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CL 07 . ANA LAURA COLOMBO DE FREITAS - SBPJor

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<strong>SBPJor</strong> – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo<br />

VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo<br />

USP (Universidade de São Paulo), novembro de 2009<br />

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Um “homem de letras” no mundo dos discos<br />

Ana Laura Colombo de Freitas 1<br />

Resumo: Este artigo tem como objeto de estudo a coluna Os melhores discos clássicos, assinada<br />

pelo alemão naturalizado brasileiro Herbert Caro durante mais de 20 anos no jornal gaúcho<br />

Correio do Povo. O objetivo é pensar sobre o conceito de cultura legitimado por este crítico.<br />

Para tanto, o trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica sobre o conceito de cultura e a gênese<br />

da crítica cultural e em análise do espólio do autor. Conclui-se que Caro foi um “homem de letras”<br />

típico, intelectual e tradutor reconhecido por seus pares, que abraçou o ideal iluminista de<br />

formação do leitor, legitimando o conceito de cultura como as artes e as humanidades através da<br />

resenha de discos da chamada música clássica.<br />

Palavras-chave: Jornalismo cultural; Crítica, Conceito de cultura; Correio do Povo; Música.<br />

1. Introdução<br />

Como outros tanto ilustres desconhecidos das novas gerações, Herbert Caro dá<br />

nome a uma praça no bairro porto-alegrense Teresópolis, inaugurada em 1996. Judeu<br />

alemão refugiado, ele chegou a Porto Alegre em 1935. Em meados no século XX, participou<br />

dos círculos intelectuais da capital gaúcha, sendo referendado pelos testemunhos<br />

que presenciaram o momento como um importante colaborador da vida literária e cultural<br />

do estado.<br />

Seu nome alcança os dias de hoje circulando em meios bastante restritos, e os<br />

estudos que envolvem seu trabalho prestam especial atenção ao campo da literatura, onde<br />

atuou como tradutor de clássicos da língua alemã para o idioma do país que o abriga-<br />

1<br />

do Sul.<br />

Jornalista. Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande


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VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo<br />

USP (Universidade de São Paulo), novembro de 2009<br />

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ra. O objetivo deste trabalho, é ensaiar um primeiro olhar para a sua influência no campo<br />

da música, ainda não explorada.<br />

Herbert Caro manteve a coluna Os melhores discos clássicos durante mais de 20<br />

anos no principal jornal do período no estado, o Correio do Povo, chegando a participar<br />

do suplemento Caderno de Sábado (1967-1981), veículo mais importante da história do<br />

jornalismo cultural gaúcho. Para nos aproximarmos deste objeto, primeiramente, faremos<br />

uma revisão bibliográfica sobre o conceito de cultura e a gênese da crítica cultural.<br />

A partir deste contexto, recuperamos um pouco da história de Herbert Caro, baseada em<br />

dados de seu espólio, que foi doado ao Departamento de Memória do Instituto Cultural<br />

Judaico Marc Chagall, de Porto Alegre, reunindo todo o material em papel existente em<br />

seu gabinete.<br />

2. Conceitos de cultura<br />

No intuito de compreender os sentidos implicados na palavra “cultura”, faz-se<br />

necessário percorrer alguns de seus significados através da história. O que John Thompson<br />

(1995) chama de “concepção clássica” de cultura nasce com as primeiras discussões<br />

sobre o tema entre filósofos e historiadores alemães no século XVIII e XIX. A kultur<br />

alemã, que se referia “a produtos intelectuais, artísticos e espirituais nos quais se expressavam<br />

a individualidade e a criatividade das pessoas”, se erguia contra a idéia francesa<br />

e inglesa de “civilização”, que descrevia “um processo progressivo de desenvolvimento<br />

humano, um movimento em direção ao refinamento e à ordem, por oposição à<br />

barbárie e à selvageria” (THOMPSON, 1995, p. 168).<br />

Norbert Elias (1994) explica a antítese kultur x zivilisation através da diferença<br />

entre a estrutura social dos países. A corte francesa exportava seus modelos de comportamento<br />

“civilizado”. A nobreza cortesã alemã falava francês e importava padrões como<br />

o culto às aparências, o controle dos sentimentos individuais pela razão e o comportamento<br />

contido. Enquanto a intelligentsia burguesa da França falava a mesma língua da<br />

classe dominante, lia os mesmo livros e ocupava cargos políticos, os intelectuais burgueses<br />

alemães eram uma classe encolhida, pobre, que falava alemão (língua tida como<br />

bárbara) e não tinha mobilidade para transpor os muros que a separavam da ação políti-


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ca concreta. A burguesia alemã via a cortesia como uma coisa superficial, aparente, à<br />

qual se opunha com o ideal da virtude, da autenticidade. Em meio ao atraso da unificação<br />

alemã, cujo território ainda estava dividido em Estados-soberanos, coube ao conceito<br />

de kultur forjar a identidade nacional alemã e legitimar a classe burguesa. A antítese<br />

social tornou-se emblema nacional. Segundo Elias, o conceito germânico de kultur se<br />

revigorou em 1919, com o final da Primeira Guerra Mundial, quando o país precisou<br />

reafirmar sua auto-imagem.<br />

Por outro lado, de acordo com Elias (1994), a intelligentsia francesa atuou sobre<br />

os moldes da corte, adaptando-os aos seus interesses, sem promover rupturas. A Revolução<br />

Francesa, apesar de romper com a velha estrutura política, manteve os costumes<br />

da corte aristocrática que as classes médias já haviam incorporado. A noção de zivilisation<br />

não constava nos slogans da revolução, mas, na virada do século, passa a justificar<br />

o ímpeto colonizador napoleônico, por exemplo, tirando os povos colonizados do “barbarismo”.<br />

Para os ingleses e franceses, neste sentido, “civilização” é o “orgulho pela<br />

importância de suas ações para o progresso do Ocidente e da humanidade” (ELIAS,<br />

1994, p. 24).<br />

Enquanto a idéia francesa, portanto, forjava um caráter universal que servia para<br />

o ímpeto colonizador, a kultur abria-se para as diferenças nacionais, com base na necessidade<br />

de unificação da própria Alemanha. O Romantismo, que teve especial desenvolvimento<br />

em sua corrente alemã, abriu o caminho para uma nova compreensão da palavra<br />

cultura. De acordo com Eagleton (2005, p. 24), “a origem da idéia de cultura como<br />

modo de vida característico, então, está estreitamente ligada a um pendor romântico anticolonialista<br />

por sociedades 'exóticas' subjugadas”. Um primitivismo que seria herdado<br />

pelo modernismo e pela moderna antropologia cultural, que se desenvolve amplamente<br />

no século XX.<br />

Outros sentidos foram incorporados pelo conceito de cultura ao longo do século<br />

XX. Terry Eagleton narra uma reconfiguração do conceito:<br />

Belas-artes e vida refinada não são um monopólio do Ocidente. Nem pode a<br />

alta cultura ser hoje em dia limitada à arte burguesa tradicional, já que abrange<br />

um campo muito mais diverso, guiado pelo mercado. “Alta” certamente<br />

não significa não-comercial, nem tampouco “de massa” significa necessariamente<br />

não radical. A fronteira entre “alta” e “baixa” cultura também foi corroída<br />

por gêneros como o cinema. (EAGLETON, 2005, p. 80)


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A ênfase no fator mercadológico nos leva à idéia de que a produção e o consumo<br />

em larga escala intensificaram a valoração econômica dos bens culturais. Thompson<br />

(1995) sugere, entretanto, que aspectos da concepção clássica permanecem vivos em<br />

determinados usos cotidianos da palavra. É possível perceber isso nas relações sociais<br />

de poder e distinção descritas por Pierre Bourdieu (2004, 20<strong>07</strong>).<br />

Bourdieu (2004, p. 7-8) define o poder simbólico como um “poder invisível”<br />

que “só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe<br />

estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Dentro dos campos sociais, as diferentes classes<br />

e suas fracções mantêm-se em uma constante luta para imporem a sua definição de<br />

mundo, de acordo com os seus interesses, de modo que as tomadas de posição ideológica<br />

reproduzem o campo das posições sociais. O campo de produção simbólica, assim,<br />

segundo Bourdieu, comportaria uma imagem da luta simbólica entre as classes. Deste<br />

modo, o que define a visão de mundo dominante é um ciclo de relações simbólicas que<br />

ultrapassa a posição em si. “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem,<br />

poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e<br />

daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”<br />

(BOURDIEU, 2004, p. 15).<br />

Neste sentido, o uso da “cultura” no sentido das artes e das humanidades está<br />

inserido no processo de distinção entre as classes. Bourdieu (20<strong>07</strong>) destaca como fator<br />

de distinção a idéia de “competência cultural”, como sinônimo da intimidade com a linguagem<br />

artística, um modo de fruição que ultrapassa a impressão superficial, adquirido<br />

no ceio familiar ou na educação escolar. Através de suas posições estéticas, o indivíduo<br />

se diferenciaria.<br />

Esta maneira de distinção através da “competência cultural” vai ao encontro da<br />

proposta de Thompson (1995, p. 16) de entender a ideologia como um “sentido a serviço<br />

do poder”. Para ele, interessa estudar as maneiras através das quais o “sentido, mobilizado<br />

pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”<br />

(THOMPSON, 1995, p. 79). Este autor, entretanto, frisa a possibilidade de pensar<br />

esse sentido não só em termos da dominação de classe, mas também em outros tipos de<br />

dominação, como entre homens e mulheres e diferentes grupos étnicos. Thompson


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(1995) e Eagleton (2005) chamam atenção para o fato de que não necessariamente os<br />

fenômenos simbólicos são ideológicos em si mesmos.<br />

Aqueles radicais para quem a alta cultura é ipso facto reacionária esquecem<br />

que grande parte dela está bastante à esquerda do Banco Mundial. Não é em<br />

geral do conteúdo dessa cultura que os radicais deviam reclamar, mas de sua<br />

função. O que é questionável é que ela tem sido usada como o emblema espiritual<br />

de um grupo privilegiado, e não o fato de que Alexander Pope foi um<br />

tóri ou Balzac, um monarquista. Muito da cultura popular é igualmente conservador<br />

(EAGLETON, 2005, p. 81).<br />

Steven Connor (1994) atenta para a questão da necessidade do valor. Para ele,<br />

“deveríamos reconhecer que o valor e a valoração são necessários como uma espécie de<br />

lei da natureza e da condição humana, mediante a qual não podemos nos recusar a entrar<br />

no jogo do valor, mesmo em ocasiões em que gostaríamos de nos furtar a ele ou suspendê-lo”<br />

(CONNOR, 1994, p. 17). Em suma, ele defende que negar os processos de<br />

atribuição, afirmação ou negação do valor é uma ilusão, porque estes seguem implícitos,<br />

pois não há como escapar deles.<br />

Pensando neste sentido, torna-se necessário olhar para a maneira como os veículos<br />

de comunicação atuam nesse espaço. Nos interessa especialmente aqui a maneira<br />

como tratam o sentido da palavra “cultura” nos jornais impressos, lugares de visibilidade<br />

do campo cultural, reforçando ou legitimando um conceito. Mais especificamente,<br />

este trabalho procura entender qual o papel do crítico neste contexto.<br />

Everton Cardoso (2009) deixa entender que, ancorados no conceito de cultura<br />

como sinônimo de produção artística e intelectual, os suplementos semanais abraçam o<br />

ideal iluminista de formação do homem assumido pelo espaço jornalístico. Fornecendo<br />

o acesso às artes, às letras e às humanidades em suas páginas, eles instauram um ciclo<br />

de relações: legitimam o jornal que preocupa-se em oferecer algo a mais para os leitores,<br />

dão visibilidade para os intelectuais que ali escrevem e ainda conferem status para<br />

os leitores interessados em “elevar seus espíritos”, adquirindo base para a apreciação<br />

artística e circulação nas principais questões que envolvem a intelectualidade de sua é-<br />

poca, além de sinalizar seu bom gosto, sua “cultura”.<br />

Bourdieu (1997, p. 111) afirma que “a influência do campo jornalístico sobre os<br />

campos de produção cultural […] se exerce principalmente através da intervenção de<br />

produtores culturais situados em um lugar incerto entre o campo jornalístico e os cam-


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pos especializados (literário ou filosófico etc.)”. São o que ele chama de “intelectuaisjornalistas”.<br />

Em função de sua posição privilegiada entre os dois campos, eles teriam o<br />

poder de impor parâmetros de avaliação das produções. Valendo-se de seu discurso legitimado<br />

como intelectual, os “intelectuais-jornalistas” teriam sua inclinação mercadológica<br />

eufemizada, reforçando o cânone e as listas de best-sellers com implicações sobre<br />

o consumo e a produção cultural.<br />

3. Notas sobre a gênese da crítica<br />

Terry Eagleton (1991) acredita na total irrelevância social da crítica cultural praticada<br />

atualmente, incorporada pelas indústrias culturais ou confinada no meio acadêmico.<br />

Mas nem sempre foi assim. O autor reconstitui o surgimento da moderna crítica literária<br />

em princípios do século XVIII, na Inglaterra, atrelado à ascensão da esfera pública<br />

burguesa. Erguendo-se frente ao regime absolutista repressivo, esta despertaria o debate<br />

no espaço público dos cafés, clubes e jornais, dando origem à opinião pública. Uma estratégia<br />

de consolidação da classe burguesa em que o debate literário abriu o caminho<br />

para a discussão política nas classes médias. Neste processo, periódicos como o Tatler,<br />

de Richard Steele, e o Spectator, de Joseph Addison, atuaram na legitimação de uma<br />

classe, ridicularizando a aristocracia dominante, mas sem causar rupturas. “Em síntese,<br />

o que vai ajudar a unificar o bloco dominante inglês é a cultura, e o crítico é o principal<br />

portador dessa tarefa histórica” (EAGLETON, 1991, p. 6).<br />

De acordo com Daniel Piza (2004, p. 12), “os Ensaios de Montaigne, com sua<br />

capacidade de mesclar o mundano e o erudito, são a matriz evidente das conversações<br />

de Addison e Steele”. Na posição de herdeiro do ensaísmo humanista, portanto, o jornalismo<br />

cultural teria sido parte do movimento iluminista, ampliando o acesso à filosofia<br />

ao transportá-la do enclausuramento da Academia para os espaço público dos clubes e<br />

cafés (PIZA, 2004).<br />

Eagleton (1991) chama atenção, entretanto, para o fato de que a esfera pública<br />

clássica tem um caráter dúbio: ainda que, a princípio, todos possam participar dela, os<br />

pressupostos de uma participação válida são determinados em função de uma racionalidade<br />

que depende da propriedade. No mesmo sentido, a crítica iluminista põe-se ao lado


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da razão universal contra o absolutismo ao mesmo tempo em que atua como um “mecanismo<br />

reformativo, punindo os desvios e reprimindo a transgressão” (EAGLETON,<br />

1991, p. 6).<br />

Desta forma, a função da crítica na esfera pública burguesa é de reforço do consenso.<br />

De perfil diletante, a crítica é marcada pelo impressionismo, de base empírica e<br />

emocional e “de um humanismo ético genérico, indissociável da reflexão moral, cultural<br />

e religiosa” (EAGLETON, 1991, p. 12). Essas características ficam visíveis no trabalho<br />

dos dois periódicos porta-vozes da esfera pública clássica: “O Tatler e o Spectator têm a<br />

consciência de estar educando um público socialmente heterogêneo, levando-os a assimilar<br />

formas de razão, gosto e moralidade universais, embora os juízos de valor que e-<br />

mitem não devam ser absurdamente autoritários, como se fossem imposições de uma<br />

casta tecnocrática. Pelo contrário, devem pautar-se exatamente pelo consenso público<br />

que procuram fomentar” (EAGLETON, 1991, p. 16).<br />

A ampliação das forças de mercado que passam a dominar o sistema artístico e a<br />

cegueira burguesa sobre seus limites promovem a desintegração da esfera pública clássica<br />

na virada do século XVIII para o XIX. Surge uma contra-esfera-pública: a publicidade<br />

e o espírito mercantilista invadem os impressos, que perdem o “ameno consenso<br />

[cultural]” e ganham um “feroz antagonismo [político]” (EAGLETON, 1991, p. 29).<br />

Na tentativa de resgatar a crítica e a literatura do embate político, entretanto, o<br />

século XIX vê aparecer a figura do “sábio”. Eagleton (1991) identifica nele uma posição<br />

transcendental em relação ao público, um discurso dogmático e uma postura alheia<br />

à vida social. “O crítico romântico é, com efeito, o poeta justificando ontologicamente<br />

sua própria prática, elaborando suas mais profundas implicações e refletindo sobre os<br />

fundamentos e as conseqüências de sua arte” (EAGLETON, 1991, p. 34).<br />

Mónica Vermes (20<strong>07</strong>) analisa a crítica romântica especificamente musical, que<br />

ganhou especial desenvolvimento na corrente alemã, fundamentada em preceitos filosóficos<br />

idealistas. Ela percebe que com o fim das relações patrão/empregado e de mecenato<br />

que sustentavam a música até então e o surgimento de uma sensibilidade romântica,<br />

contrária à razão iluminista e voltada para a emoção e a expressão individual, o artista<br />

se afastava da sociedade. A crítica musical acaba por acompanhar este movimento. Se<br />

antes o papel desta era a educação do gosto, agora ela se aproximava da obra de arte pa-


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ra desvendar sua construção, por vezes mesmo confundindo-se com ela. Muito desta<br />

transformação está relacionado à mudança do lugar da música em relação às outras artes,<br />

especialmente a música instrumental.<br />

O autor exemplar desta nova crítica musical, ainda de acordo com Vermes<br />

(20<strong>07</strong>), é E. T. A. Hoffmann (1776-1822), que aponta a música instrumental como a<br />

mais romântica das artes, por ser a mais independente das demais e, por isso, a mais<br />

propensa a alcançar o infinito. Em seu texto crítico sobre a Quinta Sinfonia, de Ludwig<br />

van Beethoven (1770-1827), publicado em 1810 pela revista Allgemeine musikalische<br />

Zeitung, Hoffmann estabelece o modelo que será seguido por outros críticos musicais<br />

ao longo do século XIX. Temendo que as inovações trazidas pela obra de Beethoven,<br />

compositor que marca a transição do classicismo para o romantismo em música, não<br />

seriam bem compreendidas pelo público, o crítico, com a partitura em mãos, assume a<br />

função de descrever em palavras a estrutura que a própria peça fazia questão de explicitar,<br />

à maneira da literatura romântica, que rompia o pacto de ilusão com o leitor e mostrava<br />

o seu fazer-se. “Esse tipo de abordagem descritiva [adotada por Hoffmann naquele<br />

caso] pode ser associado a dois propósitos: por um lado, ensinar ao público o que 'deve'<br />

ser ouvido na obra – um propósito didático – e, por outro lado, tentar estimular no leitor<br />

uma reação que seja semelhante àquela da audição da obra – um propósito estético”<br />

(VERMES, 20<strong>07</strong>, p. 61).<br />

Assim, a crítica romântica assumia tanto um papel educativo quanto uma condição,<br />

em si, artística, de um texto que se aproximava da literatura. Hoffmann que, tendo<br />

o Direito como profissão, atuava também como compositor, dono de uma sólida formação<br />

musical, acreditava que os compositores deviam explorar o espaço da imprensa com<br />

uma crítica especializada. E é, de fato o que acontece com a consolidação da classe dos<br />

críticos-compositores a que aderiram nomes como Robert Schumann (1810-1856), Hector<br />

Berlioz (1803-1869), Franz Lizst (1811-1886) e Richard Wagner (1813-1883).<br />

(VERMES, 20<strong>07</strong>)<br />

Por outro lado, o século XIX viu nascer também uma categoria que reunia o “sábio”<br />

(ou crítico romântico, o típico da descrição de Vermes (20<strong>07</strong>)) e o crítico de aluguel:<br />

o homem de letras. De acordo com Eagleton (1991, p. 37), este seria “mais portador<br />

e disseminador de um conhecimento ideológico genérico que exponente de uma ha-


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bilidade intelectual especializada, alguém cuja visão sinóptica, não turvada por qualquer<br />

interesse estritamente técnico, é capaz de abranger toda a paisagem cultural e intelectual<br />

de sua época”. Entretanto, enquanto a abrangência do sábio adviria de um “despreendimento<br />

transcendental”, a do homem de letras seria fruto de uma necessidade de sobrevivência<br />

financeira (saber falar sobre mais coisas amplia, certamente, as possibilidades<br />

de atuação). Esta nova figura, ainda de acordo com Eagleton (1991, p. 39), remeteria ao<br />

papel de Addison e Steele na esfera pública clássica, “de comentarista, informante, mediador,<br />

intérprete e popularizador”. A diferença é que, naquele momento, “o homem de<br />

letras deve ser ao mesmo tempo a fonte de uma autoridade semelhante à do sábio e um<br />

hábil popularizador, membro de uma classe letrada dotada de espírito mas, também, um<br />

razoável vendedor das coisas do intelecto” (EAGLETON, 1991, p. 43).<br />

Todo esse processo de ampliação do acesso à arte, antes restrito aos círculos de<br />

nobreza, nos espaços públicos modernos que se desenvolveu na Europa a partir do século<br />

XVIII, tendo o jornal como um dos principais veículos, só vai ganhar corpo mais tarde<br />

em solo brasileiro. De acordo com Sérgio Luiz Gadini (2003, p. 10), no Brasil, esse<br />

movimento só vai começar após a chegada da família real em 1808 e, mesmo assim, “de<br />

forma mais lenta, devido ao alto índice de analfabetismo, baixa concentração urbana e<br />

demais aspectos socioeconômicos e culturais”. O autor indica que só se torna possível<br />

falar em consumo e crítica cultural a partir da década de 1930.<br />

Os impressos, onde até então jornalismo e literatura se confundiam, passam a<br />

reservar um espaço específico para “as letras”: o rodapé (origem dos suplementos literários,<br />

semanais, que têm seu auge na década de 1950). A partir de Flora Süssekind<br />

(2003), se tem que estes espaços ao pé das páginas representaram a gênese da crítica<br />

moderna brasileira. A crítica de rodapé, segundo a autora, triunfou nos anos 1940 e<br />

1950, exercida pelos “bacharéis”, não-especializados, autodidatas, defensores do impressionismo,<br />

os “homens de letras”, também denominados “críticos-cronistas”. Entre a<br />

crônica e o noticiário, esses críticos cultivavam a eloqüência, eram considerados influentes<br />

sobre seu público e estabeleciam “um diálogo estreito com o mercado, com o movimento<br />

editorial seu contemporâneo” (SÜSSEKIND, 2003, p. 17).


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4. Herbert Caro, um “homem de letras”<br />

Herbert Moritz Caro nasceu em 16 de outubro de 1906, em Berlim, na Alemanha.<br />

Doutor em Direito pela Universidade de Heidelberg, defendeu a tese A proteção do<br />

direito do autor no título da obra literária em 1930. Três anos depois, é impedido de<br />

exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis anti-semitas do governo<br />

nazista. Primeiramente, refugia-se na França, onde estuda Letras Clássicas na Universidade<br />

de Dijon. A estada no país vizinho dura apenas um ano. Pressente a iminência da<br />

guerra e busca um novo país de exílio. O Brasil surge como a melhor opção.<br />

Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Nos primeiros anos, trabalho<br />

no comércio e na indústria. Em 1939, entretanto, a convite do escritor Erico Veríssimo,<br />

entrou para a famosa Sala dos Tradutores da editora gaúcha. Ali exerceu as funções de<br />

tradutor (do alemão e do inglês), dicionarista e revisor, ganhando enorme intimidade<br />

com a língua portuguesa. O trabalho na editora durou até 1948, ano em que também ganhou<br />

sua naturalização como brasileiro.<br />

O ofício de tradutor, mesmo longe da Editora Globo, lhe acompanhou para o resto<br />

da vida. De acordo com a pesquisadora Izabela Maria Furtado Kestler (20<strong>07</strong>), Caro<br />

tornou-se o profissional mais conhecido na tarefa de verter o alemão para o português.<br />

Traduziu mais de 30 livros de autores como Thomas Mann, Emil Ludwig, Lion Feuchtwanger,<br />

Oswald Spengler, Hermann Hesse, Elias Canetti e Hermann Broch. Pela tradução<br />

de A morte de Virgílio, de Hermann Broch, recebeu em 1983 o Prêmio da Associação<br />

Paulista de Críticos de Artes. Doutor Fausto, de Thomas Mann, lhe rendeu em<br />

1985 o Prêmio Nacional do Instituo Nacional Livro.<br />

Entre 1949 e 1957 dirigiu na Livraria Americana, no centro de Porto Alegre, a<br />

seção de livros estrangeiros. Esta experiência rendia crônicas que passaram a ser publicadas<br />

pelo jornal Correio do Povo na coluna Balcão de Livraria. Mais tarde, em 1960,<br />

as edições da coluna foram compiladas em livro homônimo, lançado na coleção Aspectos,<br />

organizada pelo Ministério da Educação e Cultura.<br />

Sua relação com os veículos impressos começara bem antes. Em abril de 1943,<br />

uma nota editorial da Revista do Globo anunciava a estréia da seção As maravilhas da<br />

arte universal, assinada por Herbert Caro. Este era apresentado como “profundo conhe-


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cedor das obras de arte reunidas nos maiores museus da Europa”, que iria explicar, em<br />

cada edição da revista, “uma obra de arte antiga, medieval ou moderna, européia, oriental<br />

ou americana – conduzindo-nos, assim, através das épocas e estilos” (REVISTA DO<br />

GLOBO, 1943, p. 18).<br />

As artes visuais também foram o assunto central de ciclos de palestras e conferências<br />

que Herbert Caro apresentava no Brasil e no exterior. A partir de 1956, passou a<br />

organizar ciclos anuais de palestras no Instituto Cultural Brasileiro-Alemão (hoje Instituto<br />

Goethe), em que abordava temas como os museus da Europa, os pintores e escultores<br />

alemães e a arte moderna, ilustrados por imagens que projetava através de um epidiascópio.<br />

Por esses esforços em difundir a cultura alemã no Brasil, Caro foi agraciado<br />

com a Cruz de Mérito, Primeira Classe, da República Federal da Alemanha em 1974.<br />

Desde 1961, passara a viajar para a Alemanha anualmente. Nestas ocasiões, a partir de<br />

1964, também ministrava conferências sobre a arte brasileira nas principais universidades<br />

européias.<br />

Em discurso ao receber o título de Cidadão Emérito de Porto Alegre em 10 de<br />

junho de 1986, na Câmara Municipal, Caro diz que sentia uma enorme dívida com o<br />

país que o acolheu e que tinha oferecido o que podia em troca: “Pus, portanto, a seu [do<br />

Brasil] serviço o pouco que trouxera da Europa em matéria de Cultura” (CARO, 1986,<br />

p. 2).<br />

Os retratos traçados pelas pessoas que conheceram Herbert Caro deixam ver um<br />

homem de letras, amante dos livros e da música, legítimo representante da tradição humanística<br />

alemã, mas muito bem humorado. Os testemunhos deslizam entre o vulto de<br />

um intelectual versado nas questões genéricas das artes e das humanidades, intocável, e,<br />

por outro lado, um homem sensível, acessível, apaixonado por trocadilhos, ex-jogador<br />

de tênis de mesa e cadeira cativa do Sport Club Internacional.<br />

Quando Caro cumpriu seus 70 anos de idade, Guilhermino Cesar publicou no<br />

Caderno de Sábado, do Correio do Povo, o texto Um companheiro. Nele, Cesar definia<br />

o colega de suplemento como um melômano, de sólida cultura e bom gosto. “Sua coluna<br />

cativa – Os melhores discos clássicos – tem sido um breviário para quantos, amando<br />

a música, se dão ao prazer de cultivá-la por meio das interpretações de maior categoria.


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Nosso ilustre amigo, neste labirinto das partituras, é um guia insuperável” (CESAR,<br />

1976, p. 3).<br />

5. Herbert e os discos clássicos<br />

A coluna Os melhores discos clássicos, assinada por Herbert Caro, estreou na<br />

página 28 do Correio do Povo em 22 de fevereiro de 1959. Manteve-se por mais de 20<br />

anos, apenas tranferindo-se de posto ocupar seus espaço dentro do Caderno de Sábado<br />

(1967-1981), suplemento que, de acordo com Cida Golin (2005, p. 142), “estabeleceu<br />

horizontes de formação cultural, atingindo gerações de leitores”.<br />

Em sua primeira edição, um texto introdutório diz que aquela seção apresentaria,<br />

a partir de então, semanalmente, aos domingos, resenhas de uma seleção dos discos de<br />

“música fina” lançados (com cada vez mais freqüência) no catálogo nacional, fazendo<br />

questão de declarar que não seriam propagandas comerciais, apenas a opinião do autor.<br />

A relação de Caro com a música vinha de berço. Sua mãe estudara canto lírico,<br />

apesar de não ter atuado na área profissionalmente. Mesmo assim, ele crescera rodeado<br />

de músicos que freqüentavam a sua casa (BRUMER; GUTFREIND, 20<strong>07</strong>). Peter Naumann<br />

(1995) lembra que o amigo chegara a estudar música na infância, mas conta que a<br />

esposa, Nina, lhe confidenciara que o marido inicialmente não gostava de concertos e<br />

não freqüentava o Theatro São Pedro.<br />

Naumann (1995, p. 19) entende que os textos de Caro sobre música “não passavam<br />

de juízos literários, mais ou menos opiniáticos, sobre as obras, os intérpretes e os<br />

seus estilos, com um pronunciado sabor de dicionário ou guia desse ou daquele gênero<br />

de música”. Ele enquadra a coluna do amigo nas engrenagens de uma indústria fonográfica<br />

em consolidação: “Havia uma expectativa, um acordo tácito entre os fabricantes, os<br />

lojistas, o público e o crítico, que obrigava este último a não ir além da resenha informativa<br />

e do anúncio da obra aos possíveis compradores. A discussão efetiva não interessava<br />

e era objetivamente impossível” (NAUMANN, 1995, p. 20).<br />

Ainda que, desde sua apresentação inicial, a coluna anunciava-se isenta de intenções<br />

comerciais, o diálogo de Caro com a indústria fica evidente em diversos momentos.<br />

Em 10 de abril de 1983, por exemplo, Herbert Caro publica um artigo de suas pági-


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nas do jornal O Estado de São Paulo, orientando a formação de uma discoteca de clássicos<br />

para principiantes e, de certa forma, refletindo sobre seu ofício na coluna que havia<br />

publicado por mais de 20 anos no Correio do Povo. Naquele espaço, Caro desaconselha<br />

a compra de discos com as grandes obras sinfônicas ou para grandes coros ou o<br />

lirismo do século XIX. Entre parênteses, ele tece o seguinte comentário: “(Ao escrever<br />

estas linhas, já me dou conta de que fabricantes e lojistas mandarão capangas encarregados<br />

de exterminar-me o mais depressa possível, uma vez que as obras de cuja compra<br />

tento dissuadir meus leitores são precisamente a mercadoria que melhor se vende.)”<br />

(CARO, 1983, p. 13).<br />

A compreensão do trabalho de crítica musical de Herbert Caro, também neste<br />

sentido, parece estar relacionada à idéia de um literato que escreve sobre música em<br />

uma perspectiva bastante característica da descrição de um “homem de letras” por Eagleton<br />

(1991). Ao mesmo tempo em que vale-se de sua formação humanista para circular<br />

em qualquer assunto das artes e humanidades e de sua “competência cultural” (conforme<br />

conceito de Bourdieu (20<strong>07</strong>)) de ter nascido em berço musical, a experiência vale<br />

também para ganhar um rendimento extra, visto que nenhum de seus empregos lhe rendeu<br />

muito dinheiro em Porto Alegre, com testemunhos que apontam que a esposa, Nina,<br />

era quem provia parte maior do sustento do casal.<br />

Legitimado pelos pares, como fica evidente nos depoimentos mencionados na<br />

seção anterior e nos prêmios que ganhou como tradutor, Caro era uma referência da via<br />

cultural e intelectual porto-alegrense. Em mais de uma vez, aparecem em seus textos<br />

referências a leitores que o interpelavam na rua em busca de conselhos sobre como formar<br />

uma discoteca de clássicos ou mesmo reverberando suas opiniões e os conteúdos<br />

publicados na coluna.<br />

A descrição de Maria Elizabeth Lucas (1980) sobre a gênese do campo musical<br />

erudito no estado nos dá pistas para compreender a coluna de Herbert Caro. A autora<br />

encontra essa origem na virada do século XIX para o XX, quando a classe dominantesetores<br />

médios da população, em contato com padrões importados, assume a música<br />

como profissão, mas mantém aspectos do amadorismo que sempre a distinguiu do trabalho<br />

das camadas sociais inferiores que, até então, eram os trabalhadores da música. A<br />

consolidação do campo da música erudita no estado, portanto, importara valores euro-


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peus (especialmente os alemães) e herdara a concepção da prática musical como sinônimo<br />

de educação refinada. Neste contexto, não é difícil depreender que a figura aparentemente<br />

sisuda do tradutor alemão refugiado no Brasil angariasse o respaldo da sociedade<br />

provinciana local.<br />

O espaço fixo de Caro no jornal, assim, configurava-se como um espaço ideal<br />

para a propagação do ideal de formação através das artes e ainda, no caso, na tese mais<br />

romântica, através da mais independente das artes, a música – de acordo com Vermes<br />

(20<strong>07</strong>). Neste território, Caro abraça a idéia de difusão da “música fina” (como se referia<br />

à tradição erudita européia na maioria de suas colunas). E, para tanto, vale-se de um<br />

viés popularizador como o faziam Steele e Addison no século XVIII e os homens de<br />

letras do século XIX, afirmando que essa arte podia ser acessível a todos. Na coluna de<br />

30 de março de 1968, no Caderno de Sábado, por exemplo, refere à cultura como um<br />

processo, de modo que a música erudita estaria ao alcance daquele que tivesse algum<br />

acesso: “Pois não é só de Roberto Carlos que vive o discófilo. Seu regime alimentar requer<br />

também algumas colheradas daquela música que erroneamente se costuma qualificar<br />

de “erudita”, apesar de ser apenas saudável e refrescante para as almas de quaisquer<br />

pessoas de cultura mediana”.<br />

Naquele mesmo texto acima referido, publicado em O Estado de São Paulo, Caro<br />

compara a música erudita com uma língua estrangeira:<br />

Música clássica é uma língua que se aprende aos poucos. Assim como nenhum<br />

estudante de inglês ou italiano tentará no primeiro ano ler Shakespeare<br />

ou Dante no idioma original, o calouro de música 'fina' não deverá iniciar sua<br />

discoteca com os últimos quartetos de Beethoven ou seus congêneres de Bártok<br />

e Schönberg, por mais que fascinem o 'melômano' traquejado (CARO,<br />

1983, p. 13).<br />

No sentido não pejorativo de ideologia proposto por Thompson (1995), portanto,<br />

a coluna Os melhores discos clássicos, de Herbert Caro, operou de forma a legitimar o<br />

sentido dominante de cultura como as artes e as humanidades. Incentivando a compra<br />

dos discos, à época, muito caros, reforçou a idéia de que a cultura é para poucos, no caso,<br />

os letrados leitores do jornal mais tradicional do Rio Grande do Sul.


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