16.04.2013 Views

a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF

a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF

a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A floresta passa a ser um espaço <strong>de</strong> provações, aquele que a<strong>de</strong>ntra<br />

seus limites está em constante conta<strong>do</strong> com forças <strong>de</strong>sconhecidas que têm<br />

a função <strong>de</strong> distanciá-lo da virtu<strong>de</strong>, da salvação, como D. Diogo. A floresta<br />

constitui no imaginário cristão-medievo um espaço ambivalente <strong>de</strong> maravilhas<br />

e horrores. A zona periférica é um ambiente <strong>de</strong> transição da cultura<br />

– o conheci<strong>do</strong>, o cultiva<strong>do</strong> – à natureza. A periferia é a moradia <strong>do</strong>s mitos,<br />

<strong>do</strong> mistério. Como representante periférico, a floresta medieval incorpora<br />

o inculto, o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>; é um espaço <strong>de</strong> provação porque suscita o me<strong>do</strong>.<br />

Assim, o cavaleiro, caçan<strong>do</strong>, é atraí<strong>do</strong> pela voz <strong>de</strong> uma bela mulher.<br />

Fica encanta<strong>do</strong> ao vê-la e aceita obe<strong>de</strong>cer a uma proibição (tabu) para<br />

obtê-la em casamento. É tão forte a paixão que D. Diogo <strong>de</strong>clara, “com os<br />

olhos chamejantes”: “E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não<br />

te ce<strong>de</strong>ria qualquer <strong>do</strong>s seus muitos lega<strong>do</strong>s?” (HERCULANO, 1952, p.<br />

218). Embora a Dama exija que o nobre se esqueça “<strong>de</strong> uma coisa que a boa<br />

rica-<strong>do</strong>na te ensinava em pequenino e que, estan<strong>do</strong>, para morrer, ainda te<br />

recordava” (HERCULANO, 1952, p. 219), ele – que “nos folgares e <strong>de</strong>vassidões<br />

per<strong>de</strong>ra o caminho <strong>do</strong> Céu” (HERCULANO, 1952, p. 219) – aceita<br />

a aliança apesar <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>: “De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos<br />

mouros e darei uma herda<strong>de</strong> a Santiago. Ela por ela. Um presente ao<br />

apóstolo e duzentas cabeças <strong>de</strong> cães <strong>de</strong> Mafame<strong>de</strong> valem bem um grosso<br />

peca<strong>do</strong>” (HERCULANO, 1952, p. 219).<br />

O canto constitui outro elemento observa<strong>do</strong> no encontro da<br />

Dama Pé <strong>de</strong> Cabra com D. Diogo, que ouve a linda voz, fica apaixona<strong>do</strong><br />

e, imediatamente, propõe casamento à <strong>de</strong>sconhecida – essa temática <strong>do</strong><br />

encantamento realiza<strong>do</strong> pela música e pela sedução remete-nos à lenda<br />

grega sobre as sereias. De acor<strong>do</strong> com a tradição (CHEVALIER, 1982, p.<br />

888), as sereias simbolizam a sedução mortal e representam as armadilhas<br />

nascidas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo e da paixão. Como vivem nos elementos instáveis <strong>do</strong><br />

ar (pássaros) ou <strong>do</strong> mar (peixes), fazem-se criação <strong>do</strong> inconsciente, <strong>do</strong>s<br />

sonhos fascinantes e terríveis, em que se <strong>de</strong>lineiam as pulsações obscuras e<br />

primitivas <strong>do</strong> homem.<br />

Nesse ponto, os elementos formam um conjunto inter-relacional:<br />

em um local sagra<strong>do</strong>, intermediário entre <strong>do</strong>is estágios (céu-terra),<br />

irrompem o <strong>de</strong>sejo e a paixão <strong>do</strong> homem pela beleza <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. Por<br />

causa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> pela mulher tenta<strong>do</strong>ra, ele aceita, <strong>de</strong> imediato,<br />

a proibição. Esse mesmo sentimento incontrolável, porém, ocasionará a<br />

quebra <strong>do</strong> juramento. A promessa feita, a <strong>de</strong>sobediência e a punição, toda<br />

a cena remete ao mito <strong>do</strong> primeiro casal e está relacionada ao maravilhoso<br />

cristão medieval, que se concentra no controle <strong>do</strong> comportamento das<br />

pessoas, <strong>de</strong> suas pulsões e <strong>de</strong>sejos, principalmente liga<strong>do</strong>s à sexualida<strong>de</strong> e<br />

ao peca<strong>do</strong> original.<br />

A Dama Pé <strong>de</strong> Cabra encarna as características <strong>de</strong> Eva, a responsável<br />

pela queda da humanida<strong>de</strong>. Tal compreensão, no entanto, é resultante<br />

<strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> acumulação e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> imaginário Oci<strong>de</strong>ntal,<br />

perpassan<strong>do</strong> à tradição clássica com o mito funda<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Pan<strong>do</strong>ra, que<br />

introduziu to<strong>do</strong>s os <strong>mal</strong>es <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a sua curiosida<strong>de</strong>. Na tradição<br />

cristã, que incorpora o judaísmo à cultura greco-romana, as mulheres já<br />

76<br />

ABRIL – Revista <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Literatura Portuguesa e Africana da <strong>UFF</strong>, Vol. 4, n° 8, Abril <strong>de</strong> 2012

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!