69 - Núcleo de Pesquisa Impérios e Lugares do Brasil
69 - Núcleo de Pesquisa Impérios e Lugares do Brasil
69 - Núcleo de Pesquisa Impérios e Lugares do Brasil
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
“ARRANJAR ESTA MEMÓRIA, QUE OFEREÇO POR DEFESA”:<br />
AS DUAS FACES DE UM LETRADO BAIANO NO SÉCULO XIX”<br />
Marcelo Dias Lyra Júnior – UFF 1<br />
RESUMO: O ADVOGADO BAIANO ANTONIO LUIZ DE BRITO ARAGÃO E<br />
VASCONCELOS FICOU CONHECIDO POR DEFENDER EM 1819 OS RÉUS DA<br />
INSURREIÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817. NÃO OBSTANTE, NO INÍCIO DA<br />
DÉCADA DE 1810, ARAGÃO E VASCONCELOS ESCREVERA UMAS MEMÓRIAS<br />
PARA O ESTABELECIMENTO DO IMPÉRIO DO BRASIL OU NOVO IMPÉRIO<br />
LUSITANO, OFERECIDA AO REI INSTALADO NA AMÉRICA PORTUGUESA, NA<br />
QUAL FAZIA O PANEGÍRICO DA TRANSFERÊNCIA DA CORTE, DEMONSTRANDO<br />
SUA UTILIDADE AO FORTALECIMENTO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS, COM O<br />
BRASIL COMO SEU CENTRO DINAMIZADOR. A PROPOSTA DESTE TRABALHO É<br />
ANALISAR AS DUAS FACES DESSE PERSONAGEM OITOCENTISTA:<br />
PRIMEIRAMENTE, COMO LETRADO, NO QUAL OFERECIA SEUS SERVIÇOS AO<br />
REI EM NOME DO AUMENTO DO SEU IMPÉRIO, IDENTIFICANDO-SE, EM SEU<br />
DISCURSO, A UM GRUPO DE LETRADOS LUSO-BRASILEIROS, FORMADOS NA<br />
UNIVERSIDADE DE COIMBRA REFORMADA, QUE PARTILHAVAM DAS IDÉIAS<br />
DE SEU PROJETO; SEGUNDO, COMO ADVOGADO, ONDE ATUOU NA DEFESA<br />
DOS INSURRECTOS PERNAMBUCANOS, ESCREVENDO NA LINGUAGEM<br />
PRÓPRIA DE UMA ESPECÍFICA CULTURA JURÍDICA E POLÍTICA, GUARDANDO<br />
MUITO DE UM UNIVERSO MENTAL DE ANTIGO REGIME. NESSE MUNDO<br />
CERCADO PELA TRADIÇÃO E A MODERNIDADE, A ANÁLISE DOS TÓPICOS<br />
PRESENTES EM SEUS ESCRITOS NOS SERVIRÁ PARA COMPREENDER MELHOR A<br />
COMPLEXIDADE DO MUNDO INTELECTUAL LUSO-BRASILEIRO DESSE INÍCIO<br />
DE SÉCULO XIX.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Direito - Cultura jurídica – Cultura política – Revoltas<br />
Nas últimas três décadas, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a um maior diálogo com as ciências sociais, a<br />
historiografia vem renovan<strong>do</strong> o olhar sobre a compreensão <strong>do</strong> político no Antigo Regime. A<br />
principal característica <strong>de</strong>ssa renovação relaciona-se à consi<strong>de</strong>ração dada a história política à<br />
luz <strong>de</strong> seus componentes culturais (PUJOL, 2006, p.398). Dentro <strong>de</strong>ssas novas perspectivas,<br />
tem se <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> uma postura crítica às interpretações tradicionais sobre o Esta<strong>do</strong>, nas quais<br />
se projetava, na compreensão das organizações políticas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, as categorias relativas à<br />
tradição estatal inaugurada na or<strong>de</strong>m liberal <strong>do</strong> século XIX (GARRIGA, 2004, p.14). Em<br />
contraposição, tem se <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> enquanto construção histórica, cujo<br />
processo torna-se explícito nas representações produzidas pelos atores históricos. Se<br />
historia<strong>do</strong>res e estudiosos da política e <strong>do</strong> direito, como Antonio Manuel Hespanha,<br />
Bartolomé Clavero e Maurizio Fioravanti, têm torna<strong>do</strong> mais evi<strong>de</strong>nte a especificida<strong>de</strong> da<br />
or<strong>de</strong>m política e jurídica <strong>do</strong> Antigo Regime; a atenção aos aspectos sincrônicos e diacrônicos
da linguagem, indicadas nas contribuições da história <strong>do</strong>s conceitos alemã e na histórias <strong>do</strong>s<br />
discursos anglófona, vem possibilitan<strong>do</strong> uma melhor percepção <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates e tensões em<br />
curso no processo <strong>de</strong> inserção nessa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> política, que culminaria no “monopólio da<br />
produção jurídica” (BOBBIO, 1991, p.21) pelo Esta<strong>do</strong> nascente no século XIX, indican<strong>do</strong> um<br />
<strong>do</strong>s aspectos <strong>de</strong>sse sistema político mo<strong>de</strong>rno, caracteriza<strong>do</strong> pelo individualismo e o<br />
contratualismo.<br />
As possibilida<strong>de</strong>s abertas por essas novas perspectivas tem torna<strong>do</strong> assim possível<br />
uma revisão da historiografia sobre as revoltas e inconfidências <strong>do</strong> final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial<br />
brasileiro. Um olhar mais <strong>de</strong>ti<strong>do</strong> sobre essa literatura revela um campo <strong>de</strong> abordagem ainda<br />
insuficiente, concentra<strong>do</strong> na maioria das vezes em uma história social que busca as condições<br />
sócio-econômicas das revoltas ou em uma incursão pelos textos animada pelo afã <strong>de</strong><br />
encontrar às raízes <strong>de</strong> uma precoce e promissora consciência nacional (ALEXANDRE, 1993,<br />
p.77-90). Em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas escolhas, tipos <strong>do</strong>cumentais como as <strong>de</strong>fesas <strong>do</strong>s revoltosos<br />
foram muitas vezes relegadas a um segun<strong>do</strong> plano, ou não aproveita<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> o seu<br />
potencial. Aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssa voga renova<strong>do</strong>ra, toma-se por objeto privilegia<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse<br />
trabalho os discursos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa elabora<strong>do</strong>s pelo advoga<strong>do</strong> baiano Antonio Luís <strong>de</strong> Brito<br />
Aragão e Vasconcelos em favor <strong>do</strong>s réus da Insurreição Pernambucana <strong>de</strong> 1817, buscan<strong>do</strong><br />
lançar algumas luzes sobre a compreensão <strong>do</strong> complexo mun<strong>do</strong> das culturas políticas e<br />
jurídicas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong> luso-brasileiro da segunda década <strong>do</strong> Oitocentos.<br />
Tratemos primeiro <strong>do</strong> contexto. Decorria o mês <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1819. Decreta<strong>do</strong> o<br />
encerramento da <strong>de</strong>vassa 2 e estabelecida a classificação <strong>do</strong>s réus a julgar, os autos passavam<br />
às mãos da <strong>de</strong>fesa, seguin<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> processo conti<strong>do</strong> nas Or<strong>de</strong>nações <strong>do</strong> Reino. Coube<br />
ao advoga<strong>do</strong> baiano Antonio Luis <strong>de</strong> Brito Aragão e Vasconcelos 3 a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s<br />
presos nos cárceres da Bahia. Na justificação <strong>do</strong>s patriotas pernambucanos, Aragão e<br />
Vasconcelos redigiu uma <strong>de</strong>fesa coletiva e inúmeras <strong>de</strong>fesas individuais <strong>do</strong>s réus, nas quais<br />
pautou a sua argumentação em <strong>do</strong>is caminhos: um primeiro, jurídico, através <strong>de</strong> uma<br />
insuficiente exploração <strong>do</strong>s autos e <strong>de</strong> uma interpretação das Or<strong>de</strong>nações e das cartas e<br />
<strong>de</strong>cretos régios que regulavam a <strong>de</strong>vassa, em que buscou <strong>de</strong>squalificar os procedimentos da<br />
Alçada responsável e afirmar a inocência das ações <strong>do</strong>s réus; um segun<strong>do</strong>, político, em que<br />
manobran<strong>do</strong> representações políticas relativas à monarquia portuguesa e referências mo<strong>de</strong>rnas<br />
sobre as formas <strong>de</strong> governo, o po<strong>de</strong>r e o direito, tentou <strong>de</strong>monstrar a lealda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
pernambucanos e o equívoco <strong>do</strong>s acontecimentos <strong>de</strong> 1817.
Para enten<strong>de</strong>r melhor as especificida<strong>de</strong>s que conformaram o universo <strong>de</strong> idéias no<br />
contexto acima menciona<strong>do</strong>, faz-se necessário recuar ao reina<strong>do</strong> josefino (1750-1777).<br />
Buscan<strong>do</strong> minar os po<strong>de</strong>res concorrentes à autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> soberano, o gabinete logo li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />
pelo futuro Marquês <strong>de</strong> Pombal soube contar com letra<strong>do</strong>s para a construção <strong>de</strong> um discurso<br />
que justificasse suas iniciativas. A pedra basilar <strong>do</strong> discurso absolutista português foi a<br />
Dedução Chronológica e Analítica, supostamente <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> José Seabra da Silva,<br />
publicada por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> em 1767. Este “autêntico manifesto da política<br />
pombalina”, cujo cerne estabelecia os fundamentos para o reforço da autorida<strong>de</strong> régia,<br />
voltava-se contra as teorias constitucionalistas, i<strong>de</strong>ntificadas como monarcômacas; e acusava<br />
<strong>de</strong> crime <strong>de</strong> lesa-majesta<strong>de</strong> os principais responsáveis pela difusão <strong>de</strong>ssas teorias em<br />
Portugal, os membros da Companhia <strong>de</strong> Jesus (GOMES, 2004, p.70-73).<br />
Favoreci<strong>do</strong> pela conjuntura <strong>de</strong> crise (relacionada ao terremoto <strong>de</strong> 1755 e à diminuição<br />
da produção aurífera americana) e pela repercussão que as críticas aos jesuítas tiveram em<br />
Portugal, o discurso absolutista encontrou terreno fértil para difundir-se e associar-se a<br />
diversas reformas. A mais conhecida refere-se à educação. Rompen<strong>do</strong> com o monopólio<br />
jesuítico <strong>do</strong> ensino, as reformas pedagógicas atingiram os Estu<strong>do</strong>s Menores (1759) e a<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1772). Em termos políticos, o objetivo <strong>de</strong> Pombal com essas<br />
reformas era construir “uma or<strong>de</strong>m em que o po<strong>de</strong>r secular fosse o principal fia<strong>do</strong>r da unida<strong>de</strong><br />
civil na harmonia da família cristã”, filtran<strong>do</strong> a entrada <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s que fossem contrários à<br />
religião e à autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> rei (CARVALHO, 1978, p.33).<br />
No que se refere à Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, <strong>do</strong>is textos são <strong>de</strong> suma importância para<br />
o entendimento <strong>do</strong> cariz das intenções pombalinas: o Compêndio histórico <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra ao tempo da invasão <strong>do</strong>s <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s jesuítas (1771) e os<br />
Estatutos da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1772). O Compêndio Histórico tratava <strong>de</strong> constatar<br />
os estragos que os Jesuítas fizeram “na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra e nas Aulas <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s esses<br />
Reinos”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus “Sexto e Sétimo Estatutos”, que <strong>de</strong> 1598 em diante tinha instituí<strong>do</strong> uma<br />
“ignorância artificial, e <strong>de</strong> impossibilida<strong>de</strong> para se apren<strong>de</strong>rem as mesmas Ciências, que se<br />
fingiu quererem ensinar” (COMPÊNDIO, 1774, p.xiii). Os novos Estatutos, por sua vez,<br />
estabeleciam as novas diretrizes pedagógicas da Universida<strong>de</strong>, atualizan<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s<br />
superiores portugueses <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os progressos da ciência <strong>do</strong> século.<br />
No tocante à reforma <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s jurídicos, esses <strong>do</strong>is textos afirmavam a exaltação <strong>do</strong><br />
direito natural e das gentes, o uso mo<strong>de</strong>rno <strong>do</strong> direito romano e a valorização <strong>do</strong> direito pátrio.<br />
Na formação <strong>do</strong>s futuros magistra<strong>do</strong>s portugueses, tais modificações consolidavam algumas
tendências que já tinham ti<strong>do</strong> início anteriormente. A lei <strong>de</strong> 18/08/17<strong>69</strong>, chamada da Boa<br />
Razão, havia acaba<strong>do</strong> com o uso indiscrimina<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito romano e comum, além <strong>de</strong> ter<br />
subtraí<strong>do</strong> o Direito Canônico <strong>do</strong> âmbito temporal e, junto com ele, toda uma plêia<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res e comenta<strong>do</strong>res que prevaleciam até então nos tribunais <strong>do</strong> rei.<br />
Essas iniciativas significavam uma tentativa <strong>de</strong> consolidar na or<strong>de</strong>m jurídica o maior<br />
fortalecimento da autorida<strong>de</strong> política real, impon<strong>do</strong> mudanças nas concepções <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<br />
socieda<strong>de</strong>. Reagia a uma or<strong>de</strong>m jurídica e política que se mostravam inacessíveis aos atos da<br />
vonta<strong>de</strong> humana, visto que eram subordinadas a uma lei externa ao arbítrio <strong>do</strong>s homens. As<br />
referências <strong>de</strong>ssa mundivivência pautada pela heteronomia transpassavam to<strong>do</strong>s os campos <strong>do</strong><br />
conhecimento e expandiam-se na esfera <strong>do</strong> cotidiano, construin<strong>do</strong> uma experiência <strong>de</strong> mun<strong>do</strong><br />
na qual tu<strong>do</strong> tinha o seu lugar, e on<strong>de</strong> qualquer transgressão <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m era interpretada sob<br />
os signos religiosos da escatologia. Logo, o direito mostrava-se disponível ao homem tão<br />
somente através da <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m revelada e transcen<strong>de</strong>nte, da Causa Primeira <strong>do</strong><br />
aristotelismo cristão, ensinada nos colégios e universida<strong>de</strong>s pelos jesuítas . A centralida<strong>de</strong> da<br />
idéia da conservação e a crença na perfeição <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> referendava a autorida<strong>de</strong> das fontes<br />
jurídicas mais tradicionais, como o direito canônico, o direito romano, o direito comum e, na<br />
falta da tradição escrita, o costume (HESPANHA, 1994-1995, p.93). Assentada na<br />
pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fontes, a aplicação <strong>do</strong> direito não se fundava na verda<strong>de</strong> da lei, e sim na<br />
interpretação da <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o caso (GARRIGA, 2004, p.28). As próprias<br />
Or<strong>de</strong>nações, compilação <strong>de</strong> leis <strong>do</strong> reino, eram submetidas aos communis opinio,<br />
argumentos <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s comenta<strong>do</strong>res e das autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> direito romano, comum e<br />
canônico (SILVA, 1991, p.347). Destarte, o papel conforma<strong>do</strong>r <strong>do</strong> direito estava, como<br />
salientou Antonio Manuel Hespanha, na centralida<strong>de</strong> da <strong>do</strong>utrina e, não, no “prima<strong>do</strong> da lei”<br />
(HESPANHA, 2007, p.56-57).<br />
Neste esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas, o direito tinha uma função constitucional, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m<br />
política. Não era o pacto que fundava o direito, “antes este que fundava a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
pactos”. O po<strong>de</strong>r político <strong>do</strong> rei era limita<strong>do</strong> pelos princípios morais <strong>de</strong>sse quadro<br />
epistemológico, e tinha sua maior representação na idéia <strong>de</strong> corpo político, na qual cada parte<br />
da socieda<strong>de</strong> tinha uma função. No que se refere ao monarca, a principal função era a <strong>de</strong><br />
realizar a justiça, “garantin<strong>do</strong> a cada qual o seu estatuto (foro, direito, privilégio)”, e o bem<br />
comum (HESPANHA, XAVIER, 1993, p.123). Embora ocupasse a posição <strong>de</strong> cabeça <strong>do</strong><br />
corpo político, era um po<strong>de</strong>r entre po<strong>de</strong>res. No interior <strong>de</strong>ssa cultura jurídica que colocava o<br />
monopólio <strong>de</strong> interpretação da <strong>do</strong>utrina nas mãos <strong>do</strong>s juristas e magistra<strong>do</strong>s, estes possuíam
um papel essencial, enquanto guarda<strong>do</strong>res da efetiva realização da Justiça, promoven<strong>do</strong> os<br />
interesses <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r real e os seus próprios. Po<strong>de</strong>r funda<strong>do</strong> no <strong>do</strong>mínio sobre uma cultura<br />
livresca e literária que só a formação em universida<strong>de</strong>s como Coimbra, Évora e Salamanca<br />
podiam dar.<br />
Portanto, em termos práticos, as intervenções <strong>de</strong> Pombal na justiça e nos estu<strong>do</strong>s<br />
buscavam acabar com a pluralida<strong>de</strong> jurídica e fazer <strong>do</strong> rei e das Or<strong>de</strong>nações as únicas fontes<br />
<strong>do</strong> direito em Portugal. Em sua empresa <strong>de</strong> eliminar os po<strong>de</strong>res concorrentes, reduzia também<br />
o po<strong>de</strong>r político <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s, cuja fonte consistia no monopólio <strong>de</strong> interpretação da<br />
<strong>do</strong>utrina (SILVA, 1991, p.341-370). Buscava-se afirmar a supremacia <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político<br />
central, atacan<strong>do</strong> as bases <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> da antiga or<strong>de</strong>m, fundada nas concepções<br />
corporativas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e socieda<strong>de</strong> difundidas pela escolástica ensinada pelos jesuítas.<br />
As transformações ocorridas durante o reina<strong>do</strong> <strong>de</strong> D. José mostraram-se <strong>de</strong>terminantes<br />
nos futuros <strong>de</strong>bates jurídicos e políticos, ao <strong>de</strong>linear um tipo <strong>de</strong> posicionamento para os<br />
agentes da política real no reino e no ultramar, contra o qual outros tipos <strong>de</strong> concepções não<br />
<strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> oferecer resistência. A tentativa <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnizar” o direito esbarrava na<br />
resistência <strong>do</strong>s prosélitos da cultura jurídica anterior. No último quarto <strong>do</strong> século XVIII, os<br />
<strong>de</strong>bates em torno da elaboração <strong>de</strong> um Novo Código <strong>de</strong> Direito Público para Portugal<br />
constituem-se em excelente exemplo das concepções em disputa. Paschoal <strong>de</strong> Mello Freire,<br />
autor <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Direito Público na parte relativa à reforma <strong>do</strong> livro II das Or<strong>de</strong>nações<br />
Filipinas, filiava-se à tradição absolutista ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que “aos vassalos compete amar e<br />
obe<strong>de</strong>cer ao imperante e aos que governam em seu nome, servir aos cargos públicos e pedir<br />
ao Príncipe, não só a sua proteção, mas graças e mercês em remuneração <strong>de</strong> seus serviços”.<br />
Em caso <strong>de</strong> agravo, ao súdito, cabia apenas a “eventual e humil<strong>de</strong> representação” ao monarca,<br />
sen<strong>do</strong> as <strong>do</strong>utrinas que consi<strong>de</strong>ravam a idéia <strong>de</strong> pacto social coisa <strong>de</strong> “monarcômacos”<br />
(SEELAENDER, 2006, p.202-3; PEREIRA, 1993, p.243-2<strong>69</strong>; 364-387). Já Antonio Ribeiro<br />
<strong>do</strong>s Santos, censor da Junta <strong>de</strong> Censura e Revisão <strong>do</strong> Novo Código, explicitou o caráter<br />
<strong>de</strong>spótico <strong>do</strong> Novo Código proposto por Mello Freire, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a idéia <strong>do</strong> pacto social que<br />
<strong>de</strong>limitava a esfera voluntarista <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Príncipe e a <strong>do</strong>s direitos e <strong>de</strong>veres <strong>do</strong>s povos. O<br />
censor fundamentava historicamente esta “convenção entre o rei e o povo” nas Leis<br />
Fundamentais, que estariam pautadas pelas Atas <strong>de</strong> Lamego e as reuniões das Cortes durante<br />
o século XVII (PEREIRA, 1993, p.243-2<strong>69</strong>).<br />
A divergência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is letra<strong>do</strong>s quanto ao po<strong>de</strong>r tinha como questão central o papel<br />
das Leis Fundamentais. Segun<strong>do</strong> Paschoal <strong>de</strong> Mello Freire, as Atas <strong>de</strong> Lamego dispunham
somente sobre a sucessão <strong>do</strong>s reis, sen<strong>do</strong> a monarquia pura e absoluta, fundada na conquista e<br />
na hereditarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, uma vez “que to<strong>do</strong>s os po<strong>de</strong>res da soberania resi<strong>de</strong>m na única<br />
pessoa <strong>do</strong>s nossos príncipes”, sen<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Deus To<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>roso (GOMES, 1991, p.74-<br />
75). Já Ribeiro <strong>do</strong>s Santos afirmava que tratavam também da natureza <strong>do</strong> governo,<br />
encontran<strong>do</strong> no tradicionalismo constitucional uma saída mais equilibrada e disciplinada que<br />
a <strong>do</strong> “<strong>de</strong>sarruma<strong>do</strong> avulso pombalino e o ultrapassa<strong>do</strong> das Or<strong>de</strong>nações”(PEREIRA, 1993,<br />
p.254; NEVES, 2001, p.55-56).<br />
As linhas <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>bate, em que se opunham uma perspectiva centraliza<strong>do</strong>ra a uma<br />
visão pactícia <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, não eram as únicas, mas constituem tipos exemplares das linguagens<br />
políticas que continuaram presentes nos <strong>de</strong>bates das décadas seguintes 4 . A partir <strong>de</strong> 1808,<br />
uma nova configuração política apareceu, crian<strong>do</strong> espaço para a ação e o <strong>de</strong>senvolvimento das<br />
linguagens políticas. Com a transferência da se<strong>de</strong> da monarquia para a América portuguesa,<br />
realizava-se a idéia <strong>de</strong> um império luso-brasileiro, que já fora aborda<strong>do</strong> pelo padre Antônio<br />
Vieira e D. Luís da Cunha em épocas anteriores (LYRA, 1994, p.107-197); e que havia si<strong>do</strong><br />
recuperada por Rodrigo <strong>de</strong> Sousa Coutinho em finais <strong>do</strong> século XVIII, ten<strong>do</strong> a sua volta uma<br />
elite luso-brasileira ilustrada com passagem pela Coimbra reformada 5 . Em sua atuação como<br />
letra<strong>do</strong>, Aragão e Vasconcelos parecia alinhar-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta posição, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-a explícita<br />
numa memória escrita no início da década <strong>de</strong> 1810.<br />
Se o estabelecimento da metrópole no Centro-Sul da possessão americana trouxe<br />
novos alentos aos portugueses <strong>de</strong>sta parte da América, também gerou fortes resistências, tanto<br />
<strong>do</strong>s portugueses que ficaram em Portugal, quanto <strong>do</strong>s portugueses das capitanias <strong>do</strong> norte<br />
(DIAS, 1979, p.167). Na imprensa luso-brasileira na Europa, principalmente a partir da<br />
elevação da América portuguesa a Reino Uni<strong>do</strong> (1815), os <strong>de</strong>scontentamentos tomaram forma<br />
nas disputas entre os partidários da opção americana e aqueles que <strong>de</strong>fendiam a regeneração<br />
portuguesa (ALEXANDRE, 1993, p.396-440). No reino e no norte da nova metrópole, a<br />
oposição tomou o caminho da revolta no mesmo ano <strong>de</strong> 1817. Naquele, a Conspiração<br />
li<strong>de</strong>rada pelo militar Gomes Freire. Neste, a “Revolução”, que, ao prevalecer ante a opção da<br />
monarquia constitucional, evoluiu a partir <strong>de</strong> Pernambuco para as capitanias vizinhas e<br />
estabeleceu o regime republicano, além <strong>de</strong> uma nova constituição, elaborada para sancionar<br />
um novo pacto, fora das estruturas políticas da monarquia portuguesa (MELLO, 2004, p.25-<br />
63).<br />
Aragão e Vasconcelos, autor das <strong>de</strong>fesas <strong>do</strong>s pernambucanos, expressou as<br />
ambigüida<strong>de</strong>s existentes nesse inconsistente mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong> luso-brasileiro. Em 1819, foi
encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> elaborar as <strong>de</strong>fesas <strong>do</strong>s acusa<strong>do</strong>s pela “Revolução” que tomou conta <strong>de</strong><br />
Pernambuco <strong>de</strong> março à maio <strong>de</strong> 1817, e que estavam presos nos cárceres da Bahia. Tarefa<br />
hercúlea, segun<strong>do</strong> argumentava o advoga<strong>do</strong> em sua Defesa Geral, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r “trezentos e<br />
<strong>de</strong>zessete réus, (...) não podia cada um ser <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> em um só dia quan<strong>do</strong> assim mesmo<br />
seriam necessários trezentos e <strong>de</strong>zessete dias, e eu não tive ao menos meio dia”. Da<strong>do</strong> o<br />
limita<strong>do</strong> tempo que possuía, Aragão e Vasconcelos propôs, ao escrever sua <strong>de</strong>fesa geral,<br />
arranjá-la como memória, fazen<strong>do</strong> “um discurso geral sobre to<strong>do</strong>s conforme as estreitezas <strong>do</strong><br />
tempo” (DOCUMENTOS HISTÓRICOS, 1954, v.CVI, p.49).<br />
Neste <strong>do</strong>cumento, o advoga<strong>do</strong> baiano propôs uma explicação global <strong>do</strong>s eventos. De<br />
partida, referia-se a Justiça, equivalen<strong>do</strong>-a à “bonda<strong>de</strong> <strong>do</strong> soberano e <strong>do</strong>s ministros que<br />
divinamente o representam”. I<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> o crime contra o sistema político como um crime<br />
contra a pessoa real, legitimava enquanto justa qualquer punição, não obstante como vingança<br />
“à vista <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> ofensa Majesta<strong>de</strong> ultrajada” e à mácula que os habitantes <strong>de</strong><br />
Pernambuco haviam feito à honra <strong>de</strong> seus antepassa<strong>do</strong>s (DOCUMENTOS HISTÓRICOS,<br />
1954, v.CVI, p.52). Portanto, dirigia-se ao tribunal e aos ministros <strong>de</strong> Sua Magesta<strong>de</strong><br />
apelan<strong>do</strong> à imagem <strong>do</strong> soberano como pai <strong>do</strong>ce e amável, ao mesmo tempo em que lhe<br />
conferia o papel <strong>de</strong> justiceiro (HESPANHA, 1993, p.311). Embora se referisse sempre às leis<br />
que regulavam o castigo, remeten<strong>do</strong>-se às Or<strong>de</strong>nações e as Cartas Régias, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong>-se<br />
atento aos usos jurídicos implanta<strong>do</strong>s pelas reformas <strong>do</strong> século anterior, as representações e<br />
argumentos utiliza<strong>do</strong>s por Aragão e Vasconcelos <strong>de</strong>ixavam implícitas uma concepção<br />
personalista <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, on<strong>de</strong> o crime aparecia como uma falta à lei moral, distante ainda da<br />
referência mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> justiça, pautada pela idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência à lei positiva (PRODI,<br />
2002, p.21).<br />
Seguin<strong>do</strong> pelo mesmo rumo argumentativo tradicional, a <strong>de</strong>fesa prosseguia na<br />
justificação da “rebelião”. Segun<strong>do</strong> o advoga<strong>do</strong> baiano, se haveria <strong>de</strong> existir algum culpa<strong>do</strong><br />
pela rebelião <strong>de</strong> Pernambuco, este seria o governa<strong>do</strong>r <strong>de</strong>posto Caetano Pinto <strong>de</strong> Miranda<br />
Montenegro, posto que “um general nunca <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>samparar o seu posto até o último lance na<br />
<strong>de</strong>sgraça, porque aliás fica o corpo sem cabeça, e <strong>de</strong>sfaleci<strong>do</strong>”. Com o governo sem cabeça,<br />
os assassinos pu<strong>de</strong>ram fazer uma revolução porque não acharam resistência,<br />
uniram-se muitos ao seu parti<strong>do</strong> porque não havia outro, o povo elegeu um<br />
governo por falta <strong>de</strong>le, visto que o Governa<strong>do</strong>r tinha cedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu e <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong><br />
o povo em anarquia. (DOCUMENTOS HISTÓRICOS, 1954, v.CVI, p.57)<br />
A eleição <strong>de</strong> um Governo Provisório após a fuga <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r teria si<strong>do</strong> uma forma<br />
<strong>de</strong> “sossegar o tumulto e dissipar a anarquia”, “enquanto Sua Majesta<strong>de</strong> não mandava forças
capazes <strong>de</strong> restabelecer a antiga felicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s pernambucanos e torná-los às <strong>do</strong>çuras <strong>do</strong> seu<br />
Paternal Governo”.<br />
A idéia <strong>de</strong> anarquia, tal como afirmada, condizia à concepção corporativa <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e<br />
socieda<strong>de</strong>. Possível relação é também constatada no Vocabulário Português <strong>do</strong> padre Raphael<br />
Bluteau, <strong>de</strong> 1712, on<strong>de</strong> o termo aparece como “o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> huma Cida<strong>de</strong>, ou Republica, sem<br />
cabeça, ou sem príncipe legítimo que a governe[...].” Segun<strong>do</strong> o vocábulo <strong>do</strong> padre<br />
dicionarista, “só aquelles que no meio das perturbações da Republica, querem melhorar com<br />
dano alheio a sua fortuna, são amigos da anarchia”(BLUTEAU, 1712, p.361). No tom<br />
consonante ao significa<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong> no vocábulo, Aragão e Vasconcelos prosseguiu com<br />
seus argumentos. Ten<strong>do</strong> em vista a acefalia <strong>do</strong> governo após a fuga <strong>de</strong>spropositada <strong>de</strong><br />
Caetano Pinto, os assassinos, “homens <strong>de</strong>scontentes <strong>de</strong> sua sorte”, passaram a figurar como<br />
lí<strong>de</strong>res e protetores <strong>do</strong> povo, pois este “não sabe lógica para discorrer com princípios,<br />
fundamentos e conseqüências, arrebata-se com as primeiras idéias, que lhes pintam <strong>de</strong> males<br />
iminentes, ou bem futuros” (DOCUMENTOS HISTORICOS, 1954, p.59). Outro seria o lugar<br />
<strong>de</strong> alguns letra<strong>do</strong>s que participaram <strong>do</strong> Governo Provisório eleito. Nesse caso, Aragão e<br />
Vasconcelos colocava-os em seu <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar, como “homens cordatos, estabeleci<strong>do</strong>s, e<br />
abasta<strong>do</strong>s” que “não se querem arriscar a pendências com malva<strong>do</strong>s no auge da sua<br />
<strong>de</strong>sesperação” e “sucumbiram para evitar o martírio que iriam sofren<strong>do</strong> um por um que se<br />
<strong>de</strong>scobrissem sem fruto para a Causa Real e justa” (DOCUMENTOS HISTORICOS, 1954,<br />
p.60). A qualida<strong>de</strong> social trazia assim consigo as noções <strong>de</strong> honra e reputação, que levava em<br />
conta a lealda<strong>de</strong> e os serviços presta<strong>do</strong>s pelos vassalos e seus antepassa<strong>do</strong>s a Monarquia<br />
Portuguesa. Se os pernambucanos manchavam, enquanto parte <strong>do</strong> corpo político da<br />
monarquia portuguesa, essa relação, seus melhores filhos <strong>de</strong>veriam ser preserva<strong>do</strong>s enquanto<br />
naturalmente incapazes <strong>de</strong> tal ingratidão.<br />
Mas afinal, o que significava o uso constante <strong>de</strong>ssas representações tradicionais?<br />
Primeiramente, a permanência, ainda na segunda década <strong>do</strong> século XIX, <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />
luso-brasileiras com características entranhadas <strong>de</strong> Antigo Regime, pautada nas noções <strong>de</strong><br />
honra e privilégio. Valores que, a par da “mitigadas” luzes luso-brasileiras e <strong>do</strong> fortalecimento<br />
da autorida<strong>de</strong> central, serviram para manter o Império uni<strong>do</strong>, principalmente através <strong>do</strong><br />
fomento ao ethos nobiliárquico através da economia das mercês (RAMINELLI, 2008, p.7-<br />
60). A partir <strong>de</strong>la, foi possível cooptar os letra<strong>do</strong>s luso-brasileiros que, forma<strong>do</strong>s na Coimbra<br />
reformada e influencia<strong>do</strong>s pelas idéias <strong>do</strong> século, cogitaram a sedição nas Minas em 1789.
Em segun<strong>do</strong> lugar, a falta <strong>de</strong> instrumentos mentais (FEBVRE, 1978, p.29-78) para<br />
pensar em termos integralmente seculares. Esta dificulda<strong>de</strong> é perceptível mesmo nas<br />
discussões em torno <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Direito Público, quan<strong>do</strong> Ribeiro <strong>do</strong>s Santos e Mello Freire<br />
viam-se incapazes <strong>de</strong> pensar numa nova fundação constitucional para o Reino, sen<strong>do</strong><br />
obriga<strong>do</strong>s a buscar suas referências nas Leis Fundamentais <strong>do</strong> Reino. Possivelmente, textos<br />
como as Atas <strong>de</strong> Lamego, legitima<strong>do</strong>s pelo espaço <strong>de</strong> experiência da tradição, eram aquelas<br />
que ainda forneciam as principais categorias a homens como Antônio Luís <strong>de</strong> Brito Aragão e<br />
Vasconcelos. Um caso exemplar <strong>de</strong>ssa permanência po<strong>de</strong> ser encontra<strong>do</strong> em um caso narra<strong>do</strong><br />
pelo monsenhor Francisco Muniz Tavares em sua História da Revolução <strong>de</strong> Pernambuco.<br />
Presos os patriotas pernambucanos nos cárceres da Bahia, os patriotas pernambucanos<br />
discutiram renhidamente o significa<strong>do</strong> da palavra Classe. Submetida a uma eleição entre os<br />
encarcera<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>cidiu-se que a palavra equivalia a Hierarquia – a guisa das Atas <strong>de</strong> Lamego –<br />
Clero, Nobreza, Povo.<br />
NOTAS:<br />
1 Mestran<strong>do</strong> em História Social. Bolsista <strong>do</strong> Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Científico e Tecnológico (CNPq)<br />
2 O processo da Insurreição Pernambucana <strong>de</strong> 1817 teve duas <strong>de</strong>vassas: uma aberta no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, em abril <strong>de</strong> 1817, quan<strong>do</strong> ainda persistia a revolta; e outra em agosto <strong>de</strong> 1817, em que<br />
foi nomea<strong>do</strong> um Tribunal da Alçada a ser estabeleci<strong>do</strong> em Pernambuco, começan<strong>do</strong> a<br />
funcionar em outubro <strong>do</strong> mesmo ano. Por ocasião da aclamação, D. João VI man<strong>do</strong>u<br />
fecharem-se as <strong>de</strong>vassas em fevereiro <strong>de</strong> 1818, encerran<strong>do</strong>-se as prisões exceto daqueles<br />
suspeitos <strong>de</strong> cabeças, mas prosseguin<strong>do</strong> os trâmites da justiça em relação aos já presos. Na<br />
prática, a Alçada encerraria suas ativida<strong>de</strong>s somente em outubro <strong>do</strong> mesmo ano, seguin<strong>do</strong><br />
para a Bahia. Em carta <strong>de</strong> 29 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1819, o rei estabelecia as classificações e respectivas<br />
penas a serem seguidas nos julgamentos. A <strong>de</strong>vassa foi encerrada somente em 1820, quan<strong>do</strong><br />
eclodiu a Revolução <strong>do</strong> Porto. Ver DOCUMENTOS HISTÓRICOS, 1954, v. 102, p. 15, 83-<br />
84; v. 106, p. 123-131.<br />
3 Filho <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Antonio <strong>de</strong> Brito d’Assumpção e D. Luiza Maria <strong>de</strong> Vasconcelos, Antonio<br />
Luiz <strong>de</strong> Brito Aragão e Vasconcelos foi batiza<strong>do</strong> a 5/10/1775 na Freguesia <strong>de</strong> Nª. Sª. <strong>do</strong> Ó <strong>de</strong><br />
Paripe. Em 1798, seguiu os passos <strong>do</strong> pai, ingressan<strong>do</strong> na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
saiu em 1805, forma<strong>do</strong> bacharel em Leis. Segun<strong>do</strong> Pedro Calmon, teve notas inferiores na<br />
Universida<strong>de</strong>. Após formar-se, foi almotacé na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra. Durante as invasões<br />
francesas, serviu no Corpo Acadêmico e no Corpo <strong>de</strong> Advoga<strong>do</strong>s e Nobreza da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Coimbra. Durante sua estada em Portugal, casou-se com Joaquina Cândida Emília Brito.<br />
Apresentava requerimento solicitan<strong>do</strong> passaporte para a Bahia em 14/03/1810, juntamente
com sua esposa. Em 1811, requereu a mercê <strong>do</strong> hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo, em recompensa<br />
pelos serviços presta<strong>do</strong>s durante a invasão napoleônica. Possivelmente pela mesma época,<br />
escreveu as “Memórias sobre o estabelecimento <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> ou novo Império<br />
Lusitano”, em homenagem ao Con<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Arcos . Da<strong>do</strong>s biográficos retira<strong>do</strong>s <strong>de</strong>: CALMON,<br />
1949, p. 90; Coleção Documentos Biográficos da Biblioteca Nacional – C-0547,022; AHU,<br />
Bahia, Castro Almeida, Cx. 90, <strong>do</strong>c. 17.621 e cx. 109, <strong>do</strong>c. 21.181; AHU, Bahia, Avulsos, cx.<br />
253, <strong>do</strong>c. 17.431.<br />
4 Ribeiro <strong>do</strong>s Santos ainda se envolveu em outra querela com Mello Freire, em 1786, por<br />
ocasião <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Código Criminal escrito por este (PEREIRA, 1993, p. 364-387;<br />
HESPANHA, 1993, p. 287-379). O mesmo Ribeiro <strong>do</strong>s Santos, enquanto censor da Real<br />
Mesa Censória, utilizou-se <strong>do</strong>s seus argumentos constitucionalistas em 1806, para refutar a<br />
“Análise sobre a Justiça <strong>do</strong> Comércio <strong>do</strong> Resgate <strong>de</strong> Escravos”, <strong>do</strong> bispo Azere<strong>do</strong> Coutinho,<br />
que a<strong>do</strong>tava uma justificação histórica e pragmática <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r na <strong>de</strong>squalificação<br />
das soluções pactícias (NEVES, 2000, p. 349-370).<br />
5 A atuação <strong>de</strong>sse grupo <strong>de</strong> intelectuais nos quadros da administração imperial durante o<br />
ministério <strong>de</strong> D.Rodrigo foi chama<strong>do</strong> por Kenneth Maxwell <strong>de</strong> “geração <strong>de</strong><br />
1790”(MAXWELL, 1999, p. 157-207). Sobre a existência <strong>de</strong> uma cultura política lusobrasileira,<br />
ver NEVES, 1999, p.231-249.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />
ALEXANDRE, Valentim. Os Senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Império – questão nacional e questão colonial na<br />
crise <strong>do</strong> Antigo Regime portugués. Porto: Edições Afrontamento, 1993.<br />
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino (1712-1721). Rio <strong>de</strong> Janeiro: UERJ,<br />
Departamento Cultura, 2000. (CD-Rom)<br />
BOBBIO, Norberto. Teoría General <strong>de</strong>l Derecho. Madrid: Debate, 1991.<br />
CALMON, Pedro. História da Literatura Baiana. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1949.<br />
COLEÇÃO Documentos Históricos. MEC. 1954, v. 101-109<br />
CARVALHO, Laerte Ramos. As Reformas Pombalinas da Instrução Pública. São Paulo:<br />
Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo/Saraiva, 1978.<br />
COMPÊNDIO historico <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra no tempo da invasão <strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s jesuitas e <strong>do</strong>s estragos feitos nas sciencias e nos professores, e directores<br />
que a regiam pelas maquinações, e publicações <strong>do</strong>s novos estatutos por elles fabrica<strong>do</strong>s.<br />
Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1771.<br />
DIAS, Maria Odila L. A interiorização da metrópole. IN: MOTA, Carlos Guilherme (org.).<br />
1822: Dimensões. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.<br />
FEBVRE, Lucien, A obra mestra: o problema da <strong>de</strong>scrença no século XVI (1942) IN C. G.<br />
MOTA (org.), Lucien Febvre, Trad. De A. Marson et allí, São Paulo, Ática, 1978, p. 29-<br />
78.<br />
GARRIGA, Carlo. Or<strong>de</strong>n jurídico y po<strong>de</strong>r político en el Antiguo Régimen. Istor, IV (16),<br />
2004.
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. As letras da tradição : o Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito natural <strong>de</strong><br />
Tomás Antônio Gonzaga e as linguagens políticas na época pombalina (1750- 1772).<br />
Niterói: Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, 2004.<br />
HESPANHA, Antonio Manoel. Da “iustitia” à “disciplina” – textos, po<strong>de</strong>r e política penal no<br />
Antigo Regime. IN: HESPANHA, A. M (org.). Justiça e litigiosida<strong>de</strong>: história e<br />
prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1993, p. 287-379.<br />
_____. Las categorias <strong>de</strong>l político y <strong>de</strong>l jurídico en la época mo<strong>de</strong>rna. Ius Fugit: Revista<br />
interdisciplinar <strong>de</strong> estúdios histórico-jurídicos. Madrid, nº3-4, 1994-1995, p. 63-100.<br />
_____, Depois <strong>do</strong> Leviathan. Almanack <strong>Brasil</strong>iense. nº 5, São Paulo, maio/2007.<br />
HESPANHA, A. M e XAVIER, Angela Barreto. A representação da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
IN: HESPANHA, Antonio Manuel (coord.). História <strong>de</strong> Portugal, vol. 4: O Antigo<br />
Regime. Lisboa: Estampa, 1993.<br />
LYRA, Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Viana. A utopia <strong>do</strong> po<strong>de</strong>roso império – Portugal e <strong>Brasil</strong>:<br />
Basti<strong>do</strong>res da política (1798-1822). São Paulo: Sette Letras, 1994.<br />
MAXWELL, Kenneth. A geração <strong>de</strong> 1790 e a idéia <strong>de</strong> império luso-brasileiro. IN:<br />
Chocolates, Piratas e mais Malandros. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p.157-207.<br />
MELLO, Eval<strong>do</strong> Cabral <strong>de</strong>. A outra in<strong>de</strong>pendência – o fe<strong>de</strong>ralismo pernambucano <strong>de</strong> 1817 a<br />
1824. São Paulo, Editora 34, 2004.<br />
NEVES, Guilherme Pereira das. Pálidas e Oblíquas Luzes: J.J. da C. <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho e a<br />
Análise sobre a Justiça <strong>do</strong> Comércio <strong>de</strong> Escravos. IN: SILVA, Maria Beatriz Nizza da<br />
(org.). <strong>Brasil</strong>: Colonização e Escravidão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 349-<br />
370.<br />
______. Guardar mais silêncio <strong>do</strong> que falar: Azere<strong>do</strong> Coutinho, Ribeiro <strong>do</strong>s Santos e a<br />
Escravidão. IN: CARDOSO, José Luis (coord.). A economia política e os dilemas <strong>do</strong><br />
império luso-brasileiro (1790-1822). Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações<br />
<strong>do</strong>s <strong>de</strong>scobrimentos portugueses, 2001.<br />
PEREIRA, José Esteves, O pensamento político em Portugal no século XVIII: Antônio<br />
Ribeiro <strong>do</strong>s Santos, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993.<br />
PRODI, Paolo, Uma história da Justiça – <strong>do</strong> pluralismo <strong>do</strong>s tribunais ao mo<strong>de</strong>rno dualismo<br />
entre a consciência e o direito, Lisboa, Estampa, 2002.<br />
PUJOL, Xavier Gil. Política como cultura. IN: IDEM. Tiempo <strong>de</strong> política- Perspectivas<br />
historiográficas sobre la Europa mo<strong>de</strong>rna. Barcelona: Breviaria, 2006.<br />
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distancia. São<br />
Paulo: Alameda, 2008.<br />
SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. Notas sobre a constituição <strong>do</strong> direito público na<br />
ida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna: a <strong>do</strong>utrina das leis fundamentais. Revista Sequência: Estu<strong>do</strong>s políticos e<br />
jurídicos. Florianópolis, nº 53, ano 26, <strong>de</strong>z-2006, p. 197-232.<br />
SILVA, Nuno J. Gomes Espinosa da. História <strong>do</strong> Direito Português – Fontes <strong>de</strong> Direito.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1991.