a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF
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tos oitocentistas presentes. É na segunda trova, que surge a explicação para<br />
a origem da Dama, criação exclusiva <strong>do</strong> autor, já que o relato <strong>do</strong> Livro <strong>de</strong><br />
Linhagens não a fornece.<br />
Esta trova começa com a notícia <strong>de</strong> que D. Diogo havia caí<strong>do</strong> prisioneiro<br />
em Tole<strong>do</strong>. Como D. Inigo não consegue libertá-lo é aconselha<strong>do</strong><br />
a solicitar os serviços mágicos <strong>de</strong> sua mãe. Justificativa para que o cavaleiro<br />
conte a história da terrível Dama, originalmente esposa <strong>do</strong> con<strong>de</strong> Argemiro,<br />
e <strong>de</strong> sua <strong>mal</strong>dição, registrada em um santoral go<strong>do</strong> e relatada por um<br />
aba<strong>de</strong> a D. Diogo Lopes.<br />
Nessa segunda parte <strong>do</strong> conto ,a criativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor explora<br />
as consequências <strong>de</strong> quebras <strong>de</strong> interditos da moral cristã relacionan<strong>do</strong>-as<br />
à temática tradicionalmente motiva<strong>do</strong>ra das baladas macabras europeias<br />
(presente, inclusive, em Leonor e Afonso e Isolina, baladas traduzidas pelo<br />
autor): a separação <strong>do</strong> casal apaixona<strong>do</strong> que termina ou em prova <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>,<br />
superan<strong>do</strong> a morte, ou em traição, que acarreta uma <strong>mal</strong>dição.<br />
Conforme salienta Sousa, esta temática adquire uma importância maior no<br />
contexto <strong>do</strong> Romantismo português, visto que o tema da separação <strong>do</strong>s casais<br />
sempre esteve presente na história portuguesa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ir combater castelhanos ou mouros ao embarque nas naus para conquistas<br />
<strong>de</strong> além-mar. (SOUSA, 1979, p. 28).<br />
A primeira promessa feita cronologicamente no conto é um tabu<br />
relaciona<strong>do</strong> à aliança <strong>do</strong> homem com a natureza, já que matar a fêmea con<strong>de</strong>na<br />
os filhotes à morte, <strong>de</strong>sequilibra<strong>do</strong> o ciclo da vida. Além disso, a <strong>de</strong>sobediência<br />
ao interdito prejudicaria a manutenção da principal ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
lazer da nobreza em tempo <strong>de</strong> paz: a caça. Assim, quan<strong>do</strong> o con<strong>de</strong> Argemiro,<br />
ignoran<strong>do</strong> a promessa feita ao pai, mata um onagro fêmea que cuidava<br />
<strong>de</strong> sua cria, surge uma voz misteriosa advertin<strong>do</strong>-o: “Uma voz soou então<br />
nos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> con<strong>de</strong>, e dizia: – ‘Orfãos ficaram os cachorrinhos <strong>do</strong> onagro:<br />
mas pelo onagro tu ficarás <strong>de</strong>sonra<strong>do</strong>’.” (HERCULANO, 1952, p. 228)<br />
As forças sobrenaturais que se manifestam na narrativa midiatizam<br />
as condutas humanas em seus extremos, uma vez que tais fenômenos<br />
possuem um caráter ilustra<strong>do</strong>r. Em certos momentos, essas manifestações<br />
exercem a função <strong>de</strong> testar a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s personagens, bem como sua integrida<strong>de</strong>,<br />
como o caso <strong>do</strong> adultério da Con<strong>de</strong>ssa com Astrigil<strong>do</strong>, que cumprem<br />
a promessa da voz misteriosa da caverna.<br />
A <strong>de</strong>sonra pública <strong>de</strong> Argemiro foi realizada como castigo pela<br />
transgressão ao juramento feito no leito <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> seu pai, cuja cláusula<br />
única era não caçar animais prenhes ou com filhotes. Po<strong>de</strong>-se argumentar,<br />
portanto, a respeito da inocência e <strong>do</strong> castigo injusto sofri<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>is,<br />
uma vez que forças <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m trabalharam para que o casal <strong>de</strong> amantes<br />
se unisse e assim atingisse ao orgulhoso Argemiro. No entanto, um<br />
da<strong>do</strong> que não po<strong>de</strong> ser posto <strong>de</strong> la<strong>do</strong> neste juízo é o livre arbítrio. Mesmo<br />
com seu mari<strong>do</strong> em guerra, a Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se unir ao jovem e festejar<br />
a união adúltera nos <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> esposo ausente. Não resistin<strong>do</strong> à tentação,<br />
ela peca em concupiscência, violan<strong>do</strong> os interditos acerca <strong>do</strong> sexo e<br />
<strong>do</strong> matrimônio or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s pela moral cristã, con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-se, por fim, ao<br />
inferno, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> volta como alma penada, agora transmutada na Dama <strong>de</strong><br />
pés <strong>de</strong> cabra.<br />
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ABRIL – Revista <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Literatura Portuguesa e Africana da <strong>UFF</strong>, Vol. 4, n° 8, Abril <strong>de</strong> 2012