No embalo do povão - Revista Metrópole
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MK – Agora, a campanha... Naquela época<br />
não existia televisão, como era a campanha?<br />
Rádio era importante?<br />
– Rádio era importantíssimo. Televisão<br />
começou a existir.<br />
MK – Você tem algum arrependimento de<br />
não ter transigi<strong>do</strong> com o cardeal? Você podia ter<br />
negocia<strong>do</strong>, alguma coisa assim.<br />
– Não, não tenho...<br />
MK – Não é de seu temperamento, né?<br />
– Porque, caso contrário, eu me<br />
enfraqueceria por dentro. O negócio da alma<br />
da gente é perigoso, né? Ou a gente é fiel a<br />
ela ou em determina<strong>do</strong> instante ela acha um<br />
mecanismo qualquer de nos enfraquecer.<br />
Não, naquela ocasião eu fiquei até indigna<strong>do</strong><br />
porque, primeiro, era uma posição intolerante,<br />
não era a Igreja Católica. E o velhinho<br />
admirável, não posso me esquecer <strong>do</strong> gesto<br />
dele, <strong>do</strong> João XXIII, Mário, um gesto lin<strong>do</strong>.<br />
Eu estava em uma excursão com cinco ou<br />
seis membros <strong>do</strong> Congresso Nacional e o<br />
embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Vaticano nos convi<strong>do</strong>u para<br />
uma visita ao Papa. E há um protocolo. Você<br />
já esteve por lá e sabe. E nós estávamos lá.<br />
Yolanda estava ao meu la<strong>do</strong>, Chico estava<br />
na barriga de Yolanda, já ia com sete meses<br />
mais ou menos. E, no protocolo, as mulheres,<br />
quan<strong>do</strong> o papa chega, devem ficar de joelhos.<br />
E ele entrou, baixinho, gordinho, tipicamente<br />
um pastor de camponeses. E aí ele viu o gesto<br />
de Yolanda começan<strong>do</strong> a se ajoelhar. Ele deu<br />
uma carreira, ele veio corren<strong>do</strong> assim, ele<br />
segurou-a pelos cotovelos e disse: “Não, não,<br />
não, minha filha, não, não, não” (risos).<br />
MK – (risos) Que fantástico.<br />
– Segurou-a pelos cotovelos, saben<strong>do</strong><br />
que era uma coisa complicada ela com sete<br />
meses de gravidez ajoelhar-se. Então, o papa<br />
disse: “O que é que você está desejan<strong>do</strong>?”<br />
E ela respondeu: “Olha, eu tenho três filhas<br />
e um filho, se puder, eu gostaria de ter mais<br />
um filho”. “E qual seria o nome?”. Ela disse:<br />
“Francisco”. Aí ele botou a mão na barriga de<br />
Yolanda e disse: “Eu te abençôo, Francisco”.<br />
Um velho admirável. Eu tirei uma fotografia<br />
disso, né? Do nosso encontro, de forma que<br />
quan<strong>do</strong> o cardeal lançou aquele negócio,<br />
eu botei essa fotografia onde eu pude botar.<br />
Imprimi-a em preto e branco (risos), mas não<br />
foi suficiente para a minha vitória.<br />
MK – João Goulart, como é a figura João<br />
Goulart?<br />
– João Goulart era um homem inteligente,<br />
arguto, com uma capacidade de dar-se muito<br />
grande, muito generoso, com uma convicção<br />
íntima de ser digno. À rigor, a relação dele<br />
era com Getúlio. O Getúlio a<strong>do</strong>rava o Jango,<br />
não é?<br />
MK – Mas diziam que ele não era muito<br />
chega<strong>do</strong> ao exercício <strong>do</strong> poder, é verdade isso?<br />
– Não, eu acho que ele gostava <strong>do</strong> poder.<br />
Até pelo fato mesmo de que na própria vida<br />
privada ele exercia o poder. E em São Borja ele<br />
era muito forte, praticamente mantinha São<br />
Borja com uma força gigantesca. Quan<strong>do</strong> ele<br />
chega ao poder, ele retoma as principais ações<br />
deixadas pelo Getúlio. A política externa que<br />
o Jango manteve é uma coisa muito bonita. A<br />
crise de Cuba em 1962...<br />
MK – A <strong>do</strong>s mísseis de Cuba, não é?<br />
– A carta de Jango para Kennedy<br />
é decisiva e bonita, excelente. Essa<br />
carta <strong>do</strong> Brasil para o presidente <strong>do</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, dizen<strong>do</strong> que o nosso<br />
compromisso, o compromisso <strong>do</strong>s<br />
acor<strong>do</strong>s da América <strong>do</strong> Sul, <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Rio de Janeiro, não admitia a<br />
intervenção e que o Brasil não apoiaria a<br />
invasão cubana.<br />
“A política externa que o<br />
Jango manteve é uma coisa<br />
muito bonita”<br />
MK – Agora ele sofreu muito o fato de ter<br />
vivi<strong>do</strong> o auge da Guerra Fria, não?<br />
– Ah, sim...<br />
MK – Teve uma influência enorme,<br />
não é?<br />
– Sem dúvida. E ele recebeu o grosso da<br />
inflação tremenda, né? Não se fez o resgate<br />
<strong>do</strong> Jango ainda. Ele fez um <strong>do</strong>s movimentos<br />
políticos mais inteligentes, mais tenazes,<br />
que a história política <strong>do</strong> Brasil conhece.<br />
Ele era também muito bom de voto. Tanto<br />
é verdade que, como candidato a vicepresidente<br />
<strong>do</strong> Juscelino, teve mais de <strong>do</strong>is<br />
milhões de votos à frente <strong>do</strong> Juscelino.<br />
MK – Naquela época a votação era<br />
independente, não é?<br />
– Era independente, votava-se no<br />
presidente e votava-se no vice-presidente.<br />
A partir de janeiro de 63, ele se torna<br />
presidente da República com to<strong>do</strong>s os<br />
poderes. Mas, aí, enfrentou uma posição<br />
criminosa <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
O Jango, quan<strong>do</strong> assumiu o governo, em<br />
setembro de 1961, encontrou uma dívida<br />
de US$ 3,5 bilhões. Então, ele levou para o<br />
Ministério da Fazenda o Santiago Dantas,<br />
que era uma pessoa admirável, meu amigo.<br />
E ele não consegue nada porque a posição<br />
<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s foi inclemente, o<br />
cre<strong>do</strong>r queren<strong>do</strong> levar o deve<strong>do</strong>r à falência.<br />
<strong>No</strong> entanto, o Jango faz a consolidação da<br />
Petrobras. Eu me lembro <strong>do</strong> dia em que<br />
ele me telefonou: “Waldir, estão prontos<br />
os atos pelo monopólio <strong>do</strong> refino e das<br />
refinarias”?<br />
MK – Ah, sim, eu bem me lembro,<br />
claro, claro.<br />
– Eu disse “está pronto, presidente”.<br />
O Jango não tinha horário. Um dia ele<br />
me telefonou por volta das duas horas<br />
da madrugada e perguntou: “Que<br />
é que tu estás fazen<strong>do</strong>?” E eu disse:<br />
“Ora, presidente, estou <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>”<br />
(risos), o senhor me acor<strong>do</strong>u”. Havia<br />
um telefone vermelho na cabeceira de<br />
cada ministro, eu era consultor geral<br />
da República, tinha grau de ministro.<br />
Então, ele me falou: “Será que dava para a<br />
gente conversar amanhã na fazenda lá em<br />
Goiás? Eu man<strong>do</strong> te pegar aí, às 7 horas”.<br />
“Dá, claro, presidente, que dá” (risos).<br />
Isso foi novembro de 1963, e aí fez-se o<br />
decreto <strong>do</strong> monopólio das importações.<br />
De mo<strong>do</strong> que ele fez esse enfrentamento,<br />
fez enfrentamentos muito bonitos.<br />
Caiu por isso.<br />
COOPERPHOTO<br />
“Tancre<strong>do</strong> Neves<br />
não transigiu em 64.<br />
Ele ficou até o último<br />
instante”<br />
MK – Até hoje, você falou, é verdade, não<br />
se resgatou a participação <strong>do</strong> Presidente...<br />
– É, só dão realce aos aspectos<br />
que são absolutamente secundários.<br />
Ele era um homem de diálogo muito<br />
grande, mas firme em todas as decisões.<br />
O Darcy Ribeiro tem uma frase muito<br />
boa que define muito bem o seu estilo:<br />
“O Jango caiu por todas as suas virtudes”.<br />
Caiu por isso, pela defesa <strong>do</strong>s interesses<br />
nacionais.<br />
MK – Agora, Tancre<strong>do</strong> Neves, como é que<br />
foi sua relação com ele? Você se aproximou de<br />
Tancre<strong>do</strong>?<br />
– Eu tive uma boa aproximação com<br />
Tancre<strong>do</strong> na Câmara, entre 1959 e 63.<br />
Tancre<strong>do</strong> era uma pessoa muito inteligente,<br />
muito astuta também. E valente. Tancre<strong>do</strong><br />
era uma pessoa com coragem, sem nenhum<br />
estardalhaço, mas com coragem. Tancre<strong>do</strong><br />
não transigiu em 64. Não transigiu em<br />
momento nenhum. Ele ficou até o último<br />
instante. Ele estava no aeroporto de<br />
Brasília, estavam as autoridades militares,<br />
e nós to<strong>do</strong>s. Tancre<strong>do</strong> estava lá. Eu, Darcy<br />
(Ribeiro), Almino (Afonso), Doutel (de<br />
Andrade). Então, a decisão ali, nossa, de<br />
nós to<strong>do</strong>s, em Brasília, naquela tarde de 1º<br />
de abril de 1964, foi que o presidente fosse<br />
para o Rio Grande. “Presidente, deixe isso<br />
aqui, vai para o Rio Grande. E vamos ver o<br />
que vai ocorrer. Aqui, qual é a nossa missão?<br />
Impedir que se dê o golpe parlamentar. Aqui<br />
nós vamos cuidar disto”, foi isso que falamos<br />
para o Jango. Então ele decidiu ir e foi.<br />
Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s saíram, eu e o Darcy Ribeiro<br />
fomos para as televisões que tínhamos<br />
requisita<strong>do</strong> para a rede da legalidade, em<br />
Brasília. Chegamos lá, e estava falan<strong>do</strong> o<br />
arcebispo José Nilton, de Brasília. Quan<strong>do</strong><br />
ele terminou, eu disse: “Olha aqui, desta vez,<br />
não vai haver renúncia. Desta vez, não vai<br />
haver suicídio. Desta vez, nós vamos manter<br />
as estruturas democráticas deste país. Vamos<br />
vencer e vamos construir uma grande nação”.<br />
Saí dali e fui para o aeroporto. Quan<strong>do</strong><br />
cheguei, o avião não tinha decola<strong>do</strong>. Eles<br />
sabotaram as turbinas <strong>do</strong> Corona<strong>do</strong> (avião).<br />
Então, como esse avião não saiu, Jango<br />
pegou um aviãozinho bimotor, um Avro,<br />
da Presidência da República. Foi justamente<br />
aí que ocorreu o golpe de Esta<strong>do</strong> aqui, um<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Metrópole</strong> - abril de 2008<br />
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