o humanismo português entre o latim eo astrolábio - Núcleo de ...
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“irrational and occult matters” (HIRSCH, s/d. p. 338). Esse caminho interpretativo faz<br />
obnubilarem as estratégias mais sutis do erudito – tanto no que diz quanto no que <strong>de</strong>ixa<br />
encoberto. As sereias capturadas, assimiladas e taxadas pelo reino são exibidas no âmbito das<br />
relações <strong>de</strong> força costuradas num diálogo com o mitológico mais profundo do que se po<strong>de</strong><br />
supor à primeira vista. Afinal, as sereias (sirenes), na odisséia, são criaturas assustadoras;<br />
quase conseguem, com seu canto, arrastar Ulisses e seu navio para o fundo do mar 11 – nos<br />
arredores <strong>de</strong> Lisboa, como quer o cronista.<br />
Transformado em história por uma eficiente combinação <strong>de</strong> retórica e <strong>de</strong>monstração<br />
<strong>de</strong> pretensas provas 12 , o mito apagou o nefasto, o medo do <strong>de</strong>sconhecido que vagava no mar.<br />
Não são necessários sob os auspícios do reino on<strong>de</strong> tudo começa a ficar claro a partir dos<br />
relatos dos nautas portugueses. As tropas do Venturoso, seus homens <strong>de</strong> ciência e erudição,<br />
mais que vencer os perigos do oceano, os domesticaram, os trouxeram para perto. Antes, à<br />
distância, potenciais inimigos, elefantes, sereias e tritões passaram a <strong>de</strong>sfrutar das graças<br />
régias na capital. Pagaram-na com o uso das memórias que outrem tem <strong>de</strong> si, orquestradas<br />
pela pena goisiana num discurso que preten<strong>de</strong>u convencer seus leitores <strong>de</strong> que só se quis<br />
retomar “os fatos”.<br />
Um reino tão bem-sucedido só po<strong>de</strong>ria ter sido louvado, admirado, interna e<br />
externamente, pois conquistou, além <strong>de</strong> terras, mercadorias e novos rebentos para a fé cristã, a<br />
chance <strong>de</strong> herdar um império – o quinto Império do mundo, assim se veio a dizer ou assim se<br />
insinuou. Tão antiga quanto Roma, superior a ela na navegação, no trato das bestas, na luta<br />
contra os inimigos, a Lisboa <strong>de</strong> Góis estava preparada para prosperar até o fim dos tempos.<br />
O que a mim na realida<strong>de</strong> vejo acontecer-me é que, quanto mais a velhice se aproxima,<br />
mais coisas se me oferecem que em escritos <strong>de</strong>vam sinalar-se para a eternida<strong>de</strong>, quais com<br />
certeza esses actos preclaros da nossa gente, essa magnitu<strong>de</strong> e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> empresas, essa<br />
<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> ilhas e <strong>de</strong> climas, a ponto que, se acaso <strong>de</strong> novo algum Homero surgira, sem<br />
esforço alcançara nas gestas lusitanas encontrar argumentos <strong>de</strong> não fabulosas, antes reais,<br />
Ilíada e Odisseia 13<br />
11 valem as mesmas precauções interpretativas dispostas na p. 7 <strong>de</strong>ste texto.<br />
12 Cf. o seminal texto <strong>de</strong> GINZBURG, 2002, maxime p. 13-47.<br />
13 Carta enviada ao infante D. Luís, em novembro <strong>de</strong> 1548. Cf. TORRES, 1982, p. 366.<br />
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