A Moeda - Viverpontocom
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Capítulo Um<br />
Existem duas coisas de que sempre me lembrarei sobre os verões em<br />
St. Louis. Uma delas é andar descalça em um chão tão quente que eu<br />
podia estourar as bolhas de piche com os dedos dos pés. Um chão tão<br />
quente que, por volta do fim de julho, a pele da sola dos meus pés<br />
estava tão grossa quanto a minha bolsa de moedas de couro curtido<br />
da Woolworth’s, e eu podia atravessar a Arsenal Street sem precisar<br />
correr. Todos os anos, algum fotógrafo do jornal local Post-Dispatch<br />
tirava uma fotografia de um ovo estrelado fritando na calçada e o jornal<br />
a colocava na primeira página. A manchete dizia: Tão Quente a<br />
Ponto de Fritar um Ovo na Calçada! Como se eles estivessem nos<br />
dizendo alguma coisa que ainda não soubéssemos!<br />
A outra coisa de que sempre vou me lembrar é o verão da moeda.<br />
No atual momento da minha vida ando recolhendo moedas o tempo<br />
todo, mas esse não era o caso naquela época. Não antes daquela moeda,<br />
aquela importante moeda, aquela que me levou à srta. Shaw na<br />
joalheria.<br />
Aprendi com aquela primeira moeda especial o quanto as pequenas<br />
coisas da vida podem ser importantes, porque aquela moeda me<br />
levou a conhecer a srta. Shaw, e conhecê-la foi o que fez com que as<br />
coisas começassem a mudar entre Papai e Jean, e entre mim e Mamãe.<br />
Antes da moeda, se você perguntasse o que eu sabia sobre a srta.<br />
Shaw, eu teria me encolhido e reagido como se você estivesse louco.<br />
“Não sei nada sobre ela”, eu lhe teria dito, porque, afinal, garotas<br />
como eu não tinham motivos para falar com senhoritas como a srta.<br />
Shaw.<br />
Ninguém na vizinhança sabia muita coisa sobre a srta. Shaw. Embora<br />
eu e minha única amiga, Marianne Thompson, a tivéssemos<br />
visto cumprimentar os clientes com um sorriso caloroso como se ela
A <strong>Moeda</strong><br />
soubesse alguma coisa especial sobre eles, pessoas como nós nunca<br />
teríamos qualquer razão para colocar nossos pés dentro de uma<br />
joalheria. Então Marianne e eu simplesmente nos perguntávamos:<br />
ela enriqueceu ou ganhou esse dinheiro? Será que ela cresceu por aqui?<br />
Quantos anos tinha? Como conseguia manter o cabelo seco nos dias de<br />
chuva sem usar um guarda-chuva? E por isso mesmo, por ninguém<br />
saber de onde ela viera ou quem eram seus pais ou como chegara a<br />
ser proprietária de uma joalheria, ela era o mistério mais profundo<br />
das redondezas da Grand Avenue. E você sabe como todos gostam de<br />
falar sobre um mistério.<br />
“Aquela mulher só pode estar fazendo alguma coisa errada”, Papai<br />
comentava quando por acaso via a srta. Shaw passeando na calçada<br />
pelo centro da cidade com sua carteira debaixo do braço. Papai tinha<br />
uma desconfiança generalizada com relação a tudo o que se relacionava<br />
a mulheres que subiam na vida, e em especial nutria um desprezo<br />
gratuito pela srta. Shaw. “Afinal de contas, aquela mulher é responsável<br />
por todo esse falatório. Ela faz de tudo para chamar a atenção,<br />
do contrário não ficaria assim de boca fechada como costuma fazer.<br />
Tenho de dizer que ali está uma mulher cheia de arrogância e que age<br />
como se os outros não fossem bons o bastante para conhecê-la”.<br />
Apenas uma parte dos boatos que corriam pela vizinhança sobre<br />
a srta. Shaw não correspondia às histórias relacionadas à sua graça,<br />
beleza e superioridade. Marianne Thompson certa vez me garantiu<br />
que havia visto a srta. Shaw se esgueirando pelas sombras do cemitério<br />
da cidade. “Ela estava se escondendo entre as árvores”, Marianne<br />
insistiu; “e dava passos cautelosos em meio às folhas caídas de modo<br />
a não fazer qualquer som com seus saltos altos, ao mesmo tempo<br />
em que olhava em volta furtivamente a fim de se assegurar de que<br />
ninguém a estava observando”. “Ela procurava um túmulo”, disse<br />
Marianne, “e quando encontrou aquele que procurava, ele não tinha<br />
uma lápide”. Marianne havia visto a srta. Shaw se inclinar e retirar<br />
as folhas secas de um monte liso de terra e colocar a sua mão coberta<br />
por uma luva em cima daquele monte. “Ela deixou sua mão no chão<br />
por um longo tempo”, contou Marianne, “como se esperasse sentir o<br />
bater de um coração”.<br />
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Joyce Meyer e Deborah Bedford<br />
Estas eram as coisas que eu sabia sobre a srta. Shaw a partir da minha<br />
própria observação: ela chegava à Shaw Joalheiros antes das nove<br />
todas as manhãs, a fim de ter bastante tempo para polir os balcões e<br />
arrumar as pérolas dos pescoços sem cabeça na vitrine antes de abrir a<br />
loja. Usava escarpins que me faziam lembrar daqueles que eu havia visto<br />
uma vez quando Mamãe me levou ao mercado A&P, sapatos tipo<br />
princesa que podíamos comprar na seção de brinquedos, com joias de<br />
plástico em volta dos dedos e com solas tão duras e curvadas que seus<br />
pés ficavam arqueados como os de uma bailarina.<br />
Todas as vezes que eu a via, queria olhar para ela e observar como<br />
se comportava. Até hoje, aposto que a srta. Shaw equilibrava livros<br />
sobre a cabeça enquanto andava pela casa com aqueles lindos sapatos.<br />
E tem mais uma última coisa importante que eu sabia sobre ela.<br />
Ninguém nunca viu a srta. Opal Shaw sem suas luvas brancas de domingo,<br />
com os botões pequenos apertados contra a parte inferior macia<br />
de seus pulsos. Ela usava suas luvas quer estivesse contando recibos<br />
sujos de tinta, manobrando seu Cadillac conversível ou mostrando<br />
diamantes a um cliente. Mas o que você precisa saber é que o sul de<br />
St. Louis não é um lugar onde você gostaria de usar luvas brancas de<br />
domingo em qualquer outro dia da semana.<br />
Mas é melhor voltarmos à moeda.<br />
Foi naquele verão que conheci pela primeira vez os filmes de Grace<br />
Kelly, graças principalmente ao fato de que o cinema Cine Fox tinha<br />
ar refrigerado. O cartaz, em letras autorrelevo pintadas de branco parecendo<br />
neve e com pingentes em forma de gelo pendurados nas letras<br />
A e C, dizia: ar condicionado. Aquele cinema era tão sofisticado,<br />
que depois de pagar a entrada no guichê, você podia escolher entre<br />
uma dúzia de portas deslumbrantes aquela em que preferia entrar.<br />
Morávamos na parte superior de um apartamento de dois andares<br />
na Wyoming Street, em um bairro onde os prédios haviam sido<br />
construídos muito próximos uns dos outros. O que no princípio eram<br />
tijolos vermelhos, inclinados e cobertos de fuligem de carvão, agora<br />
eram tijolos marrons, cor de ferrugem. Quando o ar quente subia,<br />
nossos quartos pareciam um forno. O apartamento pertencia a Papai<br />
e poderíamos morar na parte de baixo se quiséssemos, mas sempre<br />
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A <strong>Moeda</strong><br />
que minha mãe perguntava por que não fazíamos isso, ele a lembrava<br />
que podia conseguir um aluguel mais alto se mantivesse os inquilinos<br />
nos quartos mais frescos localizados na parte de baixo.<br />
O humor da minha irmã mais velha era compatível com o calor<br />
daquele mês de julho. Jean andava pela casa tão inquieta quanto<br />
um lince rondando sua jaula no zoológico, e também quase tão mal-<br />
-humorada quanto ele. Podia-se quase ver a sala escurecer quando ela<br />
entrava pela porta.<br />
Jean era cerca de quatro anos mais velha que eu e havia se formado<br />
cedo. No ano em que iniciaria a alfabetização, o colégio não formou<br />
turmas, então a diretoria compensou esse problema separando os alunos<br />
inteligentes do terceiro ano pré-escolar daqueles que não iam tão<br />
bem, colocando-os em uma turma avançada. Jean agia como se tivesse<br />
ganhado o Prêmio Nobel ou algo parecido, mas tudo que ela tinha<br />
feito fora comparecer e ir aonde lhe mandavam. Além disso, se eu estivesse<br />
naquela turma, eles teriam me deixado na terceira série, e Jean<br />
sabia disso. Ela se gabava por estar progredindo o tempo todo. Acho<br />
que eu entendia a razão. Às vezes, para sobreviver à maldade de Papai,<br />
nós nos sentíamos melhor andando com nosso nariz empinado.<br />
As aulas de secretariado de Jean teriam início em dois meses. Ultimamente<br />
Mamãe havia começado a fazer sugestões inesperadas a Jean<br />
sobre me levar para sair: “Você vai trabalhar como secretária em breve,<br />
Jean, e não vai ter tempo para aproveitar a companhia de sua irmã”,<br />
Mamãe dizia com muito cuidado, como se estivesse pisando em ovos.<br />
Ainda assim, Jean me ignorava. Ela se jogava na cadeira próxima à<br />
janela e olhava para fora com os braços cruzados.<br />
Imagino que minha irmã e eu convivíamos como a maioria das<br />
irmãs. Eu sempre me sentia como se estivesse vivendo à sombra dela.<br />
Ela me disse mais tarde como a incomodava o fato de eu estar sempre<br />
grudada nela. Eu disse a ela que estava errada — eu apenas estava<br />
sempre tentando acompanhá-la para não ficar para trás.<br />
No dia da moeda, Jean tinha ficado emburrada outra vez porque<br />
Adele Middleton a havia convidado para passar a noite com sua família<br />
em um quarto refrigerado no Hotel Ambassador, mas, como<br />
sempre, Papai havia dito que não. Papai sempre dizia não a tudo. Só<br />
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Joyce Meyer e Deborah Bedford<br />
porque ele era infeliz, não sei por que achava que precisava fazer todos<br />
nós infelizes também.<br />
Mesmo quando minha irmã estava emburrada, Jean era tudo o<br />
que eu não era: alta e esbelta, com cabelos castanhos claros e olhos<br />
cor de avelã que tinham um tom esverdeado. Meus cabelos pareciam<br />
um punhado de grama cor de cortiça quando eu os amarrava em um<br />
rabo de cavalo. Os cabelos de Jean desciam por suas costas, lisos como<br />
uma fita.<br />
Quando ela perguntou “Por que eu não posso ir?”, senti um nó<br />
em minha garganta de medo, do mesmo jeito que acontecia quando<br />
Jean insistia com Papai. Ele nunca iria mudar. E minha irmã parecia<br />
destinada a ser aquela que estava mais disposta a provar da sua fúria.<br />
Eu queria agarrá-la e fazê-la ficar quieta, mas antes que conseguisse<br />
fazer isso, ela explodiu: “Por que não?”.<br />
Minha irmã e eu éramos muitas coisas uma para a outra: aliadas,<br />
rivais, cúmplices, inimigas. Em determinados dias nós nos tornávamos<br />
uma mistura indecifrável dessas quatro coisas. Enquanto eu observava<br />
Jean enfrentar Papai, sua bravura me deixava morrendo de<br />
medo e ao mesmo tempo me revirando de amor. Eu queria matá-la<br />
por ser tão tola.<br />
Quando Papai atravessou a sala em direção a ela, seu corpo volumoso<br />
se moveu com uma agilidade surpreendente. A raiva nos seus<br />
olhos verde-claros parecia ser capaz de atravessar minha irmã. Uma<br />
madeixa de seus poucos cabelos castanhos, que ele tentava manter<br />
penteada para trás da cabeça, caiu em sua testa. Seus lábios finos e<br />
desagradáveis franziram.<br />
“Se você me responder desse jeito, garota, e eu a jogo do outro lado<br />
da sala”.<br />
“Jean”. Peguei o aquário com o peixe dourado na mesa do café<br />
enquanto ele avançava em direção a ela. “Não”. Eu já sabia que não<br />
ajudaria nada chamar a Mamãe.<br />
Mas Jean, por sua vez, já estava exaltada demais para pensar em se<br />
proteger. “Você nunca nos deixa fazer nada”.<br />
E sem mais nem menos, Papai agarrou-a pelos cabelos com uma<br />
mão larga como a tábua de uma cerca e desfechou uma bofetada do-<br />
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A <strong>Moeda</strong><br />
lorosa em seu rosto. Ela foi jogada sobre a mesa do café, tentando se<br />
proteger com seu braço esquerdo, mas o soco de Papai em seu estômago<br />
a lançou ao chão. Quando ela ergueu os olhos, ele disse: “Nós não<br />
temos dinheiro para lugares como o Hotel Ambassador e você sabe<br />
disso. Pare de querer aquilo que não pode pagar”.<br />
Jean olhou furiosa para o Papai. Eu sabia o que ela devia estar pensando<br />
pelo brilho em seus olhos. Ora, é claro que temos dinheiro. Você<br />
gasta dinheiro o tempo todo.<br />
Foi um convite, eu quis gritar para ele, mas não tive coragem.<br />
Quando as pessoas nos convidam para fazer alguma coisa, elas não<br />
têm intenção de que você pague.<br />
O ventilador na janela não fazia nada além de deixar o ar sufocante<br />
ir de um lugar para outro. Desde que o calor começara, mal se podia<br />
ver carros ou pessoas na rua, nem mesmo no Parque Tower Grove.<br />
Sirenes soavam nas ruas. E Papai continuava.<br />
“Você vai apanhar toda vez que olhar para mim deste jeito. Está<br />
me ouvindo?”.<br />
Talvez não fosse certo pensar assim, mas eu ficava imaginando se<br />
poderia acontecer alguma coisa que o derrubasse no chão.<br />
“Vamos”. Jean agarrou minha mão com tanta força que os ossos<br />
das articulações foram esmagados uns contra os outros. “Podemos<br />
não ter o suficiente para o Ambassador, mas temos o bastante para um<br />
cinema, Jenny”. Eu sabia que ela estava me usando para se proteger<br />
do Papai, e isso fez com que eu me sentisse um pouco importante e<br />
me aterrorizou ao mesmo tempo. Eu me senti importante porque eu<br />
estava ajudando Jean. E estava assustada porque Papai podia muito<br />
bem me bater em seguida. “Está passando Janela Indiscreta”.<br />
Cutuquei o braço de Jean e tentei fazer com que ela olhasse para<br />
mim, mas ela não queria. Se olhasse nos meus olhos, uma de nós<br />
teria de admitir que Papai nos apavorava. Ninguém queria fazer isso.<br />
Era mais seguro manter a mente cheia de ideias sobre Grace Kelly e<br />
Jimmy Stewart; já havíamos visto Janela Indiscreta duas vezes.<br />
“E vocês não vão conseguir tirar os olhos da sua beleza radiante”, a<br />
voz no trailer anunciava com a respiração entrecortada. Eu havia visto<br />
aquilo tantas vezes, que já decorara as palavras. “Ela captura o coração<br />
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Joyce Meyer e Deborah Bedford<br />
e a curiosidade de James Stewart nesta história de um romance obscurecido<br />
pelo pavor de um segredo aterrorizante”.<br />
A delicada e sofisticada atriz em um safári com Clark Gable, a noiva<br />
pioneira que protegeu Gary Cooper em um tiroteio, não parecia<br />
tão notável para mim. Mas os filmes em que ela trabalhou representando<br />
garotas que alcançaram o sucesso mexiam com o meu interior<br />
como a lua toca o rio Mississipi.<br />
Era Jean quem copiava tudo de Grace Kelly, desde o cabelo que<br />
ela puxava para cima na forma de uma banana na nuca, até os óculos<br />
escuros que a faziam parecer glamorosa e misteriosa ao mesmo tempo,<br />
e também a echarpe que ela usava, ondulante como uma nuvem de<br />
primavera amarrada abaixo do queixo. Jean me deixava maluca com a<br />
maneira como ela deixava os pensamentos sobre Grace Kelly dominarem<br />
sua vida. Às vezes eu pensava que ia ficar louca se não parasse de<br />
falar sobre o sr. Kelly ter dado o apelido de graciebird para sua filha,<br />
ou sobre como no seu primeiro comercial ela aparecia usando um<br />
spray de inseticida em uma sala, ou sobre como, no início, a maioria<br />
dos diretores para os quais ela havia feito audições a haviam achado<br />
alta demais. Eu não aguentava mais ouvir a história a respeito da adolescência<br />
de Grace e de como ela se sentou no banco da frente de um<br />
conversível e dirigiu o carro segurando o volante com os pés.<br />
Eu estava revirando minha carteira, procurando a bolsa de moedas,<br />
pensando em como minha irmã me tirava do sério por não conseguir<br />
falar sobre nada além de Grace Kelly, quando Jean chegou e me arrastou<br />
pela escada estreita. “O bonde está chegando”, ela disse, enquanto<br />
eu virava os olhos na direção dos raios fortes de luz. Mas ela não<br />
precisava ter me dito aquilo. O alarme soou enquanto a porta abriu e<br />
Jean me empurrou pelos degraus. Fomos para a parte de trás comprar<br />
as passagens e nos jogamos nos assentos quentes e duros. Minha irmã<br />
cruzou as pernas, colocou os óculos escuros na testa e tirou um batom<br />
vermelhíssimo. Ela desenhou um círculo perfeito em torno de sua<br />
boca e o secou com papel. Quando ela abriu a bolsa para guardar o<br />
batom, captei o princípio do que seria o cheiro da Jean adulta: uma<br />
mistura de pó de arroz e lenço de papel com perfume fraco e colônia<br />
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A <strong>Moeda</strong><br />
Emeraude. Aquele perfume doce deixou minha cabeça doendo e meu<br />
estômago enjoado.<br />
Quando o bonde parou na frente da loja de departamentos<br />
Woolworth’s e descemos, Jean se apressou para atravessar a rua na minha<br />
frente a fim de entrar na fila e comprar as entradas. Mesmo daquela<br />
distância, eu conseguia ver a marca vermelha que a fúria de<br />
Papai havia deixado em sua bochecha. Ela logo se afastaria de nós. Eu<br />
mal conseguia respirar quando pensava em Jean saindo de casa e indo<br />
para a escola de secretariado.<br />
“O que você está olhando?”, ela pôs as mãos na cintura. “Vamos”.<br />
Geralmente, quando estávamos sozinhas em casa, quando Papai<br />
havia saído e Mamãe estava fora, e eu ficava doida para fazer confidências<br />
à minha irmã, eu pegava Jean olhando para mim como se<br />
lamentasse me conhecer. Talvez ela não gostasse muito da ideia de<br />
que, em razão do acontecimento inoportuno do meu nascimento, ela<br />
estava ligada a mim para toda a vida. Às vezes ela quase parecia achar<br />
que não havia problema em ter uma irmã. Outras vezes, ela deixava<br />
claro que não gostava de quem sua irmã era. Eu não podia fazer nada<br />
para mudar isso, além de desejar que ela tentasse me ver de forma diferente.<br />
Enquanto estávamos de pé na rua do lado de fora do cinema,<br />
eu pensava em como o humor de Jean podia me incomodar de vez em<br />
quando, mas eu queria ficar bem com ela. Ela era tudo que eu tinha.<br />
Foi quando o bonde elétrico tocou o alarme e deu a partida atrás<br />
de nós.<br />
Foi nesse exato instante que vi a moeda pela primeira vez.<br />
Foi naquele instante que a história realmente começou.<br />
A moeda estava no chão, com o lado com a inscrição do número<br />
voltada para cima, tão suja que estava quase invisível. Como eu disse,<br />
não estava acostumada a recolher moedas naquela época. Uma moeda<br />
é algo tão pequeno — nunca vale muito. Era uma moeda de um centavo.<br />
Olhei para ela, pisei nela, e segui em direção à minha irmã que<br />
esperava do lado de fora do teatro.<br />
Então o barulho da Grand Avenue silenciou. Volte, algo dentro de<br />
mim insistia. Não perca esta chance.<br />
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Joyce Meyer e Deborah Bedford<br />
Até hoje não posso deixar de imaginar o que poderia ter acontecido.<br />
E se eu tivesse pisado naquela moeda de um centavo e a deixado<br />
ali onde ela estava? Ou se eu tivesse me abaixado e apanhado a moeda<br />
logo de primeira sem parar para pensar, se Jean não tivesse se voltado<br />
para mim do caixa para gritar, se ela não tivesse me tratado com<br />
aquele jeito mandão (“Está bem Jenny, vamos lá — não faça isso. Isso<br />
é nojento, pegar coisas na rua. Você vai lavar as mãos antes de pegar<br />
qualquer coisa no bar!”), será que tudo teria acontecido da mesma<br />
maneira?<br />
Mas eu realmente passei por cima da moeda, a princípio. Quando<br />
algo sussurrou pegue-a, Jenny. Pequenas coisas fazem uma grande diferença,<br />
meu coração quase parou de bater. E eu soube sem dúvida<br />
alguma. Tão certo quanto se alguém de confiança tivesse sussurrado<br />
em meu ouvido.<br />
Este momento tem algo a ver com o seu destino.<br />
Foi uma questão de segundos até eu voltar. Segundos que, como descobri<br />
mais tarde, mudariam tudo.<br />
O cobre havia deixado sua forma no asfalto derretido. Abaixei-me<br />
— ainda posso ver com os olhos da minha mente — e usei minhas<br />
unhas para retirar a moeda quente do asfalto. Lembro-me de ter me<br />
levantado, com a moeda marcando a palma da minha mão bem ali<br />
no meio da Grand Avenue. E foi quando a cadeia de acontecimentos<br />
misteriosos começou.<br />
Tudo começou quando o caminhão de laticínios da Pevely Dairy<br />
freou para não me atropelar. Isso fez com que as garrafas, tanto as vazias<br />
quanto as cheias, tombassem de lado. Uma dúzia mais ou menos<br />
caiu na rua e quebrou fazendo um barulho estridente.<br />
Vidros voaram. Garrafas de leite se espatifaram no chão. Depois,<br />
a porta da loja de artigos tipo 1,99 abriu, e uma mulher que puxava<br />
seu bebê em um carrinho saiu exatamente quando as últimas três garrafas<br />
caíam. “Oh, meu Deus”, disse a mulher, empurrando o carrinho<br />
em direção ao prédio, protegendo sua criança do que deve ter soado<br />
19
A <strong>Moeda</strong><br />
como o “ataque dos cacos assassinos do espaço”. Então, quando ela se<br />
virou, bateu sem querer em Bennett Mahaffey, que por acaso estava<br />
indo para casa com seu disco favorito, That’s All Right (Mama), de<br />
Elvis Presley, debaixo do braço.<br />
O impacto atingiu Bennet com tanta força que fez com que o<br />
disco pulasse de seu braço. Quando o disco atingiu a calçada ele caiu<br />
da beirada e começou a rolar ladeira abaixo na direção de todos que<br />
estavam esperando na fila do guichê do cinema.<br />
Bennett decolou atrás de seu disco.<br />
Ele não estava exatamente correndo, porque não é possível correr<br />
atrás de uma coisa que está girando em um círculo completo, depois<br />
em semicírculos, até começar a cair no chão. Ele saltou atrás dele com<br />
os braços abertos e os joelhos dobrados, na tentativa de agarrá-lo todas<br />
as vezes que ele se aproximava, como se That’s All Right (Mama) pudesse<br />
realmente ficar girando daquele jeito e não ter nenhum arranhão.<br />
Agora, há algo sobre a srta. Shaw que eu não sabia — e só fui saber<br />
bem mais tarde. Todas as quartas-feiras após as cinco da tarde, independentemente<br />
de estar nevando em St. Louis ou caindo uma tempestade<br />
ou de estar quente como um forno, a srta. Shaw rearrumava as vitrines.<br />
A Joalheria Shaw ficava próxima ao cinema, com a porta da frente sombreada<br />
por um toldo verde com letras prateadas, com as bordas enfeitadas<br />
do toldo levantando-se a mais leve brisa. Qualquer pessoa que se<br />
importasse em observar poderia ver as mãos enluvadas da srta. Shaw<br />
trabalhando, retirando um colar aqui, uma pulseira ali, posicionando<br />
um par de brincos, empurrando um anel mais para o centro.<br />
A srta. Shaw trabalhava religiosamente por algum tempo, arrumando<br />
pedras preciosas, alinhando correntes, combinando cores.<br />
Ocasionalmente ela saía para olhar as vitrines, inclinando a cabeça,<br />
avaliando o seu talento artístico. Toda vez que a srta. Shaw saía, ela<br />
levava um pano de polir no bolso e colares enrolados em volta de suas<br />
luvas, olhando para ver se um deles tornaria a vitrine mais atraente.<br />
Acontece que naquele dia em especial, Pete Mason viu a srta. Shaw<br />
olhando suas vitrines, de onde ele estava sentado, em um banco do<br />
outro lado da rua. Na verdade, como disse mais tarde, ele observou<br />
tudo: o caminhão de laticínios, o momento em que o carrinho de<br />
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Joyce Meyer e Deborah Bedford<br />
bebê bateu, a multidão comprando entradas para o cinema. Ele observou<br />
o estranho medindo os passos desde o meio-fio, traçando uma<br />
linha reta até a srta. Shaw. Ele observou a destreza planejada das mãos,<br />
a retirada dos colares da luva da srta. Shaw, e a escapulida para se proteger<br />
em meio à multidão junto à bilheteria.<br />
“Ei!”, gritou a srta. Shaw, surpresa demais para fazer qualquer outra<br />
coisa.<br />
Foi assim que Pete Mason entrou no meio da multidão e foi ao<br />
encalço do ladrão. Foi assim que Bennett Mahaffey, que entregava<br />
equipamentos para a loja de departamentos Stix, Bauer & Fuller e<br />
que era um homem do tamanho de uma caixa de gelo pequena, conseguiu<br />
se abaixar para agarrar com êxito seu disco bem na hora em<br />
que o meliante em fuga, ao olhar para trás para medir a distância de<br />
Pete, tropeçou nele. Bennett soltou um “ughhh” com a respiração que<br />
parecia um pneu estourando. O ladrão deu um salto mortal e caiu no<br />
chão. A srta. Shaw correu até a bilheteria do cinema em cima dos seus<br />
sapatos de salto fino. O homem atrás do balcão gritou: “Mais algum<br />
ingresso para Janela Indiscreta?”.<br />
“Isto é seu?”, Pete recolhia os colares que haviam voado e caído na<br />
calçada. Ele os limpou usando um lenço bordado com seu monograma.<br />
“Sim”. A srta. Shaw estendeu a mão enluvada. “Muito obrigada”.<br />
Tudo aconteceu diante de mim, se desenrolando como um sonho onde<br />
nada está ligado, mas, no fim, as peças se encaixam de alguma forma.<br />
“Você viu aquilo?”, corri para o lado de minha irmã, sabendo que<br />
ela devia ter percebido alguma coisa.<br />
“O quê?”.<br />
“O caminhão”. Apontei na direção das garrafas quebradas na rua.<br />
“A srta. Shaw e seus colares”. Apontei na direção oposta para o toldo<br />
verde. Fechei os dedos sobre a moeda, que já havia esfriado em minha<br />
mão. Um momento para definir o meu destino.<br />
Foi quando vi Pete Mason fazer um sinal com a cabeça em minha<br />
direção. A srta. Shaw olhou na minha direção e soltou um sorriso<br />
caloroso e curioso.<br />
“Jenny Blake”, Jean ordenou, sem se dar conta de tudo que havia<br />
acontecido, “se você não vier aqui, vamos perder os trailers outra vez”.<br />
Ela estava emburrada, como sempre.<br />
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