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CUBA 40 GRAUS:

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SOLIDÃO<br />

Mateus Marcelini<br />

cinco da matina. chego em casa sozinho, sento no sofá, acendo um cigarro. as<br />

luzes apagadas. as pernas dela ainda estão marcadas no<br />

fundo dos meus olhos, e pra onde quer que eu olhe lá<br />

elas estão, a se cruzar, chegando à divisão da bunda<br />

coberta pelo short jeans, do tamanho da mão. eu sei<br />

que ela é como eu, como você, e nesse momento deve<br />

estar em sua cama, sozinha, agarrada ao cobertor, ou<br />

abraçada ao travesseiro, sonhando com alguma coisa.<br />

eu só precisava saber com o que. eu só precisava dizer<br />

alguma coisa. eu só precisava me aproximar lentamente<br />

de sua boca. a mão puxando pelo braço. a outra no<br />

rosto, talvez. e meus amigos com suas namoradas, seus<br />

casos de alguns dias, suas putas, ou suas garrafas na<br />

mão. o cachorro do estacionamento atrás do prédio não<br />

pára de latir, ele não tem culpa, todas as noites latindo<br />

sem fim, é só o que se ouve na rua deserta, seu latido<br />

sem fim, até que alguém jogue pelo portão sua última<br />

refeição, e na noite seguinte não se ouça mais o latido<br />

solitário do cachorro sem fim. os homens querem<br />

silêncio em seu sono descanso merecido. pois que<br />

tenham seu silêncio, e que façam sua refeição pela<br />

manhã, enxaguem o rosto, coloquem aquela roupa de<br />

trabalho, e façam o que tiverem de fazer, sejam senhor<br />

sejam escravo, sejam patrão ou funcionário. as pernas<br />

dela eram brancas quase rosadas, e minha fome cresce a<br />

cada dia. minha vida some a cada instante, nos pêlos<br />

que crescem no meu rosto e em tudo o que eu planejo<br />

um dia fazer. incluindo todas as pernas que já estiveram deitadas em minha cama,<br />

REVISTA 53 BEATBRASILIS<br />

pelas quais meus dedos corriam de madrugada. eu nunca consegui dormir ao lado<br />

de uma mulher. você pode imaginar os motivos. eu nunca fiz psicanálise. mas<br />

como sonham essas mulheres. como respiram fundo, com seus peitos de variados<br />

tamanhos se expandindo e retrocedendo, seus narizes de formatos diversos<br />

soltando e puxando ar, assoviando em tons agudos. os olhos fechados. como são<br />

belas as mulheres quando dormem. e até no momento em que acordam, serenas e<br />

calmas, complacentes, a beleza do sono ainda resta em<br />

seus olhos semi-abertos e em seus movimentos lentos.<br />

depois do sexo, parecem esquecer suas angústias de<br />

mulher e simplesmente respirar. mas a solidão nos chama<br />

de volta como a mulher mais fiel e a primeira, mítica<br />

companheira. tão sutil, tão rasteira, ela não bate na porta,<br />

não liga nem manda mensagens. quando você menos<br />

espera, ela está deitada ao seu lado, com as pernas<br />

cruzadas, e você não consegue parar de olhar para elas. as<br />

pernas brancas no fundo dos olhos. as pernas brancas que<br />

já foram morenas, que já foram bundas, cabelos, bocetas,<br />

bocas e olhos, já foram pés delicados. cinturas e vozes.<br />

pescoço quente com cheiro de criança. e ela estava me<br />

esperando aquela noite, numa encruzilhada, eu vi, mas<br />

não foi dessa vez. ela até se vestiu com a roupa que eu<br />

gosto, aquele vestido preto curto, mas não foi dessa vez.<br />

ela espera o dia que eu seja só dela, mas não foi dessa vez.<br />

eu ainda resisto, respirando, e ela deitada com a cabeça<br />

sobre as minhas pernas, me olhando nos olhos, as pernas<br />

brancas cruzadas ao longo do sofá, mas ela sabe que<br />

amanhã eu posso me dar bem, e posso não voltar. ela<br />

sabe, e deve ter colocado alguma coisa no meu copo, pra<br />

me fazer dormir, me puxando pelo colarinho, me<br />

beijando no rosto, eu me deito sem medo, e sei que ela<br />

não vai me deixar ir pro trabalho... que se dane. hoje a<br />

noite é dela.

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