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ascese mística, se dissolve em multiplicidades: a língua perfeita é a multiplicidade, a<br />
imperfeição em escala máxima, a fuga para todos os lados, escapando de toda unidade.<br />
Se a variedade é um erro, um desvio, o que se deseja no poema é o erro ao infinito: a<br />
variação contínua.<br />
O grito, diante dos sons da linguagem, é a consubstanciação do não sentido, do<br />
não conceitual, portanto exprime o irracional e constitui o ruído na linguagem:<br />
Gritos eram os únicos.<br />
O resto, ia pro lixo.<br />
A unidade, ainda não nomeada, mas sempre à espreita no poema, revela-se na palavra<br />
“únicos”. Mas é uma revelação no mínimo paradoxal e mais obscurece que clarifica,<br />
pois o que é uno e tem primazia é justamente a potência da variação dos sentidos: o<br />
grito, como a música, é um signo constituído apenas do significante, sobre os quais<br />
variam os significados (sentidos), se é que possa ser-lhe atribuído algum. Mas o grito<br />
não é também o Significante primordial (o que implicaria somente num deslocamento<br />
da unidade do significado para o significante), mas uma variação significante: outra<br />
remissão do grito é a ação, no mesmo sentido que nos referimos a ela em Distâncias<br />
mínimas, ou seja, como elemento estranho à fixidez, seja a da língua, a do sujeito ou a<br />
da cultura. A ação implica em mobilidade e provisoriedade, em processos que se criam<br />
e se dissolvem: processos continuados que dão a ilusão de unidade: ritos. Aqui também<br />
é lícito lermos “ritos” (no plural) por dentro de “gritos”: a repetição dos ritos é o<br />
prenúncio da fixidez do mito 4 , mas este, enquanto rito (ação) se encontra sempre a<br />
mercê das variações, enxergadas muitas vezes como deturpações: não é à toa que as<br />
religiões erigidas numa sólida tradição (será possível a solidez?) mantêm estrita<br />
vigilância sobre os seus rituais ou os reduzem ao mínimo possível.<br />
A unicidade (“Gritos eram os únicos”) é atribuída justamente ao que não<br />
hierarquiza, não delimita sentidos e não se fixa, ou seja, à potência da variação. Portanto<br />
é uma unidade controversa que afirma justamente o plural e a diferença; e a identidade,<br />
4 Quando nos referimos à fixidez do mito, estamos nos referindo à crença de sua fixidez e não a qualquer<br />
conceituação de mito, seja ela das ciências sociais ou da psicologia. De certa forma vamos construir nossa<br />
própria definição neste trabalho, não muito rigorosa, mas, cremos, suficiente para o nosso trabalho. Em<br />
termos muito gerais, esta definição vai delinear o mito como um construto humano que aspira à<br />
permanência e ao sagrado. Assim inverte-se a ordem das construções, pois, de acordo com a crença,<br />
sendo o mito permanente e sobre-humano em oposição à precariedade do humano, implica que dele é que<br />
decorre as coisas terrenas, inclusive o rito. A este último costuma-se atribuir a imutabilidade, devido à sua<br />
relação (de re[a]presentação) direta com o mito, mas se considerarmos o mito como construto humano é<br />
lícito inferirmos que o mito é construído pela repetição de ritos que, reduzidos a ações humanas (não<br />
decorrentes do mito e do sobre-humano, mas seus construtores), passam ao estado de performances,<br />
passíveis de desvios. Ora, o desvio no elemento construtor (rito) implicaria no desvio do construído<br />
(mito). Daí segue-se que a variância é um atributo tanto do mito quanto do rito, mas neste último, (que é<br />
ação humana e é primeiro — “g-ritos eram os únicos”) é que estaria a potência da variabilidade que<br />
minaria a ‘permanência’ crida do mito.<br />
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