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No embalo do povão - Revista Metrópole

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22<br />

ant o n i o risério<br />

Diário de Piratininga<br />

Continuo em Sampa, trabalhan<strong>do</strong> e<br />

flanan<strong>do</strong>. Mas é claro que não deixo de pensar<br />

em nossa querida terrinha. E de fazer<br />

comparações, adaptar idéias, etc. Por exemplo:<br />

dizem que vão fazer aqui o trem-bala,<br />

ligan<strong>do</strong> São Paulo e o Rio de Janeiro. Ora,<br />

ora, por que não fazer, aí em Salva<strong>do</strong>r, o<br />

trem-mala? Seria um trem para despachar<br />

daí to<strong>do</strong>s os malas e todas as malas da cidade.<br />

O trem partiria de Salva<strong>do</strong>r, é claro.<br />

Mas com destino ignora<strong>do</strong>. E sem passagem<br />

de volta. Além disso, o trem-mala não só<br />

iria melhorar, em muito, a qualidade de vida<br />

na capital baiana, como representaria uma<br />

inovação, em termos mundiais, elevan<strong>do</strong><br />

ainda mais a proverbial capacidade criativa<br />

da província.<br />

Obras. Comentário de um amigo meu,<br />

sobre as obras <strong>do</strong> prefeito Gilberto Kassab,<br />

aqui em São Paulo, aplica-se à perfeição às<br />

obras <strong>do</strong> desprefeito João Henrique, em<br />

Salva<strong>do</strong>r: atrapalham tu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> estão<br />

sen<strong>do</strong> feitas – não resolvem nada depois<br />

de prontas.<br />

As obras de Kassab<br />

em São Paulo são<br />

como as de João<br />

Henrique em Salva<strong>do</strong>r:<br />

atrapalham tu<strong>do</strong> e não<br />

resolvem nada.<br />

Algumas frases de Delfim Netto são<br />

tão boas ou precisas que ficam gravadas na<br />

memória. Nunca me esqueço de que, por<br />

exemplo, ao saber que a constituição brasileira,<br />

aprovada em 1988, para orgulho<br />

e felicidade <strong>do</strong> velho Ulysses Guimarães,<br />

estava sen<strong>do</strong> chamada de “Constituição<br />

Cidadã”, ele não resistiu. Disse que seu<br />

nome deveria ser outro: “Ulysses no País<br />

das Maravilhas”. Agora, discutin<strong>do</strong> a atual<br />

conjuntura econômica brasileira, Delfim<br />

me sai com uma síntese rara e clara: “só há<br />

desenvolvimento quan<strong>do</strong> a solução de um<br />

problema deixa como resíduo pelo menos<br />

mais <strong>do</strong>is problemas”. <strong>No</strong>ssos atuais governantes<br />

baianos bem que poderiam meditar<br />

um pouco sobre isso. Afinal, são capazes de<br />

criar uns três ou quatro problemas, antes de<br />

ter resolvi<strong>do</strong> pelo menos um.<br />

Mas o desleixo, a negligência ou a incompetência<br />

– como queiram – não é apanágio<br />

nem monopólio da administração<br />

pública baiana. Ficamos saben<strong>do</strong>,<br />

agora, que o Banco Interamericano<br />

de Desenvolvimento (BID) destinou<br />

uma verba de US$ 100 milhões para<br />

obras de revitalização <strong>do</strong> centro de São<br />

Paulo. Uma puta grana. Mas, dessas<br />

cem milhas, a gestão Serra/Kassab só<br />

usou quatro milhões. Uma merreca.<br />

Por quê? A desculpa é a mesma de sempre,<br />

clichê surra<strong>do</strong> da incompetência<br />

administrativa: a turma passou to<strong>do</strong><br />

esse tempo a “preparar os projetos”...<br />

Quem quiser que conte outra.<br />

São Paulo é, realmente, uma cidade<br />

de para<strong>do</strong>xos. De uma parte,<br />

pode ser cosmopolita, radicalmente<br />

aberta para o novo, dada a cartadas<br />

de vanguarda. De outra, pode ser<br />

extremamente estreita, provinciana,<br />

conserva<strong>do</strong>ra. Em todas as dimensões<br />

da vida social e cultura. Uma<br />

cidade onde vea<strong>do</strong>s se assumem publicamente<br />

nos bares e calçadas <strong>do</strong>s<br />

Jardins. Mas onde, ao mesmo tempo<br />

– e especialmente em meio à classe<br />

média-média – reina o moralismo<br />

mais babaca.<br />

A Polícia Civil resolveu prestar<br />

uma homenagem ao público feminino,<br />

no Dia Internacional da Mulher,<br />

aqui em Sampa. Man<strong>do</strong>u para a rua<br />

nada menos <strong>do</strong> que 35 equipes, levan<strong>do</strong><br />

nas mãos 500 manda<strong>do</strong>s de<br />

prisão para homens que estavam sem<br />

pagar as devidas pensões alimentícias.<br />

A homenagem, que deveria ser espetacular,<br />

feita sob medida para a mídia,<br />

deu em fiasco. O motivo? Claro, o<br />

trânsito. Os guardinhas e seus respectivos<br />

manda<strong>do</strong>s judiciais ficaram<br />

encalacra<strong>do</strong>s nos congestionamentos<br />

da cidade. E, <strong>do</strong>s 500 previstos, só<br />

conseguiram prender 89 indivíduos<br />

useiros em dar calote nos próprios<br />

filhos.<br />

O naturalista francês Auguste de<br />

Saint-Hilaire, professor de botânica<br />

no Museu de História Natural de<br />

Paris, esteve aqui em São Paulo no<br />

já distante ano de 1819, antes mesmo que<br />

o então príncipe Pedro colocasse os pés na<br />

região, para, num <strong>do</strong>ce acaso, conhecer a<br />

sua querida Marquesa de Santos. O francês,<br />

como tantos outros viajantes que passaram<br />

pelo Brasil, naquela época, registrou por<br />

escrito suas impressões. Entre outras coisas,<br />

escreveu: “Não somente é encanta<strong>do</strong>ra a<br />

localização de São Paulo, como aí se respira<br />

um ar muito puro”. Já pensaram se o<br />

ilustre visitante – que veio dar aqui quan<strong>do</strong><br />

o duque de Luxemburgo foi nomea<strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r<br />

da França junto à corte de Dom<br />

João VI, então refugiada no Brasil – reencarnasse,<br />

baixan<strong>do</strong> hoje na capital paulis-<br />

ta, em dia de esta<strong>do</strong> de alerta pela sujeira<br />

<strong>do</strong> ar? Iria se arrepender <strong>do</strong> que escreveu.<br />

Em compensação, acertou em cheio numa<br />

profecia: observou que o Brasil começaria a<br />

se industrializar a partir de São Paulo.<br />

Deparei por acaso, outro dia, o nome<br />

da primeira mulher que dançou completamente<br />

nua em São Paulo: Sar Fahar.<br />

Uma egípcia. Ela despontava no palco <strong>do</strong><br />

cabaré Politeama, lugar chique freqüenta<strong>do</strong><br />

por grã-finos e boêmios, envolta<br />

numa tremenda capa de velu<strong>do</strong>.<br />

Cantava uma canção. E, de repente<br />

– como se lê na “Gazeta Magazine”<br />

de março de 1941 – “ante os olhos<br />

extasia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res, abria a<br />

capa de velu<strong>do</strong>, aparecen<strong>do</strong>, então,<br />

inteiramente nua, deslumbra<strong>do</strong>ra<br />

e <strong>do</strong>minante”. Mas aí uma curiosidade<br />

me assaltou: quem terá si<strong>do</strong>,<br />

mesmo, a primeira baiana que dançou<br />

completamente vestida?<br />

Leio nos jornais, aqui, que hábitos<br />

saudáveis podem ser nocivos<br />

à saúde. Era só o que faltava.<br />

Uma hora dessas, pelo andar da carruagem,<br />

vão acabar descobrin<strong>do</strong> que<br />

dieta ideal é, realmente, a minha.<br />

Já cheguei a consumir, à guisa de<br />

“café da manhã”, lambretas gratinadas<br />

com cerveja, por exemplo. E não<br />

costumo recusar uma feijoada entre<br />

as três e as quatro da madrugada.<br />

São Paulo, mais uma vez, acha-se<br />

em plena “muda”, para lembrar a<br />

palavra com que designamos as mudanças<br />

de plumagem <strong>do</strong>s pássaros.<br />

Isso já aconteceu em outros tempos.<br />

De início, isto aqui foi espaço pensa<strong>do</strong><br />

para a materialização <strong>do</strong> projeto<br />

utópico <strong>do</strong>s jesuítas: construir,<br />

nos trópicos brasílicos, por meio da<br />

conversão <strong>do</strong>s índios de Caiubi e Tibiriçá,<br />

uma sociedade inteiramente<br />

nova, cristã, teocrática, longe e livre<br />

da corrupção <strong>do</strong> homem branco.<br />

Não deu. São Paulo assumiu outra<br />

personalidade: virou arraial de<br />

sertanistas, núcleo mameluco, base<br />

para as expedições bandeirantes <strong>do</strong><br />

século 17. Quan<strong>do</strong> os bandeirantes<br />

aquietaram o facho, a cidade se converteu<br />

em “burgo de estudantes”,<br />

como a definiu Ernani Silva Bruno.<br />

Adiante, redimensionou-se na<br />

articulação de um vigoroso sistema<br />

industrial, autodefinin<strong>do</strong>-se como<br />

“a locomotiva <strong>do</strong> Brasil”. Hoje,<br />

uma nova identidade se desenha.<br />

Antonio Risério, 54, é antropólogo, poeta e escritor. antonio.riserio@revistametropole.com.br<br />

Uma identidade pós-industrial, globalizada.<br />

São Paulo se vê, mais e mais, como metrópole<br />

da informação. Cidade cibernáutica,<br />

digamos, num neologismo.<br />

Fiz uma breve viagem a Salva<strong>do</strong>r.<br />

Na ida, fui conversan<strong>do</strong> com o motoris-<br />

Como permitir a<br />

construção de um<br />

enorme shopping<br />

numa região de<br />

trânsito já satura<strong>do</strong>?<br />

ta de táxi que me levava ao aeroporto de<br />

Cumbica. Falamos disso e daquilo, até que<br />

o foco se fechou sobre o grande problema<br />

da vida paulistana hoje, a conversa que<br />

realmente interessa: trânsito e transporte.<br />

Ou, para falar de uma perspectiva mais ampla<br />

e precisa: a questão da mobilidade urbana.<br />

O motorista, eleitor de Marta Suplicy,<br />

justificou sua escolha. “Ela tem coragem de<br />

fazer o que precisa ser feito”. E o que precisa<br />

ser feito? – perguntei. “Pra começo de<br />

conversa, proibir a construção de edifício,<br />

só deixar fazer prédio novo em lugar mais<br />

afasta<strong>do</strong>, mais deserto. Essa rua aqui não<br />

está tranqüila? Pois é, se fizer seis prédios<br />

aqui, vira um inferno”, ele me respondeu.<br />

Concordei: se fizerem isso, não vamos ter<br />

só uma, mas sete ruas aqui. Dessa vez, foi<br />

ele quem perguntou: como assim? Simples,<br />

expliquei. “Cada prédio de 12 andares,<br />

com 4 apartamentos por andar, é uma rua<br />

com 48 casas, só que uma rua na vertical”.<br />

Ele gostou da explicação, assim como gostei<br />

de sua proposta. De volta a São Paulo,<br />

encontrei a sugestão daquele motorista na<br />

mídia, só que formulada por urbanistas e<br />

especialistas em trânsito, em jargão técnico:<br />

“congelar o ambiente construí<strong>do</strong>”.<br />

É um bom caminho. E é bom que os baianos<br />

prestem atenção nessas conversas.<br />

Porque Salva<strong>do</strong>r não perde por esperar.<br />

Está in<strong>do</strong> na mesma direção de caos urbano.<br />

Como permitir, por exemplo, a construção<br />

de um enorme shopping center<br />

numa região de trânsito já satura<strong>do</strong>, entre<br />

o Iguatemi e o Costa Azul?<br />

Sempre que an<strong>do</strong> pelas ruas de Sampa,<br />

me lembro de uma observação perfeita de<br />

Desmond Morris: uma cidade não é uma<br />

selva de pedra – uma cidade é um zoológico<br />

humano. A observação vale também,<br />

claro, para Salva<strong>do</strong>r. •<br />

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