PLATONISMO CRISTÃO? QUE PLATONISMO? - PUC-Rio
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1 - Intróito<br />
<strong>PLATONISMO</strong> <strong>CRISTÃO</strong>?<br />
<strong>QUE</strong> <strong>PLATONISMO</strong>?<br />
Miguel Spinelli *<br />
1. a - O que dizer do Platonismo na medida em que lhe foi sobreposto<br />
o adjetivo cristão? Foi a partir do século II, por obra de helenistas<br />
convertidos ao Cristianismo, que se deu esse tipo de sobreposição. Ela foi<br />
feita sobretudo em função de dois objetivos: um, dar à doutrina cristã um<br />
status filosófico; outro, transformá-la numa doutrina plenamente aceita pelos<br />
intelectuais (ou seja, helenistas) da época.<br />
Ao recorrer à Filosofia, os novos helenistas convertidos – tais como<br />
Justino, Tertuliano, Clemente de Alexadria, Orígenes, Gregório de Nazianzo<br />
(objeto de estudo deste artigo) , Basílio e Gregório de Nissa 1 –<br />
* Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: migspinelli@yahoo.com.br<br />
1 Dedicamos uma obra inteiramente ao estudo desses autores: Helenização e Recriação de<br />
Sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo – séculos II, III e IV. Porto Alegre:<br />
Edipucrs, 2002, 392 pgs.<br />
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Miguel Spinelli<br />
evidenciaram várias "convergências" entre a doutrina cristã e as doutrinas<br />
filosóficas. Foi por causa dessas supostas convergências que eles se viram<br />
impulsionados a se adentrar ainda mais no território filosófico. Em geral, eles<br />
se serviram bem mais de Platão do que de Aristóteles. A recorrência a<br />
Aristóteles se deu sobretudo pelo fato de eles terem encontrado na lógica<br />
aristotélica uma porta de acesso para a "teologia" de Platão. Direta ou<br />
indiretamente, eles encontraram em Platão e em Aristóteles inúmeras<br />
asserções que lhes pareceram úteis. Muitas delas (comumente aceitas na<br />
discussão filosófica) foram simplesmente por eles amputadas dos contextos<br />
filosóficos originários, e, por vezes, dogmatizadas... O resultado foi uma<br />
mescla de Filosofia e de pregação religiosa, cuja tendência foi a de substituir<br />
a convicção racional pela fé, a retórica pela autoridade, os princípios racionais<br />
pelo dogma, até que o discurso do eclesiástico se transformasse numa fala<br />
autoritária... O que se deu, a bem da verdade, foi uma subversão de<br />
conceitos, de modo que, o que era tido como Filosofia, pouco a pouco se<br />
converteu em Religião...<br />
1. b – Posto esse ponto de vista, Gregório de Nazianzo (330-390),<br />
dentre os doutrinadores cristãos, pode ser visto como um dos que mais se<br />
dedicou a esse tipo de subversão. Ele viveu no século IV, na região da<br />
chamada Capadócia (na Ásia Menor, em território que hoje pertence à<br />
Turquia). Ele também é tido como "grego", mas isso se deve, além da<br />
educação helenística que recebeu, ao cultivo da língua e da cultura grega...<br />
Duas observações, uma a respeito do nome "Gregório", outra, quanto<br />
ao termo "teologia". Em relação ao nome "Gregório", a sua recorrência se<br />
explica pela sua derivação – de egrêgora, que tinha o sentido de estou<br />
acordado ou estou vigilante. Foi por isso, ou seja, pelo fato de designar o<br />
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Platonismo cristão? Que platonismo?<br />
Desperto, que o nome Gregório se tornou muito usual entre os recém<br />
batizados. O próprio nome em si era um modo de eles (ou dos pais) se<br />
posicionarem frente aos não-cristãos e a todos os opositores do<br />
Cristianismo... Quanto ao termo "teologia", ele não tinha, na época, a<br />
mesma abrangência atual. Por Teologia, é necessário entender uma certa<br />
linguagem (emprestada preferencialmente de Platão e da Filosofia) através<br />
da qual se expressava os "mistérios do divino " 2 -, um termo,<br />
aliás, cuja significação cristã passa a ser essencialmente distinta daquela<br />
concebida pelos gregos.<br />
Vale ainda destacar que o tema da trindade (determinado pelo<br />
Concílio) 3 era a principal fonte dos debates e das querelas teológicas, feitas,<br />
porém, como uma ocupação de filósofo e não do teólogo. Dá-se que, por<br />
um lado, com o advento do Cristianismo e a sua consolidação, o<br />
endereçamento religioso assumido pela Filosofia grega no seu percurso<br />
histórico (sobretudo numa perspectiva estóica e epicuréia) encontrou no<br />
Cristianismo um substituto; por outro, o Cristianismo, na época, era a<br />
grande inovação, e isso atraía a atenção dos filósofos, que se dedicavam a<br />
filosofar sobre ele... "Filosofar", em sentido amplo, significava discutir<br />
conceitos e recriar sentidos; num sentido mais restrito, significava discutir ou<br />
questionar assuntos da Religião e da crença (sobretudo referentes à<br />
trindade). Visto que esse filosofar se tornou generalizado (ainda mais que,<br />
na época, o fato de ser cristão facilitava o sucesso e as oportunidades na<br />
2 "Par théologie, au sens que la patristique grecque des premiers siècles a donné à ce mot, il<br />
faut entendre la langue dont on use pour parler du mystère de Dieu" (PRUCHE, Benoît.<br />
"Introduction", in BASILE DE CÉSARÉE. Sur le Saint-Esprit. Paris: Les éditions du CERF,<br />
1968, p.179).<br />
3 Discours XXV, 8, 1209 A 25-27, p. 176 - Discours 24-26. Introduction, texte critique, traduction<br />
et notes par Justin Mossay et Guy Lafontaine, Paris: Les éditions du CERF, 1981, SC284;<br />
BERNARDI, J.. La prédication des pères cappadociens. Le prédicateur et son auditoire. Paris:<br />
Aubier, 1968.<br />
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Miguel Spinelli<br />
vida pública e individual), isso fez com que os doutrinadores (vinculados à<br />
ortodoxia do poder religioso) logo se apressassem em discipliná-lo...<br />
2. Subversões de Gregório de Nazianzo<br />
No seu empenho em disciplinar a atividade filosófica (mais<br />
exatamente em disciplinar o "filosofar sobre o divino"), Gregório de<br />
Nazianzo, sob um certo aspecto (amparado pelo poder da ortodoxia<br />
estabelecida), se tornou muito restritivo. Ele dizia generalizadamente que<br />
"sobre o divino não se filosofa" 4 -, mas, ao dizer isso, tinha em mente os<br />
seguintes propósitos: um, acautelar os "filósofos" quanto às heresias, mais<br />
precisamente contra os que, desvinculados da ortodoxia estabelecida, não<br />
tinham nenhuma restrição em submeter a doutrina a um rigoroso exame<br />
racional (uma atitude, aliás, que era tida como de má-fe); outro,<br />
simplesmente afirmar que sobre Deus (ou sobre os assuntos da fé) não se<br />
põe questão, ou melhor, sobre o divino não se discute. Gregório, em<br />
contrapartida, afirmava que era permitido filosofar sobre Deus, mas sob<br />
certas condições: primeira, que essa não era uma tarefa para qualquer um,<br />
mas restrita somente àqueles que se purificaram a si mesmos "pela prática<br />
da filosofia" 5 ; segunda, que só era permitido filosofar sobre Deus aos<br />
indivíduos que alcançaram, antes, a elevação ascética, ou, de acordo com<br />
as suas palavras, que estavam "exercitados e avançados na contemplação<br />
, e que purificaram a alma e o corpo..." 6 .<br />
4 "Não é terrível ser batido sobre o terreno da eloqüência (dizia), uma vez que ela não pertence<br />
a todos; mas é terrível que a divindade seja posta em discussão, porque ela é a esperança de<br />
todo o mundo" (GRÉGOIRE DE NAZIANZE. Discours. XXV, 18, 1224 B C 13-16, p. 202 – Cf.<br />
Bibliografia Utilizada<br />
5 Discours. VI, 1, 723 B 13, p. 122 - Discours 6-12. Introduction, texte critique, traduction et<br />
notes par Marie-Ange Calvet-Sebasti, Paris: Les éditions du CERF, 1995, SC405.<br />
6 Discours. XXVII, 3, 15 D 5-7, p. 76 - Discours 27-31 (Discours théologiques). Introduction,<br />
texte critique, traduction et notes par Paul Gallay, Paris: Les éditions du CERF, 1978, SC250.<br />
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Platonismo cristão? Que platonismo?<br />
Na afirmação de Gregório de que, para filosofar sobre Deus, era<br />
necessário, antes, "purificar a si mesmo pela prática da Filosofia", ele<br />
pressupunha o conceito platônico de catarse, mas com uma outra<br />
mentalidade que não a platônica. A catarse a que se refere diz respeito ao<br />
ser cristão 7 , pela qual a Filosofia ou o filosofar deixa de ser uma atividade<br />
essencialmente teórica (de reflexão e de argumentação mediante<br />
conceitos), e que passa a se assumir como um exercício ou atividade<br />
prática. Pois, agora não é mais pela teoria ou pela via da razão e do<br />
discurso argumentativo que se alcança o estágio máximo da Filosofia – o<br />
bem supremo -, e sim, pela vivência cristã. Além do mais, Gregório<br />
distingue, na Filosofia, duas vertentes: uma, como sendo "aquela de fora,<br />
que joga com as sombras da verdade, usando a vestimenta e o aspecto<br />
externo da Filosofia"; outra, como ele diz, "a nossa Filosofia, modesta na<br />
aparência, mas elevada em seu âmago escondido, e que verdadeiramente<br />
conduz ao divino" 8 .<br />
Na medida em que Gregório tematiza filosoficamente a doutrina<br />
cristã, fica muito claro que ele mistura temas filosóficos (de inspiração<br />
platônica) com interesses religiosos. A linguagem da qual se serve é<br />
francamente platônica, como neste trecho, por exemplo: "Quem busca a<br />
Filosofia, a dona das paixões, ergue-se (...) no caminho do bem, desiste da<br />
matéria, sem esperar pela sua decomposição e, dado a grandiosidade da<br />
natureza de sua escolha, se eleva acima das coisas que se vê para apegarse<br />
àquelas que são estáveis" 9 . Mas entre as suas palavras e as de Platão<br />
7 Discours, II, 78, 485 A 1, p. 192 - Discours 1-3. Introduction, texte critique, traduction et notes<br />
par Jean Bernardi, Paris: Les éditions du CERF, 1978, SC247.<br />
8 Discours, XXV, 4, 1204 A 17-20, p. 164 - Discours 32-37. Introduction, texte critique et notes<br />
par Claudio Moreschini, traduction par Paul Gallay. Paris: Les éditions du CERF, 1985, SC318.<br />
9 Discours, XXV, 4, 1203 D 12-15, p. 164<br />
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Miguel Spinelli<br />
há uma reversão de pontos de vista e de significados. As expressões são<br />
semelhantes, por vezes até as mesmas, inclusive o conteúdo, mas<br />
manifestam uma mentalidade completamente distinta. Também a<br />
mensagem que quer veicular e os propósitos que quer alcançar são<br />
diferentes. Quando ele diz, por exemplo, no trecho citado, que quem<br />
escolheu o "caminho do bem (...) eleva-se acima das coisas visíveis a fim<br />
de apegar-se às estáveis", todos esses termos – bem, elevação, coisas<br />
visíveis e coisas estáveis – assumem significados muito diferentes.<br />
Vejamos: no que se refere ao bem (no sentido de bem supremo), em<br />
Platão, ele expressa, digamos assim, uma idéia reguladora do pensamento<br />
ético e da ação; já em Gregório, além de prescrever um caminho ético (pois<br />
indica a obrigação de um agir moral segundo os ditames da doutrina cristã),<br />
designa, em última instância, o próprio divino (tido como o juiz supremo de<br />
toda ação). No que diz respeito à elevação prescrita por Platão, ela tem um<br />
sentido prioritariamente gnosiológico, enquanto que, em Gregório, persiste<br />
sempre a conotação moral. Por kátharsis, Platão concebe uma forma de<br />
conter o arrebatamento das paixões ou as inclinações intensas<br />
da alma: afetivas e sensuais. Gregório, por sua vez, não fala propriamente<br />
de paixões da alma, mas da carne . É pela purificação da carne<br />
(através do batismo e pela observância dos mandamentos divinos) que o<br />
cristão se torna iluminado, e, assim, em condições de ver "a luz divina". Isso<br />
está claro, por exemplo, no elogio que Gregório fez ao seu confrade Basílio<br />
(em oração fúnebre dedicada ao amigo): ao dizer que Basílio "domesticou a<br />
carne pela Filosofia" 10 , ele se referia não propriamente à dimensão da<br />
sensibilidade humana, em termos gnosiológicos, mas aos impulsos afetivos<br />
10 Discours. XLIII, 10, 508 A 25, p. 136 - Discours 42-43. Introduction, texte critique traduction et<br />
notes par Jean Bernardi. Paris: Les Éditions du CERF, 1992.<br />
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Platonismo cristão? Que platonismo?<br />
da libido. Através da expressão (domesticar a carne), ele queria, por um<br />
lado, realçar um comportamento moral, por outro, exaltar a destinação<br />
espiritual e religiosa que o seu confrade deu à própria vida. Por carne, além<br />
da sexualidade, ele subentendia tudo o que era mundano, ou seja, tudo<br />
aquilo que, no domínio do cotidiano despertava os apetites afetivos e<br />
sensuais dos indivíduos. Aliás, o próprio conceito de cotidiano assume, em<br />
Gregório, um sentido negativo: "Eu considero a vida presente como uma<br />
tempestade e eu busco um rochedo (...) para me abrigar" 11 . O mesmo,<br />
porém, não se aplicava rigorosamente em relação ao corpo, tido por ele<br />
(sob o ponto de vista platônico) como o lugar da purificação da alma: "a<br />
partir do corpo (aconselhava Gregório) ocupa-te com a tua alma com<br />
predileção " 12 . Praticamente sob<br />
todos os aspectos, o corpo era tido por ele como um "elemento inferior",<br />
designado de a "miserável carne", que deveria forçosamente ser dominada<br />
pela alma.<br />
Outras expressões ditas por Gregório, por exemplo: a) é por causa do<br />
corpo que "o mundo daqui de baixo é o mundo das trevas"; b) é pelo corpo<br />
que "escoa o fluxo do devir"; c) é o corpo que "intercepta o conhecimento do<br />
verdadeiro" 13 ... são todas expressões de origem platônica, mas que não<br />
conservam rigorosamente a mesma mentalidade. A ascese platônica do que<br />
se vê (a kátharsis da corporeidade) em favor do que é estável (da alma),<br />
tem uma função libertadora distinta da idéia da remissão proposta por<br />
Gregório. A reminiscência platônica não comporta nem a idéia da culpa,<br />
nem a do pecado, tampouco qualquer transgressão moral, menos ainda a<br />
11 Discours, X, 1, 828 B 11-12, p. 318<br />
12 Discours, XX, 12, 1080 B 7-8 - Discours 20-23. Introduction, texte critique, traduction et notes<br />
par Justin Mossay et Guy Lafontaine, Paris: Les éditions du CERF, 1980, SC270.<br />
13 Discours, II, 16, 425 B 11, p. 112; Discours, XXVIII, 4, 29 C/ 32 A 13-14, p.108<br />
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Miguel Spinelli<br />
idéia de que é necessário livrar a alma das penas do Inferno, salvá-la da<br />
condenação pelo divino... A elevação fundamental da ascese platônica tem,<br />
como momento supremo, um exercício de concentração: aquele pelo qual a<br />
"alma filosófica" se afaz à meditação ou reflexão teórica, em busca da<br />
plenitude do conhecimento. É isto, com efeito, o que Platão recomenda às<br />
almas filosóficas: "... recomendo-lhes que se concentrem e se voltem para<br />
si, não confiando em nada mais do que em si mesmas... e que se<br />
persuadam de que as coisas, que são examinadas por meio de um<br />
intermediário qualquer, nada possuem de verdadeiro, pois pertencem ao<br />
gênero do sensível e do visível, enquanto que o que elas vêem pelos seus<br />
próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, invisível" 14 . Sob esses<br />
termos – visível e invisível – Platão contrapõe o sensível ao inteligível (ou<br />
melhor, a observação da aparência do que se vê, contra o exame atento do<br />
que não se vê, ou seja, "do que cada coisa é na sua essência" 15 ); Gregório,<br />
no entanto, sob esses mesmos termos, contrapõe o mundano ao<br />
sobrenatural (ou eterno)...<br />
Tanto nos Discursos de Gregório, quanto, em geral, na literatura<br />
religiosa dos primeiros eclesiásticos, a tendência dos conceitos ou das<br />
palavras filosóficas foi perder a sua intenção teórica e significação<br />
originárias. Elas passaram a não mais expressar intenções da cultura<br />
filosófica grega, mas da doutrina cristã. Por exemplo, a expressão platônica,<br />
as naturezas inteligíveis , com a qual ele designava<br />
pensamentos ou idéias , converteu-se, em Gregório, em<br />
naturezas espirituais, a ponto de serem concebidas como existentes de fato,<br />
14 PLATÃO. Fédon. 84 b<br />
15 "Que (as almas) não creiam enfim senão no próprio testemunho desde que tenham<br />
examinado bem o que cada coisa é na sua essência..." (PLATÃO. Fédon. 84 a-b).<br />
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Platonismo cristão? Que platonismo?<br />
vivendo numa esfera superior, próximos de Deus. Do mesmo modo, o<br />
mundo inteligível (o kósmos noêtós)... ele não mais diz respeito<br />
propriamente ao mundo das idéias, mas a um mundo que ele chama de<br />
inteligências espirituais...<br />
Ao compor filosoficamente, e sob vários aspectos, a inteligibilidade<br />
cristã, Gregório teve como propósito forçar as palavras dos filósofos gregos,<br />
por ele tidas como profanas, a se tornarem palavras santas ou inefáveis. A<br />
sua justificativa fora a seguinte: porque cabia a elas expressar o divino -, um termo com o qual ele aparenta conceber o mesmo que Platão,<br />
como sendo tudo aquilo "que não é visto pelos olhos, nem entendido pelos<br />
ouvidos, e nem teorizado pelo pensamento" 16 , mas é óbvio que tais palavras<br />
não têm o mesmo alcance das de Platão, visto que escondem uma outra<br />
mentalidade: aquela pela qual o divino diz respeito a um existente de fato.<br />
Ora, no que concerne a Platão, o divino não predica a existência de<br />
um ente real. Por ele, Platão indica, em um sentido amplo, um estágio além<br />
da percepção sensível, próprio do conhecimento racional. Nesse sentido, o<br />
divino é (segundo as palavras de Platão) "o que escapa à opinião" 17 , e<br />
corresponde, digamos assim, ao momento de excelência do pensar: aquele<br />
pelo qual a razão se concentra sobre si mesma, e assim fica completamente<br />
absorta na meditação. Trata-se de um estágio de elevação, próprio de quem<br />
se aplica ao estudo teórico e à pesquisa. Nesse sentido, divino é o<br />
momento indefectível da ciência, ou seja, da construção da inteligibilidade<br />
humana como necessidade de explicar o que quer que seja. Noutro sentido,<br />
o divino corresponde ao inteligível, isto é, a tudo aquilo que pertence à<br />
esfera do pensamento e do que é passível de ser compreendido<br />
16 Discours. XXVIII, 5, 32 B 4-5, p. 108<br />
17 PLATÃO. Fédon. 84 a<br />
Boletim do CPA, Campinas, nº 15, jan./jun. 2003 165
Miguel Spinelli<br />
ou explicado por ele. Por esse ponto de vista, o divino são as idéias.<br />
Enquanto tal, ele está intimamente relacionado às eîdos, e, portanto, a tudo<br />
aquilo que pode ser "visto" ou inteligido pelo pensamento. Ocorre que, das<br />
coisas, o pensamento se apropria das formas, isto é, de definições<br />
simbólicas racionalmente construídas. Por isso, o divino, em última<br />
instância, é o verdadeiro. É por ele que nasce o discurso, pelo qual se<br />
realiza a fusão do pensamento com a palavra, de tal modo que, como diz o<br />
próprio Platão, "pensamento e discurso" resultam na "mesma coisa", ou<br />
então, como antes dissera Parmênides, "pensar e ser é o mesmo" 18 .<br />
Platão está de acordo com Parmênides em que só há um caminho de<br />
verdade: aquele que funde o pensamento e a nomeação, ou que une a<br />
razão e o discurso (possível). Esse ponto de vista, porém, assimilado por<br />
Platão e por Parmênides, em nada difere do que vem subentendido no<br />
logos de Heráclito. Heráclito atribuíra a esse termo (de uso comum na<br />
literatura de Homero e de Hesíodo), um duplo significado: o da palavra ou<br />
discurso e o do pensamento ou razão. Essa dupla conotação, ele a<br />
concebeu pelo fato de constatar, por um lado, que o pensamento, sem o<br />
auxílio da palavra (ou do símbolo, em geral), não funciona (não opera); por<br />
outro, que o discurso, sem interiorizar em si mesmo o pensamento, é<br />
destituído de significado (não é portador de mensagem). Um, portanto, não<br />
se exerce sem o outro, de tal modo que é por essa identidade que a<br />
significação ou a mensagem se manifesta. Quer dizer, o discurso só tem<br />
sentido se for portador de pensamento, e as palavras só designam ou dizem<br />
alguma coisa se forem racionalmente proferidas. Deve haver, pois, uma<br />
íntima convergência entre pensamento, significado e discurso. Sobre isso,<br />
18 PLATÃO. Sofista. 263 e; DK 28 B 3.<br />
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Platonismo cristão? Que platonismo?<br />
todos concordam, inclusive o próprio Gregório, que diz: "Quando estão em<br />
questão as coisas divinas , é necessário, me parece, que as<br />
próprias designações e as aparências (formais do discurso) não sejam<br />
inconvenientes e indignas das coisas significadas..." 19 .<br />
De posse das palavras gregas, detentoras de uma inteligibilidade<br />
teórica específica, arraigadas dentro de um discurso com inteligibilidade<br />
própria, Gregório introduz nelas um outro significado. Ele as submete a uma<br />
recriação de sentidos, de tal modo que certos termos, precisos no contexto<br />
do discurso filosófico grego, são, digamos assim, decalcados pela sua<br />
tematização filosófica. É assim que ele recria a doutrina de Platão,<br />
convertendo-a em doutrina cristã, de tal modo que se torna impróprio<br />
atribuir-lhe o conceito de platonista. Afinal, ele não se interessa pelo estudo<br />
teórico da filosofia de Platão. Do mesmo modo, a sua tematização filosófica<br />
não se move a partir dos postulados platônicos, mas dos da doutrina cristã.<br />
O ponto de partida de seu estudo não é a doutrina de Platão, e sim a do<br />
Cristianismo, cujos pressupostos, bem ou mal, encontraram na terminologia<br />
platônica (disponível nas doutrinas filosóficas de seu tempo) um modo<br />
eficiente de se expressar.<br />
Enfim, tudo o que se atribui a Gregório sob o título de platonismo<br />
cristão 20 nada mais é do que um aproveitamento direcionado em vantagem<br />
19 Discours, IV, 118, 657 BC, 21-23, p. 284 - Discours 4-5. Contre Julien. Introduction, texte<br />
critique, traduction et notes par Jean Bernardi, Paris: Les éditions du CERF, 1983, SC309. Os<br />
parênteses foram acrescentados, em função do que segue: "Por isso é necessário se deter<br />
com o que há de mais belo ou, pelo menos, evitar o mais feio, de tal modo que seja capaz de<br />
agradar aos mais sábios sem prejudicar o entendimento da maioria" (Discours, IV, 118, 657<br />
BC, 24-26, p. 284). Deter-se com o que há de mais belo, não significa, todavia, restringir-se "à<br />
elegância literária, orgulho dos adeptos da filosofia grega" (Discours, XXV, 4, 1204 A 20-25, p.<br />
164).<br />
20 MORESCHINI, C.. "Il platonismo cristiano di Gregorio Nazianzeno", Anali della Scuola<br />
Normale Superiori di Pisa. 4, 1974, pp. 1347-1392<br />
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Miguel Spinelli<br />
do Cristianismo. Por força dessa submissão, a linguagem filosófica de<br />
Platão assume uma outra destinação teórica. Por isso, dizer, como diz<br />
Moreschini 21 , que Platão serve de parâmetro filosófico a Gregório ou a<br />
outros, resulta parcialmente verdadeiro, uma vez que Gregório, no caso,<br />
não tem por intenção buscar compreender a doutrina de Platão e o seu real<br />
significado. O que ele faz, em última instância, é uma translatio sentii (ou<br />
seja, uma translação de sentidos) pela qual o discurso teológico, servindose<br />
dos mesmos termos, veicula uma outra mensagem. O melhor exemplo<br />
dessa tranlatio pode ser constatado nas seguintes palavras de Gregório,<br />
com as quais ele se apresenta como um contraposto à Pythia: "aproxima-te<br />
das coisas sagradas (convida), dessa mesa mística e perto de mim, que<br />
preside aos ritos da divinização, para os quais conduzem a tua palavra e a<br />
tua purificação" 22 . Ora, quem ouve essas palavras de Gregório tem a<br />
impressão de estar ouvindo a palavra da Pythia (da sacerdotisa do templo<br />
de Delphos, que cuidava das coisas sagradas, dos ritos de divinização e de<br />
purificação). Gregório, curiosamente, fala como se fosse ela, serve-se<br />
inclusive das mesmas palavras, mas os significados que lhes impõe são<br />
completamente distintos: tais palavras são dotadas não só de um outro<br />
referencial ou intentio mentis, mas também, frente ao público, de um outro<br />
destino sedutor.<br />
21 Ao contrário do que diz MORESCHINI: "É a tradição que reinterpreta, segundo certos<br />
parâmetros da Filosofia platônica, algumas das mais importantes doutrinas do Cristianismo"<br />
(op. cit., p. 1351).<br />
22 Discours, XXV, 2, 1200 B 19-21, p. 160<br />
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