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Boias-frias e suas máquinas sonhadoras - Agenciawad.com.br

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“bóias-<strong>frias</strong>” e “pés-de-cana”. Observando minhas “experiências” no corte da cana, um<<strong>br</strong> />

“gato” me aconselhou: “Para se dar bem nesse tipo de trabalho, precisa trabalhar <strong>com</strong> raiva.<<strong>br</strong> />

Tem que cortar cana <strong>com</strong> raiva.” Certo dia, no meio do canavial, “Goiaba” ria às<<strong>br</strong> />

gargalhadas: “Cana ruim por todo lado! Estamos cercados! Estamos cercados!”<<strong>br</strong> />

A alienação do corpo, <strong>com</strong>o se o próprio corpo também tomasse distância e se revoltasse<<strong>br</strong> />

contra o seu dono, era uma experiência <strong>com</strong>um. A imagem de alienígena, <strong>com</strong> as letras da<<strong>br</strong> />

sigla, apropriadamente em inglês, de “UFO” (“OVNI”), que vi estampada na camiseta de<<strong>br</strong> />

um cortador de cana nos canaviais, parecia estranhamente apropriada ao meio. Os lamentos<<strong>br</strong> />

cotidianos de “Dona Maria dos Anjos” repetiam uma fórmula de lamentações: “Hoje<<strong>br</strong> />

amanheci <strong>com</strong> o corpo doendo; não era o meu corpo não.” O trabalho de cortar cana era<<strong>br</strong> />

visto <strong>com</strong>o “castigo”, um verdadeiro tripalium, uma “tortura”, ou um “instrumento de<<strong>br</strong> />

tortura”, conforme a origem da palavra. O corpo voltava “moído”, “acabado”, “do<strong>br</strong>ado”,<<strong>br</strong> />

“arrasado”, “ferido”, “cortado”, “retalhado”; “a gente volta um bagaço”. Vinha coberto de<<strong>br</strong> />

cinzas. “Bóia-fria quando chega parece assom<strong>br</strong>ação.” Se a imagem de “assom<strong>br</strong>ação”<<strong>br</strong> />

evocava a idéia de alma sem corpo, a idéia inversa, de um corpo sem alma, era evocada<<strong>br</strong> />

pela imagem do “espantalho”. 3 As dores na espinha eram especialmente fortes. Essas<<strong>br</strong> />

dores, talvez mais do que outras, eram indícios de corpos que se do<strong>br</strong>avam. “A cana<<strong>br</strong> />

derruba a gente”, diziam. Alguns preferiam voltar em pé, <strong>com</strong> as mãos agarradas na<<strong>br</strong> />

armação da lona, “esticando a espinha”. “Vem dormindo em pé.” “Bóia-fria dorme até de<<strong>br</strong> />

olho aberto.” “Bóia-fria é que nem morto-vivo, rá, rá!” Com a passagem dos dias da<<strong>br</strong> />

semana, e o esgotamento progressivo da turma de trabalho, mais e mais corpos estendiam-<<strong>br</strong> />

se no chão da carroceria entre as pernas e os pés dos outros passageiros.<<strong>br</strong> />

Em seus estudos so<strong>br</strong>e Paris do século dezenove, Walter Benjamin tomou interesse especial<<strong>br</strong> />

pelas imagens de Grandville, <strong>com</strong>entadas por Susan Buck-Morss (1989:154): “Mas ao<<strong>br</strong> />

retratar a `luta entre moda e natureza’, Grandville permite que a natureza dê a volta por<<strong>br</strong> />

cima [...]. Uma natureza ativa e rebelde vinga-se contra humanos que fariam dela um<<strong>br</strong> />

3 Ouvi dizer de turmas de “bóias-<strong>frias</strong>” de outras regiões que trabalhavam, de fato, <strong>com</strong>o espantalhos,<<strong>br</strong> />

espantando pássaros das plantações. “Bóia-fria é espantalho mesmo!” diziam, entre risos, algumas das<<strong>br</strong> />

pessoas <strong>com</strong> quais andei.<<strong>br</strong> />

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