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Os Maias - Unama

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www.nead.unama.br<br />

o dedo calçado de pelica pranca. Ambos eles lhe relancearam os olhos bogalhudos,<br />

cor de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo,<br />

parecia ter um catarro ascoroso.<br />

Dava-se a Lúcia em beneficio, com a segunda dama. <strong>Os</strong> Cohens não tinham<br />

vindo — nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu<br />

velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia<br />

penetrar ali, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humildade.<br />

Nas cadeiras, vazias, havia uma mulher solitária, vestida de cetim claro; Edgardo e<br />

Lúcia desafinavam; o gás dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas,<br />

pareciam ir adormecendo também.<br />

— Isto está lúgubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que ocupava o escuro da<br />

frisa.<br />

Cruges, amodorrado n'um acesso de spleen, com o cotovelo sobre as costas<br />

da cadeira, os dedos por entre a cabeleira, todo ele embrulhado em crepes<br />

sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d'um sepulcro:<br />

— Pesadote.<br />

Por indolência, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquele preto de que os seus<br />

olhos se não podiam despegar, ali entronizado na poltrona de reps verde da<br />

Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar<br />

um lindo braço, — foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa d'ela;<br />

relembrou toilettes com que ela ali estivera; e nunca lhe pareceram tão picantes,<br />

como agora que os não via, os seus cabelos ruivos, cor de brasa ás luzes, d'um<br />

encrespado forte, como crestados da chama interna. A carapinha do preto, essa, em<br />

logar de risca tinha um sulco cavado á tesoura na massa de lã espessa. Quem<br />

seriam, por que estavam ali, aqueles africanos de perfil trombudo?<br />

— Tu já reparaste n'esta extraordinária carapinha, Cruges?<br />

O outro, que se não mexera da sua atitude de estatua tumular, grunhiu da<br />

sombra um monossílabo surdo.<br />

Carlos respeitou-lhe os nervos.<br />

De repente, ao desafinar mais áspero d'um coro, Cruges deu um salto.<br />

— Isto só a pontapé... Que empresa esta! Rugiu ele, envergando<br />

furiosamente o paletó.<br />

Carlos foi levá-lo no coupé á rua das Flores, onde ele morava com a mãe e<br />

uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentar consigo o seu serão d'estudo<br />

perdido.<br />

O criado de Carlos, o Batista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo o<br />

jornal, na confortável antecâmara dos quartos do menino, forrada de veludo cor de<br />

cereja, ornada de retratos de cavalos e panóplias de velhas armas, com divãs do<br />

mesmo veludo, e muito alumiada a essa hora por dois candeeiros de globo<br />

pousados sobre colunas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.<br />

Carlos tinha desde os onze anos este criado de quarto, que viera com o<br />

Brown para Sta. Olávia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação inglesa, e ter<br />

acompanhado o ministro, sir Hércules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em<br />

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