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a face negra de alexandre herculano: visões históricas do mal ... - UFF

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Através da análise da história da Dama Pé <strong>de</strong> Cabra, inserida no<br />

contexto da época e <strong>de</strong> sua comparação com o mito literário 4 <strong>de</strong> Melusine,<br />

conheci<strong>do</strong> em toda a Europa, o conto se mostra rico <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s não revela<strong>do</strong>s<br />

pela interpretação tradicional. Tanto o conto <strong>de</strong> Herculano como a<br />

narrativa genealógica são tributários da tradição melusiana, cujo esquema<br />

narrativo foi trabalha<strong>do</strong>, primeiramente, por Dumézil que os <strong>de</strong>nominou<br />

“contos melusianos”, em homenagem à personagem mais famosa.<br />

Esses relatos possuem uma estrutura comum: há um encontro<br />

entre o ser divino <strong>de</strong> forma híbrida– fada ou <strong>de</strong>usa que é meta<strong>de</strong> mulher,<br />

meta<strong>de</strong> ani<strong>mal</strong> – e um ser humano que se apaixona (nas versões medievais,<br />

geralmente um cavaleiro durante uma caçada). A misteriosa mulher<br />

aceita casar-se com a condição <strong>de</strong> obediência a um interdito. A união traz<br />

prosperida<strong>de</strong> (riquezas, <strong>de</strong>scendência). Quan<strong>do</strong> o pacto é quebra<strong>do</strong>, ela<br />

<strong>de</strong>saparece revelan<strong>do</strong> sua verda<strong>de</strong>ira forma (BRUNEL, 1988, p. 1001).<br />

Amplamente atesta<strong>do</strong>s na cultura folclórica universal, tais contos<br />

aparecem registra<strong>do</strong>s na literatura <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte medieval nos séculos<br />

XII e XIII, quan<strong>do</strong> passam a apresentar essas fabulosas jovens <strong>de</strong> duas formas:<br />

ora <strong>de</strong>sempenham o papel <strong>de</strong> fadas madrinhas, frequentes na épica,<br />

que vaticinam os heróis para aventuras gloriosas e os auxiliam, ora surgem<br />

como fadas amantes, que oferecem prosperida<strong>de</strong> aos eleitos. Geralmente,<br />

aparecem acompanhadas por animais <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res mágicos, ou por<br />

velozes cavalos com que, por vezes, presenteiam seus ama<strong>do</strong>s. Embora Melusine<br />

seja o mito literário mais populariza<strong>do</strong> pela versão <strong>de</strong> Jean d´Arras,<br />

Le roman <strong>de</strong> Mélusine (1392), estes relatos foram introduzi<strong>do</strong>s na cultura<br />

erudita <strong>do</strong> medievo com o aproveitamento <strong>do</strong> folclore e da tradição oral <strong>de</strong><br />

variadas origens empreendi<strong>do</strong> por autores e organiza<strong>do</strong>res <strong>de</strong> recolhas <strong>de</strong><br />

ane<strong>do</strong>tas, contos e lendas (cf. LE GOFF e LADURIE, 1971).<br />

Concomitantemente ao processo <strong>de</strong> variação e transformação<br />

das narrativas e das socieda<strong>de</strong>s, ao longo <strong>do</strong>s séculos, ocorreu a propagação<br />

<strong>do</strong> cristianismo por toda a Europa e a perseguição aos cultos e às<br />

práticas pagãs anteriores a ele, ocasionan<strong>do</strong> uma mescla entre imaginários<br />

e simbolismos em diferentes graus, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da época e da socieda<strong>de</strong>.<br />

Nogueira explica que, nesse longo e complexo processo, “as superposições<br />

das práticas cristãs aos ritos pagãos se realizavam sempre que estes eram<br />

<strong>de</strong> natureza propícia a serem santifica<strong>do</strong>s” (NOGUEIRA, 2002, p. 36). Por<br />

outro la<strong>do</strong>, “tu<strong>do</strong> o que ele repeliu energicamente como <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> pagão,<br />

como contrário a seus <strong>do</strong>gmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino<br />

<strong>do</strong> Mal. Aos <strong>de</strong>mônios foram emprestadas as imagens que os antigos atribuíam<br />

às divinda<strong>de</strong>s” (NOGUEIRA, 2002, p. 36), por exemplo, os chifres e<br />

os pés <strong>de</strong> bo<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>us Pã que passam a ser atributos <strong>do</strong> diabo.<br />

O processo <strong>de</strong> en<strong>de</strong>moniamento das damas da floresta ocorreu<br />

paralelamente ao <strong>de</strong> sua apropriação pelas linhagens nobres, em <strong>de</strong>corrência<br />

<strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> variação <strong>de</strong> juramentos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a promessa <strong>de</strong> o cavaleiro<br />

não ver a bela toman<strong>do</strong> banho ou durante o sába<strong>do</strong> até os interditos claramente<br />

anticristãos, como <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se benzer, <strong>de</strong> ir à missa ou <strong>de</strong> aspergir<br />

água benta.<br />

72<br />

ABRIL – Revista <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Literatura Portuguesa e Africana da <strong>UFF</strong>, Vol. 4, n° 8, Abril <strong>de</strong> 2012

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