> Gênesis.<br />

Geralmente, não passam de 1,30 m de altura, são muito<br />

troncu<strong>dos</strong> e os representantes do sexo masculino possuem o<br />

hábito de deixar a barba bem comprida. Artesãos de primeira<br />

mão, os anões são responsáveis pela fabricação de excelentes<br />

armas, elmos, escu<strong>dos</strong>, cotas de malha e outros utensílios que<br />

possam ser fabrica<strong>dos</strong> a partir de metais. Eles realizam este<br />

tipo de trabalho com muito carinho e muita dedicação. Para os<br />

anões, não há maior e mais verdadeira felicidade quando são<br />

elogia<strong>dos</strong> pelo trabalho que fazem, mesmo que se trate de um<br />

simples bracelete ou pequeno anel.<br />

Os anões gostam de viver em grandes cavernas, onde<br />

possam estar em contato com a exploração constante de<br />

grandes jazidas de pedras preciosas e ouro. Estes pequenos<br />

seres amam estas riquezas naturais e para eles são tão valiosas<br />

quanto a própria vida.<br />

Acostuma<strong>dos</strong> a viver dentro de grandes túneis rochosos,<br />

os anões não se sentem à vontade quando estão em florestas,<br />

planícies ou qualquer lugar que seja muito aberto; na verdade,<br />

é muito difícil encontrar anões vagando por estes lugares, mas<br />

sempre existem aqueles mais aventureiros que, de vez em<br />

quando, fazem amizade com seres de outras raças superiores,<br />

como os homens por exemplo, e saem em busca de grandes<br />

aventuras.<br />

365


Atualmente os anões estão dividi<strong>dos</strong> em três reinos: o<br />

reino de Bakkin, que fica em Vidoro’s sob a Montanha das<br />

Garbas, no lado sul da Região das Montanhas, diante da<br />

Planície de Ouro; o reino de Guttin, localizado na Planície de<br />

Bronze em Bronner; e o reino de Zanthor, na entrada do Vale<br />

<strong>dos</strong> Cristais, em Cristel.<br />

Dos três reinos, o mais poderoso e também o mais<br />

populoso é o Reino de Bakkin. Os anões deste reino são os<br />

mais destemi<strong>dos</strong> e, a despeito das duas derrotas sofridas nas<br />

duas guerras ocorridas na Floresta Dourada, mostraram-se<br />

muito valorosos durante a Guerra da Agonia.<br />

Em função destas guerras na Floresta Dourada, os anões e<br />

os elfos, até hoje, não conseguem manter uma amistosidade<br />

tranqüila entre si; entrementes, é possível encontrar anões e<br />

elfos dentro de um mesmo grupo de aventureiros em busca de<br />

interesses comuns, mas mesmo companheiros, nunca perdem<br />

uma boa oportunidade de atormentarem uns ao outros com<br />

variadas pilhérias.<br />

Quando os anões combatem, eles dão preferencia a usar<br />

como armas, grandes macha<strong>dos</strong> de batalha, martelos de<br />

guerra e pequenos broquéis para se defenderem. Raramente se<br />

encontra um anão sem o seu machado de batalha, mas alguns<br />

anões, ainda que seja mais incomum, também usam espadas<br />

curtas, como arma auxiliar.<br />

366


Orcs<br />

S<br />

APÊNDICE B<br />

As raças selvagens<br />

anguinárias e perversas, são estas bizarras criaturas<br />

conhecidas como orcs. É a raça selvagem mais temível de<br />

<strong>Virgo</strong>. Com suas atitudes hostis, tornaram-se inimigos comuns<br />

de todas as raças superiores, e mesmo entre as demais raças<br />

selvagens, conseguem encontrar inúmeros desafetos. Estas<br />

criaturas possuem a pele escura, muito enrugada e com uma<br />

pelugem grossa cobrindo boa parte <strong>dos</strong> membros e tórax.<br />

Possuem também dentes pontiagu<strong>dos</strong> e nariz largo. São<br />

monstros assustadores.<br />

Com a altura variando entre 1,75 e 1,80 m são capazes de<br />

segurar um homem comum sobre suas cabeças e arremessá-lo<br />

a uma média distância. São, definitivamente, fortes e robustos.<br />

Vivem organiza<strong>dos</strong> em tribos dentro de grutas nas<br />

encostas de montanhas ou então em ruínas e calabouços<br />

abandona<strong>dos</strong>. Sempre seguem aquele que é o mais agressivo<br />

da tribo e que se destaca pela hostilidade desenfreada. São tão<br />

hostis que, mesmo dentro de suas próprias tribos, entre seus<br />

membros, ocorrem lutas sangrentas, seja pela disputa da<br />

liderança ou seja por qualquer motivo de discórdia entre eles.<br />

Na verdade, pouco importa o motivo, para os orcs, qualquer


situação pode ser o estopim para estourar uma briga<br />

sangrenta.<br />

De to<strong>dos</strong> os seus inimigos, os que eles mais invejam e<br />

detestam são os elfos. Centenas de batalhas já aconteceram<br />

entre as duas raças, acarretando milhares de perdas para os<br />

dois la<strong>dos</strong>. Mas para os orcs, nunca importou quantos<br />

morreriam em um confronto com elfos, o que importava era a<br />

vitória.<br />

O maior prazer <strong>dos</strong> orcs encontra-se na destruição de<br />

tudo o que lhes parece ser belo. Adoradores do Caos, não há<br />

nada mais gratificante para os orcs do que provocar a<br />

destruição <strong>dos</strong> belos jardins e vilarejos élficos.<br />

Os orcs não são criaturas longevas, e forma que não<br />

duram muito tempo. Em geral, sua expectativa de vida gira<br />

em torno <strong>dos</strong> trinta anos. Isto não se deve a uma morte natural<br />

precoce, mas pela insistência em participar de batalhas e<br />

pilhagens. Naturalmente, um orc que vive apenas para a tribo<br />

pode chegar aos sessenta anos de idade, mas isso é raríssimo.<br />

Uma lenda <strong>dos</strong> orcs<br />

Os orcs são criaturas que não costumam guardar<br />

lembranças de seu passado, mesmo quando se tratam das<br />

mais gloriosas épocas que possam ter vivenciado, entre as<br />

grandes vitórias que infligiram sobre seus inimigos. No<br />

entanto, teve um fato que marcou muito esta raça e que foi<br />

registrado pelos elfos, a mais sangrenta de todas as guerras, a<br />

Guerra da Agonia.<br />

Antigamente, em tempos remotos, existiam mais de trinta<br />

tribos de orcs espalhadas por todas as regiões de <strong>Virgo</strong>. Até<br />

mesmo na Ilha Kirbuz, estas vis criaturas podiam ser<br />

encontradas com facilidade.<br />

Uma dessas tribos, conhecida como Zaraidai, a mais<br />

temida e violenta de todas, por muitos anos dominou <strong>Virgo</strong>,<br />

368


levando terror a to<strong>dos</strong> os reinos, cidades e vilarejos,<br />

aniquilando qualquer um que encontrassem em seu caminho.<br />

Foi uma época maldita, em que os anões se fecharam em<br />

seus reinos e minas nas montanhas, os elfos tiveram que fugir<br />

e se esconder nas regiões mais ermas das florestas, onde o<br />

acesso é muito difícil, ou ainda, ficavam enclausura<strong>dos</strong> em<br />

seus fortifica<strong>dos</strong> reinos, protegi<strong>dos</strong> por suas muralhas, sem<br />

que se arriscassem a vagar pelas matas.<br />

Foram tempos difíceis até mesmo para as raças selvagens<br />

que, privadas de contar com a proteção de reinos poderosos,<br />

eram obrigadas a se trancafiar em esconderijos, ou então se<br />

deixar escravizar pelos orcs, como fizeram os hobgoblins.<br />

Nesta época sombria, à exceção <strong>dos</strong> humanos que ainda<br />

não haviam chegado em <strong>Virgo</strong>, a única raça que ficou livre<br />

desta pressão foi a raça <strong>dos</strong> vangis, que habitavam a Vangilla,<br />

fora do alcance <strong>dos</strong> orcs, onde ficaram seguros do mal<br />

deflagrado pelos orcs Zaraidai.<br />

Até mesmo os orcs que pertenciam a outras tribos<br />

sofreram com o domínio de terror <strong>dos</strong> Zaraidai. Lutaram<br />

ferozmente, como o costume que lhes é peculiar, orcs contra<br />

orcs, mas a onda de violência <strong>dos</strong> Zaraidai fora como um<br />

maremoto avassalador, varrendo furiosa várias tribos menores<br />

de orcs que foram literalmente dizimadas. Os poucos<br />

sobreviventes, quando haviam, acabavam submetendo-se aos<br />

Zaraidai.<br />

A tribo Zaraidai chegou a ser tão numerosa nesta ocasião<br />

que mesmo se todas as outras tribos de orcs se aliassem, seus<br />

exércitos uni<strong>dos</strong> não conseguiriam chegar sequer à metade de<br />

seu contingente.<br />

O medo pairava no ar. As alianças eram feitas e desfeitas<br />

entre as diversas raças na tentativa de por termo às investidas<br />

<strong>dos</strong> Zaraidai, mas nada surtia efeito e eles cada vez mais<br />

aumentavam suas fileiras com as deserções das tribos<br />

subjugadas.<br />

369


Mas, como nenhuma força dura para sempre, ou o sempre<br />

é muito distante aos nossos olhos, após vinte e três anos de<br />

dominação e poder absoluto, onde semearam o caos, morte e<br />

destruição por to<strong>dos</strong> os cantos de <strong>Virgo</strong>, a tribo <strong>dos</strong> Zaraidai<br />

começou a entrar em decadência. Ficaram tão numerosos e<br />

espalha<strong>dos</strong> pelas diversas regiões de <strong>Virgo</strong> que as brigas entre<br />

eles eram cada vez mais intensas. Isso começou a enfraquecêlos.<br />

Simultaneamente a estas lutas internas, houve uma<br />

tragédia numa invasão <strong>dos</strong> Zaraidai a uma das minas do reino<br />

de Bakkin. As vilas adjacentes a este reino já haviam sido<br />

dizimadas, e seus refugia<strong>dos</strong> estavam to<strong>dos</strong> nesta enorme<br />

mina. Não havia como chegarem à cidade principal do reino,<br />

pois ele encontrava-se sitiado.<br />

Após passarem por três pontos de resistência dentro das<br />

escuras galerias de túneis sob a Montanha das Garbas, os orcs<br />

foram surpreendi<strong>dos</strong> por uma emboscada, onde os anões<br />

provocaram um desabamento de rochas na entrada principal<br />

da mina, mantendo cerca de dois mil orcs presos sem poder<br />

sair, e também impedindo a entrada de reforços. Mais de cem<br />

mil orcs ficaram do lado de fora, sem saber o que fazer, pois o<br />

grande líder <strong>dos</strong> Zaraidai havia passado pela entrada antes do<br />

desabamento e encontrava-se preso dentro da mina, com os<br />

outros.<br />

Aprisiona<strong>dos</strong> dentro da montanha e sem outra<br />

alternativa, os orcs continuaram avançando, pois sabiam que<br />

deveria existir outra saída. Porém, estavam em território<br />

inimigo, não conheciam o lugar como os anões e enquanto<br />

avançavam, tombavam sem parar nas diversas armadilhas<br />

deixadas pelos anões. Quando atravessaram cerca de duas<br />

horas montanha a dentro, tiveram uma visão assustadora,<br />

encontraram uma enorme cidade de anões no coração da<br />

montanha. Mais de oito mil anões guerreiros estavam<br />

arma<strong>dos</strong> com seus macha<strong>dos</strong> de batalha, elmos e escu<strong>dos</strong><br />

reluzentes, esperando para o massacre final.<br />

370


Com a entrada principal selada e o gigantesco exército de<br />

anões à frente, sabiam que não haveria escapatória e muito<br />

menos misericórdia. Não poderiam resistir a tamanha força de<br />

ataque. A essa altura, restavam menos de trezentos orcs <strong>dos</strong><br />

que ficaram presos dentro da montanha.<br />

De qualquer maneira, o líder <strong>dos</strong> Zaraidai sabia que os<br />

anões não iriam bloquear a entrada da mina sem que houvesse<br />

outra saída. Ordenou então que seus seguidores recuassem na<br />

tentativa de alcançar algumas passagens laterais que haviam<br />

ficado para trás.<br />

Quando a ação evasiva teve início, foram novamente<br />

surpreendi<strong>dos</strong>, pois uma outra tropa com cerca de<br />

quatrocentos anões aproximava-se por sua retaguarda,<br />

oriunda de pontos secretos que ficavam ocultos dentro <strong>dos</strong><br />

sombrios corredores da montanha. O destino daqueles<br />

desafortuna<strong>dos</strong> orcs estava selado.<br />

Ao final da sangrenta batalha o general <strong>dos</strong> anões<br />

decapitou o líder <strong>dos</strong> Zaraidai e entregou o crânio a um único<br />

orc sobrevivente, para que este o levasse e exibisse aos seus<br />

companheiros o que havia acontecido dentro <strong>dos</strong> domínios<br />

<strong>dos</strong> anões.<br />

O desgraçado do orc foi conduzido de olhos venda<strong>dos</strong> até<br />

as saídas secretas e foi libertado. Conforme instruído,<br />

contornou a montanha e chegou aos acampamentos orcs à<br />

entrada selada da Montanha das Garbas. Ao exibir a cabeça de<br />

seu líder aos companheiros e dizer-lhes o que ocorrera, os orcs<br />

ficaram enfureci<strong>dos</strong>, mas logo a fúria deu lugar a uma disputa<br />

interminável pela liderança da tribo e do imenso exército de<br />

orcs.<br />

Isso acarretou na divisão <strong>dos</strong> Zaraidai em várias facções<br />

diferentes, fazendo com que a acirrada luta pela liderança<br />

finalmente destruísse sua unidade. As tribos de orcs que<br />

resistiram aos incessantes ataques <strong>dos</strong> Zaraidai durante vários<br />

anos aproveitaram o momento e atacaram os confusos e<br />

dividi<strong>dos</strong> Zaraidai, minando ainda mais suas forças.<br />

371


Durante dois anos, elfos e anões também se encorajaram<br />

ao descobrir que os Zaraidai haviam entrado em colapso, e<br />

conseguiram pôr fim à tormenta.<br />

Os Zaraidai, ainda conseguiram no final, após inúmeras<br />

divisões, continuar numerosos e também muito poderosos na<br />

região do reino de Sombrorn, mas jamais voltariam a ter a<br />

fantástica força que conseguiram reunir durante a Guerra da<br />

Agonia.<br />

O sonho de uma raça selvagem dominar toda a região de<br />

<strong>Virgo</strong> se acabara. Ao fim deste período negro, o saldo macabro<br />

pesou mais contra as raças selvagens, pois vinte e três tribos<br />

inteiras de orcs foram extintas, além de toda uma raça, a <strong>dos</strong><br />

hobgoblins.<br />

Sem dúvida alguma este período de terror ficou marcado<br />

para sempre entre todas as raças de <strong>Virgo</strong>, sejam elas<br />

selvagens ou superiores. Mesmo os orcs, que como já foi<br />

relatado, não costumam guardar lembranças, algumas vezes<br />

comentam sobre esta época.<br />

372


Goblins<br />

O<br />

s goblins são criaturas perversas que podem ser<br />

encontradas em qualquer parte de <strong>Virgo</strong>. Geralmente,<br />

não passam de 1,50 m de altura. Possuem a pele rígida como<br />

uma couraça e de coloração esverdeada. Suas orelhas são<br />

largas e pontudas, e seus dentes são verdadeiras presas, to<strong>dos</strong><br />

afia<strong>dos</strong> como uma navalha.<br />

Estas criaturas se vestem com trapos de tecido e pedaços<br />

de couro que, muitas vezes, são rouba<strong>dos</strong> de mercadores ou<br />

até mesmo tira<strong>dos</strong> das roupas de inimigos derrota<strong>dos</strong> em um<br />

combate.<br />

Basicamente, os goblins vivem em aldeias perto de<br />

florestas ou nas encostas das montanhas, mas muitas vezes<br />

são encontra<strong>dos</strong> em pequenos grupos errantes de cinco a oito<br />

indivíduos, em busca de tesouros perdi<strong>dos</strong> ou apenas atrás de<br />

outras criaturas que possam saquear. Não chegam a ser tão<br />

hostis quanto os orcs, mas adoram uma boa maldade.<br />

Talvez, em <strong>Virgo</strong>, não exista criatura mais parecida com o<br />

homem em termos de buscar aventuras do que os goblins.<br />

Estas criaturas são aventureiras por natureza, que não deixam<br />

escapar por nada, uma oportunidade de desbravar territórios<br />

desconheci<strong>dos</strong>, conquistar novos espaços e buscar cada vez<br />

mais o que lhes é desconhecido.<br />

A própria magia, que é muito cultuada pelos elfos,<br />

atualmente está adquirindo cada vez mais espaço entre os<br />

goblins mais sábios. Atualmente, já existe em <strong>Virgo</strong> um<br />

número considerável de magos goblins. É claro, os goblins não<br />

são tão inteligentes quanto os elfos para se saírem melhor nos<br />

estu<strong>dos</strong> do mana; entretanto, já fazem algum estardalhaço.<br />

Existe até uma aldeia goblin que se dedica exclusivamente aos<br />

373


estu<strong>dos</strong> de magia e buscam um meio próprio de utilizar o<br />

mana deste lugar.<br />

Em um combate, os goblins, de uma forma geral, se<br />

utilizam de pequenos escu<strong>dos</strong> de madeira que eles próprios<br />

fabricam, além de espadas curtas que roubam ou então<br />

negociam com mercadores e mercenários.<br />

Estes terríveis monstrinhos não se rendem de forma<br />

alguma, e quando desarma<strong>dos</strong> tentam fugir<br />

desesperadamente para não serem captura<strong>dos</strong>. É muito difícil<br />

fazer um refém goblin, que prefere morrer ao ter que passar<br />

pela vergonha de se tornar um prisioneiro. Os goblins são<br />

muito agressivos e a menos que seja de seu interesse, eles<br />

nunca estão dispostos a ouvir qualquer argumento de outra<br />

criatura, eles simplesmente partem para o ataque.<br />

Os goblins possuem como rivais em potencial, os<br />

grabbers. O ódio que estas duas raças sentem uma pela outra é<br />

algo inimaginável. São combates incessantes, onde buscam<br />

incansavelmente o dizímio uns <strong>dos</strong> outros. A coisa mais<br />

terrível que pode acontecer a um goblin é ser capturado por<br />

um grabber. As torturas infligidas são as mais perversas<br />

possíveis, e a morte, inevitável.<br />

Uma lenda <strong>dos</strong> goblins<br />

O maior orgulho para qualquer goblin, sem dúvida<br />

alguma, é falar sobre a guerra que travaram com seus<br />

arquiinimigos, os grabbers, há séculos atrás durante o início<br />

da <strong>Era</strong> Nova, a Guerra Selvagem.<br />

Por um longo período, os goblins disputaram cada metro<br />

da região oeste de <strong>Virgo</strong> com os grabbers, que também eram<br />

encontra<strong>dos</strong> com facilidade em qualquer parte montanha,<br />

planície ou floresta nestas terras.<br />

Durante as constantes batalhas entre estas duas raças,<br />

onde o principal objetivo sempre fora aniquilar uma a outra,<br />

as montanhas de <strong>Virgo</strong> tornaram-se palco de terror, onde<br />

374


corpos de ambos os la<strong>dos</strong> se amontoavam causando<br />

verdadeiros rios de sangue que escorriam pelas rochas como<br />

se as próprias montanhas estivessem sangrando. Aldeias<br />

inteiras de goblins foram massacradas, assim como diversos<br />

vilarejos <strong>dos</strong> grabbers foram incinera<strong>dos</strong>. Nem mesmo os mais<br />

novos eram poupa<strong>dos</strong>, a chacina era implacável nos dois<br />

la<strong>dos</strong>. Vários grabbers recém nasci<strong>dos</strong> foram amontoa<strong>dos</strong> e<br />

queima<strong>dos</strong> vivos. Toda a região das montanhas só cheirava a<br />

morte nesta época.<br />

Foram três anos de luta desesperada, onde dor, agonia e<br />

tristeza levavam sempre ao mesmo destino, a morte. No final<br />

da guerra, quando o restante das tropas <strong>dos</strong> goblins avançou<br />

sobre a última vila grabber, a encontraram completamente<br />

deserta, como se fosse uma vila fantasma. Nenhum grabber foi<br />

encontrado ou morto naquele dia. Os goblins ficaram<br />

vasculhando aquela região por semanas mas os únicos<br />

grabbers encontra<strong>dos</strong> foram os que morreram durante os<br />

últimos e recentes combates, a maioria já em estado avançado<br />

de putrefação e outros já completamente decompostos, apenas<br />

com sua carcaça óssea exposta ao ar livre.<br />

Muito tempo depois os goblins descobriram onde os<br />

grabbers haviam se escondido. Durante os anos de guerra,<br />

vários grabbers foram, aos poucos, migrando para a base <strong>dos</strong><br />

Paredões (lado leste de <strong>Virgo</strong>), onde construíram uma<br />

verdadeira fortaleza com uma enorme cidade em seu interior.<br />

Atualmente, os goblins costumam vangloriar-se e dizer<br />

que erradicaram os vermes <strong>dos</strong> grabbers, uma vez que nunca<br />

mais puderam sair desta região. Os goblins os mantém em<br />

constante vigilância, deixando-os sitia<strong>dos</strong> dentro de sua<br />

própria cidade.<br />

De vez em quando os goblins ainda organizam pequenas<br />

tropas e tentam invadir a Fortaleza Grabber, mas até hoje,<br />

nenhuma das investidas surtiu efeito e eles sempre são<br />

rechaça<strong>dos</strong>. A cada ano que passa, os grabbers estão<br />

375


ampliando sua fortaleza e novamente se tornando numerosos,<br />

sem que os goblins tenham conhecimento deste fato.<br />

376


Grabbers<br />

A<br />

s criaturas mais horrendas de que se tem conhecimento<br />

em <strong>Virgo</strong> são indiscutivelmente os grabbers. A pele<br />

destes seres possui uma coloração rosácea, bem clara, e é<br />

muito pegajosa devido a constante secreção de uma espécie de<br />

muco, que por sinal, é muito fedorento. Para se ter uma idéia,<br />

o cheiro exalado por esse muco viscoso é tão forte que é<br />

possível perceber a presença de um grabber num raio de<br />

aproximadamente duzentos metros, o que de certa forma se<br />

torna favorável aos outros seres que buscam distância destas<br />

malévolas criaturas.<br />

São também desprovi<strong>dos</strong> de pelugem e sequer possuem<br />

cabelos. O corpo, os membros e até a cabeça, são lisos como a<br />

pele de uma rã. Outro detalhe muito interessante destas<br />

criaturas é a ausência de dentes ou presas. Todo e qualquer<br />

alimento que colocam em suas bocas é imediatamente<br />

dissolvido por poderosíssimas enzimas e áci<strong>dos</strong>, secreta<strong>dos</strong><br />

por glândulas especializadas. Este mecanismo é também<br />

usado como arma por estes terríveis monstrinhos, pois estas<br />

glândulas também entram em grande atividade com o<br />

aumento de tensão de um grabber. Assim, através de longos<br />

esguichos que conseguem expelir, ferem seus inimigos com<br />

este poderoso ácido causticante.<br />

Quem tem a visão de um grabber pela primeira vez,<br />

acredita estar diante de uma criatura que está se<br />

desmanchando ou derretendo. É incrível, mas a quantidade de<br />

muco secretado por sua epiderme é tão grande, que é esta a<br />

impressão que se tem. Por onde passam, vão deixando um<br />

rastro desta horrenda secreção que leva cerca de oito horas<br />

para secar completamente e perder o mal cheiro.<br />

377


Vivem em rústicas vilas construídas a partir de rochas<br />

calcárias, trasladadas do Paredão 1, desde a <strong>Era</strong> Oculta. Estas<br />

constantes viagens na busca de matéria prima para a<br />

construção de suas vilas fizeram com que, durante os séculos<br />

que se passaram, os grabbers construíssem à base do Paredão,<br />

uma verdadeira fortaleza, sem que seus inimigos goblins<br />

soubessem, evitando assim as incessantes incursões do<br />

inimigo que sempre ocorrera nos vilarejos.<br />

Atualmente os vilarejos <strong>dos</strong> grabbers encontram-se<br />

praticamente abandona<strong>dos</strong>, à exceção de dois muito<br />

pequenos, e quase to<strong>dos</strong> estão vivendo protegi<strong>dos</strong> pelos<br />

imensos muros da fortaleza construída.<br />

No que diz respeito a sua organização social,<br />

assemelham-se muito aos seres humanos, tendo em vista, a<br />

concepção de família que adotam. Os casais de grabbers<br />

vivem uni<strong>dos</strong> em seus lares com a preocupação de sua cria.<br />

Fazem de tudo pelos pequeninos para que cresçam com saúde<br />

e sejam prósperos.<br />

Assim como a maioria das raças selvagens de <strong>Virgo</strong>, os<br />

grabbers adoram aventuras; todavia, não se atrevem a se<br />

afastar demasiadamente de suas moradas. Procuram explorar<br />

apenas as regiões próximas ao Paredão, em grupos de<br />

tamanho razoável, que podem variar entre dez e quinze<br />

indivíduos. Quando a exploração tem caráter militar, com o<br />

intuito de demarcar áreas e treinar estratégias de combate, os<br />

grupos chegam a possuir cerca de oitenta indivíduos,<br />

considera<strong>dos</strong> estrategistas. Já em expedições, não levam nada<br />

mais do que provisões para uma semana, pequenos sacos<br />

confecciona<strong>dos</strong> a partir de pele e bexiga seca de animais, os<br />

quais usam para levar seus utensílios e também suas armas.<br />

Em combate, costumam usar um machado especial, que<br />

em sua estrutura traseira, oposta à lâmina, possui uma série de<br />

1 Paredão é nome dado ao imenso e íngreme penhasco que cobre toda a extremidade<br />

oriental de <strong>Virgo</strong>, desde o solo até o cimo do lugar. Nas cavernas mais altas do Paredão, é<br />

possível encontrar os últimos Wiverns que ainda vivem em <strong>Virgo</strong>.<br />

378


cravos longos e pontiagu<strong>dos</strong>. Detêm uma habilidade incrível<br />

no manuseio desta arma letal. Além deste armamento, que é<br />

conhecido pelo nome de machante, alguns grabbers também<br />

usam espadas curtas, apesar de não possuírem uma<br />

morfologia adequada para o uso de tal arma.<br />

Os grabbers são criaturas um pouco mais altas que os<br />

goblins, chegando a atingir uma altura máxima de 1,60m, e em<br />

sua grande maioria são curva<strong>dos</strong>, como corcundas, devido a<br />

sua estrutura óssea singular. É incrível acreditar como uma<br />

criatura pode conviver com uma quantidade tão grande de<br />

características inconvenientes, como por exemplo esta<br />

acentuada curvatura em seu dorso, próximo à região cervical.<br />

Mais uma curiosidade que acompanha a vida destes<br />

fantásticos seres é a ausência de uma linguagem comum para<br />

a comunicação. Simplesmente não são capazes de pronunciar<br />

ou sequer entender nenhum <strong>dos</strong> três idiomas mais comuns de<br />

<strong>Virgo</strong>. Nem o élfico, nem o nanês, e nem mesmo o francês, que<br />

ao longo de toda a <strong>Era</strong> Trevas e <strong>Era</strong> Nova, acabou se tornando<br />

uma espécie de língua universal em <strong>Virgo</strong>.<br />

Utilizam uma linguagem rude que jamais foi possível<br />

traduzir, devido a repugnância que as demais raças superiores<br />

e selvagens sentem por estas criaturas bizarras. Outro fator<br />

que também contribui muito para o isolamento desta raça às<br />

demais, é seu estilo de vida próprio, onde praticamente<br />

buscam o enclausuramento em suas vilas na grande fortaleza,<br />

além de se aventurarem apenas por lugares muito próximos<br />

de suas casas. Isto também acabou produzindo um certo<br />

receio por parte <strong>dos</strong> grabbers, a qualquer criatura estranha,<br />

fazendo sempre com que pareçam ameaçadoras. É preciso<br />

dizer, que os primeiros contatos que os grabbers tiveram com<br />

outras raças fora justamente com orcs e goblins, que desde o<br />

início, sempre os subjugaram pela força e os escravizaram.<br />

Outro aspecto interessante é que os Grabbers jamais<br />

conseguiram, e nem poderiam, ter sucesso na captura de<br />

animais ou mesmo criaturas de qualquer uma das raças<br />

379


superiores, pois o cativeiro fica dentro da fortaleza que é um<br />

lugar completamente impregnado pelo fedor de suas mucosas.<br />

A concentração deste cheiro é tão grande que acaba asfixiando<br />

qualquer um que seja levado para lá, como se fosse um gás<br />

mortal.<br />

A reprodução <strong>dos</strong> grabbers ocorre a cada seis meses, e<br />

sempre se dá de dois a dois, ou seja, é natural uma fêmea<br />

grabber conceber dois indivíduos por vez. Por outro lado, a<br />

expectativa de vida deles é curta, aproximando-se <strong>dos</strong><br />

quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Há casos raríssimos<br />

em que podem atingir até os cinqüenta e oito anos, o que é<br />

uma grande fortuna e felicidade para um grabber, pois além<br />

de vencer um limite praticamente imposto por sua natureza,<br />

passam automaticamente a fazer parte do Conselho Magno,<br />

uma espécie de casta superior que julga e determina todas as<br />

ações de seu povo. São os anciãos da Fortaleza. Atualmente o<br />

Conselho Magno é composto por dezesseis felizar<strong>dos</strong><br />

grabbers.<br />

A construção da Fortaleza Grabber<br />

A menina <strong>dos</strong> olhos do Conselho Magno, sempre foi a<br />

construção de uma grande cidade, uma fortaleza cercada por<br />

muralhas imensas onde pudessem salvar todo o seu povo de<br />

seus inimigos e de qualquer situação ameaçadora. O projeto<br />

era ambicioso e levou anos na cabeça <strong>dos</strong> grabbers até que se<br />

decidissem por uma empreitada tão grande.<br />

Quando finalmente decidiram concretizar o sonho, vários<br />

aspectos foram observa<strong>dos</strong> pelos anciãos, principalmente a<br />

sigilosidade que deveria haver nesta empresa, para evitar que<br />

os seus inimigos goblins aniquilassem seus sonhos.<br />

As incessantes incursões <strong>dos</strong> goblins sobre os vilarejos<br />

<strong>dos</strong> grabbers serviram como bode expiatório para a execução<br />

deste projeto. Ao passo que alguns grabbers resistiam<br />

valentemente às investidas <strong>dos</strong> perversos goblins, outros iam<br />

380


migrando, aos poucos, para o Paredão, local escolhido para a<br />

construção da grande Fortaleza. É claro que a perdas foram<br />

enormes, em ambas as frentes, tanto nos combates quanto nas<br />

construções. O Conselho Magno esteve perto de abandonar o<br />

projeto no meio do seu desenvolvimento, ao ver que a cada<br />

dia a resistência diminuía e muitos <strong>dos</strong> grabbers recruta<strong>dos</strong><br />

para a guerra desertavam e fugiam desobedientemente para o<br />

Paredão antes de serem convoca<strong>dos</strong>. Houve dias em que<br />

vilarejos inteiros foram massacra<strong>dos</strong> por goblins, sem que<br />

pudessem oferecer qualquer resistência.<br />

As últimas esperanças <strong>dos</strong> grabbers concentraram-se em<br />

suas três principais vilas, das quais atualmente apenas duas<br />

existem, encontradas na última fronteira da região das<br />

montanhas, num lugar de difícil acesso, muito protegido.<br />

Após terem superado intermináveis dificuldades para<br />

atingir as últimas vilas <strong>dos</strong> grabbers, o que na verdade<br />

demorou quase dois anos, todo um exército com<br />

aproximadamente quinze mil goblins, com a intenção de<br />

dizimar e extinguir de uma vez para sempre toda a raça <strong>dos</strong><br />

grabbers, se deparou com a mais violenta e sangrenta batalha<br />

de toda a história da rivalidade entre estas duas raças, que<br />

durou outros três longos anos.<br />

Naqueles dias, quando a notícia do início desta sangrenta<br />

contenda chegou aos ouvi<strong>dos</strong> do Conselho Magno, que tinha<br />

residência permanente na última de suas vilas, viram<br />

claramente que seriam o próximo alvo <strong>dos</strong> inimigos e<br />

decidiram que era chegada a hora de uma ação evasiva<br />

completa, uma vez que as muralhas da Fortaleza já se<br />

encontravam erguidas.<br />

Quando as tropas <strong>dos</strong> goblins avançaram impie<strong>dos</strong>as<br />

sobre a última vila <strong>dos</strong> grabbers, a encontraram<br />

completamente abandonada. Os líderes goblins, apesar do<br />

mistério, encararam o fato com naturalidade. Não<br />

encontraram um grabber sequer em todo o lugar.<br />

Vasculharam cada canto da vila e seus arredores, sem<br />

381


encontrar absolutamente nada. Assim terminou o que<br />

historicamente se conhece como a Guerra Selvagem, e os<br />

goblins comemoraram a suposta vitória sem imaginar que<br />

seus inimigos haviam erguido uma impenetrável Fortaleza.<br />

Atualmente os goblins já tomaram conhecimento de que<br />

seus eternos rivais habitam a região do Paredão e, de vez em<br />

quando, se organizam em grandes grupos de assalto para<br />

eliminar grabbers errantes que se encontrem despreveni<strong>dos</strong><br />

fora das muralhas que encerram a Fortaleza.<br />

O sucesso da Fortaleza Grabber foi tão grande, que após<br />

anos de resistência aos mais varia<strong>dos</strong> ataques de goblins e<br />

mesmo de outras criaturas, o atual Conselho Magno acredita<br />

que em alguns anos mais, a raça <strong>dos</strong> grabbers possa se tornar<br />

uma grande superpotência.<br />

382


Trolls<br />

E<br />

sta é a raça selvagem menos inteligente de <strong>Virgo</strong>, mas<br />

também, uma das mais hostis e determinadas em<br />

promover o caos e a destruição. São das poucas criaturas que<br />

conseguiram atravessar a <strong>Era</strong> Trevas. Acredita-se, ainda, que<br />

estas criaturas horrendas tenham surgido até mesmo antes da<br />

<strong>Era</strong> Gênesis.<br />

Estes seres bizarros são altos e musculosos, podendo<br />

chegar a até dois metros de altura. Com seus braços longos e<br />

pelu<strong>dos</strong>, vagam pelas florestas na maior parte do tempo<br />

através <strong>dos</strong> galhos das árvores, como se fossem enormes<br />

macacos. Sua aparência é horripilante, possuem uma cabeleira<br />

encrespada, que atinge a altura <strong>dos</strong> ombros. Seus olhos<br />

oblíquos detêm um brilho maligno e assustador.<br />

Os trolls possuem uma peculiaridade muito importante,<br />

que é sua rígida constituição física. Além de serem revesti<strong>dos</strong><br />

de uma pele muito resistente, tal qual um couro de bisão,<br />

possuem ainda uma grande capacidade de regeneração.<br />

Pequenos cortes e perfurações rasas levam apenas cerca de<br />

três horas para ficarem completamente curadas, tendo sua<br />

integridade física , restaurada.<br />

Mesmo quando perdem mãos, pés e até mesmo braços e<br />

pernas, em menos de um ano o membro perdido é regenerado.<br />

Muitos elfos acreditam que um membro cortado, pode vir<br />

a se transformar em um novo troll, mas isto não é verdade,<br />

pois a regeneração <strong>dos</strong> teci<strong>dos</strong> e membros <strong>dos</strong> trolls acontece a<br />

partir de uma ativação enzimática que leva à alta produção de<br />

células controlada pelo seu sistema nervoso central.<br />

Os trolls andam em pequenos grupos de seis a oito, e<br />

além das florestas, podem também ser encontra<strong>dos</strong> em<br />

cavernas e ruínas de antigas construções abandonadas. Não<br />

383


possuem como as outras raças, tribos ou aldeias, sendo seres<br />

errantes que vagam pelos lugares mais ermos de <strong>Virgo</strong>.<br />

Dizem, alguns elfos, que na Mata Negra, localizada ao sul<br />

da Planície de Bronze, existe uma grande concentração de<br />

trolls, e que a maioria deles está migrando para esta região. Os<br />

elfos temem que eles estejam se organizando para tentar<br />

reaver a Grande Floresta, de onde foram expulsos no final da<br />

<strong>Era</strong> Trevas.<br />

Os trolls possuem dois pontos fracos: não sabem nadar e<br />

não suportam claridade. Possuem verdadeiro pavor tanto da<br />

água quanto do fogo. Existem duas maneiras de se acabar com<br />

um troll: uma delas é atingindo o seu coração, a outra, é<br />

decapitando-o. Claro que se forem submeti<strong>dos</strong> a um<br />

afogamento, ou a uma grande quantidade de fogo ou ácido,<br />

também perecerão.<br />

Sem utilização de quaisquer vestimentas, os trolls<br />

vagueiam por <strong>Virgo</strong>, naturalmente, como vieram ao mundo,<br />

cobertos apenas por sua pelugem natural de uma cor verde<br />

musgo, que os oculta bastante quando pulam de galho em<br />

galho pelas árvores das florestas.<br />

Uma história <strong>dos</strong> Trolls<br />

Desde que os trolls foram bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta,<br />

pelo menos hoje em dia tem sido raro encontrá-los naquela<br />

vasta região; eles se espalharam por to<strong>dos</strong> os outros lugares e<br />

são encontra<strong>dos</strong> desde a Mata Negra até o Vale <strong>dos</strong> Cristais,<br />

sendo que a maioria deles preferiu permanecer na Mata<br />

Negra, que fica localizada entre a Grande Floresta a norte e<br />

oeste, e o Deserto Naissaras, a leste. A nordeste, salta para a<br />

Planície de Bronze, e ao sul, a Mata Negra constitui as<br />

margens do Mar Caudaloso.<br />

Praticamente, a Mata Negra se tornou o último bastião<br />

<strong>dos</strong> trolls, e poucas criaturas de outras raças, sejam elas<br />

384


superiores ou selvagens, aventuram-se a atravessar esta<br />

região.<br />

Esta grande concentração de trolls na Mata Negra acabou<br />

contribuindo para que eles desenvolvessem um mínimo<br />

conceito a respeito de organização e união, fazendo-os<br />

perceber que juntos eram muito poderosos.<br />

É bem verdade que eles não possuem moradia fixa, não<br />

costumam habitar sempre o mesmo lugar por um longo<br />

período de tempo, mas suas mentes foram envenenadas com a<br />

humilhação de serem bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta pelos elfos,<br />

resultando na morte de milhares de trolls. Com toda essa<br />

amarga recordação, os trolls conseguiram mudar um pouco<br />

seus hábitos e passaram, inclusive, a ter encontros combina<strong>dos</strong><br />

num ponto específico da Mata Negra, que conta com a maior<br />

concentração de trolls jamais imaginada por qualquer elfo.<br />

Geralmente, dessas reuniões partem muitos trolls à<br />

procura de outros, para trazê-los à Mata Negra, com o objetivo<br />

de convencê-los a unirem-se à causa deles de retomar a<br />

Grande Floresta.<br />

A primeira conquista esperada por to<strong>dos</strong> os trolls que<br />

estão irmana<strong>dos</strong> nesta vingança é sobre o reino élfico de<br />

Flonthoriel, que é o menor <strong>dos</strong> cinco reinos e o mais próximo à<br />

Mata Negra. Além disso, foi o exército de Flonthoriel que<br />

definiu a guerra contra os trolls no final da <strong>Era</strong> Trevas, de<br />

forma que, aos elfos deste reino, os trolls dedicam uma ira<br />

toda especial.<br />

O único motivo pelo qual os trolls ainda não avançaram<br />

sobre Flonthoriel, é o fato de que esperam o retorno de uma<br />

expedição enviada aos confins da Floresta das Sombras, para<br />

que alguns trolls tentassem convencer os Darkhos (Dragões<br />

Negros) a se aliarem a eles nesta causa, para que juntos,<br />

reconquistassem a Grande Floresta. Outrora, trolls e Darkhos<br />

já foram alia<strong>dos</strong>, durante o período da Guerra do Medo, mas<br />

foram derrota<strong>dos</strong> e bani<strong>dos</strong> da Grande Floresta. Na verdade,<br />

esta união não chegou a ser uma aliança oficial, mas apenas<br />

385


lutavam por suas vidas contra o inimigo comum, no caso, os<br />

elfos de Flonthoriel. Agora, os poucos Darkhos sobreviventes<br />

vivem isola<strong>dos</strong> nas montanhas ao norte da Floresta das<br />

Sombras.<br />

Não se sabe ao certo se os Darkhos irão aceitar esta<br />

aliança, pois eles foram alia<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> Greenos (Dragões Verdes)<br />

em épocas antigas, e sabem que atualmente os Greenos<br />

também habitam a Grande Floresta, como alia<strong>dos</strong> inseparáveis<br />

<strong>dos</strong> elfos. Acontece, que existe um código entre os dragões e<br />

eles não lutam mais entre si.<br />

Eis um relevante motivo que certamente fará com que os<br />

Darkhos declinem o convite para tal aliança com os trolls.<br />

Além disso, há outro agravante, que é o tratado que fizeram<br />

com a rainha élfica Aurien, de Sombrorn.<br />

A única esperança <strong>dos</strong> trolls é reacender nos corações <strong>dos</strong><br />

Darkhos o velho desejo de mais uma vez habitar a Grande<br />

Floresta, berço natural <strong>dos</strong> mais antigos Dragões, desde o<br />

começo <strong>dos</strong> tempos, antes mesmo da <strong>Era</strong> Gênesis.<br />

Mas, com ou sem a ajuda <strong>dos</strong> Darkhos, a invasão a<br />

Flonthoriel será inevitável e acontecerá antes do que se<br />

imagina. Já existem rumores de que orcs das tribos próximas a<br />

Flonthoriel estejam interessa<strong>dos</strong> em participar desta investida,<br />

ao lado <strong>dos</strong> trolls.<br />

Enquanto este grande cenário de destruição e morte não<br />

acontece, cresce a cada dia a aflição <strong>dos</strong> elfos de Flonthoriel,<br />

que estão localiza<strong>dos</strong> geograficamente numa posição muito<br />

vulnerável.<br />

386


Vutuks<br />

O<br />

s vutuks foram uma das primeiras civilizações de <strong>Virgo</strong>, e<br />

acredita-se que tiveram o auge de seu desenvolvimento<br />

durante a <strong>Era</strong> Oculta. Sempre foram rivais <strong>dos</strong> vangis, e<br />

centenas de lutas foram travadas entre estas duas civilizações<br />

durante incontáveis séculos.<br />

Um vutuk possui a mesma altura mediana de um goblin,<br />

ou seja, em torno de 1,40 cm, mas apesar da baixa estatura,<br />

seus músculos são bem defini<strong>dos</strong>. Sua pele, assim como a <strong>dos</strong><br />

druzos, é de uma cor vermelha escuro, e apesar de lisa, é<br />

extremamente resistente, principalmente ao calor. Estas<br />

criaturas também possuem um pequeno par de chifres em sua<br />

cabeça, lembrando muito os druzos. Os dentes <strong>dos</strong> vutuks, ou<br />

seria melhor dizer presas, são muito pontiagu<strong>dos</strong>, são<br />

criaturas exclusivamente carnívoras. Possuem olhos puxa<strong>dos</strong>,<br />

longos e inclina<strong>dos</strong>.<br />

Vis por natureza, são praticamente movi<strong>dos</strong> pela ambição<br />

de grandes conquistas, poder e tesouros. Não medem esforços<br />

para realizar seus anseios e passam por cima de qualquer<br />

coisa para alcançar seus objetivos.<br />

De todas as raças selvagens e civilizações na história de<br />

<strong>Virgo</strong>, os vutuks foram os mais ricos. Ainda hoje, nas ruínas<br />

do império vutuk na ilha Kirbuz, existem muitos tesouros,<br />

inclusive preciosidades <strong>dos</strong> extintos reinos vangis que eles<br />

tanto saquearam durante a <strong>Era</strong> Oculta.<br />

As armas <strong>dos</strong> vutuks sempre foram espadas curtas e<br />

lanças longas. Para se defenderem, usam pequenos escu<strong>dos</strong><br />

redon<strong>dos</strong> com um V gravado na frente.<br />

Os exércitos vutuks sempre foram muito temi<strong>dos</strong> em todo<br />

<strong>Virgo</strong>, pois a estratégia de guerra desenvolvida por estas<br />

criaturas era algo completamente avançada e incomparável.<br />

387


Nem mesmo os mais poderosos exércitos élficos da atualidade<br />

seriam capazes de vencer uma guerra contra os vutuks, em<br />

sua época de glória.<br />

Possuem uma vida social muito agitada quando não estão<br />

envolvi<strong>dos</strong> em batalhas ou em grandes construções. Gostam<br />

de realizar festas que sempre contam, é claro, com atrações de<br />

tortura e o sacrifício de prisioneiros.<br />

Vivem em grandes comunidades dentro <strong>dos</strong> limites de<br />

seu império e é muito comum a poligamia entre eles. A taxa<br />

de natalidade <strong>dos</strong> vutuks é altíssima, o que garante sempre<br />

um futuro promissor para seus exércitos!<br />

A expectativa de vida de um vutuk beira os oitenta anos<br />

em média, mas são raros os i<strong>dos</strong>os entre eles. Como adoram as<br />

guerras, geralmente morrem antes de alcançarem idades<br />

muito avançadas. Sobretudo, mesmo os vutuks mais i<strong>dos</strong>os,<br />

fazem questão de estarem presentes nos campos de batalha,<br />

ainda que seja para ficar na retaguarda das fileiras.<br />

A Queda do Império vutuk<br />

Os vutuks sempre foram uma potência militar. Seu<br />

império gozava de glória e esplendor. Combateram os ogros,<br />

conquistaram muitas cidades vangis e escravizaram<br />

praticamente toda a raça <strong>dos</strong> gnoblins, sendo responsáveis<br />

diretos por sua extinção. Toda a Ilha Kirbuz ficou sob o<br />

domínio do império vutuk durante incontáveis séculos.<br />

Apenas uma cidade vangi resistia às investidas vutuks. Os<br />

ogros, por sua vez, abrigaram-se nas profundezas da<br />

Montanha Cavernosa, no centro da Ilha Kirbuz.<br />

No final da <strong>Era</strong> Oculta, o imperador vutuk, Onip,<br />

organizou suas legiões e as dividiu em duas grandes frentes<br />

de batalha. Uma para conquistar a última e resistente cidade<br />

vangi da Ilha Kirbuz, e a outra para invadir a Montanha<br />

Cavernosa, em busca <strong>dos</strong> últimos ogros refugia<strong>dos</strong>, a fim de<br />

erradicá-los de vez da ilha que proclamavam soberania total.<br />

388


O poderoso império vutuk, ficaria guarnecido apenas pela<br />

Guarda Imperial de Onip.<br />

O principal objetivo de Onip era conquistar<br />

definitivamente toda a Ilha Kirbuz. Os vutuks, assim como os<br />

Ogros, acreditavam que a Ilha Kirbuz era o único lugar<br />

habitável existente em <strong>Virgo</strong>, pois não eram capazes de<br />

enxergar a olho nu, as margens além das águas que cercavam<br />

a ilha. As duas raças tinham verdadeiro pavor das águas e<br />

nunca se aventuraram através delas.<br />

Já os vangis, com sua capacidade de levitação, sabiam da<br />

amplitude de <strong>Virgo</strong> e conheciam as terras além da Ilha Kirbuz.<br />

Há muitos anos eles vinham visitando as terras além da ilha, à<br />

procura de um lugar mais seguro para viver.<br />

Muitos foram os fatores que contribuíram para a queda<br />

do império vutuk. A ambição cega de Onip foi a sua própria<br />

ruína.<br />

A primeira frente de batalha invadiu a Montanha<br />

Cavernosa para aniquilar os ogros, que mesmo em menor<br />

número, foram fortes e resistiram bravamente protegendo-se<br />

em seu habitat dentro das cavernas. Muitos vutuks pereceram<br />

nesta batalha. Os contadores de história, dizem que morreram<br />

cerca de trinta vutuks para cada ogro tombado nas escuras<br />

entranhas da Montanha Cavernosa. Os ogros chegaram ao<br />

limite de sua resistência e sucumbiram ao tentar fugir como<br />

podiam. Nenhum conseguiu sair vivo naquela interminável<br />

semana de batalhas.<br />

Muitos vutuks, mesmo vitoriosos, jamais saíram da<br />

Montanha Cavernosa, pois não foram capazes de encontrar os<br />

caminhos de volta e pereceram provavelmente devido ao frio<br />

e fome.<br />

De todas as legiões que formaram esta primeira frente de<br />

batalha, com dezenas de milhares de vutuks, apenas algumas<br />

centenas regressaram para seus lares.<br />

A segunda frente de batalha se dirigiu a Athamon, última<br />

e maior cidade vangi de Kirbuz. Ocorreu que, enquanto Onip<br />

389


esteve durante longos dois anos preocupado em organizar<br />

todas as suas forças de combate para tomar de vez a Ilha<br />

Kirbuz, os vangis de Athamon recebiam os Blukhos (Dragões<br />

Azuis) que vinham do outro lado da Região das Montanhas.<br />

Uma grande guerra entre Dragões ocorria naquela longínqua<br />

região no final da <strong>Era</strong> Oculta, e como os Blukhos não se<br />

envolviam em batalhas com outros Dragões, preferiram fugir<br />

e abandonar a região, vindo para a Ilha Kirbuz, onde<br />

esperavam refugiar-se.<br />

Os vangis receberam os Blukhos maravilha<strong>dos</strong> com sua<br />

beleza e fizeram grande amizade com eles. Presentearam os<br />

Blukhos com belíssimos tesouros e os ensinaram tudo acerca<br />

da Ilha Kirbuz. No final deste período, os vangis pediram para<br />

que os Blukhos cuidassem de Athamon. Os vangis estavam<br />

evadindo-se para sua nova morada, uma enorme cidade<br />

construída no céu de <strong>Virgo</strong>, chamada de Vangilla. Lá,<br />

pretendiam permanecer até que houvesse paz entre todas as<br />

raças.<br />

Certa noite, os vutuks cercaram toda a cidade de<br />

Athamon. Ao amanhecer, lançaram-se como um mar de<br />

demônios sobre a cidade vangi, ignorantes ao fato de que a<br />

mesma estava habitada apenas por dragões azuis. Tamanha<br />

foi a movimentação, que a Ilha Kirbuz sentia-se tremer, e os<br />

Blukhos assusta<strong>dos</strong>, em grande número foram observar o que<br />

se passava.<br />

A partir daí, travou-se uma inesquecível batalha entre<br />

vutuks e dragões azuis. Não fosse a astúcia <strong>dos</strong> vutuks, teriam<br />

sido aniquila<strong>dos</strong> rapidamente naquele mesmo dia, mas a<br />

estratégia para a conquista de Athamon, que a princípio seria<br />

infalível, serviu apenas para garantir que algumas legiões<br />

pudessem fugir daquele inferno que se tornou Athamon.<br />

Foi a primeira grande derrota de uma frente de batalha<br />

vutuk. A força <strong>dos</strong> dragões prevaleceu à estratégia de guerra<br />

<strong>dos</strong> generais vutuks neste dia memorável.<br />

390


Os Blukhos nunca foram de combate, mas o compromisso<br />

com seus amigos vangis de garantir a integridade de Athamon<br />

os tornou defensores furiosos nesta guerra. Inconforma<strong>dos</strong><br />

com a investida cruel <strong>dos</strong> vutuks, os dragões azuis, toma<strong>dos</strong><br />

de ira, rapidamente se organizaram e partiram ainda no final<br />

daquele dia em direção a Sirr, capital do Império vutuk.<br />

Fizeram de todo o Império vutuk um lugar de ruínas,<br />

deixando milhares de desabriga<strong>dos</strong>. A guarda imperial de<br />

Onip não foi capaz de resistir ao ataque devastador <strong>dos</strong><br />

dragões azuis e foi massacrada em pouco tempo.<br />

Esses foram os últimos momentos do glorioso Império<br />

vutuk, que sem exército e sem cidade, nunca mais conseguiu<br />

alcançar a glória e o esplendor de outrora. Onip, e milhares de<br />

vutuks, foram dizima<strong>dos</strong> pelos Blukhos naquele dia de<br />

derrota.<br />

391


Ogros e gojos<br />

O<br />

s ogros são as criaturas mais corpulentas de todas as raças<br />

selvagens de <strong>Virgo</strong>, sendo que apenas os gojos chegam<br />

tão perto em tamanho. Seu corpo é tremendamente musculoso<br />

e sua altura pode ultrapassar os 3,5 m. Seus cabelos são longos<br />

e grossos, negros como as profundezas das sombras, e<br />

normalmente ficam amarra<strong>dos</strong> para trás, na altura da nuca. O<br />

corpo possui uma grossa camada de pêlos que protegem sua<br />

rígida pele, que por sua vez, também é muito resistente. Seus<br />

olhos são de uma coloração escura e de uma profundidade<br />

assustadora. A tez de um ogro é de um marrom bem claro;<br />

entretanto, os pêlos que a cobrem são mais escuros, de forma<br />

que ao serem vistos, se tem a impressão que são quase negros.<br />

Os gojos também são criaturas enormes, com um corpo<br />

muito musculoso e bem distribuído em seus quase 3,5 m de<br />

altura. Não possuem cabelos, são to<strong>dos</strong> carecas e seus olhos<br />

são esbugalha<strong>dos</strong> dando uma impressão que estão loucos, mas<br />

na verdade, é apenas o seu biótipo comum. De vez em<br />

quando, lançam um olhar oblíquo, muito sinistro, que chega a<br />

delatar sua face de traição. Possuem um nariz chato e<br />

suspenso, lembrando um focinho de porco. São criaturas<br />

muito troncudas e não se percebe o pescoço. Sua mandíbula é<br />

muito larga, e em sua arcada inferior possuem dois dentes<br />

grandes e pontiagu<strong>dos</strong>, um em cada extremidade desta<br />

arcada, que se projetam por fora da boca. A cor da pele de um<br />

gojo também é muito parecida com a <strong>dos</strong> seres humanos e, na<br />

maioria <strong>dos</strong> casos, até possuem a mesma resistência, à exceção<br />

de alguns gojos que nascem com uma constituição muscular<br />

fora do comum e chega a ser duas vezes mais resistente que a<br />

<strong>dos</strong> homens. Os elfos acreditam que estas criaturas grotescas,<br />

a exemplo <strong>dos</strong> ogros, tenham vindo de um mesmo ancestral<br />

392


comum, já extinto há mais de 2050 anos, no final da <strong>Era</strong><br />

Trevas.<br />

Na verdade, gojos e ogros só se assemelham pelo<br />

tamanho de seus corpos e pela característica de vagarem<br />

solitariamente pelos lugares mais ermos de <strong>Virgo</strong>, embora, os<br />

gojos sejam encontra<strong>dos</strong> algumas vezes acompanhando<br />

criaturas de outras raças.<br />

Os gojos são muito prestativos. Quando são encontra<strong>dos</strong>,<br />

se oferecem para ajudar qualquer aventureiro, seja para<br />

carregar pesa<strong>dos</strong> equipamentos ou simplesmente para guiálos<br />

por qualquer lugar mais inóspito. Porém, são tão<br />

traiçoeiros quanto prestativos. Sempre que surge uma<br />

oportunidade, eles fogem com os equipamentos e utensílios<br />

<strong>dos</strong> viajantes, deixando-os, muitas vezes, em situações muito<br />

complicadas.<br />

Nunca se demonstram hostis à primeira vista, mas uma<br />

vez irrita<strong>dos</strong> ou em perigo, demonstram toda a sua força e<br />

fúria.<br />

Vestem-se normalmente com túnicas curtas e usam um<br />

cinto de couro. Suas sandálias, bem parecidas com as <strong>dos</strong><br />

antigos romanos, são entrelaçadas nas pernas por finas tiras<br />

de couro. Os gojos usam como armas as maças de espinho e as<br />

clavas, também espinhosas.<br />

Apesar de seu tamanho e sua força, são verdadeiros<br />

medrosos diante de magia. Qualquer mago pode facilmente<br />

submeter um gojo a seus serviços, sem se preocupar em ser<br />

traído, pois os gojos, apesar de traiçoeiros, jamais tentam<br />

enganar magos e feiticeiros.<br />

To<strong>dos</strong> os gojos são provenientes de um mesmo lugar, o<br />

Deserto Naissaras. Lá, encontra-se uma enorme tribo de gojos,<br />

de onde geralmente partem em busca de uma vida errante e<br />

solitária. Esta tribo fica bem ao centro do Deserto Naissaras,<br />

em torno de um enorme oásis que possui um lago de águas<br />

límpidas e potável.<br />

393


Mestres em montar banthas, possuem uma grande<br />

quantidade destes animais em sua tribo. Com os banthas,<br />

conseguem atingir as extremidades do Deserto Naissaras em<br />

quatorze dias, ao passo que sem a ajuda destes animais,<br />

levariam mais de sessenta dias, sendo praticamente<br />

impossível tal cruzada através das perigosas e traiçoeiras<br />

dunas de areia.<br />

Além <strong>dos</strong> banthas, apenas os Laithans (Dragões Brancos)<br />

são capazes de atravessar o Deserto Naissaras em segurança.<br />

Antigos habitantes deste lugar, os Laithans conhecem cada<br />

perigo do deserto.<br />

Uma história <strong>dos</strong> gojos<br />

O oásis habitado pela tribo <strong>dos</strong> gojos no meio do Deserto<br />

Naissaras outrora fora uma grande selva, conhecida como<br />

Floresta das Águas, mas devido a um distúrbio qualquer da<br />

natureza, pereceu com o passar <strong>dos</strong> anos e transformou-se em<br />

areia.<br />

Nesta época, em que a areia começou a dominar<br />

rapidamente toda a região da Floresta das Águas, os gojos<br />

eram muito numerosos e estavam evoluindo rapidamente<br />

como civilização, mas este processo acabou por reduzi-los a<br />

um número insignificante se comparado ao que foram antes<br />

do fenômeno que acabou criando o que é hoje conhecido como<br />

Deserto Naissaras.<br />

Os Laithans, que também habitavam a Floresta das Águas<br />

e sempre foram indiferentes aos gojos, passaram, por grande<br />

necessidade e desespero a caçá-los como alimento.<br />

A fauna e a flora da Floresta das Águas eram riquíssimas<br />

e jamais havia faltado alimentos para os Laithans. As duas<br />

raças sempre evitaram conflitos e conviveram de certa forma,<br />

em harmonia.<br />

Este fenômeno que transformou a Floresta das Águas no<br />

Deserto Naissaras, foi o único ocorrido na <strong>Era</strong> Nova, e foi o<br />

394


principal motivo a colocar gojos e Laithans em guerra, numa<br />

alucinada luta pela sobrevivência, onde o objetivo de ambos<br />

era a carne do inimigo para sua própria alimentação.<br />

A adaptação <strong>dos</strong> gojos ao solo arenoso foi tão rápida<br />

quanto o seu surgimento. Este fator foi fundamental para a<br />

garantia de sua existência.<br />

Mesmo adapta<strong>dos</strong> ao novo ambiente, os gojos ainda<br />

ficaram muito vulneráveis. Os Laithans, além de mais fortes<br />

fisicamente, mais determina<strong>dos</strong> e mais inteligentes, eram<br />

capazes de voar por toda a região. Mas os gojos traçaram uma<br />

estratégia que jamais seria esperada pelos Laithans.<br />

Durante to<strong>dos</strong> os anos de combate, os gojos cada vez mais<br />

se dirigiam para o centro da Floresta das Águas, acua<strong>dos</strong> pelos<br />

incessantes ataques <strong>dos</strong> Laithans. Enquanto os gojos recuavam<br />

e resistiam, um pequeno grupo avançava para dentro do<br />

principal covil <strong>dos</strong> Laithans, aos pés das Colinas Íngremes.<br />

Ao chegarem nas Colinas Íngremes, este bravo grupo de<br />

gojos travou uma violenta e sangrenta batalha contra o rei <strong>dos</strong><br />

dragões brancos e outros dois Laithans que lá estavam em sua<br />

companhia. Estes outros dois dragões eram da mesma<br />

linhagem do rei.<br />

Os três dragões juntos foram mais do que suficientes para<br />

dizimar o pequeno grupo de destemi<strong>dos</strong> gojos, que ousaram<br />

entrar no mais importante covil <strong>dos</strong> dragões brancos. Mas não<br />

pereceram em vão, pois conseguiram atingir o seu objetivo de<br />

distrair os dragões com a batalha enquanto um grupo menor<br />

de gojos encontrava a caverna <strong>dos</strong> ovos, onde toda uma nova<br />

geração de Laithans aguardava pelo momento de seu<br />

despertar para a vida.<br />

A estratégia era destruir a maior quantidade possível de<br />

ovos, na esperança de que com o medo da extinção de sua<br />

raça, os Laithans desistissem da batalha e recuassem<br />

abandonando o que sobrara da Floresta das Águas.<br />

O gojo responsável por este feito, conhecido por Gojorix,<br />

foi um <strong>dos</strong> mais astutos e valentes gojos de sua raça. Seu nome<br />

395


até hoje é lembrado por to<strong>dos</strong> na única tribo existente no<br />

centro do Deserto Naissaras.<br />

Enquanto Gojorix destruía os ovos com sua maça de<br />

espinhos, desferindo golpes ensandeci<strong>dos</strong> para to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>,<br />

o rei <strong>dos</strong> Laithans sentia uma enorme agonia crescer dentro de<br />

seu corpo, mas era impedido de sair de sua câmara principal<br />

em socorro <strong>dos</strong> ovos enquanto não se livrasse do outro grupo<br />

de gojos que o atacavam.<br />

Enfurecido, e observando seus dois entes queri<strong>dos</strong> que<br />

jaziam mortos a seu lado após horas de batalha, o rei <strong>dos</strong><br />

poderosos dragões brancos lançou um olhar fulminante sobre<br />

os dois últimos gojos da resistência diante de sua câmara<br />

principal e disparou contra eles sua baforada de fogo branco.<br />

A última coisa que aqueles pobres gojos viram em suas<br />

vidas foi um enorme clarão, pois desintegraram-se<br />

instantaneamente sob a fumaça cintilante que restou da<br />

investida do exausto rei Laithan. Pairava no ar, como fogo<br />

fátuo, o resíduo da baforada de dragão mais temida de <strong>Virgo</strong>.<br />

Então, o rei <strong>dos</strong> Laithans avançou furioso sobre as<br />

câmaras de seu covil, uma a uma, procurando o que lhe<br />

atormentara durante a batalha, temendo justamente pela<br />

segurança da câmara <strong>dos</strong> ovos. Ao chegar na câmara onde se<br />

encontravam os ovos, ficou aterrorizado. To<strong>dos</strong> quebra<strong>dos</strong>!<br />

Toda uma nova geração de Laithans perdida, massacrada<br />

cruelmente, sem a chance de ao menos poder se defender.<br />

Gojorix já havia partido solitário há algum tempo,<br />

montado em seu bantha, rumo ao seu povo onde, de fato,<br />

chegou em segurança. Não que seu bantha tenha sido tão<br />

rápido a ponto de lhe permitir escapar do rei <strong>dos</strong> Laithans,<br />

mas na verdade, o próprio rei <strong>dos</strong> dragões brancos permitiu a<br />

fuga. Se quisesse, teria o encontrado com facilidade nas<br />

primeiras milhas além das Colinas Íngremes.<br />

O rei <strong>dos</strong> Laithans reuniu to<strong>dos</strong> os de sua raça e dez dias<br />

depois, voaram juntos para o que ainda restava da Floresta<br />

das Águas, já em sua maior parte tomada pela areia. Voaram<br />

396


em direção à concentração de gojos sobreviventes, no centro<br />

da floresta. Cerca de trezentos e cinqüenta dragões formavam<br />

aquela coorte deslocando no céu uma assustadora nuvem de<br />

criaturas aladas.<br />

Ao chegarem a seu destino, à concentração de gojos no<br />

centro da Floresta das Águas, fizeram um gigantesco círculo,<br />

mantendo-se afasta<strong>dos</strong> uns <strong>dos</strong> outros por cerca de trinta<br />

metros. Além <strong>dos</strong> que faziam parte do enorme círculo, outros<br />

ainda pairavam sobre os gojos com incessantes vôos rasantes,<br />

deixando a to<strong>dos</strong> desespera<strong>dos</strong>.<br />

Alguns tentaram, em vão, furar o cerco, mas eram<br />

desintegra<strong>dos</strong> à medida que apareciam entre as árvores. Nem<br />

mesmo chegavam perto <strong>dos</strong> Laithans.<br />

O rei <strong>dos</strong> dragões brancos pousou acompanhado de<br />

outros dois dragões, bem no centro da tribo improvisada, e<br />

falando na língua rústica <strong>dos</strong> gojos, deixou bem clara suas<br />

intenções. Lembrou-lhes quem eram seus antigos rivais<br />

durante a <strong>Era</strong> Trevas, que eram os Darkhos (dragões negros).<br />

Ainda lhes falou sobre a dor de ver to<strong>dos</strong> os ovos de Laithans<br />

destruí<strong>dos</strong>, o que os colocava vulneráveis contra to<strong>dos</strong> os seus<br />

inimigos, pois agora passavam a ser uma raça em extinção.<br />

Os gojos ouviam apreensivos e aterroriza<strong>dos</strong>, esperando<br />

pelo pior. O rei <strong>dos</strong> Laithan afirmou que se quisesse, com um<br />

único comando, poderia aniquilar toda a tribo de gojos de<br />

uma só vez, para todo o sempre. Mas sabia que haviam muitos<br />

gojos errantes espalha<strong>dos</strong> em <strong>Virgo</strong>, e por mais que quisesse,<br />

não conseguiria erradicá-los totalmente do mundo.<br />

O rei <strong>dos</strong> Laithans ainda falou muitas outras coisas, mas<br />

ao final do discurso, colocou, com clareza, o que esperava <strong>dos</strong><br />

gojos. O silêncio <strong>dos</strong> gojos sobre a destruição <strong>dos</strong> ovos no<br />

covil <strong>dos</strong> Laithans sob às Colinas Íngremes. Com isso teriam<br />

uma trégua eterna, assim prometeu o rei <strong>dos</strong> dragões brancos.<br />

Aos olhos <strong>dos</strong> gojos, aquela proposta parecia ótima, nem<br />

estavam acreditando, porque certamente não sobreviveriam<br />

ao cerco <strong>dos</strong> dragões naquelas condições em que foram<br />

397


apanha<strong>dos</strong>. No mesmo instante, o líder <strong>dos</strong> gojos, o rei<br />

Gojoramim, aceitou o trato.<br />

Mas as coisas não eram tão simples quanto pareciam, pois<br />

o rei <strong>dos</strong> Laithans ordenou a Gojoramim que entregasse a ele<br />

os responsáveis pela destruição <strong>dos</strong> ovos. Houve uma grande<br />

indignação por parte de Gojoramim e sua tribo. Negou<br />

solenemente o pedido, achando um absurdo que tivesse que<br />

entregar um de seu povo sem qualquer deliberação, para a<br />

morte.<br />

Então, o rei <strong>dos</strong> dragões brancos alçou vôo traçando uma<br />

longa curva no ar, deixando um aviso de que os dragões<br />

fechariam o cerco, avançando cinqüenta metros a cada dia,<br />

diminuindo o diâmetro do círculo, até que lhe fosse entregue o<br />

autor da destruição <strong>dos</strong> ovos.<br />

Ao sétimo dia de resistência, os Laithans haviam<br />

conseguido avançar apenas duzentos metros. A resistência<br />

<strong>dos</strong> gojos era mais forte do que esperavam e muitos Laithans<br />

também pereceram. O que mais abalava os gojos eram os<br />

constantes ataques aéreos no centro da tribo. Centenas de<br />

gojos morriam to<strong>dos</strong> os dias, até que no nono dia, o próprio<br />

Gojorix se entregou para salvar seu povo daquele massacre<br />

cada vez mais inevitável.<br />

Gojorix foi então levado ao rei <strong>dos</strong> dragões brancos e<br />

nunca mais foi visto por qualquer outro gojo, ficando apenas<br />

na lembrança de seu povo como um herói, por várias<br />

gerações.<br />

Gojoramim, ordenou que muitos gojos partissem em seus<br />

banthas, em diversas direções, para garantir que os temíveis<br />

Laithans não extinguissem a raça <strong>dos</strong> gojos. Cada gojo<br />

guardava consigo, o segredo <strong>dos</strong> ovos destruí<strong>dos</strong>, o que<br />

tornaria, caso esta informação caísse em mãos erradas, os<br />

Laithans extremamente vulneráveis diante das outras raças<br />

mais poderosas. Esse segredo, era a garantia de vida <strong>dos</strong> gojos,<br />

que quanto mais espalha<strong>dos</strong>, mais difícil seria para que os<br />

398


Laithans os exterminassem, caso viessem a quebrar o trato de<br />

paz.<br />

399


Druzos<br />

S<br />

ão os seres mais ardilosos e traiçoeiros de <strong>Virgo</strong>. São muito<br />

pareci<strong>dos</strong> com os vutuks, porém, sua estatura é maior e<br />

seus chifres pequeninos. Lembram muito a figura do diabo<br />

que conhecemos. Garras pontiagudas nas mãos e nos pés,<br />

além de uma cauda fina e comprida, terminando como uma<br />

ponta de seta, com um pequeno triângulo invertido em sua<br />

extremidade. A pele destas criaturas é de uma cor púrpura e<br />

possui uma resistência ao calor fora do comum. Na verdade, é<br />

revestida de escamas especiais, lembrando muito os dragões.<br />

Um druzo pode viver tranqüilamente em ambientes que<br />

cheguem a elevadíssimas temperaturas.<br />

A única cidade <strong>dos</strong> druzos que existe e que se tem<br />

conhecimento, é a Cidade do Fogo, e fica localizada nas<br />

profundezas da Região Vulcânica. O lugar é extremamente<br />

quente, pois situa-se próximo à passagem de rios subterrâneos<br />

de lava. A elevada temperatura e o cheiro de enxofre são<br />

insuportáveis para qualquer outra criatura, a menos que possa<br />

se valer de alguma magia que permita assegurar-lhe o<br />

equilíbrio térmico e a oxigenação necessária a seu organismo.<br />

É possível que, apenas poderosos magos sejam capazes de<br />

chegar ao centro da Cidade do Fogo. Fora esta defesa natural,<br />

praticamente infalível, os druzos possuem três povoa<strong>dos</strong> que<br />

foram construí<strong>dos</strong> mais próximos à superfície, e que se<br />

interligam numa seqüência através de longos túneis. Para se<br />

chegar à Cidade do Fogo, qualquer criatura precisa passar por<br />

cada um <strong>dos</strong> três povoa<strong>dos</strong>, até começar a enfrentar o<br />

verdadeiro calor. Estes povoa<strong>dos</strong> são, na verdade, habita<strong>dos</strong><br />

por druzos guerreiros, destina<strong>dos</strong> a proteger o acesso à sua<br />

cidade principal.<br />

400


O comportamento <strong>dos</strong> druzos é muito estranho, eles não<br />

falam, apenas emitem grunhi<strong>dos</strong> uns para os outros, para<br />

então se comunicarem através de olhares. Parece até uma<br />

comunicação por telepatia, mas ninguém sabe ao certo como<br />

funciona este estranho comportamento de comunicação entre<br />

eles.<br />

As construções realizadas pelos druzos são todas<br />

edificadas a partir de pedras vulcânicas e rochas de lava<br />

resfriada. Eles possuem fôrmas especiais de pedra para<br />

resfriar a lava, moldando-a de acordo com as peças de que<br />

precisam.<br />

Em geral, vivem em grupos de quatro ou cinco dentro de<br />

seus lares. Não usam roupas, apenas adornos em ouro, como<br />

colares, anéis, elmos, braceletes, etc. To<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> do<br />

mais puro ouro, que é abundante na Cidade de Fogo, e<br />

também nos três povoa<strong>dos</strong> que a protegem (Sangar, Sartara e<br />

Sabalaa).<br />

As armas <strong>dos</strong> druzos, também são todas forjadas em uma<br />

liga especial de ouro com titânio. Geralmente, eles se armam<br />

para buscar na superfície de <strong>Virgo</strong> criaturas de qualquer raça<br />

que possam lhes servir de diversão. Nenhuma criatura<br />

capturada por druzos conseguiu escapar de seu cativeiro com<br />

vida. Os desaparecimentos são constantes na região vulcânica.<br />

Muitos seres também são captura<strong>dos</strong> para serem oferta<strong>dos</strong> em<br />

sacrifício ao Arkhazeus.<br />

Não são bons guerreiros e nunca participaram de guerras,<br />

praticamente, apenas se defendem o tempo inteiro. Matar ou<br />

capturar um druzo é um ótimo investimento para um<br />

mercenário ou caçador de tesouros, pois os despojos do<br />

combate são to<strong>dos</strong> em ouro. Mas é raríssimo encontrar um<br />

druzo solitário, eles sempre andam em grupo.<br />

Os druzos utilizam dois tipos de armas, o tridente<br />

(comum a to<strong>dos</strong> eles) e o punhal.<br />

401


Estas criaturas limitam-se à região vulcânica de <strong>Virgo</strong>, de<br />

forma que não há registros de que tenham sido encontra<strong>dos</strong><br />

em outras partes.<br />

Uma história <strong>dos</strong> druzos<br />

No início <strong>dos</strong> tempos, os druzos habitavam o interior <strong>dos</strong><br />

vulcões, mas gradualmente foram migrando para as<br />

profundezas desta região, instalando-se sob a superfície de<br />

<strong>Virgo</strong>, devido às constantes erupções vulcânicas que ocorriam.<br />

Praticamente foram obriga<strong>dos</strong> a sair das proximidades <strong>dos</strong><br />

canais de pressão <strong>dos</strong> vulcões para regiões mais tranqüilas,<br />

debaixo da terra.<br />

O primeiro povoado subterrâneo <strong>dos</strong> druzos foi o<br />

povoado de Sangar. Com o passar do tempo e o aumento da<br />

população de druzos, eles foram obriga<strong>dos</strong> a migrar, e<br />

decidiram cavar um grande túnel até encontrar condições<br />

propícias para a construção de um novo e maior povoado.<br />

Este novo lugar ficou então conhecido como Sartara.<br />

Depois de erguido o pequeno povoado de Sartara, os druzos<br />

foram surpreendi<strong>dos</strong> pelo Arkhazeus, uma terrível criatura de<br />

quase treze metros de altura dotada de poderes sobrenaturais,<br />

com enormes garras e presas afiadas, que aterrorizou até<br />

mesmo os mais perversos druzos de Sangar e Sartara.<br />

Após muita luta e várias mortes, os druzos conseguiram<br />

capturar o Arkhazeus, que atualmente é mantido preso numa<br />

enorme caverna nas profundezas da terra, lacrada por um<br />

resistente portão todo em titânio, com uma enorme face de<br />

druzo toda em ouro e em alto relevo, no centro.<br />

Depois desta vitória, os druzos resolveram ampliar seus<br />

domínios e continuaram as escavações em túneis até chegar a<br />

um novo local, amplo como os anteriores, para erguer mais<br />

um povoado, que foi chamado de Sabalaa.<br />

Na ocasião em que os druzos construíram Sabalaa,<br />

encontraram um enorme buraco nas profundezas, que estava<br />

402


coberto por rochas provenientes, com toda a certeza, de um<br />

antigo desabamento da enorme gruta subterrânea.<br />

Muitos druzos curiosos resolveram descer por este<br />

buraco, em busca de novos recursos naturais e matéria prima,<br />

para a construção do povoado, já que naquele ponto a lava era<br />

escassa e todo o material para construção era trazido de<br />

Sartara.<br />

Descendo por este buraco, na verdade uma cratera de<br />

quase duzentos metros de diâmetro, os druzos exploradores<br />

encontraram a maior câmara subterrânea de <strong>Virgo</strong>, onde<br />

corriam inúmeros rios de lava por toda parte e enormes<br />

pepitas de ouro brotavam das paredes e do solo. Nesta imensa<br />

câmara, ergueram o que seria uma verdadeira cidade, bem<br />

abaixo de Sabalaa. Ergueram a Cidade do Fogo!<br />

Este nome é mesmo apropriado, pois o lugar é um<br />

verdadeiro inferno de tão quente, e além do mais, o oxigênio é<br />

muito escasso. Só mesmo druzos para conseguir sobreviver<br />

neste lugar. A Cidade do Fogo prosperou mais do que to<strong>dos</strong><br />

os outros três povoa<strong>dos</strong> e passou a ser uma espécie de pólo<br />

industrial para esta raça, onde fabricavam armas que<br />

futuramente comercializaram com outras criaturas selvagens<br />

como orcs e goblins.<br />

Mas nem tudo foi glória para os druzos. O Arkhazeus fez<br />

muitas vítimas quando eles chegaram, e deu um trabalho<br />

enorme até ser definitivamente capturado.<br />

Após uma série de tentativas de empurrar o Arkhazeus<br />

para dentro de uma enorme caverna onde pretendiam deixá-lo<br />

aprisionado, perceberam que a única maneira de forçá-lo a<br />

entrar neste buraco seria atraindo-o, e não o encurralando,<br />

mas para isto, seria necessário o sacrifício de algum druzo que<br />

entrasse na caverna e ficasse como isca, chamando a atenção<br />

da terrível criatura.<br />

Os druzos chegaram a pensar em desistir da construção<br />

do povoado de Sartara, mas o insistente líder druzo desta<br />

ferrenha batalha não permitiu que recuassem e obrigou que<br />

403


to<strong>dos</strong> continuassem até que conseguissem triunfar diante do<br />

Arkhazeus.<br />

Foi então, que os druzos construíram o enorme portão de<br />

titânio, já com a face em ouro, do druzo que seria o<br />

sacrificado, em alto relevo em sua parte frontal. <strong>Era</strong> algo de<br />

arrepiar!<br />

No dia em que o plano foi executado, este valente druzo<br />

se aproximou do Arkhazeus, que estava adormecido, e<br />

cravou-lhe um punhal de ouro no pé. A lâmina afiada, do<br />

especial ouro druzo, atravessou o pé da temível criatura, que<br />

grunhiu desesperadamente de dor levantando-se bruscamente<br />

com uma expressão atemorizante, de agonia e raiva. A<br />

esperança do druzo, era que, ferindo o pé do monstro, isso<br />

atrasasse um pouco a criatura, que era ligeira demais e<br />

poderia alcançá-lo antes que atingisse a saída da gruta.<br />

O Arkhazeus identificou o druzo correndo loucamente e<br />

saiu alucinado atrás dele, mancando demais, com o punhal<br />

ainda cravado em seu pé. O ódio do Arkhazeus, porém, era<br />

ainda maior que a dor que o assolava naquele momento, e<br />

mesmo mancando e sangrando horrores, corria desesperado<br />

atrás de seu agressor.<br />

A esta altura, a caverna já estava preparada com o portão<br />

oculto pelo lado de dentro, e assim que o Arkhazeus passou<br />

pela entrada, soltaram o gigantesco portão, encerrando o<br />

Arzakheus em seu cativeiro, junto com sua última vítima.<br />

404


S<br />

APÊNDICE C<br />

Dragões<br />

em dúvida alguma, a raça mais magnífica de <strong>Virgo</strong> é a <strong>dos</strong><br />

dragões. Estas criaturas existem desde a <strong>Era</strong> Oculta, onde<br />

foram muito numerosos. São criaturas milenares, pois podem<br />

viver até três mil anos, e por se tratarem de répteis muito<br />

especiais, são seres ovíparos que reproduzem-se apenas uma<br />

vez a cada dez ou onze anos. Os dragões são muito poderosos,<br />

com sua altura de até doze metros, com um corpo revestido de<br />

escamas muito resistentes, e ainda capazes de voar com o<br />

auxílio de suas enormes asas, são os seres mais temi<strong>dos</strong> de<br />

<strong>Virgo</strong>. Além destas exuberantes qualidades, os dragões<br />

também possuem olfato e visão acuradíssimos. Suas garras,<br />

presas e cauda, são verdadeiras armas mortais, mas o sistema<br />

de defesa, e em muitos casos, de ataque, <strong>dos</strong> dragões, são os<br />

jatos de fogo, gás ácido, e peçonha, que eles podem lançar<br />

através de glândulas especiais, dependendo da espécie que se<br />

trata.<br />

Já não bastassem to<strong>dos</strong> estes atributos, no final da <strong>Era</strong><br />

Oculta, os dragões iniciaram o desenvolvimento de uma<br />

linguagem peculiar, que os permitiram criar uma<br />

comunicação mais racional e, partir daí, houve um estupendo<br />

desenvolvimento destas criaturas, que ao chegarem ao final da<br />

<strong>Era</strong> Gênesis, já eram capazes de entender todas as línguas e<br />

dialetos comuns de <strong>Virgo</strong>, até mesmo os de raças selvagens<br />

como os orcs e os goblins.


Durante a <strong>Era</strong> Trevas, os dragões foram os que mais<br />

sofreram com a escassez de ar, e como são criaturas muito<br />

grandes, necessitavam consumir uma quantidade muito maior<br />

de oxigênio do que as outras raças. Este fato ocasionou a<br />

morte de muitos dragões, levando-os a um processo de<br />

extinção quase total. Atualmente, muitas criaturas acreditam<br />

que os dragões estejam realmente extintos, mas isso não é<br />

verdade.<br />

Os dragões ainda existem, são pouquíssimos, de fato, e<br />

são vistos raramente. Às vezes passam-se dez, quinze, vinte<br />

anos sem que um dragão seja visto. Apesar de poderosos, eles<br />

procuram se preservar ao máximo evitando confrontos com<br />

criaturas de outras raças. Eles sabem que estão quase extintos,<br />

e muitos outros motivos os levam a ter toda esta precaução em<br />

aparecer diante das outras raças.<br />

Vítimas de uma série de superstições, de variadas raças,<br />

os dragões sempre foram alvo de ataque. Acreditava-se que<br />

comer ovos de dragão, poderia prolongar a vida em mil anos.<br />

Esperar anos para uma postura de ovos, e perdê-los era a<br />

maior tristeza de um dragão; por isso, os ovos de dragão são<br />

dificílimos de encontrar.<br />

Como os dragões são seres milenares, e sempre tiveram<br />

um relacionamento muito estreito com os elfos, que também<br />

são criaturas longevas, teve origem a história de que elfos<br />

comiam ovos de dragão e por isso viviam centenas de anos<br />

com uma aparência jovial. Foi por este motivo, falso é claro,<br />

que a busca desenfreada por ovos de dragão teve início em<br />

<strong>Virgo</strong>, e perdura até os dias atuais. Na verdade, a única coisa<br />

que se obtém ao comer um ovo de dragão é uma tremenda dor<br />

de barriga que pode durar de dois a três dias; fora isso, é<br />

apenas a morte de um filhote de dragão.<br />

406


Laithans (Dragões Brancos)<br />

Os dragões desta espécie, conheci<strong>dos</strong> por Laithans e de<br />

escamas esbranquiçadas mescladas com um cinza bem claro,<br />

sempre foram habitantes da Floresta das Águas, até seu fim no<br />

início da <strong>Era</strong> Nova. Depois, com esta floresta se<br />

transformando num imenso deserto ao longo <strong>dos</strong> séculos e<br />

com os incessantes conflitos que tiveram com os gojos, os<br />

Laithans passaram a habitar cavernas, nas encostas das<br />

Colinas Íngremes.<br />

Na época em que os Laithans habitaram a Floresta das<br />

Águas, foram alia<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> elfos de Plarionthil, aliança esta que<br />

durou muitos e muitos anos, e ainda hoje, estes dragões são<br />

bem-vin<strong>dos</strong> àquele reino.<br />

Os Laithans possuem uma arma natural das mais<br />

poderosas entre todas as espécies de dragão. Sua baforada de<br />

fogo branco. Não se trata de uma baforada de fogo comum,<br />

como é a <strong>dos</strong> dragões vermelhos. Em primeiro lugar, porque a<br />

chama de fogo de um dragão branco, não é exatamente o que<br />

entendemos por fogo, é algo muito diferente, especial, de um<br />

brilho quase cegante, um fogo meio branco e meio azulado,<br />

como se fosse a combustão de muitos gases altamente<br />

inflamáveis. Este fogo, é capaz de derreter até mesmo os mais<br />

poderosos escu<strong>dos</strong> elabora<strong>dos</strong> com escamas de dragão. A<br />

fumaça proveniente deste fogo, ou <strong>dos</strong> objetos queima<strong>dos</strong> por<br />

ele, é cintilante como um fogo-fátuo. É um belo espetáculo a<br />

baforada de um dragão branco, mas também a mais letal de<br />

todas as espécies de dragão. E ainda, os Laithans não lançam<br />

suas chamas da forma mais tradicional, ou seja, de forma<br />

cônica, onde a chama vai se abrindo a medida em que alcança<br />

o alvo; pelo contrário, os Laithans possuem uma baforada<br />

direcional, reta e consistente, que causa grande impacto ao<br />

407


alvo desejado. Por tudo isto, a baforada de um Laithan é a<br />

mais letal de todas as espécies de dragão em <strong>Virgo</strong>.<br />

Greenos (Dragões Verdes)<br />

Habitantes da Grande Floresta, os dragões verdes são<br />

verdadeiros amantes da natureza e jamais se acostumaram a<br />

viver em regiões fora da floresta. Muitas vezes os greenos<br />

ajudaram aos elfos a eliminar orcs errantes que insistiam em<br />

destruir as florestas. Não com uma intervenção direta, mas<br />

carregavam os elfos e sobrevoavam quase to<strong>dos</strong> os dias pela<br />

floresta para encontrar os focos de incêndios provoca<strong>dos</strong> pelos<br />

orcs.<br />

O primeiro exército élfico alado da história surgiu da<br />

aliança entre elfos e greenos. Apesar de muito pacatos, os<br />

dragões verdes sempre apoiaram os elfos em sua luta pela<br />

proteção das florestas e da natureza. Os greenos são muito<br />

diferentes das outras espécies de dragão. A única coisa que<br />

um dragão verde cobiça é um lugar tranqüilo nas profundezas<br />

da mata, sob a proteção das árvores. A união <strong>dos</strong> greenos aos<br />

elfos de Planúviel para a formação de um exército alado não<br />

foi bem recebida pelos demais reinos élficos, e muito menos<br />

pelos dragões brancos (Laithans).<br />

A principal arma de um dragão verde é sua baforada de<br />

gás. Um gás de cheiro muito forte. Não chega a ser letal, mas<br />

faz com que suas vítimas fiquem tontas, com os olhos ardendo<br />

e lacrimejando muito. Na verdade, é uma arma de defesa,<br />

porque ao atingir sua vítima, o greeno aproveita a situação<br />

para fugir rapidamente. Jamais atacam com a intenção de<br />

ferir.<br />

Nos dias atuais, os greenos não são mais capazes de voar.<br />

O decorrer <strong>dos</strong> séculos e o hábito de se manterem quase o<br />

tempo todo dentro das florestas fez com que esta espécie de<br />

dragão sofresse uma mutação em suas asas, diminuindo-as e<br />

tornando-as sem força.<br />

408


Blukhos (Dragões Azuis)<br />

Isola<strong>dos</strong>, estes dragões vivem na Ilha Kirbuz. Jamais se<br />

envolveram em guerras por sua conta própria ou fizeram<br />

alianças duradouras com outras raças. Não se aproximam<br />

sequer de outros dragões que não sejam de sua espécie. São<br />

criaturas muito curiosas. Podem ser amigáveis, indiferentes ou<br />

até mesmo hostis de uma hora para outra, sem motivo algum.<br />

Os blukhos são caça<strong>dos</strong> pelos habitantes naturais da ilha<br />

Kirbuz, os vutuks. Quando captura<strong>dos</strong>, são obriga<strong>dos</strong> a<br />

realizar trabalhos força<strong>dos</strong> nas minas de escavação <strong>dos</strong><br />

vutuks. Mas é muito raro um blukho ser capturado, e não<br />

vivem muito tempo quando aprisiona<strong>dos</strong>.<br />

Certa vez, quando alguns elfos de Eluannar visitaram a<br />

Ilha Kirbuz e foram captura<strong>dos</strong> por uma horda de vutuks,<br />

coincidentemente um dragão azul muito importante (o mais<br />

velho blukho de <strong>Virgo</strong>) havia sido feito prisioneiro naquela<br />

mesma semana. Vários blukhos atacaram os vutuks libertando<br />

o velho dragão e também os elfos.<br />

Os blukhos são os únicos dragões incapazes de voar, pois<br />

suas asas são muito pequenas e nunca se desenvolveram.<br />

A arma natural de um blukho é o seu cuspe de fogo, ou<br />

melhor, cuspe de bolas de fogo. Um blukho pode lançar uma<br />

bola de fogo a uma distância de até oitenta metros de seu alvo.<br />

Eles são capazes de cuspir cerca de cinco bolas de fogo<br />

seguidas, mas se o fizerem, precisarão esperar<br />

aproximadamente vinte minutos até que seu organismo esteja<br />

novamente apto a produzir as substâncias necessárias ao seu<br />

cuspe de fogo.<br />

O importante a saber sobre esta espécie de dragão é que<br />

eles jamais se envolvem em problemas, desde que não sejam<br />

molesta<strong>dos</strong>. Não ligam para o que acontece ao seu redor. Mas<br />

se ataca<strong>dos</strong>, revidam com toda a ferocidade até aniquilar seu<br />

inimigo. É raro encontrar dragões azuis solitários. Geralmente<br />

andam em pequenos grupos. Mesmo que um blukho seja visto<br />

sozinho, pode ter certeza de que outros estão por perto.<br />

409


De todas as espécies de dragões existentes em <strong>Virgo</strong>, os<br />

blukhos são atualmente os mais numerosos. Não que seja um<br />

número considerável de dragões, não chegam a cem no total,<br />

mas comparado às outras espécies, este número é muito<br />

significativo.<br />

Redhes (Dragões Vermelhos)<br />

Esta espécie de dragão é a mais ambiciosa e traiçoeira<br />

existente. Não só em relação aos demais dragões, mas em<br />

relação a todas as raças superiores e selvagens de <strong>Virgo</strong>. Os<br />

Redhes cobiçam as preciosidades, os metais nobres, os<br />

tesouros <strong>dos</strong> elfos e anões.<br />

Além <strong>dos</strong> tesouros, os dragões vermelhos também são<br />

apaixona<strong>dos</strong> pelas jovens elfas. É muito comum encontrar<br />

elfas cativas junto a dragões vermelhos. Encantam-se com sua<br />

beleza. São capazes de ficar dias admirando uma jovem elfa.<br />

As jovens elfas são consideradas verdadeiros tesouros pelos<br />

Redhes e, uma vez cativas, são tratadas com todo o conforto<br />

possível por estas criaturas vis. Alimentam-nas e as mantém<br />

sempre saudáveis.<br />

É também muito comum encontrar nas cavernas <strong>dos</strong><br />

dragões vermelhos, alguns prisioneiros de grande<br />

importância, que possam ter um bom valor de negociação<br />

para um possível resgate, tais como reis, rainhas, princesas,<br />

guerreiros valorosos, etc. Ao contrário das jovens elfas, estes<br />

prisioneiros não gozam de regalias nas mãos <strong>dos</strong> dragões<br />

vermelhos e caso eles descubram que seus cativos não<br />

possuem nenhum valor para resgate, são imediatamente<br />

massacra<strong>dos</strong> sem a menor piedade.<br />

São criaturas más e extremamente violentas. Em combate,<br />

praticamente são imbatíveis. Sua principal arma é a baforada<br />

de fogo, que sempre sai em forma cônica e crescente em<br />

direção ao alvo, ampliando seu diâmetro de fogo até atingir o<br />

inimigo. Um Redhe é capaz de lançar cerca de treze ou<br />

410


quatorze baforadas flamejantes durante um dia. Mas isto varia<br />

de acordo com o clima. Quanto mais quente o ambiente, mais<br />

rápido funciona o metabolismo de um Redhe, e isso permite<br />

que ele aumente esta capacidade consideravelmente. É por<br />

isso que, normalmente, os dragões vermelhos procuram<br />

habitar as cavernas da região vulcânica. Nesta região, são<br />

capazes de lançar até dezoito baforadas flamejantes durante<br />

um mesmo dia.<br />

To<strong>dos</strong> os dragões possuem uma resistência extraordinária<br />

ao fogo devido às suas poderosas e espessas escamas,<br />

independentemente da espécie, mas os redhes, em particular,<br />

possuem as escamas mais resistentes já conhecidas e<br />

atualmente é possível encontrar entre vários reinos muitas<br />

armaduras e escu<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> a partir de escamas de<br />

dragão vermelho.<br />

Goldhest (Dragões Doura<strong>dos</strong>)<br />

To<strong>dos</strong> os dragões doura<strong>dos</strong>, na verdade, são dragões cujas<br />

escamas são cintilantes e possuem uma coloração dourada.<br />

Nenhuma outra raça já testemunhou sua existência, apenas<br />

dragões de outras espécies já viram um Goldhest.<br />

Os elfos somente souberam da existência <strong>dos</strong> dragões<br />

doura<strong>dos</strong> através das histórias que outros dragões (azuis,<br />

verdes e brancos) sempre contavam.<br />

Os Goldhests foram muito numerosos na <strong>Era</strong> Oculta, e<br />

sempre foram os mais inteligentes e poderosos entre todas as<br />

espécies de dragão.<br />

Atualmente, existe apenas um único Goldhest vivo, que é<br />

considerado o mestre de to<strong>dos</strong> os dragões. Muitos dragões de<br />

todas as espécies o procuram incansavelmente para receber<br />

seus ensinamentos e aconselhamentos.<br />

O Goldhest é o único dragão que conseguiu manifestar o<br />

mana de <strong>Virgo</strong> e se valer de diversas magias. Os elfos buscam<br />

desesperadamente encontrar este último dragão dourado para<br />

411


conhecer a mais sábia criatura já existente em <strong>Virgo</strong>. Ninguém,<br />

exceto uns poucos dragões, sabe onde fica a morada do<br />

Goldhest, mas muitos elfos desconfiam que ele vive no centro<br />

do Vale da Neblina, no coração da Região das Montanhas.<br />

Darkhos (Dragões Negros)<br />

Uma das mais temíveis espécies de dragão! A exemplo<br />

<strong>dos</strong> dragões vermelhos, os Darkhos são maus, cobiçam o<br />

poder e como os orcs, possuem o dom da destruição. Adoram<br />

transformar em ruínas, toda e qualquer cidade, castelos e<br />

florestas que encontrem por seus caminhos.<br />

Os dragões negros sempre foram inimigos de to<strong>dos</strong>, à<br />

exceção <strong>dos</strong> orcs da Floresta das Sombras, e mesmo assim, os<br />

orcs especificamente da tribo Zaraidai. Alia<strong>dos</strong> inseparáveis,<br />

participaram juntos de inúmeras batalhas e devastações contra<br />

reinos élficos e <strong>dos</strong> anões.<br />

Por incrível que pareça, a <strong>Era</strong> Trevas, que foi a era onde as<br />

raças selvagens atingiram o ápice de seu poder, não foi tão<br />

gentil aos dragões negros como fora com os orcs, que se<br />

expandiram barbaramente durante os 347 anos que a<br />

caracterizou. Durante essa era, os dragões negros foram os que<br />

mais sofreram entre todas as espécies de dragão. Por serem os<br />

mais fortes, ágeis e perspicazes, necessitavam de uma grande<br />

quantidade de oxigênio para se manter. Como durante este<br />

período, o ar ficou muito rarefeito, eles ficaram ler<strong>dos</strong>,<br />

chegando muitos a perecer, não suportando este ambiente<br />

árido que se formou.<br />

É possível que o maior índice de mortes já conhecido em<br />

<strong>Virgo</strong>, de uma mesma raça e espécie, tenha sido a <strong>dos</strong> Darkhos<br />

durante a <strong>Era</strong> Trevas.<br />

Na Guerra da Agonia, os Darkhos foram deixa<strong>dos</strong> de lado<br />

pelos orcs da tribo Zaraidai, definitivamente.<br />

Nos dias atuais, os Darkhos possuem um acordo de paz<br />

com a rainha Aurien do reino élfico de Sombrorn, que dizem,<br />

412


é o segundo reino mais poderoso de <strong>Virgo</strong>. Os Darkhos<br />

temiam ser extintos e então fizeram um acordo que pudesse<br />

garantir sua segurança contra os poderosos exércitos de<br />

Sombrorn.<br />

Agora, os pouquíssimos dragões negros existentes vivem<br />

de aterrorizar pequenos vilarejos bem longe da Floresta das<br />

Sombras, ou então, procuram caçar Laithans (dragões brancos)<br />

apenas para sua diversão. Darkhos e Laithans sempre foram<br />

inimigos, desde a <strong>Era</strong> Oculta.<br />

Os Darkhos são os únicos dragões capazes de cuspir um<br />

líquido extremamente ácido, com um altíssimo poder<br />

corrosivo. Mas não podem se valer muito desta arma, pois<br />

durante um dia inteiro, não conseguem dar mais do que três<br />

esguichadas longas deste poderoso ácido.<br />

Nenhum escudo em <strong>Virgo</strong> é capaz de deter este ácido<br />

letal, nem mesmo os escu<strong>dos</strong> confecciona<strong>dos</strong> com escamas de<br />

dragão vermelho.<br />

Só existe em <strong>Virgo</strong>, no reino de Sombrorn, um único<br />

material capaz de deter este ácido. São os escu<strong>dos</strong> encanta<strong>dos</strong><br />

de Aurien. Uma legião inteira de Sombrorn usa estes escu<strong>dos</strong>.<br />

413


APÊNDICE D<br />

Mapas


415


APÊNDICE E<br />

<strong>Era</strong>s de <strong>Virgo</strong>


<strong>Era</strong> Oculta<br />

N<br />

a verdade, nenhuma criatura viva, seja da raça selvagem<br />

ou da raça superior, é capaz de narrar qualquer<br />

acontecimento antes da <strong>Era</strong> Gênesis, referindo-se então, a<br />

to<strong>dos</strong> os acontecimentos anteriores a esta época, como sendo a<br />

primeira era de todas, a qual chamam de <strong>Era</strong> Oculta. Ninguém<br />

imagina quanto tempo, de fato, tenha durado este período,<br />

mas suspeita-se que tenha sido uma era predominantemente<br />

dominada pelos dragões.<br />

As informações existentes a respeito dessa era não passam<br />

de meras suposições colocadas pelos elfos, dentre as quais<br />

destacam-se as que se seguem:<br />

Dizem que este período pode ter durado mais de um<br />

milhão de anos, e que foi a era do surgimento de todas as<br />

raças; o mar era quatro vezes maior do que agora, cobria a<br />

metade da Grande Floresta, toda a Floresta das Águas (que<br />

atualmente é o Deserto Naissaras), o Pântano Hibrittatus, a<br />

Planície de Prata e parte da Planície de Bronze; o Vale <strong>dos</strong><br />

Cristais, afirmam, teria surgido a partir de um grande pedaço<br />

do céu cristalino que cobre <strong>Virgo</strong>, que despencou devido a um<br />

<strong>dos</strong> inúmeros terremotos que sempre ocorriam nesta era; os<br />

dragões começaram a desenvolver sua linguagem no final da<br />

<strong>Era</strong> Oculta, e a partir do início da <strong>Era</strong> Gênesis, ocorreu um<br />

rápido desenvolvimento intelectual nesta raça; a Thalide,<br />

como referem-se a <strong>Virgo</strong>, era um lugar ainda mais abafado<br />

pelas constantes erupções vulcânicas; no ar, em qualquer<br />

parte, sentia-se um forte e nauseante cheiro de enxofre.<br />

418


<strong>Era</strong> Gênesis<br />

C<br />

omo esta era foi amplamente vivenciada pelos elfos, os<br />

mais importantes acontecimentos estão registra<strong>dos</strong> em<br />

to<strong>dos</strong> os seus cinco reinos. Eis os principais acontecimentos<br />

que marcaram esta importante era na história de <strong>Virgo</strong>:<br />

001 – Iniciou com a criação do calendário élfico entrando em<br />

vigor, marcando a partir de então, fatos importantes que<br />

seriam associa<strong>dos</strong> às datas.<br />

040 – Passa<strong>dos</strong> os primeiros quarenta anos, o que era uma<br />

enorme vila desde o final da <strong>Era</strong> Oculta transformou-se,<br />

finalmente, no primeiro reino élfico no coração da Grande<br />

Floresta, o reino chamado Plarionthil (Pla = Grande, Rion =<br />

Reino, Thil = Elfo ). Seu primeiro rei foi Galadhil.<br />

115 – Primeira grande expedição élfica em direção ao leste.<br />

129 – Ataque de dragões negros à Plarionthil.<br />

184 – Morte de Galadhil e êxodo de Plarionthil (I Êxodo<br />

Élfico).<br />

186 – Galadrin, filho de Galadhil, assume o reino de<br />

Plarionthil e começa a reerguê-lo.<br />

196 – O reino de Plarionthil, dez anos depois, prospera<br />

novamente ao comando de Galadrin e se torna uma grande<br />

fortaleza.<br />

211 – Surge o reino de Flonthoriel, criado pelos elfos do I<br />

Êxodo Élfico, tendo Ellianoh como rei.<br />

419


220 – Flonthoriel é sitiado por hordas de orcs da tribo Baraidai.<br />

221 – Galadrin, com seus exércitos, rechaça os Baraidai e<br />

liberta Flonthoriel. Estabelece-se então, uma grande amizade<br />

entre os dois reinos, principalmente entre os reis Galadrin e<br />

Ellianoh.<br />

235 – Segunda grande expedição élfica de Plarionthil, mas<br />

desta vez em direção a oeste.<br />

347 – Criação do Reino de Planúviel, tendo Asgaroth como rei.<br />

428 – Asgaroth exige tributos de várias vilas élficas do<br />

domínio de Plarionthil, oprimindo seus habitantes.<br />

429 – Primeiro conflito entre os reinos élficos. Galadrin e<br />

Asgaroth travam batalha com seus exércitos na Grande<br />

Floresta.<br />

436 – Asgaroth é derrotado por Galadrin e o reino de<br />

Planúviel é assumido por seu irmão mais novo, Galadrion.<br />

438 – O filho de Asgaroth, Astaroth, parte de Planúviel com<br />

muitos seguidores de seu falecido pai, em direção ao sul.<br />

439 – Astaroth, no sul, cria a colônia de Annar, com os elfos<br />

dissidentes de Planúviel que o haviam seguido.<br />

472 – Astaroth cria um temeroso exército e massacra diversas<br />

tribos de orcs ao sul da Grande Floresta.<br />

538 – Flonthoriel é atacada mais uma vez por hordas de orcs<br />

da tribo Baraidai.<br />

420


615 – Terceira e maior expedição élfica já realizada parte em<br />

direção à Região das Montanhas.<br />

661 – Astaroth é atacado por três tribos de orcs que se aliaram<br />

para o destruir, eram os Drumbaidai, Mordai e<br />

Gropperdai .<br />

661 – Galadrion manda legiões de Planúviel, juntamente com<br />

tropas de Plarionthil, para ajudar os elfos de Annar.<br />

664 – Após três anos de guerra, finalmente os orcs fogem e<br />

então a colônia de Annar transforma-se no reino de Eluannar,<br />

tendo como seu único rei, o próprio Astaroth.<br />

715 – Após cem anos, a Terceira Expedição élfica deixou vilas<br />

espalhadas por várias florestas como Floresta do Fogo,<br />

Floresta das Águas e Floresta Dourada.<br />

739 – Morre Ellianoh, deixando como rei de Flonthoriel, seu<br />

filho Ellianion.<br />

781 – O primeiro confronto entre elfos e gojos na Floresta das<br />

Águas e também a primeira aliança entre elfos e dragões<br />

brancos (Laithans).<br />

794 – O mais importante <strong>dos</strong> Laithans vai a Plarionthil<br />

conhecer Galadrin.<br />

813 – Quarta Expedição élfica, junto aos Laithans, até o outro<br />

lado da Região das Montanhas.<br />

815 – Criam-se vilas élficas na Floresta das Sombras, a mais<br />

perigosa e hostil floresta de <strong>Virgo</strong>. Os dragões negros habitam<br />

as Montanhas Escuras, ao norte desta floresta. Também<br />

existiam treze tribos de orcs nesta região.<br />

421


922 – Primeiro encontro entre elfos e anões, na Floresta<br />

Dourada. Os anões encontra<strong>dos</strong> eram do reino Bakkin, que<br />

tinha como rei soberano nesta época, Gifon.<br />

923 – Planúviel faz aliança com os dragões verdes. Galadrion<br />

cria, então, o primeiro exército élfico alado com a ajuda <strong>dos</strong><br />

seus novos alia<strong>dos</strong>, os Greenos.<br />

941 – Ellianion sofre em Flonthoriel o terceiro ataque de orcs,<br />

desta vez uma aliança entre as tribos Maraidai, Carasdai e<br />

Vindai . Mais uma vez, Galadrin salva seu vizinho e pela<br />

primeira vez a força alada de Plarionthil entra em ação.<br />

1.007 – Elfos da Floresta Dourada partem com os anões de<br />

Bakkin em direção ao Vale <strong>dos</strong> Cristais, em busca de riquezas<br />

minerais.<br />

1.048 – Dragões vermelhos aparecem e aterrorizam os elfos da<br />

Floresta do Fogo.<br />

1.118 – Primeiro ataque de goblins ao reino de Bakkin,<br />

testemunhado pelos elfos.<br />

1.138 – Surge o reino élfico de Sombrorn, na Floresta das<br />

Sombras, no mesmo ano em que anões erguem o reino de<br />

Zanthor no Vale <strong>dos</strong> Cristais, com os reis Belleriath e Zanthor<br />

respectivamente.<br />

1.205 – Morre Galadrin e seu filho Galanderin o sucede em<br />

Plarionthil.<br />

1.271 – Acontece a Primeira Grande Reunião de reis elfos em<br />

Plarionthil.<br />

422


1.272 – Astaroth e Galadrion passam os tronos a seus filhos<br />

Astelion e Gildrion, respectivamente.<br />

1.307 – Sombrorn é devastada por dragões negros e orcs da<br />

tribo Zaraidai. Belleriath é morto e seu filho Belleth, pede<br />

ajuda aos outros reinos élficos.<br />

1.308 – O Exército de Planúviel ajuda Sombrorn, com apoio<br />

<strong>dos</strong> dragões brancos e juntamente com a Força Alada de<br />

Plarionthil. Iniciou-se, então, uma guerra que durou cerca de<br />

doze anos, onde várias tribos de orcs da Floresta das Sombras<br />

se aliaram aos orcs da tribo Zaraidai.<br />

1.325 – Sombrorn é reconstruída após a guerra com a ajuda<br />

<strong>dos</strong> anões de Zanthor.<br />

1.328 – Ellianion, que não participou da Guerra <strong>dos</strong> Dragões,<br />

parte com uma grande expedição em direção a Região das<br />

Montanhas.<br />

1.329 – Ellianion sofre ataque da tribo de orcs Maradai na<br />

entrada da Floresta das Águas. Neste mesmo ano, em<br />

Eluannar, Astelion comemora a inauguração da primeira frota<br />

de galeões élficos, que partem do reino descendo o Rio Himin<br />

em direção ao Mar Caudaloso.<br />

1.331 – Ellianion sofre, no coração da Floresta das Águas, um<br />

forte ataque <strong>dos</strong> gojos, mas é salvo por um exército de anões<br />

comandado por Guthin, que rumava para a Região Vulcânica,<br />

a fim de estabelecerem um novo reino naquela região.<br />

1.332 – A frota de galeões de Eluannar retorna a seu reino após<br />

costear toda a Ilha Kirbuz e as Ilhas Siamesas.<br />

423


1.333 – Na Região das Montanhas a expedição de Ellianion é<br />

atacada por várias hordas de grabbers e os elfos são obriga<strong>dos</strong><br />

a recuar.<br />

1.335 – Passando ao sul da Floresta das Águas, em retorno a<br />

Flonthoriel, Ellianion e seus seguidores são ataca<strong>dos</strong> por trolls<br />

da floresta. Ellianion é morto num destes ataques. Muitos elfos<br />

escapam e levam a notícia para Flonthoriel. Elledrin, filho de<br />

Ellianion, assume o lugar de seu pai, tornado-se rei absoluto<br />

de Flonthoriel.<br />

1.340 – Segundo grande ataque de goblins ao reino de Bakkin,<br />

testemunhado pelos elfos.<br />

1.343 – A frota de Eluannar retorna à Ilha Kirbuz, mas desta<br />

vez com o objetivo de explorar o interior da ilha.<br />

Desembarcam no lado norte e durante a exploração, são<br />

surpreendi<strong>dos</strong>, , captura<strong>dos</strong> e presos pelos vutuks, habitantes<br />

desta ilha.<br />

1.400 – Depois de um longo período de paz, Sombrorn é<br />

novamente atacada pelas tribos de orcs Zundai , Candai e<br />

Garadai .<br />

1.402 – Os elfos de Eluannar que estavam cativos na Ilha<br />

Kirbuz, conseguem escapar com a ajuda indireta <strong>dos</strong> dragões<br />

azuis, quando estes atacam o vilarejo vutuk.<br />

1.513 – Segunda Grande Reunião de reis élficos em Plarionthil,<br />

desta vez, com a presença <strong>dos</strong> reis anões.<br />

1.528 – Lançamento da segunda frota de galeões do reino de<br />

Eluannar, partindo em direção à Ilha Kirbuz.<br />

424


1.530 – O Reino de Guttin é atacado por orcs da tribo<br />

Trumadai. Glorin é o novo rei de Guttin.<br />

1.617 – A segunda frota de Eluannar retorna para seu reino e<br />

traz alguns vutuks como prisioneiros.<br />

1.703 – O reino de Guttin é atacado por dragões vermelhos e<br />

todo o seu tesouro é roubado.<br />

1.739 – O reino de Eluannar sofre um grande ataque de tribos<br />

orcs, que pela primeira vez aparecem acompanhadas de<br />

goblins. Neste mesmo ano, Flonthoriel sofre seu quarto ataque<br />

em massa de hordas de orcs e Elledrin é obrigado a pedir<br />

ajuda a Galanderin em Plarionthil.<br />

1.816 – Gildrion recebe pela primeira vez na história <strong>dos</strong> elfos<br />

um grande número de vangis que pedem ajuda contra os<br />

Wiverns que estão cada vez mais numerosos e os impedem de<br />

sair de Vangilla.<br />

1.821 – As batalhas no céu entre a Força Alada de Plarionthil,<br />

aliada aos vangis, contra os Wiverns, chamam a atenção <strong>dos</strong><br />

orcs e <strong>dos</strong> dragões negros da Floresta das Sombras.<br />

1.822 – Os orcs da tribo Zaraidai (a tribo de orcs mais<br />

inteligente já conhecida) se aliam aos dragões negros e criam<br />

também uma força alada,. As primeiras vítimas desta aliança<br />

foram os vangis. Mais uma vez a Força Alada de Plarionthil<br />

intercede em favor <strong>dos</strong> vangis.<br />

1.831 – Ocorre a Terceira Grande Reunião <strong>dos</strong> reinos em<br />

Plarionthil, desta vez com a presença, além <strong>dos</strong> anões, <strong>dos</strong><br />

vangis da Vangilla.<br />

425


1.907 – As duas frotas de Eluannar voltam à Ilha Kirbuz atrás<br />

das riquezas <strong>dos</strong> vutuks.<br />

1.938 – Elfos de Plarionthil descobrem como utilizar o mana e<br />

começam os estu<strong>dos</strong> sobre magia.<br />

1.945 – Um grande carregamento de tesouro enviado de<br />

Zanthor à Bakkin é perdido numa emboscada de grabbers na<br />

Região das Montanhas.<br />

1.957 – Os elfos de Plarionthil aperfeiçoam suas magias com a<br />

ajuda <strong>dos</strong> vangis.<br />

1.970 – Grandes erupções vulcânicas aterrorizam os habitantes<br />

da Planície de Bronze e Floresta do Fogo. Ocorrem grandes<br />

ventanias e todo o céu de <strong>Virgo</strong> perde metade de sua<br />

luminosidade durante o dia.<br />

1.982 – Ocorrem terremotos na Região das Montanhas. As<br />

ventanias ficam mais intensas e grandes explosões acontecem<br />

na Região Vulcânica. Alguns vangis não podem retornar para<br />

Vangilla devido à intensidade <strong>dos</strong> ventos.<br />

1.989 – Morre Belleth em Sombrorn, deixando o reino sem<br />

herdeiros; porém, Limanoh é aclamado rei por decisão da<br />

maioria <strong>dos</strong> Altos Elfos de Sombrorn.<br />

1.995 – Limanoh, temendo o fim <strong>dos</strong> tempos, manda reunir<br />

historiadores e escritores <strong>dos</strong> cinco reinos élficos para que<br />

fossem escritos os lumithas.<br />

2.004 – Toda a Vangilla perde definitivamente sua<br />

luminosidade e o ar fica escasso. <strong>Virgo</strong> fica abafado e muitos<br />

animais pereceram durante esta época.<br />

426


<strong>Era</strong> Trevas<br />

D<br />

evido a um fenômeno natural, que fez com que as rochas<br />

de cristal (rockzala) interrompessem seu processo de<br />

produção de oxigênio e perdessem sua luminosidade<br />

interativa com a superfície da Terra, <strong>Virgo</strong> ficou mergulhado<br />

numa escuridão durante 347 anos que compreenderam esta<br />

era. O mana, responsável pelo processo de aproximadamente<br />

setenta porcento de oxigenação do lugar, deixou de reagir,<br />

como se tivesse se exaurido, e todo o lugar passou a contar<br />

apenas com a oxigenação oriunda das galerias de túneis que<br />

ligavam as muitas cavernas da superfície espalhadas por<br />

várias montanhas da Europa.<br />

Foi uma época sufocante onde muitos pereceram por não<br />

agüentar o clima escuro e abafado. Raças inteiras foram<br />

extintas e muitas outras ficaram à beira da extinção.<br />

1 – Com a escuridão, os trolls infestam todas as regiões de<br />

<strong>Virgo</strong>, à exceção da Ilha Kirbuz, semeando terror e destruição.<br />

54 – Êxodo das garbas em direção ao Paredão de <strong>Virgo</strong>.<br />

103 – Os Darkhos infestam a Floresta das Águas, em busca do<br />

melhor clima de <strong>Virgo</strong> para tentar garantir sua sobrevivência.<br />

283 – Glabor retira-se para o Vale da Neblina, onde tem uma<br />

visão e a inscreve na Pedra Klaopala com suas garras,<br />

gravando ali o destino de <strong>Virgo</strong>.<br />

345 – Derrota <strong>dos</strong> trolls para as legiões de Flonthoriel.<br />

347 – A energia do mana retorna, a claridade <strong>dos</strong> dias volta e a<br />

oxigenação de <strong>Virgo</strong> se normaliza, pondo fim à escuridão.<br />

427


<strong>Era</strong> Nova<br />

A<br />

pós a recuperação de sua energia, o mana voltou a<br />

manifestar-se e <strong>Virgo</strong> se estabilizou, dando início a uma<br />

nova era, onde as raças sobreviventes voltaram a prosperar e<br />

disputar uma vez mais, seus espaços.<br />

É nesta era que surgem os homens pela primeira vez,<br />

conforme fora professado por Glabor, em suas inscrições na<br />

Pedra Klaopala. Este acontecimento é abordado amplamente<br />

neste livro.<br />

1 – O mana volta a manifestar sua energia, a luminosidade do<br />

céu de <strong>Virgo</strong> retorna e novamente a oxigenação de todas as<br />

regiões é restabelecida.<br />

15 – Inicia o conflito mais violento entre goblins e grabbers,<br />

conhecido por Guerra das Montanhas.<br />

23 – Os vangis reaparecem na superfície de <strong>Virgo</strong> e fazem<br />

visita aos vários reinos élficos.<br />

58 – Acontece o tratado entre os elfos de Sombrorn e os poucos<br />

dragões negros que habitavam a Floresta das Sombras.<br />

97 – O fim da Floresta das Águas, transformada<br />

definitivamente no Deserto Naissaras.<br />

136 – Ocorreu a queda <strong>dos</strong> dragões brancos, e seus últimos<br />

três sobreviventes retiraram-se para a Vangilla, buscando<br />

preservar sua raça.<br />

258 – Os druzos iniciaram a construção da Cidade do Fogo, no<br />

mesmo ano em que capturaram o Arzakheus, soberano das<br />

profundezas da terra.<br />

428


315 – Os vutuks conquistam novamente a Ilha Kirbuz,<br />

fundando uma nova cidade chamada Karda, mas não<br />

conseguem apoderar-se de Athamon, a antiga cidade vangi<br />

sob o domínio <strong>dos</strong> dragões azuis.<br />

381 – Os trolls iniciam uma aglomeração na Mata Negra.<br />

432 – Ocorre a Primeira Guerra da Floresta Dourada, um<br />

conflito que durou três anos, onde elfos e anões lançaram-se<br />

uns contra os outros na disputa pela posse desta região.<br />

435 – Inicia-se a Guerra da Agonia.<br />

443 – Morre Limanoh, rei de Sombrorn, durante um combate<br />

no Vale da Neblina. Sua filha Aurien assume o reino élfico da<br />

Floresta das Sombras.<br />

467 – A Aliança <strong>dos</strong> Cinco Reinos Élficos.<br />

501 – Os homens chegam a <strong>Virgo</strong> pela primeira vez. Neste<br />

mesmo ano são fundadas as cidades de Nouvelle Amiens e<br />

Nouvelle Lyon.<br />

503 – Ocorre a Segunda Guerra da Floresta Dourada, onde<br />

elfos lutam ao lado <strong>dos</strong> anões, para tentar conter o avanço de<br />

uma nova aliança de orcs, liderada por um elfo negro, traidor<br />

de sua própria raça. Alguns homens lutam ao lado <strong>dos</strong> elfos<br />

nesta guerra.<br />

505 – As legiões de Sombrorn devastam várias tribos de orcs<br />

na região leste de <strong>Virgo</strong>.<br />

511 – Nouvelle Amiens propõe a criação de um Império<br />

Humano, unindo as duas cidades <strong>dos</strong> homens.<br />

429


523 – É assinado um tratado entre as duas cidades humanas, e<br />

um novo Império surge em <strong>Virgo</strong>. Várias novas vilas são<br />

criadas e os homens vão se espalhando por <strong>Virgo</strong>.<br />

548 – Morte de Jacques Panais. Neste mesmo ano, surge<br />

Savaath, o Mago do Caos, que cria a Ordem <strong>dos</strong> Druidas em<br />

Nouvelle Amiens.<br />

561 – Inicia-se a disseminação de boatos que levam os elfos a<br />

romperam a Aliança <strong>dos</strong> Cinco Reinos.<br />

563 – Os reinos de Eluannar e Plarionthil são os primeiros a<br />

iniciar o conflito entre os elfos. Legiões de Eluannar<br />

atravessam o Rio Naissaras e rumam para Plarionthil.<br />

564 – É criada a Guarda Imperial <strong>dos</strong> humanos.<br />

570 – Sombrorn e Flonthoriel disputam a posse da Pedra<br />

Klaopala no Vale da Neblina.<br />

573 – Estoura a famosa Guerra <strong>dos</strong> Elfos, que os leva a um<br />

estado de calamidade tão grande que os deixam à beira da<br />

extinção.<br />

582 – Os homens iniciam a expansão do Império, subjugando<br />

todas as demais raças de <strong>Virgo</strong>.<br />

430


APÊNDICE F<br />

Reinos e Tribos


Os reis Élficos<br />

Plarionthil<br />

Galadhil (40 à 184)<br />

Galadrin (186 à 1.205)<br />

Galanderin (1.205 – )<br />

Flonthoriel<br />

Ellianoh (211 – 739)<br />

Ellianion (739 – 1.335)<br />

Elledrin (1.336 – )<br />

Planúviel<br />

Asgaroth (347 – 436)<br />

Galadrion (436 – 1.272)<br />

Gildrion (1.272 – )<br />

Eluannar<br />

Astaroth (474 – 664)<br />

Astelion (664 – 1.272)<br />

Asdarthil (1.273 – )<br />

Sombrorn<br />

Belleriath (1.138 – 1.307)<br />

Belleth (1.307 – 1.989)<br />

Limanoh (1.991 – 443 EN)<br />

Aurien (443 EN – )<br />

432


Os reis Anões<br />

Bakkin<br />

Gifon<br />

Gilon<br />

Badan I<br />

Badan II<br />

Bakhin<br />

Guttin<br />

Glorin<br />

Gildor<br />

Guthin<br />

433<br />

Zanthor<br />

Zanthor I<br />

Zanthor II<br />

Zanthor III<br />

Dalin


Clãs e tribos <strong>dos</strong> orcs<br />

aidai dai andai kdai aidi<br />

Baraidai Maradai Samandai Grunkdai<br />

Drumbaidai Trumadai<br />

Zaraidai<br />

Extintas<br />

aidai dai andai kdai aidi<br />

Garadai Maracandai Brankdai Carasaidi<br />

Moradai Malakandai Trunkdai Vaidi<br />

Gropperdai Tamandai Zunkdai<br />

Vindai Brandai<br />

Candai<br />

Zandai<br />

434


Glossário<br />

Abbeville Cidade francesa.<br />

Acha Uma espécie de machado.<br />

Adai Espécie de clã <strong>dos</strong> orcs.<br />

Aidai Espécie de clã <strong>dos</strong> orcs.<br />

Althalion Elfo de Eluannar, filho de Lasthion.<br />

Althinor Elfo, lanceiro de Eluannar.<br />

Amiens Cidade francesa.<br />

Angincourt Cidade francesa.<br />

Arco-balista Arma antiga, muito usada pelos bretões.<br />

Asgadhir Elfo, lanceiro de Eluannar<br />

Athas Em élfico, significa tempo passado.<br />

Athamon Primeira cidade <strong>dos</strong> vangis, na época em que<br />

ainda viviam na superfície de <strong>Virgo</strong>.<br />

Azur Nome pelo qual os anões referem-se à <strong>Virgo</strong>.<br />

Bakkin Reino de anões situado sob a Montanha das<br />

Garbas, diante da Planície de Ouro.<br />

Bantha Espécie de paquiderme encontrado na região<br />

do Deserto Naissaras.<br />

Baraidai Tribo de orcs da Planície de Bronze.<br />

Beauvais Cidade francesa.<br />

Boulogne Cidade francesa.<br />

Bronner Região que compreende toda a Planície de<br />

Bronze.<br />

Calais Cidade litorânea, do noroeste francês.<br />

Chinon Cidade francesa.<br />

Colinas Íngremes Colinas que se estendem desde a Região<br />

Vulcânica até a Região das Montanhas.<br />

Crecy Cidade francesa.


Cristel Cidade onde fica o reino anão de Zanthor.<br />

Daco Moeda utilizada entre os elfos.<br />

Druzo Criatura de raça selvagem.<br />

Eluannar Reino Élfico ao sul da Grande Floresta.<br />

Escaramuçadores Guerreiros de dianteira, normalmente<br />

precedentes à força principal de uma tropa<br />

ou legião.<br />

Flonthoriel Reino élfico da região leste da Grande<br />

Floresta.<br />

Glabor O profeta da Pedra Klaopala.<br />

Guthin Rei anão do reino de Guttin.<br />

Guttin Reino de anões situado em Bronner.<br />

Hobgoblins Raça ancestral de goblins (extinta).<br />

Idour Elfo negro.<br />

Kirbuz Ilha encontrada no Mar Caudaloso.<br />

Klaopala Pedra monólito encontrada no Vale da<br />

Neblina, onde foi inscrita a profecia de<br />

Glabor.<br />

Lasthion Elfo de Eluannar.<br />

Lothanir Elfo, guerreiro campeão de Eluannar.<br />

Lumin Em élfico, significa luz.<br />

Luminathas Os doze livros da história élfica.<br />

Lumithas Palavra oriunda de duas outras que deram<br />

origem à coleção de doze livros que narra<br />

toda a história <strong>dos</strong> elfos.<br />

Lyon Cidade francesa.<br />

Mana Fonte de energia sobrenatural.<br />

Montanha das Garbas Montanha sob a qual encontra-se Bakkin,<br />

reino <strong>dos</strong> anões da Planície de Ouro.<br />

Nabrandar Rio que corta a Grande Floresta, de norte a<br />

sul, desaguando no Mar Caudaloso.<br />

Naissaras Região desértica de <strong>Virgo</strong>.<br />

Niukar Lokai Festa anual <strong>dos</strong> anões de Bakkin.<br />

Paladinos Cavaleiros de elite, que acompanham o rei ou<br />

imperador.<br />

Paris Cidade francesa.<br />

Picardia Região francesa.<br />

Piqueiros O mesmo que lanceiros.<br />

Plarionthil Reino élfico no coração da Grande Floresta.<br />

Poitier Cidade francesa.<br />

436


Reims Cidade francesa.<br />

Sartara Cidadela de druzos.<br />

Sabalaa Cidadela de druzos.<br />

Sangar Cidadela de druzos.<br />

Serena Montanha pela qual os homens chegaram a<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

Sharvar Estação do ano que marca o início do período<br />

das colheitas <strong>dos</strong> elfos.<br />

Sombrorn Reino élfico da Floresta das Sombras.<br />

Somme Rio que corta uma ampla região francesa.<br />

Tahllon Convite élfico para ocasiões especiais.<br />

Thalide Nome pelo qual os elfos denominam <strong>Virgo</strong>.<br />

Troyes Cidade francesa.<br />

Trumadai Tribo de orcs da Região Vulcânica.<br />

Vale <strong>dos</strong> Cristais Região do sudeste de <strong>Virgo</strong>.<br />

Vanalla Nome pelo qual os vangis referem-se à<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

Vangi Criatura de raça superior, semelhante aos<br />

humanos, porém, dotada de asas e poderes<br />

mágicos.<br />

Vangilla Cidade <strong>dos</strong> vangis, sobre o céu cristalino de<br />

<strong>Virgo</strong>.<br />

Versalhes Cidade francesa.<br />

Vidoro’s Região que compreende a Planície de Ouro.<br />

<strong>Virgo</strong> Nome escolhido pelos homens para batizar as<br />

terras encontradas após a travessia da<br />

Grande Caverna.<br />

Zanthor Reino de anões do Vale <strong>dos</strong> Cristais.<br />

Zaraidai Tribo de orcs da região ao noroeste da<br />

Floresta das Sombras.<br />

437


Agradecimentos<br />

Somente foi possível concluir este livro com a colaboração<br />

de muitas pessoas que, em épocas diferentes, souberam dar o<br />

apoio necessário para que a obra não sucumbisse ao longo do<br />

demasiado tempo que foi preciso para sua realização.<br />

Primeiramente, agradeço a meu primo Lourival Bandeira<br />

de Melo Neto, que numa tarde de verão de 1995, ajudou-me a<br />

esboçar os primeiros elementos deste mundo fantástico.<br />

Agradeço ainda a Ana Madalena que, além de revisar os<br />

primeiros capítulos da obra, foi uma das maiores<br />

incentivadoras para que o trabalho prosseguisse até sua<br />

conclusão. Também agradeço a Renata Moraes, que conseguiu<br />

captar a magia do livro produzindo uma belíssima capa e<br />

retratando com fidelidade os mapas propostos. E além de<br />

to<strong>dos</strong> os amigos e parentes que sempre me incentivaram,<br />

agradeço a meu filho Renan, que com sua chegada em minha<br />

vida trouxe-me uma força e uma luz que jamais imaginei<br />

existirem neste mundo.


1<br />

Glossário<br />

Para maiores informações sobre o autor e sua obra acesse:<br />

http://www.robertolaaf.com.br<br />

439

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