a intertextualidade como escrita paródica em josé saramago
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RESUMO<br />
A INTERTEXTUALIDADE COMO ESCRITA PARÓDICA EM JOSÉ<br />
SARAMAGO<br />
Márcia Elizabeti Machado de Lima<br />
CEFAPRO/FCARP/FAPAN<br />
Este trabalho t<strong>em</strong> <strong>como</strong> objeto de estudo analisar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José<br />
Saramago, <strong>como</strong> recriação da História Bíblica, na perspectiva teoricamente definida <strong>como</strong><br />
<strong>intertextualidade</strong>, de modo mais específico pelo recurso da paródia, da ironia e da<br />
carnavalização, à luz das propostas teóricas de Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva e Linda<br />
Hutcheon. Procuramos compreender, neste recorte, o processo de retomada do texto bíblico pelo<br />
romancista, através do qual se altera substancialmente o significado da versão original,<br />
recontando <strong>como</strong> se dão as relações da Sagrada Família, no romance de saramgo, pela<br />
transgressão <strong>paródica</strong>.<br />
Palavras-chave: O Evangelho Segundo Jesus Cristo – História Bíblica –<br />
Intertextualidade – Paródia.<br />
Ler é saber compreender e interpretar, tarefa cobrada na<br />
vida escolar e, depois na vida adulta. Mas a existência de<br />
pessoas com dificuldades para decifrar uma mensag<strong>em</strong><br />
ou relacionar um texto com outro coloca um desafio para<br />
os professores: <strong>como</strong> desenvolver a capacidade de<br />
interpretar dos alunos. (Marli Vieira)<br />
Esta produção se propõe a apresentar um recorte de pesquisa da obra literária O<br />
Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, escritor português cont<strong>em</strong>porâneo,<br />
que pode outorgar-se, a si próprio, uma licença especial, enquanto ficcionista: a que lhe<br />
é concedida pela estratégia da paródia, de transgredir os limites da convenção, de operar<br />
nas lacunas do texto parodiado e preenchê-las com “representações <strong>paródica</strong>s que<br />
expõ<strong>em</strong> as convenções do modelo e põ<strong>em</strong> a nu os seus mecanismos, através da<br />
coexistência de dois códigos na mesma mensag<strong>em</strong>” (HUTCHEON, 1985:67).<br />
Justificamos o nosso interesse <strong>em</strong> apresentar um trabalho que procura<br />
explicitar o processo de leitura fundamentado na <strong>intertextualidade</strong>. Acreditamos que a<br />
habilidade de relacionar os textos implícitos e/ou implícitos <strong>em</strong> uma dada produção, é<br />
fundamental à formação de um leitor que pretenda ultrapassar a compreensão<br />
superficial. Destacamos, aqui, um dos descritores que trata dessa habilidade: “D20 –
Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que<br />
tratam do mesmo t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> função das condições <strong>em</strong> que eles foram produzidos e<br />
daquelas <strong>em</strong> que serão recebidos”. (Matriz de Língua Portuguesa de 4ª série)<br />
Enquanto professora de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Superior, e<br />
Professora Formadora no CEFAPRO, Centro de Formação e Atualização dos<br />
Profissionais da Educação Básica, t<strong>em</strong> feito parte das nossas reflexões, o baixo<br />
des<strong>em</strong>penho dos educandos <strong>em</strong> atividades de leitura e interpretação d<strong>em</strong>onstrada,<br />
inclusive, pelos índices negativos alcançados por nossas crianças, adolescentes e jovens,<br />
nas avaliações nacionais aplicadas pelo MEC.<br />
Observamos, <strong>em</strong> nossos estudos, que a Bíblia t<strong>em</strong> servido <strong>como</strong> fermento à<br />
produção literária. Confirmando-a ou negando-a, constant<strong>em</strong>ente pod<strong>em</strong>os lê-la na<br />
atualidade, através das inúmeras formas de se revisitar a tradição, seja pelo discurso<br />
irônico, carnavalizado, paródico, ou através de um nome para simplificar, que abarca<br />
qualquer desses termos, a <strong>intertextualidade</strong>.<br />
É, então, enquanto paródico, conforme se verá que tratar<strong>em</strong>os O Evangelho<br />
Segundo Jesus Cristo – ao qual de agora para frente vamos nos referir <strong>como</strong> O.E.S.J.C.;<br />
que t<strong>em</strong> <strong>como</strong> fundo o texto bíblico, com o qual estabelec<strong>em</strong>os uma leitura<br />
comparativa. Ao longo do estudo teórico que fiz<strong>em</strong>os de Mikhail Bakhtin (1981), Linda<br />
Hutcheon (1985 e 2000), Julia Kristeva (1974) e seus discípulos, nos defrontamos com<br />
as controvérsias a respeito dos vários conceitos sobre as categorias com as quais<br />
operamos na análise intertextual: a sátira, a paródia, a carnavalização, a ironia, etc.<br />
Entre as discussões apresentadas por esses autores, achamos pertinente a<br />
observação de Hutcheon (1985) sobre a raiz etimológica da paródia que, r<strong>em</strong>ontando ao<br />
grego, quer dizer “contra-canto”. Mas, <strong>em</strong> grego também pode significar “ao longo de”,<br />
daí poder-se sugerir acordo, identidade <strong>em</strong> lugar de contraste. Parafraseando, então, a<br />
autora, visto ser a sua teoria a que melhor oferece subsídios à análise da narrativa de<br />
Saramago, pod<strong>em</strong>os dizer que a paródia, na atualidade, muito mais do que ridicularizar,<br />
t<strong>em</strong> o papel de recodificar ironicamente, através da transcontextualização que “assinala<br />
a intersecção da criação e da recriação, da invenção e da crítica.” Desafiando as normas,<br />
renovando ou reformando, mesmo quando identifica-se com o outro. Sobre isso,<br />
Hutcheon (1985) diz que a “ambivalência, estabelecida entre repetição conservadora e<br />
diferença revolucionária, faz parte da própria essência paradoxal da paródia (...)”<br />
(p.128).
A ambivalência, neste texto paródico, se deve <strong>em</strong> grande parte à estratégia do<br />
uso da ironia pelo narrador, o que confirmamos no decorrer da nossa análise. Como<br />
paródia e ironia se imbricam, através da característica s<strong>em</strong>ântica relacional, definida<br />
por Hutcheon (2000), é a nosso ver, entre as outras características, a que nos leva a ter<br />
uma compreensão maior do termo ironia, além do entendimento comum, dado pela<br />
definição do dicionário ou das gramáticas.<br />
A característica s<strong>em</strong>ântica relacional da ironia se dá no sentido de estratégia<br />
que vai além de operar entre os dois eixos – dito/não dito - abrangendo a participação<br />
dos envolvidos no processo: ironista / interpretadores / alvos. O significado ocorre <strong>como</strong><br />
resultado da performance desses três el<strong>em</strong>entos, que, muito mais do que <strong>em</strong> qualquer<br />
outro tipo de texto, deverão ser co-criadores ativos, não se podendo separar as<br />
“dimensões s<strong>em</strong>ântica e sintática da ironia, dos aspectos sociais, históricos e culturais<br />
de seus contextos de <strong>em</strong>prego e atribuição”. (HUTCHEON, 2000:36)<br />
É preciso sublinhar que não estamos buscando apenas as similaridades e as<br />
diferenças, mas, principalmente, entender <strong>como</strong> se processam os interdiscursos no<br />
âmago da obra literária. É este, portanto, um exercício de leitura que intenta analisar<br />
<strong>como</strong> Saramago recriou a “história das histórias”, numa perspectiva intertextual, já que<br />
o conceito de <strong>intertextualidade</strong> construído por Kristeva – fundamentado <strong>em</strong> Bakhtin – é<br />
de que a <strong>intertextualidade</strong> designa o processo de produtividade do texto literário que se<br />
constrói <strong>como</strong> absorção e transformação de outros textos.<br />
A idéia do dialogismo fica patente <strong>em</strong> O Evangelho Segundo Jesus Cristo, com<br />
o narrador infiltrando-se constant<strong>em</strong>ente no discurso bíblico, <strong>como</strong> se o absorvesse,<br />
<strong>em</strong>bora o que faz seja transformá-lo. Conforme vimos, <strong>em</strong> Bakhtin (1981) essa<br />
transformação se faz pelo discurso carnavalizado onde, “Após penetrar na palavra do<br />
outro e nela se instalar, a idéia do autor não entra <strong>em</strong> choque com a idéia do outro, mas<br />
a acompanha no sentido que esta assume, fazendo apenas este sentido tornar-se<br />
convencional” (p. 168). Proclamando-se então a renovação e a relatividade,<br />
sobrepondo-se a um conteúdo acabado, por vezes profanando o que é tido <strong>como</strong> divino<br />
e/ou divinizando o que é tido <strong>como</strong> profano.<br />
Como se estivesse a alertar seus leitores de que a vida de Cristo é aí matéria de<br />
ficção, o narrador chama a atenção para o fato de poder haver total exercício de<br />
liberdade de ambas as partes, ou seja, de qu<strong>em</strong> constrói o texto e de qu<strong>em</strong> o lê, o leitor<br />
colaborador, participante da descoberta da nova configuração que se institui através do<br />
dialogismo e da abertura polissêmica. A esse propósito, l<strong>em</strong>bra-se a noção de
dialogismo de Bakhtin, segundo Kristeva (1974): “(...) é a <strong>escrita</strong> <strong>em</strong> que se lê o outro, o<br />
discurso do outro, é atração e rejeição, resgate e repelência de outros textos” (p.50).<br />
Uma das características fundamentais de José Saramago, que vale a pena ser<br />
ressaltada, é a maneira <strong>como</strong> valoriza as personagens f<strong>em</strong>ininas, <strong>em</strong> suas obras. Só para<br />
ex<strong>em</strong>plificar, l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os da força de Blimunda, a personag<strong>em</strong> meio bruxa de M<strong>em</strong>orial<br />
do Convento, que ajudou a construir a passarola com as vontades que colhia das<br />
pessoas, ao enxergar-lhes a alma...; a mulher do médico <strong>em</strong> Ensaio Sobre a Cegueira, a<br />
única que não fica cega, e conduz os cegos com força, inteligência e determinação... Em<br />
O.E.S.J.C., não é diferente. Insere denúncias de preconceitos sofridos pela mulher <strong>em</strong><br />
todos os t<strong>em</strong>pos, através de afirmações irônicas. A um leitor ingênuo poderá parecer<br />
que o narrador possui postura machista, quando, na verdade, afirma para contestar. Eis<br />
alguns ex<strong>em</strong>plos:<br />
Onde cantar<strong>em</strong> galos não hão-de as galinhas piar, quando muito<br />
cacarej<strong>em</strong> se puseram ovo, assim o t<strong>em</strong> imposto a boa ordenação do<br />
mundo... (p.55,56).<br />
Ainda está para nascer o hom<strong>em</strong> que, s<strong>em</strong> ser por precisões do corpo,<br />
se chegue ao lado das mulheres e com elas fique (...) Em tudo, assim<br />
me disseram que está escrito na lei, a mulher deverá ao marido<br />
respeito e obediência (...) (p.71).<br />
Melhor fora que a lei perecesse nas chamas do que entregar<strong>em</strong>-na às<br />
mulheres (...) (p.132).<br />
Feitas as devidas observações a respeito da postura do narrador, passamos ao<br />
enfoque nas relações hom<strong>em</strong>/mulher, e principalmente no que diz respeito à sagrada<br />
família, que no livro de Saramago não é formada apenas por José, Maria e Jesus, mas<br />
por vários outros filhos. Entend<strong>em</strong>os ser mais um ingrediente na tentativa de destruição<br />
do discurso mítico-religioso, no qual é de suma importância que seja negado o fato de<br />
Jesus ter tido irmãos, mesmo havendo referência a eles nos Evangelhos:<br />
(...) a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe<br />
de numerosos filhos e filhas, <strong>em</strong>bora só um deles, por imperativos do<br />
destino ou de qu<strong>em</strong> o governa, tenha vindo a prosperar, <strong>em</strong> vida<br />
mediocr<strong>em</strong>ente, mas maiormente depois da morte.(O.E.S.J.C. p. 15)<br />
Uma das fontes de pesquisa de Saramago teriam sido os Evangelhos Apócrifos,<br />
originado do grego apokryphos -, que significa “oculto”, “secreto”, sendo, atualmente,<br />
todas as narrativas apócrifas vistas pela Igreja <strong>como</strong> maléficas à fé dos cristãos, por não
fazer<strong>em</strong> parte do rol dos livros inspirados por Deus. Endossando estas palavras, t<strong>em</strong>os<br />
Calbucci (1999), dizendo:<br />
É praticamente certo que houve muitos outros Evangelhos escritos,<br />
que teriam servido de base para os quatro livros que hoje faz<strong>em</strong> parte<br />
da Bíblia, mas eles se perderam ao longo dos anos ou, tendo<br />
sobrevivido, ainda que parcialmente, foram pouco valorizados, sendo<br />
chamados de apócrifos. (p. 69).<br />
Piñero (2002) comenta que José, ao se casar com Maria era um viúvo de idade<br />
avançada, trazia consigo os filhos do primeiro casamento, os quais Maria adotou e<br />
passou a cuidar <strong>como</strong> se foss<strong>em</strong> seus, assim <strong>como</strong> José recebeu a Jesus <strong>como</strong> se fosse<br />
seu filho – “Maria cuidava deles <strong>como</strong> uma mãe, pois ainda eram muitos pequenos. Esta<br />
é a razão pela qual a chamava de “Mãe de Tiago” (e de seus outros irmãos), ainda que<br />
não o fosse realmente.”(p.29).<br />
Retomando o que diss<strong>em</strong>os sobre o narrador, que afirma para contestar,<br />
destacamos esse comentário <strong>em</strong> que fica clara a intenção de criticar as ideologias<br />
contidas no texto bíblico, “(...) há certas coisas que só começar<strong>em</strong>os a perceber quando<br />
nos dispusermos a r<strong>em</strong>ontar às fontes.” (O.E.S.J.C. p.57, grifos nossos).<br />
Eis o processo de desnaturalização do discurso institucionalizado, com mostras<br />
de seu próprio funcionamento, r<strong>em</strong>ontando ao que chama de as fontes, entrelaçando os<br />
textos, o bíblico e o ficcional, <strong>como</strong> no trecho que antecede o comentário citado acima.<br />
(...) principiando pelos homens, que as mulheres já sab<strong>em</strong>os que <strong>em</strong><br />
tudo são secundárias, basta l<strong>em</strong>brar uma vez mais, e não será a última,<br />
que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela (...).<br />
(O.E.S.J.C. p.57)<br />
No texto bíblico, num dado momento da vida de Jesus, quando já havia<br />
constituído o seu apostolado e estava a ensinar-lhes por meio de parábolas, ele é avisado<br />
de que se encontravam, no meio da multidão, sua mãe e seus irmãos, ao que responde:<br />
“(...) minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouv<strong>em</strong> a palavra de Deus e a<br />
executam”. (Lc, 8:19). A igreja, possivelmente, para reforçar a crença no dogma da<br />
virgindade de Maria, antes e depois do nascimento de Jesus, diz que a palavra irmãos,<br />
na bíblia, refere-se aos parentes <strong>em</strong> geral, portanto essa passag<strong>em</strong> não comprovaria que<br />
Jesus tivesse irmãos no sentido literal da palavra.
Em O.E.S.J.C., o que o narrador faz é, justamente, preencher essa lacuna com<br />
uma explicação plausível. Através de fatos críveis sobre a rejeição de Jesus à família,<br />
camuflada pelo discurso religioso, é que, ao comportar-se assim, Jesus só estaria se<br />
colocando <strong>como</strong> ex<strong>em</strong>plo contra a acepção de pessoas, mostrando que tanto fazia ser<strong>em</strong><br />
parentes ou não, o tratamento deveria ser igual a todos.<br />
Pois b<strong>em</strong>, aqui nesse novo Evangelho, a frieza de Jesus <strong>em</strong> relação à família<br />
t<strong>em</strong> uma causa, ou melhor, várias causas, entre elas, duas mais fortes: a descoberta de<br />
Jesus, de que por omissão de José muitas mães perderam os seus filhos; e o descrédito<br />
com que na família se recebe a notícia de seu primeiro encontro com Deus.<br />
Aos poucos, o sonho-pesadelo vai ficando conhecido (mas não a sua essência)<br />
por toda a família, que crescia admiravelmente, “(...) quase todas as noites g<strong>em</strong>ia e<br />
gritava de angústia e pavor, a ponto de fazer acordar as crianças, que por sua vez<br />
desatavam a chorar.” (O.E.S.J.C. p. 142). Quanto ao crescimento da família, o narrador<br />
“polifônico e multifuncional” _ que no dizer de Vieira (1998) “é aquele que vê, observa,<br />
comenta, interpreta, relata e escreve” (p. 383.) _ contribui referindo o aumento da<br />
família de José, ao r<strong>em</strong>orso que ambos, ele e Deus, sent<strong>em</strong> pelas crianças que<br />
morreram.<br />
E à conseqüência de gerar e parir nove filhos, o narrador é bastante irônico <strong>em</strong><br />
dizer que Maria “murchava de cara e de corpo” (...) e, se os “filhos são a alegria dos<br />
pais, Maria fazia tudo para parecer contente (...)” (O.E.S.J.C. p. 130, grifos nossos), já<br />
que não lhe era permitido externar o seu sofrimento, n<strong>em</strong> questionar as suas causas,<br />
ficava com a “indignação e a impaciência na alma”.<br />
José morre, Jesus herda do pai a culpa e o sonho-pesadelo, agora invertido, ou<br />
conforme Perrone-Moisés (1999), “Edipianamente, sonha que José v<strong>em</strong> para matá-lo, e<br />
só depois de muito penar se livra (?) da culpa ao identificar-se com o pai, ambos<br />
‘levados no mesmo rio’, <strong>em</strong> sonho, <strong>em</strong> direção àquela terceira marg<strong>em</strong> que Guimarães<br />
já sonhara.” (p. 241).<br />
O Filho exige da mãe uma explicação, Maria não t<strong>em</strong> saída – conta-lhe toda a<br />
verdade –, ele “(...) lança-se para o chão a chorar, (...) O meu pai matou os meninos de<br />
Belém (...)”, Maria tenta apaziguar, ele radicaliza “(...) não me chames teu filho, tu<br />
também tens culpa, a minha alma t<strong>em</strong> uma ferida (...)” O narrador justifica a reação de<br />
Jesus, “São assim os juízos da adolescência, radicais (...)”. A revelação se deu fora de<br />
casa num descampado debaixo duma oliveira, já observado de longe, pelo Diabo,<br />
travestido agora na figura de pastor, conhecedor dessa história desde que se sucedeu,
Jesus “(...) de joelhos, gritou, e todo seu corpo lhe ardia <strong>como</strong> se estivesse a suar<br />
sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste (...)”. (O.E.S.J.C. p. 187-189).<br />
Jesus, agora, carrega a angústia e o desejo de saber quantas foram as crianças<br />
assassinadas, “queria saber que quantidade de corpos mortos fora preciso pôr no outro<br />
prato para que o fiel da balança declarasse equilibrada a sua vida salva.” Após dois dias<br />
anuncia à mãe que deixará o lar, ao que ela escandalizada diz: “(...) Que é isto, que é<br />
isto, abandonar um filho primogênito a sua mãe viúva, onde que já se viu<br />
(...)”(O.E.S.J.C. p.192). Ele não aceita as contestações da mãe e dos irmãos, precisa ir a<br />
Jerusalém desvendar o mistério, visitar as covas dos inocentes. Assim, calçou as<br />
sandálias do pai, recolhidas ao pé da cruz, e assumiu o seu destino, “(...) foi à procura de<br />
alguém que o ajudasse a entender a primeira verdade insuportável da sua vida (...)” (p.<br />
291), “qu<strong>em</strong> sabe se para multiplicar as feridas e fazer, com todas elas juntas, uma única<br />
e definitiva dor.” (p.200).<br />
Passam-se quatro anos, até Jesus tornar a “pisar o chão de Nazaré”, saiu<br />
menino, voltou hom<strong>em</strong> feito. Cresceu, viveu, sentiu, amou, “(...) perguntou no T<strong>em</strong>plo,<br />
refez os caminhos da montanha com o rebanho do Diabo, encontrou Deus, dormiu com<br />
Maria de Magdala (...)” (O.E.S.J.C. p. 291). De volta, Jesus revela à mãe e aos irmãos o<br />
seu encontro com Deus, esperando receber crédito, pois da família não esperava ser<br />
desacreditado, “(...) sendo da sua carne, deveriam ser também do seu espírito” (p.307).<br />
Repete três vezes: “Eu vi Deus” e, a cada vez, a indignação e o descrédito dos seus vão<br />
aumentando, a ponto de o acusar<strong>em</strong> de louco – “(...) Terá sido uma ilusão tua (...), O sol<br />
do deserto fez-te mal à cabeça (...), Estás <strong>em</strong> poder do Diabo (...), Ele está contigo desde<br />
que nasceste (...)” (p. 301,302).<br />
Mediante as acusações, <strong>em</strong> que Maria conclui ter Jesus vivido s<strong>em</strong> Deus, nos<br />
quatro anos que esteve longe, e <strong>em</strong> companhia do Diabo, a resposta de Jesus v<strong>em</strong><br />
aproximar, reunir, celebrar e combinar o sagrado com o profano: “ao fim de quatro anos<br />
com o Diabo encontrei-me com Deus (...)” (p.302). É a idéia fundamental do carnaval<br />
na literatura, “que tudo destrói e tudo renova (...) nada absolutiza, apenas proclama a<br />
alegre relatividade de tudo (...)” (BAKHTIN, 1981:124).<br />
Basta! Jesus não suporta as desconfianças e humilhações, vai <strong>em</strong>bora<br />
novamente, dessa vez s<strong>em</strong> esperança de volta, aonde irá encontrar qu<strong>em</strong> lhe dê crédito?<br />
“Esse hom<strong>em</strong> que traz <strong>em</strong> si uma promessa de Deus, não t<strong>em</strong> outro sítio aonde ir senão<br />
a casa duma prostituta” (p.303). Vai viver definitivamente com Maria de Magdala, a<br />
qu<strong>em</strong> já tivera o prazer de conhecer antes da volta para casa.
Antes de Jesus fazer a revelação a Maria, de ter visto Deus, sentados no chão,<br />
frente a frente, ele partiu um pedaço de pão <strong>em</strong> duas partes, deu uma delas a Maria,<br />
dizendo: “Que este seja o pão da verdade, comamo-lo para que creiamos e não<br />
duvid<strong>em</strong>os, seja o que for que aqui dissermos e ouvirmos, Assim seja, disse Maria de<br />
Magdala” (p.308). É a recriação <strong>paródica</strong> do ritual da Eucaristia – o qual sab<strong>em</strong>os que<br />
simboliza a comunhão entre os fiéis, o partilhar da mesma fé. Aqui é celebrado na<br />
intimidade dos amantes, <strong>em</strong> pleno contraste com o relacionamento de José e Maria, para<br />
os quais a sexualidade parecia não ir além da carne, reduzia-se à “mais insistente<br />
urgência” (p.26) por parte de José ou ao cumprimento dos “deveres de mulher casada”<br />
da parte de Maria. A união entre Jesus e Maria de Magdala é plena, entre eles não<br />
haverá restrições, n<strong>em</strong> segredos, até porque ela diz ser a própria boca e os próprios<br />
ouvidos dele – “(...) o que disseres estarás a dizê-lo a ti mesmo, eu apenas sou a que está<br />
<strong>em</strong> ti” (O.E.S.J.C. p.308). Ela, n<strong>em</strong> por um instante duvida dele, o acompanha,<br />
aconselha, ampara, até a morte,<br />
O jogo paródico novamente se instaura, e a Maria prostituta, agora, revela-se<br />
portadora de maior fé nos desígnios de Deus que a escolhida para mãe do Salvador, que<br />
duvidou da palavra do filho, assim <strong>como</strong> vai duvidar da sua paternidade divina. A outra<br />
Maria aceita seguir a Jesus que lhe propõe viver<strong>em</strong> <strong>como</strong> marido e mulher, ao que ela<br />
responde “(...) já é bastante que me deixes estar ao pé de ti.”(p.310). Sábia mulher que,<br />
ao ser questionada por Jesus sobre o pressuposto sofrimento que ele teria que passar<br />
<strong>como</strong> o escolhido de Deus, diz “(...) Não sei nada de Deus, a não ser que tão<br />
assustadoras dev<strong>em</strong> ser as suas preferências <strong>como</strong> os seus desprezos (...)”. (p.309). Ela<br />
que já experimentara toda sorte de preconceitos pela sua condição de prostituta, diz ter<br />
sido avisada <strong>em</strong> sonho de que “Deus é medonho”, <strong>como</strong> a confirmar o que Jesus já<br />
havia pensado anteriormente: o Deus que pode tudo t<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> <strong>como</strong> um “simples<br />
joguete” <strong>em</strong> suas mãos.<br />
A pedido da mãe, (Maria), partiram os irmãos de Jesus, José e Tiago,<br />
incumbidos de localizá-lo e dizer<strong>em</strong> que a mãe implorava seu retorno a casa.<br />
Encontraram-no, mas já não adiantou, era tarde; ao ouvir o recado da mãe, Jesus<br />
responde que definitivamente não voltaria. L<strong>em</strong>brado dos laços de sangue que os unia,<br />
Jesus respondeu-lhes:<br />
(...) Qu<strong>em</strong> é a minha mãe, qu<strong>em</strong> são meus irmãos, meus irmãos e<br />
minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora
que eu a proferi (...), são aqueles que não precis<strong>em</strong> esperar a hora da<br />
minha morte para se apiedar<strong>em</strong> da minha vida (...).<br />
Ao resgatar a narrativa bíblica, no plano textual, o ficcionista não diferencia <strong>em</strong><br />
quase nada a fala de Jesus, daquelas proferidas segundo o texto original. A diferença<br />
faz-se pela situação <strong>em</strong> que acontec<strong>em</strong> <strong>como</strong> ex<strong>em</strong>plo do que Josef (1980) diz sobre a<br />
paródia: “... a linguag<strong>em</strong> torna-se dupla (...): é uma <strong>escrita</strong> transgressora que engole e<br />
transforma o texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />
o nega” (p.53). Eis a estrutura da narrativa, pela qual se realiza “... a louca idéia de<br />
voltar à história mais sabida e mais contada do mundo, a história de Jesus (...)”<br />
(TOLEDO, 1991:92). Nessa nova versão, ele rejeita sua família por motivos que já<br />
conhec<strong>em</strong>os, não cabe formularmos justificativas pelo seu comportamento.<br />
No exercício de análise que nos propus<strong>em</strong>os a realizar neste trabalho,<br />
procuramos mostrar as estratégias de reconstrução das relações de Jesus na Sagrada<br />
Família, numa visão dessacralizadora, segundo a imaginação do romancista –<br />
aproximada de nós, seres mortais – visto ter resultado <strong>em</strong> valorizar o lado humano<br />
daquele a qu<strong>em</strong> os textos canônicos sagrados buscam conferir a aura do divino, do<br />
mistério, do mítico, enfim.<br />
A nossa análise evidencia que, <strong>como</strong> <strong>em</strong> toda obra literária esteticamente b<strong>em</strong><br />
construída, os el<strong>em</strong>entos paradoxais são latentes. Portanto, o humano e o divino<br />
coexist<strong>em</strong> <strong>em</strong> tensão, do início ao final da narrativa.<br />
Referenciais Bibliográficos<br />
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