13.04.2013 Views

1 Continuidade e descontinuidade: o debate ao ... - Viverpontocom

1 Continuidade e descontinuidade: o debate ao ... - Viverpontocom

1 Continuidade e descontinuidade: o debate ao ... - Viverpontocom

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Continuidade</strong> e<br />

<strong>descontinuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong><br />

longo da história da igreja<br />

13<br />

1<br />

Rodney Petersen<br />

A<br />

primeira pergunta na interpretação da Escritura que o<br />

cristão, após reconhecer o senhorio de Jesus Cristo, faz,<br />

é como relacionar as Escrituras hebraicas com o “Novo”<br />

Testamento. 1 Muitas divisões entre igrejas cristãs surgem das<br />

diferentes maneiras de compreender esse relacionamento. Isso<br />

foi o que aconteceu nos primeiros anos da igreja. Foi um assunto<br />

tratado durante a Reforma, bem como em períodos posteriores e<br />

recentes de reavivamento da igreja.<br />

Nossa pergunta é a que foi feita por Filipe <strong>ao</strong> eunuco etíope:<br />

Compreendes o que vens lendo? (At 8.30). Foi a dos dois discípulos<br />

na estrada de Emaús (Lc 24.13-49). Precisaríamos reformulá-la hoje.<br />

Por exemplo: A crise de saúde gerada pela aids é uma praga lançada<br />

sobre a sociedade moderna por um Deus indignado? O clamor por


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

liberdade e justiça feito pela população negra da África do Sul tem<br />

semelhanças com o clamor dos hebreus sob a tirania egípcia? Tem<br />

Israel o direito profético à Palestina que exclui total concessão à<br />

população árabe?<br />

A resposta de Filipe foi direcionar o etíope para Cristo.<br />

Nesse ponto o enigma do AT deve ser compreendido. No final das<br />

contas essa é a resposta da igreja à relação entre os Testamentos.<br />

É muito mais do que isso, mas temos de começar aqui. A Escritura<br />

registra Jesus tratando a tradição apontando para si mesmo (Jo<br />

5.39). Ele e sua missão se ocuparam do cumprimento de conceitos<br />

fundamentais das Escrituras hebraicas. Além disso, não somente<br />

algo se cumprira nele, como um novo período da história havia<br />

começado (Lc 4.16-21). Finalmente, Jesus traçou uma distinção<br />

entre a vontade de Deus, em nome da qual ele pareceu falar diretamente,<br />

e o que havia sido autorizado pela tradição (p. ex., Mc<br />

10.2-12). Todavia, quase paradoxalmente, Jesus manteve um ponto<br />

de vista rigoroso; toda a lei devia ser cumprida. Sua vigência<br />

continuou (Mt 5.18; Lc 16.17), mas foi humanizada e aprofundada<br />

pela lealdade a ele. 2<br />

Esses três temas são encontrados nos Evangelhos. Eles<br />

aparecem na primeira pregação cristã em Atos. Entretanto,<br />

pode-se argumentar que a primeira consideração metodológica<br />

dada a eles, quando abordam nossa questão, veio do apóstolo<br />

Paulo. A resolução da revelação em duas dispensações, cada uma<br />

com sua própria “lei” relacionada a Cristo, vem primeiro como um<br />

dom de Deus (2Co 4.3,4). Isso foi sugerido por Jesus (Mc 4.9-12). É<br />

um princípio seguido pela igreja, especialmente em discernir os<br />

significados mais profundos do texto à medida que eles provêm da<br />

inter-relação dos Testamentos. Em segundo lugar, Paulo argumenta<br />

explicitamente em Gálatas e em Romanos que toda a Escritura<br />

aponta para Cristo. Deus é seu autor formal; Cristo, a mensagem<br />

material. Finalmente, a natureza do relacionamento entre a antiga<br />

e a nova dispensações, frequentemente entendida como tipo ou<br />

alegoria, é apresentada claramente por Paulo em referência <strong>ao</strong>s<br />

filhos de Abraão, Ismael e Isaque, nascidos de Hagar e Sara (Gl<br />

4.21-31). 3<br />

O argumento de Paulo em Gálatas, ampliado mais livremente<br />

pelo autor do livro de Hebreus, traz duas considerações relevantes<br />

em relação <strong>ao</strong>s Testamentos. Em primeiro lugar, ele oferece uma<br />

hermenêutica ou metodologia para a interpretação da Escritura. Em<br />

14


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

segundo lugar, algo é dito a respeito do movimento da história que<br />

gera uma compreensão da inter-relação dos Testamentos. Ambas<br />

as questões são de interesse direto quando indagamos como vários<br />

pensadores da história da igreja procuraram compreender a relação<br />

entre o AT e o NT.<br />

os pais apostóliCos e os apologistas<br />

Os Testamentos começam a tomar sua forma canônica no<br />

século I. Documentos provenientes da origem do cristianismo logo<br />

apareceram juntos com e depois do estabelecimento da igreja. O<br />

surgimento do cristianismo como religião distinta do judaísmo<br />

e a destruição do segundo templo em 70 A.D. estimularam a formulação<br />

do protótipo para o Texto Massorético. Isso, junto com a<br />

Septuaginta e outras variantes, tornou-se o “Antigo” Testamento<br />

cristão. A Septuaginta, considerada a versão usada por Jesus e pela<br />

igreja primitiva, foi a forma padrão do AT para quase todos os pais<br />

da igreja até o século IV. Em seguida <strong>ao</strong> término da Vulgata Latina,<br />

por Jerônimo, os cristãos foram supridos com uma versão padronizada<br />

do AT baseada nos textos grego e hebraico, e isso se estendeu<br />

pelos mil anos seguintes. 4<br />

Esses são os documentos com os quais os pais apostólicos<br />

e os apologistas trabalharam. Inicialmente, a interpretação deles<br />

ofereceu pouco senso de perspectiva histórica para a questão dos<br />

Testamentos. Reconhecido como importante, o AT tornou-se um<br />

manual para o comportamento moral, e suas imagens, um protótipo<br />

para a igreja cristã ou um repositório de imagens proféticas e alegóricas.<br />

Para alguns não passou de um livro “cristão” mal compreendido<br />

pelos judeus, por causa do excessivo literalismo ou carnalidade.<br />

Por exemplo, 1 Clemente usa o AT como uma fonte para<br />

o comportamento cristão (XIX). Seu culto é um protótipo para o<br />

ministério e o serviço religioso adequado (XLII–XLIII). A Epístola<br />

de Barnabé encontra significado no AT num sistema de imagens ou<br />

tipos (VII–XII) que são pano de fundo para o evangelho. Há pouco<br />

senso de história como tal. Os judeus, também pegos no literalismo<br />

histórico, fracassaram em ver Cristo. Uma satânica influência obscureceu<br />

a visão deles. De acordo com a polêmica de Barnabé, a carnalidade<br />

deles tem um pouco do anticristo sobre ela (II–IV). Eles<br />

perderam as promessas da aliança para uma melhor compreensão<br />

dos cristãos (XIII).<br />

15


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

Existe algum senso de perspectiva histórica em Justino Mártir<br />

(c. 100-c.160). Em sua Primeira apologia ele oferece um esquema um<br />

tanto completo de profecia e cumprimento (p. ex., XXXI, XLIX). Seu<br />

Diálogo com Trifão apresenta um incipiente federalismo: os cristãos<br />

são chamados da mesma forma que Abraão (CXIX). Entretanto, o AT<br />

ainda parece mais um livro cristão do que judeu (Trifão, XI–XIV). Há<br />

também uma percepção de que todas as testemunhas de Deus foram<br />

cristãs, seja pelo judaísmo (VIII) ou pela cultura grega (no caso de<br />

Platão, p. ex., LIX–LX). Justino tem uma percepção razoavelmente<br />

bem definida de figuras e imagens que prenunciam a verdade cristã<br />

mais completa, uma ideia propositadamente desenvolvida por um<br />

contemporâneo, Mileto de Sardes. Entretanto, é Ireneu (c. 130-c.<br />

200) que começa a oferecer reflexão histórica mais profunda sobre<br />

a questão do inter-relacionamento dos Testamentos. Em Contra as<br />

heresias, Ireneu argumenta que Deus vem a nós de duas maneiras:<br />

na história e por meio de seu Filho. A Escritura esboça os caminhos<br />

pelos quais a Trindade se manifesta gradativamente a nós (IV, 22).<br />

A ordem e o contexto de eventos se relacionam com estágios do<br />

desenvolvimento da humanidade (IV, 13-15). O AT, cheio de imagens<br />

e tipos, aponta o caminho na direção da revelação mais completa de<br />

Deus, que é Cristo (IV.10.26). É também usado para dar orientação<br />

em descrever a futura felicidade do milênio na terra (V) subsequente<br />

à segunda vinda de Cristo (de acordo com Justino Mártir, Hipólito e<br />

Tertuliano). Ireneu rebateu a especulação gnóstica dizendo que foi<br />

o mesmo Deus que veio até nós em Cristo, bem como em diferentes<br />

períodos da história (IV, 5, 12), e posteriormente estabeleceria<br />

seu reino tangível. Os argumentos de Ireneu irão influenciar tanto<br />

as questões hermenêuticas como as questões de evolução histórica,<br />

à medida que estas surgirem das tentativas de inter-relacionar os<br />

Testamentos. 5<br />

Nem todos no século II viram a relevância do AT em relação<br />

<strong>ao</strong> NT. Os mestres que se opunham a Ireneu viram pouca necessidade<br />

da antiga revelação. Marcião do Ponto († c. 160), um dos<br />

mais famosos, desenvolveu um plano de salvação gnóstico que<br />

argumentava sobre uma dicotomia radical entre a velha e a nova<br />

dispensações. Seu sistema teológico, construído com base em<br />

um dualismo sistemático, postulava dois deuses, o deus da lei<br />

e da antiga revelação e o deus do evangelho, pai de Jesus Cristo.<br />

Geralmente, estes eram opostos, ou seja, um deus bom e um deus<br />

mau. A história e a materialidade foram denegridas. A salvação era<br />

16


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

totalmente espiritual – e apenas para o intrinsecamente espiritual.<br />

O “cânon” de Marcião consistia em versões das epístolas paulinas e<br />

do evangelho de Lucas. Seu centro se baseava numa leitura espiritual<br />

de Romanos e Gálatas. Entretanto, até mesmo esses livros foram<br />

editados em partes (p. ex., Rm 9–11). Outros mestres gnósticos como<br />

Valentino e Ptolomeu divulgaram sistemas de salvação semelhantes,<br />

porém menos radicais. Uma frase utilizada por alguns estudiosos<br />

para identificar esse período é: “a verdadeira batalha no século II<br />

centrou-se em torno da posição do Antigo Testamento”. 6<br />

os teólogos<br />

Uma forma de lidar com os textos problemáticos levantados<br />

pelos gnósticos ou oponentes filosóficos do cristianismo foi olhar<br />

para um significado mais profundo da Escritura sem negar por<br />

completo o texto literal. Essa é uma metodologia que encontramos<br />

nos escritos daqueles que são geralmente chamados de teólogos<br />

e que o trabalharam com nossa questão, no século III. Eles foram<br />

geralmente orientados por duas “escolas” de teologia: uma localizada<br />

em Alexandria e a outra em Antioquia. Ambas entendiam<br />

o AT como um documento histórico, a obra do mesmo Espírito<br />

divino presente no NT. Ambas concordavam em certos eventos<br />

fundamentais e na forma nas quais estes prenunciavam Cristo e<br />

a igreja (Adão e Moisés eram tipos de Cristo, e a arca, um tipo da<br />

igreja). Ambas acreditavam que o novo estava contido no antigo.<br />

As diferenças apareceram na maneira pela qual a nova revelação<br />

era detectada na antiga e no tipo de independência que a primeira<br />

tinha à luz da nova.<br />

A “escola” doutrinadora localizada em Alexandria encontrou<br />

na exegese alegórica uma forma de tornar o AT um livro cristão.<br />

O teólogo e exegeta Orígenes (c. 185-c. 254) foi o precursor. Os<br />

princípios que orientaram o trabalho de Orígenes foram estabelecidos<br />

pelo exegeta judeu Filo de Alexandria (c. 20 a.C. - 54 A.D.). Na<br />

tentativa de acomodar as Escrituras judaicas <strong>ao</strong>s cânones helenísticos<br />

de conhecimento, Filo defendeu a importância de uma interpretação<br />

espiritual ou alegórica mais profunda por trás da história<br />

ou da letra do texto. Um texto que não dizia nada de valor a respeito<br />

de Deus, que apresentava dificuldades ou contradições, ou que era<br />

evidentemente alegórico por natureza, tinha de receber essa compreensão<br />

espiritual aprofundada. 7<br />

17


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

Esse método, usado por Clemente de Alexandria (155-c. 220),<br />

foi melhor desenvolvido por Orígenes com respeito às Escrituras<br />

cristãs. A interpretação histórica ou literal sempre foi fundamental.<br />

Entretanto, o AT em particular estava cheio de enigmas. Era uma<br />

alegoria ou símbolo espiritual. O significado – e de certo modo a<br />

nova dispensação – estava oculto no antigo com discutível consideração<br />

pela história. Foi trabalho do exegeta encontrar o significado<br />

espiritual. A influência de Orígenes foi ampla. Ela não somente<br />

aprofundou a perspectiva teológica de sua própria época, embora<br />

com significativas imperfeições, como também se tornou a base<br />

para muita exegese medieval, na medida em que buscava encontrar<br />

diferentes compreensões figurativas do texto construído sobre sua<br />

superfície ou sentido literal. Esse sistema deu esperanças para uma<br />

aprofundada apropriação teológica da Escritura. O AT e o NT foram<br />

mostrados para apresentar os mesmos ensinos; somente o estilo de<br />

conhecimento deles foi diferente. As imperfeições desse método<br />

repousam na perda da realidade histórica e na abertura de brechas<br />

para o desenvolvimento de um sistema espiritual imaginário de<br />

salvação promovido posteriormente por pensadores gnósticos que<br />

o estenderam <strong>ao</strong> NT. 8<br />

O alegorismo encontrou oposição nos teólogos associados à<br />

“escola” exegética encontrada em Antioquia da Síria. O formato desse<br />

movimento é visto em pensadores como Luciano († 312), Diodoro<br />

de Tarso (c. 330-c.390), e especialmente Teodoro de Mopsuéstia (c.<br />

350-428). Diodoro oferece uma definição mais penetrante de alegoria<br />

(Gl 4.24), mais adequadamente denominada “tipologia”, indicando<br />

a direção de interesse entre esses comentaristas no sentido de<br />

discernir uma relação mais forte entre os Testamentos. Esse relacionamento<br />

foi visto como correspondência, não simplesmente simbolismo.<br />

Acreditava-se estar presente na própria Escritura (Is 51.9-16;<br />

Gl 4.24). Eventos e pessoas numa revelação anterior eram “tipos”<br />

das que apareceriam depois. Dessa forma, o significado espiritual<br />

e o sentido histórico do texto estavam intimamente ligados. Pela<br />

percepção (theoria) podia-se discernir tanto a realidade histórica<br />

quanto o propósito espiritual de um texto colocado dentro de um<br />

quadro mais claro da evolução gradual da revelação (verdade mais<br />

completa sobre Cristo é encontrada nos Evangelhos, não numa interpretação<br />

do AT). Isso teve a vantagem de oferecer uma compreensão<br />

mais integral da unidade da Bíblia. A alegoria pareceu perder isso<br />

por associações não confiáveis ou desautorizadas. 9<br />

18


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

Teodoro de Mopsuéstia fez mais para esclarecer o pensamento<br />

antioqueno, separando textos da Escritura que se aplicavam<br />

somente à história daqueles que continham um elemento preditivo.<br />

Ele chegou a ponto de dizer que Cantares, normalmente entendido<br />

como uma alegoria entre Cristo e a alma ou a igreja, foi escrito por<br />

Salomão para celebrar seu casamento com uma princesa egípcia.<br />

Embora Teodoro não negasse a interpretação alegórica, sua obra<br />

sustentou claramente a sugestão e levantou a questão acerca da<br />

possibilidade e do modo em que se deve separar na história a área<br />

sagrada e a secular, um assunto que realçava a preocupação cristológica<br />

com o nestorianismo. 10<br />

Tanto Alexandria como Antioquia aprofundaram as perspectivas<br />

teológicas sobre o inter-relacionamento dos Testamentos.<br />

Entretanto, na primeira isso aconteceu às expensas da história, e na<br />

segunda, às custas do mistério ou da espiritualidade. O alegorismo,<br />

mostrado em teólogos tão eminentes como Cirilo de Alexandria<br />

e os pais capadócios, no Oriente, e Hilário de Poitiers e Ambrósio<br />

de Milão, no Ocidente, afetou a exegese medieval de uma forma<br />

dominante. As ideias desenvolvidas em torno de Antioquia forneceram<br />

a perspectiva para a pregação de João Crisóstomo (c. 347-407).<br />

Elas influenciaram também Jerônimo e outros doutores da igreja,<br />

que, não obstante, muito deveram <strong>ao</strong> alegorismo de Alexandria. Os<br />

princípios articulados por Antioquia continuaram a testemunhar a<br />

importância da história e se tornaram influentes, de uma forma mais<br />

dominante, nos anos da Reforma Protestante.<br />

os doutores da igreja<br />

De acordo com Tertuliano, os teólogos do século III ilustraram<br />

a harmonia existente entre os Testamentos. Isso foi estabilizado e<br />

fixado com autoridade por quatro teólogos no século seguinte que<br />

deram liderança à igreja. Três – Jerônimo, Agostinho e Gregório, o<br />

Grande – são de interesse para nós. Eles são também importantes<br />

no sentido de que completam um processo de redefinição espiritual<br />

do milênio, iniciado com Orígenes, segundo o qual as promessas de<br />

Deus dadas a Israel serão aplicadas à igreja.<br />

Encontramos o nome de Jerônimo (c.342-420) ligado <strong>ao</strong> traba -<br />

lho de dar forma <strong>ao</strong> AT. Jerônimo se destacou mais do que Orígenes,<br />

Atanásio ou Rufino na defesa da Bíblia hebraica e na divisão da<br />

19


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

literatura hebraica e da Septuaginta, disponível para a igreja, numa<br />

dupla classificação: literatura canônica e apócrifa. Jerônimo sugeriu<br />

a natureza secundária dos livros que formaram a literatura apócrifa,<br />

recomendando que ficassem entre os Testamentos, mas que fossem<br />

usados para a edificação moral, não como doutrina. Muitas de suas<br />

sugestões, como a segregação do cânon dos apócrifos, não foram<br />

colocadas em prática até o tempo da Reforma. Autor de numerosos<br />

comentários bíblicos, Jerônimo recebeu influência de Orígenes. Ele<br />

deu uma interpretação espiritual a muito do AT, buscando alinhá-lo<br />

com o NT, e, por meio disso, tratou de aparentes antropomorfismos,<br />

inconsistências e erros. Seus comentários sobre Oseias e Apocalipse<br />

revelam certa dificuldade com o primeiro e temor do literalismo<br />

judaico no último. No fim da vida, cresceram as dúvidas de Jerônimo<br />

quanto a Orígenes e <strong>ao</strong> alegorismo em geral. 11<br />

Agostinho (354-430) domina o período. Sua compreensão da<br />

Escritura e perspectiva da história darão forma à igreja medie val.<br />

Vários estágios marcaram a passagem de Agostinho à fé em Cristo.<br />

Cada um deles deixou sua marca sobre a interpretação do texto. No<br />

começo, submetido pelos arcaísmos e infelicidades do tex to, Agostinho<br />

foi impelido para o dualismo maniqueísta com a denegação do AT.<br />

Isso foi seguido por um período de ceticismo acadêmico anterior<br />

<strong>ao</strong> seu despertar cristão (386), o qual foi estimulado pelo neoplatonismo<br />

de Ambrósio de Milão (c. 339-397). A interpretação alegórica<br />

de Ambrósio ajudou Agostinho a aceitar a Escritura sem dificuldade.<br />

Em sua própria obra, Agostinho fazia uso frequente do alegorismo.<br />

Esse tom sobre o valor espiritual do texto (2Co 3.6) enfatizava<br />

a verdade subjacente por trás dos símbolos de expressão. Essa<br />

verdade podia ser vista por meio de múltiplos significados no texto,<br />

dados pelo Espírito e discernidos pelo exegeta espiritual.<br />

O neoplatonismo aparente na obra inicial de Agostinho seria<br />

desafiado em suas premissas filosóficas em virtude do grande<br />

respeito desse teólogo pela Escritura. As palavras da Escritura,<br />

sinais que apontavam para a única coisa verdadeira (Deus), foram<br />

necessárias desde a queda. Somente elas davam conhecimento verdadeiro<br />

do caminho para Deus e, daí, à plenitude do amor. A importância<br />

do texto da Escritura, junto com o crescente corpo da igreja<br />

de conclusões metafísicas, foi ordenada por Agostinho, que adotou<br />

as regras de interpretação de Ticônio. Estas buscaram relacionar a<br />

Bíblia toda a Cristo, à igreja ou a seus opostos. Agostinho resumiu<br />

seu ponderado pensamento hermenêutico na obra Sobre a doutrina<br />

20


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

cristã (427), um texto que se tornaria o guia hermenêutico padrão<br />

para os mil anos seguintes. Como ele escreveria em outra parte: “O<br />

NT está escondido no AT, e no NT o AT está revelado”. 12<br />

Da experiência pessoal de Agostinho e da compreensão da interrelação<br />

dos Testamentos cresceu uma visão da história, esboçada em<br />

A cidade de Deus (XV–XXII), que moldaria a vida da igreja. Agostinho<br />

percebeu na Escritura uma linha progressiva da his tória divina e da<br />

profecia movendo-se por meio de uma série de períodos históricos e<br />

culminando no período de Cristo, o sexto período da igreja. Ao longo<br />

desse tempo existiram dois grupos de pessoas que formavam duas<br />

cidades – uma dedicada <strong>ao</strong> amor deste mundo. A outra, a Deus. O<br />

último período histórico, o da igreja, continuaria até o dia do julgamento.<br />

Agostinho, <strong>ao</strong> lutar com o entendimento tradicional do<br />

milênio (Ap 20.3), um tempo em que as promessas a Israel seriam<br />

realizadas, rejeitou o que sentiu ser o literalismo crasso de muitos<br />

de seus predecessores. Em vez disso, ele seguiu Orígenes, oferecendo<br />

uma interpretação espiritual. Foi o tempo simbolizado pela<br />

vida presente da igreja, experimentada por aqueles que, tendo<br />

aceitado a Cristo, vivem sob sua influência geral. Esse milênio<br />

espiritualizado diferiu em suas implicações políticas das ideias<br />

antes apresentadas por Eusébio de Cesareia (c.260-c. 340), no<br />

Oriente cristão. Ali, as promessas dadas a Israel pareciam ser mais<br />

imediata e diretamente aplicáveis à existência do império eclesial<br />

já estabelecido. 13<br />

Agostinho argumentou que a Escritura é melhor compreendida<br />

dentro da igreja. A disposição impositiva aqui promovida<br />

oferecia pouco espaço para mais exploração exegética, pelo menos<br />

no futuro imediato. A atitude predominante foi resumida por Vicente<br />

de Lérins († c. 450) em seu Commonitorium [O Comunitório]: “Quod<br />

ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” (O que é crido<br />

em toda parte, sempre, e por todo mundo). A obra exegética de<br />

Jerônimo, a teologia de Agostinho e o propósito moral encontrado<br />

nos comentários de Gregório, o Grande (c. 540-604) conferiram<br />

uma marca confiável para uma visão geralmente alegórica do AT<br />

em relação <strong>ao</strong> NT e um senso suavemente progressivo da história.<br />

O AT tornou-se frequentemente um repositório de instrução moral<br />

e fonte de informações de textos comprobatórios, proféticos e alegóricos<br />

para a verdade do cristianismo. Esse estilo de interpretação<br />

é particularmente evidente nos comentários de Gregório sobre Jó,<br />

Ezequiel, 1 e 2Reis e partes dos Evangelhos. 14<br />

21


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

a idade Média<br />

Uma exegese geralmente espiritual ou alegórica com propósitos<br />

morais proveu, então, a forma aceitável pela qual os Testamentos<br />

deveriam se relacionar. Quatro “sentidos” da Escritura (literal,<br />

alegórico, tropológico e anagógico), definidos primariamente por<br />

Orígenes e Agostinho, foram separados da “letra” e do “espírito”<br />

do texto e perceptíveis em João Cassiano († 435). Estes dominariam<br />

a exegese medieval, particularmente no que se refere <strong>ao</strong> AT<br />

em relação <strong>ao</strong> NT. Isso pode ser visto nas palavras de importantes<br />

comentaristas medievais como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Beda,<br />

o Venerável (c. 673-735), e Ambrósio Autperto († 781). Durante a<br />

Idade Média essa tradição tornou-se diferenciada e regularizada<br />

em modos monásticos e escolásticos de reflexão teológica. Embora<br />

frequentemente mescladas, a teologia monástica buscava na Bíblia<br />

um texto para a vida litúrgica e devocional. A implicação disso é<br />

que os vários níveis espirituais de significado na Bíblia foram ressaltados<br />

como ajudas à vida moral. A teologia escolástica, impulsionada<br />

pela curiosidade e pelo questionamento dialético, fez maiores<br />

exigências filosóficas sobre o texto. Tal teologia se defrontaria mais<br />

diretamente com o problema de outras fontes de conhecimento e<br />

como essas fontes desafiariam um ou ambos os Testamentos. 15<br />

O período carolíngio trouxe um despertamento <strong>ao</strong>s estudos<br />

bíblicos. Entretanto, somente no século XVII começamos a encontrar<br />

coisas de interesse à nossa pergunta. Por exemplo, o desenvolvimento<br />

da teologia monástica na obra de indivíduos como Rupert de Deutez<br />

(c. 1075-1129/30), Bernardo de Clairvaux (1090-1153), Ricardo de São<br />

Vítor († 1173), Joaquim de Fiore (1132-1202) e Boaventura (c. 1217-<br />

1274) mostra uma aprofundada interpretação espiritual da Escritura,<br />

que une os Testamentos por meio da elaborada figurae para ilustrar<br />

o movimento de tempo em direção <strong>ao</strong> julgamento final concomitante<br />

com as virtudes adequadas a cada período da história. Quando a<br />

teologia escolástica atingiu certo ápice em Tomás de Aquino, o mesmo<br />

aconteceu em relação à teologia monástica com referência à história<br />

em Joaquim de Fiore e com respeito à alma, em Boaventura. Joaquim<br />

é de particular interesse. Seu elaborado plano de tipos e figuras do<br />

AT foi composto por uma grade semelhante, discernida no livro de<br />

Apocalipse, para criar uma explosiva visão tripartida da história. Isso<br />

aniquilou os grupos ortodoxos e dissidentes que criam na iminência<br />

do milênio na Reforma e durante seu período. 16<br />

22


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

O desenvolvimento da teologia escolástica pode ser reconhecido<br />

desde as leis carolíngias, de acordo com as quais as catedrais<br />

tinham a incumbência de prover educação para o clero de sua<br />

diocese. Seu aspecto é claramente discernível a partir do século XIV.<br />

Sem investigar seu desenvolvimento, é suficiente notar que a partir<br />

desse ponto as interpretações do texto da Escritura ficam reunidas<br />

nos comentários da primeira sentença, ou teologias, das quais as<br />

Sentenças de Pedro Lombardo (1100-1160) são notáveis. Além da<br />

Bíblia, fontes de conhecimento cada vez mais crescentes ocasionaram<br />

questionamento mais profundo do texto. A crítica dialética de<br />

Pedro Abelardo (1079-1142) representa essa evolução. Um interesse<br />

específico pelo AT, sua história e interpretação literal da Escritura<br />

é perceptível entre os cânones de São Vítor, em Paris. Certo autor<br />

argumentou que o período de tempo entre 1100 e 1350 é marcado<br />

por um crescente estudo dos textos originais hebraicos da Escritura,<br />

comparável apenas com a obra da Renascença, que focou os textos<br />

originais gregos. Esse interesse é visível em Hugo de São Vítor (1096-<br />

1141). Ele enfatizou as artes liberais como propedêutica à exegese<br />

literal, o ambiente para o desenvolvimento da doutrina. A descoberta<br />

correta da alegoria e da verdade divina veio em seguida, de forma<br />

adequada. Um sentido histórico do texto foi promovido mais radicalmente<br />

por André de São Vítor († 1175). Orientado pela erudição<br />

judaica contemporânea, sua pesquisa o levou a contestar profecias<br />

tipicamente messiânicas como Isaías 7.14-16. Aqui, André seguiu a<br />

interpretação judaica, acreditando não ser “virgem”, e sim “jovem”,<br />

a tradução adequada. Embora muito criticado nesse ponto por seu<br />

contemporâneo Ricardo de São Vítor († 1173), pode-se perceber um<br />

interesse marcante numa leitura histórico-gramatical do AT. 17<br />

A chave para a interpretação foi a capacidade para compreender<br />

o adequado sentido de um texto. Uma terminologia instável,<br />

diferenças no gênero de literatura encontrado e questões sobre<br />

onde terminava a exegese literal e começava a alegórica, tudo<br />

fazia parte do <strong>debate</strong> hermenêutico na Alta Idade Média. Além<br />

disso, quando se juntava os dois Testamentos da Escritura, surgiam<br />

questões sobre as passagens proféticas. O que constituía seu<br />

sentido literal diante da interpretação espiritual? Se a interpretação<br />

literal era básica, em que ponto poder-se-ia ler com legitimidade<br />

uma mensagem profética ou cristológica num texto, uma questão<br />

composta pela retórica antijudaica. Questões como essa levaram<br />

mentes escolásticas a desenvolver abordagens convencionais do<br />

23


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

texto. Aqui, como em outra parte, a teologia de Tomás de Aquino<br />

(c. 1225-1274) deu forma resumida. Aquino enfatizou o sentido<br />

literal do texto (ST 1a.I.10), mostrando a tendência natural de sua<br />

filosofia. Embora não temendo a alegoria, ele argumenta que o<br />

sentido literal exibe o peso completo da intenção do autor. Podia<br />

existir um sentido espiritual, mas seu lugar era de edificação, não<br />

de prova. Era conhecido por Deus e podia ser discernido à luz<br />

de revelação posterior. Aquino colocou em evidência um tríplice<br />

argumento contra a alegoria: (1) ela é suscetível de engano; (2)<br />

sem um método claro ela leva à confusão; e (3) ela carece de um<br />

senso de integração adequada da Escritura. 18<br />

Alguns, como Pedro Auriol e Nicolau de Lyra (c. 1270-1340),<br />

continuaram a linha dos que ofereceram uma leitura mais aguçada<br />

dos Testamentos. Nicolau de Lyra inspirou-se na obra de exegetas<br />

judeus, particularmente o comentarista Rashi (1040-1105). Seu<br />

comentário enfatizava uma compreensão “literal dupla” do texto.<br />

Tanto a intenção de Deus quanto a do autor humano podiam ser<br />

designadas como sentido literal adequado do texto. Dir-se-ia mais<br />

tarde a respeito de Lyra que ninguém, desde Jerônimo, havia contribuído<br />

tanto para a compreensão do AT quanto ele. 19<br />

a renasCença e a reforMa<br />

A obra de Martinho Lutero (1483-1546) ficou em débito<br />

com a obra de Lyra, como também com as correntes derivativas<br />

mais amplas da Renascença. Sua crítica a Roma começou com o<br />

sistema sacramental e a teologia escolástica; depois continuou a<br />

questionar a exegese. Lutero insistiu na autoridade e suficiência<br />

da Escritura em oposição à tradição da igreja. Entendidos pela<br />

fé e pela iluminação do Espírito (Weimar, VII, 96-98), ambos os<br />

Testamentos da Escritura estavam abertos a todos os cristãos. A<br />

revelação, seja preparatória ou progressiva, teve uma história que<br />

o Espírito possibilitou ser compreendida. Lutero rejeitou os significados<br />

“espirituais” tradicionais ou a quádrupla interpretação da<br />

Escritura e foi na direção de um único significado do texto, exceto<br />

onde uma interpretação espiritual tinha a clara intenção do autor.<br />

Essa abordagem histórica do AT foi um fator central na teologia<br />

da Reforma. Entretanto, a questão do seu sentido literal em relação<br />

<strong>ao</strong> NT permaneceu legítima. Lutero seguiu Lefèvre d’Etaples e<br />

argumentou que os escritores do AT estavam conscientes da vinda<br />

24


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

de Cristo. A unidade da Escritura, encontrada em Cristo, significava<br />

que Lutero se inclinava a ler o AT através do evangelho; seu<br />

sentido histórico era obscurecido por prenúncios de Cristo e<br />

sua igreja. Finalmente, a antítese que Lutero traçou entre a lei e o<br />

evangelho promoveu a diferença que ele encontrou entre os dois<br />

Testamentos, quando receou introduzir uma nova lei sob o pretexto<br />

do evangelho, uma característica que ele encontrou tanto em Roma<br />

quanto nos movimentos emergentes radicais da Reforma. 20<br />

Mais dois pontos devem ser levantados quanto a Lutero.<br />

Primeiro, Lutero foi também um tradutor da Escritura. A ordem<br />

que ele deu <strong>ao</strong> AT tem sido seguida desde sua época. Em segundo<br />

lugar, Lutero continuou, em geral, o sentido agostiniano da história<br />

com implicações para a relação dos Testamentos. Entretanto, ele<br />

tinha maior consciência de estar vivendo no fim do tempo, pouco<br />

antes do juízo final. Esta crença foi predominante entre os primeiros<br />

radicais espirituais e anabatistas, alguns dos que retornaram a uma<br />

forma de milenismo visível na igreja primitiva. Outros, de forma<br />

mais consciente, seguiram o precedente joaquino e dividiram nitidamente<br />

a era agostiniana em termos de imagens tiradas do livro de<br />

Apocalipse. 21<br />

A Reforma entre os reformados geralmente se deu com linhas<br />

de ação esboçadas por Lutero. Entretanto, houve diferenças, que<br />

podem ser vistas em Ulrico Zuínglio (1484-1531), João Calvino (1509-<br />

1564) e (João) Henrique Bullinger (1504-1575). Quando chegamos à<br />

questão da relação entre os Testamentos, podemos distinguir pelo<br />

menos três diferenças. Primeira, a tendência para enfatizar a superfície<br />

ou sentido histórico do texto contra o alegorismo foi mais forte<br />

entre os reformados do que entre os luteranos (Calvino, Institutas,<br />

I.1.7,8). Não obstante, em contraste a alguns grupos anabatistas, cuja<br />

tendência era ver o AT como um livro judaico com pouco a oferecer<br />

à era da nova dispensação, os reformados, junto com a maioria dos<br />

protestantes, preservaram alguma percepção do sentido espiritual<br />

do texto pretendido pelo Espírito. Em segundo lugar, houve uma<br />

tendência entre os reformados em enfatizar a identidade das duas<br />

dispensações à custa de sua diversidade. Isso foi particularmente<br />

visível em edições posteriores das Institutas de Calvino (II.9-11; cf.<br />

Bullinger, Sobre o Testamento). Em terceiro lugar, a implicação disso<br />

foi que as leis morais e os preceitos do AT receberam um peso maior<br />

como orientações à vida cristã. 22<br />

25


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

Uma perspectiva histórica agostiniana foi em geral dominante<br />

entre os principais teólogos reformados por várias razões exegéticas<br />

e sociais. Entretanto, podemos notar certa tensão escatológica em<br />

Calvino e Bullinger, uma expectativa da glória visível de Deus entre<br />

os cristãos e em comunidades e estados cristãos. Essa esperança<br />

tornou-se o contexto para uma crescente tendência milenarista vista<br />

entre alguns teólogos continentais posteriores (p. ex., Brocardo) e<br />

outros anglo-americanos (p. ex., Brightman). Aqui o <strong>debate</strong> acerca<br />

da identidade do verdadeiro Israel, há muito definido como sendo<br />

a igreja, crescerá. Se igreja ou antigo Israel, a expectativa de uma<br />

realidade visível e histórica de tudo o que foi prometido a Israel<br />

nesta era ou na posterior <strong>ao</strong> iminente retorno de Cristo crescerá. 23<br />

uMa era de Conflito<br />

A crescente consciência histórica afetou a maneira pela<br />

qual as origens da fé cristã foram compreendidas e usadas. Os<br />

progressos filológicos e historiográficos da Renascença, representados<br />

por Lorenzo Valla, João Reuchlin nos estudos hebraicos,<br />

os discernimentos de Thomas Morus, João Colet e Erasmo (1469-<br />

1536), favoreceram essas percepções. Outras tendências da<br />

Renascença, parcialmente derivadas do neoplatonismo, seriam<br />

assimiladas na exegese de Erasmo, acentuando as interpretações<br />

espirituais do texto. Isso seria usado para acrescentar mais nuanças<br />

à forma pela qual os Testamentos foram interpretados e inter-relacionados,<br />

destacando uma compreensão não corpórea, até mesmo<br />

racionalista da Escritura. Quando diferentes comunidades cristãs<br />

procuraram defender suas perspectivas teológicas, organizando<br />

a história defensivamente, esses temas contribuíram para um<br />

aprofundamento da perspectiva histórica. 24<br />

A época foi, em primeiro lugar, de conflitos teológicos. Isso<br />

esteve frequentemente relacionado à nossa questão dos Testamentos.<br />

Muitos teólogos luteranos ortodoxos como João Gerhard<br />

(1582-1637), J. B. Carpzov (1607-1657) e Abraão Calovius (1612-<br />

1686) usaram o AT principalmente como uma coleção de textos<br />

comprobatórios, uma metodologia que refletia as próprias tendências<br />

de Lutero. Entre os reformados, o AT figurava junto com o NT<br />

como parte de uma elaborada tentativa de determinar a natureza<br />

da autoridade bíblica vista mais claramente na Confissão helvética<br />

(1675). 25<br />

26


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

Outras características da fé reformada trazem o AT para a<br />

presente vida dos cristãos. Os reformados se inclinaram a ser<br />

politicamente sensíveis com respeito a visível idolatria religiosa e<br />

nacional. João Knox (c. 1513-1572) pregou a necessidade de remover<br />

as serpentes de bronze da vida e da adoração, baseando-se em<br />

2Reis 18.3,4. Calvino, em suas Institutas, investiu em ataque contra<br />

os governos que aconselhavam a idolatria (IV.20.1-32). Ao fazer isso,<br />

Calvino extraiu muito da história de Israel. Tal “iconoclastia” uniu<br />

interesses políticos de quase todas as nações europeias emergentes.<br />

O movimento puritano na Inglaterra, produzido desse relacionamento,<br />

a levaria a todas as terras tocadas pelos interesses britânicos.<br />

Além disso, essa sensibilidade política <strong>ao</strong>s Testamentos esteve<br />

frequentemente ligada à escatologia reformada. Isso pode ser visto<br />

em vários planos da revelação progressiva, principalmente a de<br />

João Coceio (1603-1669), em que questões de natureza normativa<br />

de revelação mais antiga são levantadas, exceto quando ela pode<br />

ter alguma significação simbólica. Isso é evidentemente claro nos<br />

teólogos apocalípticos anglo-americanos como John Foxe a Jonathan<br />

Edwards. 26<br />

Dois movimentos emergiram no século XVII buscando a paz,<br />

mas ambos, nos termos da nossa questão, na verdade introduziram<br />

mais dimensões de <strong>debate</strong>. O primeiro, o racionalismo, pode ser<br />

percebido entre certos reformadores no século XVI que se inclinaram<br />

a questionar de forma mais radical e completa a teologia<br />

tradicional. Tornou-se explícito em Hugo Grócio (1583-1645), que<br />

procurou a unidade teológica, entre grupos em conflito, na pessoa de<br />

Cristo e na teologia natural. Sua crítica de inspiração bíblica anteviu<br />

mais movimentos radicais por parte de Thomas Hobbes (1588-1679)<br />

e Benedito Spinoza (1632-1677). Através de um crescente historicismo,<br />

o movimento como um todo começou a questionar o uso anteriormente<br />

assumido do AT pelo NT. O AT, antes atraído <strong>ao</strong> NT por<br />

meio de um sentido “espiritual” do texto, era agora por si só um<br />

documento histórico.<br />

Hobbes rejeitou a inspiração da Escritura. Em seu livro Leviatã,<br />

preocupado com questões de poder e política, argumentou que<br />

a Bíblia não devia ser tomada como revelação de Deus. Spinoza<br />

ampliou sua crítica em Tractatus theologico-politicus, argumentando<br />

que não somente a Bíblia é mera história, como o idioma que atribui<br />

tudo a Deus refletia uma atitude hebraica e não devia ser confiável<br />

como verdade. A razão devia guiar a mente em assuntos filosóficos,<br />

27


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

embora a teologia lidasse com questões de piedade e obediência.<br />

Argumentando dessa maneira, pareceu que Spinoza agiu como<br />

Jerônimo, visto que este separou a literatura canônica da apócrifa,<br />

e aquele, a razão da revelação. Só que agora toda a Escritura era<br />

apócrifa. Richard Simon (1638-1712), Jean Astruc (1648-1766)<br />

e outros deram continuidade a essa crítica com respeito <strong>ao</strong> AT,<br />

lançando o fundamento para a moderna “alta” crítica, termo depois<br />

empregado por J. G. Eichhorn (1752-1827).<br />

Essa crítica recebeu matiz poético em G. E. Lessing (1729-1781),<br />

de tal forma que a essência da religião não era adequadamente<br />

encontrada na revelação histórica, mas na moralidade. Influenciado<br />

por H. S. Reimarus (1694-1769), Lessing barateou a autoridade do<br />

AT <strong>ao</strong> sugerir que Deus havia educado outros povos mais do que<br />

os judeus. Sua peça Nathan the Wise [Natã, o sábio] (1779) sugeria<br />

que o AT deveria ser resgatado numa forma poética, informando um<br />

tipo de moralidade humanitária. Com Lessing, J. G. Herder (1744-<br />

1803) continuou a postular esse valor poético do texto como parte<br />

de uma visão progressiva da história das nações, no sentido de uma<br />

expressão mais completa da humanidade. 27<br />

O pietismo se desenvolveu depois do racionalismo. De alguma<br />

forma, foi também uma reação <strong>ao</strong> conflito teológico que se seguiu<br />

como resultado da Reforma. O movimento visava enfatizar uma<br />

leitura moral da Escritura por lições pessoais de amor e santidade.<br />

Philip Spener (1635-1705), frequentemente visto como fundador<br />

do movimento, em seu livro Pia Desideria (1675), tido como sua<br />

“constituição”, via a Bíblia como instrumento de Deus para a verdadeira<br />

espiritualidade. O movimento também foi formulado por A.<br />

H. Francke (1663-1727) e N. L. von Zinzendorf (1700-1760). Francke,<br />

e especialmente J. A. Bengel (1687-1752), ofereceram uma compenetrada<br />

visão gramatical e filológica da Escritura <strong>ao</strong> enfatizar<br />

a unidade dos Testamentos. Ainda, apesar desses avanços, o AT<br />

foi, com frequên cia, alegorizado, num esforço para encontrar a<br />

adequada verdade espiritual voltada para o fim devocional em vez<br />

de interesses doutrinários ou exegéticos. 28<br />

A exegese racionalista e o interesse bíblico pietista se reúnem<br />

na obra de alguns autores do fim do século XVIII, constituindo parte<br />

do contexto para criativos desenvolvimentos exegéticos no século<br />

XIX. Filólogos como J. A. Ernesti (1701-1781) insistiram na primazia<br />

das considerações gramaticais sobre a dogmática na interpretação<br />

do texto da Escritura, embora teólogos como J. S. Semler (1725-1791)<br />

28


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

enfatizassem a abordagem metodológica crítico-histórica de todo o<br />

cânon. Entretanto, o que poderia ser um árido intelectualismo, estava<br />

agora associado a novas visões avançadas da história, separadas<br />

dos Testamentos e com mais valor poético.<br />

o séCulo XiX<br />

Immanuel Kant (1724-1804) leva-nos diretamente às perguntas<br />

do século. Crítico de ceticismo cada vez maior (como em David<br />

Hume), Kant esforçou-se para compreender os limites do conhecimento.<br />

Ele deixou pouco espaço para a metafísica, antevendo, assim,<br />

o romantismo de Schleiermacher, o idealismo hegeliano, o reino<br />

moral de Ritschl e o Deus distante de Kierkegaard. Nisso ele deu<br />

continuidade <strong>ao</strong> padrão de crítica do século anterior, acrescentando<br />

que os estímulos de consciência eram superiores no AT. Em lugar<br />

de uma imposição de fora e de uma sujeição <strong>ao</strong> governo de Deus<br />

por natureza, ele defendeu uma percepção interior e uma prática de<br />

moralidade oriunda da vontade autônoma, não dependente, sobre a<br />

lei heteronômica ou o poder submisso <strong>ao</strong> governo de Deus. 29<br />

O idealismo moral e o progressivismo histórico esboçado por<br />

Kant ajudaram a completar o cenário para o desenvolvimento da<br />

“alta” crítica como foi desenvolvida originariamente na Alemanha.<br />

Na obra de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) essa crítica reivindicou<br />

oferecer orientação à igreja para uma fé mais esclarecida.<br />

Fundamentando a autoridade religiosa na “percepção de<br />

absoluta dependência de Deus”, ele rejeitou as partes de ambos<br />

os Testamentos mais distantes de um profundo senso interior<br />

de divindade. O AT era, de fato, de muito maior valor do que a<br />

mitologia grega. Ambas as tradições constituíram caminhos de preparação<br />

para o evangelho. A filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831)<br />

e a teologia de F. C. Baur (1792-1860) provavelmente melhor representam<br />

o progressivismo histórico do período. Em ambas, a religião<br />

dos judeus foi parte de uma contínua realização de uma verdade<br />

mais completa da história. A crítica bíblica de Julius Wellhausen<br />

(1844-1918) pode muito bem ser vista suportando estas e também<br />

mais recentes premissas racionalistas, em sua articulação do desenvolvimento<br />

gradual da religião hebraica desde uma forma animista<br />

nômade até a criação de um sistema racional de leis. De formas<br />

diferentes Adolf Harnack (1851-1930) conduziu seu progressismo<br />

de volta à busca pelo autêntico passado de Jesus, pondo de lado<br />

29


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

muito do AT, e A. F. Loisy (1857-1940) transportou-o para a futura<br />

plenitude das implicações de sua pessoa. 30<br />

O historicismo racional junto com o valor poético do texto<br />

tornou-se a forma mais eloquente de tratar os Testamentos. Outras<br />

formas de fazê-lo podem ser vistas na escola de pensamento<br />

da história da salvação, articulada por J. C. K. von Hoffman (1810-<br />

1877), de Erlangen. Ele tentou reafirmar a unidade dos Testamentos,<br />

perdida pelos interesses racionalistas ou poético-liberais, <strong>ao</strong><br />

discernir um sistema de história da salvação enraizado numa visão<br />

orgânica da Escritura. Os eventos do texto, enraizados na história,<br />

deram significado para o presente e importância <strong>ao</strong> futuro. Toda a<br />

Escritura foi unida desse modo integral. Até mesmo a era atual foi<br />

vista cheia de significado <strong>ao</strong> apontar para outro período milenário<br />

por vir. Ernst W. Hengstenberg (1802-1869) foi outro que postulou<br />

a unidade dos Testamentos, nesse caso em torno de um duplo testemunho<br />

de Jesus como o Messias. Outros métodos de discernir a<br />

unidade dos Testamentos podem ser vistos em Patrick Fairbairn<br />

(1805-1874), pela tipologia, e em John H. Newman (1801-1890), por<br />

um renovado senso de objetivo espiritual do texto. 31<br />

Em todo o século o milenismo, em parte, esteve no ar por meio<br />

de um penetrante reavivamento e uma atmosfera materialmente<br />

eufórica. A tradição anglo-americana, preocupada com a realização<br />

do governo de Deus na história, prosperou e baseou-se em questões<br />

da inter-relação dos Testamentos. Para alguns, a igreja, como o<br />

novo Israel, era herdeira de todas as promessas de Deus. Agostinho<br />

havia compreendido essas promessas para encontrar seu cumprimento<br />

espiritual na era da igreja, uma posição agora denominada<br />

de amilenarismo. Essa perspectiva havia sofrido mudanças, particularmente<br />

desde Thomas Brightman (1562-1607), de forma que<br />

alguns compreenderam que essas promessas deveriam ocorrer<br />

literalmente num novo período milenar, revelando-se no mundo<br />

antes da volta de Cristo para julgar, uma posição agora chamada de<br />

pós-milenarismo. Os pré-milenaristas, igualmente certos do cumprimento<br />

literal dessas promessas, discordaram exegeticamente<br />

ou por meio do pessimismo social, crendo que tal ocorreria depois<br />

da volta de Cristo para de fato governar sobre a terra. Tanto os pósmilenaristas<br />

quanto os pré-milenaristas realçaram o papel do povo<br />

judeu na história: os primeiros como sinais do reino, e os últimos<br />

como sinais e adequados receptores dele. Quanto <strong>ao</strong> milênio, das<br />

três posições citadas, os pré-milenaristas se inclinaram à direção<br />

30


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

de uma abordagem dispensacionalista dos Testamentos, enquanto<br />

os outros dois foram mais de orientação federalista. 32<br />

o séCulo XX<br />

Em certo sentido, todo o espectro de questões que tem<br />

ocorrido em relação <strong>ao</strong>s Testamentos apareceu no século XX.<br />

Guerra, mudança social e tendência intelectual trabalharam na<br />

direção do fim do progressivismo do período anterior. Os estudos<br />

de Albert Schweitzer (1875-1965), que apareceram num momento<br />

de mudança social, sugeriam a realidade de um Jesus apocalíptico,<br />

desconhecido da teologia contemporânea, arraigado no passado de<br />

Israel. Aquele mundo, aberto a todos por meio de estudos arqueológicos<br />

e filológicos, revolucionou as perspectivas sobre o AT e sua<br />

relação com o NT. O AT não pode mais ser comparado com fábulas<br />

gregas, mesmo sendo esse o conceito defendido por alguns no<br />

século anterior. 33<br />

A reafirmação da veracidade histórica do AT, a identidade<br />

radical de Jesus, o lugar do ser humano perante a “diversidade” de<br />

Deus e a maneira pela qual tais ideias foram canalizadas por uma<br />

teologia de “crise” (principalmente a obra de Karl Barth [1886-<br />

1968]) ajudaram a criar uma nova consciência teológica para a<br />

nossa questão. Além disso, a escatologia da neo-ortodoxia, de forma<br />

tão diferente quanto foi articulada, aprofundou, sem negar explicitamente,<br />

posições milenaristas tradicionais através de uma compreensão<br />

mais imediata do reino de Deus. Isso ofereceu possibilidade<br />

para trazer o poder profético do AT para as preocupações sociais<br />

presentes (p. ex., os Blumhardts, os Niebuhrs, Jürgen Moltmann).<br />

Esse movimento tornar-se-ia mais claro quando estendido por<br />

posteriores teólogos da libertação, frequentemente devedores<br />

às premissas marxistas ou secularistas, todavia em muitos casos<br />

ligados à maneira na qual os primeiros movimentos reformados ou<br />

cristãos restauracionistas usaram os Testamentos como guia para a<br />

santidade compartilhada. 34<br />

Hoje, o estudo da inter-relação dos Testamentos está chegando<br />

<strong>ao</strong> fim do seu segundo milênio. Enquanto isso acontece, estamos<br />

conscientes das formas pelas quais as considerações hermenêuticas<br />

moldam nossa compreensão da fé. Tais assuntos incluem a importância<br />

da história em seu próprio direito. A primeira pergunta para<br />

31


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

compreender qualquer texto é o que ele significa em seu contexto<br />

original como determinado pela filologia, análise cultural, questões<br />

de forma literária, estilo, propósito e comunicação. O desenvolvimento<br />

de uma ciência de documentos, em certo sentido sempre<br />

presente na história da igreja, tem sido uma contribuição importante<br />

dos últimos dois séculos. Ele representa tendências que no começo<br />

pareceram destrutivas da fé, mas tem, com mais desenvolvimento,<br />

frequentemente dado um novo suporte principal.<br />

A questão do contexto histórico requer reconhecimento da<br />

maneira pela qual a interpretação molda e é moldada pela compreensão.<br />

Períodos de reorientação cultural, como o nosso, estão muito<br />

conscientes disso. Um dos modelos enfatizados pela atual teoria da<br />

interpretação é o do diálogo com um texto. Embora muito mais esteja<br />

envolvido, esse modelo reconhece que tanto nossa pré-compreensão<br />

quanto a integridade do texto precisam ser levadas em consideração<br />

para se chegar a uma honesta avaliação de um documento<br />

histórico. Além disso, <strong>ao</strong> prestar atenção num texto, é preciso lidar<br />

com as perguntas que ele levanta. Essa prática tem provocado uma<br />

nova consideração pela teologia harmonizada, visto que esta disciplina<br />

trata das mais profundas premissas assumidas pelos textos<br />

e por nós mesmos. Interpretações exclusivamente sagradas ou<br />

seculares são indefensáveis se lidamos com todas as questões que<br />

nos confrontam num documento histórico. Finalmente, a importância<br />

de uma comunidade de compreensão, ou fé, em desenvolver mais as<br />

formas nas quais os documentos são usados deve ser considerada,<br />

particularmente no nosso caso. A existência de dois Testamentos<br />

que têm orientado comunidades religiosas vitais durante milênios<br />

desempenha um papel central na forma pela qual compreendemos<br />

os Testamentos individualmente e em inter-relacionamento. 35<br />

Muitas dessas considerações estiveram por trás do esboço<br />

do Loccum Report (1978). Este relatório argumentava que o AT é<br />

“parte integral e indispensável da Escritura autorizada[...] nem<br />

obsoleto nem antiquado [desde Cristo], nem deve ser considerado<br />

meramente uma preparação para Cristo”. O relatório oferece diretrizes<br />

para interpretação, registrando que, além de considerações<br />

cristológicas, existe uma “especificidade” no AT: ele pode oferecer<br />

verdade não encontrada no NT. Além disso, a ideia de cumprimento,<br />

usada em relação à promessa, é mais complexa do que anteriormente<br />

considerada. Ele inclui perspectivas como tempo, lei e promessas.<br />

Mais controverso é o ponto que trata do processo interpretativo que<br />

32


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong>: o <strong>debate</strong> <strong>ao</strong> longo da história da igreja<br />

começa nas partes mais primitivas da Bíblia e continua no NT, amalgamando-se<br />

em linhas de tradição desenvolvidas nas igrejas. Este<br />

assunto é muito importante para a inter-relação dos Testamentos.<br />

Entretanto, sem considerações cuidadosas, ele pode obscurecer a<br />

distinção entre revelação e tradição. Finalmente, o relatório oferece<br />

uma nova afirmação da unidade teológica da Escritura, discernida<br />

não somente em Deus, seu autor formal, mas também em ideias<br />

como aliança, esperança e sabedoria. 36<br />

ConClusão<br />

A maneira precisa pela qual os Testamentos se relacionam<br />

é uma discussão que continuará até o dia do juízo final. Todavia,<br />

várias questões são esclarecidas pela história da igreja. Primeiro,<br />

é claro que a percepção de Jesus sobre o AT tem sido fator orientador<br />

em quase todos os períodos. A igreja tem consciência do que<br />

se percebeu ser o método de Jesus de abordar a nossa questão.<br />

Em segundo lugar, quatro formas de avaliar o inter-relacionamento<br />

entre os Testamentos podem ser isoladas em termos de sua importância<br />

teológica: o AT pode ser lido como mera história; ele é quase<br />

sempre lido por meio do NT; ele pode ser compreendido como<br />

completo, de certa forma, em sua própria integridade teológica; ele<br />

pode simplesmente ser visto como símbolo alegórico em relação<br />

<strong>ao</strong> NT.<br />

A implicação teológica dessas formas de leitura dos Testamentos<br />

pode ser esquematizada como segue. 37 Primeiramente,<br />

se o AT é mera história, então nenhuma orientação em particular<br />

é oferecida <strong>ao</strong>s cristãos para a vida pessoal ou social. Não existe<br />

garantia profética particular para a vinda de Jesus. Não há lugar<br />

especial para os judeus na história. Cada agrupamento étnico pode<br />

ser visto como tendo sua própria organização de salvação.<br />

Em segundo lugar, se o AT deve ser lido através dos evangelhos,<br />

então qualquer orientação que ele possa oferecer para os cristãos é<br />

filtrada pela ética de Jesus. O texto pode ser lido por seu possível<br />

valor profético ou cristocêntrico. A nação judaica antes de Cristo pode<br />

ser vista como intérprete de um papel privilegiado na preparação do<br />

advento dele, e tal atuação deve ser harmonizada, do mesmo modo,<br />

depois dele. Além disso, o NT fornece o paradigma necessário para<br />

responder a pessoas de outros ambientes culturais ou religiosos.<br />

33


<strong>Continuidade</strong> e des<strong>Continuidade</strong><br />

Em terceiro lugar, se o AT é de alguma forma completo em<br />

sua própria integridade teológica, então ele pode ser de imenso<br />

valor para orientação do atual costume social, limitado somente por<br />

considerações de tempo ou dispensação que se possa conceber.<br />

O texto não é somente de valor cristocêntrico, mas pode também<br />

oferecer outras bases de autoridade. O povo judeu antes de Cristo<br />

foi de especial importância; permanece da mesma forma hoje.<br />

Finalmente, uma crítica maior é apresentada <strong>ao</strong>s de outras crenças,<br />

no que se refere a ambos os Testamentos serem considerados o<br />

local da verdade religiosa normativa.<br />

Em quarto lugar, se o AT é somente um símbolo alegórico, o<br />

texto pode oferecer pouco mais do que mitos ou fábulas de outras<br />

culturas às categorias apresentadas acima.<br />

Três pontos de natureza teológica ainda mais fundamental<br />

devem ser notados para uma questão de conclusão. Primeiro, o<br />

inter-relacionamento dos Testamentos aponta para o progresso da<br />

revelação. Jesus Cristo representa o ápice da verdade religiosa (Hb<br />

1.1-3). Ele é o meio da unidade com Deus. Como Deus, ele é também<br />

nosso fim. Entretanto, se a revelação anterior é melhor compreendida<br />

como sendo uma linha de desenvolvimento ou uma reunião de<br />

momentos preditivos anterior à finalização da revelação em Jesus<br />

Cristo, esse é um assunto de contínuo <strong>debate</strong>. Em segundo lugar,<br />

as perspectivas escatológicas atuais são derivativas de como essa<br />

questão é abordada. Pode-se dizer que na história da igreja são<br />

conhecidos dois caminhos de Deus. Um enfatiza o movimento horizontal<br />

<strong>ao</strong> longo do tempo. Quanto mais adiante estivermos na história,<br />

mais perto estamos, em certo sentido, de Deus. O outro acentua o<br />

movimento vertical. Qualquer um, em qualquer ponto da história, está<br />

de igual modo perto de Deus por meio da visão mística ou espiritual.<br />

Esses dois movimentos não precisam ser mutuamente exclusivos.<br />

Finalmente, como ponderar a revelação anterior continua a<br />

ser um tema de <strong>debate</strong> à medida que a igreja busca cumprir seu<br />

mandato missiológico. O AT pode ser visto como revelação fora<br />

de uso, não mais aplicável <strong>ao</strong> desafio social profético, à santidade<br />

pessoal ou para orientação em relação <strong>ao</strong>s de outras crenças.<br />

Poucos grupos são consistentes <strong>ao</strong> tratar desses assuntos. A<br />

Bíblia, o livro que une a igreja, frequentemente a divide. 38<br />

34

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!