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CUBA 40 GRAUS:

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Certo dia, no meio da tarde, havia saído da casa da minha namorada, na rua<br />

Frederico Abranches, e estava entrando nas dependências da estação Santa<br />

Cecília, do metrô. Quando me aproximava da catraca, em meio a uma<br />

aglomeração densa mas fluida de pessoas, avistei algo voando. Passou na<br />

minha frente, perto do chão e desviou das pessoas habilidosamente, o que<br />

provava que tinha uma direção independente do ar. Curioso foi que logo que a<br />

avistei me acometeu a sensação de que, apesar de eu nunca ter visto aquilo<br />

antes e nem ouvido falar, estava vendo exatamente o que imaginava. Saí, meio<br />

como ela, mas à moda humana, desviando das pessoas, que desviavam de nós<br />

dois com gestos parecidos, salvo as proporções dos dois corpos.<br />

Desvencilhei-me das pessoas e a segui. Ela havia pousado em um lugar onde<br />

não passavam pessoas, próximo de uma parede que perto fazia vértice com<br />

outra, formando meio cubo retangular, fazendo-se obsoleto na disposição da<br />

coisa toda; o palco perfeito para o meu público alumbramento. Me agachei<br />

perto dela, mas não muito para não espantá-la, murmurei alto "Cara, é uma<br />

borboleta transparente mesmo!" e sorri. Tinha um contorno preto<br />

arredondado em torno das asas, tão transparentes que dava pra reconhecer as<br />

sistemáticas saliências arredondadas do chão preto emborrachado. As linhas<br />

eram grossas e duas delas saíam de onde suas asas se ligavam ao corpo e iam<br />

em curvas suaves terminar nas costas das asas. Observei seu desenho por coisa<br />

de um minuto ou menos, porque um sujeito estava vindo na minha direção, e<br />

falava comigo. Tentei ignorá-lo por medo de que viesse e espantasse a<br />

borboleta, mas ele continuou vindo. Quando chegou mais perto entendi o que<br />

estava me dizendo. Me perguntava se eu estava passando mal. Disse pra ele<br />

que estava olhando uma borboleta transparente. Ele pareceu não ter ouvido e<br />

chegou à minha frente. Eu dizia pra ele tomar cuidado com a borboleta, mas<br />

ele sequer olhou para onde eu apontava. Seu pé parou a uns dez centímetros<br />

REVISTA 63 BEATBRASILIS<br />

da borboleta, que para ele era idêntica ao chão onde estava pisando. Tudo não<br />

tinha demorado mais de dois minutos, e eu estava já muito afetado pela<br />

situação. Enquanto ainda agachado apontava para a borboleta e falava com o<br />

sujeito, que ignorava o que eu estava dizendo como se estivesse vendo uma<br />

alucinação, um velho também se aproximava. Entendi rápido o que dizia.<br />

— Olha a borboleta aí, você vai pisar nela! Aí no seu pé - disse o velho pro<br />

outro. Aí me levantei. Como se duas pessoas dizendo a mesma coisa tornasse a<br />

coisa real de repente, o imbecil finalmente olhou para a borboleta.<br />

— Olha, é verdade! Olha a borboleta aqui! — disse — Eu achei que você<br />

estava doido, cara, ou passando mal, não tinha visto a borboleta --, abaixou,<br />

pegou a borboleta pelas asas e levantou. Eu sentia uma aflição aguda pela<br />

dissolução tão rápida de evento tão inédito pra mim.<br />

— Cara, cuidado com a borboleta! Olha o que você tá fazendo — eu disse.<br />

Não lembro o que aconteceu com o velho. Não lembro o que me respondeu o<br />

sujeito, na hora. Sei que ele soltou a borboleta, ela saiu voando e foi embora.<br />

Entre o meu desejo de ver cada milésimo da vida daquele ser e o impulso de<br />

assassinar o mentecapto, ele disse que a borboleta estava transparente porque<br />

estava mudando de pigmentação. Pela primeira vez prestei atenção no homem.<br />

Percebi que ele me olhava como eu olho pra uma mulher e entendi então a<br />

cena toda. Ainda dizia alguma coisa sobre a pigmentação da borboleta<br />

enquanto se distanciava.<br />

Como a borboleta não estava mais lá, eu estava atrasado para o trabalho e com<br />

vontade de cometer um homicídio, me dirigi para a catraca, encostei o cartão<br />

no negócio de encostar o cartão e girei a roleta.

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