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mistificação do mundo e o rompimento da fronteira entre real e simbólico pela expansão<br />
deste último. O real essencial não estaria na vigília, mas no mundo onírico, no estado de<br />
adormecimento da consciência vigilante e o mergulho no sono significaria o mergulho<br />
no ser.<br />
No entanto o sono é o dentro do sujeito, o dentro mais profundo, denso e<br />
fechado que existe. Como este fechamento revelaria a essência do real. As leituras do<br />
poema como expressão da subjetividade, muitas vezes interpretam o mundo onírico<br />
como um fechamento relativo, um dentro em relação ao mundo da vigília, aos campos<br />
de referência da consciência. Fechada a porta a este mundo, abre-se a da infinitude do<br />
ser. Esta perspectiva subjetiva pode muito bem ser um ponto de partida para a leitura<br />
deste poema, que caminharia para uma espécie de aventura onírica pensante do eu<br />
lírico: dramas, comédias e tragédias da subjetividade contemporânea.<br />
Seguindo o fluxo semântico do poema, os próximos versos, que são uma<br />
aprofundamento e especificação do pedido inicial (“peço poderes sobre o sono”), vão da<br />
ausência para a ausência:<br />
Quero forças para o salto<br />
do abismo onde me encontro<br />
ao hiato onde me falto.<br />
numa espécie de rarefação quase absoluta do ser (e de seus sentidos), o qual se torna o<br />
espaço de uma espécie de grau zero da presença: falta de mim. O verbo encontrar pode<br />
ser tanto uma localização espacial como um índice da identidade: abismo, buraco negro<br />
da identidade que suga os fluxos da vida para o precipício de significação, memória e<br />
subjetividade. Interessante como o abismo, que também é uma ausência (de chão),<br />
torna-se, por seu poder de atração, uma espécie de presença que se contrapõe à falta e é<br />
dotada de profundidade, de força gravitacional, de onde não se escapa com facilidade:<br />
“A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua<br />
paixão, suas redundâncias.” (Deleuze e Guattari, 1996, p. 31).<br />
Passando ao plano sonoro do trecho, verificamos que, ao excesso consonantal<br />
de ‘abismo’ opõe-se, no próximo verso, o predomínio das vogais da palavra ‘hiato’. As<br />
vogais se distinguem das consoantes por sua característica de fluxo sem barreiras, sem<br />
oclusão ou obstrução. O abismo/buraco negro é um sorvedouro e um bloqueador: um<br />
construtor de unidades. Ao hiato falta a obstrução, permanecendo somente pausas e<br />
fluxos, sons e silêncios: ondas intensivas.<br />
Esta oposição entre fluxo e obstrução, é realizada tanto na cadeia das idéias<br />
(forma do conteúdo) quanto na sonora (forma da expressão). É que, embora ambas se<br />
desenvolvam independentemente, elas se pressupõem reciprocamente, de maneira que<br />
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