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LEMINSKI SEM LEME

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<strong>LEMINSKI</strong> <strong>SEM</strong> <strong>LEME</strong><br />

Wilton Cardoso<br />

Goiânia, junho de 2001.


A<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Zezinha, André e Wé,<br />

pelo carinho e pelo apoio — e por suportarem a<br />

chatíssima persona do escrevinhador;<br />

Meus colegas de estudo,<br />

companheiros de inquietudes mundanas e intelectuais<br />

que, sem dúvida, colaboraram para este trabalho;<br />

Goiandira,<br />

(péssima carcereira) cuja cumplicidade pode render-lhe a<br />

acusação de facilitação de fuga.<br />

2


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 5<br />

UM TEXTO-MOR CEGO .................................................................................... 7<br />

O PAR QUE ME PARECE................................................................................. 16<br />

FRAGMENTO 1.......................................................................................................... 31<br />

AIS. OU MENOS .................................................................................................. 35<br />

FRAGMENTO 2.......................................................................................................... 47<br />

DOR, AMOR, HUMOR. ..................................................................................... 50<br />

FRAGMENTO 3.......................................................................................................... 61<br />

CAPRICHO, RELAXO........................................................................................ 64<br />

FRAGMENTO 4.......................................................................................................... 78<br />

ATÉ ELA ................................................................................................................. 80<br />

MÁQUINAS LÍQUIDAS .................................................................................... 94<br />

UM METRO DE GRITO................................................................................... 111<br />

FRAGMENTO 5: Nós ............................................................................................... 119<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 131<br />

3


já me matei faz muito tempo<br />

me matei quando o tempo era escasso<br />

e o que havia entre o tempo e o espaço<br />

era o de sempre<br />

nunca mesmo o sempre passo<br />

morrer faz bem à vista e ao baço<br />

melhora o ritmo do pulso<br />

e clareia a alma<br />

morrer de vez em quando<br />

é a única coisa que me acalma.<br />

(Leminski, 1994a).<br />

Mas não precisamos saber pra onde vamos<br />

Nós só precisamos ir<br />

(Gessinger, 1991a).<br />

4


APRESENTAÇÃO<br />

Esta obra, originalmente uma dissertação de mestrado, é uma leitura da poesia<br />

de Paulo Leminski e se organiza por ensaios e textos-fragmentos. Os primeiros são a<br />

crítica literária propriamente dita, cuidando do corpo a corpo com os poemas e das<br />

investidas teóricas mais abstratas — na falta de termo melhor. Já os fragmentos<br />

funcionam como uma parada para pensar a leitura e suas opções teóricas e<br />

metodológicas: são uma espécie de auto-avaliação de rumos.<br />

Os ensaios, embora interligados transversalmente, podem ser lidos de maneira<br />

independente uns dos outros, pois são poucas as referências recíprocas entre eles:<br />

- Os dois primeiros, “Um texto-mor cego” e “O par que me parece”, tratam<br />

principalmente do problema da expressão da subjetividade e de como ele é<br />

(des)tratado na obra de Leminski;<br />

- Os quatro ensaios que se seguem, “Ais. Ou menos”, “Dor, amor, humor”,<br />

“Capricho, relaxo” e “Até ela” tratam, sem esquecer do problema da expressão<br />

subjetiva, de outras questões, tais como a metalinguagem e a relação dos poemas<br />

com a significância, os afetos (dor, amor) e a estruturalidade do poema. Tratam<br />

também do que poderíamos chamar de estratégias construtivas de Leminski, tais<br />

como o humor, a errância, o pensamento-poesia e sua abertura para o caos, o<br />

acaso e o movimento;<br />

- Os dois últimos ensaios tratam da relação entre sua poesia e a sociedade<br />

contemporânea.<br />

Duas características atravessam esta obra: a obsessão pela expressão da<br />

subjetividade e a aproximação de Leminski com a filosofia de Gilles Deleuze e Felix<br />

Guatarri.<br />

Quanto à subjetividade e seus quiproquós, ela serve de mote para se chegar às<br />

outras questões (já referidas acima), tão importantes quanto ela. Mas devo confessar que<br />

se trata de uma obsessão pessoal, alertando que não é um mal solitário: a sociedade<br />

contemporânea também o sofre e o próprio Leminski padecia desta obstinação, é claro<br />

que de modo não psicologizante.<br />

Já a aproximação entre Leminski e Deleuze & Guatarri não tem o objetivo de<br />

embasar a análise crítica dos poemas na teoria dos filósofos. É uma aproximação<br />

mesmo, como entre dois campos de energia que se interagem. Também não foi preciso<br />

malabarismos retóricos para juntá-los. Em primeiro lugar porque o pensamento de<br />

Deleuze e Guatarri (principalmente o Antiédipo e Mil Platôs que são as obras às quais<br />

5


ecorro) pode ser lido como literatura, enquanto que a poesia de Leminski, em<br />

contrapartida, tem muito de pensamento. Em segundo lugar, porque as duas obras<br />

confluem em seu espírito contracultural e antiestruturalista. Portanto, nada mais<br />

‘natural’ que colocá-los lado a lado.<br />

6


UM TEXTO-MOR CEGO<br />

DISTÂNCIAS MÍNIMAS<br />

um texto morcego<br />

se guia por ecos<br />

um texto texto cego<br />

um eco anti anti anti antigo<br />

um grito na parede rede rede<br />

volta verde verde verde<br />

com mim com com consigo<br />

ouvir é ver se se se se se<br />

ou se se me lhe te sigo?<br />

(Leminski, 1987a, p. 20).<br />

O poema acima começa com uma afirmação que é também uma explicação:<br />

um texto morcego se guia por ecos. A palavra morcego é, ao mesmo tempo um<br />

substantivo e um adjetivo (tal como o homem-morcego), designando uma qualidade do<br />

texto, mas também, como substantivo, substituindo-o, estabelecendo aí uma relação<br />

metafórica mais direta, de identidade: o texto é o morcego: identidade reforçada no<br />

plano sonoro pela rima entre “texto” e “morcego”. A partir desta analogia vai-se<br />

estabelecendo uma sucessão de permutas entre as qualidades do texto e as do morcego:<br />

a cegueira do último é atribuída ao primeiro que, tal como o mamífero voador, se<br />

orienta agora pelo som de seu próprio grito refletido nas paredes: o eco.<br />

Estas qualidades do morcego transpostas ao texto sugerem, em primeiro lugar,<br />

os problemas da construção (e da leitura: re-construção) do poema, retomando as<br />

inquietações de Jakobson (1971), sobre o problema dos paralelismos e seu significado<br />

para a poesia. Os textos poéticos funcionam como um sistema de ressonâncias em que<br />

os elementos semelhantes (ecos) se alternam e se transformam ao mesmo tempo:<br />

projeção do eixo das semelhanças (alternância) no eixo dos sintagmas (tranformação).<br />

Diríamos mesmo que realiza isto, pois o jogo de ecos, rimas e ressonâncias<br />

faz/concretiza o que é também dito/teorizado.<br />

Um segundo aspecto que a analogia sugere é a da relação de um texto com o<br />

seu contexto: seja sócio-econômico, seja literário, quer dizer, em face dos outros textos.<br />

O único meio de orientação de que dispõe o morcego é o seu radar que lhe dá uma<br />

posição sempre muito relativa, pois depende do que está próximo, à sua volta. Não há<br />

um satélite por cima do ambiente ao qual o texto/morcego poderia recorrer, tendo assim<br />

uma ‘visão’ do todo: não há esta possibilidade de transcender à sua relatividade.<br />

Também ao morcego não socorre o sentido da visão, mesmo sendo relativa, quer dizer,<br />

mesmo sendo apenas um ponto de vista seu. A visão, mesmo quando mono-focal dá,<br />

não obstante, uma amplitude maior do que um radar, possibilitando, um ponto de vista<br />

7


menos localizado e mais amplo: o horizonte está aberto ao olhar, mas não aos ouvidos.<br />

Além do mais, o olhar no espelho permite um ‘ver-se’ com exatidão (imagem),<br />

possibilitando que o sujeito se torne uma ponte para a transcendência ou a própria<br />

transcendência (caso do romantismo). O texto de que se fala está, portanto, sempre<br />

dependente de seu tempo e de seu espaço para se orientar, fechando a possibilidade de<br />

uma visão transcendente, já que opera por ‘distâncias mínimas’ e delas depende para<br />

sobreviver.<br />

O terceiro verso reforça (ou explicita) este dado: “um texto texto cego”. A<br />

repetição das palavras remete ao tatear de um cego, mais especificamente ao tateio de<br />

um radar, portanto auditivo, mas que, em todo caso precisa de objetos próximos para se<br />

orientar. A palavra ‘cego’, rimando com ‘ecos’ e ‘morcego’, trata de reafirmar ainda<br />

mais as limitações do texto, além de explicitar um recurso muito utilizado por Leminski<br />

em seus poemas (e neste em particular), que é a ocultação de palavras dentro de outras,<br />

multiplicando o sentido do texto: assim, ‘morcego’ já contém ‘cego’ e ambos os semas<br />

contêm ‘ego’. A partir daí se estabelece uma analogia (talvez seja melhor dizer<br />

superposição) entre o texto e o ego, a palavra e a consciência, a linguagem e o sujeito,<br />

todos já portadores da qualidade da cegueira. Qualidade que lhes é inata, pois inscrita no<br />

próprio corpo (da palavra) pelo recurso do anagrama — tomando esta figura num<br />

sentido bem amplo de ocultação de palavras dentro de outras ou numa frase.<br />

O quarto verso (“um eco anti anti anti antigo”) expõe um paradoxo, pois num<br />

sentido, o tateio do eco/ego (outra superposição), de reverberação em reverberação leva<br />

ao antigo, que remete à cultura ou à tradição que só pode ser transmitida de modo<br />

indireto e deformado pela última geração, contemporânea ao texto/sujeito, isto é, só<br />

pode ser absorvida num espaço-tempo circunstancial. Outro sentido, decorrente do<br />

procedimento anagramático, é a leitura como um eco anti-antigo, isto é, novo,<br />

contemporâneo. Pior (ou melhor): se considerarmos cada ‘anti’ como uma negação,<br />

forma-se uma cadeia que se diz e desdiz continuamente: novo-antigo-novo-antigo...<br />

Este paradoxo é o da própria cultura que é ao mesmo tempo um estoque e um fluxo; um<br />

passado que sempre se presentifica e se projeta adiante, continuamente. Estávamos<br />

falando de indivíduo, sujeito, mas aqui já falamos de uma outra coisa, a saber, de uma<br />

coletividade ou pluralidade encerrada sob os nomes de tradição e cultura. O eco, o grito<br />

que retorna não o faz do mesmo modo que saiu: ele volta prenhe de cultura, o que era de<br />

se esperar já que salão em que se move o texto-morcego é o seu contexto: chamemoslhe<br />

provisoriamente de cultura.<br />

Mas há mais confusões para nos enredarmos, pois todo o poema não tem<br />

pontuação e um dos sentidos possíveis é a identidade entre o texto-morcego (que é<br />

também o sujeito, o ego) e o eco: o período poderia ser reescrito assim: Um texto texto<br />

cego, um eco anti anti antigo, um grito na parede rede rede, volta verde verde verde.<br />

Aqui se instaura uma confusão entre o sujeito, o verbo e o predicado. Eis as frases<br />

pacificadoras que a lógica discursiva procuraria no poema: O texto/ego (sujeito) grita<br />

8


(verbo) para a cultura (predicado); A cultura (sujeito) ecoa/grita de volta (verbo) para o<br />

texto/ego(predicado). O procedimento de embutir a cultura no eco, chamando-o de<br />

antigo seria uma elipse aceitável, pois saberíamos que o denotativo de “eco antigo” é<br />

“cultura antiga”. Mas, com a ausência de pontuação, o poema possibilita a identificação<br />

do texto com o eco, do sujeito com a ação. Esta ação não é o grito do texto-morcego,<br />

mas o eco da cultura, portanto uma ação de outro sujeito, estabelecendo-se uma<br />

confusão entre texto-ego e caverna-cultura, por um lado e, por outro, entre estes dois<br />

sujeitos e suas respectivas ações: gritos e ecos. O texto é então o eco da cultura? Sim,<br />

mas ao mesmo tempo é ele quem emite o grito e é ele que tem o radar (o ego, a<br />

consciência, o mecanismo de auto-localização) para se situar na rede textual da cultura.<br />

Há duas confusões então: a de dois sujeitos, indivíduo e cultura; e a de duas classes<br />

gramaticais, o substantivo e o verbo. Esta última se desdobra numa confusão sintática,<br />

pois não se distingue no poema a ação de seus agentes ativo (sujeito) e passivo<br />

(predicado). Esta última confusão talvez seja mais grave, pois indica que o sujeito é a<br />

ação, que o texto é o eco (que é, por sua vez, seu próprio grito), o que mina a<br />

estabilidade frasal sujeito-verbo-objeto e também a estabilidade, digamos, ontológica do<br />

par sujeito-objeto. Isto acarreta, obviamente, problemas para um exercício crítico que se<br />

apóia neste par, como veremos adiante.<br />

Poderíamos dizer que o poema refere-se a processos que ocorrem num sistema.<br />

Os processos seriam os gritos dos textos/morcegos, portanto as ações destes: suas<br />

mensagens. O sistema seria uma totalidade que chamamos de cultura que, por sua vez, é<br />

composta de entidades menores: sejam elas textos, indivíduos ou regras (códigos). Um<br />

ponto de vista metafísico nos diria que no poema se descrevem os movimentos do<br />

sistema, ou seja, as variações do Ser. Mas a aludida confusão entre substantivo e verbo<br />

(sistema e processo) pode suscitar um outro ponto de vista, que dá primazia à ação e não<br />

ao sujeito ou ao objeto. Em outras palavras, as mensagens (processos) é que precedem e<br />

formam os códigos e as entidades, e não o contrário; e a instabilidade inerente aos<br />

processos é também intrínseca aos entes por eles constituídos. Daí podermos refazer<br />

nossa afirmação inicial e dizer que o poema refere-se a sistemas (ou a um sistema<br />

aberto) que ocorrem nos processos. Ora, isto está de acordo com o título, pois o<br />

processo é o aqui agora do sistema, lidando apenas com a circunstancialidade espaçotemporal.<br />

O inquietante é que a identificação da cultura com o processo (a cultura é o<br />

eco que é o texto/ego) também a transforma em processo, não restando nenhum sistema<br />

fechado (essencialmente estável) aí: o salão onde o morcego se move é móvel também,<br />

circunstancial. Pode-se objetar que estamos exagerando e que a identificação do eco<br />

(processo) com a cultura (sistema) é somente um recurso retórico, uma elipse. Pode ser,<br />

mas o quinto verso parece ir em outra direção: um grito na parede rede rede.<br />

Novamente, no mínimo, duas direções: na repetição de ‘rede’ é o grito (rito?) que galga<br />

os nós da rede que é o sistema da cultura ou esta rede se constitui por ecos, quer dizer,<br />

por processos? Parece que a cultura é uma rede, mas não é fixa e um grito dispara todo<br />

9


um processo, na verdade, dispara a condição de processo que constitui a tradição. Outro<br />

poema nos remete a este problema:<br />

vento<br />

que é vento<br />

fica<br />

parede<br />

parede<br />

passa<br />

meu ritmo<br />

bate no vento<br />

e se<br />

des<br />

pe<br />

da<br />

ça<br />

(Leminski, 1983, p. 80)<br />

Esta paradoxal impermanência do permanente (parede passa) e vice-versa (vento fica)<br />

pode ser lida como a afirmação da força e da energia contra a suposta durabilidade da<br />

matéria, dos pontos de apoio: o triunfo da dinâmica sobre a estática; do processo sobre o<br />

sistema; da pragmática sobre a gramática. É claro que neste poema há oposições a<br />

explorar (corroer?) como entre natureza e cultura; e tempo e espaço, mas, por ora,<br />

vamos voltar ao texto-morcego.<br />

O sexto verso (“volta verde verde verde”) nos conduz a novo, renovado, verde.<br />

A volta do grito é uma questão de vida ou morte para o morcego, o feed-back que lhe<br />

dá a condição da vida. A cor verde, além de reforçar este aspecto vital (cor da natureza<br />

vegetal, “verde é vida” é um lugar comum) evoca a visão: ver por ecos é uma maneira<br />

específica de ver o mundo. Novamente temos aqui o procedimento anagramático:<br />

‘verde’ contém ‘ver’ e “rede”. ‘Verde’ realiza anagramaticamente a volta revitalizada da<br />

rede textual, da cultura: uma nova maneira, vital, de ver a tradição. Mas o que volta<br />

renovado não é só o grito/eco, mas também as redes da cultura. Esta parece ser um salão<br />

em que é vital que haja morcegos. Então não estamos falando de um salão comum, um<br />

recipiente de morcegos que é e existe indiferentemente da existência deles, mas sim de<br />

um ambiente que parece depender de seus habitantes para se manter vivo: sim, estamos<br />

falando de uma força vital constituída por gritos-mensagens de morcegos-textos, quer<br />

dizer, de uma multiplicidade textual ou simplesmente multiplicidade.<br />

Falamos de gritos-mensagens de morcegos-textos, mas deveríamos falar<br />

somente de gritos-mensagens, pois, como vimos, há uma superposição (palavra talvez<br />

10


melhor que identidade) entre texto (sujeito) e mensagem/grito (verbo): o ego é apenas<br />

um eco, o sujeito é a ação ou, para ser mais preciso, as ações/gritos; tal como a cultura é<br />

uma multiplicidade feita da mesma matéria: g(ritos), ecos, mensagens, textos,<br />

processos, variações. A posição do morcego é sempre relativa e a este conceito espacial<br />

podemos relacionar vários outros: identidade; unidade; perenidade. A posição relativa, a<br />

condição de processo, a variação contínua tornam estes conceitos também relativos:<br />

qualquer ser identificado nas redes, nos tecidos (textura), na multiplicidade textual tem<br />

um caráter de indefinição, fragmentação e provisoriedade, já que os processos são uma<br />

contínua variação e qualquer idéia de transcendência, centro e universalidade fica<br />

inviabilizada: não devemos esquecer que não só o ego/sujeito/texto é um processo, mas<br />

também a própria cultura: mais que um tecido e uma rede, esta lembra mais um tecer-se<br />

e um enredar-se (“um texto texto cego” e “um grito na parede rede rede” remetem<br />

também à textura se tecendo, à rede textual se enredando).<br />

O sétimo verso apresenta os mesmos recursos de tateio, busca cega sempre em<br />

meio, mas soa discrepante, fere os ouvidos: este efeito se deve à interposição de ‘mim’<br />

entre os ‘com’ que se repetem quebrando a cadeia de ecos. A incorreção gramatical<br />

‘com mim’ também incomoda, lembrando a inabilidade da criança que ainda não usa<br />

corretamente os pronomes retos, oblíquos e reflexivos. Mais que de tateio, a impressão<br />

aqui é de gaguez e inabilidade. Esta sensação de incômodo sonoro e sintático surge<br />

exatamente quando aparece a subjetividade e pode ser o índice da dificuldade de sua<br />

estabilidade que, como vimos, é sempre um construir-se a partir e com as malhas da<br />

cultura ou textuais. O ‘mim’ (eu/subjetividade individual) se interpõe, ou melhor, se<br />

diferencia da cadeia de ecos: é um trabalho duro, doloroso como um parto e, no entanto,<br />

necessário a cada momento, já que a estabilidade não está fora dos processos. Este eu é<br />

oblíquo (‘mim’), oposto à estabilidade do pronome reto ‘eu’ e, ainda por cima, usado<br />

incorretamente — ‘com mim’ e não ‘comigo’. Tudo isso resulta em obstáculo,<br />

dificuldade que o verbo conseguir (‘consigo’), guaguejado até ser pronunciado, vem<br />

confirmar semanticamente. Este ‘consigo’, verbo, é também o pronome reflexivo que<br />

remete a outrem, indicando que a subjetividade, estabilidade das linhas que delimitam<br />

uma zona interior, só é mantida no jogo contínuo com o fora que, na verdade, apenas<br />

por construção (gritos e ecos) se diferencia do dentro. O eu parece ser um arranjo árduo<br />

e permanente de textos/gritos para formar uma unidade discreta e, como vimos acima,<br />

discrepante na multiplicidade textual.<br />

Esta precariedade do eu aparece no penúltimo verso: ouvir é ver se se se se se.<br />

Como afirmamos antes, a orientação pela audição é um ver problemático: é ver ses, ver<br />

várias condicionais, várias alternativas, vários caminhos a seguir (con-sigo) ou<br />

construir: a orientação é sempre relativa: qual, se existe, o melhor caminho para o<br />

texto/ego? Mas este verso também pode ser lido como ‘ver-se’, um ver-se múltiplo: o<br />

eco, como a luz refletida, remete também à reflexividade, mas esta é bem diferente: não<br />

retorna uma imagem, mas uma posição, um índice, o que mina a identidade e unidade<br />

11


do sujeito. Cada eco corresponde a uma posição diferente, a um ego diferente, a um<br />

reflexo particular, a um ‘se’ (pronome reflexivo) outro. Ainda neste verso, ‘ouvir’ pode<br />

ser escutado como ‘ou vir’, relativo à volta e também à reflexibilidade, dialogando com<br />

o verso anterior, apresentando a alternativa do fracasso da tentativa de construção de<br />

uma subjetividade: “com mim com com consigo ou vir [eco] é ver se se se se se<br />

[multiplicidades]”. Tudo isso leva à consciência que parece perdida em meio à<br />

variabilidade incontrolada. Nunca é demais notar que o poema realiza, formalmente,<br />

esta variabilidade, seja com a metaforização, seja com o recurso ao anagrama, ou com a<br />

ausência de pontuação.<br />

O último verso é uma alternativa positiva, se é que, nessas alturas, possamos<br />

falar assim. Novamente o recurso da repetição, mas agora assonante, pois somente as<br />

vogais se repetem, indicando aí mais semelhança do que redundância. Até aqui<br />

havíamos lido os ecos como repetição que leva à indefinição: a mesma coisa em tempos<br />

diferentes produz uma redundância constante que é também uma variação constante,<br />

algo muito próximo do que costumamos chamar de caos, mas que se definiria melhor<br />

como multiplicidade ou rizoma 1 . Aqui a redundância existe, mas as partículas que se<br />

repetem são apenas parecidas (assonantes), produzindo a semelhança na diferença: ou se<br />

se me lhe (‘semelhe’, se juntarmos as partículas) te sigo. Se a semelhança é dada pela<br />

junção das partículas “se”, “me” e “lhe”, estas, individualmente (mais a partícula “te”)<br />

são pronomes reflexivos (se) e oblíquos (nas três pessoas: me, lhe, te) que se ligam ao<br />

verbo seguir, resultando na multiplicidade de identidades ou caminhos. Portanto, além<br />

das diferenças sonoras entre as partículas existe diferença semântica (de pessoa), que<br />

mina a unidade da subjetividade que emerge no texto. Simultânea e mesmo em simbiose<br />

com a diferença, a semelhança não é uma síntese ou um meio termo entre a<br />

identidade/unidade e a diferença, mas uma construção feita certamente de ambas: a<br />

continuidade de gritos (ritos) domando, precariamente, a multiplicidade textual. Mas<br />

este ‘precariamente’ não parece ser um lamento, pois o poema é, como discurso, apenas<br />

uma descrição que leva a crer mais numa afirmação: (quer-se) um texto morcego / (que)<br />

se guia por ecos. Não há saudade, aqui, da transcendência ou da plenitude, há somente a<br />

descrição/performance de uma tentativa, que pode ser a do texto, a da subjetividade, a<br />

da cultura ou a de qualquer ordem mínima (semelhança) alegre, contínua e vitalmente<br />

ligada à multiplicidade na qual, da qual e contra a qual se constrói.<br />

Da leitura do poema surge a questão da subjetividade e sua estabilidade como<br />

sistema fechado ou organismo. Mais que um aprofundamento no sujeito, que revelaria,<br />

1 Um rizoma, segundo Deuleuze e Guattari, se opõe às raízes e árvores pela sua ausência de pivô central<br />

ou de subdivisões binárias: ele se constitui de linhas que se cruzam e se entrelaçam em qualquer ponto,<br />

sem hierarquias pré-determinadas. Isto implica que, “contra os sistemas centrados (e mesmo<br />

policentrados), de comunicação hierárquica e ligações pré-estabelecidads, o rizoma é um sistema acentrado,<br />

não hierárquico e não significante, sem General, nem memória organizadora ou autômato<br />

central, unicamente definido por uma circulação de estados.” (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 33).<br />

12


de máscara em máscara, seu (a)fundamento na coletividade, o poema parece proceder<br />

na superfície: do texto, do ego, da cultura, dos sistemas. A palavra “texto” é o signo do<br />

qual se parte para outros nomes (ego, grito, eco, rede, antigo, tradição etc.), mas sem<br />

hierarquizá-los num sistema, como, por exemplo, supondo que a origem última do<br />

inconsciente e da cultura seriam os textos. É claro que podemos fazer isto através do<br />

poema, mas também podemos optar por outros caminhos. A metáfora, em sentido<br />

amplo, seria uma boa figura para unir estes signos que se ligam a ‘texto’, mas ela não<br />

precisa ter, necessariamente, os signos de conotação e denotação. Assim, a<br />

subjetividade, que é o último ‘tema’ do poema, não necessita ser o desaguadouro de<br />

todas as outras imagens, como tampouco a metalinguagem.<br />

Fixando o conceito da subjetividade, por exemplo, podemos perceber que ele<br />

se confunde com outros, inclusive o de grito, que antes de ser uma ação do sujeito<br />

parece constituí-lo. Desta sobreposição de diversas entidades (substantivo) e ações<br />

(verbos) resulta uma dificuldade muito grande em encontrar limites, tanto hierárquicos<br />

ou de níveis, quanto de territórios ou planos, entre as unidades sobrepostas. A metáfora<br />

funcionaria, então, apenas de maneira analógica, sobrepondo indefinidamente os signos,<br />

ficando fora de sua definição a função hierárquica que freia num certo ponto (o da<br />

subjetividade por exemplo) o jogo contínuo das sobreposições:<br />

(...) assim como uma metáfora bem construída não revela, entre seus termos, nenhuma<br />

ordem e suprime todo obstáculo da cadeia polissêmica (ao contrário da comparação,<br />

figura originada), assim uma boa narrativa respeita a pluralidade e a circularidade dos<br />

códigos. (Barthes, 1992, pp. 106-107).<br />

Desse modo, surge uma subjetividade não essencial em si mesma, pois ela não é a<br />

realidade última do ser, dos quais os outros signos seriam apenas derivações. Tampouco<br />

ela é um adiamento do ser que se confundiria com a Cultura, da qual o sujeito seria uma<br />

derivação. O quadro que o poema pinta não é renascentista, pois não há linhas, nem<br />

estática, nem perspectiva; e o ser se perde nas confusões entre os substantivos e entre<br />

estes e os verbos que proporcionam a fuga dos sistemas fechados e da estabilidade. As<br />

redes da cultura são suplementos ao infinito uma das outras e cada nó desta textura não<br />

passa de um grito, um agir, um rito. Este último se sobrepõe tacitamente, no poema, ao<br />

mito, sinal da permanência sobre a qual se assentariam as variações, mas o mito do Ser<br />

é apenas uma soma de ritos repetidos. Desta repetição é que se constroem semelhanças,<br />

pares e hierarquias, “se se me lhe te sigo”, por onde a multiplicidade textual vai<br />

(per)fazer o caminho do organismo, da individuação subjetiva. A pergunta é: o que<br />

aconteceu ao par expressão da subjetividade/construção do objeto estético nesta leitura?<br />

Não diríamos que o perdemos, ou mesmo que rompemos com ele, mas parece que<br />

encontramos o que poderíamos chamar de sua entropia: chegamos ao ponto em que a<br />

oposição sujeito/objeto parece não mais ser confiável como operador dentro de um<br />

sistema. Não significa uma síntese ou superação desta oposição, pois o poema parece<br />

13


flagrar os elementos desses pares exatamente no momento de sua forja, quer dizer,<br />

quando são ainda atos, gritos ou ecos. Leminski trabalha, neste poema, como uma<br />

espécie de arqueólogo dos signos/conceitos, tentando refazer o caminho de seu<br />

surgimento a partir de algo. Este algo parece se identificar com ações sem sujeitos<br />

definidos, portanto não derivadas de nenhuma ordem pré-constituída: no fundo dos<br />

ecos, ecos, somente ecos. Daí o seu trabalho de superfície, sem a perspectiva da<br />

profundidade que implicaria num ponto de fuga, um hierarquizador ou centro.<br />

Mas se nossa obsessão pelas hierarquias não nos deixar em paz, poderíamos<br />

satisfazê-la dizendo que o elemento central deste poema (ou da leitura que dele<br />

fizemos?) é o grito, rito, eco, em suma, a ação. Mas seria um engodo, pois a ação, se<br />

pode e é repetida (e a redundância é uma condição da ordem: cultural, individual,<br />

lingüística...), também é a potência da variação contínua, portanto da instabilidade que<br />

pode levar à entropia ou à individuação (se semelhe te sigo) se for bem manejada.<br />

Portanto, antes de ser um universal, uma origem ou um fim, o grito/eco é um<br />

diferencial, um sempre em meio se tecendo e retecendo na multiplicidade textual.<br />

Fixando-nos ainda na subjetividade, podemos dizer que sua estabilidade como<br />

sistema, como ordem sistemática, depende então de um constante jogo com outros<br />

sistemas e também com a própria instabilidade que lhe constitui. É um sistema que se<br />

mantêm por repetição e diferença, produzindo duplos, pares, semelhanças que são<br />

balizas provisórias que definem sua posição relativa. A posição no espaço sempre foi<br />

um recurso utilizado para construir “visões de mundo”: o todo e a posição no conjunto.<br />

Um ponto de vista metafísico supõe sempre um centro e/ou um topo a partir do qual se<br />

ordenam as periferias, também elas constituindo subcentros e subperiferias. Outra<br />

característica de um sistema metafísico é a imobilidade do centro onde “é proibida a<br />

permuta ou a transformação dos elementos”. (Derrida, 1995, p. 230). Supondo que<br />

também há movimento e transformação nos sistemas metafísicos, estas variações não<br />

atingem o centro e são, antes, um atributo seu: o Ser múltiplo, “múltiplo” aqui tomado<br />

como desdobramentos do Uno. Ser, Uno, Centro, estas essências não aparecem no<br />

poema, seja na forma da subjetividade individual ou coletiva (cultura), seja da forma da<br />

linguagem. Estes sistemas ou ordens aparecem no poema como conjuntos precariamente<br />

definidos, que se sobrepõem uns aos outros, embora pareçam subsistir distintamente:<br />

não são centros e nem remetem, através de subordinação, a algum sistema centrado. Um<br />

sistema centrado é o que temos chamado de sistema fechado, do qual se poderia dizer:<br />

esta é a essência/centro de tal sistema. O poema de Leminski parece nos remeter a<br />

sistemas a-centrados ou abertos: multiplicidades onde tudo se move e o centramento<br />

não passa de construções: sujeito; cultura; linguagem. Daí podermos dizer que a<br />

oposição subjetividade/objetividade seja difícil de se manter, pois ela se baseia, ou na<br />

centralidade do sujeito ou na do objeto; ou na de um terceiro que seria a síntese de um<br />

processo dialético entre sujeito e objeto.<br />

14


Como podemos, a partir deste poema, estabelecer a noção de dentro e fora e<br />

conteúdo e continente que parece remeter-nos à metáfora do morcego dentro de um<br />

salão ou caverna, se ambos são texturas móveis de gritos/ecos? O sujeito se estabiliza<br />

num dentro que se contrapõe ao fora (que lhe é também anterior) que é a cultura ou<br />

sociedade, mas dentro do sujeito e da cultura e ao mesmo tempo agem os gritos, uma<br />

espécie de fora absoluto que mina a identidade das duas subjetivações, coletiva e<br />

individual. Assim também a linguagem (texto) se compõe de gritos que constantemente<br />

negociam sua posição com o circundante (circunstancial). O poema não nega o sujeito,<br />

a cultura e a linguagem, mas muda o ponto de vista sobre eles, que se torna pragmáticofuncional<br />

e não essencial-estrutural. São vistos como sistemas abertos, que se<br />

constituem fundamentalmente a partir de variações, negociações políticas: a posição do<br />

morcego é sempre um negócio entre ele e as paredes.<br />

15


O PAR QUE ME PARECE<br />

O PAR QUE ME PARECE<br />

Pesa dentro de mim<br />

o idioma que não fiz,<br />

aquela língua sem fim<br />

feita de ais e de aquis.<br />

Era uma língua bonita,<br />

música, mais que palavra,<br />

alguma coisa de hitita,<br />

praia do mar de Java.<br />

Um idioma perfeito,<br />

quase não tinha objeto.<br />

Pronomes do caso reto,<br />

nunca acabavam sujeitos.<br />

Tudo era seu múltiplo,<br />

verbo, triplo, prolixo.<br />

Gritos eram os únicos.<br />

O resto, ia pro lixo.<br />

Dois leos em cada pardo,<br />

dois saltos em cada pulo,<br />

eu que só via a metade,<br />

silêncio, está tudo duplo.<br />

(Leminski, 1987a, p. 31)<br />

O poema acima começa com a indicação de uma falta, uma ausência que<br />

pesaria ao eu lírico: “Pesa dentro de mim / o idioma que não fiz”. Este idioma, mais à<br />

frente, será qualificado de sem fim 2 , bonito e perfeito, características que o avizinham<br />

do sobre-humano e do sagrado. A ausência desta língua perfeita tem paralelo no<br />

desconcerto do mundo e na queda do homem, que segundo a crença cristã decorre do<br />

pecado original que nos expulsou do Paraíso e do qual somos cúmplices. Este pecado é<br />

o peso que carregaríamos durante a vida. Portanto, a ausência que pesa, no caso cristão,<br />

decorre de uma presença do pecado, de uma má ação inicial e nossa imperfeição (uma<br />

ausência) é o preço/peso que pagamos pelo erro, nossa punição. Seria também este o<br />

caso do poema?<br />

2 Lemos a expressão ‘sem fim’ como índice da infinitude, aproximando-a do sagrado. Mas outro sentido,<br />

o da ausência de finalidade, também aparece e não contradiz o primeiro, pois pode implicar em não<br />

utilitarismo, quer dizer, em ausência de finalidades terrenas. No entanto, outra possibilidade<br />

interpretativa, que vai levar o poema para longe das unidades do sagrado e do ser, pode se conectar a esta<br />

‘ausência de finalidade’ que passaria a remeter, então, à ausência de teleologia ou à impossibilidade da<br />

transcendência.<br />

16


Um dos constituintes desta língua sem fim são os “ais”, as interjeições, o que<br />

há de mais espontâneo na fala humana:<br />

aquela língua sem fim<br />

feita de ais e de aquis<br />

A interjeição é um signo sem significado, sem conceito, mais próximo do ícone que do<br />

símbolo, mais onomatopéico que convencional, o que daria a esta língua sua condição<br />

de universalidade. Mas uma universalidade decorrente da simplicidade e rusticidade,<br />

pois a interjeição nos aproxima mais dos animais, aquém da linguagem, do que dos<br />

deuses, além dela. Outro dos constituintes desta língua são os “aquis”, termo que indica<br />

a circunstancialidade espacial e, por elipse, temporal. Este particularismo de uma<br />

língua, em todos os sentidos imediatista, parece contradizer a universalidade à qual<br />

aludimos: as interjeições e o aqui-agora remetem à vivência imediata e espontânea,<br />

portanto localizada e não universal. Deveríamos abrir mão da universalidade como<br />

característica?<br />

Mas os próximos versos (“Era uma língua bonita, / música, mais que palavra”)<br />

parecem confirmar esta universalidade, se aceitarmos a opinião geral que a música é<br />

universal. Mas aqui se desenha outra oposição, entre música e palavra, intuição e razão,<br />

significante e significado. A música, como as interjeições, é somente uma cadeia de<br />

sons e silêncios que prescindem do conceito e da racionalidade. Há, aqui, a ambição de<br />

uma língua puramente poética, se entendermos que a poesia é uma arte que se avizinha<br />

mais da música e das artes plásticas que da retórica, da linguagem conceitual e<br />

discursiva — mera portadora de mensagens. Esta maneira de ver a poesia é uma<br />

convergência que vai de Sartre, passando por Pound e Jakobson, aos concretistas, dos<br />

quais Leminski é “filho” declarado 3 . Esta ambição da pureza poética reforça a nossa<br />

hipótese da vizinhança desta língua que falta com o sagrado, também inatingível.<br />

Proximidade confirmada nos próximos versos (“alguma coisa de hitita, / praia do mar<br />

de Java”) que remetem inicialmente a duas distâncias: uma temporal e outra espacial. O<br />

hitita é a mais antiga língua indo-européia, da qual, supostamente, derivaram os idiomas<br />

do Ocidente. Há, então, uma terceira distância, a da origem, afirmada pelos dois versos,<br />

pois o afastamento temporal do hitita remete à origem de nossa linguagem, àquele<br />

estado indefinido entre natureza e cultura. O que é reforçado pelo exotismo da paisagem<br />

natural da “praia do mar de Java” (distância espacial) que tem um quê de Éden, de<br />

Paraíso Perdido. Tudo isso no conduz à origem da linguagem, dádiva divina que nos<br />

diferencia dos animais: o poema remete, então, ao instante pós-animalesco e anterior ao<br />

pecado original ou à torre de Babel que é uma outra maneira de contar nossa queda. A<br />

3 Como se pode confirmar numa entrevista dada a Regis Bonvicino: “A coisa concreta está de tal forma<br />

incorporada em minha sensibilidade que costumo dizer que sou mais concreto que eles [os concretistas]:<br />

eles não começaram concretos, eu comecei.” (Leminki e Bonvicino, 1999, p. 208-209).<br />

17


Língua inaugural, primordial, se confunde com a divindade que nos constitui, mas as<br />

diferenças lingüísticas (a variedade de línguas) são um sinal da imperfeição e da<br />

discórdia dos homens, alijando-os da perfeição universal, homogênea e concordante.<br />

Até aqui poderíamos dizer que há uma espécie de saudade da origem, do<br />

momento em que o homem estava em paz consigo, com a natureza e com Deus. Apenas<br />

alguns inconvenientes a esta leitura, como no quarto verso que parece remeter ao<br />

circunstancial e à vivência imediata das sensações, mas que poderia muito bem ser<br />

resolvido com o argumento de que se trata de uma ingenuidade do homem mais<br />

próximo, temporal e culturalmente, da natureza. Por trás desta leitura paira a sombra de<br />

uma presença, algo ou alguém doador do sentido, dotado de uma unidade essencial.<br />

Mas esta unidade original pode remeter tanto a um mundo ordenado e hierarquizado<br />

quanto a uma espécie de caos primordial. A leitura que remete à presença de um Ser vai<br />

na primeira direção, mesmo que fora deste Ser o mundo seja um caos: há uma unidade<br />

pré-existente que, por sua vontade, pode concertar (ou desconcertar) o universo.<br />

Se atentarmos para os versos do terceiro quarteto (este poema se constrói por<br />

quartetos), parece que eles tomam uma outra direção:<br />

Um idioma perfeito,<br />

quase não tinha objeto.<br />

Pronomes do caso reto,<br />

nunca acabavam sujeitos.<br />

Notamos que suas rimas são estruturadas de maneira diferente dos anteriores: são<br />

opostas (ABBA) enquanto que os dois primeiros quartetos se constroem por rimas<br />

alternadas (ABAB). Em primeiro lugar, isto marca uma diferença formal a partir deste<br />

ponto do poema e que corresponderá a uma diferença de sentido: a alternância rímica<br />

corresponde àquela língua original e perfeita, da qual a simetria certamente seria uma<br />

característica. As rimas opostas, embora simétricas, representam uma dissonância no<br />

andamento contínuo dos versos anteriores: insere-se uma simetria de outra ordem, que<br />

tem o sabor de uma assimetria. Esta é reforçada pelo tamanho dos períodos que, nos<br />

versos anteriores, coincidiam com os quartetos. Neste quarteto há dois períodos, cada<br />

um correspondendo a um dístico: novamente uma simetria de outra ordem, que perturba<br />

o andamento inicial e constante do poema. Se atentarmos ainda mais, vemos (ouvimos)<br />

que todos os versos deste quarteto, na verdade, rimam entre si: ‘perfeito/objeto’ e<br />

‘reto/sujeito’ são rimas imperfeitas: outra simetria local que leva a uma assimetria em<br />

relação ao resto do poema. Mas esta rima continuada também ocorre no primeiro<br />

quarteto (mim/fiz/fim/aquis), o que parece ser um indício de que o poema já nasceu<br />

prenhe de uma certa assimetria geral, pois a rima continuada (toante) mina a simetria da<br />

alternância desde o início. Somente o segundo quarteto tem uma alternância rímica bem<br />

18


marcada (uma rima perfeita e outra toante: bonita/palavra/hitita/Java), justamente o que<br />

remete à busca da origem.<br />

Temos então uma ruptura formal, mas que não é total, pois a simetria continua<br />

de uma outra forma. Além do mais há constantes que perpassam todo o poema, como o<br />

trabalho extremamente preciso e cerrado no plano fonético (aliterações, ecos,<br />

assonâncias, anagramas), característica, aliás, que perpassa todo o livro Distraídos<br />

venceremos, do qual este poema é parte. Outra constante de “O par que me parece” é a<br />

organização espacial dos versos, sempre alternada, que dão a impressão de um vai-vem<br />

monótono e contínuo à primeira vista (literalmente), mas que os outros recursos formais<br />

(como, por exemplo, esta ruptura formal de que estamos falando) podem dar um aspecto<br />

de movimento mais variado e vivo.<br />

Verificamos que este “idioma perfeito / quase não tinha objeto”, não se trata de<br />

uma língua da objetividade, substantiva, como a poesia desejada pelos concretistas. Por<br />

outro lado os “pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” também não implicam<br />

numa linguagem de expressão subjetiva, antítese da proposta construtivista da poesia.<br />

Deste jogo com a sintaxe, morfologia e regras da linguagem surge uma dupla negação,<br />

do sujeito e do objeto, a qual é gramatical, mas também, em certo sentido, ontológica, já<br />

que nesta língua utópica não parecem caber perenidades imóveis, seres. Daí podermos<br />

responder que, se há uma busca de um Paraíso original, este está mais para o caos do<br />

que para uma ordem plena. A sombra da presença de um Ser, que pairava sobre a leitura<br />

até a chegada deste quarteto começa a se dissipar: à assimetria formal que estes versos<br />

instauram no poema, corresponde uma assimetria semântica que torna problemática sua<br />

leitura como uma metalingüística transcendental, direção que parecia caber muito bem<br />

até o segundo quarteto. A transcendência, típica de sistemas metafísicos, implica na<br />

passagem de um plano a outro, na ascese que supõe uma aproximação com alguma<br />

espécie de unidade ou centro. A impossibilidade ontológica de sujeitos e objetos, de<br />

entidades fixas enfim, nos faz questionar a possibilidade da existência de alguma<br />

unidade que tenha o estatuto da permanência. Mas há uma outra direção semântica nos<br />

versos “Pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” que é exatamente a negação<br />

da sujeição (no sentido de subordinação) e, já que estamos falando de sistemas e regras,<br />

esta não sujeição parece indicar a fuga de qualquer ordem cristalizada que se quer<br />

permanente, una e impositiva. Os versos seguintes vão nesta direção:<br />

Tudo era seu múltiplo<br />

verbo, triplo, prolixo.<br />

Pode-se afirmar que este poema é metalingüístico. Mais especificamente, um<br />

de seus temas é a linguagem poética que se almeja atingir e que não se estabiliza nem<br />

no poema-objeto concretista, nem na expressão lírica de fundo romântico, mas se<br />

‘instabiliza’ na ação pura e simples, no movimento das mensagens, ou seja, é uma<br />

19


poesia que está mais para a pragmática do que para as gramáticas dos planos pilotos ou<br />

da expressão subjetiva. A negação de sujeição pode ser lida como uma libertação das<br />

poéticas convencionais que cerceiam os poetas e (extrapolando o literário) impõem um<br />

determinado modo de perceber e sentir o mundo. Mais que metalingüístico este poema é<br />

o que se poderia chamar, com o devido cuidado, de filosófico, algo como uma poesia<br />

pensante (mesmo que o pensamento tenha enlouquecido), pois remete a discussões<br />

sobre conceitos como Ser, sujeito e objeto.<br />

No caso deste último par, como em “Distâncias mínimas”, a oposição<br />

sujeito/objeto parece perder um pouco a eficácia justamente por implicar em entidades<br />

estáveis e pré-existentes à ação, portanto dotadas de alguma essência. Aqui, não se trata<br />

de um absorver o outro, de uma expansão ou profusão da subjetividade (con)fundindo<br />

todas as coisas, como se costuma caracterizar a poesia. Trata-se do abandono deste par<br />

em favor de outro elemento, estranho a ele e que, num sistema centrado seria secundário<br />

em importância, não raro marcado pela perversão: a variação, a mudança contínua<br />

potencializada no processo, no “verbo, triplo, prolixo”.<br />

Há neste período (“Tudo era seu múltiplo, verbo, triplo, prolixo”) com sua<br />

profusão de laterais (l) e flepes (o “r” de “triplo” e “prolixo”), com suas aliterações de<br />

bilabiais e sua paronomásia (múltiplo, triplo, prolixo), a afirmação da multiplicidade<br />

que descamba para o descontrole de “prolixo” — que também é, anagramaticamente,<br />

“pro lixo”, como o próprio poema irá explorar mais à frente. A diferença, o erro da<br />

prolixidade, o ímpar implícito em triplo, tudo isso leva justamente à imperfeição, à<br />

impossibilidade da unidade que, antes de se desdobrar no múltiplo, parece ser uma<br />

ilusão construída na multiplicidade — ilusão expressa no título, “o par que me parece”.<br />

O parecer aqui pode indicar uma semelhança de fato, o encontro da metade que faltava<br />

para se consumar o uno perfeito, a língua perfeita. Mas o verbo parecer significa<br />

também ilusão, engodo, a falsidade da semelhança. Esbarramos aqui no problema do<br />

duplo, tal como Roland Barthes coloca em S/Z:<br />

A perfeição é uma extremidade do código (origem ou fim, como queiram); exalta ou<br />

põe fim à fuga das réplicas, suprime a distância entre o código e a performance, entre<br />

a origem e o produto, entre o modelo e a cópia; e, como esta distância faz parte do<br />

estatuto humano, a perfeição — que a anula — encontra-se fora dos limites<br />

antropológicos, na sobre-natureza (...) pois a vida, a norma, a humanidade não são<br />

mais que migrações intermediárias, no campo das réplicas. (Barthes, 1992, p.101).<br />

Em “O par que me parece” há o desejo de uma língua perfeita, mas esta língua<br />

trabalharia somente no “campo das réplicas”, das falsas identidades, geradas de forma<br />

quase descontrolada, prolixa, pro lixo. O próprio poema parece um engodo, com todas<br />

as suas reminiscências bíblicas, tacitamente distribuídas pelos versos como armadilhas<br />

para os decifradores encantados. A temática, que pareceria ser a de uma poética de<br />

20


ascese mística, se dissolve em multiplicidades: a língua perfeita é a multiplicidade, a<br />

imperfeição em escala máxima, a fuga para todos os lados, escapando de toda unidade.<br />

Se a variedade é um erro, um desvio, o que se deseja no poema é o erro ao infinito: a<br />

variação contínua.<br />

O grito, diante dos sons da linguagem, é a consubstanciação do não sentido, do<br />

não conceitual, portanto exprime o irracional e constitui o ruído na linguagem:<br />

Gritos eram os únicos.<br />

O resto, ia pro lixo.<br />

A unidade, ainda não nomeada, mas sempre à espreita no poema, revela-se na palavra<br />

“únicos”. Mas é uma revelação no mínimo paradoxal e mais obscurece que clarifica,<br />

pois o que é uno e tem primazia é justamente a potência da variação dos sentidos: o<br />

grito, como a música, é um signo constituído apenas do significante, sobre os quais<br />

variam os significados (sentidos), se é que possa ser-lhe atribuído algum. Mas o grito<br />

não é também o Significante primordial (o que implicaria somente num deslocamento<br />

da unidade do significado para o significante), mas uma variação significante: outra<br />

remissão do grito é a ação, no mesmo sentido que nos referimos a ela em Distâncias<br />

mínimas, ou seja, como elemento estranho à fixidez, seja a da língua, a do sujeito ou a<br />

da cultura. A ação implica em mobilidade e provisoriedade, em processos que se criam<br />

e se dissolvem: processos continuados que dão a ilusão de unidade: ritos. Aqui também<br />

é lícito lermos “ritos” (no plural) por dentro de “gritos”: a repetição dos ritos é o<br />

prenúncio da fixidez do mito 4 , mas este, enquanto rito (ação) se encontra sempre a<br />

mercê das variações, enxergadas muitas vezes como deturpações: não é à toa que as<br />

religiões erigidas numa sólida tradição (será possível a solidez?) mantêm estrita<br />

vigilância sobre os seus rituais ou os reduzem ao mínimo possível.<br />

A unicidade (“Gritos eram os únicos”) é atribuída justamente ao que não<br />

hierarquiza, não delimita sentidos e não se fixa, ou seja, à potência da variação. Portanto<br />

é uma unidade controversa que afirma justamente o plural e a diferença; e a identidade,<br />

4 Quando nos referimos à fixidez do mito, estamos nos referindo à crença de sua fixidez e não a qualquer<br />

conceituação de mito, seja ela das ciências sociais ou da psicologia. De certa forma vamos construir nossa<br />

própria definição neste trabalho, não muito rigorosa, mas, cremos, suficiente para o nosso trabalho. Em<br />

termos muito gerais, esta definição vai delinear o mito como um construto humano que aspira à<br />

permanência e ao sagrado. Assim inverte-se a ordem das construções, pois, de acordo com a crença,<br />

sendo o mito permanente e sobre-humano em oposição à precariedade do humano, implica que dele é que<br />

decorre as coisas terrenas, inclusive o rito. A este último costuma-se atribuir a imutabilidade, devido à sua<br />

relação (de re[a]presentação) direta com o mito, mas se considerarmos o mito como construto humano é<br />

lícito inferirmos que o mito é construído pela repetição de ritos que, reduzidos a ações humanas (não<br />

decorrentes do mito e do sobre-humano, mas seus construtores), passam ao estado de performances,<br />

passíveis de desvios. Ora, o desvio no elemento construtor (rito) implicaria no desvio do construído<br />

(mito). Daí segue-se que a variância é um atributo tanto do mito quanto do rito, mas neste último, (que é<br />

ação humana e é primeiro — “g-ritos eram os únicos”) é que estaria a potência da variabilidade que<br />

minaria a ‘permanência’ crida do mito.<br />

21


quando atingida, o é pela repetição, pela duplicação imperfeita constituída da<br />

multiplicação dos ritos e seu risco, sempre iminente, do desvio. Nestes dois versos o fim<br />

do período coincide com a pausa métrica, marcando o final de uma redução progressiva<br />

que se inicia no terceiro quarteto, no qual o período se limitava a dois versos — e a<br />

quatro nos dois primeiros quartetos. Parece que a unidade entre período e quarteto vai<br />

progressivamente sendo minada e a sintaxe vai se fragmentando até que o período seja<br />

reduzido a um único verso, como a língua perfeita seria reduzida aos gritos. Esta<br />

multiplicação de períodos no quarteto marca uma espécie de anticlímax do poema,<br />

justamente onde as expectativas da ascese e da comunhão com as Origens são<br />

frustradas: o resto ia pro lixo: aqui há uma inversão de valores, pois o que vai para o<br />

lixo é justamente o que obstrui a pluralidade; o que, ao contrário de grito, é linguagem,<br />

conceito, palavra. Como “pro lixo” também é, por irradiação, “prolixo”, o que é<br />

considerado demais e redundante, portanto inútil, é justamente a palavra, reforçando a<br />

inversão, já que o “prolixo” do verso anterior parecia referir-se ao “múltiplo”, à<br />

variação incontrolada, como já dissemos.<br />

Após o anticlímax há um retorno à condição inicial no último quarteto:<br />

Dois leos em cada pardo,<br />

dois saltos em cada pulo,<br />

eu que só via a metade<br />

silêncio, está tudo duplo.<br />

Aqui o período volta a coincidir com o quarteto, as rimas alternadas retornam, dando a<br />

impressão de uma simetria mais regular. E o tom é de epifania, identidade, completude,<br />

unidade, revelação. Por esta última perspectiva o movimento geral do poema (sua<br />

estrutura profunda?) é o de uma expectativa calma em relação a uma suposta língua<br />

perfeita que, à medida que vai se desenvolvendo, provoca uma série de abalos, após os<br />

quais vai se restabelecer a ordem num outro patamar, digamos, mais elevado: a vitória<br />

da unidade em sua dialética com a multiplicidade.<br />

Uma das palavras que usamos para afirmar esta unidade é “completude”, a qual<br />

supõe uma falta, justamente a enunciada no início do poema: “Pesa dentro de mim / o<br />

idioma que não fiz”. De fato, os dois últimos versos remetem à Bíblia:<br />

(...) tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas havendo<br />

profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque,<br />

em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito,<br />

então o que é em parte será aniquilado. (...) Porque agora vemos como em espelho,<br />

obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então conhecerei<br />

como também sou conhecido. (Bíblia, NT, 1 Coríntios 13:7-12).<br />

22


O amor (e o Deus cristão é o amor) é a completude da metade que falta. O poema de<br />

Leminski remete ao amor o tempo todo (à completude das partes?). A dúvida é se<br />

podemos lê-lo como uma vitória desta completude divina sobre as crises que vão<br />

permeando esta busca do que falta: a língua do amor. E se podemos recobrir esta<br />

característica de completude com a de unidade e identidade centradas. Cremos que esta<br />

leitura é plausível e que não há como excluí-la como incoerente ou algo assim. É uma<br />

leitura orgânica, das grandes estruturas do sentido e que fecha círculos (o último<br />

quarteto é uma retomada do primeiro), mas que pode conviver, no mesmo poema, com<br />

outra, que brota nas frinchas da estrutura. Esta outra leitura não é uma via contrária,<br />

embora seu efeito possa sê-lo, mas uma espécie de corrosão que convive com o sentido<br />

pacificador. Portanto, não é o caso de nos decidirmos por um ou outro caminho, mas<br />

apenas indicar os percalços e desvios que sofre o suposto caminho principal da<br />

interpretação, mostrando que este, na verdade, só parece ser principal porque constrói<br />

uma legibilidade mais pacificadora: o poema como um universo que se curva, fechandose<br />

em si, correlato de um mundo também Uno (uniforme), a ser atingido pelo homem.<br />

A primeira pergunta a se fazer é: o que será que falta, quando nosso ponto de<br />

vista é a multiplicidade e a unidade (ou identidade, ou Ser, ou perfeição, ou essência) é<br />

uma construção? O Uno, atingido quando acharmos nossa outra metade (está tudo<br />

duplo) na verdade não falta, justamente porque não cabe como Ser numa perspectiva<br />

que enxerga o mundo como multiplicidade: não há, deste ponto de vista, nenhuma falta.<br />

Os pares são pareceres, aparências, duplos construídos, ritos repetidos. O encontro de<br />

uma língua que falta pode ser então a revelação, não do Ser que faltava, mas de uma<br />

perspectiva em que não há falta, apenas expansão do desejo (amor): “tudo era seu<br />

múltiplo, / verbo, triplo, prolixo”. O quarto quarteto, ao invés de um momento de crise e<br />

provação pelo qual passaria aquele que busca o sentido, pode ser lido como o auge da<br />

libertação de qualquer sentido, de qualquer sujeição à lei, ao código: gritos (ritos,<br />

processos) eram os únicos. A falta implica, como seu contrário complementar, uma<br />

presença, plena de si, a ser encontrada. Este poema bem que poderia ser, até o quarto<br />

quarteto, a frustração desta busca, que significa a descrença na presença. Mas se esta<br />

não existe, também não há falta, e esta falta da falta (desculpem o trocadilho) pode<br />

muito bem ser tomada como uma liberdade, como suficiente para a vida: mais que<br />

suficiente, necessária. Esta liberdade que se deve à primazia do processual, da variância<br />

e da multiplicidade, sobre a fixidez estrutural (presença) se aproxima da atitude que<br />

Derrida propõe de “pensar radicalmente” o jogo (ação, processo) da estrutura que<br />

condiciona — e portanto deve prevalecer sobre — o par presença-ausência num<br />

sistema:<br />

A presença de um elemento é sempre uma referência significante e substitutiva<br />

inscrita num sistema de diferenças e o movimento de uma cadeia. O jogo é sempre<br />

jogo de ausência e de presença, mas se o quisermos pensar radicalmente, é preciso<br />

pensá-lo antes da alternativa da presença e da ausência; é preciso pensar o ser como<br />

23


uma presença ou ausência a partir da possibilidade do jogo e não inversamente.<br />

(Derrida, 1995, p. 248)<br />

A partir desta (anti)revelação da falta da falta, o último quarteto não precisa mais ser<br />

lido como uma vitória da unidade e do sentido (Bem) que falta contra a multiplicidade<br />

(Mal) que frustra o encontro e que deve ser vencido.<br />

A vida precisa de pares (“se semelhe te sigo”), ordens mínimas, pequenos<br />

fechamentos de sentido para se perpetuar: amor (em seus vários sentidos) talvez seja a<br />

palavra mais exata que nós, ocidentais, temos para exprimir esta necessidade vital. Mas<br />

o amor (que é uma temática deste poema) é um campo semântico no qual trava-se uma<br />

luta, tão antiga quanto a palavra: ele implica numa expansão (órfica, dionisíaca) infinita<br />

do desejo ou se avizinha do conhecimento e do conceito, tornando-se prudente e contido<br />

em busca de algo ou alguém que tudo una numa ordem perfeita e intemporal?<br />

Dois leos em cada pardo,<br />

dois saltos em cada pulo,<br />

O leopardo, como felino, remete à força, velocidade, precisão e inteligência: o<br />

pulo do gato é o que ninguém sabe ou espera e que o livra das situações mais adversas.<br />

O que remete a outra alusão possível que é a da sabedoria de vida que os felinos têm.<br />

Tudo isso são lugares comuns tirados da cultura (erudita, popular), o que não<br />

desqualifica o poema, nem, cremos nós, a leitura: o quê, na cultura, nunca foi dito e não<br />

constitui, pelo menos potencialmente, um lugar comum? Tudo depende, para se escapar<br />

do lugar comum, do manejo, das combinações que são feitas com os códigos culturais.<br />

Mas, além destas possibilidades de sentido, a palavra “leopardo” contem “léo” e<br />

“pardo” de onde deduzimos leão (ou leonino) pardo. Mas uma leitura que os puros<br />

chamariam de pervertida e os hereges de divertida, pode chegar a “léu” de “ao léu”, que<br />

remete ao casual e à ausência de finalidade. O “pardo” de “leopardo” remete também ao<br />

ditado (e Leminski era obcecado pelos ditos populares): no escuro, todos os gatos<br />

(leopardos?) são pardos. Pardo aparece então como signo do indiferenciado e da<br />

confusão: algo muito próximo do que temos chamado de multiplicidade. Há duas<br />

leituras de “leo”: o felino (o gênero ordenador e hierarquizador) e o indefinido (o acaso<br />

entrópico). Mas há também duas leituras de “pardos”: a cor que define a espécie<br />

(individuação) e a cor da indiferenciação (dividuação, pluralidade). Leopardo: signo, ao<br />

mesmo tempo, da semelhança e da diferença. Em cada pulo (processo) há, na verdade,<br />

dois saltos (dois processos): um que se fecha na definição das ordens hierarquizadas<br />

(leo=gênero, pardo=espécie) e outro que constitui a fuga das hierarquias, fazendo<br />

proliferar os sistemas codificados (leo=acaso, pardo=indefinição), descodificando-os<br />

quase que rumo ao caos absoluto: acaso, indefinição. Mas o organismo convive com sua<br />

desorganização e é preciso preservá-lo, minimamente que seja, para que ainda haja vida:<br />

o poema (a atividade poética) talvez seja este limiar, ou melhor, o meio de se atingir<br />

24


“aquela língua sem fim” que se aproximaria da almejada descodificação quase absoluta:<br />

lugar onde não há mais falta nem unidades, apenas ordens mínimas, prontas a se<br />

metamorfosear, como no poema a seguir:<br />

Mínimo templo<br />

para um deus pequeno<br />

aqui vos guarda<br />

em vez da dor que peno,<br />

meu extremo anjo de vanguarda.<br />

De que máscara<br />

se gaba sua lástima,<br />

de que vaga<br />

se vangloria sua história,<br />

saiba quem saiba.<br />

A mim me basta<br />

a sombra que se deixa,<br />

o corpo que se afasta.<br />

(Leminski, 1987a, p. 104).<br />

Este poema 5 , que tem como “tema explícito” o hai cai, mas que se aplica a toda<br />

prática poética de Leminski, é uma espécie de afirmação da fuga. Não se quer exprimir<br />

“a dor que peno” e nem saber das máscaras, das profundidades do sujeito. Foge-se<br />

inclusive das vagas da história — da progressividade causalista e explicadora da<br />

história? História do indivíduo ou da sociedade? Foge-se do saber (saiba quem saiba),<br />

das explicações, restando ao poema/poeta (“a mim me basta”) ‘apenas’ a exploração dos<br />

efeitos indiferenciados sem causa definida (“a sombra que se deixa”), a precipitação em<br />

velocidades de distanciamento: “o corpo que se afasta”. Exaltação do hai-kai, mas<br />

também afirmação da opção poética de Leminski: linha de fuga rumo a descodificação,<br />

ao a-significante, ao a-subjetivo, preservando, no entanto, um pouco de significância e<br />

subjetivação, um “mínimo templo para um deus pequeno”. Templo que não guardaria<br />

grandes estruturas cristalizadas (Ser), nem profundezas, mas pequenos pedaços de<br />

organismo, perto de seu limite de precipitação em desordem: “meu extremo anjo de<br />

vanguarda”.<br />

Voltando a “O par que me parece”, o duplo aparece como identidade ou como<br />

diferença? Parece que os processos (pulos) e os sistemas (leopardos) estão sempre numa<br />

situação ambígua neste poema, pois são um só e, ao mesmo tempo, diversos, reversos.<br />

Esta contradição pode ser entendida como a síntese dos contrários, rumo à identidade, e<br />

5 Que se intitula “KAI”, formando um duplo com outro chamado HAI, numa espécie de elogio/reflexão<br />

ao hai kai, gênero admirado e praticado por Leminski.<br />

25


assim voltamos à leitura pacificadora que deságua na unidade — como dissemos, não<br />

descartamos esta leitura. Mas o paradoxo pode ser lido também como uma duplicidade<br />

construída que ignora, por um momento, as diferenças para se assemelhar, para parecer.<br />

No entanto o duplo também contém e pode precisar da diferença, que pode ser benéfica<br />

para que os pares (o amor) não se cristalizem em poder ou em morte. Pode-se dizer que<br />

há, realmente, uma epifania no último quarteto, mas esta talvez não implique no<br />

encontro com a unidade, mas na revelação da pluralidade na qual não há mais unidade<br />

que procurar, somente pares a construir, como no poema, como na vida, como no amor<br />

— pois todos estes podem ser temas do texto de Leminski. A partir desta constatação de<br />

inexistência do Uno (e não do seu encontro) tudo se parece:<br />

eu que só via a metade,<br />

silêncio, está tudo duplo.<br />

Esta última leitura corrompe a circularidade de uma leitura pacificadora, pois se não há<br />

o encontro que faltava e nem há mais falta, o que existe é a expansão contínua dos<br />

duplos em sua alteridade e identidade simultâneas.<br />

Há uma indefinição temática neste poema, que há também em “Distâncias<br />

mínimas”: de que fala ou, pelo menos, a que sentidos o poema remete (ou resvala)?<br />

Ambos os poemas pertencem a Distraídos Venceremos e no prefácio desta obra<br />

Leminski faz a seguinte introdução/advertência, ela mesma uma espécie de poema em<br />

prosa:<br />

Nas unidades de Distraídos Venceremos (1983-1987), resultado do impacto<br />

da poesia de Caprichos e Relaxos (1983) sobre a fina e grossa cútis da minha<br />

sensibilidade lírica, calmes blocs ici-bas chus dún desastre obscur, cadeias de Markoff<br />

em direção a uma frase absoluta, arrisco crer ter atingido um horizonte longamente<br />

almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da<br />

rarefação. (Leminski, 1987a, p. 7).<br />

De onde podemos ver que a indefinição semântica é intencional. Mais que intencional,<br />

talvez seja uma necessidade, pois como vimos em “Distâncias mínimas” e “O par que<br />

me parece”, a abolição da referência (entendendo-a como o referido pela convenção, o<br />

normal, ou a norma codificada) é inevitável num trabalho poético que procura<br />

exatamente as frestas no que se crê inconsútil, o momento da construção do que se crê<br />

intemporal, a mobilidade do que se crê assentado em bases sólidas. Neste espaço-tempo<br />

do indefinido e aberto a todas as possibilidades (inclusive a da entropia total, da morte),<br />

como definir claramente entidades, temas, sentidos se estes estão por nascer?<br />

Pelo que dissemos, parece que Leminski procura por um momento original, no<br />

passado, onde as coisas ainda não se definiram. Nada mais enganoso, pois sua obra não<br />

está nem aquém nem além de algum tempo ou lugar. Pelo contrário, encontra-se<br />

26


adicalmente comprometida com o presente: é no agora e para o agora que se procura a<br />

abertura a novas e particulares possibilidades. O ‘antigo’ de “Distâncias mínimas” e o<br />

‘hitita’ de “O par que me parece” remetem a tempos imemoriais, à nossa tradição, mas<br />

nos dois casos há uma afirmação do presente e da circunstância, inerentes à ação, ao<br />

processo que é sempre singular e circunstancial e que é um elemento fundamental,<br />

como vimos, nestes poemas. A tradição (ou a cultura mesma) é um processamento<br />

(enredar) constante do texto-morcego, dos (g)ritos duplicados/multiplicados<br />

infinitamente: ela é antes um uso que uma presença.<br />

***<br />

Neste texto e no anterior ensaios tratamos obstinadamente do par sujeito-objeto<br />

e sua presença na (leitura da) poesia. Isto se dá porque temos que nos haver com a<br />

tradição em qualquer trabalho textual e há, estabelecida nesta tradição, uma definição<br />

ainda válida (quando dizemos válida, referimo-nos à validade dos códigos,<br />

convencionada) da poesia, que se constitui exatamente da oposição entre sujeito e<br />

objeto.<br />

O lirismo se define então por sua subjetividade, pela expansão dos estados<br />

interiores, subjetivos (não necessariamente do poeta, mas de um eu lírico), que vão<br />

englobar toda a realidade circundante. A lógica analógica da metáfora, os paralelismos<br />

sonoros, as rupturas sintáticas, tudo isto seriam índices da manifestação do sujeito,<br />

essencialmente (e inconscientemente) onírico, simbólico, imagético. O mundo interior<br />

se abre e acolhe o exterior, tornando-o uma extensão de suas leis muito particulares.<br />

A tentativa de uma poesia objetiva, voltada para as coisas (sejam elas do<br />

mundo: a sociedade; ou do signo: o significante) suscita logo a categoria da anti-lira,<br />

que se define pelo centramento no objeto e a recusa do sujeito e da subjetividade. Mas<br />

esta permanece, seja como antagonista necessária (o mal), seja como o elemento<br />

marginalizado que retorna pelas frinchas dos artefatos poéticos, nunca perfeitamente<br />

impermeáveis ao fluxo subjetivo — nem que seja a da subjetividade coletiva. Como o<br />

poema-objeto pode se tornar impermeável à expressão subjetiva se ele se define pelo<br />

confronto com o sujeito? E o confronto não deixa de ser uma interdependência.<br />

A identificação da poesia com a subjetividade não seria uma invenção<br />

romântica (talvez renascentista)? Este sujeito seria primeiro o cristão, sólido e imutável,<br />

que se esfacelava com a consolidação do capitalismo e, depois, o sujeito moderno,<br />

freudiano, problemático, esfacelado. Este último até se concilia bem com a chamada<br />

anti-lira ou poesia objetiva: o foco no objeto seria a expressão desta subjetividade<br />

cindida. Em todo caso há o sujeito (ou o Sujeito), seja o inconsútil de uma suposta<br />

poesia romântica, seja o cindido da poesia modernista — mas cuja unidade, mesmo que<br />

inatingível, se constitui numa meta a ser alcançada, seja pelo retorno nostálgico ou pela<br />

27


projeção utópica. Não obstante, parece perpassar as obras dos poetas a desconfiança a<br />

respeito da funcionalidade da leitura que vê em suas obras, ou a expressão da<br />

subjetividade, ou a construção de objetos poéticos: o que designa, para Oswald, Mário,<br />

Drummond, Gullar, a primeira pessoa ou o nome próprio? Mas a crítica sempre pode<br />

contornar estes problemas evocando a subjetividade problemática, esfacelada, múltipla,<br />

mas sempre subjetividade: problemática, esfacelada e múltipla são atributos que a<br />

complicam, mas não retiram sua essência. Do outro lado, na margem objetiva (a antilira<br />

ou poesia de estruturação), a crítica pode sempre dizer: a subjetividade falta; e com<br />

razão, pois a poesia se define (não que ela seja realmente) por esta falta que é seu pólo<br />

complementar e, portanto, necessário.<br />

De fato, a oposição e a ruptura (e a poesia da estruturação se propõe como um<br />

discurso de ruptura), não raro, apenas vêm confirmar as polaridades de um sistema, o<br />

seu jogo pré-constituído de ausências e presenças, reforçando a unidade sujeito-objeto<br />

que se pretendia desintegrar com a opção pela objetividade:<br />

(...) a destruição do discurso não é um termo dialético, mas um termo semântico:<br />

alinha-se docilmente sobre o grande mito semiológico do versus (branco versus<br />

negro); a partir daí a destruição da arte está condenada às exclusivas formas<br />

paradoxais (aquelas que vão, literalmente, contra a doxa): os dois lados do paradigma<br />

estão colados um no outro de um modo finalmente cúmplice: há acordo estrutural<br />

entre as formas contestantes e as formas contestadas. (Barthes, 1977, p. 71).<br />

E há também meio-tons, sínteses sujeito-objeto, eu-mundo que permitem uma variada e<br />

complexa gama de cruzamentos e entrecruzamentos entre as duas essências. Os poetas<br />

realmente costumam sonhar, devanear, delirar, enlouquecer. Há os que são lúcidos e<br />

geométricos, projetistas de linguagens. Certamente são ambas as coisas: o delírio não se<br />

apossaria das atividades supostamente lúcidas, como a ciência e a engenharia, nos seus<br />

momentos criativos? Mas o que garante serem estes delírios uma expansão da<br />

subjetividade individual, de seu inconsciente ou o de um suposto eu lírico (que apenas<br />

torna o ser da subjetividade mais abstrato e ideal)? Não resolvemos o problema<br />

deslocando a subjetividade do indivíduo para a coletividade ou sua linguagem, se ainda<br />

concebemos esta coletividade como sistemas centrados: a cultura brasileira; a língua<br />

brasileira; a linguagem enquanto estrutura ou mesmo a linguagem literária em sua<br />

imanência.<br />

Mas se fizermos uma pequena subversão nas classes gramaticais, usando, não o<br />

adjetivo ‘múltiplo’, mas sua forma substantiva, como Deleuze usa, a ‘multiplicidade’,<br />

como ficaria a subjetividade? Tornar-se-ia, por inversão o adjetivo ‘subjetivo’?<br />

Teríamos então uma multiplicidade subjetiva, mas somente como resultado de um<br />

processo de subjetivação, que pode comportar o seu contrário, de des-subjetivação: a<br />

subjetividade se tornaria uma ação, um verbo (subjetivar) de uma pluralidade.<br />

28


“Distâncias mínimas” realiza, entre tantas coisas, um processo (que é sempre uma<br />

tentativa) de subjetivação. Mas a subjetivação não é somente a construção de um sujeito<br />

individual ou coletivo (isto ainda seria a busca do sujeito perdido): ela pode ser<br />

qualquer delimitação, de um evento, objeto, texto. Mesmo quando se diz ‘eu’, o que nos<br />

garante que este pronome não passa de uma construção textual (ruinosa)? Qualquer um<br />

destes individuados é constituído de multiplicidades, não que eles as contenha (isto<br />

reavivaria o dentro e o fora, o micro e o macrocosmo), mas são atravessados por elas<br />

que, por sua vez, perpassam outros sistemas, sempre mudando os ‘ambientes’<br />

perpassados e também se modificando a cada conexão que faz. É o caso do textomorcego<br />

e da cultura-caverna: ambos são textos plurais que se interpenetram, ou<br />

melhor, pluralidades que mudam de regime, que se ajeitam, ora como morcego, ora<br />

como caverna: não há, rigorosamente, nem morcego nem caverna, nem texto nem<br />

cultura, apenas gritos e ecos, texturas e aculturação: subjetivações diferenciadas.<br />

As loucuras e os delírios do poeta (ou do eu lírico) seriam o abandono de si a<br />

estes fluxos e refluxos que constituem e atravessam as subjetivações precárias e não a<br />

expressão de um sujeito centrado ou esfacelado. Seriam o abandono do eu lírico à<br />

“língua sem fim, feita de ais e de aquis”, do morcego aos gritos e ecos que o guia(?).<br />

Neste processo, nem o poeta é mais ativo do que os fluxos, nem vice-versa, porque ele<br />

mesmo se torna em fluxo como quando nos abandonamos na correnteza de um rio:<br />

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre<br />

tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais<br />

ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia<br />

gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo;<br />

perdido neste tecido — nesta textura — o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que<br />

se dissolvesse ela mesma nas secreções constitutivas de sua teia. Se gostássemos dos<br />

neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o<br />

tecido e a teia de aranha). (Barthes, 1977, pp. 82-83).<br />

Geralmente o sentido normal das coisas (as convenções) se quebra no exercício<br />

poético, isto é lugar comum. Uma destas normalidades rompidas é a da arbitrariedade<br />

do signo, a qual pode ser interpretada como uma tentativa de unir corpo (significante) e<br />

alma (significado) no nível da linguagem. É claro que todo este rompimento com a<br />

normalidade da língua remeteria a uma suposta língua mais pura: delírio teleológico<br />

rumo às essências. Mas a construção da motivação do signo como rompimento com a<br />

normalidade, pode ser apenas mais um processo particular de subjetivação que resulta<br />

no texto poético, ele mesmo uma individuação constituída (ladeada, atravessada,<br />

encharcada) de plural: o poema é um ‘sujeito’, a multiplicidade subjetivada. Como diz<br />

Samuel R. Levin, “o poema gera seu próprio código, do qual é a única mensagem”<br />

(1975, p. 67). Esta singularidade radical do poema é que o faz fugir das précodificações,<br />

inclusive as de transcendência ontológica: corpo+alma=Ser. O delírio<br />

codificador ao qual se abandona o poeta sob a perspectiva dos sistemas abertos é um<br />

29


abandono aos fluxos da multiplicidade que, se são subjetivados, não deixam de mudar<br />

de natureza a cada subjetivação (o poema gera seu próprio código) e não imitam ou<br />

simbolizam outro sujeito, ou seja, não galgam redes hierárquicas rumo à subjetivaçãomor,<br />

seja ela a essência do Ser, seja a estrutura da linguagem poética.<br />

Leminski, enquanto articulador, conector e desconector de dispositivos, não só<br />

de linguagem, mas culturais, subjetivos, religiosos, simbólicos, enquanto poeta enfim,<br />

deixa perpassar esta perspectiva (ou esta possibilidade de uso) de sua obra: a da textura,<br />

ou melhor, a do tecer-se sem saudade da fixidez ou do molde enquanto causa inicial ou<br />

final do enredamento. Mas esta fuga do molde e do centramento não perpassaria toda a<br />

poesia, sendo sua identificação com a subjetividade, com uma função quase sagrada de<br />

preservação do Ser, apenas uma arborescência de autoritarismo numa atividade que<br />

sempre se caracterizou pela propagação? Praga: rimas, aliterações, ecos, ritmos, versos,<br />

pausas, analogias, contrastes, pares, pareceres, duplos, acoplamentos, conjunções e<br />

disjunções, fluxo, cortes de fluxo, fazer-se, geração delirante de códigos, expansão do<br />

desejo.<br />

30


FRAGMENTO 1<br />

Só a categoria da multiplicidade, empregue como substantivo e superando tanto o<br />

múltiplo como o Uno, superando a relação predicativa do Uno e do múltiplo, será<br />

capaz de explicar a produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura,<br />

ou seja, afirmação irredutível à unidade. Estamos na idade dos objetos parciais, dos<br />

tijolos e dos restos. Já não acreditamos nesses falsos fragmentos que, como os<br />

pedaços de uma estátua antiga esperam vir a ser completados e reunidos para<br />

comporem uma unidade que é, também, a unidade de origem. Já não acreditamos<br />

numa totalidade original, nem sequer numa totalidade final. Já não acreditamos numa<br />

velha pintura de uma enfadonha dialética evolutiva, que pensa que pacificou os<br />

pedaços porque lhes arredondou as arestas. (Deleuze; Guattari, 1995a, p. 45).<br />

Estas palavras de Deleuze e Guattari vão ao encontro do que tenho dito neste<br />

texto a respeito de Leminski. Estaria eu interpretando (ou usando, torcendo e<br />

distorcendo?) este último à luz do pensamento daqueles? Creio apenas que as idéias<br />

de ambos confluem com a produção textual do próprio Leminski, de modo que o que<br />

faço aqui é antes aproximá-los do que aplicar o pensamento de uns sobre a arte do<br />

outro. A totalidade originária ou teleológica, o ser essencial e metafísico são<br />

abandonados nos poemas, em favor da multiplicidade. O pensamento de Deleuze e<br />

Guatarri constitui, para mim, uma perspectiva que facilita a abordagem dos poemas<br />

onde outros pontos de vista, mais solidamente instalados no campo literário, apenas<br />

criavam empecilhos constantes. Neste sentido, posso dizer que me proporcionaram<br />

um instrumental mais adequado para a tarefa que me propus: uma abordagem da obra<br />

de Paulo Leminski. Mas um instrumental não implica em método e muito menos em<br />

filiação a uma escola ou corrente, apenas um desbloqueio, algo como uma chave ou,<br />

como diriam Deleuze e Guatarri, uma máquina desejante que se conecta bem à<br />

máquina que é a obra em questão: de modo algum uma fôrma onde a obra (e eu)<br />

seria(mos) aprisionada(os).<br />

Há em Leminski uma rebeldia ao enquadramento, inclusive ao autoenquadramento,<br />

em alguma totalidade. Pode-se afirmar que, ao eleger o substantivo<br />

como lema de sua poesia, os concretistas pretendem atingir um lirismo básico,<br />

estrutural, dispensando todos os badulaques expressivos tão caros à poesia em língua<br />

portuguesa, particularmente brasileira. No pólo oposto, a lírica se subjetiva e a<br />

linguagem, no limite da hipertrofia do sujeito, torna-se um mero predicado da atividade<br />

criadora. Este sujeito hipertrofiado pode ser tanto uma coletividade (a sociedade, a<br />

cultura, o homem brasileiro) quanto uma individualidade, uma pessoa. As coisas<br />

podem se embaraçar e ficarem muito complexas, mas os pólos continuam a agir.<br />

Primeiro o pólo sujeito-linguagem; o primeiro termo deste se subdivide em sujeito<br />

individual e sujeito coletivo: indivíduo e sociedade; o segundo, por sua vez, se<br />

decompõe em forma e conteúdo, significante e significado. Dados os elementos do<br />

sistema, resta verificar suas sutilezas, seus melindres em cada autor: como enquadrar<br />

Mário, Drummond, Bandeira? Há também que moldar o sistema às influências<br />

estranhas, estrangeiras: e Joyce, Pound, Mallarmé? Como enfrentar/absorver a crítica<br />

psicanalítica, estruturalista, culturalista? Essa perspectiva crítica, ao mesmo tempo<br />

simples e engenhosa (pois permite uma crescente complexidade), é exatamente a que<br />

31


se instaura no Modernismo Brasileiro que, na sua dominante, como vê bem Antônio<br />

Cândido (1976), se propõe a uma busca das peculiaridades brasileiras, do Brasil,<br />

portanto ainda inserindo-se dentro do projeto de construção de uma identidade<br />

nacional: identidade, unidade, totalidade. Mesmo que o fracasso seja inevitável e a<br />

tentativa resulte no Macunaíma, a unidade é, no mínimo, um porvir utópico.<br />

Mas a pergunta que se deve fazer é se a crítica literária brasileira também<br />

não desposou, à sua maneira, este projeto, não apenas como contempladora altiva da<br />

luta dos artistas, mas principalmente como combatente às vezes mais atuante que os<br />

próprios artistas. De Cândido à Schwarz e Bosi, de Oswald aos Concretos, pela forma<br />

ou pelo conteúdo, universal ou particular, com todos e com tudo que se tinha à mão,<br />

da década de 20 à de 50, toda a literatura do Brasil Colônia, Imperial e Republicano foi<br />

relida, revista (reusada e retorcida); muita crítica literária foi produzida, tudo isto para<br />

se construir um prédio, um tanto ruinoso, que se chama Literatura Brasileira que, por<br />

sua vez, é fundamental numa cidade chamada Cultura ou Sociedade Brasileira. É<br />

admirável toda esta Tradição construída em tão pouco tempo, mas talvez sempre<br />

tenha perpassado entre seus artífices-mores a sensação de que esta unidade toda<br />

estava sempre por ruir, se é que já não esteve o tempo todo arruinada: mas isto é um<br />

mal-estar de todos os modernos, sejam eles brasileiros ou europeus, pois a<br />

modernidade é exatamente a tradição da ruptura como nos ensina Octávio Paz (1993,<br />

cap. 1). Mas mesmo neste tipo de (anti)tradição, ainda sobrevivem lugares que<br />

transcendem todo movimento, tais como sujeito-objeto, forma-conteúdo: Cabral é<br />

objeto e — ao mesmo tempo e à sua maneira — forma e conteúdo. Estes portos<br />

seguros não significam nem simplicidade nem comodismo, pois suas variações são<br />

complexas e os caminhos para os portos cada vez mais tortuosos e perigosos. Talvez<br />

os concretistas representem, ao mesmo tempo, o ápice e a ruína desta aventura<br />

totalizante. Sua obsessão pela estrutura se mescla à paixão pelo movimento; sua<br />

objetividade rigorosa se deixa contaminar pela vivência vanguardista, de furor e<br />

entrega; seu projeto de construir “paideumas” e novos cânones radicais, portanto de<br />

conquista de poder dentro do campo literário, se contamina muitas vezes com<br />

casamentos suspeitos com a música popular, com a ruptura constante consigo mesmo<br />

e com o contato — crítico e entusiástico — com os meios de comunicação de massa.<br />

Mas ainda assim afirmavam sua poética substantiva como lema — será que a<br />

praticaram?<br />

Se pudesse indicar a classe gramatical em que se enquadra a poética de<br />

Leminski, a única que me vem à mente é a do verbo. Isto já foi afirmado por mim na<br />

análise dos poemas. Ora, o sentido dessa afirmação, quando colocada em confronto<br />

com a tradição da crítica literária brasileira, de que estou tratando aqui, é a de uma<br />

inadequação das ferramentas ou das categorias que ela me oferece para abordar sua<br />

poesia. A crítica modernista tem elaborado sistemas em que a obra deve ser<br />

apreendida. É claro que, para isto, ela parte das próprias obras e do campo social, ou<br />

pelo menos de um nível de exigência destes — sempre há vários —, mas seus<br />

sistemas talvez não sirvam para abordar Leminski. Em primeiro lugar porque sua obra<br />

não parece pedir para ser apreendida, nem mesmo como uma “obra aberta” que<br />

sonha ou lamenta o seu impossível fechamento. Em segundo lugar, se eu insistisse<br />

32


em fechá-la nos códigos de apreensão modernistas, fatalmente o resultado de minha<br />

pesquisa seria o de que Leminski é um poeta falho, cheio de trocadilhos e cacoetes,<br />

incapaz de engendrar poemas longos ou investir em metáforas densas e profundas.<br />

Esta incapacidade, esta recusa das profundezas que ele faz questão de afirmar —<br />

“Detesto a poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia”.<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 194). — é elemento constituinte de sua poesia de<br />

“ventania”, rajadas de vento que impulsionam seu texto sempre para mais longe de<br />

qualquer porto: engendrar-se perpétuo que não se quer deixar aprisionar em códigos<br />

literários. Assim, o exercício textual, que sob o ponto de vista dos sistemas literários<br />

pré-armados pode parecer superficialidade no sentido pejorativo do termo (o que se<br />

opõe à essência é o excremento), pode ser tomado como a superficialidade mais<br />

intensa e mais revolucionária:<br />

Pra que sirvo se não pra isto,<br />

pra ser vinte e pra ser visto,<br />

pra ser versa e pra ser vice,<br />

pra ser a super superfície<br />

onde o verbo vem ser mais?<br />

(Leminski, 1987a, pg. 83).<br />

a que nem pergunta mais pela presença, pelas essências ou pela verdade e expandese<br />

(e torna-se) na superfície do texto-textura que nada encobre: nenhum mito por<br />

baixo, apenas registros de superfície, ritos repetidos e diferidos — em processo.<br />

O verbo não estabelece presenças como o substantivo, nem se identifica com<br />

atributos destas presenças, caso do adjetivo (ou da predicação, do ponto de vista<br />

sintático). Ele é apenas o processo, a ação e o movimento constantes, sem origem ou<br />

fim necessários que lhe pré ou pós existam — não há um aquém ou um além do<br />

processo. O que não quer dizer que ele seja um fim em si mesmo, um meio que se<br />

torna fim, mas simplesmente seus fins são absolutamente circunstanciais,<br />

negociações permanentes: a finalidade de um processo é sua efetivação, mas esta<br />

não se liga a nenhuma causa inicial ou teleologia que lhe guie. Efetivação é um termo<br />

muito próximo de subjetivação, construção de limites provisórios: não são os limites (e<br />

os territórios que eles definem) depois de dados que importam (eles nunca estão<br />

completamente dados ou terminados), mas sua construção e uso, sua efetivação. É<br />

claro que numa construção sintagmática aceitável (submetida a um código) a ação<br />

remete (depende) quase sempre a um sujeito e muitas vezes a seus atributos. Assim<br />

também se comportam as narrativas clássicas: sempre existem agentes causadores<br />

da ação, segundo determinados códigos narrativos e culturais. Mas se se aceitar que<br />

estes códigos são construtos (e uma contribuição fundamental do estruturalismo foi<br />

tomá-los como tais) pode-se supor que outras leis poderiam reger as narrativas e os<br />

sintagmas. Mas também se pode supor que a ação, que os processos é que<br />

constituem o elemento fundamental de um sistema ou, se quiser, de uma estrutura.<br />

Ora, isto implica em aceitar que tudo nesta suposta estrutura está fazendo-se<br />

permanentemente, inclusive seus agentes, seu(s) centro(s) e suas leis. Como é<br />

possível a gramática, a unidade ou a presença num tal sistema onde tudo se move,<br />

33


inclusive leis e unidades de medida? Estas questões são freqüentemente abordadas<br />

na obra de Leminski e sua opção, parece-me, é em favor de uma perspectiva que<br />

tende ao movimento e à relatividade própria desses sistemas sem o centro e sem a lei<br />

(ou o código: os dez mandamentos).<br />

Mas que sistemas centrados são estes contra os quais os textos de Leminski<br />

podem ser colocados como uma perspectiva a-centrada? Creio que todos os que se<br />

inscrevem no campo que os antropólogos chamam de cultura, quer dizer,<br />

simplesmente todas as fábulas que se cristalizaram (estruturaram) numa metafísica,<br />

supondo um Ser ou uma Autoridade onipotente e necessária, controlando de fora as<br />

cadeias de eventos do mundo — as fábulas que tomam ou querem tomar o poder. E<br />

(o que me interessa especificamente neste momento) esta perspectiva de fuga da<br />

Autoridade aplica-se à Literatura em geral e à Literatura Brasileira em particular:<br />

Fazer poemas fundindo verbal e visual é sempre uma boa. Como o é fundir verbal e<br />

sonoro-musical, verbal e gestual. O diabo. O que não dá mais para agüentar são<br />

essas argumentações do tipo: ‘No marasmo asmático reinante, é preciso separar o<br />

passo adiante do passo ao lado’. E eu pergunto: Quem vai fazer isso? O general<br />

Newton Cruz? (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 25).<br />

Uma afirmação dessas (que se direciona contra projetos totalitários vanguardistas)<br />

não teria muita importância, entre tantas que alguém inconstante como Leminski fez,<br />

se sua obra não realizasse (ou pelo menos tentasse), de alguma maneira, esta<br />

perspectiva não progressiva — no sentido de se caminhar para algum ápice que<br />

implique em domínio (topo, centro) de uma totalidade. Mas é justamente o que sua<br />

poesia-processo quer realizar: a fuga permanente dos códigos e subjetividades préestabelecidas,<br />

a (a)variação constante dos sistemas tornando-os abertos.<br />

34


AIS. OU MENOS<br />

Forma e conteúdo, significante e significado: pares utilizados mais ou menos<br />

como sinônimos pela crítica modernista e nos quais o rigor estaria nos primeiros termos:<br />

a forma e o significante ou a forma do significante caracterizariam as ditas poéticas<br />

rigorosas ou construtivas, assim também como a crítica sensível às conquistas destas<br />

poéticas. Outro par, já conhecido nosso, entraria nesta lógica: exatamente a oposição<br />

objeto-sujeito, completando a tríplice bi-articulação: forma/conteúdo, rigor/não rigor,<br />

objeto/sujeito. Estas oposições foram bem resumidas numa única por Haroldo de<br />

Campos (1970, pp. 203-204): a poesia de estruturação, por um lado e a poesia de<br />

expressão, por outro. Estes termos são muito eficazes, pois explicitam o que está por<br />

trás de muitas brigas que se travam no campo da crítica literária em torno destas<br />

bipolaridades.<br />

Grosseiramente, a expressão implica numa representação e num representado,<br />

ou seja, na expressividade de algo ou alguém supostamente fixo (e inatingível) cujo<br />

jogo representativo tentaria apreender. Este algo ou alguém representado pode coincidir<br />

com a noção de sujeito, identificado como ser fixo e imutável, embora inapreensível,<br />

seja ele Deus, o Homem ou o Eu. O não rigor da poesia de expressão decorreria de uma<br />

certa espontaneidade desta mesma expressão que fluiria naturalmente do ser, bastando<br />

que este estivesse adequadamente motivado para isto: uma grande dor, por exemplo. O<br />

que se representaria do ser seriam conteúdos (ou significados), nacos compreensíveis<br />

(mas incompletos) transportados pela obra e que proporcionariam um vislumbre terreno<br />

e finito de sua natureza sobrenatural, infinita e completa.<br />

A poesia de estruturação implicaria numa prática poética desvinculada (mas<br />

não indiferente) da subjetividade e de sua expressão. Estas seriam colocadas em posição<br />

secundária: ou aquém ou além da prática construtora do poema. Aquém porque ocuparia<br />

a ante-câmera da prática poética, como motivação social ou psicológica que não<br />

interessaria (pois não determinaria a qualidade final do produto) ao objeto literário<br />

enquanto artefato construído. Além porque a subjetividade agiria no momento da<br />

fruição, dando à forma objetiva do poema os conteúdos que este permite (pois o poema<br />

formaliza também conteúdos) e que, ao mesmo tempo, interessam e pertencem ao<br />

receptor, sujeito da fruição. A fruição (recepção) da obra seria definida como o choque<br />

entre a estrutura construída do poema e a estrutura espontânea do sujeito: choque entre<br />

arte e natureza ou, pelo menos, entre arte e sociedade (da qual emergiria a subjetividade<br />

individual – mas a própria sociedade constituiria uma espécie de hiper-sujeito, com<br />

identidade, limites e uma certa fixidez). De certa forma, o concretismo pôs, no âmbito<br />

da literatura brasileira, estes termos de forma transparente, optando pela via do rigor, da<br />

objetividade e da forma, resumidos no termo estruturação.<br />

35


Mas a estruturação, embora se desvincule da expressão, não é indiferente a ela<br />

e a supõe como etapa complementar, necessária à prática poética, embora insuficiente<br />

para determinar sua qualidade. Esta seria determinada pela coisa em si, pela forma<br />

como os significantes são arranjados no objeto poético de modo a subordinar os<br />

conteúdos expressivos que o motivaram (o aquém de sua prática) e a fazer deslizar<br />

sobre a estrutura os conteúdos expressivos que o poema irá estimular (o além da<br />

construção): “O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente<br />

organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o<br />

campo de possibilidades aberto ao leitor.” (Campos, 1975b, p. 100). O rigor seria,<br />

então, fundamental neste processo, pois implica numa (auto)disciplina que controlaria<br />

os fluxos espontâneos, irresistíveis e pouco controláveis da subjetividade. Por que esta<br />

obsessão em fugir do lirismo expressivo, da espontânea expansão subjetiva? Para criar<br />

novidade, mensagens inéditas, rupturas; para evitar as formas gastas, repetitivas e<br />

codificadas. A subjetividade gera e consome formas gastas porque tende à conservação<br />

e a poesia, no entender dos defensores da estruturação, deve ser a revolução das formas<br />

para ser a revolução dos conteúdos, das ideologias, do sujeito e (por que não?) da<br />

política e do regime econômico. A poesia deve multiplicar o sujeito, fazê-lo variar,<br />

romper consigo mesmo: o que é a tradição senão a expressão de um supersujeito<br />

coletivo, seja ele transcendental ou histórico?<br />

O concretismo quer recuperar este supersujeito, a tradição literária, nos seus<br />

pontos obscuros, renegados pela codificação oficial: Sousândrade, Kilkerry, Gregório.<br />

Quer traduzi-la para hoje — ou para amanhã — deturpando-a 1 , fazendo-a variar com<br />

suas mudanças de perspectiva e suas heresias. Mas aqui o próprio sujeito/tradição já é<br />

encarado como uma construção (como a caverna-cultura no poema de Leminski) e não<br />

como ser, como entidade centrada. Aí está a contradição (saudável) em que o<br />

concretismo se instalou: o sujeito é, ele mesmo, construção, movimento que se cristaliza<br />

em entidade fixa, ou sua fixidez é, de alguma maneira, uma realidade em si? Este<br />

pêndulo, não esclarecido nos anos heróicos do movimento, parece que vai pender,<br />

posteriormente, pela primeira alternativa nas obras dos poetas que tomaram parte do<br />

movimento vanguardista. Mas no “concretismo clássico” 2 dos anos 50 e 60 a<br />

ambigüidade prevalece e não raro os concretos vão tratar o sujeito, não como<br />

subjetivação provisória, mas como dotado de uma espécie fixidez, contra o qual eles<br />

vão lutar quixotescamente. Assim, por oposição, a obra literária torna-se também fixa,<br />

um artefato imanente, uma espécie de significante despótico sobre o qual deslizam uma<br />

infinidade de significados passiveis de interpretação, quase um objeto sagrado em torno<br />

do qual circulam os sujeitos, uma imutabilidade formal que dá mutabilidade às<br />

1 Deturpar, aqui, não tem um sentido pejorativo (que teria para os opositores do concretismo) nem<br />

positivo (se assumíssemos a posição concretista, identificando a deturpação com o make it new<br />

poundiano), mas simplesmente operacional: implica em reler a tradição de uma perspectiva não usual,<br />

contestatória, não raro provocativa, o que é uma atitude de toda vanguarda.<br />

2 A expressão, crítica e bem humorada, é de Leminski (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 48).<br />

36


subjetividades que o cercam. O poema concreto não é, por esta perspectiva, lido como<br />

uma estrutura móvel, mas sim como uma estrutura fixa que movimenta as<br />

subjetividades contra as quais ele se ergue e que são o seu complemento (opositivo)<br />

necessário.<br />

A outra perspectiva aberta pelos concretos (e que, acreditamos, foi a que<br />

Leminski explorou obsessivamente em sua obra, mais radicalmente do que os poetas<br />

concretistas) dissolve a subjetividade no movimento, olha-a como construto, como<br />

tradição-processo, processamento de codificações, maquinaria codificadora. E o poema<br />

em si, a poesia e seus pares (forma-conteúdo, significado-significante, rigor-não rigor)<br />

como se situaria diante desta perspectiva? Entre o poema e seus aquéns ou aléns (suas<br />

subjetivações), apenas se instaura numa fronteira provisória, pois ele viria de<br />

subjetivações construídas em direção a outras, ele mesmo uma espécie de subjetivação<br />

precária, ordenamento provisório de códigos conectados às subjetivações que ele<br />

descodifica o tempo todo, para recodificar-se e recodificá-las. O poema como uma<br />

máquina desejante, sempre ligada a outras máquinas, compondo uma maquinaria (fluxo<br />

maquínico). As perguntas seriam: qual o regime de funcionamento destas máquinaspoemas.<br />

E como elas se conectam às outras, sejam elas individuais, sociais ou literárias?<br />

AIS OU MENOS<br />

(oração pela descrença)<br />

Senhor<br />

peço poderes sobre o sono,<br />

esse sol em que me ponho<br />

a sofrer meus ais ou menos,<br />

sombra, quem sabe, dentro de um sonho.<br />

Quero forças para o salto<br />

do abismo onde me encontro<br />

ao hiato onde me falto.<br />

Por dentro de mim, a pedra,<br />

e, aos pés da pedra,<br />

essa sombra, pedra que se esfalfa.<br />

Pedra, letra, estrela à solta,<br />

sim, quero viver sem fé,<br />

levar a vida que falta<br />

sem nunca saber quem é.<br />

(Leminski, 1987a, p. 67).<br />

Se seguíssemos a terminologia de Ezra Pound (1970, p. 63), poderíamos dizer<br />

que os poemas de Leminski são caracterizados por uma forte melopéia em jogo com<br />

uma não menos forte logopéia: dança violenta dos sons e louca dança das idéias. Música<br />

e pensamento (significante e significado). Chamemos a melopéia (ou dança dos sons) de<br />

37


forma da expressão, deixando claro que este termo “expressão” não guarda parentesco<br />

com a chamada poesia de expressão, que talvez seria mais bem designada se a<br />

chamássemos poesia de emoção — é que esta poesia se caracterizaria pela<br />

exteriorização dos sentimentos do poeta ou do ‘eu lírico’, daí sua denominação que se<br />

vincula à ‘expressão dos sentimentos íntimos’. Continuando, chamemos a logopéia (ou<br />

dança das idéias) de forma do conteúdo. Estas denominações, tomadas de Hjelmslev<br />

(1975), são apenas funcionais e acreditamos serem mais produtivas que o par<br />

saussuriano significante-significado.<br />

Tomemos a forma da expressão no poema de Leminski — chamamo-la de<br />

‘forma’ porque se trata de uma cadeia sonora ordenada de alguma maneira. Há uma<br />

predominância da redondilha maior, metro para qual os versos tendem e em torno do<br />

qual vai se constituir o ritmo que oscila entre ternário e binário, com ligeira<br />

predominância do segundo. Há um intenso trabalho com as rimas (sono/sonho/encontro;<br />

salto/falto/esfalfa/solta/falta; fé/é) não muito simétrico, mas que marca bem a pausa no<br />

final dos versos ecoando as sonoridades paralisadas nas outras pausas, fazendo-as<br />

mover-se novamente, à medida que progredimos na leitura dos versos, mas sobre outras<br />

circunstâncias e em relação com outros sons — a rima é uma volta, uma repetição<br />

diferida, quase um ponto de subjetivação.<br />

Além das rimas há também, em “Ais ou menos”, uma intensa aliteração,<br />

principalmente a das consoantes nasais (m,n), labiodentais (f,v), da sibilante “s” e das<br />

oclusivas “b”, “p”, “d” e “t”. Este trabalho aliterativo, que também funciona por<br />

semelhança e diferença, garante a ressonância sonora de todo o poema, independente de<br />

sua repartição em verso. No penúltimo, por exemplo, há, nas posições acentuadas, uma<br />

saturação de labiodentais (f,v) que se encontram mais espraiadas em outros pontos do<br />

poema, como se, de repente, houvesse a intensificação de uma vibração que permanecia<br />

quase que aleatória. Intensificação que afetará todas as outras labiodentais que se<br />

espalham pelos outros versos.<br />

Repetição, diferença, distribuição intensiva ou extensiva de fonemas,<br />

precipitação de velocidades, ritmos e pausas: assim pode ser descrita a matéria sonora<br />

deste (de qualquer) poema. O poeta faz o texto circular as substâncias de conteúdo e de<br />

expressão. O poema funciona, movimenta ou pára estas substâncias, por isso dizemos<br />

máquinas e funcionamento e não estruturas e componentes.<br />

Quanto à forma do conteúdo, este poema, como a maior parte dos publicados<br />

nas obras posteriores a Caprichos e Relaxos, tende para a dança louca das idéias, claras<br />

ou obscuras demais para permitirem uma interpretação, se pensarmos esta como o<br />

desvendamento de um segredo que, em Leminski, se torna cada vez mais difuso, seja<br />

pelo excesso de clareza ou de obscuridade: “É porque não temos mais nada a esconder<br />

que não podemos mais ser apreendidos”. (Deleuze e Guattari, 1996, p. 70).<br />

38


O título do poema, “Ais ou menos” (que também é o título de uma parte de<br />

Distraídos Venceremos), diz respeito a uma gradação que vai do confessional à sua<br />

diminuição, do texto como exteriorização das dores do eu lírico a alguma coisa menor,<br />

não se sabe se em importância, em densidade ou tensão. É claro que o título é<br />

perpassado pelo humor (ou pelo menos pela ironia), pois além do elemento sério (as<br />

dores) vir sob a forma banal de uma interjeição, a gradação para baixo tem o efeito de<br />

uma degradação de sua seriedade. Além disso, o título remete à expressão “(m)ais ou<br />

menos”, um duplo sentido que intensifica a aludida degradação da seriedade. Mas o que<br />

era gradação vai se tornar, no subtítulo, uma contradição: oração pela descrença. O texto<br />

tem sua suposta identidade revelada: trata-se de uma oração. Mas a oração não tem o<br />

objetivo de superação das dores pela fé, pois é, paradoxalmente, pela descrença que se<br />

ora. Seriedade e humor, fé e descrença, (de)gradação e contradição: eis os elementos<br />

que percebemos na ante-sala do texto, anunciando-o. Vamos a ele:<br />

Senhor<br />

peço poderes sobre o sono,<br />

esse sol em que me ponho<br />

a sofrer meus ais ou menos,<br />

sombra, quem sabe, dentro de um sonho.<br />

O poema é gramaticalmente correto, o que contrasta com sua estranheza<br />

semântica, evidenciando-a: um recurso muito utilizado desde o simbolismo e também<br />

por Leminski. O eu lírico inicia a ‘prece’ pedindo “poderes sobre o sono”, um espaçotempo<br />

em que ele falta (sol em que me ponho) ou no qual ele sofre suas dores (ou<br />

menos), se passamos ao próximo verso e continuamos a oração: a sofrer meus ais ou<br />

menos. Aqui parece haver uma espécie de simpatia pelo mundo onírico em que o eu<br />

quer se refugiar: a opção romântica, simbolista ou surrealista pelo sonho. Mundo, ao<br />

que parece, solar e sombrio ao mesmo tempo, pois ‘sol’ é sinônimo de sono, assim<br />

como no quinto verso:<br />

sombra, quem sabe, dentro de um sonho<br />

‘sombra’ pode ser sinônimo, tanto de ‘sono’ como de ‘ais ou menos’. No primeiro caso,<br />

o sono aparece como uma sombra num sonho que remeteria à vida. Todo este aparato<br />

semântico do poema recupera a tradição do símbolo como profundidade da existência.<br />

Como se o eu lírico quisesse dominar este mundo de luzes e sombras onde sua<br />

consciência se põe esfacelada. Dado este passo interpretativo, o sentido está pronto para<br />

caminhar em direção às grandes estruturas: memória, alma, psique, deus. Isso quer dizer<br />

que o sentido está quase pronto para ser desvelado, pois se pede poderes sobre o mundo<br />

oculto para desvelá-lo e cultuá-lo, por meio da fuga, no sonho, na arte ou no símbolo. A<br />

visão da vida como um sonho e do sono como uma sombra em seu interior indicaria a<br />

39


mistificação do mundo e o rompimento da fronteira entre real e simbólico pela expansão<br />

deste último. O real essencial não estaria na vigília, mas no mundo onírico, no estado de<br />

adormecimento da consciência vigilante e o mergulho no sono significaria o mergulho<br />

no ser.<br />

No entanto o sono é o dentro do sujeito, o dentro mais profundo, denso e<br />

fechado que existe. Como este fechamento revelaria a essência do real. As leituras do<br />

poema como expressão da subjetividade, muitas vezes interpretam o mundo onírico<br />

como um fechamento relativo, um dentro em relação ao mundo da vigília, aos campos<br />

de referência da consciência. Fechada a porta a este mundo, abre-se a da infinitude do<br />

ser. Esta perspectiva subjetiva pode muito bem ser um ponto de partida para a leitura<br />

deste poema, que caminharia para uma espécie de aventura onírica pensante do eu<br />

lírico: dramas, comédias e tragédias da subjetividade contemporânea.<br />

Seguindo o fluxo semântico do poema, os próximos versos, que são uma<br />

aprofundamento e especificação do pedido inicial (“peço poderes sobre o sono”), vão da<br />

ausência para a ausência:<br />

Quero forças para o salto<br />

do abismo onde me encontro<br />

ao hiato onde me falto.<br />

numa espécie de rarefação quase absoluta do ser (e de seus sentidos), o qual se torna o<br />

espaço de uma espécie de grau zero da presença: falta de mim. O verbo encontrar pode<br />

ser tanto uma localização espacial como um índice da identidade: abismo, buraco negro<br />

da identidade que suga os fluxos da vida para o precipício de significação, memória e<br />

subjetividade. Interessante como o abismo, que também é uma ausência (de chão),<br />

torna-se, por seu poder de atração, uma espécie de presença que se contrapõe à falta e é<br />

dotada de profundidade, de força gravitacional, de onde não se escapa com facilidade:<br />

“A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua<br />

paixão, suas redundâncias.” (Deleuze e Guattari, 1996, p. 31).<br />

Passando ao plano sonoro do trecho, verificamos que, ao excesso consonantal<br />

de ‘abismo’ opõe-se, no próximo verso, o predomínio das vogais da palavra ‘hiato’. As<br />

vogais se distinguem das consoantes por sua característica de fluxo sem barreiras, sem<br />

oclusão ou obstrução. O abismo/buraco negro é um sorvedouro e um bloqueador: um<br />

construtor de unidades. Ao hiato falta a obstrução, permanecendo somente pausas e<br />

fluxos, sons e silêncios: ondas intensivas.<br />

Esta oposição entre fluxo e obstrução, é realizada tanto na cadeia das idéias<br />

(forma do conteúdo) quanto na sonora (forma da expressão). É que, embora ambas se<br />

desenvolvam independentemente, elas se pressupõem reciprocamente, de maneira que<br />

40


não se pode separá-las. Esta pressuposição recíproca não se trata duma relação causal,<br />

mas de interferência de uma cadeia na outra, de entrecruzamento, de ocupação e<br />

distribuição de espaço. O poema é um emaranhado de idéias e sons, deslocados de seu<br />

emprego usual: é um outro uso, outra máquina.<br />

Tanto o hiato quanto o abismo são ausências, mas este último implica num<br />

fundo, numa atração gravitacional rumo a algo ou alguém, ou seja, numa falta que pede<br />

para ser completada no ser. Características que o hiato não tem, pois este é uma espécie<br />

de falta positiva e absoluta que não pede complemento: um falto, um salto para o alto —<br />

ausência de gravidade onde os fluxos correm em todas as direções. Mas fluxos de que<br />

ou quem? Talvez do que outrora tenha sido um eu lírico: do que fora um aprisionamento<br />

e ordenamento dos fluxos descodificados da multiplicidade num fosso gravitacional, ou<br />

seja, uma identidade. Esta, por sua tendência à permanência se avizinha da pedra,<br />

Por dentro de mim, a pedra,<br />

e, aos pés da pedra,<br />

essa sombra, pedra que se esfalfa.<br />

seus limites precisos, seu peso e sua dureza propícios à queda e à estática temporal e<br />

espacial. Uma pedra que está no dentro: signo do fechamento, do ser, da estrutura, do<br />

organismo. Mas na base desta pedra a sombra-sono, a diluição da pedra, o rompimento<br />

dos limites entre fora e dentro.<br />

Anteriormente apresentamos o sono como dentro, fechamento ao real (como<br />

campos de referência), mas somente na perspectiva de uma abertura posterior, através<br />

do sonho, a uma realidade mais ‘real’ e completa (que não deixa de ser, portanto,<br />

fechada). Nesta linha, a sombra-sono funciona como um abismo, isto é, como uma falta<br />

negativa que pede uma presença, um outro abismo que ordene os fluxos — uma<br />

abertura que implica num fechamento posterior que a complete, seja no sujeito, no ser<br />

ou na arte.<br />

Mas o suposto eu lírico do poema não deseja esta falta abissal que só no ser<br />

encontra sua completude, mas, ao contrário, quer saltar “do abismo onde me encontro /<br />

ao hiato onde me falto”. O que se deseja, aqui, é o hiato, a falta-sombra-sono que<br />

funciona como uma abertura absoluta, a ponto de não haver mais dentro, nem mais jogo<br />

entre dentros e foras. Desejo que é reforçado quando o sujeito-pedra-eu lírico se<br />

dissolve na base que deveria sustentá-lo: pedra que se esfalfa (falfa/falta). O salto não se<br />

dá por um empuxo maior, pela atração de outro abismo, mas pelo dissolvimento, pela<br />

descodificação absoluta da pedra em pó, poeira literária e cósmica, fluxo livre dos<br />

fossos gravitacionais:<br />

Pedra, letra, estrela à solta,<br />

41


Vejamos a cadeia sonora deste verso. O movimento do ‘r’ pós-consonantal da<br />

sílaba átona em ‘pedra’ e ‘letra’ para a sílaba tônica em ‘estrela’ é como que o<br />

deslocamento (irregular de uma pedra rolando aos solavancos) de um elemento que na<br />

pedra e na letra se encontrava subjacente, aprisionado: a prisão dos códigos, do abismo<br />

gravitacional absorvendo o fluxo de luz. O som se debate num ritmo binário que relega<br />

inicialmente o ‘r’ pós-consonantal para as posições átonas (em pedra e letra), até que<br />

este se livra e passa à posição dominante (em estrela), sugerindo um est(r)alo de luz.<br />

Mas não permanece aí, pois a palavra ‘solta’ (note-se sol e sou por dentro dela)<br />

preenche a próxima sílaba tônica do verso com uma consoante fricativa (s), quase sem<br />

oclusão: a passagem do ar quase não é obstruída e o deslizamento da voz torna-se o<br />

elemento predominante — a oclusiva ‘t’ está na sílaba final átona. O ‘r’ pós-consonantal<br />

é um defeito que faz estalar (estralar/estrelar) a máquina binária oclusiva-vogal, ou seja,<br />

é o responsável pelo esfalfamento da letra-pedra que se queima/quebra em estrela e<br />

literalmente se solta (de si, de sua identidade, de sua ordenação sonora) em “solta”: o ‘r’<br />

da pedra rola pelas palavras até a intensidade máxima (tônica) em “estrela” e sua<br />

dissolução, sua falta em “solta”. Devir corpo, devir máquina do poema: obstrução e<br />

passagem de fluxos sonoros, semânticos, corporais, maquínicos.<br />

No trecho a seguir há um excesso de clareza que frustra o decifrador a procura<br />

da profundidade, do que estaria por trás do texto:<br />

sim, quero viver sem fé,<br />

levar a vida que falta<br />

sem nunca saber quem é.<br />

Resta-nos relacionar esta clareza libertária com os versos anteriores e o que lemos neles.<br />

Do ponto de vista da forma da expressão lingüística (significante) predominam, neste<br />

trecho, as fricativas, sibilantes (s) e labiodentais (v,f), ou seja, a sensação de tendência<br />

ao deslizamento da cadeia sonora do verso imediatamente anterior “Pedra, letra,estrela à<br />

solta”, se efetiva, aqui, num deslizamento/liberação dos fluxos sonoros (agora mais<br />

fluentes que obstruídos) que passam pela máquina fonadora. À quase não obstrução das<br />

fricativas se liga a descodificação do ser. Com efeito, “é” e “fé” são, nada menos que a<br />

presença do ser e sua força, o fosso gravitacional e sua gravidade ordenadora do espaço<br />

de onde se quer saltar: levar a vida que falta. Falta que remete à vida por vir, que resta,<br />

mas também a vida da falta positiva que não deseja se completar no ser. Nesta<br />

perspectiva, não tem mais relevância a questão: quem é? Não faz diferença que seja<br />

deus, a razão, a estrutura do poema, o eu ou o eu lírico, nem mesmo a sociedade. Não se<br />

quer saber, não se quer interpretar, desvendar, ser atraído (voluntária ou forçadamente)<br />

pela força de gravidade do buraco negro (abismo) da presença e do centramento.<br />

42


A autoridade é um significado, um conceito ou uma idéia presente no poema de<br />

Leminski. Esta idéia pressupõe o senhor, ou deus, mas também qualquer autoridade,<br />

inclusive a do sujeito, a do gerente, a do general, a da lei. O que está em jogo são<br />

regimes de produção e distribuição de códigos — mas também de bens, já que a<br />

codificação implica necessariamente na economia e vice-versa. Pode-se dizer então que<br />

a política é uma matéria ‘tematizada’ ou ‘tratada’ no poema. Trata-se, como muita<br />

poesia que se fez e faz, de uma fuga da autoridade, de um regime de codificação. Mas<br />

há fugas e fugas. Podemos fugir de um sistema codificado para outro no qual sempre<br />

falta uma presença (fuga romântica para o sujeito, fuga simbolista para a arte) e, neste<br />

caso, apenas substitui-se uma autoridade pela outra, não raro mais despótica. Há<br />

também fugas para uma ausência positiva, onde, na verdade, nada falta: espaços vazios<br />

a serem explorados com experimentações e não preenchidos com significações que se<br />

acumulam até formarem um fosso gravitacional atrator de mais significações. “Ais ou<br />

menos” parece tender para essa fuga positiva em que não se procura autoridade<br />

nenhuma, nenhum é (nenhum Ser). A palavra “falto” (assim como “salto”), que se opõe<br />

a “encontro” contém “alto”, que se opõe a abismo, baixo, profundo: sorvedouro de<br />

significâncias e subjetividades (pedra), lugar onde o sujeito se encontra. Esta dicotomia<br />

é explorada no poema e o verso “Pedra, letra, estrela à solta” é uma espécie de<br />

passagem do aprisionamento à liberdade, do estático ao dinâmico, do peso à ausência de<br />

gravidade, da matéria à energia e ao vácuo: pedra, letra, estrela: metamorfose da pedra<br />

em estrela que depois se “solta” (palavra que não mais rima com a anterior, como as<br />

outras: há também uma soltura rímica), desliza no espaço vazio. O signo, a “letra”,<br />

aparece como passagem desta transformação: a poesia-letra como esfalfamento da<br />

pedra-ser, até se chegar ao ponto em que não se quer saber mais, não importa mais saber<br />

“quem é”. Neste sentido o poema é uma descodificação, máquina de descentramento<br />

que fará liberar os fluxos aprisionados na subjetividade e na significância. O resultado<br />

não será o caos, efeito de uma precipitação desgovernada. Não é à toa que se pede<br />

“poderes sobre o sono” e “forças para o salto” (para o alto/gravidade zero), há todo um<br />

cuidado neste trabalho descodificador para não se perder a vida e poder levar a vida que<br />

falta:<br />

O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas<br />

precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós,<br />

mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre<br />

um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar<br />

favorável, eventuais movimentos de desterritorialização [desestratificação], linhas de<br />

fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar<br />

segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço<br />

de uma nova terra. (Deleuze e Guattari, 1996, pp. 23-24).<br />

Perde-se ‘apenas’ a vida com fé, o seu aprisionamento/estratificação em ordens<br />

hierárquicas nas quais as multiplicidades são rebatidas na unidade da pedra e os fluxos<br />

43


se abismam numa única direção imposta pela lei (gravitacional, bio-psíquica, social).<br />

Mas ganha-se sempre uma nova vida-terra-estrela a solta.<br />

No início deste texto, lemos o mergulho no sono-sonho como evocação da<br />

sondagem do inconsciente e nossa leitura não precisa mudar este aspecto. Apenas não<br />

existe o mergulho para o fundo e sim o salto do abismo: o inconsciente como alto,<br />

vácuo sem gravidade aberto à exploração, à viagem (estrela à solta), como<br />

multiplicidade povoada de possibilidades. Ao invés da profundidade psíquica, o poema<br />

nos leva à amplitude espacial onde a subjetivação será apenas fluxos energéticos em<br />

conjunção, matéria em fusão: estrela. O que antes era matéria inerte torna-se fluxo em<br />

movimento: o sentido e a identidade como estados circunstanciais e intensivos desta<br />

matéria que se consome e não tem fronteiras com o espaço: o calor e a luz são<br />

prolongamentos da estrela no vácuo.<br />

Se lermos o poema como metalinguagem, ele remete (ou deseja) ao texto<br />

poético como uma espécie de campo de intensidade, subjetivação momentânea ou<br />

matéria em fusão (estrela). Neste caso, os limites com o ambiente (contexto, campos de<br />

referência) são sempre muito provisórios. “Ais ou menos” é um tipo de texto que vai<br />

nesta direção e, digamos, com certa consciência. Mais ainda, o poema quer este<br />

dissolvimento de limites e encara a si mesmo, ao ser e ao ‘eu’ como campos intensivos<br />

(subjetivações) de limites efetivos, mas não essenciais nem definitivos. Devir de um<br />

campo no outro: de pedra-eu-ser em letra-língua-poema e daí em estrela, circulação<br />

pura de intensidades. Em toda pedra uma estrela, não metaforicamente, mas no sentido<br />

de que os sistemas e seus códigos são aprisionamento de fluxos que, no entanto, estão<br />

prontos para vazar por todos os lados.<br />

O próprio poema carrega o seu punhado de codificação (de sistema, portanto),<br />

já que rearranja matérias formadas em outros regimes. Mas o regime desta codificação<br />

é bem diferente do dos campos de referência que são codificações as quais chamamos<br />

de real 3 . O texto literário em sua seleção e rearranjo destes campos procura sempre<br />

injetar um pouco de caos neles, ou seja, é uma “irrealização do real e uma realização do<br />

imaginário”, para usarmos os termos de Wolfgang Iser (1983, p. 387): desarranjo, por<br />

seleção não pré-codificada, dos campos de referência para, por combinação também não<br />

pré-codificada, atingir um rearranjo fictício, ou seja, consciente de seu caráter<br />

construtivo. Configurar um pouco de caos, trazendo-o ao mundo real; linhas de fuga,<br />

“pedra, letra, estrela à solta”.<br />

Os riscos deste exercício são sempre grandes: por um lado, pode-se não ir<br />

longe (ou fora) o suficiente, ficando preso ao “abismo onde me encontro” da<br />

3<br />

Uma interessante abordagem a respeito deste assunto e da qual somos tributários encontra-se em Iser<br />

(1983).<br />

44


significação e da subjetivação; por outro lado, há o perigo de uma precipitação muito<br />

rápida, uma descodificação muito violenta que leva ao caos absoluto (morte) como<br />

podemos ler neste outro texto de Leminski:<br />

vi ontem na tv o “three seconds to hell” do aldrich<br />

é a história de um grupo de desmontadores de bomba<br />

da alemanha do após guerra<br />

um erro mínimo e a bomba PUM ! na cara do desmontador<br />

escrever poemas é assim<br />

um erro e o poema explode na tua cara<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 138).<br />

O desmonte da bomba remete ao desmonte da linguagem, ou melhor, dos códigos<br />

(descodificação, des-subjetivação, a-significância) que, intentado sem a perícia e as<br />

precauções necessárias (tão decisivas para o poeta quanto para os desmontadores de<br />

bombas), pode ser fatal. Não estamos falando por metáforas. Excesso de vida,<br />

rompimento dos limites que se precipita em morte, atingem não apenas os poetas,<br />

artistas e loucos, mas qualquer um. É um problema de códigos, mas os códigos são um<br />

problema da vida e do desejo.<br />

***<br />

Da leitura que fizemos, pode-se dizer que agimos (tradicionalmente) na biarticulação<br />

significante-significado, na qual o poema se abre à cifração e à decifração,<br />

por mais que o poeta (e o crítico) queira fugir delas: o jogo da linguagem, mesmo para<br />

ser superado (ou tentar sê-lo) passa inevitavelmente pela significância. Enquanto<br />

sensação e corporeidade o poema arrasta em seu campo intensivo matérias<br />

extralingüísticas, mas a linguagem (as palavras) também é arrastada no turbilhão<br />

(mesmo que para serem descodificadas, arrastadas para fora de si) e sua importância não<br />

deve ser menosprezada:<br />

Durante muito tempo compartilhei de uma certa ilusão que se deve a minha admiração<br />

por Décio Pignatari, a da idéia de se combater o logocentrismo, a palavra no centro<br />

das coisas e tudo o mais em volta. As outras manifestações de linguagem ficariam<br />

submanifestações e o idioma como manifestação por excelência. (...) Acho hoje, com<br />

a maior clareza do mundo, que existe um específico do idioma, da linguagem com a<br />

palavra que não tem paralelo, e nem outras linguagens. A palavra pode falar de um<br />

quadro, um quadro não pode falar das palavras. (...) As palavras têm uma espécie de<br />

estatuto metalingüístico, um estatuto crítico, um estatuto de dizer sobre, que é o seu<br />

específico. (...) Foi um ultra-esquerdismo icônico que vivi durante muito tempo, de<br />

pensar assim, de colocar uma espécie de horizontal dada em todos os códigos, em<br />

todas as linguagens. (...) A própria poesia que faço, a que procuro fazer hoje, uma<br />

poesia não imagética, não melopaica, quer dizer, não musical, quer dizer, não<br />

excluindo esses valores, mas uma poesia, sobretudo, feita de pensamentos, quer dizer<br />

45


aciocínios. (...) as pessoas que lêem as coisas que venho fazendo, vêm observando<br />

constantemente que, num poema, eu procuro a poesia numa girada do pensamento,<br />

não propriamente numa explosão de cores e imagens. O redondo rolar daquele<br />

pensamento que sai e a loucura lógica dele, que é a sua poeticidade. [grifo do autor]<br />

(Leminski, 1987b, pp. 299-300).<br />

Não se trata, obviamente, de uma guinada à recodificação lingüística, mas do<br />

reconhecimento de que, quando se lida com o código da língua, é impossível não<br />

considerar suas especificidades, nem que seja para leva-lo à “loucura lógica”: dança<br />

louca das idéias. A descodificação ou a poeticidade deve passar pelos códigos, levandoos<br />

além de seus limites auto-impostos, sempre um salto mais para o alto, do abismo da<br />

significância para o vácuo a-significante. Assim também, a des-subjetivação (de que<br />

temos tratado obsessivamente) deve passar obrigatoriamente pelo sujeito — construção<br />

burguesa, capitalista. Este conjunto, subjetividade+significância, é chamado por<br />

Deleuze e Guattari de rostidade, uma máquina abstrata que nos cerca e, por isso mesmo,<br />

deve ser nosso ponto de partida:<br />

Não podemos voltar atrás [às máquinas abstratas anteriores a de rostidade]. (...) É<br />

porque o muro branco do significante, o buraco negro da subjetividade, a máquina de<br />

rosto são impasses, a medida de nossas submissões, de nossas sujeições; mas<br />

nascemos dentro deles, e é aí que devemos nos debater. Não no sentido de um<br />

momento necessário, mas no sentido de um instrumento para o qual é preciso inventar<br />

um novo uso. É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas<br />

de a-significância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação<br />

possível e toda interpretação que possa ser dada [quero viver sem fé / levar a vida que<br />

falta / sem nunca saber quem é]. É somente no buraco negro da consciência e da<br />

paixão subjetivas que se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas,<br />

transformadas, que é preciso relançar para um amor vivo [do abismo onde me<br />

encontro / ao hiato onde me falto], não subjetivo, no qual cada um se conecte com<br />

espaços desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquistá-los [Pronomes do<br />

caso reto, / nunca acabavam sujeitos], no qual as linhas se compõem como linhas<br />

partidas. É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro<br />

branco que os traços de rostidade poderão ser liberados, como os pássaros [pedra,<br />

letra, estrela à solta.] (...) (Deleuze e Guattari, 1996, p. 59).<br />

46


FRAGMENTO 2<br />

vozes a mais<br />

vozes a menos<br />

a máquina em nós<br />

que gera provérbios<br />

é a mesma que faz poemas,<br />

somas com vida própria<br />

que podem mais que podemos<br />

(Leminski, 1995, p. 37).<br />

Proponho um deslocamento, neste trabalho, do conceito de estrutura para o<br />

de máquina. Ao invés de procurar descobrir a estrutura (saber o que está no fundo) de<br />

um poema ou de uma obra, ou uma estrutura da linguagem poética, da qual derivam<br />

ou para a qual convergem os textos literários, talvez seja mais interessante e fecundo<br />

descobrir como funciona (saber como se usa) uma dada máquina textual. Assim como<br />

o conceito de estrutura, o de máquina nada tem de metafórico, pois implica numa<br />

ampliação (que é também uma redefinição) da concepção usual que se tem dela:<br />

Uma máquina define-se como um sistema de cortes. Não se trata de modo algum do<br />

corte considerado como separação da realidade; os cortes operam em dimensões<br />

que variam com o caráter considerado. Qualquer máquina está, em primeiro lugar,<br />

em relação com um fluxo material contínuo (hylé) que ela corta. Funciona como uma<br />

máquina de cortar presunto: os cortes fazem extrações do fluxo associativo. (...) Cada<br />

fluxo associativo deve ser considerado idealmente como um fluxo infinito de uma<br />

imensa perna de porco. A hylé designa, com efeito, a continuidade pura que uma<br />

matéria possui idealmente.(...) Longe de se opor à continuidade o corte condiciona-a,<br />

implica ou define aquilo que corta como continuidade ideal. É que, como vimos, todas<br />

as máquinas são máquinas de máquinas. A máquina só produz um corte de fluxo se<br />

estiver ligada a outra máquina que se supõe produzir o fluxo. E claro que esta<br />

máquina também é, por seu turno, um corte. Mas só em relação a uma terceira<br />

máquina que produz idealmente, ou seja, relativamente, um fluxo contínuo infinito.<br />

(...) Em suma, qualquer máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está<br />

conectada, e é fluxo ou produção de fluxos em relação à que está conectada com ela.<br />

[grifos dos autores] (Deleuze e Guattari, 1995a, pp. 39-40).<br />

Por um lado, a máquina, como a estrutura, é uma espécie de ordenador, uma<br />

produtora e reprodutora de códigos, ela mesma codificada. Mas enquanto a estrutura<br />

implica numa estática, a máquina só tem sentido em movimento, em seu uso, mesmo<br />

as manuais como o martelo ou a panela: ela é sempre pragmática. A estática se<br />

relaciona, por sua vez, com o conceito de centro ou presença, uma espécie de motor<br />

imóvel que tem como função “não apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura —<br />

não podemos efetivamente pensar uma estrutura inorganizada — mas sobretudo levar<br />

o princípio de organização da estrutura a limitar o que poderíamos denominar jogo da<br />

estrutura.” [grifo do autor] (Derrida, 1995, p. 230). A estrutura implica, então, numa<br />

perspectiva de desvendamento de seu centro, que ao mesmo tempo organizaria e<br />

estaria fora do movimento intermitente das permutas as quais são mobilidades<br />

aparentes e periféricas. Derrida, no mesmo texto, refere-se a um acontecimento de<br />

47


uptura (no qual o estruturalismo tem um papel fundamental) que “ter-se-ia talvez<br />

produzido no momento em que a estruturalidade da estrutura deve ter começado a ser<br />

pensada” (p. 231), momento a partir do qual “deve-se sem dúvida ter começado a<br />

pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um<br />

sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas<br />

uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente<br />

substituições de signos” (p. 232). A estrutura começa a ser percebida como<br />

estruturação, desejo totalitário de centro, como o funcionamento (despótico) de uma<br />

maquinaria. Na máquina não se procura um fundo ou a essência, ou melhor, esta se<br />

identifica com seu funcionamento, por seu uso e necessidade produtivos. Ela só tem<br />

sentido quando relacionada com outras máquinas (humanas, sociais, técnicas,<br />

lingüísticas) com as quais encontra-se conectada, de uma maneira ou de outra. O que<br />

se entende normalmente por significado só tem sentido se recobrir o funcionamento<br />

destas máquinas, a maneira como elas se conectam com outras, sua situação de uso<br />

enfim, sempre circunstancial no tempo-espaço. Por isto, gosto da palavra uso, que não<br />

coincide (embora possa recobrir) com a noção capitalista de utilitarismo: noção técnica<br />

e unidimensional, que objetiva a mais-valia de capital. A máquina está sempre numa<br />

situação de produção, processual, enquanto que a estrutura se caracteriza pela<br />

representação de uma verdade oculta, de um mito por trás dos ritos que o<br />

representam: na estrutura não se concebe a construção do mito pelo rito, isto já são<br />

coisas de maquinaria.<br />

Outra vantagem do ponto de vista maquínico é a obsolescência das<br />

máquinas, que implica em sua não permanência, numa espécie de evolução<br />

filogenética não progressiva, mas adaptativa, à maneira dos organismos (máquinas)<br />

biológicos. A estrutura, ao contrário, é quase sempre pensada como dada desde<br />

sempre: algo que pode mudar, mas nunca essencialmente. Percebe-se aí como as<br />

noções de identidade e sujeito devem ser redefinidas, quase que abolidas, com esta<br />

mudança de foco. O centro de uma estrutura organiza elementos os mais diversos,<br />

perpassando-os e unindo-os em torno de uma identidade permanente — como o ser<br />

cristão ordena os elementos da alma e do corpo. Em outras estruturas, os mesmos<br />

elementos podem ter outra ordem, outro centro ou Ser. As peças das máquinas, ao<br />

contrário são vistas como proto-máquinas, portanto dotadas de uma singularidade e<br />

autonomia relativas que não se repete em outras máquinas: não são mais os mesmos<br />

elementos. Daí segue-se que as unidades de medida e o regime de funcionamento (os<br />

modos de percepção) mudam de máquina para máquina, impedindo o uso de qualquer<br />

comparador universal, de qualquer régua de Deus: os cavalos de força de um<br />

automóvel não são reduzíveis aos cavalos de uma charrete. Numa máquina não há<br />

nem identidade com ela mesma, nem com alguma ordem exterior, com algum<br />

macrocosmo que a circunscreva: há apenas relações de produção, regimes de<br />

funcionamento — as identidades são produções de estabilidades temporárias num<br />

sistema em desequilíbrio permanente.<br />

Quando ataco o conceito de estrutura, pode parecer que me restrinjo a<br />

discordar do estruturalismo, quando, na verdade, devo muito a ele (todos devemos),<br />

pois a descoberta da estrutura é a descoberta de uma perspectiva totalizante (seja ela<br />

48


científica, religiosa, literária ou filosófica) que desde sempre domina o Ocidente: a<br />

estrutura, antes de ser um fato, um corpo constituído, é uma percepção, a construção<br />

de um ponto de vista. Os entes e eventos podem ser percebidos de outra forma, como<br />

maquinarias: máquinas. Esta possibilidade de um outro ponto de vista foi sem dúvida<br />

aberta pelo estruturalismo (entre outras perspectivas e autores anteriores a ele) que<br />

desnudou, mais que a estrutura, a estruturação desta, ou seja, a perspectiva que<br />

deseja a construção de sistemas centrados: o desejo despótico das máquinas<br />

desejantes. Nesta perspectiva, não existe a verdade do universo dos objetos<br />

maquínicos e seu opositor, o dos objetos estruturais; trata-se, antes, de dois tipos de<br />

abordagens que muda, sem dúvida, a coisa abordada: quase arrisco dizer que a<br />

(re)constrói. Na multiplicidade se constroem, sem parar, estruturas que brotam de<br />

maquinarias e vice-versa, totalizações e sua fuga.<br />

O poema pode ser abordado, ora como máquina, ora como estrutura ou em<br />

relação a uma outra estrutura (a da poesia ‘em geral’, por exemplo). Às vezes,<br />

acontecem as duas coisas ao mesmo tempo: a leitura do texto literário estrutura-o e<br />

maquina-o sem parar, restando saber para qual perspectiva ela tende com mais força.<br />

Encará-lo predominantemente como máquina pode fazer recair sobre mim a acusação<br />

de anti-humanismo, de reificação do poema, reduzido a um mero mecanismo. Mas<br />

pelo conceito de máquina que intentei (tomei de empréstimo), não se trata,<br />

obviamente, de mecanicismo nem de tecnicismo: como estes ismos se posicionariam<br />

em relação aos fluxos e cortes de fluxos, à multiplicidade e proliferação não<br />

hierárquicas da maquinaria? Quanto à posição humanista, que se apóia na religião<br />

(teológica), no sujeito (psicológica) ou na sociedade (sociológica), o que posso dizer é<br />

que suas construções (ser, sujeito, sociedade), em muitos casos, não são nem mais<br />

nem menos que estruturas (às vezes com um pouco de maquinaria), como as<br />

concebidas/percebidas pelo estruturalismo. Se a máquina é desumana, fria,<br />

antivitalista, a estrutura não o é em menor grau ou por alguma diferença qualitativa:<br />

talvez a concebamos mais humana simplesmente porque gostaríamos, por uma<br />

morbidez de nossa consciência, que o humano se identificasse com as mais frias e<br />

antivitais características de sua idealização: a totalidade, a onisciência, a onipotência,<br />

a permanência e a imutabilidade.<br />

49


DOR, AMOR, HUMOR.<br />

LUTO POR MIM MESMO<br />

a luz se põe<br />

em cada átomo do universo<br />

noite absoluta<br />

desse mal a gente adoece<br />

como se cada átomo doesse<br />

como se fosse esta a última luta<br />

o estilo desta dor<br />

é clássico<br />

dói nos lugares certos<br />

sem deixar rastos<br />

dói longe dói perto<br />

sem deixar restos<br />

dói nos himalaias, nos interstícios<br />

e nos países baixos<br />

uma dor que goza<br />

como se doer fosse poesia<br />

já que tudo mais é prosa<br />

(Leminski, 1995, p. 92).<br />

O temperamento instável, o alcoolismo, a doença e a morte do filho. O<br />

sofrimento atravessa, como uma linha constitutiva, toda a obra de Leminski,<br />

particularmente La vie en close, publicado postumamente. Mas não podemos mais dizer<br />

que sua obra é a expressão das dores de uma pessoa, nem mesmo a expressão da dor<br />

transfigurada pela sensibilidade do artista. Não podemos mais nos utilizar do clássico<br />

lugar comum modernista que concebe a biografia como motivo extrínseco e<br />

desimportante para a qualidade do resultado final que é a obra: biografia cuja<br />

sensibilidade do poeta saberia tornar em eu lírico que toca a alma humana ou expressa a<br />

interioridade do homem de uma época, eu (e obra) universal. Nem a resposta romântica<br />

(ou neo) nem a modernista nos servem, pois ambas se prendem demais a fora e dentro,<br />

sujeito e objeto, causa e efeito. A dor, como todo afeto, tem suas codificações. Um<br />

aspecto importante do que se costumou chamar de revolução cultural (que remete a<br />

maio de 68, beatniks, hippies, tropicália, marginália), foi uma nova perspectiva em<br />

50


elação aos afetos, da qual a revolução dos costumes, facilmente absorvida e<br />

recodificada pelo capitalismo 4 , talvez tenha sido apenas um apêndice.<br />

Um fator importante da revolução cultural, não importa os eventos ou os<br />

grupos de que se tratem, é o seu caráter de desprendimento, manifestado na obsessão<br />

pela viagem: nas drogas, na música, no sexo, na estrada. A viagem não mais como<br />

mudança do ser, nem mais como sua negação. Simplesmente não se tem mais a<br />

perspectiva da fixidez do ser como essencial, mas como uma espécie de estancamento<br />

artificial dos fluxos que nos atravessam: gravidade do abismo codificador. Os afetos<br />

(dor, amor) são vividos (experimentados) como estados intensivos por que se passa, que<br />

nos atravessam e nos constitui numa dada circunstância. Não há o sujeito (deus, eu, eu<br />

lírico, tribo, sociedade) que sofre, mas apenas linhas que se cruzam:<br />

Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se<br />

conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas<br />

que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas<br />

escritas. [grifo dos autores] (Deleuze e Guattari, 1996, p. 66).<br />

O amor e a dor são afetos moldados o tempo todo pelos códigos. Numa sociedade<br />

burguesa é sempre alguém que ama ou sofre, sob determinados regimes e leis. E a dor<br />

certamente tem a ver com algum pecado ou, se não se crê, com algum complexo<br />

encravado na infância. Ela sempre ensina ou ensinará algo quando e se dela se sair. Um<br />

algo sempre vinculado aos códigos: não peque mais, aprenda a conviver com seu<br />

complexo, não seja mau.<br />

O achado da revolução cultural foi tomar os afetos, entre eles a dor, como<br />

linhas a serem experimentadas sem nenhuma salvaguarda de um ser ou estrutura que os<br />

controlem por trás de seu turbilhão, foi toma-los com fluxos intensivos que nos<br />

atravessam e nos constituem e com o qual temos de lutar, conviver, negociar, sempre<br />

circunstancialmente.<br />

O regime e a lei, tanto do amor quanto da dor, são os do desejo e da<br />

sexualidade, que a psicanálise procurou abordar a partir de Freud. Mas a abordagem<br />

freudiana rebate os afetos sobre a família, sobre o complexo de Édipo, sobre a<br />

subjetividade cindida. Mesmo instável e múltiplo, o sujeito freudiano ainda é um eu<br />

(indivíduo) que sofre, que ama, que sente culpa e má consciência e que terá de construir<br />

um ego suficientemente forte para sobrepujar os fluxos libidinais que atravessam-no de<br />

4 Há nichos de mercado (e de código) para todas as antigas perversões (homossexualismo, sadismo,<br />

masoquismo) e para grupos minoritários (negros, mulheres). Pode-se dizer que o capitalismo precisa de<br />

desigualdade, mas é relativamente indiferente à natureza dos discriminados e aos modos de se instaurar as<br />

discriminações que, parece, tem se tornado cada vez mais interna aos grupos antes marginalizados em<br />

bloco.<br />

51


ponta a ponta e que tendem a esfacelá-lo. Como observam Deleuze e Guatarri, a<br />

socialização dos fluxos do desejo e a opção pela deriva nestes fluxos são alternativas<br />

esconjuradas pela psicanálise:<br />

(...) a sua grandeza [de Freud] foi a de ter determinado a essência ou a natureza do<br />

desejo, não em relação aos objetos, fins ou origens (territórios), mas como essência<br />

subjetiva abstrata, libido ou sexualidade. Simplesmente ele refere ainda esta essência à<br />

família, como última territorialidade do homem privado. Tudo se passa como se Freud<br />

se desculpasse por ter descoberto a sexualidade, dizendo-nos: garanto-lhes que isto<br />

não sairá da família. E assim temos o segredinho nojento em vez da imensidão<br />

entrevista; o rebatimento familiarista em vez da deriva do desejo; pequenos riachos<br />

recodificados no leito materno em vez dos grandes fluxos descodificados; a<br />

interioridade em vez de uma nova relação com o exterior. (Deleuze e Guattari, 1995a,<br />

p. 282).<br />

O sofrimento, a alegria e o amor e sua interpretação (decodificação) como<br />

culpa e projeção de fantasmas individuais e familiares, como neuroses, constitui o<br />

regime de codificação dos afetos da sociedade burguesa, que recusa a “deriva do<br />

desejo” e o dissolvimento do sujeito nesta deriva-processo socializada. Em<br />

contraposição, a viagem, o desprendimento dos hippies e beatniks e roqueiros, da<br />

tropicália e da marginália, diz respeito exatamente à opção pela deriva, pela<br />

experimentação processual, portanto circunstancial e desgarrada, dos afetos.<br />

“Luto por mim mesmo”, sob uma perspectiva da representação dos sentimentos<br />

do eu lírico, certamente nos apareceria como a expressão de uma alma doentia, mórbida<br />

e masoquista, estranhamente atravessada pelo humor (quase negro):<br />

o estilo desta dor<br />

é clássico<br />

dói nos lugares certos<br />

sem deixar rastos<br />

Seria isto uma espécie de romantismo crepuscular, deslocado no tempo-espaço, autoirônico<br />

com seu próprio sentimentalismo? Uma espécie de remontagem pós-moderna de<br />

um neo-romantismo? Talvez seja melhor nos desembaraçarmos um pouco das<br />

nomeclaturas da teoria e nos concentrarmos no texto, sob a luz de uma outra perspectiva<br />

da dor (e do desejo) que não a burguesa.<br />

A primeira estrofe:<br />

a luz se põe<br />

em cada átomo do universo<br />

noite absoluta<br />

52


desse mal a gente adoece<br />

como se cada átomo doesse<br />

como se esta fosse a última luta<br />

trata das características da dor que, como qualquer afeto muito intenso, parece tomar<br />

conta da vida durante a sua vivência. A macro (noite absoluta) e a micro (como se cada<br />

átomo doesse) percepção encontram-se minadas pela dor, com a qual o embate se torna<br />

decisivo para a vida (como se esta fosse a última luta). Isto é que torna os afetos pontos<br />

nevrálgicos nos sistemas de codificação, pois quando sua intensidade ultrapassa<br />

determinados limites, sua ação torna-se quase que despótica, subordinando as outras<br />

linhas da vida às suas leis e necessidades: não é casual que os casos de conversão<br />

religiosa (recodificação dos fluxos) se dêem, normalmente, sob condições de extremo<br />

sofrimento (descodificação abrupta e descontrolada dos fluxos). Os códigos, as<br />

explicações, a fé, aparecem como uma espécie de consolo, um chão firme (ao mesmo<br />

tempo punidor e acolhedor) onde se agarraria a alma (e o corpo) maltratada pela dor. O<br />

outro pólo seria o da descodificação violenta provocada pelo sofrimento e que<br />

precipitaria na morte ou na loucura. Este pólo é, ao mesmo tempo o adversário e o<br />

aliado dos códigos. Adversário porque é o que se deve evitar a qualquer custo mediante<br />

recodificações, explicações e processos de cura e diminuição da dor; e aliado porque,<br />

como pólo oposto, não deixa de ser complementar e pode e é sempre usado de maneira<br />

pedagógica (de uma pedagogia do terror), contra o qual se deve prevenir (levar uma<br />

vida sem excessos) ou, caso não se consiga, ser forte o suficiente para se agarrar aos<br />

códigos pacificadores em meio ao turbilhão.<br />

Ser arrastado por afetos muito intensos (seja o amor, o ódio, a alegria, a<br />

tristeza, a dor, o prazer) sempre foi um risco com o qual a sociedade e seus códigos<br />

(religiosos, científicos, comportamentais) têm de se haver, assim como Leminski<br />

também teve. Passando à segunda estrofe, o seu tom já não é mais o de descrição geral<br />

do processo da dor, antes, é uma descrição minuciosa (embora abstrata, portanto<br />

altamente indeterminada) de sua ação, de seu como:<br />

o estilo desta dor<br />

é clássico<br />

dói nos lugares certos<br />

sem deixar rastos<br />

dói longe dói perto<br />

sem deixar restos<br />

dói nos himalaias, nos interstícios<br />

e nos países baixos<br />

A identificação da dor e da arte (o estilo desta dor) supõe uma vivência estética da<br />

primeira, e uma estética de domínio pleno sobre os materiais formados: a clássica. É<br />

interessante notar que o poema todo é referido na terceira pessoa (despersonalisado) e se<br />

53


há um personagem ou um sujeito aí, este só pode ser a dor. Não a dor no sentido<br />

universal, mas uma determinada dor circunstancial, do qual o texto depurou a<br />

causalidade explicativa (não se diz quem ou de que se sofre), conservando apenas os<br />

efeitos de intensidade (olha como, quanto e onde se sofre). É quase como uma poética<br />

da dor, no sentido em que Aristóteles concebeu sua poética, seu ideal de poesia, com<br />

base nos grande poemas de seu tempo. Isto não quer dizer que esta dor seja uma<br />

vivência subjetiva depurada em objetividade, mas sim, uma experimentação positiva de<br />

um determinado afeto que atravessa a linha da vida, relacionando-se com ela. Que o<br />

texto não trate das circunstâncias concretas da dor, não tem importância realmente<br />

decisiva, apenas explicita a opção de sua experimentação positiva de intensidades puras,<br />

opção já afirmada em Caprichos e relaxos (p. 59):<br />

ver<br />

é dor<br />

ouvir<br />

é dor<br />

perder<br />

é dor<br />

só doer<br />

não é dor<br />

delícia<br />

de experimentador<br />

Voltando a “Luto por mim mesmo”, há nele uma injeção de bom humor nesta<br />

experimentação:<br />

dói nos himalaias, nos interstícios<br />

e nos países baixos<br />

Os “países baixos” remetem aos órgãos genitais, o que pode ser o índice de problemas<br />

ligados à sexualidade (ou problemas amorosos em geral), arrastando neste significado<br />

toda a comicidade da qual o assunto é socialmente investido. Na verdade, não só o tom<br />

destes dois versos, mas de toda a estrofe, com suas referências espaciais se sobrepondo<br />

às do corpo que, por sua vez, se sobrepõe às da alma, com seu metro curto, ritmo ligeiro<br />

e intenso trabalho sonoro de reiterações, tudo isto remete a uma espécie de alegria<br />

(atmosfera: forma do conteúdo não significativa) que beira a comicidade — isto<br />

acontece em muitos poemas de Leminski; se quiserem, é uma característica de sua obra.<br />

Vivência estética da dor, poética da dor, a dor como ponto (não essencial, mas<br />

operatório) de subjetivação, experimentação positiva de intensidades puras, injeção de<br />

alegria e humor neste exercício: seria o nosso poeta um masoquista?<br />

54


uma dor que goza<br />

como se doer fosse poesia<br />

já que tudo mais é prosa<br />

Esta leitura ainda se vincularia ao problema das perversões dos sujeitos individuais. O<br />

poeta ou o eu lírico do poema seria um pervertido, um desviado. Dessa maneira<br />

recodificamos, pela marginalização do eu lírico (e a margem, neste caso, é um lugar no<br />

sistema), uma experiência, ou pelo menos, a tentativa da experimentação de um afeto<br />

que não se agarra às codificações pré-estabelecidas nem se precipita numa<br />

descodificação muito violenta que resultaria no louco de hospício ou na morte.<br />

Há toda uma luta para que esta precipitação não ocorra, a começar pelo título,<br />

que também remete a luto, morte. Há um luto pela morte do eu e ao mesmo tempo uma<br />

luta pela construção de um (novo?) “mim mesmo”. O eu como estado sempre<br />

provisório, resultante de uma luta de guerrilha, ou seja, uma conquista estética, como o<br />

poema, que se faz sempre sob condições não muito bem pré-estabelecidas ou, pelo<br />

menos, se quer fazer assim. Na linha da vida surge a do sofrimento: a luz se põe / em<br />

cada átomo do universo. As duas se entrelaçam:<br />

desse mal a gente adoece<br />

como se cada átomo doesse<br />

como se fosse esta a última luta<br />

Por que não vivenciar estas linhas entrelaçadas, negociando com elas a cada instante,<br />

explorando toda as novas perspectivas sobre as coisas que a dor oferece? Não significa<br />

dizer que não há, de fato, sofrimento, talvez haja no mais alto grau e não se trata de um<br />

sofrimento voluntário. Trata-se de uma atitude, já que estamos aqui não adianta<br />

reclamar, já expressa por Leminski em outro poema:<br />

PRA QUE CARA FEIA?<br />

NA VIDA<br />

NINGUÉM PAGA MEIA.<br />

(Leminski, 1983, p. 131).<br />

Mas também não se quer mais pagar o preço pelo consolo dos códigos e, obviamente,<br />

não se quer a morte nem o hospício. Assim como se pode viver o amor como processo<br />

proliferativo, também se pode encarar a dor da mesma maneira. Os cuidados devem ser<br />

análogos, pois se trata, como em “Ais ou Menos” de um salto do abismo demarcado<br />

pela gravidade dos códigos, para o alto, para a gravidade zero. Assim como lá é<br />

necessário ter poderes sobre o sono, aqui é preciso ter poderes, não sobre a dor, mas na<br />

dor ou da dor, já que a linha da vida se mescla com a da dor, constituindo uma nova<br />

55


subjetivação que deve se estabilizar precariamente em luta/negociação com o<br />

sofrimento.<br />

Esta nova subjetivação, construção estética, experimentação permanente, goza<br />

de todas as novas perspectivas abertas pelo sofrimento (uma dor que goza), sempre na<br />

estreita linha entre o abismo dos códigos e a descodificação absoluta. As linhas da vida<br />

se mesclam com as linhas dos versos (como se doer fosse poesia), formando uma<br />

espécie de bloco vivo. Não há elementos por fora nem por dentro do poema, mas sim o<br />

arrastar de todas estas linhas neste bloco: o poema se projeta no fora absoluto, com<br />

limites apenas efetivos, mas nunca essenciais, ele dispara as linhas, oferece-as ao leitor<br />

que irá percorrê-las e mesclá-las com suas linhas muito particulares — interpenetração<br />

de multiplicidades, enredamento perpétuo. Há uma indiferenciável (e indisfarçável)<br />

mistura de vida e poesia na obra de Lemisnki, linhas de vida e linhas de poesia, como<br />

no poema que se segue:<br />

Vim pelo caminho difícil,<br />

a linha que nunca termina,<br />

a linha bate na pedra,<br />

a palavra quebra uma esquina,<br />

mínima linha vazia,<br />

a linha, uma vida inteira,<br />

palavra, palavra minha.<br />

(Leminski, 1987a, p. 18).<br />

Linha, vida, palavra. Escolhos (tinha uma pedra no meio do caminho) e<br />

quebras, dobras da linha sem fim, vazia. Este se enredar contínuo faz parte do trabalho<br />

poético de Leminski, mas também é um trabalho de vida, não apenas individual, mas<br />

coletivo, de uma coletividade povoada menos por pessoas que por fluxos intensivos,<br />

linhas, subjetivações provisórias. Os poemas de Leminski parecem máquinas que fazem<br />

disparar os processos de deriva nos/dos fluxos, de experimentação das linhas e de<br />

produção de subjetivações, parecem querer estourar as demarcações dos códigos e se<br />

precipitar numa linha de fuga absoluta: “a linha que nunca termina”.<br />

Voltando a “Luto por mim mesmo”, o poema nos leva a considerar o que<br />

normalmente se considera aquém do poema enquanto arte: exatamente as motivações,<br />

digamos, psicológicas, que resultaram no poema: a experiência da dor. O objeto<br />

principal da crítica literária deveria ser o texto e, como objeto que é, muito<br />

provavelmente deve ser dotado de uma estrutura (mesmo que não se seja estruturalista),<br />

quer dizer, de determinados elementos sob arranjos específicos que lhe dão uma feição<br />

de coisa acabada, o que implica dizer que é dotado de limites e de uma espécie de<br />

identidade. Assim se estabelece um jogo de dentro e fora, no qual os aquéns ou<br />

motivações do texto encontram-se dialeticamente fora dele:<br />

56


Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos<br />

vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em<br />

primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na<br />

designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem<br />

que intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o<br />

texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e<br />

não se deixam reduzir a eles. (Candido, 1993, p. 33).<br />

É claro que este ponto de vista é operacionalmente válido, mas não quer dizer que não<br />

possamos olhar o texto de outra perspectiva. A produção da totalidade do texto e sua<br />

relação com outros extratos (psíquicos, sociais), é sempre uma totalização ao lado dele,<br />

quer dizer, é sempre uma produção que não coincide com a do texto, na qual estão<br />

envolvidas miríades de códigos. Normalmente esta produção de totalidade (que implica<br />

numa capa estrutural que envolveria a maquinaria do poema) é delegada ao<br />

departamento da crítica, enquanto ao departamento dos escritores cabe montar<br />

dispositivos muito díspares, resultando muitas vezes em maquinarias monstruosas,<br />

cheias de defeitos e de ruídos insuportáveis. Ou seja, a totalidade, ao lado, é uma<br />

espécie de parte agregada ao texto. Por isto cada época e cada receptor (até mesmo o<br />

próprio autor) estabelecem suas próprias totalizações particulares das obras literárias: a<br />

produção do texto nunca termina e a sociedade é sua fábrica permanente.<br />

A relação entre homens e texto, pode ser abordada de outra forma que não a<br />

relação entre sujeito e objeto ou entre grandes conjuntos distribuídos em níveis ou<br />

estratos: o formal (intrínseco); o psíquico e o social (extrínsecos). Talvez possamos<br />

trabalhar numa crítica que flagre uma espécie de relação libidinal (rizomática, nos<br />

termos de Deleuze e Guatarri), ou seja, de produção e reprodução entre textos e homens,<br />

como se uns fossem partes das maquinarias que constituem os outros: “Os homens, são<br />

apenas os órgãos sexuais das fábulas” (Leminski, 1998, p. 23). Mas, por outro lado:<br />

Quem maior que os deuses? Quem senão o destino que, um dia, disse que os deuses<br />

dariam metamorfoses e caberiam dentro das fábulas? A fábula é o destino, fábulas são<br />

maiores que os deuses. A vida de Zeus cabe dentro de uma fábula, casca de nós<br />

boiando nas águas de Narciso (...). (Leminski, 1998, p. 34).<br />

Ou seja, os deuses dentro das fábulas dentro de Narciso (dentro dos homens): as fábulas<br />

como órgãos reprodutores dos homens, como sua produção e reprodução de<br />

contigüidade, tradição, cultura. Uns maquinam os outros. Quem disse que as máquinas<br />

não se reproduzem? Apenas as grandes máquinas, as que depositam sua funcionalidade<br />

na totalidade do conjunto são estéreis:<br />

É que as grandes máquinas molares [grandes conjuntos, estratos] supõem ligações<br />

prévias que o seu funcionamento não explica, visto que é delas que ele deriva. Só as<br />

máquinas desejantes [funcionamentos micro, moleculares] é que produzem ligações<br />

57


segundo as quais funcionam, e funcionam improvisando, inventando, formando estas<br />

mesmas ligações. Um funcionalismo molar é pois um funcionalismo limitado, que não<br />

chegou às regiões onde o desejo maquina independentemente da natureza<br />

macroscópica do que maquina: elementos orgânicos, lingüísticos, sociais, etc., todos<br />

cozinhados ao mesmo tempo na mesma panela. (Deleuze e Guattari, 1995a, p.187).<br />

A máquina do poema, se a encararmos como estrutura macroscópica que produz<br />

determinados efeitos sob determinadas circunstâncias realmente é mecânica e estéril,<br />

mas se procuramos seguir suas linhas para além de sua totalidade estrutural e de suas<br />

relações com os grandes estratos iremos encontrar sua maquinaria microscópica, seu<br />

regime de produção e reprodução: seus devires corpo, motor, animal, sonoro, mas<br />

também social, psíquico, por que não?<br />

É isto que tentamos fazer em “Luto por mim mesmo” (e também nos outros<br />

poemas), verificar a linha da dor num poema, como ela se mescla com as do som, da<br />

alegria e do humor, da vida. Como ela é experimentada de forma abstrata como<br />

intensidade pura e, no entanto, de maneira circunstancial, localizada e não universal: é<br />

“esta dor”. Como ela constitui uma espécie bem particular de subjetivação desprendida<br />

(e também desamparada) da codificação social dos afetos, tornando-se uma espécie de<br />

viagem arriscada para além dos limites dessa codificação. Como esta experiência se<br />

vincula às linhas beatnik-hippie-marginal-tropical, contemporâneas a Leminski. Enfim,<br />

como tudo isto é arrastado num bloco vivo (maquinaria) sem limites muito precisos<br />

(matéria em fusão: “estrela à solta”) do qual as linhas do poema, assim com as outras,<br />

são fluxos de intensidade que escapam por todos os lados. A produção do poema pelos<br />

homens em situação de dor, mas também a sua reprodução através dos homens em dor<br />

(ou não): os homens como aparelho reprodutor do poema, como parte da maquinaria do<br />

poema. Mas também o contrário, o poema como parte dos homens, interpenetração de<br />

máquinas em produção, umas disparando as outras.<br />

Não estamos falando em representação da dor, mas de sua experimentação sob<br />

determinados regimes. A representação da dor é um tipo de experiência própria dos<br />

códigos burgueses que supõem o sujeito e suas dores, quer dizer, trata-se, em última<br />

instância, da representação da subjetividade, de se chegar ao seu fundo (“abismo onde<br />

me encontro”), à sua verdade ou ao seu centro. Os concretistas têm razão em fugir do<br />

psicologismo neo-romântico que persistiu em quase todos os modernistas: “(...) aos<br />

poetas, que calem suas lamúrias pessoais ou demagógicas e tratem de construir poemas<br />

à altura dos novos tempos, à altura dos novos objetos industriais racionalmente<br />

planejados e produzidos.” (Pignatari, 1975, 125). Com efeito, o sentimentalismo e o<br />

confessionalismo são experimentações da dor sob regimes despóticos, codificações<br />

burguesas; são fugas que se recodificam mais à frente ressuscitando o grande sujeito<br />

universal. Mas renegando a experimentação dos afetos para um aquém ou um além da<br />

obra literária, os concretos não fizeram mais que construir uma oposição complementar:<br />

58


o psicologismo está por fora da obra; ou antes, como motivação, ou depois, como efeito.<br />

Em todo caso os afetos estão relacionados com a obra (e como não poderiam estar?),<br />

mas ainda à maneira de grandes conjuntos: o texto e seus elementos intrínsecos; o<br />

contexto e seus níveis de estratificação, o exterior (sociedade, sujeito, tradição) em<br />

relação dialética com o interior (estrutura do texto).<br />

Já que é impossível alijar os afetos (maneiras de sentir) do texto (assim como<br />

não se pode alijar as maneiras e pensar e perceber), talvez seja possível experimentá-los<br />

de uma outra maneira. Não os rebatendo sobre as representações da subjetividade ou os<br />

relegando (mesmo que dialeticamente) para fora do texto, mas encarando-os como<br />

processos, fluxos do desejo, produções de maquinaria: linhas de intensidades a serem<br />

mescladas às do poema e experimentadas sempre circunstancialmente, produzindo com<br />

elas pontos de subjetivação provisórios, rebeldes aos códigos pré-formados que tentam<br />

demarcar a experiência de fuga, recodificando-a. Amor, dor, humor, alegria, tristeza,<br />

são linhas de vida que se mesclam às dos poemas de Leminski, despreocupado com sua<br />

representação (interpretação) e atento aos processos exploratórios (experimentação)<br />

destas linhas, como neste poema:<br />

Tempo lento,<br />

espaço rápido,<br />

quanto mais penso,<br />

menos capto.<br />

Se não pego isso<br />

que me passa no íntimo,<br />

importa muito?<br />

Rapto o ritmo.<br />

Espaçotempo ávido,<br />

lento espaçodentro,<br />

quando me aproximo,<br />

simplesmente me desfaço,<br />

apenas o mínimo<br />

em matéria de máximo.<br />

(Leminski, 1987a, p. 26).<br />

Ao invés de pegar (saber,exprimir, traduzir) o que se passa, isto é, a verdade do íntimo,<br />

do dentro representado, rapta-se (uma captura não consentida) uma linha rítmica,<br />

experimenta-se clandestinamente a linha que conduz para fora das demarcações da<br />

significância e da subjetividade, “quando me aproximo / simplesmente me desfaço”: o<br />

aproximar como afastamento rumo a um fora de si, dissolvimento de limites. Neste<br />

processo, os grandes conjuntos cedem lugar aos funcionamentos microscópios das<br />

linhas do desejo que, somente por aprisionamento (no “abismo onde me encontro”), se<br />

tornam elementos de estruturas globais sob codificação totalizante — os<br />

estratos/estruturas do poema, do sujeito, da sociedade, da tradição e suas macro-relações<br />

59


de conjunto para conjunto. Os textos poéticos de Leminski talvez se demonstrem mais<br />

fecundos se os abordarmos como uma produção expansiva e microscópica do desejo,<br />

seja na dança dos sons ou das idéias, seja nas linhas da dor ou do amor, do humor ou do<br />

heroísmo. Captura e mesclagem do que se passa, quase imperceptível, sob e através dos<br />

grandes conjuntos delimitados: as linhas mínimas (“mínima linha vazia”; “apenas o<br />

mínimo / em matéria de máximo”; “mínimo templo / para um deus pequeno”) que<br />

podem conduzir a uma transposição absoluta de limites, fazendo estourar as totalidades<br />

codificadas. Linhas de vida e poesia, linhas de dor e humor, linhas de rima e amor,<br />

linhas de ritmo, descodificação e fuga:<br />

nascemos em poemas diversos<br />

destino quis que a gente se achasse<br />

na mesma estrofe e na mesma classe<br />

no mesmo verso e na mesma frase<br />

rima a primeira vista nos vimos<br />

trocamos nossos sinônimos<br />

olhares não mais anônimos<br />

nesta altura da leitura<br />

nas mesmas pistas<br />

mistas a minha a tua a nossa linha<br />

(Leminski, 1983, p. 88).<br />

60


FRAGMENTO 3<br />

Referi-me, no texto anterior, a uma tênue linha entre o abismo dos códigos e<br />

a sua descodificação, linha que procuro mostrar ser também a da poesia (de Leminski<br />

e, por que não, a de muitos outros?), que se encontra entre o uso normal dos códigos<br />

e a descodificação absoluta (e não entre o uso normal e um outro código total,<br />

transcendente), ou seja, encontra-se nos limites dos sistemas, pronta para fazê-los<br />

fugir. Talvez seja sob este aspecto que devamos ler a aproximação entre poesia e dor<br />

e o afastamento desta da prosa (uso normal dos códigos) em “Luto por mim mesmo”:<br />

“como se doer fosse poesia/já que tudo o mais é prosa”.<br />

Mais uma vez, como se vê, metalinguagem, dor e reflexão sobre a dor podem<br />

ser temáticas deste poema. Talvez esta noção, ‘temática’, não seja adequada. Os<br />

poemas de Leminski não são multisignificativos, mas fazem fugir os significados<br />

(temáticas). Mas também posso lê-los (como já tentei) como poemas que fazem fugir<br />

os significantes, ou seja, que tentam escapar à significância (significante+significado,<br />

forma+conteúdo). Esta a-significância é uma característica de Leminski ou a invento?<br />

É claro que há obras poéticas que não suportariam tal uso, mas creio que seja<br />

possível em Leminski (se não acreditasse nisso, este texto não teria sentido), não<br />

como uma característica intrínseca de sua obra, nem mesmo como elemento<br />

potencial, mas como possibilidade de leitura (uso, funcionamento) que ela abre na<br />

multiplicidade dos códigos.<br />

Estou afirmando aqui uma abordagem da obra poética (e uma proposta de<br />

escrita de minha própria dissertação) que recusa o ponto de vista da estrutura, seus<br />

relacionamentos e seus elementos, em favor da perspectiva da multiplicidade-rizoma<br />

de Deleuze e Guattari:<br />

O livro como imagem do mundo é, de toda maneira uma idéia insípida. Na verdade<br />

não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade<br />

tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso<br />

fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao<br />

contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de<br />

que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando<br />

sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever<br />

a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de multiplicidade. Um rizoma como haste<br />

subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os<br />

tubérculos são rizomas. (Deleuze; Guattari, 1995b, pp. 14-15).<br />

Opor a pluralidade dos rizomas (conceito retirado da biologia) à hierarquia disciplinar<br />

das raízes e árvores, dotadas de memória longa (condição da identidade, do<br />

fechamento e da permanência):<br />

Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como<br />

árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma<br />

antienealogia. É uma memória curta ou uma antimemótia. O rizoma procede por<br />

61


variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à<br />

fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser<br />

produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com<br />

múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.(Deleuze e Guattari, 1995b, pp.<br />

32-33).<br />

É este esquecimento das grandes estruturas, da unidade do ser (“quero viver sem<br />

fé/sem nunca saber quem é”) que procuro em Leminski, em meu texto (será que posso<br />

ainda dizer eu? talvez o diga apenas por conveniência) e que se aproxima do texto<br />

plural de Barthes:<br />

Em presença do texto plural, o esquecimento de um sentido não pode, pois, ser<br />

considerado uma falta. Esquecer em relação a quê? Qual é a soma do texto? Alguns<br />

sentidos podem perfeitamente ser esquecidos, mas, caso se tenha optado por<br />

observar o texto com um olhar singular. No entanto, a leitura não consiste em fazer<br />

cessar a cadeia dos sistemas, a fundar uma verdade, uma legalidade do texto e, por<br />

conseguinte, em provocar as “faltas” do leitor; consiste em imbricar estes sistemas,<br />

não de acordo com sua quantidade finita, mas de acordo com sua pluralidade (que é<br />

um ser, não uma redução): passo, atravesso, articulo, provoco, não conto. (Barthes:<br />

1992, p.45)<br />

Encontrar temáticas e características formais na obra de Leminski seria como “fundar<br />

uma verdade, uma legalidade” de seu texto, fechá-lo num sistema arbóreo dentro do<br />

qual encerro relações e elementos organicamente articulados: subjetividade,<br />

significância, formas, dialética com o contexto.<br />

Quando falo em fazer fugir a significância (temáticas e formas) trata-se mais<br />

de uma possibilidade de uso da obra de Leminski. Encaro seu exercício poético (e<br />

posso fazê-lo com qualquer outro) como uma operação na multiplicidade. Há<br />

operações que procedem por arborificação, estabelecimento de sistemas com limites<br />

claros, ordenações hierárquicas dentro destes limites, construção de identidades<br />

(memória longa), verdades. Mas também há procedimentos rizomáticos que formam<br />

apenas bulbos temporários, mas cujo objetivo são as linhas de fuga, muitas vezes<br />

estourando com os sistemas arbóreos. Pois não se trata de duas realidades, a da<br />

árvore e a do rizoma, mas de dois procedimentos diante de uma mesma realidade:<br />

fazer rizoma e fazer árvore. Creio que fazer rizoma com a obra de Leminski seja mais<br />

fecundo, talvez a única possibilidade de não ‘enquadrá-lo’ na subliteratura (que é um<br />

lugar no sistema): afirmar a fuga que ele provoca na literatura e em suas estabilidades,<br />

mesmo modernistas. A impossibilidade da significância em sua obra resulta da minha<br />

perspectiva, minha disposição em fazer rizoma com ela. Então não é uma<br />

característica da obra? Não há sentido nesta pergunta, seria melhor reformulá-la para:<br />

É fecundo este uso (que é uma questão de conexão) de sua obra, fazendo-a fugir da<br />

significância? É uma máquina boa para isto? Será que suporta bem este tipo de<br />

conexão ou mesmo a pede? Será útil para mim e meu leitor?<br />

Mas essa impossibilidade da significância resulta também da perspectiva de<br />

Leminski, ou melhor, da perspectiva com que sua obra se enreda nos códigos<br />

62


(abrindo-lhes fendas, picadas), sejam eles lingüísticos, sociais, psíquicos etc. Assim<br />

como pode haver críticas que operam por arborificação e rizoma, também se pode<br />

dizer que as obras literárias oscilam entre estas perspectivas — veja bem que não há<br />

exclusividade de um pólo, mas tendência a um. Os textos poéticos de Leminski<br />

operam, creio, tendencialmente por rizoma, daí a fecundidade de uma perspectiva que<br />

também opere dessa maneira. Se o leitor quiser pode-se dizer que a obra de Leminski<br />

trata-se, nos termos de Barthes, de um texto moderno, que ele opõe ao clássico,<br />

utilizando-se da noção de plural do texto:<br />

O texto clássico é, pois, tabular (e não linear), mas essa característica é vetorizada,<br />

obedece a uma ordem lógico temporal. Trata-se de um sistema multivalente, mas<br />

incompletamente reversível. O que limita o plural do texto clássico é aquilo que<br />

bloqueia a reversibilidade. Esses bloqueios têm nomes: por um lado, a verdade e, por<br />

outro lado, a empiria: precisamente contra o que — ou entre o que — está o texto<br />

moderno. (Barthes, 1992, p. 63).<br />

Apesar de Barthes se referir a narrativas (e no caso das narrativas de Leminski, que<br />

não estou abordando, a citação acima é extremamente pertinente) pode-se dizer que,<br />

pela fuga da significância e da subjetividade, que se constituem, de certa maneira, a<br />

verdade (a busca das essências no fundo ou por trás) da poesia ocidental, por essa<br />

fuga os textos poéticos de Leminski intentam o plural do texto: fazem rizoma com o<br />

mundo, entrelaçam linhas (as raízes-rizomas são linhas) em vez de estabelecer<br />

pontos e promover subdivisões binárias e hierárquicas (árvores), funcionam como<br />

máquinas produtoras em vez de estruturas representativas.<br />

O proceder por rizoma é correlato à fuga da tematização/significância. Tratase<br />

então de uma característica funcional (se o leitor não se conformar com minha<br />

recusa em encontrar características) da poesia de Leminski, portanto não encerrada<br />

em seu dentro, mas à disposição de um uso, de uma conexão que, para ser mais<br />

fecunda, talvez precise também operar por rizoma. É este exercício de conexão,<br />

irregular e um tanto imprevisível (inclusive para mim), que tenho tentado em minha<br />

aproximação com sua obra.<br />

63


CAPRICHO, RELAXO<br />

Quem dera eu fosse um músico<br />

que só tocasse os clássicos,<br />

a platéia chorando<br />

e eu contando os compassos.<br />

Se eu soubesse agora,<br />

como eu soube antes,<br />

a dança alegórica<br />

entre as vogais e as consoantes!<br />

(Leminski, 1995, p. 47).<br />

Um intenso rigor quase científico e que chega às raias da frieza guiaria o<br />

exercício poético dos poetas da estruturação. A frieza racional desse exercício, longe de<br />

consistir num ponto a ser reparado, motivo de autocrítica, torna-se um trunfo,<br />

principalmente da poesia de vanguarda. Quase se pode dizer que esta frialdade é<br />

praticada com paixão: “A poesia concreta coloca o poema sob o foco de uma<br />

consciência rigorosamente organizadora, que atua sobre o material da poesia da maneira<br />

mais ampla e mais conseqüente possível.” (Campos. H., 1975c, p. 51). Como contestar<br />

este rigor sem cair na opção oposta, a poesia de expressão e seu tom confessional e<br />

discursivo, mesmo quando voltada para preocupações sociais?<br />

Há na literatura dita clássica (e o clássico, neste poema, tem um quê de<br />

modernismo e concretismo) todo um exercício de contensão e impassibilidade, um<br />

ateísmo passional em nome do domínio da formação das matérias que circulam no<br />

artefato artístico:<br />

Se eu soubesse agora,<br />

como eu soube antes,<br />

a dança alegórica<br />

entre as vogais e as consoantes!<br />

Domínio que se estenderá ao além da construção, quer dizer, ao pólo da recepção, cuja<br />

interpretação da obra não deve sair de certos limites muito estritos: “a platéia chorando /<br />

e eu contando os compassos”. Arriscamos dizer que este quadro, nas vanguardas<br />

construtivas, pode ou não sofrer mudanças significativas: muitas vezes o que há é uma<br />

ampliação das possibilidades interpretativas, que devem permanecer, no entanto, dentro<br />

de certos limites relativos:<br />

(...) o poema concreto possui o seu número temático: isto é, as cargas de conteúdo das<br />

palavras, tratadas do ponto de vista material, só autorizam um determinado número de<br />

implicações significantes, justamente aquelas que atuam como vetores estruturais do<br />

64


poema, que participam irremissivelmente de sua “Gestalt”. Nenhum decorativismo,<br />

nenhum efeito intimista de pirotécnica subjetiva. (Campos H., 1975a, p. 77).<br />

O que faz diferença em muitos aspectos, mas que, no entanto, conserva o da autodisciplina<br />

formal e o do domínio rigoroso das matérias intra e extra textuais. Há algo<br />

comum a ambos os pólos (poesia de estruturação ou construção e poesia de expressão<br />

ou emoção) da oposição que estamos trabalhando e que deve ser explicitado: o<br />

problema do controle sobre grandes conjuntos. No poema de Leminski este problema é<br />

patente, pois o músico domina toda a platéia (e, com isso, as possibilidades<br />

interpretativas) e nos últimos quatro versos é já o poeta dominando a estrutura sonora (e<br />

semântica: alegórica, consoantes) do artefato poético. Nas poéticas modernistas e<br />

vanguardistas de construção esta preocupação de domínio se reverte em consciência da<br />

estruturalidade do texto, suas relações internas (formais) e suas possibilidades de efeitos<br />

ou relações com seu contexto: sociedade e subjetividades. O domínio do artefato e de<br />

seus efeitos evolui da conotação, que limitaria as possibilidades interpretativas, para a<br />

delimitação, modular ou probabilística, destas possibilidades, tornando-se uma questão<br />

de amplitude de campos de significância. Passa-se do domínio do duplo sentido para o<br />

controle estatístico: ainda se trata de um problema político, da relação de poder entre o o<br />

autor e texto de um lado e os receptores do outro — “a platéia chorando e eu contando<br />

os compassos”.<br />

No pólo oposto, da expressão, há uma aparência de maior liberdade no<br />

exercício poético, mais espontâneo e a mercê dos fluxos subjetivos. Mas uma certa<br />

forma de domínio é exercida por uma entidade fora do controle dos recursos de<br />

construção que o poeta domina os quais, se são necessários para a espera da inspiração,<br />

não são, por si só (nem mesmo se somados ao talento), suficientes para a deflagração do<br />

poema. Este se torna ou o prolongamento dessa entidade fora do controle do poeta<br />

(sujeito, cultura, deus, ser) ou um objeto autônomo derivado dela.<br />

É claro que as coisas não se apresentam assim tão puramente repartidas na<br />

maioria dos casos, mas esta pressuposição bi-articulada é uma espécie de limite ideal<br />

em torno do qual as obras oscilariam. Tanto é que um pólo interpenetra o outro: para<br />

esperar o poema como dádiva de algum deus é necessário domínio construtivo; para<br />

construí-lo é preciso dominar e sobrepujar as motivações subjetivas aquém ou além da<br />

construção. Também é claro que não estamos falando do exercício poético em si (na<br />

verdade intangível), mas de poéticas, ou seja, de concepções que poetas ou críticos têm<br />

a respeito do exercício poético. Ambas as poéticas, de expressão e construção, sejam<br />

elas modernistas ou vanguardistas, reivindicam para si uma certa liberdade e, de fato,<br />

ambas a têm, em seus termos: num caso a liberdade de deriva nos fluxos da<br />

subjetividade, liberando a prática poética de um excesso de auto-disciplina construtiva<br />

e, principalmente, do fechamento do poema na estruturalidade; no outro a libertação do<br />

despotismo da subjetividade (individual, mas também coletiva, da tradição, das<br />

65


convenções) pelo domínio estrito dos materiais que circulam e são formados no poema.<br />

Mas ambas as poéticas produzem uma espécie de fechamento que rebatem estas<br />

liberdades em algum tipo de totalidade: a do sujeito ou a da estrutura. Leminski<br />

percebeu bem a encruzilhada em que se colocou o concretismo e sua face voltada à<br />

cristalização: “o classicismo implícito na coisa concreta que leva a eliminar o presente,<br />

as menções explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já quer<br />

nascer universal, geral, genérica, nasceu morta...” (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 117).<br />

Uma poética implica na determinação do que ou quem prepondera no exercício<br />

poético (tanto na sua feitura quanto na sua recepção, ou no texto em sua imanência),<br />

mas é claro que estas demarcações implicam no exercício do poder no campo da<br />

Literatura e, extrapolando-a, implicam em posturas políticas em geral, como bem<br />

observa Leminski:<br />

o q a gente precisa sempre é combater/debelar alguns interditos e tabus q a poesia<br />

concreta instalou, o facismo (vindo de pound, v. queria o q?) da distinção entre<br />

inverntors, masters e diluters, por ex. a raça pura, as raças inferiores... esteticismo de<br />

campo de konzentration... nesta ala, os inventors... aos fornos crematórios os<br />

diluidores... (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 109).<br />

Talvez o problema deva ser colocado de uma outra forma, pois a questão<br />

relevante não é saber qual das poéticas é mais rigorosa, se a da construção ou a da<br />

expressão. Nem saber se é bom ou ruim que haja rigor numa opção poética. O que<br />

vamos observar é que ambas as poéticas têm seus rigores (caprichos) e liberdades<br />

(relaxos) em seus próprios termos e o que vai interessar realmente é sabermos qual o<br />

regime destes caprichos e relaxos de cada uma.<br />

No caso da poesia de expressão invoca-se a liberdade do delírio contra o<br />

aprisionamento da rigorosidade construtiva, mas esta liberdade acaba se abismando na<br />

subjetividade (“abismo onde me encontro”), em outras palavras, nos rigores da unidade<br />

e da identidade, já presentes ou a serem encontradas (unidade esfacelada). Na poesia de<br />

construção, não raro há a confusão do rigor com a totalidade, o domínio dos grandes<br />

conjuntos: a subjetividade motivadora, a estrutura do poema, as subjetividades que<br />

sofrerão seu efeito. Portanto, ambas as poéticas têm, como dissemos, os seus “caprichos<br />

e relaxos”. E ambas concebem geralmente uma noção de totalidade que irá se confundir<br />

com o seu rigor (as suas responsabilidades, os seus rigores a sua gravidade), que é o seu<br />

limite de fuga. Esta confusão de rigor com totalidade é responsável por pontos de vista<br />

como estes:<br />

Em 1922, os maestrores paulistanos inventaram o poema-piada; meio século<br />

depois, seus bisnetos criaram o poeta-piada. Dicção rala, idéias curtas, cultura de<br />

almanaque, arritmia crônica, berimbau de barbante, razionate de bar, ethos de<br />

radialista, estética de violão, filosofia de publicitário, ritmos de mingau, versalhada<br />

66


instantânea e rimas de muleta: eis as receita de dezenas de pocket poets à la Paulo<br />

Leminski, (...). (Tolentino, 1999).<br />

Em toda esta descrição, feita por um defensor conservador da poesia de expressão,<br />

perpassa, por trás da crítica ao não rigor (em seus termos), a denúncia da dispersão<br />

(dicção rala), da irresponsabilidade (cultura de almanaque) da traição à densidade<br />

(razionate de bar), à profundidade (filosofia de publicitário) e à permanência (pocket<br />

poets). Traição ao super-sujeito da tradição:<br />

E a lição que nos legam os vazios é clara: é preciso reduzir a velocidade... É preciso<br />

arquivar e esquecer Leminskis e Anas Cs, Cacasos e Gugus, confusos e confrades. É<br />

preciso em seguida ler com toda a calma o que, da Arcádia Mineira ao Condor Baiano,<br />

de Gonçalves Dias a Manuel Bandeira, de Drummond a Cabral e de Cecília a Adélia,<br />

o que por aqui se escreveu com toda a atenção, segundo aquela “emoção recordada na<br />

tranqüilidade” de que Wordsworth investiu o ato de poíesis há mais de século e meio.<br />

(Tolentino, 1999).<br />

Este pedido de calma e redução da velocidade talvez remeta mais a uma preocupação de<br />

preservação da estática estrutural do ser (da tradição, a maioria dos autores citados por<br />

Tolentino são signos-instituições ‘basilares’ da tradição poética) que com os cuidados<br />

formais e conteudísticos da prática poética.<br />

Poderíamos permanecer dentro dos pólos poesia de construção e de expressão e<br />

tentar, com nossa leitura fazer Leminski tender a um deles, sintetizá-los ou até mesmo<br />

transcendê-los numa espécie de dialética. Neste caso permaneceríamos nos limites das<br />

grandes totalizações (sujeito, tradição, estrutura, subjetividade-objetividade), repondo<br />

em seus termos o problema do rigor e da ausência do rigor. Tentaríamos mostrar como<br />

Tolentino está equivocado quando afirma a ausência de rigor na poesia de Leminski que<br />

se trata, segundo ele, de um “poeta-piada” absolutamente medíocre. Mas talvez<br />

Leminski esteja fazendo fugir estas grandes totalizações (entre elas a Literatura, outra<br />

totalização que se apóia nelas) e, obviamente, desestruturando seus critérios, suas<br />

regulamentações e valores sistêmicos — seus rigores. O problema então não se<br />

colocaria em termos de rigor e não rigor dentro dos limites dos grandes conjuntos, mas<br />

nos termos das totalizações que estes conjuntos formam e as possibilidades entrópicas,<br />

de fuga, que eles oferecem. Fugas que desmantelariam os termos do rigor destes<br />

sistemas, não através de uma polarização radical dentro deles (como, por exemplo,<br />

estabelecendo um rigor construtivo voltado ao objeto em oposição à subjetividade, caso<br />

da poesia concreta), mas dissolvendo suas bi-articulações (o que pode confundir muitas<br />

leituras: Leminski pode ser lido como poeta da expressão e da construção, além de<br />

poeta-piada).<br />

Se mudarmos o eixo da discussão do problema do rigor e de sua ausência<br />

dentro dos limites que circunscrevem as poesias de expressão e de construção (e é<br />

67


interessante notar que, embora Tolentino tenda para uma poética da expressão, ele<br />

defende, numa interessante composição, o rigor construtivo, numa perspectiva,<br />

digamos, clássico-modernista), para o problema das totalizações dos conjuntos e sua<br />

fuga, não é preciso mais tentar mostrar, ponto por ponto, como Tolentino se equivoca.<br />

Ele não está equivocado e sua lista de características negativas a respeito de Leminski (e<br />

outros contemporâneos) tem sido confirmada por nós ao longo deste texto. Apenas<br />

propomos deslocar o problema que incomoda Tolentino e que não se trata apenas de<br />

rigor. O que o preocupa em Leminski é a ausência de um certo rigor convencional,<br />

implicado numa determinada concepção de poesia que a supõe como expressão<br />

subjetiva, vinculando-a a dois sujeitos: o individual do poeta e o coletivo da tradição.<br />

Tolentino deixa transparecer que a poesia, para ser rigorosa (de boa qualidade), deveria<br />

fazer jus a estes dois grandes sistemas (encarados como totalidades), estabelecendo com<br />

eles um vínculo representativo. Na verdade a obra poética de um autor deveria ser, nesta<br />

perspectiva, ela mesma um grande sistema textual que de alguma forma englobe e<br />

transcenda os outros dois (indivíduo e tradição), mantendo com eles uma espécie de<br />

relação dialética. Portanto, o texto de Tolentino não diz respeito apenas ao rigor e sua<br />

ausência na obra de Leminski, mas principalmente da ausência de totalidade(s) em sua<br />

obra, de sua não expressividade, de sua incapacidade (ou resistência) de ser apreendida<br />

como um grande sistema centrado em relação com outros sistemas do mesmo teor<br />

(Tolentino não encontra nos poemas de Leminski os rigores das totalidades<br />

convencionais da Literatura de expressão: dicção, idéias densas, cultura, permanência,<br />

profundidade filosófica etc). Mas, nos deslocando para a perspectiva da fuga, o que<br />

seria um defeito dos textos de Leminski pode tomar outro aspecto, menos assombroso<br />

ou pejorativo. Temos tentado mostrar que sua poesia tende para uma dissolução das<br />

totalizações rumo a uma espécie de limiar de descodificação absoluto, a ponto de a<br />

unidade não fazer mais sentido, nem como múltipla ou esfacelada, utópica ou<br />

nostálgica. Depois das leituras que fazemos não se pode, cremos nós, afirmar que lhe<br />

falta rigor (o texto-morcego deve ser extremamente preciso), mas este problema não se<br />

coloca mais sob os termos das poéticas da construção ou da expressão. Não se trata de<br />

dominar grandes conjuntos estruturais, nem de despotismo subjetivo. Nem mesmo de<br />

um despotismo do significante. Vimos que não se trata de um deslocamento de<br />

significados sobre a carne de um significante rigorosamente estruturado. A mobilidade<br />

geral, a preponderância do verbo sobre o substantivo (em termos de classes gramaticais)<br />

e sobre o sujeito ou os objetos (em termos sintáticos) implica no predomínio da<br />

variância e do diferencial em oposição à permanência e ao universal. Trata-se, como diz<br />

o próprio Leminski, de lidar com “distâncias mínimas”, circunstancialidades absolutas,<br />

variações microscópicas (e não controles macroscópicos), linhas e fluxos; dicção rala:<br />

eu queria tanto<br />

ser um poeta maldito<br />

a massa sofrendo<br />

enquanto eu profundo medito<br />

68


eu queria tanto<br />

ser um poeta social<br />

rosto queimado<br />

pelo hálito das multidões<br />

em vez<br />

olha eu aqui<br />

pondo sal<br />

nesta sopa rala<br />

que mal vai dar para dois<br />

(Leminski, 1983, p. 72).<br />

Enquanto “Quem dera eu fosse um músico” ri (descarta) do poeta da estruturação, “eu<br />

queria tanto” ri do poeta da expressão, seja a expressão da subjetividade individual<br />

(poeta maldito) ou social (poeta social). Só resta ao poeta (e ao poema) a sopa/dicção<br />

rala, as linhas finas e rarefeitas que constituem o funcionamento microscópico dos<br />

grandes sistemas e que os atravessam de ponta a ponta provocando-lhes fissuras quase<br />

imperceptíveis. Inútil tentar tornar densa ou profunda a rarefação que Leminski<br />

persegue obstinadamente: mal dá para um, se tomarmos este um como eu (lírico ou<br />

biográfico). Que rigores perpassam, então, a maquinaria textual de Leminski?<br />

Não podemos dizer que Leminski revoluciona a técnica poética, pois apesar de<br />

um uso todo particular da língua e das convenções poéticas (seu estilo?), ele trabalha<br />

dentro da tradição do verso, com um domínio cerrado do que a crítica chamaria de<br />

figuras de sonoridade: assonâncias, consonâncias, aliterações, rimas, ecos etc. Já<br />

tivemos a oportunidade de flagrar estes procedimentos nos poemas. Do ponto de vista<br />

das figuras de sentido, haveria um uso da metáfora em seu plural (que não pode ser<br />

freada em um ponto do código, ou seja, em uma profundidade conotada), do anagrama<br />

que multiplica os campos semânticos e uma tendência à poesia de idéias,<br />

enlouquecendo-as. No poema “Luto por mim mesmo” pudemos verificar bem o<br />

procedimento que permite o entrecruzamento das linhas da dor e da vida, não no sentido<br />

metafísico e genérico destas (não se trata da Dor ou da Vida), mas de uma dor e de uma<br />

vida específicas. Por outro lado, não se trata da dor ou da vida de um sujeito particular<br />

(nem de um eu lírico), mas dor e vida são (foram lidas como) linhas de intensidades,<br />

abstratas e localizadas, fluxos microscópicos que se cruzam entre si e com as linhas dos<br />

versos: circulação pura de intensidades fazendo vazar os grandes conjuntos (sujeito,<br />

tradição, estrutura do poema ou da poesia). Junto com o uso da metáfora em seu plural,<br />

este procedimento reflexivo-andante de fazer circular intensidades torna o lado<br />

semântico de sua poética extremamente original. Mas o lado sonoro não fica atrás, pois<br />

tratam-se de poemas não necessariamente medidos e aparentemente simples do ponto de<br />

vista rítmico, mas cujo trabalho fonético é extremamente rigoroso, mantendo-se sempre<br />

em jogo (de pressuposição recíproca) com o trabalho semântico.<br />

69


Para chegarmos aos rigores de Leminski agimos como intérpretes tradicionais,<br />

na bi-articulação significado e significante, procurando comentar e desvendar os jogos<br />

de linguagem dos poemas, mas também tentamos construir outras relações com os<br />

textos de Leminski, pressupondo-os como plurais ou rizomas, textos-morcego. Este<br />

procedimento crítico não implica mais em (somente) apreender a obra, interpretá-la e<br />

classificá-la, mas em conectar-se com ela, mesclar linhas de textos críticos com os<br />

poéticos. Por isto, nosso texto teve também de tender, pelo menos um pouco, ao rizoma,<br />

ao plural bathesiano. Tudo isso porque achamos que a obra de Leminski poderia ser<br />

levada mais longe do que os métodos tradicionais de crítica, representativos ou<br />

estruturais, a levariam: levá-la além da estrutura, da subjetividade e da significância que<br />

impregna a ambas. E também levá-la além da tradição literária, embora utilizemo-nos<br />

de seus instrumentos. Lida assim, sua obra está além da Literatura como instituição,<br />

conforme a percepção do próprio Leminski:<br />

acho que estamos depois da literatura<br />

não é preciso combatê-la<br />

o que nós estamos fazendo já não é ela<br />

a produção de signos<br />

de bens simbólicos<br />

de mensagens<br />

já ultrapassou a barreira da cultura verbal<br />

em plena conquista de um espaço intersemiótico<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 33).<br />

Embora trate da ultrapassagem do verbal nesta carta (provavelmente de 1976) a Régis<br />

Bonvicino, não se pode dizer que sua poesia verbal implique (somente) num espaço de<br />

preservação do literário. Ela até pode ser lida assim, na medida em que, como dissemos,<br />

utiliza-se de recursos tradicionais, mas o que tentamos mostrar é que suporta ser levada<br />

mais adiante, para além da tradição literária. As leituras-produções que tentamos nesta<br />

dissertação vão neste sentido. Este além não implica numa superação evolutiva ou em<br />

transcendência, mas numa espécie de dissolução do sistema literário pelo trabalho<br />

microscópico das linhas de intensidade (processuais) que, em nossa leitura, prevalecem<br />

sobre as cristalizações e organicidades. Estas operações micro-processuais das linhas se<br />

constituem em fugas. Não se trata de fugir dos sistemas fechados, mas de fazê-los fugir,<br />

abrindo-os permanentemente, tornando-os a-centrados 5 . Leminski se mostrava<br />

consciente desta possibilidade de leitura (em fuga) de sua obra, procurando produzir<br />

textos que buscam a entropia da Literatura, abrindo-a para a cultura:<br />

5 O conceito de a-centramento é diferente de policentramento. Este último, apesar de multiplicar o centro,<br />

preserva a concepção de centralidade, mesmo que de maneira muito fluida. O regime de produção (de<br />

bens e códigos) capitalista é poli ou multicentrado, como são as obras modernistas, (re)construídas em<br />

leituras que procuram nelas a expressividade ou a estruturação. É o caso de se perguntar se algumas<br />

dessas obras não suportariam também uma leitura que as (re)construíssem a-centradas.<br />

70


Pra mim, a literatura não passa de um fetiche universitário. Não estou interessado mais<br />

na idéia de uma literatura, nem mesmo de uma continuidade literária. Não tenho<br />

nenhuma intenção que minhas coisas, por exemplo, tenham um padrão de<br />

continuidade com isso que se chama de literatura. Quero, pretendo estar atuando sobre<br />

a coisa mais complexa, que se chama cultura. (Leminski, 1994c).<br />

Mas esta opção pela atuação na cultura não implica numa adequação a ela, que<br />

resultaria apenas num cerceamento posterior, embora sob o regime de um sistema mais<br />

amplo e complicado. Também na cultura ele propunha provocar vazamentos, variância:<br />

O edifício da cultura humana (signos insubstanciais: temperos, artes,<br />

ciências, saberes, mitos, técnicas, ritos, textos, cultos, linguagens, desejo de infinito,<br />

que vida alguma se conforma que tenha o tamanho da vida): o campo de ruínas da<br />

cultura humana, isso representa o mais alto grau de harmonia em toda realidade<br />

universal (onde a Ordem, necessariamente, encerra o mais reles de todos os delitos).<br />

Estes artefatos, arde-fardos, objetos plasmos com idéias-palavras, que creio<br />

saber fazer dançar e cantar, se darão por perfeitamente felicíssimos se lhes<br />

proporcionarem a prerrogativa e a elétrica oportunidade de devanear que são “flashs”<br />

da glasnost desta Gestalt, brumas em rumo daquele ponto cardeal que, se a gente não<br />

sabe, pelo menos desconfia. Desconfiar é um gesto vazio, o mais perigoso dos gestos.<br />

O sonho, afinal, é tão improvável quanto a equação e o poema. 6 [grifo do<br />

autor] (Leminski, 1994b, p. 8).<br />

Aqui aparece claramente a opção por fazer fugir os sistemas (glasnost da Gestalt:<br />

libertação da totalidade) e não de fugir deles, abandonando-os. Aparece também a<br />

direção da incerteza e do perigo dada pelo verbo ‘desconfiar’: a fuga parece não ter um<br />

termo, uma certeza, um saber aonde chegar. Des-subjetivação, a-significação,<br />

desestruturação da Ordem, da Gestalt, levando os artefatos/arde-fardos (máquinas<br />

desejantes?) da Cultura para além de seus limites, fazendo-os “dançar e cantar”,<br />

escapando do abismo subjetivo e do cerceamento da significação.<br />

É claro que nesta perspectiva de viagem, de deriva e enredamento contínuo, o<br />

erro e o acaso acabam sendo necessários, ousamos dizer que constituem (ao lado da<br />

disposição de deriva e o preparo para ela, muitas vezes com instrumentos tradicionais)<br />

os termos do rigor de sua poesia. É preciso saber lidar com o acaso, preparar-se para ele<br />

não como uma dádiva de um ente divino ao poeta (que seria acaso apenas<br />

aparentemente), mas aceitá-lo como rigorosamente imprevisível, órfão de agentes<br />

causadores e perigosamente forte: trazer um pouco de caos para a ordem, ordenar<br />

precária e precisamente o caos:<br />

6 A citação anterior é um trecho de uma entrevista dada em 1978 e esta última é parte de um texto<br />

(auto)crítico-criativo de 1986, intitulado “Oração principal”.<br />

71


A LEI DO QUÃO<br />

Deve ocorrer em breve<br />

uma brisa que leve<br />

um jeito de chuva<br />

à última branca de neve.<br />

Até lá, observe-se<br />

a mais estrita disciplina.<br />

a sombra máxima<br />

pode vir da luz mínima.<br />

(Leminski, 1997a, p. 16).<br />

Até que chegue o momento de explosão casual da primeira estrofe, um rigoroso trabalho<br />

de preparo para a deriva, para as negociações com o acaso:<br />

Faça os gestos certos,<br />

o destino vai ser teu aliado,<br />

ouço uma voz dizendo<br />

do fundo mais fundo do passado.<br />

Hoje, não faço nada direito,<br />

que é preciso muito mais peito<br />

pra fazer tudo que qualquer jeito.<br />

Ai do acaso,<br />

se não ficar do meu lado.<br />

(Leminski, 1995, p. 93).<br />

À disposição de deriva descuidada (fazer tudo que qualquer jeito) o texto opõe uma<br />

ameaça ao acaso nas duas últimas linhas: o “fazer de qualquer jeito” não como um<br />

descuido, mas como um jogo de risco, configuração precária do caos, caotificação<br />

máxima da ordem (mas até um certo ponto que preserve um pouco de organismo para a<br />

sobrevivência). É uma questão de forças (quero forças para o salto) e preparo: saber<br />

levar as coisas até um certo limiar quase absoluto de descodificação, nunca parar:<br />

Andar e pensar um pouco,<br />

que só sei pensar andando.<br />

Três passos, e minhas pernas<br />

já estão pensando<br />

72


Aonde vão dar estes passos?<br />

Acima, abaixo?<br />

Além? Ou acaso<br />

se desfazem ao mínimo vento<br />

sem deixar nenhum traço?<br />

(Leminski, 1995, p. 39).<br />

Numa leitura em que se obedece a pausa dos versos, esta pode funcionar como ponto e a<br />

palavra “acaso” aparece então como destino (inconcluso) dos passos, do pensamento<br />

andante de curta memória, rizoma: sem deixar nenhum traço (permanência). Esta<br />

poesia-movimento, onde o movimento, o processo, se constitui como perturbação da<br />

estática dos sistemas, prevalecendo sobre ela, se nutre também do erro. Aliás, acaso,<br />

erro e movimento são velhos parceiros (errar é andar sem destino) que os sistemas<br />

centrados sempre tentaram evitar:<br />

ERRA UMA VEZ<br />

nunca cometo o mesmo erro<br />

duas vezes<br />

já cometo duas três<br />

quatro cinco seis<br />

até esse erro aprender<br />

que só o erro tem vez<br />

(Leminski, 1995, p. 46).<br />

O erro remete à involuntariedade, portanto, ao casual que, no entanto, é buscado<br />

insistentemente. Os procedimentos do erro, da deriva casual, um implicando no outro<br />

reciprocamente, são processos de fuga, desmantelando a unidade e fazendo a<br />

multiplicidade. O rigor desta poesia está em sua capacidade de preservar um mínimo de<br />

recodificação em meio à descoficação generalizada: um ponto de subjetivação<br />

provisório em meio à linhas de des-subjetivação absolutas, uma precária compreensão<br />

em meio à proliferação a-significante: mínimo templo / para um deus pequeno. Mas um<br />

ponto de subjetivação não implica em retomada do sujeito ontológico, mas apenas a<br />

efetivação de uma baliza provisória: não é um retorno nem uma representação, mas uma<br />

invenção, uma construção, uma produção. Da mesma forma a significância não existe<br />

para exprimir leis e limites de um sistema, mas apenas como processos de mapeamento,<br />

diagramas situacionais: radares de textos morcegos.<br />

Na poesia da expressão, o rigor se liga à preservação dos limites subjetivos<br />

(mesmo que proceda pela fragmentação do sujeito) que a poesia da estruturação, no<br />

intuito de fugir destes mesmos limites, renega, alojando-se no pólo da objetividade. Esta<br />

opção pela polarização apenas reforça, pela oposição, os limites dos grandes conjuntos:<br />

o sujeito e a estrutura objetiva. O rigor da poesia de Leminski situa-se exatamente em<br />

73


sua capacidade (ou não) de desfazer estes limites sem, no entanto, precipitar no caos<br />

absoluto. Fazer prevalecer a variância e o diferencial (erro, caos/acaso,<br />

movimento/processo) sobre a permanência e o universal, a ponto destes dois últimos<br />

derivarem do primeiro, e não o contrário. Não é o sistema que varia, mas a variância se<br />

sistematiza. O sujeito não se multiplica, mas na multiplicidade surgem pontos de<br />

subjetivação, sempre por negociações/lutas políticas, por (des)conquista de poder.<br />

Ainda se tratando do erro, a maquinaria que constitui os textos de Leminski,<br />

para funcionar bem (?), deve estar permanentemente avariada, propensa ao erro (só o<br />

erro tem vez) e à penetrabilidade do caos, pronta para a própria entropia, mergulho na<br />

multiplicidade:<br />

ICEBERG<br />

Uma poesia ártica,<br />

claro, é isso que desejo.<br />

Uma prática pálida,<br />

três versos de gelo.<br />

Uma frase-superfície<br />

onde vida-frase alguma<br />

não seja mais possível.<br />

Frase, não. Nenhuma.<br />

Uma lira nula,<br />

reduzida ao puro mínimo,<br />

um piscar do espírito,<br />

a única coisa única.<br />

Mas falo. E, ao falar, provoco<br />

nuvens de equívocos<br />

(ou enxame de monólogos?).<br />

Sim, inverno, estamos vivos.<br />

(Leminski, 1987a, p. 22).<br />

Os quatro últimos versos de “Iceberg”, ao sobrepor falar e falo (órgão sexual), identifica<br />

o erro com o desejo (“ao falar (falo) provoco / nuvens de equívocos”). “Nuvens de<br />

equívocos”, “enxame de monólogos”, multiplicidade de falas/falos que constituem<br />

condição de vida, contra os rigores estruturais que evitam a deriva e a proliferação dos<br />

“enxames”: Sim, inverno, estamos vivos.<br />

Se retomarmos o problema dos afetos (dor, amor, humor), vemos que sua<br />

leitura como experimentações de intensidades puras, linhas à deriva que se mesclam às<br />

linhas dos poemas, implicam no erro, na errância permanente. A verdade, o profundo e<br />

o centro vinculam-se ao certo, tanto do sentido de certeza e clareza (que sempre se<br />

espera, depois de desvendado o Mistério), quanto no sentido de correção moral. Ao<br />

desvincular os afetos da expressão de uma subjetividade, encarando-os como<br />

74


intensidades sem sujeitos, os poemas de Leminski perdem toda noção de centramento,<br />

de localização correta em relação a algum centro de referência. O erro, em sua poesia,<br />

na verdade não se opõe ao certo: qual universal daria os critérios de certeza? Não se<br />

trata, portanto, de um erro negativo (em relação à qual certeza, à qual moral<br />

transcendente?), mas puramente positivo: não se “erra uma vez” apenas, mas “só o erro<br />

tem vez”, o erro como variação contínua, errância: os afetos, as idéias, os versos, não<br />

são linhas que erram o caminho, mas são linhas erráticas:<br />

Aonde vão dar estes passos?<br />

Acima, abaixo?<br />

Além? Ou acaso[?]<br />

Nem acima, nem abaixo, nem além, que implicam em pontos de referências certos e aos<br />

quais se podem opor os caminhos errados, as linhas enganosas. Os passos-linhas vão dar<br />

no acaso, nas errâncias. A errância é fluxo permanente, nomadismo. O que se opõe ao<br />

nomadismo é o sedentarismo, o refluxo das linhas e a reconstrução do certo-errado, da<br />

presença-ausência e da invariância — máquinas represadas.<br />

Uma poesia errática não tem como critérios de rigor o certo em si, a verdade ou<br />

a permanência. Seu rigor, seu acerto, não deriva de sua acomodação aos critérios de boa<br />

qualidade de uma totalidade, seja ela subjetiva ou estrutural. Suas linhas enganosas não<br />

são as erradas (elas sempre são erráticas) em relação a alguma certeza transcendente,<br />

mas as que refluem novamente em algum sedentarismo (bloqueando os fluxos e<br />

reconstruindo centramentos) ou as que se precipitam no caos, sem preservar as<br />

possibilidades de confluência. Os fluxos de uma poética errática devem confluir (pontos<br />

provisórios de encontro, efetivações de fluxos). É na confluência dos fluxos de desejo<br />

que ela encontra os seus rigores e suas liberdades muito peculiares. E o que ela deve<br />

evitar são dois perigos que a rondam:<br />

1) o refluir dos fluxos (seu estancamento, obstrução das linhas de intensidades,<br />

“abismo onde me encontro”) numa poética da expressão subjetiva da<br />

estruturação (a bi-articulação das totalidades sujeito-objeto);<br />

2) e o fluir desenfreado dos fluxos como fim em si (precipitação no caos).<br />

Os rigores da poesia implicam numa estética, mas toda estética pressupõe uma<br />

moral, escolhas éticas, questões políticas. Uma poesia errática recusa todo<br />

estabelecimento de poder que a subordine, mas também recusa a conquista do poder<br />

através da obstrução das linhas com as quais opera (se mescla) um auto-descentramento<br />

constante (errância). A conquista do poder implicaria na construção de uma identidade,<br />

na cristalização de uma unidade, numa arborificação implantada no rizoma, obstruindo<br />

sua proliferação descodificada. Uma maquinaria textual suficientemente errante<br />

75


(avariada, aberta à imprevisibilidade e à variação) quer apenas confluir fluxos para<br />

depois deflui-los, procurando outras confluências possíveis, sem cristalizá-las em<br />

estruturas, sujeitos, tradição, nem compondo uma memória muito longa ou permanente:<br />

apagar-me<br />

diluir-me<br />

desmanchar-me<br />

até que depois<br />

de mim<br />

de nós<br />

de tudo<br />

não reste mais<br />

que o charme<br />

(Leminski, 1983, p. 66).<br />

O charme, no qual a sílaba ‘me’ não se refere mais à subjetividade, é apenas uma<br />

intensidade, um atributo inexplicável — para além (ou aquém?) da significância — que<br />

transforma a pessoa num campo magnético. É apenas uma subjetivação precária que<br />

eletriza o ambiente por onde circula: esquecimento dos pontos de apoio da matéria em<br />

favor da circulação energética. Esquecimento das grandes estruturas em favor da<br />

experimentação dos fluxos. O charme pode ser usado para conquistar o poder: o<br />

charmoso é um conquistador. Mas o chame (abstrato e particular) como linha intensiva<br />

que se configura e atravessa os grandes conjuntos sem a eles se agarrar (o charmoso é<br />

um grande conjunto, uma subjetividade que integra o charme em sua memória, como<br />

característica sua) recusa toda conquista e oferece apenas a possibilidade da<br />

confluência, do amor processual: enredamento contínuo de fluxos. O charme é, nesta<br />

perspectiva uma linha a ser experimentada e não elemento ou energia a ser armazenada<br />

para a conquista e a manutenção de domínios. A subjetividade implícita no ‘me’ de<br />

‘desmanchar-me’ é um domínio (um limite) que deveria ser mantido e que a palavra<br />

‘charme’ corrompe com seu ‘me’ não subjetivo.<br />

O humor tem, mais uma vez, um papel decisivo neste poema, pois advém,<br />

como nos ensina Bergson, de uma reação crítica ao “mecânico calcado no vivo”<br />

(Bergson, 1983, p. 27). A subjetividade implica exatamente num sistema mecânico se a<br />

opomos à mobilidade errática do charme, cujo mecanismo subjetivo quer aprisionar. A<br />

liberação do charme passa pelo jogo anagramático de palavras e pelo humor. Charme<br />

que está (ou parece) dentro do sujeito. Mas sua agilidade e a maleabilidade fazem da<br />

subjetividade uma máquina muito certa (previsível), que tende ao peso, à gravidade (no<br />

sentido de força física e de seriedade). Máquina propícia, portanto, às ‘brincadeiras<br />

espirituosas’, à galhofa. Todo humor, como o charme, é ágil. Na verdade, a agilidade,<br />

em oposição à estática mecânica, é que resulta no humor: por isto se ri dos palhaços,<br />

pela sua inabilidade, por sua mecanicidade insensível à maleabilidade da vida. Ora,<br />

qualquer intensidade liberada da gravidade subjetiva (ou estrutural) já é potencialmente<br />

76


em humorada, pois diante dos grandes conjuntos os fluxos intensivos constituem<br />

agilidade pura. Dor, amor, todos os afetos libertos do abismo subjetivo constituem<br />

pequenas máquinas (desejantes) errantes que avariam (variam) os mecanismos<br />

sistêmicos. Nesta situação, todos estes afetos são potencialmente bem humorados, assim<br />

como as linhas dos poemas de Leminski fazem fugir (a provocação seguida de fuga é<br />

uma brincadeira muito engraçada) a própria literatura, desconcertando a crítica. O<br />

humor, como o erro é uma avaria nos mecanismos sistêmicos. Uma maquinaria sem<br />

avarias torna-se um mecanismo previsível, harmonizando o funcionamento de todas as<br />

micro-máquinas que passam a ser elementos na hierarquia de um sistema centrado. Os<br />

textos de Leminski riem do sujeito, da estrutura, da tradição, da memória e da literatura,<br />

tornando-se avarias, máquinas avariadas, desvairadas, variantes, errantes: charmehumor,<br />

charme-charge, sabotagem dos mecanismos da subjetividade, da estrutura e da<br />

literatura.<br />

O poema “apagar-me” opera um processo de desmanche do eu, de seus limites,<br />

fazendo-o vazar no fluxo do charme-humor, do “desmanchar-me” anagramático. A<br />

efetivação do processo ou ponto precário de subjetivação é o charme indefinível que<br />

resta depois do desmanche. Charme que é, ao mesmo tempo, uma confluência dos<br />

fluxos e uma possibilidade de (des)fluência, avessa a qualquer estabelecimento de<br />

limites (e poderes) subjetivos. E o sujeito, como individualidade, é um cerceamento aos<br />

fluxos, um limite (fluido, mas rigorosamente controlado) construído pelo regime de<br />

códigos burgueses. Há toda uma moral da errância, que funciona mais por produção, é<br />

claro, que por representação.<br />

77


FRAGMENTO 4<br />

Apenas uma maquinaria bastante defeituosa (bastante errática) pode operar a<br />

abertura de fendas propícias ao vazamento dos sistemas fechados e ainda não se<br />

ressistematizar (refluir) mais à frente: a produção capitalista de códigos e bens luta o<br />

tempo todo para ressistematizar as avarias (e não simplesmente evitá-las),<br />

modulando-as numa freqüência compatível com a do fluxo do capital que, no mesmo<br />

momento que descodifica os sistemas o tempo todo, vai recodificar suas fugas mais à<br />

frente, sob seu regime. O capitalismo procede por avarias moduladas, controles<br />

estatísticos de fugas. Os textos poéticos contemporâneos ao capitalismo avançado<br />

correm o risco de se tornarem uma maquinaria modulável pelo fluxo de capital,<br />

principalmente quando buscam a novidade de forma obstinada:<br />

fiz uma palestra/debate<br />

proposta minha<br />

na arquitetura daqui<br />

sobre o tema O BELO VERSUS O NOVO<br />

no qual desenvolvi a idéia seguinte<br />

isso que se chama arte moderna<br />

deslocou o centro da idéia de BELO<br />

para a idéia de NOVO<br />

q eu disse ser própria de sociedades industriais<br />

em adiantado estado de consumismo<br />

capitalistas e socialistas<br />

o pau quebrou vou te contar 7<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 35).<br />

Para escapar desta recodificação estatística, os defeitos da maquinaria poética talvez<br />

devam ser levados a um tal limite de avarias que não seja mais possível recodificá-las<br />

por modulação, reintegrando-as aos regimes do capital.<br />

Na verdade, esta reintegração é inevitável a qualquer obra (há sempre uma<br />

máquina de vestibular, uma dissertação de mestrado, um nicho (cult) de mercado,<br />

uma leitura estrutural ou expressiva à sua espreita). O que proponho é questionar se<br />

determinada obra, apesar das absorções e reabsorções sistêmicas ainda é uma<br />

maquinaria suficientemente avariada (errática) a ponto de suportar leituras (não<br />

apenas de críticos) que tentem levá-la sempre mais fora do alcance da recodificação<br />

capitalista, ou melhor, será que podem levar as pessoas que as lêem (levar as<br />

leituras) a romper os fluidos limites sistêmicos do capitalismo? Afinal as linhas das<br />

obras não se mesclam com as da vida? Os viventes levam as obras mais longe em<br />

suas leituras apenas para irem também cada vez mais longe: as leituras também<br />

7 Este texto faz parte de uma carta (provavelmente de 1976) de Leminski a Régis Bonvicino.<br />

78


devem ser avariadas (variadas, variantes) o bastante para provocar errâncias não<br />

ressistematizáveis, resistências à recodificação promovida pelo fluxo do capital:<br />

Tudo é vago e muito vário,<br />

meu destino não tem siso,<br />

o que eu quero não tem preço,<br />

ter um preço é necessário,<br />

e nada disso é preciso<br />

(Leminski, 1995, p. 64).<br />

79


ATÉ ELA<br />

Vamos tentar produzir uma leitura deste poema calcada inicialmente no<br />

problema da passagem de um estado para outro, portanto, no problema do movimento.<br />

Este é um ponto de referência fixado intuitivamente e não pretende ser, de modo algum,<br />

absoluto. Apenas queremos fazer circular cadeias de significância em torno deste ponto<br />

inicial que pode e deve ser relativizado. Trata-se, portanto, de uma entrada neste texto<br />

que, como qualquer outro, possui uma multiplicidade de entre-linhas — frestas na<br />

malha textual que constituem possibilidades de enredamento.<br />

Se considerarmos o que se convencionou chamar de código padrão da língua,<br />

notamos que o poema se utiliza deste código para operar duas ações: a caminhada (de<br />

pé em pé) de um sujeito indefinido até o objeto para a execução de um procedimento<br />

(de pétala em pétala). Esta dinâmica é correlata à mudança de classe gramatical das<br />

palavras mais importantes de cada verso(?): de pronomes (ela) e substantivos (pé,<br />

pétala) que indicam objetos e estática passa-se ao verbo “despetalar” que se configura<br />

em ação sobre os objetos.<br />

Passando ao código literário verificamos o movimento metafórico operado pelo<br />

poema no transporte do campo semântico de flor para mulher, ou vice-versa, implicando<br />

numa série de interpenetrações destes campos e de suas periferias: assim as pétalas da<br />

flor implicam nas vestimentas da mulher, enquanto que a corola se identifica com o<br />

80


corpo ou mais especificamente com os órgãos sexuais da mulher (a flor é o órgão<br />

reprodutor das plantas). Aqui já entramos no campo do ciframento e deciframento 8<br />

(nossa leitura opera, até o momento, nos limites dos códigos) textuais. Este jogo cifrardecifrar<br />

estabelece uma série de expectativas e surpresas que jogam com a capacidade<br />

(quase poderíamos dizer esperteza) do leitor-decifrador em perceber mais ou menos<br />

rapidamente, com ou sem ajuda, a interpenetração dos campos semânticos (“ah! então a<br />

flor é uma mulher!” — note-se que esta leitura estabelece um fundo ou verdade da<br />

metáfora, que se constitui na mulher) e de sua capacidade de tirar conseqüências desta<br />

interpenetrabilidade: é um poema erótico! Outros comentários poderiam ser<br />

acrescentados, como a percepção de que se trata de uma metáfora extremamente gasta, a<br />

ponto de se tornar um uso normal fora do campo literário. Resta saber se o poema opera<br />

a metáfora de maneira a não cair também no lugar comum: este questionamento remete<br />

ao problema da originalidade e habilidade do poeta, portanto, à sua qualidade.<br />

O movimento metafórico vem acompanhado do anagramático, próximo nos<br />

resultados, mas diferente no procedimento. O anagrama opera na carne do significante<br />

(forma da expressão lingüística), mais precisamente na ocultação do som (e também da<br />

visualidade) de uma palavra em outra, resultando na multiplicação dos sentidos —<br />

como a metáfora também resulta. Assim, “pétala” contém “tala” numa referência<br />

burlesca ao órgão sexual masculino. Em “despe(tala)-la”, então, encontra-se, a<br />

corola/vagina despida e a tala/falo, prontos para o ato sexual. Por dentro de “despetalála”<br />

corre “espetá-la” numa referência bem humorada (de um humor popularesco) à<br />

penetração. A sexualidade somente é dita ou praticada ‘na surdina’, de maneira que se<br />

deixe perceber de viés. O anagrama esconde prudentemente (como em sociedade) os<br />

aspectos que são julgados mais animalescos ou chulos da prática sexual, exatamente os<br />

que se referem aos detalhes anatômicos e de funcionamento dos órgãos genitais. O<br />

poema se deixa, então, impregnar pelo fluxo do desejo, incorporando a alegria e a<br />

espontaneidade do ato sexual. Podemos, inclusive, ler na vertical um “lá lá lá”<br />

descomprometido que atravessa o texto: leitura facilitada pela disposição gráfica da<br />

sílaba “la”, que se desprende progressiva e displicentemente das palavras que a contém,<br />

numa alegria/música liberada pelo desejo e pela sexualidade. Estamos diante de um<br />

erotismo não reprimido e sem culpa.<br />

8 Vamos, inicialmente, produzir uma leitura de decifração do poema, quer dizer, voltada para o<br />

‘desvendamento de sua estrutura ou suas verdades’. Esta leitura representativa (na verdade, produção de<br />

representação) é sempre uma possibilidade aberta pelos textos de Leminski, que atuam no seio da tradição<br />

e que, portanto, permitem uma abordagem tradicional. A outra possibilidade, que escapa ao jogo de cifrar<br />

e decifrar é a leitura produtiva que, menos que interpretar sua estrutura, se conecta com a máquina do<br />

poema: regime de produção de códigos. Assim como Leminski opera no seio da tradição da representação<br />

para escapar dela, nossa leitura se encontra sempre delimitada, de início, pela leitura representativa,<br />

mesmo que tacitamente. Neste caso resolvemos explicitar estes limites iniciais e agir dentro deles, para<br />

depois tentar rompê-los.<br />

81


Ainda percorrendo a linha do anagrama e fazendo uma leitura vertical do<br />

poema, podemos chegar a:<br />

até ela<br />

de pé<br />

em pé<br />

de pé<br />

em pé<br />

até desp[e,é]<br />

que implica numa série de ações que precedem (enquanto se está de pé a flor-mulher é<br />

despida, (de pé)tala em pétala) e que culminam no ato sexual, “despé”, quer dizer,<br />

deitados (e despidos, sentido insinuado por “despe”).<br />

Ainda nos limites dos códigos literários e nos deslocando para a estética<br />

concretista (este é um poema que pressupõe o concretismo), podemos notar que a<br />

disposição gráfica dos signos no papel realiza visualmente o movimento de deitar: o<br />

poema se horizontaliza. Mas não se trata de um ‘pouso suave’ e sim de um deitar<br />

acidentado, correlato ao movimento dos corpos no ato sexual. Aqui também perpassa,<br />

na carne do texto, a ondulação alegre e sinuosa (forma do conteúdo não significativa) do<br />

desejo — ou dos corpos em desejo.<br />

Este último passo implica em outro movimento que perpassa o poema, desta<br />

vez sob o regime dos códigos sociais: o do desejo sexual na sociedade, que faz os<br />

corpos se encontrarem, mas sempre sob determinadas leis e costumes sociais. Como já<br />

dissemos, perpassa este poema uma atmosfera de alegria e liberdade sexual, típica da<br />

contracultura dos anos 60 e 70, voltada para o riso e desprendida de complexos de culpa<br />

ou noção de pecado.<br />

Até o momento não ultrapassamos muito os limites da crítica tradicional, que<br />

procura nos elementos intratextuais a ponte de ligação do texto aos seus vários<br />

contextos: sociedade, biografia, mentalidades, ciências sociais. Isto talvez seja sempre<br />

possível nos textos de Leminski, que são constituídos no seio da tradição literária, como<br />

já dissemos, utilizando-se de todo seu instrumental na construção poética.<br />

Permanecendo nestes limites, poderíamos dizer que Leminski, como Oswald, é um<br />

poeta extremamente criativo e divertido. Mais que Oswald inclusive, ele domina muito<br />

bem os signos, tanto em sua materialidade quanto em sua semântica, produzindo<br />

engenhosos jogos de ciframento e deciframento, com algumas agudas alfinetadas na<br />

sexualidade burguesa, tratando-a de maneira burlesca, à popular. Mas até aqui<br />

encontramos um texto engenhoso que toca apenas a superficialidade do leitor, da<br />

82


sociedade e da vida. Se continuarmos neste caminho, o máximo que podemos dizer é<br />

que o humor presente (de forma patente) no poema coloca todos os seus conteúdos (e<br />

falamos de sexualidade e, conseqüentemente, cultura burguesa, de tradição literária<br />

modernista e concretista, da língua ‘normal’) em cheque. Conclusão próxima à que<br />

Roberto Schwarz chega em sua intrigante análise de “Pobre alimária” de Oswald de<br />

Andrade, poeta que para compensar a ausência de densidade “deu a tudo um certo ar de<br />

piada. É neste, e levada em conta a situação complexa a que responde, que se encontra a<br />

verdade da poesia pau-brasil, um dos momentos altos da literatura brasileira.” (Schwarz,<br />

1987, p. 28).<br />

Mas Schwarz ainda se prende a problemas de profundidade, perguntando<br />

sempre se a estrutura (formal e conteudística, ele não é um crítico do conteúdo, embora<br />

pareça não conseguir se distanciar do par forma-conteúdo ou maneira-matéria,<br />

justamente por conta de suas preocupações com profundidade e totalidade) da obra<br />

representa, mesmo que de maneira muito dialética, os impasses e contradições da<br />

sociedade. Trata-se ainda de um jogo dos grandes conjuntos (obra e sociedade), embora<br />

sua crítica rompa os limites desses conjuntos em muitos momentos. Um deles é quando<br />

deixa indicado o problema do humor em Oswald, sem desenvolvê-lo mais.<br />

Quando lemos “até ela” com outras pessoas (ou não) geralmente rimos muito.<br />

De que se ri? Ou melhor, qual o regime deste riso, com o que ele se conecta?<br />

Vamos propor uma outra categoria de movimento que chamaremos, de maneira<br />

um tanto arbitrária, de movimento sob o regime do riso. Em primeiro lugar, ri-se<br />

popularescamente dos códigos sociais que tratam da sexualidade burguesa, concebida<br />

idealmente como encontros de dois seres, dois corpos e duas almas, dois sujeitos. A<br />

concepção padrão que se têm da sexualidade não exclui o prazer carnal nem o ato<br />

sexual que tenha apenas este fim, mas subordina-os hierarquicamente à sexualidade<br />

fundada no amor, completude de almas. A tradição popular sempre riu muito desta<br />

construção burguesa por meio de ditos, versos e piadas chulas. A tradição literária<br />

também já operou várias críticas a esta espécie de metafísica burguesa, mas raramente<br />

procedeu de maneira burlesca (algumas das exceções são o Macunaíma de Mário de<br />

Andrade e o próprio Oswald), pelo menos até a marginália e a tropicália — mas será<br />

que ainda podemos referir-nos a estes movimentos como literários? Os escritores (as<br />

leituras que se fazem deles) sempre preferiram ancorar a crítica ao amor e sexualidade<br />

burgueses em pressupostos mais densos, em causas mais profundas como a sociedade, a<br />

psique, a natureza humana.<br />

Mas o movimento alegre e descomprometido dos corpos, correlato ao<br />

movimento sinuoso dos versos se deitando resulta, como já dissemos, num erotismo<br />

alegre e desprendido, sem qualquer culpa ou má consciência, tão presentes na<br />

moralidade burguesa, mesmo quando disfarçadas em cuidados meramente assépticos,<br />

83


acionalmente explicados pela ciência. O riso, como já dissemos, é agilidade pura,<br />

maleabilidade da vida contra os rigores dos mecanismos sistêmicos. A presença de<br />

elementos chulos se escondendo e se insinuando espertamente (ao leitor é exigida<br />

esperteza para se conectar – decifrar? – com estes elementos) na normalidade aparente<br />

dos versos mostra a sexualidade sem culpa e desvinculada do grande Amor como uma<br />

travessura contra a gravidade (seriedade, mas também peso, imobilidade) mecânica dos<br />

códigos sociais, que procuram delimitá-la, pelo menos até o ponto de não se deixar<br />

mencionar suas baixezas (num sentido tanto corporal quanto moral) em público. Sempre<br />

rimos das travessuras que provocam pequenas(?) avarias nos sistemas enrijecidos.<br />

Henri Bergson (1983, pp. 18-19) nos diz que estas pequenas avarias do humor<br />

servem como correção de rota para os mecanismos sociais, punindo com o riso as<br />

pessoas que deixam as regras se cristalizarem de tal forma que se tornam mecânicas<br />

diante das exigências da vida em sociedade. Trata-se, portanto, de críticas corretivas (e<br />

punitivas), essencialmente humanas, do enrijecimento dos códigos sociais: maquinaria<br />

de adaptabilidade social, e não mais biológica como nos animais. É uma concepção de<br />

humor pertinente ao poema de Leminski, pois a sexualidade e o amor a que se refere o<br />

poema são exatamente os desejados pela Revolução Cultural, rapidamente absorvida e<br />

recodificada pelo capitalismo. O poema de Leminski funcionaria então como uma<br />

crítica à sexualidade burguesa tradicional, abrindo a possibilidade de uma outra postura<br />

sexual. Mas o capitalismo somente descodifica as coisas para recodificá-las mais à<br />

frente, impondo novos cerceamentos ao desejo: mecanismos científicos, psicológicos,<br />

subjetivos, sociais: não se perverta, você adoecerá; é necessário um pouco de<br />

tranqüilidade familiar para produzir bem, viver mais, regime monástico; só a falta<br />

propicia o prazer. Neste sentido o poema de Leminski se abre à nova moral sexual<br />

burguesa que poderia utilizar-se de seu texto no intuito de descodificar a moral<br />

tradicional para recodificá-la depois. Mas também poderia se abrir a um uso que não<br />

procura recodificar a sexualidade, já que permite uma leitura que não obstrui os fluxos<br />

do desejo, deixando-os apenas fluir livre e alegremente: arriscamos dizer que o poema<br />

suporta melhor esta última leitura que a primeira, constituindo-se numa máquina<br />

suficientemente avariada para resistir à ressitematização de sua errância. O humor, aqui,<br />

talvez possa levar a avaria corretiva ao ponto de se tornar uma errância que toma todo o<br />

código sexual burguês (que sempre dependerá da má consciência — o Édipo freudiano,<br />

ancorado no incesto, não deixa de ser um regime de desejo (auto)reprimido, uma culpa<br />

com a qual o ego deve conviver asceticamente) como um mecanismo sem<br />

maleabilidade. Nesta perspectiva, portanto, o erro a ser corrigido pelo humor não é<br />

apenas um enrijecimento local de um certo ponto de vista mais conservador da<br />

sociedade (de algum determinado grupo ou pessoa) sobre a sexualidade, mas toda a<br />

visão burguesa do assunto.<br />

Esta concepção de humor não é essencialmente diferente da de Bergson que<br />

não o define negativamente como um erro em relação a alguma referência<br />

84


transcendental (somente um ponto de vista metafísico excessivamente estático veria o<br />

humor como erro, já que ele impele os sistemas à mudança), mas sim em seu sentido<br />

positivo, como nós. Só que Bergson pára no uso corretivo do humor pelos sistemas<br />

sociais, os quais utilizam-no de maneira exclusivamente repressora — trata-se de uma<br />

repressão não física a uma certa inadequação às maleabilidades da vida e da sociedade.<br />

Mas pode-se afirmar essa positividade para além da mobilidade relativa dos códigos<br />

sociais, a ponto de, na perspectiva destes, o humor se tornar uma avaria e não mais uma<br />

correção — ri-se de toda e qualquer recodificação, o humor torna-se errância, variância<br />

intermitente que resiste a qualquer reabsorção sistêmica. Na perspectiva dessa linha de<br />

fuga na qual se transforma o humor (e por onde vazam os sistemas), não haverá mais<br />

negatividade, apenas intensidades a experimentar. Eis o limite (devir?) extremo ao qual<br />

queremos levar o poema de Leminski, o da errância gratuita. O humor como movimento<br />

que tende para o fora absoluto de qualquer sistema: riso-rizoma.<br />

A metáfora flor-mulher é uma das figuras mais gastas da lírica ocidental. O<br />

poeta que se disponha a trabalhar com ela deveria ser habilidoso e criativo o suficiente<br />

para revitalizá-la. Pode-se argumentar que Leminski realiza bem esta árdua tarefa com o<br />

recurso da materialidade visual, do anagrama e do erotismo bem humorado, deslocandoa<br />

da aura de pureza do amor romântico para o contato físico dos corpos 9 , perspectiva<br />

mais própria aos anos pós-revolução cultural. Indo um pouco além, o que é<br />

despido/despetalado no poema, mais que a mulher, parece ser a própria metáfora: o<br />

poema age, neste caso, como perversor que retira a pureza da figura imaculada, embora<br />

gasta. Todo ato perversor tem a possibilidade de se tornar cômico, principalmente<br />

quando a figura que sofre a perversão é ingenuamente velha: ri-se da metáfora flormulher,<br />

seduzida, despetalada e reduzida à realidade mais corpórea (diríamos mesmo<br />

mais chula) flor-vagina 10 . Ri-se, por irradiação, de toda tradição na qual se ampara a<br />

literatura das profundidades, preocupada com a sondagem interior do sujeito e à qual se<br />

liga esta metáfora. Os termos de baixo calão (tala, espetá-la) que se escondem, por<br />

anagrama, sob palavras aparentemente inofensivas brincam agilmente com a<br />

ingenuidade enrijecida da metáfora, fazendo-a dizer o que não deseja e despertando o<br />

riso, como na comicidade de palavras de Bergson: “Captamos uma metáfora, uma frase<br />

9 Embora a flor sempre tenha tido um caráter erótico em sua relação metafórica com a mulher, podemos<br />

dizer que este erotismo sempre esteve investido da má consciência burguesa, encoberto pela beleza, pelo<br />

perfume e até mesmo pela impossibilidade do contato sexual, já que a flor é exuberante por um curto<br />

espaço de tempo e somente enquanto não tocada, não colhida: após a colheita ela morre rapidamente.<br />

Sempre houve um jogo de céu e terra na metáfora flor-mulher, jogo que “até ela” abole, assumindo a<br />

sexualidade sem nenhuma culpa.<br />

10 É claro que esta sedução/quase estupro da metáfora (pelo poema ou pelo poeta) é um engodo, pois o<br />

estupro se caracteriza por uma agressão não consentida. O poema apenas explora a sexualidade sempre<br />

encoberta pela metáfora. Arriscamos dizer que este encobrimento constitui uma das razões de ser da<br />

metáfora. Ao desnudá-la, portanto, o poema dissolve a identidade da velha figura e não a reformula em<br />

outros termos. Mas esta destruição, por dissolução, é feita com os próprios termos da metáfora flormulher<br />

que, como todo sistema, carrega sua própria entropia. Leminski desencadeia, com o humor, a<br />

entropia da antiga figura. A entropia seria um convite, uma provocação (libidinal? inconsciente?) de todo<br />

sistema aos pervertidos(?) para que estes liberem seus fluxos aprisionados.<br />

85


um raciocínio, e os voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-los, de maneira que<br />

tenha dito o que não queira dizer e que venha a cair na própria armadilha da<br />

linguagem.” (Bergson, 1983, p. 59). Ora, “quem poderia ter dito” e sempre diz esta<br />

metáfora é o grande sujeito da tradição literária.<br />

Os procedimentos metafóricos e anagramáticos provocam um riso (se voltam<br />

contra), em última analise, da literatura, entendida de maneira tradicional, da qual<br />

Leminski não queria fazer parte: riso como fuga ágil do campo literário e que não<br />

recorre a qualquer outra profundidade/unidade, mas faz dispersar (mais que romper) a<br />

tradição (na sua perspectiva temática e formal) saltando para fora da problemática da<br />

totalidade ou da densidade do texto poético e sua relação representativa com o contexto:<br />

apenas podemos apreciar bem o poema percorrendo suas linhas de fuga, erotismo,<br />

humor, alegria: máquina avariada não recodificável pelo sistema literário. As relações<br />

de todas estas linhas, que configuram o texto, com a tradição e a sociedade existem e<br />

não são fúteis, como já vimos, mas são mais de produção e conexão que de<br />

representação. As linhas não constituem outro sistema (derivado ou não) em relação<br />

macro-estrutural (mesmo que dialética) com os sistemas contextuais ou literários. Elas<br />

operam um movimento de fuga nos sistemas e é assim que estes são arrastados (e<br />

deturpados) nelas.<br />

A mobilidade e o dinamismo energético são vitais para quaisquer sistemas e<br />

vimos como o humor é fundamental para manter os elementos da sociedade (grupos e<br />

pessoas) ágeis e maleáveis o suficiente para se adaptarem aos movimentos/processos<br />

sistêmicos. Mas isto pressupõe a primazia do sistema sobre o processo, da estática sobre<br />

o movimento, da unidade sobre a multiplicidade. É claro que a mobilidade de um<br />

sistema incorre sempre em riscos, pois um processo que seria apenas corretivo pode<br />

desencadear uma proliferação incontrolada 11 . Isto porque os processos lidam com a<br />

entropia de um sistema, sua tendência à dissolução: todo sistema se (des)equilibra entre<br />

a conservação e a dissolução. O humor, portanto, sempre terá algo de entrópico e<br />

energético (a energia está sempre pronta para se dissolver/transmutar) que os sistemas<br />

sociais (mais especificamente o capitalismo) tentarão utilizar para manter-se numa<br />

espécie equilíbrio tenso. O humor na poesia de Leminski parece tentar escapar aos<br />

controles sistêmicos, procurando potencializar e realizar suas tendências entrópicas,<br />

causando a dissolução dos sistemas. É neste sentido que ele pode se tornar uma avaria<br />

permanente para o sistema social e não mais um saudável corretivo de seus<br />

enrijecimentos localizados, que direcionaria as linhas entrópicas do humor para a<br />

ressistematização. Por outro lado, da perspectiva desse humor/linha de fuga, todo o<br />

sistema social (e suas codificações cerceadoras) seria um grande mecanismo enrijecido<br />

a ser corrigido. Correção que não implica em novos cerceamentos e limites, mas numa<br />

11 E esta proliferação pode ser saudável e libertadora (linhas de fuga absolutas, anarquistas) ou<br />

cancerígena e despótica (linhas de fuga recodificadoras, fascistas).<br />

86


espécie de fuga absoluta (entropia) dos sistemas e das ressitematizações com<br />

aspirações a permanência. Correção-errância, movimento puro de intensidades, moral<br />

nômade à qual o humor ‘serviria’ — na verdade, construiria.<br />

Mas não só o humor funciona como linha de entropia, mas também, como<br />

vimos, o amor, a dor, a des-subjetivação, a a-significação e mesmo a tradição, encarada<br />

como rede processual (caverna-cultura e textos-morcego) e não como edifício-presença.<br />

Isto porque os textos de Leminski se colocam (suportam serem colocados), antes de<br />

mais nada, sob a perspectiva do processo e da maquinaria, ao invés do sistema e da<br />

estrutura. As invariâncias, quando surgem, emergem da variação e estão sempre sob<br />

(auto)questionamento. Podemos dizer que os seus textos são constituídos pelo desejo da<br />

multiplicidade entrópica (desejo de fazer rizoma). Esta multiplicidade gera e utiliza<br />

estabilidades provisórias, ao contrário dos textos da Literatura, nos quais se deseja a<br />

estabilidade que utiliza a entropia para variar e, no entanto (ou por isso mesmo),<br />

permanecer, mesmo que múltipla, multiplicada (desejo de árvore, binarismo, hierarquia,<br />

totalidade).<br />

Por último, ri-se, no poema, da estática concretista. Os que são familiares ao<br />

concretismo dos anos 50 e 60 notam imediatamente a ligação de “até ela” com os<br />

poemas concretos: utilização do espaço da página, exploração da visualidade dos<br />

signos, desarticulação do verso, exploração do anagrama e do jogo de palavras, releitura<br />

revolucionária da tradição, concisão, em suma, como costumam dizer os concretistas,<br />

trata-se de um objeto estético verbivocovisual em sua plenitude. Mas nesta dissolução<br />

concretista da metáfora flor-mulher, algo do bom humor se volta para a seriedade<br />

(gravidade) concreta, sempre tão sisuda em suas rupturas. As letras que se desprendem<br />

dos versos (pétalas-roupas arrancadas da flor-mulher?) não remetem somente ao<br />

defloramento da metáfora e de toda subjetividade, burguesa e idealista, implicada nela.<br />

O poema não ri apenas da poesia de expressão. As letras-pétalas parecem se<br />

desgarrarem (visualmente) do compromisso com a estruturalidade do poema. O riso da<br />

metáfora se reverte em riso da estrutura e dos procedimentos (leis) estruturais que<br />

(in)formam um bom poema concretista. O anarquismo libidinal de “até ela” não convém<br />

à organicidade simétrica do poema concreto que, à sua maneira, tenta aprisionar as<br />

linhas (de significação, subjetivação etc.) que o perpassam num sistema estabilizado —<br />

ou será que isto é mais uma afirmação teórica em favor da radicalidade do objeto<br />

poético (uma tática vanguardista de luta?) que uma realidade da prática poética dos<br />

concretistas? Em todo caso, o riso desencadeia um movimento de fuga para fora (se não<br />

da prática poética, pelo menos) da estética concretista, fazendo-a vazar — ela, que já é<br />

um vazamento no sistema literário.<br />

Saindo de “até ela” e partindo para outros poemas de Leminski, notamos que<br />

eles têm, não raro, um andamento cômico que nos induz ao riso. Mais que irônico, o seu<br />

tom é humorístico: “Ora se enunciará o que deveria ser, fingindo-se acreditar ser<br />

87


precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada<br />

vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam<br />

ser.” (Bergson, 1983, p. 68). Mais à frente, Bergson compara o humorista ao cientista,<br />

por causa de seu amor à exatidão, tornando-se menos sutil e retórico (menos literato?)<br />

que o homem irônico:<br />

Acentua-se o humor (...) descendo-se cada vez mais baixo no interior do mal que é,<br />

para lhe notar as particularidades com a mais fria indiferença. Vários autores, entre os<br />

quais Jean Paul, observaram que o humor gosta dos termos concretos, dos pormenores<br />

técnicos, dos fatos rigorosos. Se nossa análise estiver certa não se trata de um feitio<br />

casual do humor, mais nisso consiste a sua própria essência. O humorista é no caso um<br />

moralista disfarçado em cientista, algo como um anatomista que só faça dissecação<br />

para nos desagradar; e o humor, no sentido restrito que damos à palavra, é de fato uma<br />

transposição do moral em científico. (Bergson, 1983, p 68).<br />

Parece que Bergson estava antecipando a leitura de um poema como este:<br />

MERDA E OURO<br />

Merda é veneno.<br />

No entanto, não há nada<br />

que seja mais bonito<br />

que uma bela cagada.<br />

Cagam ricos, cagam padres,<br />

cagam reis e cagam fadas.<br />

Não há merda que se compare<br />

à bosta da pessoa amada.<br />

(Leminski, 1987a, p. 30)<br />

no qual, apesar da advertência inicial do perigo (prática e poeticamente falando) de se<br />

mexer com excrementos, uma particularidade (digamos autoral) da matéria é fria e<br />

detidamente examinada, chegando-se à beleza da merda, em primeiro lugar por sua<br />

capacidade de a todos igualar e, em segundo lugar, pela sua capacidade de acentuar a<br />

diferença (positiva) da pessoa amada que, por um ‘descuido’ de linguagem se identifica<br />

com os excrementos: “a bosta da pessoa amada” pode significar “a pessoa amada é uma<br />

bosta”. Nossa leitura parece também cômica e um tanto chocante, mas isto talvez<br />

ocorra porque decidimos continuar fria e meticulosamente a linha de análise do poema.<br />

O riso, aqui, decorre da inadequação entre forma e fundo normalmente aceita<br />

socialmente: não se diz coisas chulas de forma erudita. É um velho recurso que a poesia<br />

satírica utiliza, muito mais no intuito prático e moral de interferência imediata na<br />

sociedade que com fins ‘artísticos’. Mas de que se ri no caso de “Merda e ouro”? Se<br />

acreditássemos em eu lírico diríamos que este se mascara de um idiota que tem o<br />

perfeito domínio da técnica poética, mas que é absolutamente incapaz de dizer qualquer<br />

88


coisa profunda. Rimos então da mecanicidade da linguagem poética nas mãos de um eu<br />

lírico incapaz de profundidade 12 . Talvez seja por isto que Tolentino chama Leminski de<br />

“poeta piada” (Cf. p. 66 deste texto), já que, na maior parte das vezes só consegue<br />

engendrar um eu lírico superficial. A moralidade (moral da história crítica?) expressa<br />

por Leminski seria então: não sejam poetas como eu, que só consegue mostrar como<br />

não se faz poesia-arte (densa, profunda), chegando apenas ao nível da lírica satírica<br />

(rala, superficial). Mas talvez Lemisnki, ou melhor, o seu poema, queira realmente<br />

afirmar que não sabe como se faz poesia (se a entendemos como expressão de<br />

profundidades), mas provocando: sejam como eu (como meus textos) que não sei fazer<br />

poemas. Não há, em Leminski, uma poesia séria (expressiva ou estrutural) para se<br />

contrapor à sua suposta lírica satírica. Mesmo nos poemas sem humor dificilmente<br />

encontraremos esta espécie de seriedade ou responsabilidade.<br />

A sua poesia bem humorada não deve ser encarada como um apêndice<br />

circunstancial e descartável de seu projeto estético, mas como uma das linhas<br />

constitutivas de sua poesia ético-estética, que não intenta se separar das vivências<br />

mundanas. Bergson já observara o quanto o cômico se move rente à superfície da vida,<br />

em oposição à dramaticidade da emoção:<br />

Poderíamos dizer que uma emoção é dramática, comunicativa, quando todos os<br />

harmônicos soam com a nota fundamental. Pelo fato de que o ator vibra<br />

completamente, é que o público poderá por sua vez também vibrar. Pelo contrário, na<br />

emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há certa rigidez que a<br />

impede de entrar em relação com o resto da alma onde ela se instala. Essa rigidez<br />

poderá manifestar-se, em dado momento, por movimentos de fantoche e então<br />

provocar o riso, mas já antes contrariava nossa simpatia. (Bergson, 1983, p. 750).<br />

Assim, ao optar pelo humor, Leminski assume o risco de estar sempre próximo à vida (e<br />

longe da alma), lidando com suas circunstancialidades, ou melhor, tornando tudo o que<br />

normalmente se considera dramático (permanente, profundo e maleável) risível<br />

(passageiro, superficial, rígido). O vantajoso da abordagem que Bergson faz do cômico<br />

é sua relatividade, já que define algo como dramático ou cômico menos por uma<br />

suposta essência ideal sua que pela maneira como é tratada por um ator, isto é, pela<br />

maneira como este dota esse algo de certa mecanicidade (no caso do cômico) que<br />

resistirá à sociabilidade, provocando o riso censor e corretivo. Ora, se há uma moral<br />

nos textos poéticos de Leminski, trata-se, evidentemente de uma moral nômade e<br />

12 Há outras leituras (mais sérias?) possíveis de se acrescentar ao poema, como a que aproximaria o fluxo<br />

de fezes ao libidinal e ao de capital, relações muito exploradas pela psicanálise e aludidas no poema, no<br />

qual notamos a presença de categorias sociais e do amor (libido), sem mencionar o título que liga<br />

explicitamente os fluxos de dinheiro e fezes. Outra possibilidade a explorar seria a estética underground<br />

deste poema deliberadamente desbocado e despudorado e que o vincularia à poesia marginal de 70.<br />

89


anarquista, em oposição a qualquer sedentarismo ou aparelho de estado — que<br />

procede sempre por consolidação de domínios.<br />

O humor é um procedimento textual adotado por Leminski e que funciona bem<br />

com esta moralidade do movimento, já que ele se volta potencialmente contra toda<br />

rigidez. O que pode ser dramático e, portanto, maleável e conforme, numa perspectiva<br />

social, pode ser cômico (denúncia de rigidez e mecanicidade) noutra: o riso da estética<br />

(e da mentalidade) parnasiana, denunciando-lhe o desajeitamento e a inadaptabilidade<br />

em relação à novo sociedade que se configurava no país, é uma das principais frentes de<br />

combate do nosso modernismo (vanguardista?) de 20. O que talvez seja incômodo nos<br />

poemas de Leminski é que eles não tentam repor uma outra maleabilidade relativa<br />

ancorada nalguma profundidade sistêmica (limite da maleabilidade) à qual se deveria<br />

conformar os fluxos agora libertos da mecanicidade que se quis corrigir/punir. Estes<br />

fluxos, pelo contrário, se encontram libertos de toda gravidade (“estrela à solta”),<br />

prontos para fluir e confluir uns com os outros, mas sempre resistentes a refluir para<br />

algum sistema centrado (“abismo onde me encontro”), mesmo que muito maleável. São<br />

fluxos de maleabilidade absoluta.<br />

O riso na poesia de Leminski se volta, então, ao poema concebido como<br />

expressividade ou estruturalidade, como expressão da subjetividade ou como estrutura<br />

significante. Seus textos poéticos não são dotados de um eu lírico travestido de idiota<br />

mecanizado para denunciar e corrigir as rigidezes (idiotices) sistêmicas, mas a própria<br />

idéia de eu lírico, superficial ou profundo, parece-lhes uma idiotice, assim também<br />

como a seriedade estrutural (de certa forma foi isso que procuramos ler em “até ela”). E,<br />

por mais que a sociedade burguesa se autocritique e ria de si mesma, seria interessante<br />

nos perguntarmos se ela suportaria a dessubjetivação e a a-significância quase absolutas<br />

às quais o riso de Leminski parece querer fazê-la atingir, fazendo-a fugir. Isto ocorre<br />

porque os seus poemas (mesmo quando as linhas da poesia se misturam às da dor)<br />

parecem ser atos de alegria, comprometidos mais com a disseminação do desejo na<br />

superfície da vida (do texto, da multiplicidade) do que com a busca/descoberta<br />

responsável das verdades ‘sérias’ e profundas. Poesia de produção e expansão e não de<br />

representação e aprofundamento. Qualquer profundidade que se insinua (qualquer<br />

presença, centralidade, verdade) parece ser atingida pelo riso que funciona (estamos de<br />

acordo com Bergson) como corretivo moral nos seus poemas. Mas a correção de rumos,<br />

aqui, quer se precipitar numa fuga alucinada de qualquer ressocialização sedentária,<br />

criando uma moralidade nômade que ri dos sistemas fechados e centrados e de sua<br />

tentativa de fazer cessar a fuga. Vejamos o poema a seguir:<br />

90


DIVERSONAGENS SUSPEITAS<br />

Meu verso, temo, vem do berço.<br />

Não versejo porque eu quero,<br />

Versejo quando converso<br />

e converso por conversar.<br />

Pra que sirvo se não pra isto,<br />

pra ser vinte e pra ser visto,<br />

pra ser versa e pra ser vice,<br />

pra ser a super superfície<br />

onde o verbo vem ser mais?<br />

Não sirvo pra observar.<br />

Verso, persevero e conservo<br />

um susto de quem se perde<br />

no exato lugar onde está.<br />

Onde estará meu verso?<br />

Em algum lugar de um lugar,<br />

onde o avesso do inverso<br />

começa a ver e ficar.<br />

Por mais prosas que eu perverta,<br />

não permita Deus que eu perca<br />

meu jeito de versejar.<br />

(Leminski, 1987a, p. 83).<br />

Não há um querer consciente que guiaria o versejar (“Não versejo porque eu quero”),<br />

mas também não há uma vontade transcendental que guiaria a consciência (“versejo<br />

quando converso/e converso por conversar.”) Depois o poema tenta (contrariando a falta<br />

de objetivo do versejar, expressa nos primeiros quatro versos) encontrar teimosamente<br />

um motivo para a prática poética. O que acha, no entanto, é somente a dispersão, a<br />

contrariedade e a superficialidade:<br />

Pra que sirvo se não pra isto,<br />

pra ser vinte e pra ser visto,<br />

pra ser versa e pra ser vice,<br />

pra ser a super superfície<br />

onde o verbo vem ser mais?<br />

Em toda esta maquinaria pensante perpassa o humor na forma de meticulosidade<br />

científica que procura obsessivamente pensar/pegar um motivo para a poesia e só<br />

encontra a multiplicidade, nem causal nem finalista. A poesia pensante de Leminski<br />

dispara um riso contra a razão e a metafísica ocidentais, fazendo-as perder o tino e<br />

provocando em nós o riso de sua loucura, como perversamente rimos dos loucos de rua.<br />

91


Entre tantos jogos de palavras, há o que brinca com o verbo ser que também remete ao<br />

Ser metafísico. O suposto eu lírico/ser de linguagem vem acompanhado dos atributos<br />

“vinte”, “versa” e “super superfície”, que solapam, respectivamente, sua unidade,<br />

identidade e profundidade. Estes jogos sucessivos de palavras-idéias, somados ao<br />

sempre alegre maquinismo fonético, parecem fazer a razão perder as estribeiras,<br />

dissolvendo-se na multiplicidade a-significativa. Nesta perda de si, a razão 13 arrasta o<br />

jogo de subjetividade e objetividade que a define:<br />

Não sirvo pra observar.<br />

Verso, persevero e conservo<br />

um susto de quem se perde<br />

no exato lugar onde está.<br />

No lugar do sujeito que observa, o que se conserva e persevera é, contraditoriamente, a<br />

eletricidade do susto (intensidade instantânea) do sujeito se perdendo sem sair do lugar<br />

ou, se contrapormos o verbo estar ao ser, se perdendo no seu estado que designa, aqui,<br />

apenas um ponto de subjetivação provisório ante a permanência e a verdade do ser.<br />

Depois o poema/pensamento pergunta “onde estará meu verso?”, numa tentativa de<br />

mapear-lhe a fuga, caindo novamente no bem humorado jogo de palavras que<br />

enlouquece a razão mais uma vez, pondo em cheque sua tentativa de ressistematizar a<br />

fuga:<br />

Onde estará meu verso?<br />

Em algum lugar de um lugar,<br />

onde o avesso do inverso<br />

começa a ver e ficar.<br />

É claro que, além do humor (ao seu lado e com ele), o poema alude à impossibilidade de<br />

se localizar com certeza o verso (seus objetivos ou causas) que parece buscar<br />

unicamente a mobilidade e o desfocamento (o avesso do inverso). Se há algum motivo<br />

para a prática poética, ele se aproxima da efetivação provisória (confluência de fluxos)<br />

da fuga, experimentação de estados intensivos: “susto de quem se perde / no exato lugar<br />

onde está”.<br />

Por fim, o poeta/poema pede, de forma ainda mais bem humorada (em uma,<br />

entre tantas, paródia da Canção do Exílio), que nunca perca o jeito de perversor de<br />

prosas (as quais remetem ao pensamento racional):<br />

13 É claro que se trata de uma razão iluminista (burguesa). Está fora de questão a existência de uma Razão<br />

acima de qualquer regime social. Este é um resultado de nossa leitura do poema de Leminski: o caráter de<br />

coisa produzida da razão ocidental.<br />

92


Por mais prosas que eu perverta,<br />

não permita Deus que eu perca<br />

meu jeito de versejar.<br />

Nunca deixar de perverter as prosas explicativas (a significação, a racionalização), fazer<br />

vazar os sistemas (rir deles), inclusive as ressitematizações que podem surgir nas fugas,<br />

eis o que parece querer a proliferação errante e alegre das linhas de poesia de Leminski.<br />

* * *<br />

É interessante notar que a medida e o ritmo dos poemas de Leminski se<br />

aproximam muito da simplicidade sonora dos versos populares. Sua poesia tende ao à<br />

redondilha maior e à alternância entre o ritmo binário e ternário. Esta simplicidade<br />

provoca uma sensação (forma do conteúdo não lingüística) de descompromisso e<br />

alegria, além de uma impressão de rudeza mecânica, própria dos “batatinha quando<br />

nasce” populares. É claro que nas entrelinhas (literalmente) deste mecanismo flagramos<br />

uma máquina poética extremamente complicada e avariada que estabelece ligações<br />

(produtivas) complexas com a cultura (entendida em sentido amplo). Mas esta<br />

mecanicidade fonética não seria um riso disparado contra a grande literatura<br />

versificatória (oratória?) e sua ostentação malabarística de uma enormidade de ritmos e<br />

medidas (mesmo o verso livre) variadas, seu paciente trabalho técnico de adaptação da<br />

forma sonora à matéria tratada (significante e significado), enfim seu longo, meticuloso<br />

e sério esforço de construção de uma tradição da música da palavra? Não que Leminski<br />

não se utilize ou não goste dessa música, mas talvez seus poemas riam um pouco do<br />

excesso de harmonia e da suavidade melódica desse prédio-sinfonia que se construiu e,<br />

continuando a dissolução iniciada pelos modernistas, coloque um pouco mais de ritmo e<br />

dissonância, mais percussão e violão, na tradição da palavra poética. Assim, toda a<br />

tradição sonora da poesia ocidental em geral, e de língua portuguesa em particular, é<br />

explorada e utilizada em sua complexidade máxima (como tivemos a oportunidade de<br />

verificar em várias leituras) nos seus poemas, mas de modo a se configurar num ritmo<br />

mecânico e popularesco (de mingau?) quando consideramos macroestruturalmente a<br />

sonoridade do poema. Já as estruturas mínimas, os ritmos das máquinas desejantes por<br />

entre a totalidade sonora do poema... Aí, já é outra história.<br />

93


MÁQUINAS LÍQUIDAS<br />

(capitalismo e poesia)<br />

Antes de atirar minha TV pela janela<br />

Eu ouvi o que ela dizia<br />

“Quando não houver mais ninguém<br />

Será um belo dia”<br />

Estranha coisa pra se dizer<br />

Antes de vender mais mercadoria<br />

Mas é assim o mundo que nos cerca:<br />

Nos cerca muito bem<br />

(Gessinger, 1991b).<br />

Todos os poetas têm que se haver com a coletividade que, mais que os define,<br />

os cerca. Esta relação com a sociedade não se dá antes ou depois do texto, mas no<br />

momento de sua produção e de sua leitura (re-produção). É uma relação, portanto, que<br />

não se situa fora do texto, mas nele próprio. No entanto, mais importante que estas<br />

categorias espaciais e temporais (dentro e fora, antes e depois) é a funcionalidade do<br />

texto. Quanto a ela, podemos afirmar que o texto poético opera diretamente nos códigos<br />

da cultura, estando ligado, portanto, de forma direta ao regime de produção da<br />

sociedade na qual é produzido e re-produzido (lido). Mas que regime de produção seria<br />

este no qual o poema opera diretamente? Estamos falando da produção simbólica (nível<br />

da ideologia) ou da produção material (nível da economia) de uma sociedade? Ou<br />

devemos nos situar primeiramente no plano das idéias e mentalidades, fazendo<br />

(posteriormente ou simultaneamente) a ponte dialética com a base material que define<br />

‘realmente’ um regime de produção e, conseqüentemente, uma sociedade?<br />

Estes problemas sempre foram um empecilho à crítica marxista em particular e<br />

à sociológica, em sentido mais amplo, pois o texto poético, segundo suas categorias,<br />

opera evidentemente no plano ideológico que, do ponto de vista do marxismo (mesmo o<br />

mais heterodoxo), mantém uma relação de dependência com o plano material, de<br />

produção de bens. Perpassa a crítica sociológica um indisfarçável mal estar por ter que<br />

situar seu objeto de análise (e sua profissão) em segundo plano no sistema social. Os<br />

textos são sempre operações derivadas da base material e a leitura crítica deve, de uma<br />

maneira ou de outra, descortinar as relações entre texto e sociedade, produção simbólica<br />

e material, muitas vezes ocultadas pelo autor.<br />

Para o deleite da crítica dita formalista ou imanentista, os críticos da sociologia<br />

da literatura 1 raramente conseguem sair desse impasse, o que lhes rendem,<br />

1 Usamos este termo de forma abrangente, de modo a abarcar toda a crítica que dá, de uma maneira ou de<br />

outra, uma importância muito grande à relação da obra com a sociedade.<br />

94


freqüentemente, o atributo de conteudistas. Obviamente este atributo diz, de forma<br />

indireta, que os críticos-sociólogos não entendem, de fato, de literatura, objeto cujos<br />

meandros e particularidades só poderiam ser realmente explorados por uma perspectiva<br />

imanentista. Mas os formalistas também têm, em algum momento, que se haver com a<br />

sociedade (ou, pelo menos, com o sujeito, outra totalidade extrínseca ao texto), pois, a<br />

não ser que se conceba a obra como um objeto transcendental, é dela que o texto faz<br />

parte. Como os críticos formalistas e os textos operam no plano simbólico, há, muitas<br />

vezes, uma simpatia destes críticos por concepções de sociedade que dão primazia a este<br />

plano. Neste aspecto, o estruturalismo é bem afortunado, pois se trata de uma<br />

teoria/método que se aplica tanto à literatura quanto a antropologia, ciência social que<br />

tradicionalmente se opõe ao marxismo por privilegiar o simbólico.<br />

É claro que as coisas não são tão simples assim e, não raro, os críticos<br />

conseguem ultrapassar, no seu exercício de leitura (e até de teorização), os limites<br />

teóricos que os cercam (não devemos nos esquecer que a crítica é uma ficção) atingindo<br />

um estado de verdadeira produção textual, cuja relação com o texto lido é muito menos<br />

apreensiva e representativa que experimental e produtiva. E isto em críticos de<br />

orientações e ‘estilos’ os mais variados, como Jakobson, Octavio Paz e Roberto<br />

Schwarz, por exemplo.<br />

Em todo caso, a dicotomia material/simbólico, base/ideologia (corpo/alma?) é<br />

uma presença efetiva que sempre se encontra ‘por trás’ ou na base do exercício crítico<br />

(talvez de todo pensamento ocidental), cerceando-o. Nossa pretensão é saltar para fora<br />

(mais uma fuga?) desta dualidade, o que não é fácil, mas que talvez seja necessário<br />

tentar, mesmo que tenhamos que construir outras dualidades. Para isto vamos recorrer a<br />

uma obra que também tentou realizar este salto e, cremos, obteve relativo sucesso.<br />

Trata-se d’O Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que nos interassa<br />

particularmente nesta obra é sua concepção de regimes de produção. Assim, os autores<br />

definem três máquinas abstratas (modos de funcionamento) que maquinam três regimes<br />

de produção ou sociedades: o primitivo, o bárbaro (ou despótico) e o civilizado. Estas<br />

máquinas se sucedem umas às outras (a civilizada se assenta sobre as duas máquinas<br />

anteriores), mas esta ordem não implica em nenhum tipo superioridade ou<br />

evolucionismo. Todas elas funcionam por produção e inscrição sobre um corpo pleno.<br />

A inscrição, grosso modo, se identifica com um regime de recorte de fluxos ou, mais<br />

claramente, implica na ordenação, na codificação do mundo e da vida — ordenação que<br />

os antropólogos chamariam de cultura. Ela é também uma produção: a máquina<br />

primitiva produz essencialmente inscrições no corpo pleno da terra (sem metáforas). O<br />

corpo pleno seria o referencial máximo de uma máquina, seu limite de operação que,<br />

ultrapassado, mudará todo o regime de produção, ou seja, irá transformá-la em outra<br />

máquina. Esta ultrapassagem, no caso do socius primitivo, é feita por descodificação<br />

dos fluxos codificados pela máquina primitiva, desfazendo as territorialidades (limites,<br />

regiões codificadas) construídas por ela.<br />

95


Esta passagem é operada concretamente pelo desfazimento das alianças<br />

localizadas de parentesco das sociedades primitivas (que definem uma variedade de<br />

grupos, tribos, e clãs, muito móveis e indefinidos) e o estabelecimento de uma nova<br />

aliança de todo o socius com um único déspota:<br />

Pode-se resumir do seguinte modo a instauração da máquina despótica ou do socius<br />

bárbaro: nova aliança e filiação direta. O déspota recusa as alianças laterais e as<br />

filiações extensas da antiga comunidade. Impõe uma nova aliança e coloca-se em<br />

filiação direta com o deus: o povo deve segui-lo. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 199).<br />

Esta mudança do socius, operada pela instauração da máquina despótica, muda também<br />

a superfície de inscrição, que deixa de ser o corpo pleno da terra:<br />

O corpo pleno como socius deixou de ser a terra, é agora o corpo do déspota, o<br />

próprio déspota ou seu deus. As prescrições e os interditos que quase o impossibilitam<br />

de agir, fazem dele um corpo sem órgãos. Ele é a única quase-causa, a origem e o<br />

estuário do movimento aparente. Em vez de destacamentos móveis da cadeia<br />

significante, há um objeto destacado que saltou para fora da cadeia; em vez de<br />

extrações de fluxos, há convergência de todos os fluxos para um grande rio que<br />

constitui o consumo do soberano: radical mudança de regime no fetiche ou no<br />

símbolo. E o que conta não é a pessoa do soberano, nem sequer a sua função que pode<br />

ser limitada. A máquina social é que se modificou profundamente: em vez da máquina<br />

territorial há a “mega-máquina” de Estado, pirâmide funcional em cujo cume está o<br />

déspota, motor imóvel, o aparelho burocrático na superfície lateral como órgãos de<br />

transmissão, e os camponeses na base, como peças trabalhadoras. [grifos nossos]<br />

(Desleuze e Guattari, 1995a, p. 201).<br />

Verificamos aqui, além da fundação do Estado, o aparecimento da metafísica, que<br />

implica no conhecimento (e na conexão com) do corpo pleno do déspota, ou seu deus<br />

— o monoteísmo só tem sentido na sociedade bárbara. Aqui se situa também o<br />

aparecimento da escrita, com todas as suas características de centralização e controles<br />

burocráticos, mas também como representação (ela é o grande significante) da voz de<br />

deus ou do déspota. Há toda uma vontade das origens e da presença na palavra escrita:<br />

os poetas sabem (e muitas vezes sofrem) disso muito bem. Somente na máquina<br />

despótica pode ser concebido o sujeito, mas ainda se trata de um proto-sujeito, uma<br />

entidade coletiva, unificada sob a tutela do déspota, para o qual correm todos os fluxos.<br />

Temos aqui o sujeito da tradição, de um povo, mas ainda não apareceu o indivíduo,<br />

sujeito burguês rostificado (invenção renascentista sobre o ser judaico-cristão).<br />

Esta perspectiva de Deleuze e Guattari tem a vantagem de não separar o<br />

material do simbólico, pois as máquinas são tanto manuseáveis (mão-ferramentas)<br />

quanto codificadoras e codificáveis (máquinas de linguagens). A máquina abstrata opera<br />

96


nos dois planos, material (forma do conteúdo) e simbólico (forma da expressão), sem<br />

primazia de nenhum. Ela apenas supõe estes planos como não essenciais (não há uma<br />

realidade essencialmente material e outra essencialmente simbólica, as diferenças são<br />

funcionais, circunstanciais) e em relação de pressuposição recíproca (um plano<br />

pressupõe, necessariamente, o outro). As mudanças de código e de produção de bens se<br />

pressupõem mutuamente, assim como as mentalidades (ideologia?) e as relações de<br />

trabalho. Embora genérica, a noção de máquina abstrata despótica nada tem de idealista,<br />

uma vez que ela se constitui como uma espécie de desejo de centro (desejo de<br />

idealismo?) e hierarquia que se instala (normalmente de fora, por conquista) no seio<br />

socius primitivo, descodificando-o. Ela é ideal e metafísica na cabeça do déspota e de<br />

seus súditos, mas se constitui de princípios abstratos e, no entanto, bem definidos de<br />

funcionamento, que vão ser a base de todo Estado:<br />

Ur, ponto de partida de Abraão ou da nova aliança. O Estado não se formou<br />

progressivamente, mas já surgiu todo armado, num golpe de mestre, Urstaat original,<br />

modelo eterno de tudo o que o Estado quer ser e deseja. A produção dita asiática, com<br />

o Estado que a exprime e que constitui o seu movimento objetivo, não é uma formação<br />

distinta; é a formação de base que está no horizonte de toda a história. Hoje em dia,<br />

descobrem-se formas imperiais que precederam as formas históricas tradicionais, e<br />

que se caracterizam pela propriedade de Estado, a posse comunal ladrilhada e a<br />

dependência coletiva. [grifo dos autores] (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 225).<br />

O sonho nostálgico do Paraíso que se costuma ler em muita poesia, do<br />

renascimento para cá, menos que remeter à sociedade primitiva que o Ocidente<br />

desconheceu em seu funcionamento até o começo do século XX, talvez remeta ao<br />

Urstaat perfeito e ideal de que nos fala Deleuze e Guattari, e no qual se pode pensar a<br />

idéia do uno (Natureza?) que se desdobra em dois: a Sociedade/déspota como duplo do<br />

mundo e o texto poético como representação desta relação dual, voz de deus. Menos que<br />

a codificação proliferante primitiva de inscrição no corpo pleno da terra, a poesia como<br />

analogia do mundo parece implicar na sobrecodificação despótica, busca da unidade<br />

ideal, pela voz, no corpo pleno do déspota. Déspota que talvez seja uma recorrência no<br />

Eu romântico ou no Mistério simbolista. Máquina despótica que talvez ressurja na<br />

nostalgia parnasiana pela Antiguidade. Esta saudade metafísica foi percebida, com a<br />

agudeza de sempre, por Octavio Paz (1993, p. 62), que observa que a poesia moderna<br />

oscila entre uma saudade religiosa das origens, da inocência e da igualdade (no Urstaat<br />

não há classes em luta, apenas hierarquias pacíficas) por um lado, e a força<br />

revolucionária, descodificadora, por outro.<br />

Mas ao nos referirmos a forças revolucionárias, já nos encontramos no regime<br />

de produção capitalista, que vive de revoluções e rupturas constantes, mas que no<br />

mesmo movimento de liberação dos fluxos os recodifica novamente. As possibilidades<br />

do capitalismo existem em qualquer regime despótico baseado no Urstaat, que jamais<br />

consegue uma confluência concentricamente ideal de todos os fluxos. Sempre há fluxos<br />

97


descodificados percorrendo um império, ameaçando o soberano e que já fazem parte de<br />

outro movimento de desterritorialização, desta vez contra o corpo pleno do déspota:<br />

O primeiro grande movimento de desterritorialização aparecia com a<br />

sobrecodificação do Estado despótico. Mas não é nada ao pé desse outro grande<br />

movimento, o que se vai fazer por descodificação dos fluxos. Todavia, não basta que<br />

haja fluxos descodificados para que o novo corte atravesse e transforme o socius, isto<br />

é, para que o capitalismo nasça. Os fluxos descodificados tornam o Estado despótico<br />

latente, submergem o tirano, mas fazem-no voltar com formas inesperadas —<br />

democratizam-no, oligarquizam-no, segmentarizam-no, monarquizam-no, mas<br />

interiorizando-o e espiritualizando-o sempre com o Urstaat latente — cuja perda todos<br />

lamentam — no horizonte. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 231).<br />

Esta resistência à descodificação geral dos fluxos (de mercadorias, de dinheiro, de<br />

códigos, de idéias [de desejo?]) que persegue as sociedades tradicionais é marcada por<br />

uma certa saudade da tradição mítica e pelo desejo de fixidez, contrapostos à constante<br />

avaria sistêmica, própria do regime de produção capitalista, o qual vive de sua crises e<br />

rupturas internas: a razão, a crítica e a ciência, são palavras que nos dão bem a idéia do<br />

estado de permanente descodificação em que se encontra o capitalismo.<br />

A passagem do Estado despótico para o capitalismo irá mudar, mais uma vez, a<br />

superfície de inscrição do socius, que deixa de ser o corpo pleno do déspota e se torna o<br />

corpo pleno do capital, o qual passa, por sua vez, não a sobrecodificar, mas a<br />

descodificar todos os fluxos. O problema é que, desta vez, o corpo pleno não é uma<br />

presença (o soberano ou deus), mas um fluxo e, como tal, menos que inscrever e<br />

ordenar estruturalmente, o capital apenas produz e se reproduz. Ele é um descodificador<br />

universal e abstrato, completamente descomprometido com as metafísicas das<br />

sociedades tradicionais e atua menos por centralização dos fluxos que por controles<br />

modulados. As constantes crises e rupturas (avarias) da máquina capitalista são, como<br />

bem sabem os marxistas, não apenas uma conseqüência do seu regime de produção, mas<br />

uma necessidade determinante sua. Ela só funciona desfuncionalizando<br />

(descodificando) os fluxos sem parar:<br />

A civilização [a sociedade capitalista] define-se pela descodificação e pela<br />

desterritorialização dos fluxos na produção capitalista. Todos os processos são bons<br />

para fazer esta descodificação universal: a privatização, não só de bens, dos meios de<br />

produção, mas também dos órgãos do próprio “homem privado”; a abstração não só<br />

das quantidades monetárias, mas também da quantidade de trabalho; (...) a forma<br />

científica e técnica que os próprios fluxos de código tomam; a formação de<br />

configurações flutuantes a partir de linhas e de pontos sem identidade discernível.<br />

(Deleuze e Guattari, 1995a, p. 255).<br />

98


No capitalismo, na verdade, não há mais códigos, mas uma axiomática de códigos que<br />

se expande constantemente. Os códigos do regime de produção despótico fecham um<br />

sistema, impondo um limite de descodificação que, se ultrapassado, faz o sistema perder<br />

sua identidade, mas no capitalismo os limites são constantemente ampliados, as rupturas<br />

não têm fim e sempre se encontra outras axiomáticas de códigos para substituir as<br />

antigas e empurrar os limites do capital um pouco mais para fora, internalizando as<br />

antigas margens no seu regime. O capitalismo esquizofreniza o tempo todo os fluxos,<br />

deixa que eles se esquizofrenizem alucinadamente, mas somente para axiomatizá-los<br />

(recodificá-los) depois. A esquizofrenia (descodificação geral dos fluxos/anarquismo<br />

libidinal) talvez seja a única opção realmente revolucionária no interior do capitalismo<br />

(no qual todos nos encontramos). Mas ele já não esquizofreniza o suficiente? Se<br />

pensarmos em velocidade, é mais que suficiente, mas o que importa é como o faz:<br />

(...) o capitalismo é de fato o limite de todas as sociedades, porque faz a<br />

descodificação dos fluxos que as outras formações sociais codificavam e<br />

sobrecodificavam. No entanto, ele é o seu limite ou corte relativos, porque substitui os<br />

códigos por uma axiomática extremamente rigorosa que mantém a energia dos fluxos<br />

num estado ligado sobre o corpo do capital como socius desterritorializado, mas que é<br />

ainda mais implacável que qualquer outro socius. A esquizofrenia, pelo contrário, é o<br />

limite absoluto que faz passar os fluxos livremente sobre o corpo sem órgãos<br />

dessocializado. Podemos assim dizer que a esquizofrenia é o limite exterior do próprio<br />

capitalismo, o termo da sua tendência mais profunda, mas que o capitalismo só<br />

funciona se a inibir, ou se repelir e deslocar esse limite substituindo-o pelos seus<br />

próprios limites relativos imanentes que reproduz numa escala cada vez maior. O que<br />

ele descodifica com uma mão, axiomatiza com a outra. [grifos dos autores] (Deleuze e<br />

Guattari, 1995a, p. 256).<br />

Já nos referimos ao jogo que um sistema necessita fazer o tempo todo com sua entropia<br />

para se manter em equilíbrio. Pode-se dizer que a esquizofrenia seria a entropia da qual<br />

o capitalismo depende e que também é o seu temor: a ciência e as artes capitalistas, por<br />

exemplo, esquizofrenizam sem parar e a sociedade burguesa deve sempre inventar<br />

novas axiomáticas para reabsorver estas descodificações que são necessárias, mas<br />

perigosamente revolucionárias: “porque é que ela vigia com tanto cuidado os seus<br />

artistas e até os seus sábios, como se eles pudessem fazer correr fluxos perigosos, cheios<br />

de potencialidades revolucionárias, enquanto não são recuperados ou absorvidos pelas<br />

leis do mercado?” (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 256).<br />

A axiomatização dos fluxos (ou sua recodificação de mutabilidade estatística)<br />

implica sempre numa desterritorialização seguida de uma nova territorialização. Ora, o<br />

estabelecimento de territórios é uma tarefa do Estado. E efetivamente, o Estado<br />

capitalista tem a função de controlar o fluxo de capital, obstruindo sua passagem onde<br />

há excesso, fazendo-o passar onde falta, absorvendo a mais valia excedente para<br />

provocar a escassez. O Estado capitalista não subordina mais todos os fluxos como o<br />

99


despótico, mas se filia ao fluxo de capital cuidando de boa parte de sua axiomática,<br />

administrando-a: a burocracia torna-se tecnoburocracia. O capitalismo ainda precisa de<br />

um agente territorializador, do Urstaat:<br />

(...) a axiomática social das sociedades modernas existe entre dois pólos, e oscila<br />

sempre entre um pólo e outro. Estas sociedades — nascidas da descodificação e da<br />

desterritorialização, sobre as ruínas da máquina despótica — oscilam entre o Urstaat<br />

que gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante e os<br />

fluxos soltos que as reconduzem para um limiar absoluto. Recodificam com toda<br />

força, com ditadura mundial, ditaduras locais e polícia todo-poderosa, enquanto<br />

descodificam ou deixam descodificar quantidades fluentes dos seus capitais e das suas<br />

populações. Elas encontram-se entre duas direções: arcaísmo e futurismo, neoarcaísmo<br />

e ex-futurismo, paranóia e esquizofrenia. Vacilam entre dois pólos: o signo<br />

despótico paranóico, o signo significante do déspota que tentam reanimar como<br />

unidade de código; e o signo-figura do esquizo como unidade de fluxos<br />

descodificados, esquize, ponto-signo ou corte-fluxo. Estrangulam um, mas expandemse<br />

ou derramam-se pelo outro. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 271).<br />

Passando ao campo poético, há muita semelhança entre esta teoria do capitalismo de<br />

Deleuze e Guattari e a concepção de poesia moderna que Octavio Paz desenvolve em<br />

Os filhos do barro:<br />

Crítica da crítica e suas construções, a poesia moderna, desde os préromânticos,<br />

procura fundamentar-se em um princípio anterior à modernidade e<br />

antagônico a ela. (...) A poesia moderna afirma que é a voz de um princípio anterior à<br />

história, a revelação de uma palavra original de fundamento. A poesia é a linguagem<br />

original da sociedade — paixão e sensibilidade — e por isso mesmo é a linguagem<br />

verdadeira de todas as revelações e revoluções. Esse princípio é social, revolucionário:<br />

regresso ao pacto do começo, antes da desigualdade; esse princípio é individual e<br />

atinge cada homem e cada mulher: reconquista da inocência original. Dupla oposição<br />

à modernidade e ao cristianismo, que é uma dupla confirmação do tempo histórico da<br />

modernidade (revolução) como do tempo mítico do cristianismo (inocência original).<br />

Em um extremo, o tema da instauração de outra sociedade é um tema revolucionário,<br />

que insere o tempo do princípio no futuro; no outro extremo, o tema da restauração da<br />

inocência original é um tema religioso, que insere o futuro cristão em um passado<br />

anterior à Queda. A história da poesia moderna é a história das oscilações entre estes<br />

dois extremos: a tentação revolucionária e a tentação religiosa. (Paz, 1984, pp. 57-58).<br />

É claro que a poesia, entendida como produção no regime de signos de uma sociedade,<br />

está envolvida com (e no) capitalismo, que modula (ou pelo menos tenta), em última<br />

análise, toda a produção, inclusive a poética.<br />

Os críticos marxistas sempre desconfiaram das fugas românticas: para a<br />

natureza, para a Idade Média, para o sujeito, para a morte. E eles têm razão, pois o<br />

100


omantismo se constitui, de fato, numa descodificação revolucionária de fluxos,<br />

traçando uma linha de fuga para fora da sociedade burguesa, provocando-lhe<br />

vazamentos, mas apenas para reconstituir, mais à frente um novo Urstaat, seja ele a<br />

nação ou um espaço-tempo mítico (natureza, Medievo), seja ele uma internalização<br />

subjetiva: o sujeito, eu romântico. De fato, o indivíduo, isto é, a subjetividade burguesa<br />

tem todas as prerrogativas de um Estado: limites claros; sobrecodificação dos fluxos<br />

que confluem para a identidade; corpo pleno do ser, imagem e semelhança do deus<br />

cristão — toda uma metafísica da unidade se configura com a subjetividade. O sujeito<br />

cristão, por exemplo, confina-se num Urstaat internalizado, por deixar submeter todos<br />

os fluxos que atravessam-no numa unidade sobrecodificante (alma), aprisionado em si<br />

mesmo, cordeiro de deus: piedade e cinismo. Enquanto as pessoas se acreditavam<br />

centradas em si, o capitalismo descodificava todas as tradições (políticas, artísticas,<br />

científicas, religiosas, associativas) liberando os fluxos aprisionados nelas para absorvêlos<br />

em sua axiomática.<br />

Mas porque não descodificar o próprio sujeito? Como o capitalismo iria resistir<br />

à tentação de surrupiar o poder do último déspota? Nietzsche já havia começado o<br />

trabalho com seu ataque simultâneo ao romantismo e ao cristianismo. Bastava<br />

redirecionar as forças revolucionárias e esquizofrênicas do super-homem, do Zaratustra<br />

nietzschiano para uma descodificação mais modulável pelo capital, mais aceitável pela<br />

sociedade burguesa. Na opinião de Deleuze e Guatari, esta absorção foi feita pela<br />

psicanálise freudiana e sua construção do Édipo:<br />

Freud é o Lutero e o Adam Smith da psiquiatria. Mobiliza todos os recursos do mito,<br />

da tragédia e do sonho para reencadear o desejo, mas agora no interior: um teatro<br />

íntimo. E, todavia, o Édipo é de fato o universal do desejo, o produto da história<br />

universal — mas só com uma certa condição que Freud não observa: a de que o Édipo<br />

seja capaz de fazer sua autocrítica, pelo menos até certo ponto. A história universal, se<br />

não conquista as condições de sua contingência, da sua singularidade, da sua ironia e<br />

da sua própria crítica, não passa de uma teologia. E quais são essas condições, esse<br />

ponto de autocrítica? Descobrir, sob o rebatimento familiar, a natureza dos<br />

investimentos sociais do inconsciente. Descobrir, sob o fantasma individual, a<br />

natureza dos fantasmas de grupo. Ou, o que vai dar no mesmo, levar o simulacro até o<br />

ponto em que ele deixa de ser uma imagem de imagem, para encontrar as figuras<br />

abstratas, os fluxos-esquizes que ele oculta. Substituir o sujeito privado da castração,<br />

clivado em sujeito de enunciação e sujeito de enunciado, e que remete apenas para as<br />

duas ordens de imagens pessoais, pelos agentes coletivos que remetem para arranjos<br />

maquínicos. Reverter o teatro da representação na ordem da produção desejante: é<br />

esta, precisamente, a tarefa da esquizo-análize. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 283).<br />

Intentar, contra o modelo freudiano de sujeito, a dessubjetivação radical, a socialização<br />

do desejo, a deriva (errância) dos e nos fluxos, a exploração experimental das linhas<br />

abstratas: maquinismo, movimento, processo. Estas tarefas que nos propõe os autores<br />

101


do Anti-Édipo parecem ser também as que Leminski quer realizar com sua poesia<br />

errática. Durante todo este trabalho temos mostrado a fuga que Leminski provoca na<br />

subjetividade (mesmo a esfacelada), na significação (muitas vezes personificada pela<br />

razão) e no desejo de estruturação/centramento, vinculados ao regime de produção<br />

capitalista. Talvez por serem contemporâneos (e terem ‘levado a sério’) das mesmas<br />

máquinas de fuga (nômades) que foram os beatniks, hippies e revolucionários de 68,<br />

eles possam ser aproximados (conectados) de maneira tão fácil. Leminski soube, como<br />

pudemos verificar muitas vezes, que seu campo de atuação é a sociedade capitalista,<br />

mesmo quando falava do sujeito, mesmo quando dizia ‘eu’ (pronome no qual ele talvez<br />

nunca tenha acreditado).<br />

Mas voltando à subjetividade freudiana, trata-se de uma máquina descodificada<br />

e descodificadora que expande o tempo todo os seus limites: ela é atravessada (na<br />

verdade, constituída) por pulsões do id e pressões do superego. Nos limites destes<br />

campos energéticos, entre eles, o ego tenta se estabilizar. Mas toda essa produção, todas<br />

essas conjunções e disjunções de fluxos são rebatidas no complexo de Édipo, tornandose<br />

a projeção representativa de um mito original — Urstaat interiorizado. A psique<br />

freudiana oscila também entre a energia pura da libido, produção que a descodifica; e<br />

entre a representação mítica que a submete à sua codificação. Subjetividade múltipla,<br />

cindida, fragmentária, mas sempre nostálgica de sua unidade, o adulto com saudade do<br />

útero, a burguesia lamentando a perda do Urstaat original. Toda a sorte de profundidade<br />

é evocada para descortinar o mito representado, por um lado e, por outro, toda a força<br />

descodificadora quer expandir e multiplicar suas projeções cada vez mais: “arcaísmo e<br />

futurismo”. É claro que esta versatilidade, esta fragmentação do sujeito é útil ao<br />

capitalismo, pois não se pode descodificar as coisas o tempo todo sem encontrar<br />

resistências de um sujeito uno, plenamente mítico. A mitificação do sujeito uno foi um<br />

recurso da máquina capitalista para que se abrissem outros espaços à descodificação,<br />

através da interiorização do Urstaat, mas desde sempre já havia também um processo de<br />

descodificação da própria subjetividade, o que são movimentos contrários, mas não<br />

contraditórios. Devemos nos lembrar que o capitalismo oscila entre os sistemas<br />

centrados e seu descentramento modulado pelo capital (policentramento), portanto, o<br />

centramento do sujeito é uma condição necessária ao seu policentramento modulável.<br />

Outra característica desta máquina subjetiva (máquina de rostidade) é sua<br />

explicabilidade, as suas infinitas cadeias explicativas, racionais, que tentam o tempo<br />

todo entender tudo o que se passa: era da razão. A razão também é um elemento<br />

entrópico e precisa, o tempo todo, ser modulada, axiomatizada pelo fluxo de capital. A<br />

subjetividade freudiana faz a razão girar o tempo todo em torno da representação<br />

edipiana: os analistas sabem de antemão os destinos da libido, por mais tortuosos que<br />

sejam os seus caminhos: papai e mamãe, Édipo. O sujeito se explica constantemente, o<br />

analista pensa o tempo todo e este imenso esforço reflexivo cai sempre no abismo do<br />

Édipo, na psicologia profunda da representação. O pensamento sobre o inconsciente<br />

102


deve ser axiomatizado, rebatido sobre esta representação (mesmo que múltipla,<br />

esfacelada) do mito.<br />

O caminho da poesia contra a razão cai, muitas vezes, nesta outra margem<br />

mítica, da representação da unidade, no mistério das origens (o Mistério com maiúscula,<br />

pólo oposto e complementar da Razão). O que procuramos mostrar na poesia de<br />

Leminski (ou retirar dela?), é sua rebeldia contra a significação racional, sua rarefação<br />

significante, mas não no sentido da nostalgia de um mistério divino e sim na direção do<br />

enlouquecimento entrópico da razão: talvez haja magia nisto, mistério (nunca sabemos<br />

exatamente o que se passa em seus poemas), mas como linha de fuga absoluta da<br />

significação, loucura da linguagem. Tentamos flagrar a sua poesia como conhecimento,<br />

como experimentação de linhas de intensidade, saltando para fora do abismo da<br />

representação e da axiomática do capital; dos cerceamentos da razão burguesa, seja<br />

ela utilitarista (no sentido de gerar lucro) ou representativa (no sentido de desvendar<br />

arquétipos).<br />

Outra tentativa, ainda se tratando da máquina de rostidade, é o da fuga da<br />

subjetividade propriamente dita. Procuramos evitar sempre a subjetividade fragmentada,<br />

justamente por ela ser pior que o sujeito uno. O capitalismo exige uma separação<br />

constante do sujeito de si mesmo, no tempo ou no espaço 2 , embora precise da crença de<br />

uma profundidade essencial para que a mudança seja percebida apenas como uma<br />

variação relativa da unidade e nunca uma produção constante de subjetivações<br />

precárias. Ao lado das religiões e sobrepondo-se a elas, o Édipo daria esta crença ‘atéia’<br />

sem a qual os sujeitos se dissolveriam em fluxos puramente intensivos (desmancharme),<br />

nos quais as subjetivações consistiriam apenas de confluências provisórias<br />

desses fluxos, prontas para a fluxão por todos os lados. Como controlar, mesmo com o<br />

regime muito flexível e preciso da axiomática do capital, uma sociedade sem sujeitos (asujeitada),<br />

uma multiplicidade? É este salto para fora do sujeito e de sua multiplicação<br />

que tentamos dar com os textos poéticos de Leminski. Para além ou aquém do ser e seus<br />

afetos, encontramos as linhas afetivas (dor, amor, humor) do texto, da vida. Linhas<br />

abstratas e particulares de experimentação, fluxos intensivos de desejo que confluem<br />

momentaneamente num poema: conjunções e disjunções de fluxos.<br />

Este salto para fora da complexa máquina de rostidade capitalista é, antes de<br />

mais nada, uma operação na sociedade. Leminski não se refere diretamente à vida<br />

2 Separação no tempo: o estoque de conhecimento e tradições que definiriam uma identidade é<br />

constantemente afetado pelas descodificações constantes do regime capitalista, que evolui o tempo todo<br />

em suas técnicas e modalidades de consumo, exigindo que o sujeito ‘passe a borracha’ em sua identidade<br />

anterior e desenvolva outra(s). No espaço: Baudelaire já havia percebido como as pessoas não passam de<br />

pontos móveis nas ruas de uma grande cidade. Em outros espaços as máscaras mudam: em casa o sujeito<br />

é uma pessoa íntima, no trabalho um profissional e assim por diante.<br />

103


urguesa, não a denuncia explicitamente, salvo em alguns poemas muito raros (e que<br />

talvez não sejam os seu melhores) como este:<br />

de repente<br />

me lembro do verde<br />

da cor verde<br />

a mais verde que existe<br />

a cor mais alegre<br />

a cor mais triste<br />

o verde que vestes<br />

o verde que vestiste<br />

o dia em que eu te vi<br />

o dia em que me viste<br />

de repente<br />

vendi meus filhos<br />

a uma família americana<br />

eles têm carro<br />

eles têm grana<br />

eles têm casa<br />

a grama é bacana<br />

só assim eles podem voltar<br />

e pegar um sol em Copacabana<br />

(Leminski, 1983, p. 84).<br />

O melhor Leminski parece ser o que lida com as experimentações de intensidades<br />

abstratas, que são particulares (e não universais) mas não se referem a nenhuma<br />

significação imediata e precisa. Quando o seu texto insinua uma ordem cultural, uma<br />

subjetivação, um afeto, uma explicação, descodificando-os em linhas de experimentação<br />

ou confluências circunstanciais de fluxos é que ele consegue retirar o máximo de seus<br />

procedimentos poéticos. O forte de sua poesia é proceder nas frinchas dos sistemas, por<br />

onde ele rarefaz a significância e faz vazar os fluxos:<br />

das coisas<br />

que eu fiz a metro<br />

todos saberão<br />

quantos quilômetros<br />

são<br />

104


aquelas<br />

em centímetros<br />

sentimentos mínimos<br />

ímpetos infinitos<br />

não?<br />

(Leminski, 1983, p. 17).<br />

Os mínimos ímpetos infinitos, linhas de fuga absolutas que ninguém sabe (ninguém<br />

racionaliza). As que passam subitamente (ímpetos) sem que a consciência saiba<br />

exatamente o que se passou. O seu procedimento é micro, molecular, rarefeito e quase<br />

nunca se delineará classes sociais, sujeitos inteiros ou pensamentos acabados em suas<br />

poesia, mas tão somente objetos parciais, segmentos flu(t,x)uantes, máquinas<br />

desejantes. E, no entanto, sua operação textual é sempre na sociedade, atuando<br />

diretamente nos fluxos parciais da sociedade capitalista e não na subjetividade (ou no<br />

grupo social) entendida como realidade à priori, como unidade elementar. O molecular<br />

não se identifica com o pequeno (não é o sujeito particular em relação ao conjunto<br />

maior da sociedade) nem implica num ponto de vista particularista (não se trata de uma<br />

visão de um grupo, de um gueto ou provinciana). Deleuze e Guattari procuram alertar<br />

sobre os equívocos a respeito das linhas de segmentaridade moleculares, ou flexíveis:<br />

Evitaremos quatro erros que concernem a esta segmentaridade maleável e molecular.<br />

O primeiro é axiológico e consistiria em acreditar que basta um pouco de flexibilidade<br />

para ser “melhor”. Mas o fascismo é tanto mais perigoso por seus microfascismos, e as<br />

segmentações finas são tão nocivas quanto os segmentos mais endurecidos. O segundo<br />

é psicológico, como se o molecular pertencesse ao domínio da imaginação e remetesse<br />

somente ao individual ou ao interindividual. Mas não há menos Real-social numa<br />

linha do que na outra. Em terceiro lugar, as duas formas não se distinguem<br />

simplesmente pelas dimensões, como uma forma pequena e outra grande; e se é<br />

verdade que o molecular opera no detalhe e passa por pequenos grupos, nem por isso<br />

ele é menos co-extensivo a todo campo social, tanto quanto a organização molar [de<br />

grandes conjuntos]. Enfim, a diferença qualitativa das duas linhas não impede que elas<br />

se aticem ou se confirmem de modo que há sempre uma relação proporcional entre as<br />

duas, seja diretamente proporcional, seja inversamente proporcional. [grifos nossos]<br />

(Deleuze e Guattari, 1996, p. 93).<br />

E o capitalismo, de fato, arranja grandes conjuntos molares (classes, sexos, Estados), ao<br />

mesmo tempo que intensifica sua micropolítica de guetos e gangues, de fluxos de<br />

capital, trabalho e signos, de pequenos despotismos empresariais, familiares,<br />

associativos — sem esquecer a co-extensão do funcionamento desta dimensão micro a<br />

todo campo social. Uma boa poesia pode trabalhar também com grandes conjuntos, ao<br />

lado das segmentaridades finas (é o caso do Poema sujo de Ferreira Gullar e de alguns<br />

poemas seus em Dentro da noite veloz). Este problema de funcionamento das obras de<br />

diferentes poetas, e até mesmo de diferentes momentos num mesmo poeta, é um caso de<br />

procedimento, de estratégia textual que, por si só, não define a fecundidade ou não de<br />

105


seus textos — isto não quer dizer que estas estratégias sejam conscientes, absolutamente<br />

voluntárias: sabe-se lá das miríades de fluxos que atravessam a produção poética.<br />

Os fluxos, as microestruturas estão por toda parte no corpo da sociedade, como<br />

as moléculas formam um organismo. Disso resulta que um procedimento molecular<br />

pode ter tanta amplitude quanto o que lida com grandes conjuntos, e ser tão fatal quanto<br />

ele: o vírus é um caso exemplar. E um grande sistema só pode vazar por suas linhas de<br />

fuga a-subjetivadas e a-significantes, sempre finas, maleáveis, moleculares:<br />

Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga,<br />

que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações<br />

binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se<br />

atribui a uma ‘evolução dos costumes’, aos jovens, às mulheres, aos loucos, etc.<br />

(Deleuze e Guattari, 1996, p. 94).<br />

É quando a vida vase<br />

É quando como quase.<br />

Ou não, quem sabe 3 .<br />

(Leminski, 1987a, p. 7).<br />

O procedimento molecular de Leminski não constitui, portanto, algo absolutamente<br />

localizado, que concerne somente ao seu momento político ou ao seu espaço curitibano.<br />

Também não ficaríamos satisfeitos se colocássemos sua maquinaria textual num sistema<br />

de apreensão que considere apenas relações entre grandes conjuntos, como classes<br />

sociais, subjetividade e sua própria obra que, considerada estruturalmente, talvez não<br />

teria a ossatura suficiente para ser tomada como consistente numa perspectiva dessas:<br />

seria, sem dúvida um poeta falho, sem ‘profundidade’. Tentamos então procurar suas<br />

linhas finas, sua operação de abrir picadas através das pequenas fendas dos sistemas:<br />

tradição, sujeito, estrutura, sociedade, cultura.<br />

É claro que estas operações textuais são condicionadas pelos limites dos<br />

sistemas que nos cercam a todos. Mais amplamente são condicionadas pela sociedade<br />

capitalista. Quando dizemos condicionadas, não queremos dizer que são reflexo do<br />

capitalismo, mas que são cerceadas por seus limites, sempre muito fluidos e prontos a se<br />

alargarem. Há mil olhos esperando um vazamento, não para estancá-lo, mas para<br />

persegui-lo, estudá-lo e chegar a uma maneira de convertê-lo em fluxo de capital: o<br />

capitalismo tem toda uma micropolítica da reabsorção (micropolícia?), e das mais<br />

eficientes. Portanto, pode-se dizer que estes vazamentos entrópicos são, em princípio,<br />

aliados (sempre suspeitos, mas aliados) do regime de produção capitalista. Os críticos<br />

marxistas, neste ponto, têm razão em detestar este tipo de poesia: “tão banal quanto um<br />

3<br />

Estes três versos fazem parte do texto “Transmatéria contrasenso” que funciona como uma espécie de<br />

prefácio de Distraídos venceremos.<br />

106


comercial de TV, piruetas criativas”. Mas até que ponto a poesia mais prosaica e<br />

‘densa’, diretamente crítica também não é previsível (e desejada) pela sociedade?<br />

No Brasil há todo um lance de poder que vai desde o Conselho editorial das revistas,<br />

da distribuição das edições na área do Rio de Janeiro. Das colunas, das influências.<br />

Enfim, do poder. Esse poder, em termos de poesia brasileira, fez um empuxo da<br />

vanguarda concreta paulista, por exemplo, como sendo formalismo alienado e<br />

consagrou um determinado tipo de discurso na realidade drummondiano e na realidade<br />

nada revolucionário, pelo contrário, do sistema. Esse movimento então, que é<br />

encarnado pelos CPCs, pela figura de Ferreira Gullar, pela figura de Thiago de Mello,<br />

eles canonizam um tipo de poesia que é uma poesia discursiva, uma poesia retórica,<br />

uma poesia demagógica e no fundo, cristã. Apelativa, sentimentalóide, quando se<br />

pretende contundente politicamente e enquanto denunciando as malezas sociais aqui e<br />

ali. Essa poesia vai conservando o bom velho discurso no qual estão encarnados os<br />

princípios todos do sistema (...). (Leminski, 1994c, p. 30).<br />

Todo criador opera sempre limitado pelas possibilidades do regime de produção ao qual<br />

pertence e tanto a poesia mais retórica que tende a operar com a significância e os<br />

grandes conjuntos, sendo ela mesma um deles (a grande obra), quanto a poesia que<br />

tende para os processos moleculares 4 da sociedade são esperadas, desejadas e<br />

(per)seguidas por agentes de absorção que tentam submetê-las à axiomática do fluxo de<br />

capital. O os acadêmicos são, senão agentes ordenadores que vão filtrar os autores e<br />

seus textos, produzindo leituras preparatórias para editoras, indústria de concursos<br />

(inclusive vestibulares), jornalistas, produtores de entretenimento e publicitários, que<br />

tornam os fluxos da cultura peças de um estoque, prontas para integrarem a maquinaria<br />

do capital e gerar lucro 5 ? A academia é uma instituição, um grande conjunto, mas<br />

4 Será que esta oposição repete a de Haroldo de Campos, poesia da expressão (grandes conjuntos) e da<br />

estruturação (molecular)? De certa forma, sim, pois uma das características da poesia da estruturação é a<br />

limitação do material com que lida e a operação extremamente minuciosa com este material, o que pode<br />

se parecer muito com o procedimento de experimentação de intensidades puras, depuradas de seus<br />

supostos agentes causadores (grandes conjuntos), de que temos falado. O problema é que o concretismo<br />

pareceu tentado (isto nos anos heróicos) a transformar estas operações minuciosas e rizomáticas em<br />

estruturas maiores, matrizes de procedimentos moleculares que são instâncias de poder, pois estabelecem<br />

de antemão o que é lícito e o que não é em termos de operação textual. Este é um risco de toda vanguarda:<br />

de máquina de guerrilha passar a à máquina de guerra, aparelho militar de Estado. O concretismo sempre<br />

caminhou no limiar destas duas tendências. Uma poesia que tende para o molecular geralmente resiste a<br />

uma rígida estruturação, ou seja, não deseja se institucionalizar. Por isto renega, além da representação<br />

subjetiva a estruturação objetiva que talvez não passe de uma projeção da representação nas estruturas,<br />

também dotadas de profundidade e verdade, portanto passíveis de uma abordagem que lhe desvende suas<br />

essências. Toda estrutura suporta (pede?) uma metafísica.<br />

5 Outro procedimento que se espera da academia é a produção de leituras representativas ou estruturais<br />

que, de certa forma, acomodam as coisas na subjetividade expressada, na objetividade estruturada, ou<br />

numa síntese de ambas. Assim como Deleuze e Guattari acusam a nostalgia do mito e do Urstaat no<br />

despedaçado sujeito freudiano, podemos acusar nessas leituras uma nostalgia do déspota e seu Estado<br />

sobrecodificador, ou interiorizada no sujeito moderno que lamenta sua fragmentação, ou projetada nas<br />

estruturas que desejam a Estrutura e seu centro. Esta nostalgia de certa forma resiste à descodificação<br />

contínua promovida pelo capital (em função do lucro) mas constitui, pela via da oposição, o pólo da<br />

unidade perdida a ser lamentada, de que o capitalismo necessita para sua axiomática, impedindo uma<br />

107


também tem suas micropolíticas, pois toda a produção (artística ou científica) com a<br />

qual lida é altamente descodificadora, fazendo vazar o tempo todo os fluxos na<br />

sociedade capitalista. Muitas vezes, ela constitui a ponte entre esta sociedade e seus<br />

sábios esquizofrênicos: por enquanto deixem que eles pesquisem e delirem a vontade (a<br />

hora da esquizofrenia descodificada), no momento certo os seus fluxos descodificados<br />

serão absorvidos pela axiomática do capital, a hora do mercado e da axiomática<br />

recodificadora.<br />

O que se deve tentar é fugir cada vez mais dessa axiomática, não produzindo<br />

sempre mais rápido e gerando mais novidade:<br />

não resta dúvida q esse culto do novo em poesia de vanguarda está ligado ao “novo”<br />

que a publicidade usa... novo Omo, novo Rinso... novo... novo... mais novo... novo pra<br />

que ? ou o novo não precisa se justificar ? novo é novo, e tá acabado ? claro, existe<br />

uma preocupação com novidade em qualquer artista de verdade. com novidade, com<br />

originalidade, com voz própria. mas o novo custe o que custar me parece um mito,<br />

uma alienação. alienação é uma coisa que subsiste depois que perdeu seu uso. sua<br />

finalidade. seu emprego social. (Leminski e Bonvicino, 1999, pp. 110-111).<br />

Mas fugir, como Leminski parecia saber bem, se perguntado “pra quê?”, com que<br />

finalidade? Será que nossa fuga é útil para nos desatarmos mais e mais da axiomática do<br />

fluxo do capital? Será que somos forte o suficiente para, depois da tentativa de<br />

reabsorção, nos proporcionar ainda um pouco de a-significância e a-subjetividade<br />

proliferante? E estas linhas de fuga não serão cancerígenas gerando uma recodificação<br />

fascista pior que a capitalista? Elas vão se precipitar no caos absoluto, morte (é preciso<br />

preservar também um pouco de significância e subjetivação)? É sempre um risco fazer<br />

vazar os sistemas e os critérios de orientação são sempre circunstanciais: os textos de<br />

fuga são sempre textos-morcego, livros-rizoma ou o que Barthes chamaria de escritura.<br />

A moral destes textos é sempre nômade, produzida, estética. Mas pode ser que se<br />

consiga. E o que se consegue com isso, o que se efetiva quando conseguimos? Deleuze<br />

e Guattari (1996, p. 27) costumam chamar a efetivação de uma fuga bem sucedida de<br />

Corpo sem Órgãos:<br />

O CsO [Corpo sem Órgãos] é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é<br />

contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de<br />

experimentação, seu meio associado. O ovo é um meio de intensidade pura, o spatium<br />

e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção.<br />

descodificação generalizada que o levaria à entropia sistêmica (esquizofrenia), na qual o fluxo de capital<br />

não conseguiria mais se sobrepor, isto é, não modularia mais o outros fluxos do desejo segundo seu<br />

regime.<br />

108


Muito semelhante ao que se consegue com um bom poema, como nos diz neste texto<br />

criativo e pensativo de Octavio Paz sobre os obsessivos jogos com as palavras, que<br />

perseguem e são perseguidos pelos poetas:<br />

Pero esos juegos acaban por cansar. Y entonces no queda sino el Gran Recurso: de una<br />

manotada aplastas seis o siete —o diez o mil millones— y con esa masa blanda haces<br />

una bola, que dejas a la intemperie hasta que se endurezca y brille como una partícula<br />

de astro. Una vez que esté bien fría, arrójala con fuerza contra esos ojos fijos que te<br />

contemplan desde que naciste. Si tienes tino, fuerza y suerte, quizá destroces algo,<br />

quizá le rompas la cara al mundo, quizá tu proyectil estalle contra al muro y le<br />

arranque unas breves chispas que iluminen un instante el silencio 6 . (Paz, 1992, pp. 23-<br />

24).<br />

É necessário tino, força e sorte para talvez conseguir. Corpo sem Órgãos, ao que parece,<br />

também presente no tiro certo (o poema?) de que nos fala o texto a seguir, misto de<br />

sincopado, zen, histórico, mítico e despudorado:<br />

Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Picatacapau! Pela pena é persa, pela<br />

precisão do tiro — um mestre. Ora os mestres persas são sempre velhos. E mestre,<br />

persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo ou<br />

então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento<br />

gaudério de distração. Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o<br />

cavalo, nem o cavaleiro; nem a mente, nem a mão; nem o arco, nem a flecha, e o alvo<br />

o vento leva: tiro certo 7 . (Leminski, 1989, p. 51).<br />

Estas efetivações positivas dos fluxos (Corpos sem órgãos) se dão sempre no plano<br />

molecular, micropolítico, por onde os fluxos se descodificam e as territorialidades se<br />

desfazem. Tentamos ler os poemas de Leminski como buscas, tentativas de construções<br />

de Corpos sem Órgãos (estrela a solta), conjunções de linhas de fuga, fluxos que vazam<br />

dos ordenamentos sistêmicos e escapam inclusive dos agentes de reabsorção capitalistas<br />

(e como leitores especializados, explicadores, nós encarnamos um ou vários destes<br />

agentes, sendo necessário tentar escapar de nós mesmos). Mas para fazer este tipo de<br />

leitura é preciso, de alguma maneira, tentar construir também para nós um Corpo sem<br />

Órgãos com as nossas linhas e com as de Leminski: as leituras como tentativas de<br />

conjunção de fluxos, de experimentação e efetivação das linhas em fuga, errâncias<br />

positivas. Não é possível apenas conhecer a multiplicidade, dizendo: lá está ela, seus<br />

procedimentos são esses, suas formas são essas. Ela não constitui um objeto, nem<br />

mesmo uma realidade à parte. É uma perspectiva (e, no entanto, é o real), um modo de<br />

proceder e se quisermos encontrá-la é preciso fazê-la, fazer nela, abandonar<br />

6 Resolvemos deixar este trecho de ¿Aguila o sol? em espanhol, pois é um texto criativo (embora portador<br />

de uma reflexão bastante densa sobre o exercício poético) cuja tradução talvez desvirtue em demasia.<br />

7 Parte deste trecho do Catatau é a epígrafe de Distraídos Venceremos.<br />

109


subjetividades e objetividades e experimentar suas linhas sempre em fuga, produzir(-se)<br />

com ela, entranhar-se nela, estranhar-se:<br />

O que quer dizer, diz.<br />

Não fica fazendo<br />

o que, um dia, eu sempre fiz.<br />

Não fica só querendo, querendo,<br />

coisa que eu nunca quis.<br />

O que quer dizer, diz.<br />

Só se dizendo num outro<br />

o que, um dia, se disse,<br />

um dia, vai ser feliz.<br />

(Leminski, 1987a, p. 36).<br />

110


UM METRO DE GRITO<br />

Na obra de Paulo Leminski dificilmente aparecerá o contexto brasileiro e suas<br />

problemáticas tradicionais de identidade, de oscilação entre atraso e modernidade, de<br />

questionamento de problemas sociais do país ou de ufanismo. Salvo em alguns raros<br />

poemas e uma possível contextualização de Catatau e Agora é que são elas, seus textos<br />

criativos passam ao largo da explicitação do ambiente social que, nem mesmo é um<br />

pano de fundo para o desenvolvimento de outros problemas, como já foi lida a presença<br />

da sociedade brasileira na obra de Machado de Assis: paisagem circunstancial onde se<br />

desenrola o drama do homem e se dá a exploração de suas profundezas — numa leitura<br />

psicológica de seus romances.<br />

Tampouco a ausência da sociedade implica numa espécie de purificação<br />

máxima da matéria poética que atingiria sua suposta essência mais profunda: a natureza<br />

humana em conflito com ela mesma e com a natureza, homem e cosmo. Já falamos o<br />

suficiente da resistência aos universais que perpassam os seus textos, mesmo que, à<br />

primeira vista, possa parecer que Leminski, de maneira inábil, tente tratar dessas<br />

profundidades metafísicas.<br />

Outro descarte, apesar da descendência concretista de Leminski, é o da<br />

chamada poesia da estruturação se a concebemos como exploração das formas do<br />

conteúdo e da expressão, entendidas como significante e significado, resultando (ou<br />

querendo resultar) a sua manipulação num objeto estético que, antes de se alienar<br />

parnasianamente da sociedade, quer agir, de modo revolucionário, sobre ela:<br />

“Realmente apoiado verbi-voco-visualmente, em elementos que se integram numa<br />

consonância estrutural, o poema concreto agride imediatamente, por todos os lados, o<br />

campo perceptivo do leitor que nele busque o que nele existe: um conteúdo estrutura.”<br />

(Campos H., 1975, p. 81). Ação que mantém, entretanto, as relações de conjunto para<br />

conjunto, de grandes estruturas interagindo, mesmo que dialeticamente. É claro que o<br />

concretismo, enquanto projeto estético, abre outra possibilidade além da produção<br />

rigorosa de estruturas delimitadas: a de uma perspectiva da poesia como codificadora do<br />

caos, mas simultaneamente caotificadora da ordem, linha de fuga, texto-morcego:<br />

renunciando à disputa do “absoluto”, a poesia concreta<br />

permanece no campo magnético do relativo perene.<br />

cronomicrometragem do acaso. controle. cibernética. o poema<br />

como um mecanismo, regulando-se a si próprio: “feed-bak”,<br />

a comunicação mais rápida (implícito um problema de<br />

funcionalidade e de estrutura) confere ao poema um valor<br />

positivo e guia a sua própria confecção<br />

(Campos A.; Campos H.; Pignatari, 1975, pp. 157-158).<br />

111


É por esta fenda nas estruturalidades e gestalts, aberta, no plano da reflexão poética,<br />

pelos concretos, que Leminski vai se intrometer com toda a sua maquinaria errática.<br />

Mas, voltando ao problema inicial, como ficaria, na perspectiva processual em<br />

que estamos lendo Leminski, a realidade circundante? O contexto do país e do mundo?<br />

São perguntas que a tradição crítica brasileira (estabelecida a partir do modernismo e<br />

que tem inclusive localização geográfica: a USP) insiste em fazer e que se mantêm<br />

urgentes e atuais e a qualquer obra poética contemporânea, inclusive a de Leminski, é<br />

lícito fazer este tipo de questionamento. No entanto, não são estas linhas de sua poesia<br />

que procuramos e esperamos que as que temos seguido possam ser úteis para que essa<br />

abordagem contextual(?) possa se fazer de outra forma, em outros regimes que não o<br />

representativo que se organiza, mesmo que dialeticamente, por grandes dicotomias,<br />

talvez enrijecidas em excesso (indivíduo-coletividade, ideologia-economia, obrasociedade,<br />

povo-elite) e que irão encontrar somente superficialidades (como sinônimo<br />

de falta de qualidade) em poetas como Leminski e Oswald, sem contar vários<br />

contemporâneos nossos.<br />

Procuramos mostrar como Leminski atua na sociedade capitalista e como esta<br />

atuação é crítica, não no sentido da negativa (que lida com grandes conjuntos), mas no<br />

da dissolução de seus limites cerceadores (fuga sistêmica), mesmo quando seu ‘assunto’<br />

parece se restringir a brincadeiras com uma metáfora como em “Até ela”. Quer dizer,<br />

mesmo quando parece atuar apenas indiretamente, por alusão, procuramos lê-lo como<br />

ação direta no regime de produção capitalista. Esta oposição entre ação direta e indireta<br />

encobre um jogo de profundidade ou de espelhos que não queremos para nossa leitura,<br />

por isto partimos para os problemas de produção e de utilidade, para os funcionamentos<br />

moleculares, onde as funções e estruturas das máquinas não se separam da produção e<br />

esta, por sua vez, não se desvincula do desejo: máquinas desejantes que deixam passar<br />

ou obstruem os fluxos do desejo. A sociedade como maquinaria de maquinarias,<br />

máquinas em conexão produtiva cuja realidade(?) fica aquém, mas também vai além<br />

dos grandes conjuntos (subjetividade, classes, sociedade, língua, literatura etc.): linhas e<br />

fluxos de desejo, máquinas, textos morcegos, inumanidades. Se não podemos evitar<br />

uma metafísica, como não se pode prescindir das dualidades, assim como procuramos<br />

fazer proliferar os pares, talvez devamos propor a metafísica mais absurda: a do uno que<br />

se identifica com a multiplicidade, onde nenhuma região pode ser definida como<br />

superior, em termos absolutos (transcendentais), que outra.<br />

Se os textos de Leminski não operam com a nomeação dos conflitos de classe<br />

da sociedade capitalista ou das particularidades deste conflito na sociedade brasileira<br />

(Nem por isto nós vamos dizer que eles atuam indiretamente nestes grandes conjuntos.<br />

Atuam diferentemente?), eles não deixam de operar, à sua maneira, nomeando(?) o<br />

funcionamento molecular dos fluxos de capital na sociedade, mesclando-o com as linhas<br />

112


da arte/poesia, da vida e da tradição. Vejamos o poema a seguir, no qual o capital<br />

aparece de modo, digamos, mais patente:<br />

UM METRO DE GRITO<br />

(MÁQUINAS LÍQUIDAS)<br />

Leiam-se índices,<br />

mil olhos de lince,<br />

entre meus filmes,<br />

leonardos da vinci.<br />

Abri-vos, arcas, arquivos,<br />

súmulas de equívocos,<br />

fechados,<br />

para que servem os livros?<br />

Livros de vidro,<br />

discos, issos, aquilos,<br />

coisas que eu vendo a metro,<br />

eles me compram aos quilos.<br />

Líquidas lâminas,<br />

linhas paralelas,<br />

quanto me dão<br />

por minhas idéias?<br />

(Leminski, 1987a, p. 37).<br />

Há, neste poema, toda uma circunstancialidade de quem vive às voltas com a<br />

tradição cultural, toda uma vivência erudita de um criador de textos em meio às malhas<br />

da cultura, “um eco anti anti anti antigo” que, no entanto deve ser posto em movimento<br />

para servir à vida: “fechados / para que servem os livros?” A ligação de “Um metro de<br />

grito” com “Distâncias mínimas” é imediata e embora Leminski não se denomine um<br />

poeta de obsessões, a tradição literária é uma recorrência em seus textos, seja como<br />

limite, seja como possibilidade de rompê-lo. Há também a perspectiva do detalhe,<br />

algumas linhas intensivas percorridas pelo texto e que remetem à visão atenta de quem<br />

perscruta a tradição como caçador: mil olhos de lince. O texto-morcego se alimenta do<br />

sangue da tradição para viver, para re-viver a tradição numa outra circunstância (numa<br />

outra vida) assim como o olho de lince do poeta (ou do texto?) procura atentamente sua<br />

caça em meio à selva de signos. A visão aqui tem algo de construtora, pois a presa, mais<br />

que encontrada e capturada deve ser a construção de uma perspectiva que resulte na<br />

captura. A leitura que se faz da tradição é sempre produtiva (de re-produção), pois o que<br />

ela nos lega são apenas ecos, índices: “leiam-se índices”. Este esforço implica na<br />

concentração máxima numa tarefa sempre indefinida e que por isso mesmo exige uma<br />

extrema precisão, um pouco de sorte e ainda a capacidade de se distrair (esquecer-se),<br />

deixando-se levar nos fluxos, uma operação que os românticos gostavam de chamar de<br />

113


inspiração. O mundo dos signos (nunca separado do mundo da vida) costuma esgotar e<br />

deturpar quem se dispõe a correr seus riscos, como podemos perceber neste outro texto:<br />

TEXTOS TEXTOS TEXTOS<br />

malditas placas fenícias<br />

cobertas de riscos rabiscos<br />

como me deixastes os olhos piscos<br />

a mente torta de malícias<br />

ciscos 8<br />

(Leminski, 1995, p. 52).<br />

Voltando a “Um metro de grito”, a súmula de equívocos (no sentido pejorativo<br />

ou do erro positivo, errância? ou ambos?) é sempre um risco aos olhos do lince que<br />

precisa se perder em meio aos signos para achar a presa.<br />

A segunda estrofe de “Um metro de grito” pode ser lida como uma resposta à<br />

pergunta que finaliza a primeira: fechados / para que servem os livros? Pergunta que,<br />

além de evidenciar a necessidade de re-produção e re-utilização noutros termos da<br />

tradição, remete imediatamente a outra: e abertos, para que servem? Se o texto<br />

questiona a validade de uma tradição morta, não recriada (na qual não se constroem<br />

caças e presas?), obviamente o movimento vital (a abertura) que impõe a esta velha<br />

senhora (sempre um pouco en-trevada, diga-se de passagem) deve servir para alguma<br />

coisa:<br />

Livros de vidro,<br />

discos, issos, aquilos,<br />

coisas que eu vendo a metro,<br />

eles me compram aos quilos.<br />

Quando abertos os livros e o mundo da tradição for transpassado e transformado pelos<br />

olhos de lince (o vidro como refração, convite à penetração do olhar como visão<br />

distorcida ou como coisa frágil a ser quebrada?) e, além disso, somado à cultura<br />

contemporânea de que se alimenta o vampiro-poeta (os livros de vidro como remissão à<br />

TV e ao vídeo e os discos): o que fazer com tudo isso posto em movimento?<br />

8 Notemos o duplo sentido de riscos, que rima com rabiscos, indicando uma dificuldade de decifração, já<br />

que o rabisco é uma multiplicidade de traços (riscos) desordenados. Este espaço meio caótico (ou pelo<br />

menos o ponto de vista que o constrói assim) é um constante risco/perigo à mente, ao sujeito, já que lhe<br />

abre a possibilidade do estranhamento, da perversão (desvio da regra): a mente torta de malícias. O quarto<br />

verso (como me deixastes os olhos piscos) é excessivamente longo em relação aos outros, além de<br />

apresentar duas sílabas parecidas (como me) em seqüência, numa quase cacofonia, e uma saturação de<br />

sibilantes. Esta distribuição fonética funciona como uma obstrução à leitura e um incômodo aos ouvidos,<br />

uma tortuosidade para a mente (torta de malícias): ciscos nos olhos, ciscos na alma.<br />

114


Os artistas estão inevitavelmente no jogo do mercado e toda esta tradição em<br />

uso, operada pelo poeta, enfim, os seus textos são “coisas que eu vendo”, portanto<br />

dotadas de valor de troca: a descodificação esquizofrênica da poesia e sua tentativa de<br />

construir linhas de fuga, fazendo vazar os sistemas é sempre vigiada, seguida e<br />

reabsorvida pela axiomática do fluxo de capital, vendida. O utilitarismo esquizofrênico<br />

(valor de uso da poesia) se torna em utilitarismo capitalista (valor de troca). Mas há<br />

sempre uma dissonância residual nestas operações de reabsorção capitalista: estes<br />

descompassos os marxistas chamam de contradições, mas que talvez, neste trabalho<br />

microsegmentar que nos propomos, seja melhor chamá-los de vazamentos, sempre<br />

múltiplos, ou melhor, multidirecionais, enquanto as contradições são sempre<br />

polarizadas, dualistas.<br />

O que destoa, o que vaza nesta operação de venda, aparece no poema através<br />

da diferença de medida: enquanto o poeta lida com metros, o mercado lida com quilos.<br />

E ‘comprar aos quilos’ é uma expressão popular que significa comprar muito e sem<br />

cuidado, no atacado, o que remete ao consumismo desenfreado e sem filtro da burguesia<br />

em sua relação com o mercado cultural (e Leminski foi, nas décadas de 70 e 80, uma<br />

espécie de poeta cult, muito consumido, ou pelo menos conhecido de ‘ver falar’, ao que<br />

parece, por universitários de classe média); enquanto “vendo a metro” 9 refere-se ao que<br />

é medido, ao que se faz com cuidado, de maneira precisa e meticulosa, remetendo,<br />

talvez, à produção poética de Leminski: micrométrica? Esta diferença se acentua<br />

quando lembramos que as preocupações do poeta em relação a seu texto dizem respeito<br />

ao ritmo, não só dos versos, mas quase que podemos dizer que da tradição, dos códigos,<br />

da multiplicidade, da vida: cronomicrometragem do acaso, no dizer do plano piloto<br />

concretista.<br />

Metros do verso, micrométrica do acaso, medida-percepção do pulsar vital que<br />

podem muito bem se sintetizar na palavra “metro”, principalmente se notarmos que o<br />

título do poema é “Um metro de grito”. Já pudemos verificar o quanto o grito implica<br />

em a-significância e mobilidade nos textos de Leminski: o poema é uma máquina de<br />

precisão, mas seu mapeamento procede por critérios de medição absolutamente<br />

incompatíveis com o mapeamento capitalista. O lince e o morcego medem, calculam os<br />

riscos, perscrutam o ambiente passo a passo somente para medir de novo, correr novos<br />

riscos. Mas o capitalista também faz isso, vivendo sempre do risco e medindo o tempo<br />

todo os seus lances em seu jogo com o acaso. Mas ele nunca arrisca tudo, sempre há um<br />

contrapeso, um peso, uma ponderação, um abismo gravitacional (“abismo onde me<br />

encontro”) que reabsorve e obstrui os fluxos liberados pela descodificação promovida<br />

pelos fluxos de capital, espécie de Urstaat que se desdobra e flui ao lado dos fluxos de<br />

9 E “vendo”, aqui, pode se referir à produção poética (o verbo ‘vendar’ como maneira de produzir), à<br />

perspectiva diante da poesia e do real (o verbo ‘ver’ como perspectiva) ou à maneira de relação com o<br />

receptor/consumidor (verbo vender). Mais à frente trataremos deste triplo sentido de “vendo”.<br />

115


dinheiro, refazendo as territorialidades que estes desfazem. Mas alguns poetas que<br />

gostam de se transmutar em textos-morcego parecem não operar com contrapesos ou<br />

consolidação estatística de territórios:<br />

aqui jaz um artista<br />

mestre em desastres<br />

LÁPIDE 2<br />

epitáfio para a alma<br />

viver<br />

com a intensidade da arte<br />

levou-o ao infarte<br />

deus tenha pena<br />

dos seus disfarces 10<br />

(Leminski, 1995, p. 83).<br />

E arriscam tudo a cada lance como o lince em seu ataque fulminante: mestre em<br />

desastres.<br />

Voltando à “Um metro de grito”, as divergências nos critérios de medida<br />

indicam que, mesmo submetidos à reabsorção capitalista, os fluxos do texto poético<br />

podem ou desejam vazar, cortar e fugir: líquidas lâminas. A palavra “vendo”, além de<br />

uma flexão do verbo vender, pode ser também o subjuntivo de ver. Não cremos que<br />

estamos exagerando, vendo ambigüidades onde elas não existem, pois a primeira estrofe<br />

trata exatamente da visão, como pudemos verificar. O que constitui, para o poeta, visão<br />

ou medição em construção-andamento (vendo), cronomicrometragem do acaso ou linha<br />

de fuga, é medição de lucro para o fluxo de capital, intensificando, pelo duplo sentido<br />

de “vendo”, a dissonância das duas operações: poética e mercadológica.<br />

Mais que duplo, o sentido é triplo, pois “vendo” também é flexão do verbo<br />

vendar. O texto oculta algo nas entrelinhas? Uma verdade mais profunda que a das leis<br />

do mercado que se disfarça, emaranhando-se ao fluxo de capital? Parece realmente um<br />

jogo de gato e rato entre os dois fluxos, duas descodificações, uma interferindo na outra,<br />

tentando enganar-se mutuamente. Mas se há verdade por trás do ocultamento, esta não é<br />

10 Ao lado do humor, há uma atmosfera trágica neste e em muitos outros poemas de Leminski. Tragédia<br />

que não tem nada a ver com uma saudade da unidade impossível ou perdida, mas, como o humor, trata-se<br />

de um sentido nômade do desastre. Os esquizofrênicos sofrem muito o tempo todo, talvez com mais<br />

intensidade que os sedentários (paranóicos), mas seu sofrimento nada têm de nostalgia doentia. Nietzsche<br />

nos fala de um niilismo construtivo ou criador, trágico à grega (de uma Grécia pré-socrática), nascido do<br />

sofrimento intenso e criativo do homem “demasiadamente humano”. Parece que Leminski sofria desse<br />

mal saudável.<br />

116


dotada, nem de profundidade, nem de densidade, mas trata-se de “líquidas lâminas,<br />

linhas paralelas”.<br />

O texto poético, tradição em movimento/dissolvimento, é feito de linhas 11 ,<br />

máquinas líquidas que cortam e vazam por todos os lados, liberando fluxos<br />

esquizofrênicos, anárquicos. Mas o capitalismo também é fluxo, fluxão de capital (pelo<br />

menos no sentido de vender, “vendo” é um signo comum às duas linhas, a de fuga e a<br />

da axiomática dos códigos, signo de encontro dos dois fluxos e de sua discórdia,<br />

diferença inconciliável), ou seja, trata-se de outra máquina líquida, axiomatizada,<br />

estatística, que procede modulando as fugas do sistema. Talvez por isto o jogo de<br />

ocultamento (vendar): e Leminski oculta palavras (anagramas), idéias, signos-conceitos,<br />

vivências. Mas um ocultamento estratégico, de jogo político e não de essências que<br />

remeteria a grandes conjuntos e suas metafísicas. Não estamos falando das idéias fixas,<br />

imutáveis e perfeitas de Platão, projetadas (ocultas) nas sombras da caverna-mundo a<br />

ser descortinadas por alguns escolhidos (filósofos-déspotas?). Falamos de idéias que são<br />

líquidas lâminas, que precisam ser líquidas, pois talvez seja a única maneira de uma<br />

máquina saltar fora do controle modular do fluxo de capital sem (desejar) retornar aos<br />

buracos negros da lei despótica, sem a nostalgia do corpo pleno do déspota e seu<br />

Urstaat, paraíso metafísico da unidade.<br />

Depois que o nômade se despe da ilusão da paz no Urstaat, depois que percebe<br />

a farsa que quer fazê-lo acreditar que a pluralidade dos textos, das fábulas, oculta a<br />

verdade profunda da permanência do mito, ele se pergunta:<br />

Para que serve um enredo? Para onde vai uma história? Donde vêm esses<br />

seres fluidos, essas máscaras que significam máscaras? Era uma vez. Assim seja.<br />

Estava escrito. Amém. O mito é fundado no rito, a palavra brota do gesto, ramos de<br />

loureiro do corpo de Dafne. A fábula já está na cerimônia, o mito celebra o rito<br />

(Leminski, 1998, p. 27).<br />

O mito se constitui do rito, sua perspectiva molecular que o funda, mas que é também<br />

sua entropia. Linhas do (g)rito sempre em fuga a serem seguidas pelo nômade.<br />

Seguindo os fluxos anárquicos das fábulas(-rito) que deveriam apenas ordenar a vida<br />

(fábulas-mito), ele começa a perceber de outro modo, a se dizer num outro, mas este<br />

outro não é sua completude ou sua essência:<br />

11 No caso do poema, de linhas paralelas: “Líquidas lâminas / linhas paralelas / quanto me dão / por<br />

minhas idéias?”. Será que este paralelismo remete à impossibilidade de encontro das duas linhas, a do<br />

capital e a da poesia? À impossibilidade da confluência de ambas, ou melhor, da captura da segunda pela<br />

primeira? Ou, por outro lado, as próprias “idéias líquidas paralelas” são paralelas entre si,<br />

impossibilidades racionais? O paralelismo, a liquidez, a lâmina são, por si só perturbadores, seja pelo<br />

desconforto mente ou ao corpo (numa perspectiva bem dualista). A união paradoxal destes desconfortos,<br />

por si só uma impossibilidade, leva a perturbação ao máximo: são idéias desnorteantes, não domáveis,<br />

não moduláveis às idéias burguesas e ao fluxo de capital?<br />

117


A tudo Narciso está atento [olhos de lince?], ao sonho que faz de uma cabeça<br />

e peitos de mulher, asas de pássaro e corpo de leão, uma esfinge e de um tronco de<br />

cavalo e torso de homem, um centauro, o ser, esse sonho das metamorfoses.<br />

Esta noite, nada permanece em seu ser, os seres padecem as dores do parto<br />

das mais improváveis alterações.<br />

Não há ser, tudo é mudança, ecos, revérberos, câmbios perpétuos.<br />

Tudo pode se transmutar em tudo. (Leminski, 1998, p. 19).<br />

Não lhe resta alternativas e, mesmo que restasse, ele só desejaria fazer rizoma com o<br />

mundo, seguir linhas cada vez mais descodificadas, experimentar estados intensivos,<br />

afirmar sua única metafísica possível, a multiplicidade:<br />

Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos<br />

eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres<br />

se traduzem, tudo pode ser metáfora de alguma coisa ou de coisa alguma, tudo<br />

irremediavelmente metamorfose. (Leminski, 1998, p. 25).<br />

Depois de montar uma máquina dessas, líquida, (des)medidora de g-ritos, feita de linhas<br />

de intensidade prontas para vazar de qualquer controle modulado, sabendo de todos os<br />

riscos (de reabsorção, de precipitação brusca no caos, de retomada metafísica) dos quais<br />

nunca se safa inteiramente, nunca se sabe se realmente ganhou ou perdeu, mesmo assim<br />

só resta ao nômade que viaja sem sair do lugar propor um novo jogo, uma nova disputa<br />

a cada lance, máquina contra máquina, liquidez contra liquidez:<br />

quanto me dão<br />

por minhas idéias?<br />

118


FRAGMENTO 5: nós<br />

Tu 1 : Conforme o “Fragmento 0: Introdução” 2 , a Dissertação tem uma<br />

“concepção um tanto quanto diversa de um texto acadêmico tradicional”. De fato, a<br />

circunstância de não se dividir formalmente em capítulos, de comportar<br />

“excertos/notas”, de incorporar textos atribuídos a autor fictício, de reproduzir, como<br />

“Apêndice”, o projeto original da dissertação, em grande parte abandonado, de<br />

ressaltar seu descompromisso com uma conclusão convencional — se bem que o<br />

último, “Máquinas líquidas” tem inegável jeito conclusivo (“funciona como uma<br />

conclusão dissertação, abordando o problema da produção poética no âmbito da<br />

produção capitalista”, —, tudo isso é incomum. Mas nem por isso a dissertação<br />

escapa do rigor acadêmico na formulação clara de um propósito: “uma leitura de sua<br />

obra [de Leminski]” como “uma abordagem que se aproxima da chamada crítica pósestruturalista,<br />

que vê a obra literária não como um objeto textual entre outros objetos,<br />

produzidos e a serem fruídos por sujeitos, mas como um recorte ou uma entrada numa<br />

rede textual da qual fazem parte os sujeitos e as obras, sem falar da sociedade e de<br />

seus respectivos regimes de produção de bens e de signos”. A proposta implica riscos,<br />

é claro, o mais óbvio dos quais é resultar num passeio excessivamente<br />

descomprometido pela obra do autor eleito, se bem que isso mesmo, em termos<br />

estritamente metodológicos, seja aceitável. Assim sendo, penso que o autor deva<br />

assumir, na versão definitiva, um tom mais incisivo na defesa da sua proposta, pois<br />

me parece que ainda restem cautelas desnecessárias. A caracterização do trabalho,<br />

no Resumo, como uma “precária sistematização” (grifo meu) não faz justiça ao rigor<br />

demonstrado ao longo de toda a dissertação. Taticamente, é compreensível, mas<br />

esbate um pouco o tom de audácia da proposta.<br />

Eu: Os riscos da proposta se tornar um “passeio excessivamente<br />

descomprometido” (a definição de compromisso e com o quê ou quem se deva<br />

comprometer são pontos passíveis de discussão), talvez se relacione com o fato de o<br />

texto se propor a ser uma espécie de tateio, ‘texto-morcego’, que se constrói, na<br />

verdade, sem tomar as ditas teorias de apoio como referências basilares (ou<br />

balizadoras). Assim, em relação aos rigores teóricos de um estruturalismo e mesmo da<br />

crítica de tendência sociológica (principalmente se tomarmos estas ‘teorias’ em suas<br />

vertentes mais cristalizadas, ‘oficializadas’), realmente a proposta pode resultar num<br />

trabalho descomprometido. Mas tentei desenvolver outros rigores, que não os<br />

resultantes do uso convencional de determinado método ou teoria crítica. Estes outros<br />

rigores não implicam tanto em invenção de novos instrumentos críticos (embora, às<br />

vezes, seja necessário), mas no uso inusitado (distorcido?) dos velhos instrumentos.<br />

1 Este ‘tu’ refere-se a Alcmeno Bastos que fez interessantes observações, no intuito de “dialogar” com o<br />

texto. Como diz a Estética da Recepção, a obra é a totalidade de suas leituras. Tomei, então, a liberdade<br />

de responder a estas observações neste fragmento, tornando o diálogo parte efetiva da obra. Como os<br />

fragmentos se propõem a ser lugares críticos e autocríticos deste trabalho, surgindo à medida que os<br />

problemas teóricos vão aparecendo, não creio que seja uma incoerência minha em relação à proposta<br />

inicial: “não precisamos saber pra onde vamos”.<br />

2 Esta introdução da dissertação, feita para acalmar os espíritos acadêmicos com algumas explicações,<br />

advertências e justificativas iniciais, eu cortei desta versão, por achar desnecessária, mas a pergunta<br />

continua valendo.<br />

119


As próprias noções de uso e instrumento talvez já definam este “outro uso”, pois<br />

implicam num deslocamento das noções de teoria de apoio ou de referencial teórico,<br />

da posição de centralidades ordenadoras para a disposição (no sentido de<br />

disponibilidade e possibilidade) de linearidades conectáveis, ou seja, transformar os<br />

pontos e as coordenadas (que são as teorias de apoio, as suas estruturas) em linhas<br />

(que são os instrumentos, as máquinas, pois umas se ligam às outras ‘em linha’) com<br />

as quais se mesclaria as desta dissertação (outra máquina). Como esta mesclagem<br />

não segue parâmetros muito fixos (já que as centralidades se desfiam num<br />

emaranhado de linhas), o rigor passa a ser circunstancial, quer dizer, negociado a<br />

cada passo da exploração, a cada confluência de linhas, e as balizas são sempre<br />

provisórias, embora devam existir, pois constituem efetivações (ou pontos provisórios,<br />

noção que é um deslocamento do conceito de finalidade e até de estrutura) do tecido<br />

em que se torna o texto da dissertação, além de serem distanciamentos relativos do<br />

movimento textual (momentos de parada?) os quais se tornam lugares (auto)críticos<br />

que possibilitam mudanças ou correções de rumo.<br />

Quanto à ausência de um “tom mais incisivo na defesa da dissertação”, creio<br />

que a ousadia estaria, muitas vezes, na recusa da afirmação muito incisiva. Assim,<br />

uso muito os termos ‘talvez’, ‘precário’, ‘provisório’, além dos verbos acreditar, crer e<br />

parecer, sem falar nos freqüentes pontos de interrogação e na própria tática de<br />

suspender uma linha de raciocínio para refletir sobre ela. Tudo isso remete (o próprio<br />

‘remeter’ é mais fraco que significar ou causar) à incerteza de uma proposta de<br />

exploração tateante de uma obra. Com o perdão do paradoxo, eu diria que estas<br />

dubiedades são utilizadas de modo incisivo, quer dizer, estão deliberadamente<br />

espalhadas pelo texto, fazendo parte da proposta de rigor exposta acima. O exemplo<br />

que você cita, no resumo, quando chamo meu trabalho de precária sistematização é<br />

um caso realmente interessante. Talvez eu não tenha me expressado muito bem, mas<br />

o termo precário não remete a um zelo excessivo ou à modéstia (pelo menos não<br />

neste caso), mas à abertura do sistema construído que, por sua ausência de limites<br />

definitivos e de centro (pelo menos desejada) é sempre provisório, aberto a novas<br />

conexões que lhe darão, sem dúvida outros limites e, conseqüentemente, outras<br />

identidades — outros pontos de subjetivação?<br />

Mas agora percebo o que já se insinuava de forma latente para mim: que em<br />

muitos lugares a dissertação não é ‘deliberadamente tateante’ e passa à<br />

contundência. Isto cria uma certa dissonância de tom, uma audácia incisiva que se<br />

contrapõe à ‘audácia do tateio e da precariedade’, de maneira que você tem razão em<br />

apontar cuidados excessivos ao lado de riscos talvez demasiados. Mas (já construindo<br />

uma justificativa ao trabalho que é posterior à sua tecitura), esta dissonância não seria<br />

também um funcionamento deste rigor a que me proponho? Na ausência de<br />

referenciais muito seguros, o texto-morcego não teria momentos (ou lugares?) de<br />

hesitação, perscrutação, parada, reflexão e momentos de contundência, ação, fuga,<br />

delírio?<br />

* * *<br />

120


Tu: A recusa das categorias “bem estabelecidas” e dicotomizadas — lirismo<br />

subjetivo x antilira objetiva, por exemplo — parece-me enfraquecida pela sua<br />

substituição por outras, como processual x sistêmico, máquina x estrutura (p. 47 –<br />

descobrir não “o que está no fundo do poemas”, mas “descobrir como funciona”),<br />

sistematização x sistema. A recusa das categorias “bem estabelecidas”, por julgar o<br />

autor da dissertação não serem elas satisfatórias para dar conta da poesia de<br />

Leminski, não representa, em última instância, sua negação definitiva, mas ainda<br />

assim uma avaliação neutra talvez conclua haver-se tratado de uma simples “troca de<br />

guarda”.<br />

Eu: A construção de categorias duais talvez seja uma imposição da cultura<br />

ocidental da qual não se foge facilmente: nossa mente funciona, ao que parece, por<br />

simetria. Em certa passagem do Mil Platôs 3 , Deleuze e Guatarri dizem da<br />

impossibilidade de se fugir dos dualismos e da necessidade de se construir<br />

biarticulações em fuga das que já se cristalizaram. Problema de mesma natureza<br />

aborda Leminski em seu Metaformose, quando afirma a proliferação das fábulas sobre<br />

o cadáver das fábulas mortas. As próprias fábulas são, ao mesmo tempo,<br />

explicadoras, ordenadoras do real; e entrópicas, desarticuladoras de suas próprias<br />

construções. Quero dizer, com tudo isto, que as fugas dos sistemas devem, e só<br />

podem ser feitas com elementos e procedimentos destes mesmos sistemas. Assim, a<br />

questão não é a da troca de um dualismo por outro, pois é quase inevitável a<br />

construção de outras biarticulações, como afirmo no corpo deste trabalho:<br />

Em todo caso, a dicotomia material/simbólico, base/ideologia (corpo/alma?)<br />

é uma presença efetiva que sempre se encontra ‘por trás’ ou na base do exercício<br />

crítico (talvez de todo pensamento ocidental), cerceando-o. Nossa pretensão é saltar<br />

para fora (mais uma fuga?) desta dualidade, o que não é fácil, mas que talvez seja<br />

necessário, mesmo que para isso construamos outras dualidades.<br />

De fato, outros dualismos são construídos. A questão é se estes dualismos proliferam<br />

em regime arbóreo ou rizomático, como em muitos exercícios poéticos, nos quais os<br />

paralelismos e as redundâncias parecem construir suas próprias leis à medida que vão<br />

se desenvolvendo, não seguindo nenhuma “gramática” prévia e tomando o erro e o<br />

desvio como aliados: digamos que se tratam de dualismos mutantes e proliferantes.<br />

A própria oposição (dual) entre arbóreo e rizomático é muito mais processual<br />

e instrumental que sistêmica e essencial (mais dois dualismos). E o processual e o<br />

instrumental são polaridades que permitem o movimento e a entropia dos sistemas, ou<br />

seja, são fugas de seus limites: são os pólos de algumas dicotomias deliberadamente<br />

construídas no e do interior dos sistemas justamente para colocarem em jogo o Ser do<br />

sistema — assim também as dicotomias sistema x sistematização e sujeito x<br />

subjetivação.<br />

3 Vou tomar a liberdade de não citar a página, referindo-me à passagem de memória: estou ciente dos<br />

riscos de infidelidade deste procedimento. Mas, neste ponto do trabalho, esta questão de fidelidade talvez<br />

não seja tão urgente assim. Por acaso, qualquer citação, pelo recorte, sempre um tanto arbitrário, de seu<br />

contexto, já não seria uma infidelidade?<br />

121


A questão passa a ser, então, se estas categorias duais cumprem a sua<br />

função de ultrapassar as que se limitam ao interior de certo sistema já bem codificado.<br />

E, mais ainda, se elas são úteis para nós, isto é, se conseguem resolver<br />

provisoriamente alguns problemas que nos afligem, sejam eles teóricos ou de vida<br />

(outra dualidade?), pois a simples ultrapassagem de um sistema talvez caia no<br />

problema do novo pelo novo, do jogo pelo jogo: uma gratuidade perigosamente<br />

próxima ao movimento das modas consumidas avidamente pela burguesia: o jogo<br />

puramente gratuito, por mais longe que vá, ainda é um lugar no sistema, facilmente<br />

absorvido pelo fluxo de capital e sua capacidade, quase ilimitada, de criar nichos<br />

(lugares) para todos os ‘gostos’. Uma falsa gratuidade, portanto, pois<br />

instrumentalizada pelo capital.<br />

A oposição entre máquina e estrutura, por exemplo, coloca tanto a<br />

subjetividade do sujeito quanto a objetividade da estrutura, normalmente em oposição<br />

essencial, na mesma situação de metafísicas do ser. O conceito de máquina relativiza<br />

a oposição entre subjetividade e objeto, não pela síntese (o que tornaria o conceito de<br />

máquina em apenas mais um nó, um pouco mais, acima numa hierarquia arbórea),<br />

mas evidenciando e questionando o fato de ambas remeterem, à sua maneira, à<br />

essencialidade, objetiva ou subjetiva, do ser. Esta característica comum da<br />

essencialidade é que dá a possibilidade de síntese (um nó superior) entre sujeito e<br />

objeto: a junção miraculosa de suas essências contrárias e complementares. Ao<br />

colocar tanto o sujeito quanto a estrutura na posição de estrutura, identificando-a com<br />

uma espécie de metafísica, dotada, conseqüentemente, da possibilidade da<br />

transcendência, ocorre uma crítica à estática sistêmica de ambos os termos da<br />

polaridade sujeito-estrutura, possibilitando uma fuga de seus limites, que se dá pela<br />

nova polaridade, máquina x estrutura, cujo primeiro termo se torna em linha de fuga da<br />

estática sistêmica do segundo (a estrutura, que engloba sujeito e objeto). Esta<br />

oposição se faz de modo não essencial (o que é questionado aí é a própria<br />

possibilidade da essencialidade), mas simplesmente funcional — par também<br />

complicado.<br />

Do conceito de máquina, por exemplo, podemos passar ao de processo,<br />

funcionamento e sistematização, mas não se trata de uma derivação hierárquica, de<br />

modo que, partindo de qualquer um destes conceitos, pode-se chegar ao de máquina.<br />

Também não se trata de um universo conceitual fechado, do qual não se pode sair<br />

(outros conceitos podem proliferar aí), o que constituiria um sistema cujo rompimento<br />

dos limites levaria à sua morte — perda de identidade. Este procedimento maquinal<br />

procura evitar o fechamento e a identidade (essência do ser) buscando uma espécie<br />

de sistematização em abertura constante, o “fora absoluto” de Deleuze e Guatarri, ou<br />

a supersuperfície de Leminski: ausência de dentro, ausência de profundidade; “morrer<br />

de vez em quando é a única coisa que me acalma”.<br />

* * *<br />

122


Tu: O trabalho, no todo, cumpre o prometido, no que diz respeito ao<br />

acompanhamento da obra (os poemas de Leminski) em seu funcionamento, como<br />

processo, e não em sua expressividade ou em sua estruturalidade. Cabe, no entanto,<br />

uma pergunta: tal procedimento não depende por demais das habilidades do analista,<br />

ele mesmo potencialmente criador? Todas as descobertas feitas no texto de Leminski,<br />

sobretudo no que diz respeito ao plano fônico estariam ao alcance de um outro<br />

analista não dotado da propensão a construir seu texto crítico de modo análogo ao do<br />

poeta? Na p. 42, por exemplo, haveria um lamento do analista ao constatar que<br />

Leminski, às vezes (felizmente?), “é claro demais e frustra o decifrador que procura o<br />

fundo, o por trás do texto”? É um método, sim, buscado no desconstrucionismo pósestruturalista<br />

(a propósito, por que nenhuma referência a Derrida e sua escritura?),<br />

mas confesso temer que o trabalho analítico repouse em demasia na sedução que o<br />

desempenho do analista possa suscitar.<br />

Eu: Creio que esta questão passa, novamente, pelo problema do rigor teórico<br />

ou, pelo menos, do rigor dos procedimentos críticos, já que a sedução poderia<br />

acobertar (embora não necessariamente) uma falta de consistência metodológica,<br />

levando o leitor mais ao deleite que à reflexão. É um problema que envolve o prazer<br />

que o texto crítico deve ou não proporcionar. Assim, admite-se normalmente que o<br />

texto proporcione prazer, desde que, primariamente, ele leve à reflexão, o que só é<br />

possível com um mínimo de rigor teórico. O analista, como sedutor, tomaria o lugar do<br />

poeta, cuja sedução é concedida (quase que exigida) pela sociedade, que o aproxima<br />

do princípio do prazer: os deuses do poeta são Dionísio, Afrodite e Orfeu. Ao crítico<br />

restaria o princípio da realidade ou, em termos nietzschianos, a tendência apolínea:<br />

Apolo, Atenas, Hermes. Como não sou freudiano e não acredito em sublimação, gosto<br />

de me perguntar sempre se o prazer ou, em termos mais amplos, o desejo, não estaria<br />

presente, inclusive numa crítica mais apolínea, supostamente mais racional<br />

(sublimadora) e menos sedutora que a tendência dionisíaca, embriagadora (sedutora)<br />

dos leitores, obstruindo-lhes a reflexão.<br />

Em outros termos, não seriam as críticas sociológica e estruturalista, por<br />

exemplo, tão sedutoras quanto a que me proponho? Tomemos um exemplo concreto:<br />

Antonio Cândido e sua Formação da Literatura Brasileira. Trata-se de uma obra<br />

sedutora, sem dúvida, mas pode-se argumentar que, ali, o rigor e a lucidez crítica se<br />

sobrepõe à expansão do desejo, reduzida a um ‘belo estilo’, competência de sedução<br />

apenas complementar à principal, que seria a competência analítica, racional. Mas<br />

esta mesma lucidez crítica, a ponderação e o rigor analíticos, o não extremismo no<br />

julgamento e a elegância da linguagem, não seriam elementos sedutores? Não seriam<br />

funcionamentos da máquina desejante que é esta obra? Tudo bem que, no caso, tratase<br />

mais de um desejo de centro e ordem (a literatura como sistema), ou seja, de<br />

estrutura, do que uma expansão rizomática do desejo: as linhas de análise de Candido<br />

tendem a confluir num único ponto. Ele é um crítico bastante reservado em sua<br />

atividade, mas esta reserva não seria uma prática de sedução, uma espécie de<br />

charme?<br />

123


Quanto às potencialidades do analista como criador, estas podem também<br />

estar presentes numa crítica como a de Cândido, Schwarz e Bosi, para continuarmos<br />

a exemplificação com a mesma linha crítica: a de tendência sociológica. Roberto<br />

Schwarz não se torna um criador (ou re-criador?), quase tão bom quanto Machado,<br />

em Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, a despeito da<br />

inegável e assumida filiação ao método sociológico? Tenho estes três, e isto não deixa<br />

de ser um elogio, na conta de excelentes ficcionistas.<br />

O que talvez devamos nos perguntar é sobre o tipo de sedução que um<br />

determinado trabalho crítico desempenha: que desejos ele movimenta? em que<br />

regime? quais os seus rigores? que tipo de ficção ele produz (cria)? Vou tentar<br />

responder estas questões de forma sucinta e grosseiramente objetiva, pois creio que o<br />

seu desenvolvimento já se faz neste excerto ou o foi no restante do trabalho: esta<br />

dissertação tenta movimentar um desejo de descentramento e fuga constantes; o<br />

regime deste movimento quer-se rizomático ou processual; o rigor procura ser<br />

estético, construído circunstancialmente, à medida que se processa a crítica (rigor em<br />

fuga); o universo ficcional que se quer criar é o de um sistema aberto, que se aproxima<br />

mais da sistematização, da subjetivação e da estruturação (substantivos em ação ou<br />

verbificados) do que da essencialidade implicada no sistema, no sujeito e na estrutura.<br />

A partir desta opção, outra pergunta nos surge: até que ponto uma crítica com<br />

estas características rompe o limite entre texto crítico e texto literário? Pois, a despeito<br />

da ficcionalidade da crítica sociológica, este limite é claramente mantido, pois o<br />

universo crítico, em relação ao literário, é construído, aí, de modo oposto nos<br />

procedimentos e complementar na sua finalidade de mediação e esclarecimento da<br />

leitura.<br />

Talvez a alternativa mais coerente com minha opção seja a de Barthes e seu<br />

conceito de escritura, ou ainda, a multiplicidade de Deleuze e Guatarri. O que implica<br />

no rompimento, tanto com a categoria de literatura quanto com a de crítica, restando,<br />

agora, somente a multiplicidade textual, a textualidade, ou ainda, a escritura<br />

barthesiana. Nesta perspectiva você tem razão em questionar se “tal procedimento<br />

não depende por demais das habilidades do analista, ele mesmo potencialmente<br />

criador?” Mas também poderíamos perguntar aos poetas e prosadores que optam pelo<br />

rompimento dos limites entre crítica e literatura (e desde Mallarmé e Valéry esta<br />

questão pode ser posta de forma contundente), se sua atividade criadora não entra<br />

demais no campo da crítica, dependendo de competências tradicionalmente deixadas<br />

aos críticos: rigor reflexivo, capacidade analítica, construção e justificação de juízos.<br />

Na verdade, a multiplicidade textual abole ou torna muito fluido o limite entre crítica e<br />

literatura, o que resulta na ineficácia destes conceitos para quem (criadores ou<br />

críticos: ambos agora produtores textuais ou, no dizer de Barthes, escritores) opta pela<br />

produção na/da multiplicidade: e creio que Leminski esteja entre eles.<br />

Assim posta a questão, acredito que o seu temor de “que o trabalho analítico<br />

repouse em demasia na sedução que o desempenho do analista possa suscitar”, seja<br />

justificado, pois remete ao temor sobre a ausência de necessidade (perda de função)<br />

124


da crítica que, sem dúvida, é questionada pelas teorias ditas pós-estruturalistas e por<br />

esta dissertação — na verdade, minada pelo rompimento de seus limites com a<br />

criação literária. A sedução que o texto crítico e o texto literário exercem não se<br />

diferencia substancialmente, o que aproxima (perigosamente, para um e para outro,<br />

enquanto gêneros textuais) a ficcionalidade de ambos. É uma opção que escolhi e<br />

aceito os seus riscos, mesmo que estes impliquem numa dissolução da atividade<br />

crítica como a entendemos normalmente. E sem saber aonde levará esta dissolução.<br />

* * *<br />

Tu: Outro ponto merecedor de atenção é o empenho do autor da dissertação<br />

em fazer do seu trabalho também uma fuga dos dualismos convencionais. Como<br />

exemplo, a contínua identificação dos traços “recorrentes” da poesia de Leminski. O<br />

termo é menos rígido que “características”, sem dúvida, mas é de novo o caso de se<br />

perguntar se não se trata da mesma coisa com outro rótulo. O mais apressado dos<br />

leitores logo percebe a recorrência de alguns desses traços recorrentes (se me<br />

relevam o pleonasmo): os anagramas, a liberdade sintática, a brevidade exemplar, a<br />

ironia etc. Não será purismo de parte do autor da dissertação contornar a<br />

categorização usual e deixar que tais traços sejam evidenciados aqui e ali, como se a<br />

cada ocorrência se tratasse de algo absolutamente novo? Em determinados<br />

momentos, o tom quase dubitativo expressa esse temor de que também a dissertação<br />

incorra no pecado das categorizações “bem estabelecidas”.<br />

Eu: A respeito do termo ‘traços recorrentes’, eu o prefiro a ‘características’,<br />

porque, em Leminski, a repetição não parece resultar numa totalidade coerente, que<br />

aspira ao fechamento sistêmico e à identidade, conceitos com os quais a palavra<br />

‘características’ está por demais comprometida. Traços recorrentes, por sua vez,<br />

abarca bem a idéia de repetição processual (ou até mesmo ritual), que pode implicar<br />

numa busca da identidade — e aí se avizinha do sentido de ‘características’. Mas esta<br />

repetição, como performance (ação), é também um convite ao desvio, de onde brota a<br />

diferença, o erro, tão prezados por Leminski. É claro que o erro poderia ser apontado<br />

como uma fuga deliberada das características, mas o termo traços recorrentes,<br />

parece-me, liga-se melhor à dinâmica da poesia de Leminski.<br />

Pelo que eu disse acima, realmente pode haver um pouco de purismo na<br />

escolha dos termos, mas é sempre melhor encontrar ou construir um conceito que se<br />

conecta melhor às máquinas com que se lida. De certa forma, este procedimento faz<br />

parte do rigor do texto-morcego ou texto-rizoma, de sua exigência de precisão, sempre<br />

em expansão: mais que desejo de precisão, trata-se de uma precisão desejante.<br />

É verdade que, na dissertação, são raros os momentos de parada crítica para<br />

sintetizar os traços recorrentes ou características da obra de Leminski, o que pode dar<br />

a impressão de que estes traços são “evidenciados aqui e ali, como se a cada<br />

ocorrência se tratasse de algo absolutamente novo”. Neste aspecto, assumo, na<br />

dissertação, uma posição radical de tentar evitar ao máximo a sistematização, seja da<br />

obra de Leminski, seja de meu próprio trabalho. Talvez sejam cuidados de iniciante<br />

125


neste tipo de texto que se pretende enredar na multiplicidade: os excessos das<br />

rupturas iniciais? Por outro lado, talvez seja, novamente, uma busca da melhor<br />

maneira de se conectar à obra de Leminski que, sobre a camada de recorrências,<br />

provoca sempre uma dissonância, uma variação repentina, procurando escapar dos<br />

limites que as repetições pareciam querer impor. Invariância última de seus textos: a<br />

variância inusitada. Não se trata, portanto, da predominância de um universal (e as<br />

características remetem à unidade e à universalidade), mas do diferencial que foge à<br />

gramática (prévia ou posterior) das características. Obras assim podem ser<br />

apreendidas com textos críticos que buscam a estrutura (e as características são seus<br />

pontos de apoio) da obra e que são, eles mesmos, bem estruturados — no sentido de<br />

terem pontos de apoios, características, quase chego a dizer caráter, identidade.<br />

Mas não seria mais fecundo um procedimento que desfizesse os pontos de<br />

apoio em linhas a serem seguidas, a despeito do possível desnorteio que possa<br />

causar no leitor? Mais fecundo ainda porque a obra de Leminski oferece-nos linhas a<br />

seguir em sua recusa ao fechamento. Assim, poderíamos descrever as características<br />

de sua obra e a leríamos como uma estrutura (talvez um tanto maquinal), mas ao lado<br />

(ou em vez) desta produção totalizante, talvez seja interessante acompanhar (não<br />

cronologicamente, mas quase que topologicamente) suas linhas de invariância e de<br />

variação, as possibilidades de conexão e de emaranhamento em sua maquinaria<br />

textual, lendo-a (produzindo-a) como rizoma. É claro que este procedimento exige um<br />

texto crítico(?) também em fuga, não estruturado, pronto para novas conexões, outros<br />

usos, apesar de seus ‘traços recorrentes’. Novamente, é uma opção que tomei em<br />

favor de um texto-rizoma que foge, inclusive, de si mesmo. Sei dos riscos da<br />

empreitada, de não consegui-lo na medida certa: ou não saindo de uma<br />

estruturalidade disfarçada, ou saindo dela em demasia, espraiando-se no caos.<br />

Apesar de nunca se saber com certeza qual é esta ‘medida certa’ (de resto, nunca<br />

ideal, mas permanentemente circunstancial), ela estará sempre em negociação.<br />

* * *<br />

Tu: Na página 10 — simples exemplo —, diz-se que “‘verde’ contém ‘ver’ e<br />

‘rede’ se invertermos as sílabas” (grifo meu — caso de “ocultação de palavras dentro<br />

de outras, multiplicando o sentido do texto” — p. 8), do mesmo modo que na p. 43 dizse<br />

que “A palavra ‘falto’ (assim como ‘salto’) que se opõe a ‘encontro’ contém (de<br />

novo, grifo meu) alto, que se opõe a abismo etc.”. Não é hipertrofiar o plano<br />

morfológico, já que do ponto de vista semântico não há qualquer proximidade entre os<br />

conjuntos de palavras (‘falto’, ‘salto’, ‘alto’; ‘verde’, ‘ver’, ‘rede’), mesmo admitindo-se o<br />

princípio da projeção do nível paradigmático sobre o sintagmático (e aqui, também de<br />

passagem, estranho não ser feita nenhuma menção a Greimas)? Pode-se defender a<br />

idéia de que essas associações são previsíveis e intencionais, mas penso que permite<br />

ao analista certa facilitação, a despeito da inegável competência demonstrada.<br />

Eu: Minha insistência em explorar os anagramas decorre da recorrência deles<br />

na obra de Leminski — digamos, cedendo a seu apelo, que seja uma característica<br />

procedimental do poeta. E o anagrama trabalha, realmente, em disfunção com a<br />

126


semântica: o seu efeito é de multiplicação do sentido, como a metáfora e a metonímia.<br />

Só que, ao contrário destas figuras, a polissemia não decorre da construção de uma<br />

proximidade semântica, mas de uma casualidade morfológica. Quase poderíamos<br />

dizer que a insistência no anagrama desvela uma propensão trocadilhesca na poesia<br />

de Leminski.<br />

É aí que este pode ser visto como um poeta falho (assim como a crítica que<br />

se contenta em evidenciar estes aspectos anagramáticos), pois este procedimento não<br />

parte da desconstrução de uma sintaxe (no sentido de construção codificada) normal<br />

para a reconstrução de outra, não usual — como a metáfora e a metonímia o fazem. O<br />

anagrama faz, sem dúvida, proliferar os sentidos, mas de maneira um tanto casual,<br />

sem construir outra sintaxe, mesmo que muito tênue, no lugar da usual. E aí, o poeta<br />

cai no risco da gratuidade pura, aproximando-se dos dadaístas: entropia máxima da<br />

linguagem. Mas esta recusa em não construir outra ordem não seria um risco coerente<br />

com a proposta de poesia, entrópica, de Leminski? Assim, as casualidades fônicas e<br />

morfológicas são muito exploradas em sua obra (traços recorrentes, característica,<br />

invariância), mas a gratuidade destes procedimentos resulta, às vezes, em<br />

aproximações imprevisíveis (desvio, variância), quase que grotescas, pela ausência de<br />

sintaxe ordenadora: realmente há, aqui, uma certa facilitação, tanto ao poeta, quanto<br />

ao analista que irá percorrer estas linhas a-sintáticas.<br />

Já que você tocou no assunto, realmente, podemos afirmar que a<br />

aproximação inusitada de signos ocorre pela projeção do eixo paradigmático sobre o<br />

sintagmático. Assim como os termos que rimam, originariamente, não possam ter<br />

nada em comum, a proximidade sonora e a situação (contexto poético) em que ocorre<br />

a rima podem aproximar semanticamente os termos: é o caso de ‘salto’ e ‘falto’ que<br />

rimam, e ‘alto’ que casualmente está contido em ambas. A partir desta semelhança<br />

casual nos planos fonético (rima) e morfológico (anagrama), constrói-se uma<br />

proximidade semântica também casual, que remete à ausência de gravidade (leis,<br />

normas) e tendência de fuga da subjetividade codificada. A metáfora poderia até<br />

aproximar termos tão díspares semanticamente, mas sempre construindo alguma<br />

mediação (também semântica e não somente fonética ou morfológica) entre eles. Esta<br />

aproximação gratuita sempre foi de uso corrente na poesia, embora sua função seja,<br />

na maior parte dos casos, acessória e até mesmo embelezadora.<br />

Em Leminski há uma hipertrofia destas gratuidades e, tentando percorrê-las,<br />

talvez meu trabalho também as tenha hipertrofiado — e simplesmente percorrer os<br />

procedimentos implica, realmente, em facilitação. É necessário, também, percorrer a<br />

função dos procedimentos e creio que a função desta hipertrofia fonética e morfológica<br />

(em conexão um tanto arbitrária com o plano semântico) seja a fuga das<br />

profundidades que as figuras que trabalham no plano semântico tradicionalmente<br />

evocam (embora elas também possam ser utilizadas de outra maneira). Esta<br />

gratuidade de Leminski talvez seja parte de uma estratégia poética (não<br />

necessariamente consciente em todos os seus meandros) de construção de um lirismo<br />

de supersuperfície, que escapa das tradicionais densidades e profundezas literárias;<br />

lirismo trocadillhesco, (de) moleque:<br />

127


(por q tanta literatura ?<br />

é preciso ser moleque<br />

ser bem relaxado com o rigor<br />

...........<br />

q tal<br />

...........<br />

barbarizar<br />

barbarbarizar<br />

barbarbarbarizar !!!!!!!!<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 78).<br />

* * *<br />

Tu: Parece-me insatisfatoriamente resolvida a questão de encontrar um lugar<br />

contextual para Leminski. Sua divisão entre o rigor dos concretistas (poesia de<br />

estruturação) e o relaxo da poesia de expressão talvez seja singelamente resolvida<br />

com a noção de sincretismo — quem sabe, um Augusto dos Anjos dos anos 60/80?<br />

Até porque o autor da dissertação reconhece que as duas poéticas “reivindicam para<br />

si a liberdade e, de fato, ambas a têm, em seus termos” (p. 65), o que neutraliza a<br />

oposição e permite que um poeta navegue nas “duas águas” – proposta instigante,<br />

creio: aproximar Leminski de Cabral. A dissertação parece recusar tal possibilidade (p.<br />

67), mas gostaria de ser convencido disso. Não creio também que fechar a poesia de<br />

Leminski nos “códigos de apreensão modernistas” (p. 33) signifique, “fatalmente”, vê-lo<br />

como um “poeta falho, cheio de trocadilhos e cacoetes, incapaz de engendrar poemas<br />

longos ou investir em metáforas densas e profundas” (p. 33). Por que não ler os<br />

“códigos de apreensão modernistas” em sua potencialidade de negação do seu<br />

sentido manifesto?<br />

Eu: Tanto a poesia de expressão, quanto a de estruturação, ou pelo menos a<br />

teorização destas vertentes, implicam numa espécie de essencialidade que lhe impõe<br />

leis e limites, e que é a medida dos rigores de cada uma: no caso da expressão, a<br />

essência se constitui no sujeito; no caso da estruturação é a estrutura. Na verdade,<br />

uma é contrária à outra, mas não são absolutamente excludentes. Diria até que são<br />

complementares e que transitar pelas ‘duas águas’ seria, não só possível, mas, sem<br />

dúvida, uma jogada de mestre, digna de Cabral e Drummond: pode-se argumentar que<br />

ambos conseguiram tal façanha.<br />

O problema é que, se leio Leminski fazendo-o transitar por estas ‘duas<br />

águas’, pode parecer que sua poesia permanece no limite das essencialidades, sejam<br />

elas estruturais ou subjetivas, por mais original que seja a mesclagem destas<br />

essências. E me parece muito claro a sua intenção (creio que cumprida, em grande<br />

parte) de fuga, tanto da expressão subjetiva quanto da estruturalidade poética,<br />

justamente por estas modalidades do exercício poético lhe parecerem comprometidas<br />

em excesso com o Ideal e o Metafísico, ou seja, com as essências universais:<br />

128


o classicismo implícito na coisa concreta q leva a eliminar o presente, as menções<br />

explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já nasceu<br />

universal, geral, genérica, nasceu morta... (Leminski e Bonvicino, 1999, p 117).<br />

Destesto a poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia.<br />

(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 194).<br />

Procurei ler o poema “Ais ou menos” como a realização poética de uma fuga<br />

das profundezas, no caso, do sujeito. Assim o “abismo onde me encontro”, tem toda<br />

uma conotação de profundidade subjetiva que aprisiona os fluxos do desejo, com suas<br />

leis (rigores), sua moral subjetiva (burguesa?), análogas à lei gravitacional que forma e<br />

aprisiona a pedra. O esfalfamento da pedra e sua passagem à estrela implicam na<br />

libertação dos rigores do sujeito, da poesia de expressão: é o “salto ao hiato onde me<br />

falto”. Assim também em outros poemas, onde procurei ler uma fuga da<br />

estruturalidade poética.<br />

Não quero dizer que Leminski não se utilize dos procedimentos, tanto da<br />

poesia da expressão quanto da estruturação. Na verdade, é do interior dos conflitos e<br />

confluências de ambas que ele parte ou, em outros termos, é do interior deste<br />

sistemas e de suas possibilidades que ele constrói sua poesia, utilizando-se dos<br />

recursos de ambas. Assim, seria bem possível resolver o problema com o conceito de<br />

sincretismo, ainda mais que esta noção costuma resultar em dissolução das oposições<br />

rigidamente sistematizadas, criando, não raro, outros ambientes sistêmicos, talvez<br />

mais abertos. Por outro lado, o procedimento sincrético parece deixar intactas as<br />

ortodoxias da qual se separou, no sentido em que não há uma recusa a estas<br />

ortodoxias, havendo, inclusive, uma convivência cordial com elas. O que não parece<br />

ser o caso dos textos poéticos de Leminski que, apesar de partirem do sistema bipolar<br />

poesia de expressão x poesia de estruturação e até utilizando-se de seus<br />

procedimentos, não convivem bem nem com uma nem com outra, já que há, neles,<br />

uma dupla recusa ao que existe de fundamental em ambos os pólos: a subjetividade<br />

profunda e a estruturalidade universal. Mesmo que o sujeito se fragmente e a estrutura<br />

esteja em permanente construção, podemos sempre desconfiar que, no horizonte, há<br />

um sujeito ou uma estrutura ideais que “a poesia dita profunda” e “o classicismo<br />

implícito na coisa concreta” desejam alcançar: platonismo, a perfeição que falta.<br />

Os procedimentos poéticos de Leminski vão, desde sua obsessão pelos jogos<br />

sonoros e anagramáticos, até a sua propensão para enlouquecer a lógica da (e com a)<br />

linguagem: dança louca dos sons, dança louca das idéias. Parece-me que estes<br />

enlouquecimentos todos da linguagem, ao lado da recusa de qualquer temática<br />

universal (embora lide o tempo todo com a tradição ocidental) e da maneira não<br />

essencialista de tratar os afetos, procuram realizar uma fuga das permanências,<br />

mesmo as que se possam vislumbrar como horizontes perdidos (nostalgias) ou a<br />

encontrar (utopias). Assim, o rigor concretista está presente, não para estruturar a<br />

obra ou o mundo, mas para efeito de precisão circunstancial, de mapeamento em<br />

meio à multiplicidade. Também os afetos são uma presença em sua obra, mas não<br />

são expressões de um sujeito (individual ou coletivo) que chora ou ri, sofre ou se<br />

129


alegra, sente prazer ou dor, consistindo apenas em linhas de vida, abstratas mas<br />

particulares, mescladas às dos poemas, como procurei mostrar (seguir).<br />

Por tudo isto, prefiro referir-me à poética de Leminski como uma maquinaria<br />

que escapa à estrutura e ao sujeito (ambos podem ser conceituados como estrutura,<br />

como procurei mostrar anteriormente), ou como uma poesia verbificada, processual,<br />

que foge à substantivação e suas substâncias que, mesmo fragmentárias, aspiram à<br />

unidade e à permanência. Talvez sincretismo dê conta de todas estas fugas e<br />

dissoluções, mas tenho a impressão de que implica muito mais em uma convivência<br />

pacífica com as oposições que numa fuga entrópica e alucinada das codificações.<br />

Fuga que faz vazar os sistemas, junto com suas lutas internas e suas possibilidades<br />

de confluência.<br />

Quanto ao modernismo, você tem razão: o que tento fazer é apenas levá-lo<br />

cada vez mais longe em suas possibilidades críticas e autocríticas. Quando falo dos<br />

códigos de apreensão modernistas e de sua incapacidade para ‘apreender’ Leminski,<br />

refiro-me à sua cristalização canônica, à sua institucionalização que os engessa para<br />

transformá-los em moldes críticos, que já trazem pré-codificadas as categorias, os<br />

métodos de análise e até os juízos de valor. Assim como não creio em pósmodernidade<br />

(no sentido de cultura) nem em pós-capitalismo (no sentido de regime<br />

de produção), não creio também num pós-modernismo artístico. O modernismo e<br />

parte do pensamento moderno (o marxismo entre eles) surgiram no seio do socius<br />

capitalista e constituem os meios mais eficazes de sua crítica: talvez consistam na<br />

única alternativa a ele, não utópica, mas entrópica, de fuga.<br />

130


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