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a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF

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RA, 2004, p. 175). Se o <strong>de</strong>mônio buscava prejudicar alguém ele o faria<br />

por intermédio <strong>de</strong> uma mulher, ten<strong>do</strong> em vista sua <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> em resistir<br />

aos argumentos <strong>do</strong> tenta<strong>do</strong>r. A bruxa, portanto, é o símbolo da confi<strong>de</strong>nte<br />

<strong>do</strong> diabo. Em troca <strong>de</strong> extravagâncias sexuais com o <strong>de</strong>mônio e seus<br />

servos, as mulheres eram instruídas nos mistérios da magia. A fonte <strong>do</strong><br />

po<strong>de</strong>r das bruxas, em uma socieda<strong>de</strong> cuja mentalida<strong>de</strong> encara qualquer<br />

intervenção mágica como <strong>mal</strong>éfica, tem por origem o componente sexual,<br />

igualmente pecaminoso.<br />

Entretanto, na narrativa literária, embora a Dama tenha proposto<br />

um pacto herético com D. Diogo, ela faz feitiços e encantamentos para<br />

ajudar seu filho Inigo Guerra a salvá-lo quan<strong>do</strong> foi prisioneiro <strong>do</strong>s mouros.<br />

Surge então a questão: afinal, o que é a Dama Pé <strong>de</strong> Cabra? Fada ou bruxa?<br />

Alma penada ou <strong>de</strong>mônio?<br />

Conforme discuti<strong>do</strong> anteriormente, sob o influxo <strong>do</strong> cristianismo,<br />

as histórias tradicionais e folclóricas, bem como a tradição pagã foram<br />

manipuladas com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>monizar e excluir as antigas religiões.<br />

Não há, porém, como apagar algo tão complexo e tão enraiza<strong>do</strong> na alma<br />

humana. Assim, o Livro <strong>de</strong> Linhagens, embora não diga claramente que a<br />

misteriosa dama é uma bruxa ou qualquer outra coisa, já apresenta elementos<br />

que a Ida<strong>de</strong> Média via como fruto <strong>de</strong> bruxaria: a ligação com o<br />

diabo indiciada pelos pés <strong>de</strong> cabra e o <strong>de</strong>saparecimento diante <strong>do</strong> sinal da<br />

cruz, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer por uma fresta da janela, <strong>de</strong> presentear o filho<br />

com um cavalo maravilhoso que não precisa ser alimenta<strong>do</strong> ou ferra<strong>do</strong> e,<br />

mesmo assim, é capaz <strong>de</strong> percorrer imensas distâncias em minutos. To<strong>do</strong>s<br />

esses elementos, alia<strong>do</strong>s ao conhecimento <strong>de</strong> Alexandre Herculano sobre<br />

a Ida<strong>de</strong> Média 5 serviram <strong>de</strong> inspiração para que ele misturasse “vários ingredientes”,<br />

aproveita<strong>do</strong>s <strong>de</strong> diferentes contextos e liga<strong>do</strong>s ao sobrenatural,<br />

para compor sua personagem.<br />

De acor<strong>do</strong> com a concepção medieval, a presença <strong>do</strong> <strong>de</strong>mônio<br />

era uma realida<strong>de</strong>; “o <strong>mal</strong> existe, age livremente; tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seduzir<br />

os homens e infestar o seu espírito” (DUBY, 2002, p. 137). Como este ser<br />

<strong>mal</strong>igno agia, a Igreja, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a permissão <strong>de</strong> Deus, usava sua figura<br />

com o intuito <strong>de</strong> manter os homens no caminho reto. Entretanto, havia<br />

uma razão maior para tantos prodígios. No imaginário medieval, a presença<br />

<strong>do</strong> <strong>de</strong>mônio na terra representava, no dia <strong>do</strong> juízo, o retorno <strong>de</strong> Cristo<br />

que o <strong>de</strong>rrotaria por <strong>de</strong>finitivo. Logo, sinais como pestes, fome e guerras<br />

simbolizam a chegada <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s tempos e a presença <strong>do</strong> <strong>de</strong>mônio na Terra,<br />

por extensão, a vinda <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r. Vê-se, portanto, que a figura <strong>mal</strong>igna<br />

revela uma natureza dúbia, pois, ao passo que <strong>de</strong>monstra o horror, também<br />

representa a esperança.<br />

Já para o <strong>de</strong>sencanta<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a presença <strong>do</strong><br />

diabo e sua existência metafísica são questionadas pelo racionalismo iluminista<br />

e materialista, processo que revela o <strong>de</strong>clínio da Igreja, principal<br />

patrocina<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> diabo, e a ascensão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rno. Essas mudanças<br />

são acompanhadas pela Literatura, pois a figura <strong>do</strong> Diabo horren<strong>do</strong> das<br />

iluminuras é substituída por um representante mais próximo <strong>do</strong> humano:<br />

o Mefistófeles, <strong>de</strong> Goethe.<br />

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ABRIL – Revista <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Literatura Portuguesa e Africana da <strong>UFF</strong>, Vol. 4, n° 8, Abril <strong>de</strong> 2012

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