Anteprojeto de pesquisa - SBPJor
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O encontro entre jornalismo e memória: aimée & jaguar, uma<br />
história <strong>de</strong> amor sob o III reich, Berlim, 1943<br />
Adriana Schryver Kurtz 1<br />
Resumo: Sob o que Theodor Adorno chamou <strong>de</strong> a “Era das Catástrofes”,<br />
pequenos focos <strong>de</strong> resistência, solidarieda<strong>de</strong> e amor envolvendo ju<strong>de</strong>us e “arianos”<br />
alemães <strong>de</strong>safiaram o po<strong>de</strong>roso e tirânico regime nazista. Muitos <strong>de</strong>sses momentos<br />
per<strong>de</strong>ram-se para sempre entre escombros e o cálculo frio das estatísticas das vítimas.<br />
Aos sobreviventes da “Solução Final do Problema Ju<strong>de</strong>u”, em geral, coube o silêncio -<br />
última violência em uma sucessão <strong>de</strong> indignida<strong>de</strong>s, arbitrarieda<strong>de</strong>s, espólios e toda<br />
espécie <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>s em ações <strong>de</strong> perseguição, confinamento e <strong>de</strong>portação rumo,<br />
finalmente, ao processo industrial <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. O nazismo, diria Primo Levi, buscou não<br />
apenas a aniquilação física <strong>de</strong> suas vítimas, mas sobretudo o completo apagamento <strong>de</strong><br />
suas memórias. Nesses anos <strong>de</strong> chumbo, uma imprensa manipulada pelo Estado, para fins<br />
<strong>de</strong> propaganda, foi mero instrumento da i<strong>de</strong>ologia dos assassinos, incapaz <strong>de</strong> promover –<br />
ou registrar - qualquer ato <strong>de</strong> resistência e humanida<strong>de</strong>. Décadas após os eventos<br />
traumáticos que macularam o Século XX, o jornalismo parece reencontrar-se com uma <strong>de</strong><br />
suas possibilida<strong>de</strong>s mais <strong>de</strong>licadas e ricas: a do resgate da memória. Este é um caso<br />
pontual <strong>de</strong> tal reencontro.<br />
Palavras chave: Jornalismo, Memória, Testemunho, Holocausto, Resistência<br />
1. UMA HISTÓRIA DE AMOR, ENTRE MEMÓRIAS E NOTAS DE JORNAL<br />
El echo <strong>de</strong> que en los campos [<strong>de</strong> la muerte] ya no muriese el<br />
individuo, sino el ejemplar, tiene que afectar también a la muerte<br />
<strong>de</strong> los que escaparon a la medida. [...] Hitler ha impuesto a los<br />
hombres en estado <strong>de</strong> no-libertad un nuevo imperativo categórico:<br />
orientar su pensamiento y su acción <strong>de</strong> tal modo que Auschwitz no<br />
se repita, que no ocurra nada parecido.<br />
1 Jornalista e Professora da Escola Superior <strong>de</strong> Propaganda e Marketing (ESPM-POA). Doutoranda pelo<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em “Comunicação e Informação” da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Biblioteconomia e<br />
Comunicação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e Mestre no mesmo PPGCOM.
Theodor Adorno – Dialéctica Negativa -1970<br />
Muitas vezes, as crianças dizem: “Mamãe, estou com fome”. Esta guerra<br />
<strong>de</strong> merda. Quem sabe se vamos conseguir sair daqui <strong>de</strong>pois da guerra.<br />
Quem sabe se vão diferenciar entre nós e os nazistas. Meu Deus, como<br />
estamos fartos <strong>de</strong> tudo isto, e achamos também que as pessoas aqui<br />
nunca vão mudar. Guerras heróicas e anti-semitismo. Que nojo! Muito<br />
obrigada! Não quero mais ter nada a ver com esta Alemanha. Não com<br />
esta Alemanha.<br />
Diário <strong>de</strong> Lilly Wust – abril <strong>de</strong> 1945<br />
A autora <strong>de</strong>ste trecho, não realizou seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abandonar o país, tendo sido, ao<br />
menos, diferenciada dos nazistas (e sobretudo pelos nazistas renitentes) <strong>de</strong> uma forma que<br />
muitas vezes materializou-se no mais absoluto <strong>de</strong>sprezo e animosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />
conterrâneos. As pessoas, em geral, pouco mudaram e aquela Alemanha que causara<br />
repugnância mostrou-se, afinal, injusta e incapaz <strong>de</strong> recompensar, <strong>de</strong> qualquer forma, os<br />
terríveis sofrimentos e privações provocados pela tirania nazista e pela guerra 2 . Não fosse<br />
pela iniciativa <strong>de</strong> seu filho Bernd, essa mulher – <strong>de</strong> certa forma uma heroína, ou quem sabe<br />
uma anti-heroína – teria permanecido no mais completo <strong>de</strong>sconhecimento público. Uma<br />
con<strong>de</strong>coração oficial e sua cobertura pela mídia alemã mudaria esse <strong>de</strong>sfecho. “Ontem,<br />
Elisabeth Wust, sessenta e oito anos, <strong>de</strong> Lichterfeld, recebeu das mãos do Senador para<br />
Assuntos Internos, Lummer, a Cruz Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Méritos Especiais (Bun<strong>de</strong>sverdienstkreuz),<br />
concedida pelo Presi<strong>de</strong>nte da República. Entre 1942 e 1945, Elisabeth Wust escon<strong>de</strong>u e<br />
protegeu quatro mulheres judias em seu apartamento no bairro <strong>de</strong> Schmargendorf. Uma<br />
<strong>de</strong>las foi presa pela Gestapo e faleceu no campo <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> Auschwitz. As outras<br />
três sobreviveram ao regime nazista. Trata-se da 21a Cruz <strong>de</strong> Méritos para “heróis<br />
anônimos” – aqueles que prestaram auxílio à pessoas perseguidas durante o regime<br />
nazista.”<br />
Como diria Marta Tafalla no texto Recordar para não repetir: o novo imperativo<br />
categórico <strong>de</strong> T. W. Adorno, está em nossas mãos que o passado e o futuro sejam mais<br />
2 A história do III Reich, perceberia o ju<strong>de</strong>u italiano Primo Levi, sobrevivente <strong>de</strong> Auschwitz, po<strong>de</strong> ser relida<br />
como a guerra contra a memória, falsificação orwelliana da memória, falsificação e negação da verda<strong>de</strong>, diz<br />
2
justos. O passado, diz a autora, “não é o acabado, senão uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linhas<br />
truncadas, histórias interrompidas que temos que herdar, continuar e concluir”. Um<br />
verda<strong>de</strong>iro avanço em termos <strong>de</strong> justiça se sustenta sobre a memória, pois esta mantem um<br />
vínculo com experiências anteriores, capazes <strong>de</strong> gerar um aprendizado moral. “As histórias<br />
individuais ou as histórias conjuntas sedimentam uma experiência que é a única fonte<br />
possível <strong>de</strong> critérios ou <strong>de</strong> normas morais” (Tafalla, 2003:144-145) num mundo para<br />
sempre con<strong>de</strong>nado a recordar os horroros acumulados pelos totalitarismos do Século XX,<br />
que tem em Auschwitz sua expressão <strong>de</strong>finitiva. Por que, diria Adorno, a diferença entre a<br />
morte e o nada é a memória: nos salvamos quando recordamos ou quando nos recordam 3<br />
(apud Tafalla, 2003:150). Tenhamos consciência, adverte Manuel Reyes Mate, na obra La<br />
razón <strong>de</strong> los vencidos, <strong>de</strong> que<br />
alguien ‘nos está esperando’: ha sido anterior a nosotros pero no ha quedado atrás<br />
sino que se nos há a<strong>de</strong>lantado. Quién es ése? Las victimas, el ejército <strong>de</strong><br />
per<strong>de</strong>dores, todos aquellos que no pue<strong>de</strong>n <strong>de</strong>scansar tranquilos porque se les ha<br />
privado <strong>de</strong> su dignidad. Si nos esperan es porque tienen una factura que pasarnos,<br />
tienen unos <strong>de</strong>rechos pendientes que nosotros <strong>de</strong>bemos saldar. Por que nosotros<br />
si ellos son anteriores a nosotros? Porque nuestro bienestar y nuestra felicidad<br />
tienen que ver con ellos [...] Nacemos con una responsabilidad adquirida. Todos<br />
somos here<strong>de</strong>ros <strong>de</strong> injusticias pasadas: unos las heredan como fortunas y otros,<br />
como infortunios” (Mate apud Tafalla, 2003:144)<br />
A breve notícia, em poucas linhas, publicada no Jornal Der Tagesspiegel, em 22 <strong>de</strong><br />
setembro <strong>de</strong> 1981, na República Fe<strong>de</strong>ral da Alemanha, seria apenas uma das manifestações<br />
da imprensa germânica sobre o reconhecimento – burocrático e tardio – à Elisabeth Wust,<br />
nascida Kappler, conhecida em seu pequeno círculo mais íntimo como Lilly, por <strong>de</strong>safiar o<br />
nazismo <strong>de</strong> Adolf Hitler e sua camarilha ao dar abrigo para quatro mulheres con<strong>de</strong>nadas à<br />
Márcio Seligmann-Silva ao apresentar a obra História, Memória, Literatura: O Testemunho na Era das<br />
Catástrofes (2003:52)<br />
3 Adorno parece seguir a posição <strong>de</strong> Walter Benjamin recuperada por Reyes Mate no texto En torno <strong>de</strong> una<br />
justicia anamnética”, sobre o alcance do po<strong>de</strong>r da memória diante do <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> se fazer justiça aos que<br />
foram vítimas <strong>de</strong> traumas e violências como a da Shoah. Numa controvérsia travada em correspondência com<br />
Max Horkheimer, Benjamin diria que a memória, ao contrário das ciências históricas, seria capaz <strong>de</strong> “abrir<br />
expedientes que estas davam por encerrado”; ou seja, a memória po<strong>de</strong>ria manter vivos direitos ou<br />
reivindicações que para a ciência estariam prescritos ou saldados. Horkheimer respon<strong>de</strong>u, entre irônico e<br />
céptico, que somente sobreviviam ao tempo os direitos dos vencedores, que serão os dominantes no presente.<br />
Os direitos das vítimas, ao contrário, <strong>de</strong>cairiam, já que “os mortos, mortos estão”. A afirmação <strong>de</strong> que o<br />
passado é cancelado seria i<strong>de</strong>alista. A injustiça passada ocorreu e acabou. “Os vencidos estão <strong>de</strong>finitivamente<br />
vencidos” (apud Mates, 2003:116)<br />
3
“Solução Final do Problema Ju<strong>de</strong>u”, como se costumava dizer, na novilingua do Nacional-<br />
Socialismo, no início dos anos 40. Eram elas as Dras. Katja Laserstein, 45 anos e Rose<br />
Ollendorf, 40 anos, além <strong>de</strong> Lucie Friedlaen<strong>de</strong>r, 51 anos (que em agosto <strong>de</strong> 1945, enquando<br />
o Reich <strong>de</strong>saba, comete suicídio na casa <strong>de</strong> Lilly, envenenando-se com o remédio Veronal).<br />
A mulher presa pela Gestapo a que se refere a nota chamava-se Felice Rahel Schragenheim,<br />
nascida em março <strong>de</strong> 1922 em Berlim. Detida quando as duas retornavam ao apartamento<br />
<strong>de</strong> Lilly, Felice será imediatamente enviada para o tristemente afamado prédio na<br />
Schulstrasse 78, o Hospital Judaico, transformado em centro <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção dos ju<strong>de</strong>us que<br />
ainda eram localizados na capital do Reich, a maioria encerrando uma vida clan<strong>de</strong>stina.<br />
De Schullstrasse – <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se sabia já na época que seus <strong>de</strong>tentos eram <strong>de</strong>portados<br />
para o Leste – Felice Schragenheim seria transferida para o gueto <strong>de</strong> Theresienstadt, a 350<br />
km <strong>de</strong> distância, no transporte <strong>de</strong> número 14.890-I/116. A data exata <strong>de</strong>sta viagem: 8 <strong>de</strong><br />
setembro <strong>de</strong> 1944. Esta ainda não seria a última informação precisa sobre os trajetos da<br />
judia “Felice Sara Schragenheim” rumo às estatísticas aproximadas <strong>de</strong> vítimas do<br />
Holocausto. De Theresienstadt, on<strong>de</strong> Elisabeth Wust tentaria em vão vê-la pessoalmente,<br />
Felice acabaria removida para Auschwitz no dia 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1944, num vagão <strong>de</strong> gado<br />
do transporte número Ep-342, isso num momento em que a indústria da guerra <strong>de</strong>mandava<br />
urgentemente <strong>de</strong> trabalhadores e trabalhadores ju<strong>de</strong>us. Sua permanência em Auschwitz,<br />
verda<strong>de</strong>iro símbolo dos campos da morte, até on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> reconstituir – <strong>de</strong> forma sempre<br />
incompleta – teria sido breve.<br />
Uma nova transferência encaminharia a prisioneira para o complexo <strong>de</strong> Gross-<br />
Rosen, localizado na Baixa Silésia, a 60 quilômetros <strong>de</strong> Wrocklaw (Breslau). O campo <strong>de</strong><br />
proprieda<strong>de</strong> da Deutsche Erd-und SteinwerkeGmbH, fora construído em maio <strong>de</strong> 1939<br />
perto da pedreira <strong>de</strong> granito <strong>de</strong> Gross-Rosen, inaugurado em agosto <strong>de</strong> 1940 como posto <strong>de</strong><br />
comando do campo <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> Sachsenhausen e transformado, em maio <strong>de</strong> 1941,<br />
num campo <strong>de</strong> concentração autônomo, passando a contar com um número <strong>de</strong> até 160<br />
unida<strong>de</strong>s dos assim chamados “comandos externos”. Estes campos afiliados, integrados por<br />
500 a mil trabalhadores escravos, produziam para gran<strong>de</strong>s grupos industriais alemãos como<br />
IG-Farben, Siemens-Halske e Kruppe, além <strong>de</strong> tecelagens e empresas <strong>de</strong> armamentos.<br />
Gross-Rosen veria crescer o contingente <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra escrava e <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us<br />
evacuados dos campos <strong>de</strong> Plaszow e Auschwitz-Birkenau no final <strong>de</strong> 1943, como resultado<br />
4
<strong>de</strong> uma reorganização dos métodos da SS para exploração da força <strong>de</strong> trabalho judaica. O<br />
campo ainda receberia, <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1944 a início <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1945, um fluxo contínuo <strong>de</strong><br />
ju<strong>de</strong>us da Polônia, Húngria, Bélgica, França, Grécia, Iugoslávia, Eslováquia e Itália. Em<br />
janeiro <strong>de</strong> 1945, Felice Schragenheim somava seu nome, ou número, à contabilida<strong>de</strong> geral<br />
<strong>de</strong> Gross-Rosen: 80 mil presos, dos quais um terço formado por mulheres. Era o terceiro<br />
maior campo <strong>de</strong> concentração feminino, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Ravensbrück e Stutthof. Ao final <strong>de</strong><br />
janeiro – ou entre esse período e o mês <strong>de</strong> fevereiro – as <strong>de</strong>tentas <strong>de</strong> Gross-Rosen começam<br />
longas marchas a pé rumo ao interior do Reich. A evacuação tem en<strong>de</strong>reços variados:<br />
Bergen-Belsen, Buchenwald, Dachau, Flossenbürg, Mauthausen e Mittelbau. Durante estas<br />
“marchas da morte”, 36 mil pessoas fizeram seus últimos esforços pela sobrevivência: a<br />
exata circunstância <strong>de</strong>stes óbitos permanecerão uma incógnita para <strong>pesquisa</strong>dores e<br />
familiares .<br />
Informações <strong>de</strong>sencontradas chegariam a dar conta <strong>de</strong> que Felice Schragenheim fora<br />
transferida <strong>de</strong> Gross-Rosen para Bergen-Belsen. A carta <strong>de</strong> uma conhecida, datada <strong>de</strong><br />
agosto <strong>de</strong> 1945, narra até mesmo que Felice teria sido vista <strong>de</strong>pois da libertação, fazendo<br />
planos para viajar para algum lugar – a informante não lembra qual – a fim <strong>de</strong> se recuperar<br />
do <strong>de</strong>licado estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Mas ao final do ano, Elisabeth Wust manda uma carta a Irene<br />
Schragenheim, irmã <strong>de</strong> Felice, dizendo-se “sem esperanças” após saber da transferência <strong>de</strong><br />
700 mulheres <strong>de</strong> Gross-Rosen para Bergen-Belsen nos meses <strong>de</strong> janeiro e fevereiro:<br />
praticamente todas teriam morrido <strong>de</strong> fome e <strong>de</strong> tifo. Em junho <strong>de</strong> 1946, uma última carta<br />
parece colocar por terra qualquer esperança: uma prisioneira que logrou sobreviver a<br />
marcha, garantia não ter cruzado com nenhuma Felice, que tampouco era lembrada por seus<br />
companheiros <strong>de</strong> infortúnio. “Infelizmente, ela <strong>de</strong>ve ter dividido o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong><br />
colegas <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> concentração”, dizia a informante (apud Fischer, 1999:264-270).<br />
Mas Lilly continuaria procurando, fazendo contatos e, sobretudo, esperando durante<br />
os anos <strong>de</strong> 1946 e 1947, sob enormes dificulda<strong>de</strong>s num país arrassado e administrado por<br />
autorida<strong>de</strong>s dos governos aliados. Seus quatro filhos, frutos <strong>de</strong> seu casamento com Günther<br />
Wust, soldado do exército e nazista convicto – além <strong>de</strong> anti-semita - também anseiam pelo<br />
retorno da jovem que em pouco mais <strong>de</strong> um ano, cativara a família Wust. “Mamãe, Tia<br />
Felice vai voltar” dizia Albrecht, ao ver a mãe entristecida. A espera é inútil: no dia 14 <strong>de</strong><br />
fevereiro <strong>de</strong> 1948, a judia Felice Schragenheim é oficialmente consi<strong>de</strong>rada morta pelo<br />
5
Fórum <strong>de</strong> Berlin-Charlottenburg. A data <strong>de</strong> seu falecimento é fixado aleatoriamente como<br />
sendo em 31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1944. Nesse dia, Elisabeth Wust sente ruir o seu mundo já tão<br />
fragilizado e vazio. Felice, ou melhor Jaguar era, como costumava dizer Lilly, “minha<br />
única pessoa”. Em abril <strong>de</strong> 1945, quando ainda alimentava esperanças <strong>de</strong> revê-la com vida,<br />
escrevera em seu diário: “Reza por nós agora, minha única pessoa. Talvez só reste este<br />
diário para falar <strong>de</strong>ste meu gran<strong>de</strong> amor. Deus, faça com que nos reencontremos. Faça com<br />
que possamos esquecer, juntas, o que sofremos. Deus todo-po<strong>de</strong>roso. Amo-te Felice<br />
Schragenheim, até a morte” (Wust apud Fischer, 1999:247)<br />
Era o fim <strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> amor improvável e talvez por isso mesmo, fascinante.<br />
A judia Felice Rahel Schragenheim, 20 anos, entra na vida <strong>de</strong> Elisabeth Wust, con<strong>de</strong>corada<br />
com a cruz da Maternida<strong>de</strong> em bronze, quando seu quarto filho completa um ano, uma<br />
típica dona <strong>de</strong> casa alemã. O marido Günter Wust, na vida civil funcionário do Deutsche<br />
Bank, cumpre serviço militar em Bernau, perto <strong>de</strong> Berlim. O apartamento espaçoso com<br />
seus quatro quartos ostenta uma efígie do Führer, possui um exemplar <strong>de</strong> “Minha Luta” e<br />
recebe, regularmente, o Völkischer Beobachter. Tratava-se, nas palavras <strong>de</strong> Lilly, <strong>de</strong> “uma<br />
família fiel aos i<strong>de</strong>ais alemães”, com um <strong>de</strong>talhe igualmente fiel aos i<strong>de</strong>ais alemães da<br />
época: Günter, um “verda<strong>de</strong>iro prussiano”, embora não fosse filiado ao NSDAP, era nazista<br />
e com clara tendência anti-semita. “Ele era simplesmente um bom alemão” diria, <strong>de</strong> forma<br />
singela e quem sabe realista, sua ex-esposa e mãe <strong>de</strong> seus três filhos (Fischer, 1999: 16-17).<br />
O quarto rebento seria fruto <strong>de</strong> um dos casos extra-conjugais <strong>de</strong> Elisabeth, que começou a<br />
receber outros homens em sua casa tão logo <strong>de</strong>scobriu que o marido tinha uma amante.<br />
Pois esta história <strong>de</strong> amor improvável, acabaria emergindo no gran<strong>de</strong> oceano da<br />
História, em toda a sua incompletu<strong>de</strong> e singeleza. A cobertura pela imprensa alemã da<br />
con<strong>de</strong>coração <strong>de</strong> Lilly com a Or<strong>de</strong>m Fe<strong>de</strong>ral do Mérito teria um outro <strong>de</strong>sdobramento.<br />
Quatro anos <strong>de</strong>pois do reconhecimento público <strong>de</strong> sua intervenção pela vida <strong>de</strong> quatro<br />
mulheres perseguidas pelo “Reich <strong>de</strong> mil anos”, um jornalista norte-americano consegue<br />
localizar Elisabeth Wust, com a ajuda do senado <strong>de</strong> Berlim: ele quer incluir sua história<br />
numa obra que planeja escrever com o nome sugestivo <strong>de</strong> The Good Germans. Uma<br />
testemunha certamente propensa a revelar seu segredo encontra um profissional tarimbado<br />
na arte <strong>de</strong> arrancar <strong>de</strong> seus interlocutores suas mais íntimas vivências, impressões e<br />
convicções. Estamos em 1985, quarenta e um anos haviam passado. E então, Lilly falaria a<br />
6
verda<strong>de</strong>. “Que a judia Schragenheim não era apenas sua amiga, mas também a sua vida”.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, ela chegaria a dizer: “Às vezes fico triste, agora a história não é mais só minha”<br />
(apud Fischer, 1999:278).<br />
CULTURAL<br />
2. A MEMÓRIA POSSÍVEL A PARTIR DO UNIVERSO DA INDÚSTRIA<br />
É a memória, diz Tafalla, quem po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e redimir a história, ao salvar ao<br />
indivíduo. Se a história <strong>de</strong>sfila em direção ao futuro ao som do esquecimento e da<br />
ignorância, assumindo que seus avanços – “o progresso” 4 – se pagam com sofrimento<br />
individual, na memória o indivíduo toma consciência <strong>de</strong> si e resiste à narração oficial da<br />
história. O objeto da memória das histórias contra a História será, antes <strong>de</strong> tudo, a dor –<br />
mas não para reduzí-la a mero luto (Tafalla, 2003:141). “A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar falar a<br />
dor é condição para toda a verda<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>cretaria Adorno na sua Dialética Negativa. A dor,<br />
há que se notar, é individual e não se <strong>de</strong>ixa compreen<strong>de</strong>r sem recuperar a perspectiva do<br />
indivíduo que foi transformado por ela.<br />
Desta forma, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer a verda<strong>de</strong> da dor se transforma em uma<br />
chamada às vítimas para que ofereçam seu testemunho e, em geral, uma chamada às vozes<br />
individuais, reclamando <strong>de</strong> todos eles uma transmissão <strong>de</strong> sua experiência – mas que<br />
encontra a sua forma privilegiada, sustentará Adorno, em autênticas obras <strong>de</strong> arte (Tafalla,<br />
2003:142). Pois neste caso, ironicamente, não se trata da expressão estética - a “arte<br />
séria” 5 - como preferiria o filósofo frankfurtiano, mas antes do que ele chamou, com Max<br />
Horkheimer, <strong>de</strong> “Indústria Cultural” (1985). De qualquer forma será nesse âmbito, do<br />
4 “Quando se proclama o progresso se instaura o esquecimento e se nega o direito a existência do passado, no<br />
qual são enterrados os per<strong>de</strong>dores”. A advertência <strong>de</strong> Adorno se refere a uma visão <strong>de</strong> progresso que<br />
<strong>de</strong>slumbra com uma falsa esperança, que ven<strong>de</strong> “futuros” em troca da dor do presente, enquanto permite que<br />
no futuro o sofrimento seja maior. Daí que “todo progresso protegido pelas mentiras do esquecimento é um<br />
cheque em branco à barbárie” (Tafalla, 2003:145)<br />
5 Os que sofreram não são apenas vítimas, um per<strong>de</strong>dor carente <strong>de</strong> futuro, mas um narrador em potência. É<br />
um possuidor <strong>de</strong> conhecimentos vitais que os “vencedores” (os algozes) per<strong>de</strong>m ou falseiam, conhecimentos<br />
esses que <strong>de</strong>ve transmitir ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>nuncia a injustiça cometida. Disso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> sua<br />
salvação, bem como a justiça futura. Assim, a liberda<strong>de</strong> perdida pelo ser vítima da história po<strong>de</strong> ser<br />
recuperada quando ele se converte em autor <strong>de</strong> sua própria história. Quem não po<strong>de</strong> criar sua vida livremente,<br />
po<strong>de</strong> sim recria-la em uma obra <strong>de</strong> arte e transformar-se nela, oferecendo à socieda<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, por<br />
sua vez, também transformar-se. Desta forma, para Adorno “memória e liberda<strong>de</strong> se realizam no testemunho<br />
e, <strong>de</strong> forma mais plena, na obra <strong>de</strong> arte” (Tafalla, 2003:142).<br />
7
encontro e da interrelação entre jornalismo e memória, que o testemunho <strong>de</strong> Lilly subverte<br />
a lógica do Holocausto: trata-se <strong>de</strong> uma “ariana” que em meio à socieda<strong>de</strong> dos algozes vê<br />
partir, para sempre, a vítima a quem prometera “amar até a morte”.<br />
Coube a uma mulher alemã assumir não apenas o que Jürgen Habermas chamou <strong>de</strong><br />
“peso da culpa coletiva” mas dar um passo adiante, fazendo uma ponte entre a admissão da<br />
culpa e o <strong>de</strong>ver moral que ela implica. “A frente <strong>de</strong> tudo está o <strong>de</strong>ver que temos aqui na<br />
Alemanha... <strong>de</strong> manter viva a memória do sofrimento daqueles que pereceram nas mãos dos<br />
alemães” (apud Dreizik, 2001:15), diria o integrante da segunda geração da Teoria Crítica e<br />
da chamada Escola <strong>de</strong> Frankfurt num famoso <strong>de</strong>bate travado com historiadores<br />
revisionistas germânicos – a Historikerstreit, entre os anos <strong>de</strong> 1986 e 1987.<br />
Pois à Felice Sara Schragenheim, como a outros milhões <strong>de</strong> vítimas, não foi<br />
concedida a dura prerrogativa <strong>de</strong> oferecer o seu testemunho (pensemos na trajetória <strong>de</strong><br />
Primo Levi). Seu presumível fim só po<strong>de</strong> ser evocado a partir do relato <strong>de</strong> seus<br />
companheiros, dos poucos que sobreviveram. Como lembraria o historiador Saul<br />
Friedlan<strong>de</strong>r, numa obra em que refletiu sobre os dilemas e responsabilida<strong>de</strong>s da relação<br />
entre história e memória, “o testemunho das vítimas são nossa única fonte para a história <strong>de</strong><br />
sua própria morte e seu caminho rumo à <strong>de</strong>struição” uma vez que “evoca, a sua maneira,<br />
caóticamente, a profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu terror, <strong>de</strong>sesperação, apática resignação e total<br />
imcompreensão” (Friedlan<strong>de</strong>r apud Dreizik, 2001:13).<br />
As matérias jornalísticas que tiraram Elisabeth Wust do anonimato a partir do dia 22<br />
<strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1981, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> registrar, assim, a ótica mais emocionante daqueles fatos<br />
dos anos 40. Uma história <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, humanida<strong>de</strong> e coragem que envolvia Katja<br />
Laserstein, Rose Ollendorf e Lucie Friedlaen<strong>de</strong>r, mas que ganhava contornos <strong>de</strong> uma<br />
paixão e erotismo explosivos em relação à Felice Rahel Schragenheim, aliás Jaguar. Nada<br />
menos do que um amor lesbiano na Alemanha misógena <strong>de</strong> Adolf Hitler, on<strong>de</strong> as mulheres<br />
– tais como as massas – segundo afirmava o próprio Führer, gostavam <strong>de</strong> ser dominadas e,<br />
no limite, violentadas, não seria consi<strong>de</strong>rado, afinal, um fato banal. Lilly conheceria Felice<br />
por intermédio <strong>de</strong> Inge Wolf, que aos 21 anos se vê obrigada pelo Reich a cumprir seu “ano<br />
doméstico obrigatório”, numa casa com pelo menos quatro crianças, acabando por tornar-se<br />
a empregada da família Wust. Inge e Felice nesta época são amantes, embora a relação seja<br />
aberta e permita a ambas esporádicas aventuras sexuais com outras mulheres. Já vivendo na<br />
8
clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> e escondida na casa dos pais <strong>de</strong> Inge, Felice acompanha <strong>de</strong>liciada os relatos<br />
e fofocas da namorada acerca <strong>de</strong> Elisabeth Wust. De fato, começa a fantasiar um<br />
envolvimento amoroso com a mulher ruiva e esbelta, <strong>de</strong> 29 anos, que trai o marido nazista<br />
com outros homens enquanto cria quatro adoráveis crianças.<br />
Ousada e <strong>de</strong>cidida, Felice convenceria Inge a apresentá-la para a Sra. Wust. Em 27<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1942, Lilly e Inge dirigem-se ao Café Berlin, ao lado do UFA-Palast, na<br />
estação Zoo, para um encontro “com uma das amigas <strong>de</strong> Inge”. Lilly já percebera que sua<br />
empregada era lésbica, mas discreta, aparenta ingenuida<strong>de</strong>. E então, ela se <strong>de</strong>para com uma<br />
jovem morena, <strong>de</strong> aspecto cuidado, vestindo um tailleur <strong>de</strong> fino tecido inglês, as pernas<br />
compridas em meias <strong>de</strong> seda - um visual bastante feminino para Felice que, em geral,<br />
ostenta uma postura mais masculinizada. A impressão sobre Lilly é imediata. A sra. Wust<br />
não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> notar um sorriso aberto com <strong>de</strong>ntes impecáveis e uma alegria contagiante, a<br />
maneira fascinante <strong>de</strong> dizer as coisas – qualquer coisa -; as mãos alongadas e finas, o<br />
perfume. E alguma coisa em Elisabeth <strong>de</strong>sperta <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse encontro. Ao final, Felice lhe<br />
oferece uma maça que Lilly segura com um tremor nas mãos, enquanto tem a impressão <strong>de</strong><br />
que a moça lhe dá uma pisca<strong>de</strong>la marota.<br />
Alguns dias <strong>de</strong>pois, Felice pisará pela primeira vez no apartamento da rua<br />
Friedrichshaller Strasse, número 23 e em breve outras amigas <strong>de</strong> Inge povoam a casa dos<br />
Wust para a satisfação <strong>de</strong> Elisabeth, que graças aos quatro filhos recebe cotas <strong>de</strong><br />
mantimentos bem além da média geral. Cada vez mais ousada, Felice começa a seduzir<br />
Lilly abertamente. Buquês <strong>de</strong> flores e telefonemas constantes vão envolvendo cada vez<br />
mais Elisabeth num jogo cujos riscos, todavia, ainda não lhe parecem claros. Assim, o<br />
réveillon <strong>de</strong> 1942 é animadíssimo e o próprio Günter fica satisfeito em ver sua casa tomada<br />
por tantas mulheres, cuja presença e alegria <strong>de</strong>ixam a esposa feliz como há muito tempo ele<br />
não via. Mas em 27 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1943, as medidas contra os ju<strong>de</strong>us são radicalizadas e<br />
todos os trabalhadores ju<strong>de</strong>us que ainda estão em Berlim prestando serviços forçados são<br />
<strong>de</strong>tidos nas fábricas e encaminhados para campos <strong>de</strong> concentração. Em primeiro <strong>de</strong> março,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comemorações pomposas <strong>de</strong>dicadas à Luftwaffe, a força aérea alemã, um<br />
bombar<strong>de</strong>io inglês aterrorisa a capital, <strong>de</strong>ixando mais <strong>de</strong> 700 mortos e cerca <strong>de</strong> 65 mil<br />
<strong>de</strong>sabrigados. Nesse clima, Felice foge para o interior com uma amiga – mais velha e<br />
“heterossexual” - por quem aliás nutre certa paixão.<br />
9
Após essa rápida separação, amenizada por cartas entre Lilly e Felice, o<br />
envolvimento vai finalmente se concretizar, <strong>de</strong> forma algo cinematográfica. A primeira<br />
noite <strong>de</strong> amor ocorrerá em 2 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1943. A partir daí, tornam-se inseparáveis. No mês<br />
<strong>de</strong> setembro do mesmo ano, Elisabeth e Felice – auto<strong>de</strong>nominadas Aimée e Jaguar –<br />
trocam alianças. A família Kappler será comunicada da nova situação, bem como o marido<br />
<strong>de</strong> Lilly. Ela quer o divórcio, o que lhe trará <strong>de</strong>svantagens econômicas; após muitas brigas<br />
e discussões com Günter chegam a um acordo. Em 12 <strong>de</strong> outubro do mesmo ano, o divórcio<br />
se realiza no Fórum Alexar<strong>de</strong>rplatz, enquanto Jaguar espera do lado <strong>de</strong> fora, tremendo <strong>de</strong><br />
frio. Dois meses antes, Felice recebera uma proposta <strong>de</strong> amigos que viviam na<br />
clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> para tentar a fuga da Alemanha. Ela hesita. Está apaixonada por sua Aimée.<br />
Deci<strong>de</strong> ficar e Lilly, diante <strong>de</strong>ste gesto, tem a certeza <strong>de</strong> que seu amor por essa mulher<br />
judia é incondicional. A Alemanha ruma para o caos, progressiva e lentamente. Mas as<br />
duas amantes quase conseguem ignorar aquele mundo prestes a ruir.<br />
Felice Rahel Schragenheim mantêm uma ativa vida clan<strong>de</strong>stina. Num contexto <strong>de</strong><br />
perigo e ameaça diária, ela praticamente flerta com a possibilida<strong>de</strong> do fim. Ainda que suas<br />
ativida<strong>de</strong>s continuem, em gran<strong>de</strong> parte, envoltas em mistério – o <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong><br />
amigos e pessoas próximas quanto as tarefas na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> era uma medida <strong>de</strong><br />
proteção vital – o certo é que Felice trabalhou na imprensa alemã <strong>de</strong> seu tempo, talvez a<br />
mais controlada e manipulada entre todas as mídias dos regimes fascistas da época. Sua<br />
breve incursão no jornalismo 6 (carreira com a qual ela sonhava) incluiu a redação da<br />
sucursal berlinense da National-Zeitung <strong>de</strong> Essen, o “órgão do Partido Nacional-Socialista<br />
dos trabalhadores alemães”.<br />
Como se vê, as histórias <strong>de</strong> Felice e Elisabeth são cruzadas pela presença do<br />
jornalismo ao longo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> meio século. Um espaço que nos anos 40 significava para<br />
Felice dar conta da necessida<strong>de</strong> premente <strong>de</strong> obter informações sobre a guerra, além <strong>de</strong> sua<br />
presumível missão como espiã – repassando dados <strong>de</strong> interesse aos aliados, através <strong>de</strong> um<br />
6 Felice também adorava fotografia e era inseparável <strong>de</strong> sua câmera Leica. O gosto por fotografar a si e as<br />
suas amigas lhe custaria caro. Foi a partir <strong>de</strong> uma foto, em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma conhecida presa pela Gestapo, que<br />
ela seria i<strong>de</strong>ntificada e caçada. Uma das <strong>de</strong>poentes do livro crê que Felice tenha trabalhado no Völkischer<br />
Beobachter, hipótese aparentemente pouco provável. O fato é que sua falsa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e o acesso a mídia da<br />
época lhe garantiam estar constantemente informada sobre os acontecimentos da guerra. Há ainda o relato <strong>de</strong><br />
que Felice teria conseguido documentação sobre “Assuntos Confi<strong>de</strong>nciais do Reich” sobre <strong>de</strong>portações <strong>de</strong><br />
ju<strong>de</strong>us para a Hungria. Em Aimée & Jaguar (1999).<br />
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contato. E que, em meados da década <strong>de</strong> 80, possibilitou que a verda<strong>de</strong> sobre Felice e Lilly<br />
– a verda<strong>de</strong> presumida ou a memória <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las – pu<strong>de</strong>sse vir a tona, para integrar um<br />
livro <strong>de</strong> um jornalista dos EUA sobre “os bons alemães”. O testemunho <strong>de</strong> Elisabeth Wust<br />
finalmente, seria explorado em toda a sua riqueza pela jornalista Erica Fischer na obra<br />
Aimée & Jaguar: Uma história <strong>de</strong> amor, Berlim 1943, publicado na Alemanha em 1994 e<br />
editado no Brasil cinco anos <strong>de</strong>pois.<br />
Ainda que se possa fazer restrições ao trabalho <strong>de</strong> Erica Fischer 7 , o fato é que suas<br />
longas conversas com a velha senhora Elisabeth Wust e a busca pelas testemunhas da<br />
época, em entrevistas certamente dificultadas pela ida<strong>de</strong> das personagens que, <strong>de</strong> alguma<br />
forma, acompanharam aquela história <strong>de</strong> amor na Berlim <strong>de</strong> 1943, possibilitaria recuperar<br />
uma pequena pérola, <strong>de</strong> outra forma varrida para sempre da História. Há que se atentar para<br />
a força e beleza dos poemas e das cartas trocadas pos Aimée e Jaguar, além do diário que<br />
Lilly inicia naquele fatídico dia 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1944, quando na volta <strong>de</strong> um passeio sob o<br />
sol à beira do Rio Havel, os homens da Gestapo flagraram as duas amantes, levando “a<br />
judia Felice Sara Schragenheim” para a prisão, primeira etapa <strong>de</strong> um tortuoso roteiro que<br />
incluíria Theresienstadt, Auschwitz-Birkenau, Gross-Rosen e provavelmente Bergen-<br />
Belsen.<br />
Dessa combinação entre matérias banais, reportagem, projetos editoriais, <strong>pesquisa</strong><br />
histórica, entrevistas, diários, cartas, poemas, fotografias <strong>de</strong> época, registros<br />
historiográficos, relatos variados dos sobreviventes e testemunho, emerge uma Felice<br />
Schragenheim – ou um Jaguar - que certamente é (também ou em gran<strong>de</strong> parte) uma<br />
criação <strong>de</strong> memórias externas a sua própria pessoa. Eis uma Felice todavia possível, saindo<br />
do anonimato no qual se encontrava juntamente a cinco ou seis milhões <strong>de</strong> vítimas, todas<br />
<strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> seus rostos, vozes, nomes, documentos, posses, <strong>de</strong> suas biografias e<br />
lembranças, suas pequenas rotinas ou suas possibilida<strong>de</strong>s interrompidas, arbitrária e<br />
violentamente. Pois a memória, como observaria Marta Tafalla, não é apenas recordação do<br />
7 A jornalista, escritora e tradutora Erica Fischer parece misturar a questão das opções que tiveram Lilly e<br />
Felice com as <strong>de</strong> sua própria vida pessoal. Há um foco <strong>de</strong> tensão não resolvida que acaba por levar a autora a<br />
um implícito julgamento – e con<strong>de</strong>nação – sobre sua principal fonte, Elisabeth Wust. O epílogo da obra é<br />
digna <strong>de</strong> uma junta psicanalítica. Essa postura vai impregnar inclusive o ponto <strong>de</strong> vista da narrativa <strong>de</strong><br />
Aimée&Jaguar filmado por Max Färberbock. O filme, belíssimo e premiado no Festival <strong>de</strong> Berlim <strong>de</strong> 1999<br />
chega ao ridículo <strong>de</strong> sugerir que a “culpa” da <strong>de</strong>portação e morte <strong>de</strong> Felice Schragenheim po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> sua<br />
amante, ao tentar vê-la pessoalmente em Theresienstadt.<br />
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que foi, mas sempre também do que po<strong>de</strong>ria haver sido, dos “sonhos estacionados em ruas<br />
mortas” 8 (2003:145).<br />
O resgate <strong>de</strong> Jaguar, a partir das lembranças <strong>de</strong> sua Aimée está vinculado, em três<br />
momentos distintos – 1981, 1985 e 1994 –, ao Jornalismo contemporâneo. Com Erica<br />
Fischer, em meados da década <strong>de</strong> 1990, a jovem judia <strong>de</strong> modos refinados e orientação<br />
homossexual, morta aos 22 anos sob circunstâncias para sempre ignoradas, resistiria, <strong>de</strong><br />
alguma forma, à “guerra contra a memória” promovida pelo Terceiro Reich há meio século.<br />
Esse enfrentamento, ironicamente, se dá no âmbito do que Adorno e Horkheimer, com<br />
tamanho vigor, criticaram radicalmente no seu texto sobre a Indústria Cultural (1985) e que<br />
Walter Benjamin responsabilizou pelo <strong>de</strong>clínio – e morte – da arte da narrativa. Num texto<br />
memóravel intitulado O Narrador: Consi<strong>de</strong>rações sobre a obra <strong>de</strong> Nikolai Leskov,<br />
Benjamin, amigo e mentor intelectual <strong>de</strong> Adorno, ele mesmo uma das vítimas do III Reich,<br />
fazia ver que uma nova forma <strong>de</strong> comunicação - a informação - passava a exercer uma<br />
influência notável, mas nefasta, sobre a forma épica. A consolidação da burguesia, “da qual<br />
a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes” correspondia à<br />
consolidação <strong>de</strong> um outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> comunicação, simplesmente “incompatível com o<br />
espírito da narrativa” (1994:202)<br />
Benjamin percebia com luci<strong>de</strong>z que o romance burguês já tendia a transformar a<br />
arte da narrativa. Tratava-se do “primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da<br />
narrativa”. Mas as notícias (fatos que já nos chegam acompanhados <strong>de</strong> explicações,<br />
plausíveis e passíveis <strong>de</strong> verificação imediata) são mais ameaçadoras do que o romance; e<br />
<strong>de</strong> resto provocam uma crise no próprio romance. “Cada manhã recebemos notícias <strong>de</strong> todo<br />
o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreen<strong>de</strong>ntes”. Essa perda do sentido<br />
da experiência 9 – uma vez que as experiências estão <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser comunicáveis – é<br />
coerente com um mundo no qual, “quase nada o que acontece está a serviço da narrativa, e<br />
8 Eis a dimensão utópica, que na leitura <strong>de</strong> Marta Tafalla para uma filosofia da memória em Adorno, estaria<br />
ligada à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rememorar. Pois a memória é capaz <strong>de</strong> recuperar uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caminhos<br />
possíveis que foram <strong>de</strong>scartados e que seguem prometendo futuros distintos – tanto para a história da<br />
humanida<strong>de</strong> quanto para cada história individual (2003:145).<br />
9 A Primeira Guerra Mundial evi<strong>de</strong>nciou esta crise. Terminada a matança, os combatentes “voltavam mudos<br />
do campo <strong>de</strong> batalha”. Estes homens, portanto, nãoretornavam mais ricos e sim mais pobres em experiência<br />
comunicável”. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar <strong>de</strong>vidamente. “É como se estivéssemos<br />
privados <strong>de</strong> uma faculda<strong>de</strong> que nos parecia segura e inalienável: a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> intercambiar experiências”.<br />
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quase tudo está a serviço da informação”. Não se trata, como se po<strong>de</strong> perceber, <strong>de</strong> uma<br />
questão meramente estética ou mesmo “comunicacional”. Se a arte <strong>de</strong> narrar está<br />
<strong>de</strong>finhando é porque “a sabedoria – o lado épico da verda<strong>de</strong> – está em extinção” (Benjamin,<br />
1994:201-203).<br />
É <strong>de</strong> se pensar até que ponto a memória e o testemunho sejam a virtual possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> reverter ou, ao menos, amenizar, o <strong>de</strong>clínio da narrativa – ao herdar e manter algo <strong>de</strong> seu<br />
espírito. Uma pista positiva nos é dada pelo próprio Benjamin: se a informação “só tem<br />
valor no momento em que é nova”, a narrativa, ao contrário, “conserva as suas forças e<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo ainda é capaz <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver” (1994:204). Também é instrutivo<br />
lembrar que a idéia <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> se atrofia e que a morte per<strong>de</strong>, no <strong>de</strong>correr dos últimos<br />
séculos, “sua onipresença e sua força <strong>de</strong> evocação”, já que a socieda<strong>de</strong> burguesa do século<br />
XIX, com suas instituições higiênicas, permite aos homens evitarem o espetáculo (até então<br />
público e <strong>de</strong> caráter exemplar) da morte. Assim, “a morte é cada vez mais expulsa do<br />
universo dos vivos”. Pois é justamente no momento da morte “que o saber e a sabedoria do<br />
homem e sobretudo sua existência vivida – e é <strong>de</strong>ssa substância que são feitas as histórias –<br />
assumem pela primeira vez uma forma transmissível (Benjamin, 1994:207).<br />
Assim como no interior do agonizante <strong>de</strong>sfilam inúmeras imagens – visões <strong>de</strong> si<br />
mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso – assim o<br />
inesquecível aflora <strong>de</strong> repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que<br />
lhe diz respeito aquela autorida<strong>de</strong> que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer,<br />
para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está esta autorida<strong>de</strong><br />
(Benjamin, 1994:207-208).<br />
Teria a memória das vítimas da Shoah reavivado, <strong>de</strong> alguma forma, algo da força<br />
em <strong>de</strong>composição dos significados <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> e da morte – bem como <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong><br />
- tão vitais para a narração? Tais questões permanecem em aberto. Talvez a resposta <strong>de</strong>va<br />
ser buscada em obras como as <strong>de</strong> Primo Levi, Paul Celan, Jorge Semprún, Elie Wiesel e<br />
Imre Kertész, entre outros sobreviventes que lograram <strong>de</strong>ixar seu testemunho. Mas temos<br />
aqui, pontualmente, um texto que resgata do nada Felice Rahel Schragenheim. Em <strong>de</strong>fesa<br />
da narrativa da jornalista Erica Fischer po<strong>de</strong>-se invocar o próprio Theodor Adorno, em<br />
Minima Moralia. Reflexões a partir da vida danificada: “É com o sofrimento dos homens<br />
Ocorre que é justamente a experiência “que passa <strong>de</strong> pessoa para pessoa”, a fonte a que recorrem todos os<br />
narradores (Benjamin, 1994:198)<br />
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que se <strong>de</strong>ve ser solidário” dirá o filósofo acerca do papel do intelectual ainda disposto a dar<br />
provas <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e humanida<strong>de</strong>: “o menor passo no sentido <strong>de</strong> divertí-los é um passo<br />
para enrijecer o sofrimento” (1993:20). Contra a cultura <strong>de</strong> massa, a mídia em geral e o<br />
Jornalismo em particular bastaria retomar, sinteticamente, a posição já clássica <strong>de</strong> Adorno e<br />
Horkheimer sobre a Indústria Cultural, na Dialética do Esclarecimento (1985). Afinal, o<br />
esclarecimento constitutivo na indústria da (in)cultura serve à mais completa mistificação<br />
<strong>de</strong> massas. Ao mesmo tempo, a cultura, ao “administrar toda a humanida<strong>de</strong>”, acaba por<br />
administrar também “a ruptura entre humanida<strong>de</strong> e cultura” (1993:130). Enfim, lembremos<br />
<strong>de</strong> uma frase lapidar <strong>de</strong> Adorno em Minima Moralia: : “não há vida correta na falsa”.<br />
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA<br />
ADORNO, Theodor W. . Minima Moralia. Reflexões a partir da vida danificada. São<br />
Paulo: Ática, 1993.<br />
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Jorge Zahar Editores, 1985.<br />
BENJAMIN, Walter. O Narrador: Consi<strong>de</strong>rações sobre a obra <strong>de</strong> Nikolai Leskov. In:<br />
Walter Benjamin. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. Volume I. São<br />
Paulo: Editora Brasiliense, 1994.<br />
DREIZIK, Pablo M. La memoria <strong>de</strong> las Cenizas. Buenos Aires: Dirección Nacional <strong>de</strong><br />
Patrimônio, Museos e Artes, 2001.<br />
FISCHER, Erica. Aimée & Jaguar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1999.<br />
MATE, Reyes. En torno a una justicia Anamnética. In: MARDONES, José M.; MATE,<br />
Reyes (Eds.). Lá ética ante las victimas. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, 2003.<br />
SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, Memória, Literatura: o testemunho na era das<br />
catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.<br />
TAFALLA, Marta. Recordar para no repetir: el nuevo imperativo categorico <strong>de</strong> T. W.<br />
Adorno. In: MARDONES, José M.; MATE, Reyes. Lá ética ante las victimas. Rubí<br />
(Barcelona): Anthropos Editorial, 2003.<br />
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