No embalo do povão - Revista Metrópole
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ant o n i o risério<br />
Diário de Piratininga<br />
Continuo em Sampa, trabalhan<strong>do</strong> e<br />
flanan<strong>do</strong>. Mas é claro que não deixo de pensar<br />
em nossa querida terrinha. E de fazer<br />
comparações, adaptar idéias, etc. Por exemplo:<br />
dizem que vão fazer aqui o trem-bala,<br />
ligan<strong>do</strong> São Paulo e o Rio de Janeiro. Ora,<br />
ora, por que não fazer, aí em Salva<strong>do</strong>r, o<br />
trem-mala? Seria um trem para despachar<br />
daí to<strong>do</strong>s os malas e todas as malas da cidade.<br />
O trem partiria de Salva<strong>do</strong>r, é claro.<br />
Mas com destino ignora<strong>do</strong>. E sem passagem<br />
de volta. Além disso, o trem-mala não só<br />
iria melhorar, em muito, a qualidade de vida<br />
na capital baiana, como representaria uma<br />
inovação, em termos mundiais, elevan<strong>do</strong><br />
ainda mais a proverbial capacidade criativa<br />
da província.<br />
Obras. Comentário de um amigo meu,<br />
sobre as obras <strong>do</strong> prefeito Gilberto Kassab,<br />
aqui em São Paulo, aplica-se à perfeição às<br />
obras <strong>do</strong> desprefeito João Henrique, em<br />
Salva<strong>do</strong>r: atrapalham tu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> estão<br />
sen<strong>do</strong> feitas – não resolvem nada depois<br />
de prontas.<br />
As obras de Kassab<br />
em São Paulo são<br />
como as de João<br />
Henrique em Salva<strong>do</strong>r:<br />
atrapalham tu<strong>do</strong> e não<br />
resolvem nada.<br />
Algumas frases de Delfim Netto são<br />
tão boas ou precisas que ficam gravadas na<br />
memória. Nunca me esqueço de que, por<br />
exemplo, ao saber que a constituição brasileira,<br />
aprovada em 1988, para orgulho<br />
e felicidade <strong>do</strong> velho Ulysses Guimarães,<br />
estava sen<strong>do</strong> chamada de “Constituição<br />
Cidadã”, ele não resistiu. Disse que seu<br />
nome deveria ser outro: “Ulysses no País<br />
das Maravilhas”. Agora, discutin<strong>do</strong> a atual<br />
conjuntura econômica brasileira, Delfim<br />
me sai com uma síntese rara e clara: “só há<br />
desenvolvimento quan<strong>do</strong> a solução de um<br />
problema deixa como resíduo pelo menos<br />
mais <strong>do</strong>is problemas”. <strong>No</strong>ssos atuais governantes<br />
baianos bem que poderiam meditar<br />
um pouco sobre isso. Afinal, são capazes de<br />
criar uns três ou quatro problemas, antes de<br />
ter resolvi<strong>do</strong> pelo menos um.<br />
Mas o desleixo, a negligência ou a incompetência<br />
– como queiram – não é apanágio<br />
nem monopólio da administração<br />
pública baiana. Ficamos saben<strong>do</strong>,<br />
agora, que o Banco Interamericano<br />
de Desenvolvimento (BID) destinou<br />
uma verba de US$ 100 milhões para<br />
obras de revitalização <strong>do</strong> centro de São<br />
Paulo. Uma puta grana. Mas, dessas<br />
cem milhas, a gestão Serra/Kassab só<br />
usou quatro milhões. Uma merreca.<br />
Por quê? A desculpa é a mesma de sempre,<br />
clichê surra<strong>do</strong> da incompetência<br />
administrativa: a turma passou to<strong>do</strong><br />
esse tempo a “preparar os projetos”...<br />
Quem quiser que conte outra.<br />
São Paulo é, realmente, uma cidade<br />
de para<strong>do</strong>xos. De uma parte,<br />
pode ser cosmopolita, radicalmente<br />
aberta para o novo, dada a cartadas<br />
de vanguarda. De outra, pode ser<br />
extremamente estreita, provinciana,<br />
conserva<strong>do</strong>ra. Em todas as dimensões<br />
da vida social e cultura. Uma<br />
cidade onde vea<strong>do</strong>s se assumem publicamente<br />
nos bares e calçadas <strong>do</strong>s<br />
Jardins. Mas onde, ao mesmo tempo<br />
– e especialmente em meio à classe<br />
média-média – reina o moralismo<br />
mais babaca.<br />
A Polícia Civil resolveu prestar<br />
uma homenagem ao público feminino,<br />
no Dia Internacional da Mulher,<br />
aqui em Sampa. Man<strong>do</strong>u para a rua<br />
nada menos <strong>do</strong> que 35 equipes, levan<strong>do</strong><br />
nas mãos 500 manda<strong>do</strong>s de<br />
prisão para homens que estavam sem<br />
pagar as devidas pensões alimentícias.<br />
A homenagem, que deveria ser espetacular,<br />
feita sob medida para a mídia,<br />
deu em fiasco. O motivo? Claro, o<br />
trânsito. Os guardinhas e seus respectivos<br />
manda<strong>do</strong>s judiciais ficaram<br />
encalacra<strong>do</strong>s nos congestionamentos<br />
da cidade. E, <strong>do</strong>s 500 previstos, só<br />
conseguiram prender 89 indivíduos<br />
useiros em dar calote nos próprios<br />
filhos.<br />
O naturalista francês Auguste de<br />
Saint-Hilaire, professor de botânica<br />
no Museu de História Natural de<br />
Paris, esteve aqui em São Paulo no<br />
já distante ano de 1819, antes mesmo que<br />
o então príncipe Pedro colocasse os pés na<br />
região, para, num <strong>do</strong>ce acaso, conhecer a<br />
sua querida Marquesa de Santos. O francês,<br />
como tantos outros viajantes que passaram<br />
pelo Brasil, naquela época, registrou por<br />
escrito suas impressões. Entre outras coisas,<br />
escreveu: “Não somente é encanta<strong>do</strong>ra a<br />
localização de São Paulo, como aí se respira<br />
um ar muito puro”. Já pensaram se o<br />
ilustre visitante – que veio dar aqui quan<strong>do</strong><br />
o duque de Luxemburgo foi nomea<strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r<br />
da França junto à corte de Dom<br />
João VI, então refugiada no Brasil – reencarnasse,<br />
baixan<strong>do</strong> hoje na capital paulis-<br />
ta, em dia de esta<strong>do</strong> de alerta pela sujeira<br />
<strong>do</strong> ar? Iria se arrepender <strong>do</strong> que escreveu.<br />
Em compensação, acertou em cheio numa<br />
profecia: observou que o Brasil começaria a<br />
se industrializar a partir de São Paulo.<br />
Deparei por acaso, outro dia, o nome<br />
da primeira mulher que dançou completamente<br />
nua em São Paulo: Sar Fahar.<br />
Uma egípcia. Ela despontava no palco <strong>do</strong><br />
cabaré Politeama, lugar chique freqüenta<strong>do</strong><br />
por grã-finos e boêmios, envolta<br />
numa tremenda capa de velu<strong>do</strong>.<br />
Cantava uma canção. E, de repente<br />
– como se lê na “Gazeta Magazine”<br />
de março de 1941 – “ante os olhos<br />
extasia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res, abria a<br />
capa de velu<strong>do</strong>, aparecen<strong>do</strong>, então,<br />
inteiramente nua, deslumbra<strong>do</strong>ra<br />
e <strong>do</strong>minante”. Mas aí uma curiosidade<br />
me assaltou: quem terá si<strong>do</strong>,<br />
mesmo, a primeira baiana que dançou<br />
completamente vestida?<br />
Leio nos jornais, aqui, que hábitos<br />
saudáveis podem ser nocivos<br />
à saúde. Era só o que faltava.<br />
Uma hora dessas, pelo andar da carruagem,<br />
vão acabar descobrin<strong>do</strong> que<br />
dieta ideal é, realmente, a minha.<br />
Já cheguei a consumir, à guisa de<br />
“café da manhã”, lambretas gratinadas<br />
com cerveja, por exemplo. E não<br />
costumo recusar uma feijoada entre<br />
as três e as quatro da madrugada.<br />
São Paulo, mais uma vez, acha-se<br />
em plena “muda”, para lembrar a<br />
palavra com que designamos as mudanças<br />
de plumagem <strong>do</strong>s pássaros.<br />
Isso já aconteceu em outros tempos.<br />
De início, isto aqui foi espaço pensa<strong>do</strong><br />
para a materialização <strong>do</strong> projeto<br />
utópico <strong>do</strong>s jesuítas: construir,<br />
nos trópicos brasílicos, por meio da<br />
conversão <strong>do</strong>s índios de Caiubi e Tibiriçá,<br />
uma sociedade inteiramente<br />
nova, cristã, teocrática, longe e livre<br />
da corrupção <strong>do</strong> homem branco.<br />
Não deu. São Paulo assumiu outra<br />
personalidade: virou arraial de<br />
sertanistas, núcleo mameluco, base<br />
para as expedições bandeirantes <strong>do</strong><br />
século 17. Quan<strong>do</strong> os bandeirantes<br />
aquietaram o facho, a cidade se converteu<br />
em “burgo de estudantes”,<br />
como a definiu Ernani Silva Bruno.<br />
Adiante, redimensionou-se na<br />
articulação de um vigoroso sistema<br />
industrial, autodefinin<strong>do</strong>-se como<br />
“a locomotiva <strong>do</strong> Brasil”. Hoje,<br />
uma nova identidade se desenha.<br />
Antonio Risério, 54, é antropólogo, poeta e escritor. antonio.riserio@revistametropole.com.br<br />
Uma identidade pós-industrial, globalizada.<br />
São Paulo se vê, mais e mais, como metrópole<br />
da informação. Cidade cibernáutica,<br />
digamos, num neologismo.<br />
Fiz uma breve viagem a Salva<strong>do</strong>r.<br />
Na ida, fui conversan<strong>do</strong> com o motoris-<br />
Como permitir a<br />
construção de um<br />
enorme shopping<br />
numa região de<br />
trânsito já satura<strong>do</strong>?<br />
ta de táxi que me levava ao aeroporto de<br />
Cumbica. Falamos disso e daquilo, até que<br />
o foco se fechou sobre o grande problema<br />
da vida paulistana hoje, a conversa que<br />
realmente interessa: trânsito e transporte.<br />
Ou, para falar de uma perspectiva mais ampla<br />
e precisa: a questão da mobilidade urbana.<br />
O motorista, eleitor de Marta Suplicy,<br />
justificou sua escolha. “Ela tem coragem de<br />
fazer o que precisa ser feito”. E o que precisa<br />
ser feito? – perguntei. “Pra começo de<br />
conversa, proibir a construção de edifício,<br />
só deixar fazer prédio novo em lugar mais<br />
afasta<strong>do</strong>, mais deserto. Essa rua aqui não<br />
está tranqüila? Pois é, se fizer seis prédios<br />
aqui, vira um inferno”, ele me respondeu.<br />
Concordei: se fizerem isso, não vamos ter<br />
só uma, mas sete ruas aqui. Dessa vez, foi<br />
ele quem perguntou: como assim? Simples,<br />
expliquei. “Cada prédio de 12 andares,<br />
com 4 apartamentos por andar, é uma rua<br />
com 48 casas, só que uma rua na vertical”.<br />
Ele gostou da explicação, assim como gostei<br />
de sua proposta. De volta a São Paulo,<br />
encontrei a sugestão daquele motorista na<br />
mídia, só que formulada por urbanistas e<br />
especialistas em trânsito, em jargão técnico:<br />
“congelar o ambiente construí<strong>do</strong>”.<br />
É um bom caminho. E é bom que os baianos<br />
prestem atenção nessas conversas.<br />
Porque Salva<strong>do</strong>r não perde por esperar.<br />
Está in<strong>do</strong> na mesma direção de caos urbano.<br />
Como permitir, por exemplo, a construção<br />
de um enorme shopping center<br />
numa região de trânsito já satura<strong>do</strong>, entre<br />
o Iguatemi e o Costa Azul?<br />
Sempre que an<strong>do</strong> pelas ruas de Sampa,<br />
me lembro de uma observação perfeita de<br />
Desmond Morris: uma cidade não é uma<br />
selva de pedra – uma cidade é um zoológico<br />
humano. A observação vale também,<br />
claro, para Salva<strong>do</strong>r. •<br />
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