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ISSN 2238-4413<br />

número 7 dezembro 2012/janeiro 2013<br />

São Luís, por seus romancistas<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

O Natal ainda existe?<br />

João Dias Rezende Filho<br />

Brasileiros no mundo<br />

Álvaro Lima<br />

Calçadas de São Luís<br />

Ricado Laender Perez<br />

“<strong>Seu</strong>” Google é o tal!<br />

Antôno Nelson Faria


São Luís, por seus<br />

romancistas<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

O Natal ainda existe?<br />

João Dias Rezende Filho<br />

Brasileiros no mundo<br />

Álvaro Lima<br />

ÍNDICE<br />

NÚMERO 07 - DEZEMBRO 2012 / JANEIRO 2013<br />

Calçadas de<br />

São Luís Ricardo Laender Perez<br />

“<strong>Seu</strong>”<br />

Apresentação<br />

Associados<br />

Expediente<br />

é o tal!<br />

Antônio Nelson Faria


APRESENTAÇÃO<br />

A sétima edição da revista <strong>Plural</strong> oferece aos leitores<br />

artigos com temas variados, escritos por especialistas do<br />

naipe de Sebastião Moreira Duarte, dos mais assíduos<br />

em nossas páginas, que descreve, utilizando-se da<br />

literatura de Aluísio Azevedo, Nascimento Morais e<br />

Josué Montello, “um passeio pelas ruas de São Luís do<br />

Maranhão”; Ricardo Laender Perez brinda-nos com um<br />

atualíssimo e esclarecedor escrito sobre as dificuldades<br />

que os pedestres sofrem ao praticar uma das tarefas<br />

mais primárias da nossa vida: andar; Álvaro Lima trata<br />

da saga dos imigrantes brasileiros, presentes em um<br />

número cada vez maior de países; Antônio Nelson Faria,<br />

com seu costumeiro bom humor, apresenta-nos “<strong>Seu</strong>”<br />

Google e as maravilhas de que é capaz; finalmente,<br />

João Dias Rezende Filho, estreante em nossa revista,<br />

faz uma reflexão sobre o Natal, que se aproxima, e as<br />

adaptações que vem sofrendo com o passar do tempo.<br />

Esta é a última edição do ano. Boas festas e muito<br />

sucesso em 2013.<br />

Jorge Murad<br />

Presidente do Conselho Deliberativo<br />

Instituto <strong>Geia</strong>


SÃO LUÍS, POR<br />

SEUS ROMANCISTAS<br />

Índice<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

4 / 58<br />

Foto: Albani Ramos


Que outra cidade no Brasil terá sido tão celebrada, em<br />

prosa e verso, quanto São Luís do Maranhão? O Rio de<br />

Janeiro, talvez, por muito tempo capital política do País<br />

e, ainda hoje, centro de referência número um da cultura<br />

nacional. Talvez a Bahia, a cidade do Salvador, sobretudo<br />

através da recriação imaginária de Jorge Amado. O Recife,<br />

quem sabe...<br />

Que motivos encontraram, na capital maranhense, quantos<br />

por ela se encantaram, desde quando aqui se estabeleceram<br />

os primeiros colonizadores? Falando bem, como<br />

Claude d’Abbeville e Simão Estácio da Silveira (um, dando<br />

por certo que esta era a melhor terra dos domínios<br />

portugueses, o outro, afirmando que por esses lados do<br />

mundo Deus inaugurara o Paraíso Terrestre), ou falando<br />

mal (conforme era o gosto do Padre Antônio Vieira, para<br />

quem o Maranhão e seus colonos faziam uma amostra do<br />

inferno, deixada na terra por Deus como aviso prévio aos<br />

pecadores), fato é que a cidade de São Luís poderia ser reconstituída,<br />

sem dificuldade, em sua paisagem física e social,<br />

pelo que dela registraram os seus homens de letras,<br />

apagados quando fossem outros os vestígios que a distinguem<br />

como das mais documentadas entre as criações urbanas<br />

em chãos do Brasil.<br />

Mérito deles, escritores, desde as ficções do Padre Vieira,<br />

até Aluísio Azevedo e Josué Montello? Sim, sem dúvida,<br />

dado o pendor para as artes da escrita exibido pelos naturais<br />

da terra e por outros mais que para cá manobraram<br />

o próprio destino, a partir de João de Barros, donatário da<br />

Capitania do Maranhão, gramático e primeiro romancista<br />

da língua portuguesa. Certo, porém, a cidade mesma, por<br />

aliciamentos que remontam à memória de sua gente, sua<br />

antropologia, sua arquitetura, sua geografia, escancara-se<br />

como obra de arte ao sol do equador, cenário e convite a que<br />

a imaginação se acenda, e acrescente, à riqueza da história<br />

e de seu panorama largo, o teatro da invenção literária,<br />

cujas figuras nos levam ao reencontro dos atores reais que<br />

fizeram os quatro séculos da Cidade quatrocentona.<br />

É o que pretendemos demonstrar com esta recolta de<br />

trechos de romances maranhenses, que nos propiciarão o<br />

Índice<br />

5 / 58


prazer de um passeio pelas ruas de São Luís do Maranhão,<br />

em meio às quais haveremos de flagrar, transcriados para<br />

a letra impressa, a formação civilizatória de nossa gente.<br />

Pode dizer-se que o prestígio da literatura maranhense faz<br />

paralelo à presença de São Luís nas páginas de nossa ficção.<br />

Alguns dos nossos melhores narradores – e cujo nome<br />

corre também entre os maiores do Brasil – encontraram<br />

aqui o meio e modo exatos para dar vida e movimento às<br />

suas criaturas ficcionais. E veja-se que nos restringimos à<br />

ficção extensa e passamos ao largo dos numerosos poetas<br />

de que o Maranhão tem sido pródigo.<br />

Neste primeiro segmento, trazemos amostras de três dos<br />

nossos melhores romancistas: Aluísio Azevedo (1857-1913),<br />

Nascimento Morais (1882-1958) e Josué Montello (1917-<br />

2006), em cujas páginas é possível acompanhar, como em<br />

sequência cronológica, a presença do negro em nosso ambiente<br />

e sua contribuição para moldar, com feições singulares,<br />

o modus vivendi dos maranhenses.<br />

Índice<br />

6 / 58<br />

Foto: Albani Ramos


ALUÍSIO AZEVEDO<br />

(1857-1913)<br />

Jornalista, caricaturista, romancista,<br />

inaugurou no Brasil a escola naturalista,<br />

de que foi o melhor representante.<br />

Trocou depois a carreira literária pela<br />

diplomacia, tendo servido em países<br />

da América Latina, Europa, e Japão.<br />

Fundador da Academia Brasileira de<br />

Letras. Faleceu em Buenos Aires. Deixou<br />

obra numerosa, de que se destacam<br />

os romances O mulato (1881), Casa<br />

de pensão (1883) e O cortiço (1890). O<br />

mulato, objeto de escândalo e polêmica<br />

quando saiu em São Luís, foi alterado,<br />

em partes do texto e da trama, na edição<br />

do Rio de Janeiro (B. L. Garnier,<br />

1889), que passou a ser a mais conhecida.<br />

Demos preferência à edição maranhense<br />

dessa obra (Maranhão, Tipografia<br />

d’O País), de que transcrevemos<br />

o primeiro capítulo, com a atualização<br />

da ortografia, da pontuação e de algumas<br />

palavras: dois por dous; noite, por<br />

noute; coisa, por cousa; infantaria, por<br />

infanteria, etc.<br />

Índice<br />

7 / 58


“Era uma dia abafadiço e aborrecido.<br />

A cidade de São Luís do Maranhão parecia<br />

adormecida em um forno quente – as paredes<br />

tinham reverberações argentinas; as pedras<br />

das ruas escaldavam; as vidraças faiscavam<br />

ao sol, como enormes diamantes; as folhas das<br />

árvores nem se mexiam; as carroças d’água,<br />

pesadas e ruidosas, passavam com grandes e<br />

sonoros estalos nas pedras da rua, e os aguadeiros,<br />

em mangas de camisa e pernas arregaçadas,<br />

invadiam sem cerimônia as casas para<br />

encher as banheiras e os potes.<br />

Em certos pontos da cidade não se via viva<br />

alma na rua – estava tudo concentrado, adormecido;<br />

só os pretos faziam as compras para<br />

o jantar ou andavam no ganho.<br />

A Praça d’Alegria tinha um aspecto fúnebre<br />

e hipocondríaco – estava solitária, triste;<br />

de um casebre miserável, de porta e janela,<br />

ouviam- se gemer armadores enferrujados de<br />

rede, e uma voz tísica e aflautada de mulher<br />

cantar em falsete A gentil Carolina era bela;<br />

de um outro lado uma preta velha, vergada<br />

por um imenso tabuleiro, sujo, seboso, cheio<br />

de sangue coalhado e coberto por um enxame<br />

de moscas, apregoava em tom muito arrastado<br />

e melancólico: Fígado, rins e coração! Era<br />

uma vendedeira de fatos de boi. As crianças<br />

nuas, com as perninhas tortas pelo costume<br />

de cavalgar os quadris maternos, com as cabeças<br />

avermelhadas pelo sol, a pele crestada,<br />

os ventres salientes e amarelos, corriam e<br />

guinchavam, empinando papagaios de papel.<br />

Um ou outro branco, levado pela necessidade<br />

de sair, atravessava a rua, suado, vermelho,<br />

afogueado, com o enorme chapéu de sol aberto.<br />

Os cães, estendidos nas calçadas, tinham<br />

Índice<br />

8 / 58


gemidos humanos, sensuais e movimentos<br />

irascíveis, mordiam freneticamente o ar, querendo<br />

morder os mosquitos. Ouvia-se apregoar<br />

ao longe “Arroz de Veneza, mangas e limões.”<br />

As quitandas vazias fermentavam um cheiro<br />

acre de sabão da terra e aguardente; o quitandeiro,<br />

assentado sobre o balcão, cochilava<br />

seu aborrecimento pesado e morrinhento, acariciando<br />

o enorme pé descalço e espalmado.<br />

Da praia de Santo Antônio enchia a cidade<br />

um som monótono e invariável de uma buzina,<br />

que anunciava peixe; para lá convergiam,<br />

apressadas e cheias de interesse, as peixeiras,<br />

negras, com os tabuleiros na cabeça, rebolando<br />

os grandes quadris trêmulos e as tetas<br />

opulentas.<br />

A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam<br />

com o resto da cidade – era a hora do<br />

movimento comercial; cruzavam-se em todas<br />

as direções homens apressados e vermelhos;<br />

pretos no carreto e caixeiros fumando cigarros<br />

de papel ordinário; avultavam os paletós-sacos<br />

de brim pardo, marcados nas espáduas e<br />

nos sovacos por grandes manchas de suor. Os<br />

corretores de escravos examinavam os pretos<br />

e moleques, revistando-lhes os dentes, os pés,<br />

as virilhas, fazendo-lhes perguntas sobre perguntas,<br />

e como bons entendedores da mercadoria,<br />

batiam-lhes com a biqueira do chapéu<br />

nos ombros e nas pernas, experimentando-lhes<br />

o vigor da musculatura, como se estivessem a<br />

comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo<br />

das amendoeiras ou nas portadas dos armazéns,<br />

discutia o câmbio, o preço do algodão,<br />

a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais;<br />

os volumosos comendadores resolviam<br />

negócios, faziam transações, perdiam, ganhavam,<br />

tratavam de embarrilar uns aos outros<br />

Índice<br />

9 / 58


com boa gíria comercial, gestos amigáveis e<br />

chalaças confiadas. Os leiloeiros cantavam os<br />

preços das mercadorias com grande e afetado<br />

abrimento de vogais – diziam mal rais em vez<br />

de mil réis; nas portas dos leilões aglomeravam-se<br />

os que queriam comprar e os simples<br />

curiosos. Corria um sussurro baixo e reles de<br />

feira.<br />

O leiloeiro tinha piscos d’olhos significativos.<br />

De martelo em punho, entusiasmado, o<br />

ar teatral, mostrava com o braço erguido um<br />

cálice contendo a amostra da cachaça ou,<br />

comicamente acocorado, esbrocava com o furador<br />

os paneiros de farinha e de milho E, quando<br />

chegava a vez de vender, repetia, gritando<br />

amiudadas vezes, o preço da mercadoria, e<br />

batia por fim com grande barulho na pipa de<br />

água-ardente ou no lote de caixões de batatas,<br />

arrastando muito a voz em um tom cantado e<br />

estridente.<br />

Viam-se deslizar imponentemente pela praça<br />

os monstruosos ventres dos capitalistas; encontravam-se<br />

cabeças escarlates e descabeladas<br />

pingando suor por debaixo do chapéu alto<br />

de pelo – o sorriso de proteção, a boca dilatada<br />

pelo calor, a perninha lépida e suada na calça<br />

de brim de Hamburgo.<br />

Havia uma atividade convencional, porém<br />

cheia de movimento, fogo e agitação; até os<br />

ricos ociosos, os caixeiros que faziam cera e<br />

os simples curiosos afetavam preocupação e<br />

pressa.<br />

A varanda do sobrado de Manuel Pescada,<br />

uma varanda larga e sem forro no teto, mostrando<br />

as ripas e os caibros que sustentavam<br />

as telhas, tinha um aspecto pitoresco, com<br />

sua vista para o rio Bacanga, suas rótulas<br />

Índice<br />

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pintadas de verde-paris, toda aberta para o<br />

quintal onde, à mingua de sol, mirravam-se<br />

duas pitangueiras anêmicas e esgalhadas, e<br />

passeava solenemente um pavão da terra. As<br />

paredes, barradas de azulejos portugueses e<br />

forradas para cima de papel pintado, mostravam<br />

nos grupos repetidos de zuavos franceses<br />

e chins caricatos, alguns lugares sem tinta,<br />

cujas manchas brancas lembravam joelheiras<br />

de calças surradas. Em uma das paredes laterais<br />

um velho armário de jacarandá polido,<br />

bem cuidado, com as vidraças muito lustradas<br />

a cré, expunha as pratas e as porcelanas de<br />

gosto moderno; a um canto uma máquina de<br />

costura de Wilson, das primeiras que vieram<br />

ao Maranhão, dormia esquecida na sua caixa<br />

de pinho envernizado; nos intervalos das<br />

portas simetrizavam ridiculamente litografias<br />

vulgares representando estudos de Julien; em<br />

uma das cabeceiras da sala um relógio de armário<br />

pulsava monotonamente os segundos e<br />

apontava flegmaticamente duas horas da tarde.<br />

Sob a claridade reverberante que vinha do<br />

quintal, permaneciam ainda a louça do almoço,<br />

a garrafa oitavada com um resto de Colares e<br />

a toalha branca, cheia de côdeas de pão e pingos<br />

de chá, onde as moscas banqueteavam-se<br />

com grande zunido, prendendo-se nas facas<br />

sujas de manteiga.<br />

De uma gaiola pendurada chilrava um sabiá.<br />

Fazia preguiça estar ali – a viração do Bacanga<br />

refrescava o ar abafado da varanda e<br />

criava no ambiente um tom morno, que enervava<br />

os sentidos; sentia-se o quebranto dos dias<br />

inúteis, uma vontade de abrir a boca e esticar<br />

as pernas.<br />

Índice<br />

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De fronte, do outro lado do Bacanga, a vegetação<br />

do Anjo da Guarda convidava a uma<br />

sesta descansada e feliz das mangueiras, deitado<br />

no capim. As árvores tinham estremecimentos<br />

voluptuosos e pareciam abrir de longe<br />

os braços, provocando amores.<br />

– Então, que me respondes, Ana Rosa? – disse<br />

Manuel, estendendo-se mais na cadeira à<br />

cabeceira da mesa. – Olha, filha! Sabes que<br />

não te contrario, desejo este casamento, mas<br />

em primeiro lugar quero saber se é de teu gosto.<br />

Vamos... fala!.<br />

E voltando-se para o interior da casa: – Então<br />

esta mesa não se levanta hoje, moleque?!<br />

Ana Rosa não respondeu, continuou assentada<br />

ao lado do pai, distraída a mexer com<br />

uma colherzinha os resíduos de chá e açúcar<br />

no fundo da xícara.<br />

Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por<br />

Manuel Pescada, era um português de uns cinquenta<br />

anos, forte, vermelho, bom e sadio, atilado<br />

para o comércio e amigo do Brasil e dos<br />

brasileiros; dava-se à leitura constante dos<br />

jornais portugueses; em rapaz decorara respeitosamente<br />

Camões e não ignorava de todo<br />

a existência do Garrett; sempre fora fanático<br />

pelo Marquês de Pombal, de quem sabia várias<br />

anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete<br />

Português de Leitura, que chegava para<br />

ele e para a filha, que em compensação era<br />

uma devoradora de romances.<br />

Manuel Pedro fora casado com uma senhora<br />

brasileira, de Alcântara, chamada Mariana,<br />

muito virtuosa, rigorosíssima em coisas de religião,<br />

como a maior parte das senhoras brasileiras.<br />

Quando morreu deixou em legado seis<br />

escravos para Nossa Senhora do Carmo.<br />

A filha ficou com dez anos e Manuel Pedro<br />

Índice<br />

12 / 58


desamparado; foi uma época triste para ambos.<br />

Moravam neste tempo no Caminho Grande,<br />

em uma casinha térrea, para onde a moléstia<br />

da mão de Ana Rosa os levara em busca de<br />

novos ares; porém Manuel, que era negociante<br />

e tinha o seu armazém na Praia Grande, mudou-se<br />

logo para o sobrado em que o vimos na<br />

rua da Estrela, e em cujos baixos há dez anos<br />

prosperava.<br />

Para não ficar só com a filha que estava se fazendo<br />

uma mulher, convidou a sogra, D Maria<br />

Bárbara, a fazer companhia à neta e mesmo<br />

para guiá-la, encaminhá-la bem. – Um homem<br />

nunca servia para essas cousas e se fosse a<br />

chamar uma preceptora – o que não diriam por<br />

aí?... No Maranhão falava-se de tudo. D. Maria<br />

Bárbara que viesse – estaria como em sua<br />

casa, bom quarto, boa mesa e plena liberdade.<br />

A sogra aceitou e lá foi, carregando seus cinquenta<br />

e tantos anos, alojar-se em casa de<br />

Manuel com seus moleques, suas crias e os<br />

cacaréus ainda do tempo do defunto marido.<br />

Mas em breve, o bom português arrependeu-<br />

-se da má aquisição que fizera. – D. Maria Bárbara,<br />

apesar de uma senhora piedosa, de não<br />

sair do quarto sem estar bem penteada; sem<br />

faltar-lhe nenhum dos cachinhos de seda preta,<br />

com que emoldurava disparatadamente o<br />

rosto pálido e enrugado, apesar de seu grande<br />

fervor religioso e das missas que absorvia quotidianamente,<br />

saíra-lhe má dona de casa – era<br />

uma víbora! Dava nos escravos por hábito e<br />

por gosto, só falava a gritar e quando punha-<br />

-se a ralhar – Deus rios acuda! –, incomodava<br />

toda a vizinhança. Enfim, era insuportável,<br />

mas o que se pode chamar insuportável!<br />

Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das<br />

velhas maranhenses criadas na fazenda –<br />

Índice<br />

13 / 58


tratava muito dos avós, eram quase todos<br />

portugueses, muito orgulhosa, muito cheia de<br />

escrúpulos de sangue; sempre que falava nos<br />

pretos dizia – os negros, os sujos! e quando<br />

se referia a um mulato, dizia – o cabra! Fora<br />

sempre devota; em Alcântara tivera uma capela<br />

de Santa Bárbara e obrigava a escravatura<br />

a rezar todas as noites, em coro, com os<br />

braços abertos, às vezes algemados. Falava<br />

com grandes suspiros do marido – do seu João<br />

Hipólito –, um português fino, de olhos azuis e<br />

cabelos louros.<br />

Este João Hipólito fora brasileiro adotivo e<br />

alcançara boa posição oficial na Secretaria do<br />

Governo; morreu como posto de coronel.<br />

Maria Bárbara tinha grande admiração pelos<br />

portugueses, falava deles com entusiasmo<br />

erótico, preferia-os aos brasileiros. Quando a<br />

filha foi pedida por Manuel Pedro, então principiante<br />

no comércio, dissera: – Bom! Ao menos<br />

tenho certeza de que é branco!<br />

Porém Manuel nunca fora amado pela mulher;<br />

a virtude fizera dela esposa dedicada,<br />

mãe extremosa, mas fria para o marido, foi talvez<br />

mártir.<br />

A mãe de Ana Rosa dedicara-se desde os<br />

quinze anos, com o entusiasmo do primeiro<br />

amor, ao nosso talentoso José Cândido de Moraes<br />

e Silva, conhecido popularmente pelo Farol,<br />

mas não lograra casar com ele, nem só em<br />

razão das perseguições políticas que tão cedo<br />

atribularam a pequena vida dessa bela criança,<br />

como também pela oposição inflexível que<br />

tal ideia encontrou na família de Mariana.<br />

Entretanto dizia ela amargamente – tinha<br />

sua felicidade presa à sorte do desventurado<br />

maranhense. É que sentira-lhe a mágica influência<br />

que os homens superiores exercem<br />

Índice<br />

14 / 58


sobre a mulher – vira-lhe os olhos claros e inteligentes,<br />

onde o amor deveria de ter um reflexo<br />

especial, ouvira a música que ele, nos serões<br />

de família, arrancava de seu violão inspirado<br />

e os bonitos versos que compunha para a namorada<br />

–, naquela fronte tão nova e já tão imponente<br />

admirava a virilidade do talento revolucionário<br />

e o heroísmo brilhante de um gênio<br />

superior à época em que floresceu! E tudo isso,<br />

como é muito natural, arrebatava-a para ele<br />

com todo o ardor do primeiro desejo.<br />

Quando o grande herói morreu, na Rua dos<br />

Remédios, vítima de seu talento e de sua lealdade,<br />

escondido, perseguido, cheio de necessidades,<br />

odiado, temido e adorado, tendo apenas<br />

vinte e cinco anos, a pobre senhora deitou<br />

luto e nunca mais se enfeitou. – Não tinha gosto<br />

para nada – dizia. Ficou mais feia e entristeceu<br />

até morrer, três anos depois.<br />

Ana Rosa era nesse tempo uma criança,<br />

porém a mãe ensinara-lhe a respeitar e compreender<br />

a memória do talentoso revolucionário,<br />

cujo nome despertava ainda entre os portugueses<br />

a raiva antiga do motim de 7 de agosto<br />

de 1831.<br />

– Minha filha – disse a mãe de Ana Rosa<br />

em vésperas da morte –, nunca te deixes casar<br />

sem sentires muito amor pelo homem que te<br />

destinarem. Pensa bem no que te estou dizendo<br />

– não cases no ar! O casamento, filha de<br />

minh’alma, deve ser sempre a consequência<br />

de duas inclinações – a gente se deve casar<br />

porque ama, e nunca ter de amar porque se<br />

casou; se fizeres o que te digo, serás feliz! –<br />

concluiu, pedindo à filha que prometesse, no<br />

caso que viessem a obrigá-la a casar, de arrostar<br />

tudo, tudo, para evitar semelhante coisa,<br />

principalmente se ela já gostasse de outro;<br />

Índice<br />

15 / 58


e então por esse outro, sim – fizesse sacrifícios,<br />

dedicasse-lhe toda a sua vida, porque isso era<br />

a verdadeira virtude.<br />

E foram estes os conselhos que a infeliz mulher<br />

de Manuel legou à filha. Ana Rosa não os<br />

compreendeu logo, decerto, nem tão cedo procurou<br />

compreendê-los, porém tão ligados estavam<br />

eles à morte da mãe, que não lhe acudia<br />

esta à memória sem as palavras da moribunda.<br />

Manuel Pedro, apesar de bom, era um desses<br />

homens pouco susceptíveis aos sentimentos<br />

muito delicados; seria um bom esposo para<br />

outra mulher, nunca compreendeu porem a<br />

que lhe coube, e é de supor até que chegasse<br />

a aborrecê-la. Quando viu-se viúvo não sentiu,<br />

a despeito do coração, mais do que a falta de<br />

uma companheira com quem já se tinha habituado;<br />

contudo não pensou em tornar a casar,<br />

convencido que o afeto da filha lhe chegaria de<br />

sobra para amenizar canseiras do trabalho, e<br />

os bons serviços da sogra para zelar pela decência<br />

de sua casa e pelos buracos de suas<br />

meias.<br />

Ana Rosa cresceu, como se pode calcular,<br />

entre os cuidados insuficientes do pai e o mau<br />

gênio da avó; ainda assim aprendera a gramática,<br />

lera alguma coisa, sabia rudimentos<br />

do francês e tocava modinhas sentimentais ao<br />

violão e ao piano. Era porém inteligente, tinha<br />

intuição da virtude, bonito modo e lamentava<br />

não se ter instruído mais. Conhecia muitos trabalhos<br />

de agulha, bordava bem e tinha uma<br />

voz boa que era um gosto! Em pequena servira<br />

várias vezes de anjo da verônica nas procissões<br />

da quaresma; e os cônegos da Sé gabavam-lhe<br />

o metal da voz e davam-lhe grandes<br />

cartuchos de amêndoas de mendubim, muito<br />

Índice<br />

16 / 58


enfeitados com suas pinturas toscas a goma<br />

arábica e tintas de botica.<br />

Ana Rosa, nessas ocasiões, sentia-se radiante,<br />

com as faces rubradas de carmim, os<br />

cabelos retorcidos em cachos artificiais, grande<br />

roda no vestido curto como uma dançarina<br />

francesa. E muito concha, ufana de seus galões<br />

e de suas asas de papelão e escomilha,<br />

caminhava triunfante e feliz, entre as irmandades,<br />

segurando a extremidade de um lenço<br />

que lhe dava a segurar o pai. Isto eram promessas<br />

feitas pela mãe ou pela avó em dias<br />

de grande enfermidade.<br />

Ana Rosa crescera bonita de formas, sadia,<br />

tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de<br />

Mariana e puxara os dentes fortes e as rijezas<br />

do pai. Aos vinte anos era o santo Antoninho<br />

de casa – senhores e escravos tinham-na por<br />

senhora –, mandava, resolvia a seu bel-prazer.<br />

Com a puberdade apareceram-lhe caprichos<br />

românticos e fantasias poéticas –gostava dos<br />

passeios ao luar, das serenatas, tinha um<br />

quarto de estudo, uma variada biblioteca de<br />

romancistas e poetas, à cabeceira da mezinha<br />

de trabalho o retrato do Farol, que herdara de<br />

Mariana, sobre a estante um Paulo e Virgínia<br />

de biscuits. Lera com entusiasmo a Graziella e<br />

o Raphaël de Lamartine, e à noite, antes de dormir,<br />

procurava construir o sorriso que possuía<br />

a procitana quando fitava o amante. Praticava<br />

bem com os pobres, adorava os passarinhos<br />

e não podia ver matar junto de si urna borboleta.<br />

Um bocadinho supersticiosa – não queria<br />

as chinelas emborcadas debaixo da rede<br />

e aparava os cabelos durante o quarto-crescente<br />

da lua –, não porque acreditasse nessas<br />

coisas! justificava-se ela – mas fazia porque<br />

os outros faziam. Tinha sobre a cômoda um<br />

Índice<br />

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cromo litográfico de Nossa Senhora dos Remédios<br />

e rezava-lhe todas as noites. Dava a vida<br />

por um passeio ao Cutim, e quando soube que<br />

se projetava uma linha férrea de bondes até lá<br />

teve uma alegria nervosa e feliz.<br />

Feitos os dezenove anos, Ana Rosa pouco e<br />

pouco principiara a descobrir em si sintomas<br />

esquisitos e crescentes, sentiu que qualquer<br />

transformação importante se operava em seu<br />

espírito e em seu corpo – sobressaltavam-na<br />

tristezas infundadas e temores ideais. Um dia<br />

acordou mais preocupada – assentou-se cismando<br />

na rede, e, com grande espanto, reparou<br />

que seus membros se tinham arredondado,<br />

que a linha curva suplantara a reta e que<br />

suas formas eram inteiramente de mulher –,<br />

veio-lhe um contentamento estranho e violento,<br />

porém pouco depois entristeceu – sentiu-se<br />

só, não lhe bastava o amor do pai e da avó,<br />

queria uma afeição mais exclusiva, um afeto<br />

mais dela. Lembrou-se então de seus namorados,<br />

riu-se – Coisas de criança! Aos doze anos<br />

namorara um estudante – conversaram três ou<br />

quatro vezes nas salas do pai e supunham-se<br />

deveras apaixonados um pelo outro; o estudante<br />

seguiu para a Escola Central da Corte e<br />

ela nunca mais pensou nele. Depois foi um oficial<br />

de Marinha – como lhe ficava bem a farda!<br />

Que moço engraçado! Bonito! E como sabia se<br />

vestir!... Ana Rosa chegou a principiar a bordar<br />

um par de chinelas para oferecer ao gentil<br />

namorado, antes porém de terminar o primeiro<br />

pé, já ele tinha desaparecido na corveta Baiana.<br />

O outro, um empregado do comércio – bom<br />

rapaz, cuidadoso da roupa e das unhas. Parecia<br />

que ainda o estava a ver: todo metódico,<br />

escolhendo palavras para pedir-lhe a subida<br />

honra de dançar com ela uma quadrilha no<br />

Índice<br />

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Clube União. Ah tempos, tempos! E não queria<br />

mais pensar nisso: criancices! Criancices! Hoje<br />

ela queria, mas era o marido, o seu! O verdadeiro!<br />

O legal homem de sua casa! O dono de<br />

seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente<br />

como amante e obedecer como escrava.<br />

Queria se dedicar a alguém, sentia necessidade<br />

de aplicar sua atividade em governar uma<br />

casa e educar muitos filhos.<br />

E com estas ideias vinha-lhe sempre um arrepiozinho<br />

de febre – ficava excitada, idealizando<br />

um homem forte, corajoso, com um bonito<br />

talento, e capaz de se matar por amor dela! E<br />

debuchava em seus sonhos agitados um vulto<br />

confuso, que galgava a galope precipícios medonhos<br />

para chegar onde ela estava – merecer-<br />

-lhe um sorriso, uma esperança de casamento.<br />

E sonhava o noivado – um banquete esplêndido<br />

e um mancebo formoso e impaciente, a seu<br />

lado, queixando-se com um olhar terno e varonil<br />

da demora dos convivas.<br />

Depois via-se dona de casa – pensando muito<br />

nos filhos, sonhava-se feliz, independente,<br />

presa ao ninho e às cadeias do marido, e<br />

imaginava umas criancinhas louras, engraçadas,<br />

dizendo ternas asneirinhas, chamando-a<br />

mamã. – Como devia ser bom!... Como havia<br />

mulheres que se não casavam!... Não podia<br />

admitir o celibato, o convento, principalmente<br />

para a mulher. Um homem, vá! Viveria triste,<br />

só! Mas enfim sempre era um homem! Teria<br />

outras distrações! Mas uma mulher! Que melhor<br />

futuro poderia ambicionar que o casamento?<br />

Que melhor prazer do que a maternidade!<br />

Que melhor companhia do que a dos filhos,<br />

esses diabinhos tão feiticeiros?! Além de tudo<br />

isso – ela sempre gostara muito de crianças –,<br />

pedia-as emprestado às mães e as demorava<br />

Índice<br />

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quanto fosse possível em sua companhia; tinha<br />

um afilhado de dois anos, para quem cosia<br />

camisas, com paciência, boa vontade, gostava<br />

de vestir bonecas e, quando alguma de suas<br />

amigas se casava, Ana Rosa sempre guardava<br />

um cravo do casamento, com muita fé – pregava-o<br />

no vestido com os alfinetes dourados<br />

da noiva, e, depois de tudo isto, suspirava longamente,<br />

com o desânimo do viajante que já<br />

se sente cansado e não avista ainda o lar.<br />

Mas o noivo onde estava que não vinha?!<br />

Esse mancebo tão ardente, tão romântico,<br />

tão apaixonado, por que não se apresentava?<br />

Dos homens que conhecia nenhum decerto podia<br />

ser! E não obstante ela amava! A quem?<br />

Não sabia, mas amava! Sim! Fosse um ideal,<br />

fosse o que fosse, mas ela sentia estremecimentos<br />

pensando nele, chorava, ria, estorcia-<br />

-se, soluçava e chamava-se infeliz, desgraçada.<br />

Os dias foram se passando no aborrecimento<br />

de seu celibato e nada!... Ana Rosa principiou<br />

a emagrecer a olhos vistos, dormia menos, à<br />

mesa mal tocava nos pratos.<br />

– Ó pequena! Tu tens alguma coisa! – disse-<br />

-lhe um dia o pai, já maçado com o ar doentio<br />

da filha. – Não me pareces a mesma! Que é<br />

isso, Anica?!<br />

– Não era nada!...<br />

E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tivesse<br />

cometido uma falta. – Andaço! Incômodo de<br />

nervos! – Não era coisa que valesse a pena!...<br />

E chorava.<br />

– Olha! Aí temos! Agora estás a chorar! Nada!<br />

É preciso chamar o médico!<br />

– Chamar o médico?! Ora, papai! Não vale a<br />

pena!<br />

E tossia. – Que a deixassem em paz! Que<br />

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não a estivessem apoquentando com perguntas!...<br />

E tossia mais, sufocada.<br />

– Vês?! Estás achacada! Levas nesse chrum<br />

chrum! chrum, chrum!<br />

E arremedava a tosse da filha: – E é só. – Não<br />

vale a pena! Não precisa chamar o médico! –<br />

Não, senhora, com moléstias não se brinca!<br />

O médico receitou banhos de mar na Ponta<br />

d’Areia. Foi um tempo delicioso para Ana<br />

Rosa os três meses que passou lá – os ares da<br />

costa, os banhos de choque, os passeios a pé<br />

abriram-lhe o apetite e trouxeram-lhe algum<br />

sangue; ficou mais forte, chegou a engordar.<br />

Na Ponta d’Areia travara uma nova amizade:<br />

D. Eufrasinha. Era viúva de um oficial do<br />

Quinto d’Infantaria, que morreu na guerra do<br />

Paraguai.<br />

Eufrásia era muito romântica – falava, requebrando-se,<br />

do marido e poetizava-lhe a curta<br />

história. – Dez dias depois de casado partira<br />

para o campo de batalha e, no denodo de sua<br />

coragem, fora atravessado por uma bala de artilharia,<br />

morrendo a balbuciar com o lábio ensanguentado<br />

o nome da esposa estremecida!<br />

E com um enorme suspiro histérico a viúva<br />

concluía, pesarosa: – Que conhecera prazeres<br />

nesta vida apenas dez dias e dez noites!...<br />

Ana Rosa lamentava muito a amiga e ouvia-lhe<br />

de boa-fé as frioleiras, com atenção e<br />

recolhimento, cheia de ingênua sinceridade.<br />

Identificava-se facilmente com a história singular<br />

daquele casamento tão triste e simpático<br />

– por mais de uma vez chegou a chorar pela<br />

morte do moço oficial de infantaria.<br />

D. Eufrasinha ensinou a sua nova amiga<br />

muitas cousas que esta ignorava –instruiu-a<br />

em certos segredinhos do casamento; pode-<br />

-se dizer que deu-lhe lições de amor. Falou-lhe<br />

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muito dos homens – como a gente devia lidar<br />

com eles; ensinou-lhe a conhecer as manhas<br />

dos namorados; quais eram os tipos preferíveis,<br />

o que queriam dizer olhos mortos, beiços<br />

grossos, nariz comprido.<br />

Ana Rosa ria-se – não ligava importância a<br />

essas cousas – bobagens! – dizia ela com um<br />

sorriso de dúvida. Contudo foi insensivelmente<br />

reconstruindo seu ideal pelas informações de<br />

Eufrásia – fê-lo mais material, mais homem,<br />

mais possível de ser encontrado, e, pensando<br />

só no corpo, corrigiu-o, reformou-o, poliu-o,<br />

deu-o por pronto, e então amou-o mais, muito<br />

mais!, tanto como si fosse uma realidade.<br />

Desde então começou a servir-se desse ideal<br />

como base de suas observações concernentes<br />

ao homem: era ele o termo de suas comparações,<br />

a bitola por onde media o merecimento<br />

de cada sujeito que lhe aparecia. E se o desgraçado<br />

não tivesse o nariz, o olhar, o gesto,<br />

o todo enfim, igual ou pelo menos semelhante<br />

à bitola, podia perder a esperança de cair nas<br />

graças da filha de Manuel Pedro.<br />

Eufrasinha mudou-se para a cidade. Ana<br />

Rosa já lá estava. Visitaram-se de parte a parte<br />

– confidenciaram. E na intimidade de suas<br />

confidências acharam consolo mútuo para o<br />

celibato de uma e para a viuvez da outra.<br />

Havia, empregado no armazém do pai de<br />

Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís<br />

Dias – muito ativo, econômico, discreto, trabalhador,<br />

boa letra e muito estimado da praça.<br />

Contavam dele invejáveis partidas de viveza<br />

comercial, e ninguém se lembrava de dizer<br />

mal do Dias. Era um desses tipos incapazes<br />

de inspirar a alguém qualquer sentimento bem<br />

definido e dos quais em geral se diz: – É um homem<br />

inofensivo. Quase sempre que falavam a<br />

Índice<br />

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espeito dele diziam: – Coitado! E este coitado<br />

não tinha uma razão de ser, porque ao Dias<br />

nada faltava – tinha casa, comida, roupa lavada<br />

e engomada e cobres, mas é que o diabo do<br />

homem inspirava compaixão com o seu eterno<br />

ar de piedade, de súplica, de humilhação; fazia<br />

pena, incutia dó em quem o visse tão submisso,<br />

tão passivo! A graça é que ninguém se<br />

lembraria de levantar sobre ele o braço sem<br />

sentir a repugnância da covardia.<br />

Outros elogiavam-no. – Que não fossem atrás<br />

daquele ar modesto, porque ali estava um empregado<br />

de truz! Muito hábil! inteligente! Expedito!<br />

Um entusiasta chamou-o de uma feita<br />

– gênio privilegiado do comércio! E a fórmula<br />

ficou! Respeitavam-no.<br />

Vários negociantes ofereciam-lhe boas vantagens<br />

para deixar a casa de Manuel; o Dias<br />

recusava sempre, de cabeça baixa, humilde. E<br />

tão firmemente se negou às repetidas propostas,<br />

que todo o comércio, dando como certo o<br />

casamento dele com a filha do patrão, elogiou<br />

a escolha de Manuel, e profetizou ao novo casal<br />

um futuro de riqueza. – Foi acertado, foi! –<br />

diziam com o olhar fito.<br />

De fado Manuel Pedro via naquela criatura,<br />

trabalhadora e passiva como um boi de canga,<br />

e econômico como um usurário, o homem mais<br />

habilitado para fazer a felicidade da filha. Queria-o<br />

para genro – apreciava-o, louvava-lhe a<br />

morigeração e contava a toda gente que o seu<br />

Dias retirava por ano apenas a quarta parte<br />

do ordenado. – Deve ler seu pecúlio! Deve! A<br />

mulher que o quisesse levava um bom marido!<br />

Aquele vem a possuir alguma cousa! – dizia<br />

ele com convicção.<br />

E pouco a pouco foi se habituando a julgá-lo<br />

da família e a estimá-lo como tal. Só faltava que<br />

Índice<br />

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a filha se inclinasse, se resolvesse, mas ela<br />

– qual! Tinha-lhe até como que repugnância –<br />

não o queria ver com seu cabelo curto, o bigode<br />

convencionalmente raspado, os dentes sujos,<br />

os movimentos acanhados e reles; a exagerada<br />

economia do Dias causara-lhe tédio. – Um<br />

somítico! – dizia ela, franzindo o nariz.<br />

Um dia o pai falou-lhe no casamento.<br />

– Com o Dias?!... – perguntou espantada.<br />

– Sim.<br />

– Ora, papai!<br />

E soltou uma rizada.<br />

Manuel não se animou a dizer mais nada,<br />

porém à noite contou tudo em particular ao<br />

compadre, um amigo velho, íntimo da casa – o<br />

cônego Diogo.<br />

– Optima saepe despecta! – sentenciou o amigo.<br />

– É preciso dar tempo ao tempo, seu compadre!<br />

A coisa há de ser; deixe estar.<br />

No entanto o Dias não desanimava, esperava<br />

pacificamente, calado, sem erguer os olhos,<br />

cheio de resignação e humildade.”<br />

Índice<br />

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NASCIMENTO<br />

MORAES<br />

(1882-1958)<br />

Professor, crítico, polemista, poeta,<br />

ativista intelectual, e, sobretudo, jornalista,<br />

José do Nascimento Moraes<br />

foi “sem exagero o maior e mais fecundo<br />

polígrafo maranhense deste século<br />

(XX)” (Nauro Machado). Sua obra<br />

publicada inclui Puxos e repuxos, crítica<br />

(1910); Vencidos e degenerados,<br />

romance (1915; republicado, junto<br />

com Contos de Valério Santiago – São<br />

Luís: Secma/Sioge, 1982 ); Neurose<br />

do medo, crônicas (1923; republicado<br />

em 1982, junto com 100 artigos<br />

do autor – São Luís: Secma; Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira), entre<br />

outros títulos.<br />

O texto abaixo foi extraído das primeiras<br />

páginas de Vencidos e degenerados,<br />

(livro que, como diz Jean-Yves<br />

Mérian, “mais que um romance, é<br />

uma crônica da vida em São Luís do<br />

Maranhão em fins do século XIX e no<br />

começo do século XX.” Observe-se<br />

que a personagem principal do relato,<br />

José Maria Maranhense, foi um<br />

dos pseudônimos do Autor (Zé Maranhense).<br />

O texto foi levemente revisto,<br />

além de atualizada a ortografia).<br />

Índice<br />

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Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de<br />

1888, a residência de José Maria Maranhense,<br />

à Rua São Pantaleão, uma meia-morada de<br />

bons cômodos, regurgitava de gente. Ele, Maranhense,<br />

membro saliente do Clube Abolicionista<br />

Maranhense, era um dos mais ardorosos<br />

e salientes cabos de guerra do abolicionismo e<br />

um dos que mais se expusera pela nobilíssima<br />

causa da liberdade, não poupando em favor<br />

dela as suas pequenas economias.<br />

Os que lá se achavam naquela gloriosa manhã<br />

eram pessoas de diversas classes sociais,<br />

desde o funcionário público e o homem de letras,<br />

até artistas, operários livres, não faltando<br />

vagabundos e desclassificados.<br />

Principiara o reboliço na noite passada, durante<br />

a qual ansiosamente esperaram que<br />

chegasse o telegrama transmissor da grande<br />

e luminosa notícia da redenção dos cativos, de<br />

que, há muitos dias, já se vinha falando, animados<br />

todos por vigorosas esperanças.<br />

Maranhense mandara vir, à noite, uma haste<br />

tosca e grosseira, e a colocara numa das janelas,<br />

sustentada na extremidade inferior pelo<br />

parapeito mais acima e por grossas cordas<br />

que se enrolavam fortemente em dois pregos<br />

enterrados na parede, dentro da sala. Com alguns<br />

reparos que lhe fez, elevou-a à categoria<br />

de pau de bandeira.<br />

Nela se desfraldaria o pavilhão nacional assim<br />

que chegasse a promissora notícia.<br />

O movimento continuava intenso na residência<br />

de Maranhense, como em muitos pontos<br />

da cidade, em todas as casas onde moravam<br />

abolicionistas decididos e afervorados.<br />

Os vizinhos, curiosos, estavam à janela,<br />

apreciado aquilo que não compreendiam muito<br />

bem...<br />

Índice<br />

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Nas esquinas com a Rua do Monteiro, em frente<br />

da casa de Maranhense, populares comentavam<br />

os boatos e notavam os que entravam e<br />

os que saíam daquela formidável assembleia<br />

em que se reuniam tão variados elementos.<br />

Às nove horas, pouco mais ou menos, notouse<br />

maior reboliço na sala; afluíram muitos casacudos<br />

às janelas, ao mesmo tempo, com<br />

sensível curiosidade: era que se aproximava,<br />

descendo a rua, João Olivier, jornalista vibrante<br />

e orador fluente, que pela imprensa muito<br />

trabalhava em favor dos oprimidos.<br />

João Olivier dirigia-se para a casa de Maranhense.<br />

Era um rapaz alto, magro, moreno, rosto largo,<br />

olhos negros e vivos, faiscando através das<br />

vidraças do pincenê. Envergava um fato azul<br />

claro; trazia um colarinho alto, gravata parda,<br />

a borboletear. Não dispensava uma flor qualquer<br />

à botoeira, e exibia naquela manhã um<br />

desabrochado botão de rosa amarela, luvas no<br />

bolso do peito do paletó, e um palhinha airoso<br />

e leve. Caminhava com o passo largo e medido.<br />

Quando andava, metia o dedo polegar esquerdo<br />

na cava do colete, balanceava o corpo<br />

e a cabeça, jogando com as espáduas para a<br />

direita e para a esquerda, fronte alevantada,<br />

altiva, e, se porventura a baixava, era para se<br />

espelhar no verniz da botinha. Era mestiço e<br />

fora com dificuldade que se colocava na imprensa<br />

e se fizera guarda-livros de importante<br />

casa comercial. Era um cronista excelente e<br />

sustentava no jornal as graças e as louçanias<br />

do dizer castiço e vernáculo.<br />

– Ilustradíssimo causeur! – cumprimentou-o<br />

à porta um dos que se apresentou a recebê-lo,<br />

sacudindo-lhe a mão com mãos ambas.<br />

– Pena bizarra do galanteio feminil, salve! –<br />

Índice<br />

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espondeu o moço jornalista, numa curvatura<br />

entre o grotesco e o irônico, descobrindo-se com<br />

elegância, pegando do chapéu e do leque com<br />

a mão esquerda em cima do peito.<br />

Passou entre filas e penetrou na sala, apinhada<br />

de homens e senhoras. Olivier era uma<br />

figura simpática e insinuante. <strong>Seu</strong> nome era<br />

um florão de pérolas, na época, uma centelha.<br />

Por isso, à sua presença, quem não lhe vinha<br />

ao encontro compunha-se, voltava-se, para lhe<br />

examinar a figura original. Maranhense o levou<br />

para um canto da sala, e, em voz baixa,<br />

lhe falou assim:<br />

– A coisa está demorando. Que achas tu?<br />

– Acho que devemos estar tranquilos. A demora<br />

é um nada. Sou capaz de apostar que é<br />

hoje que a bomba arrebenta.<br />

– Eu de ânsias estou ficando doente. Acredita<br />

que não preguei olhos à noite passada.<br />

Este pessoal só me deixou depois das duas da<br />

madrugada.<br />

– E quem dormiu à noite passada? Nós não<br />

dormimos e eles não dormiram.<br />

– Eles?...<br />

– Escravos e senhores.<br />

– Ah, sim, percebo. E por que não vieste até<br />

cá?<br />

– Estive em casa do Freire, com o Vítor, até<br />

muito tarde. Quando saí de lá, fui beber um<br />

café no Zé Bento. Com quem me havia de encontrar?<br />

Com João Reis. O resto, com certeza,<br />

adivinharás.<br />

– O patife, creio que ainda não chegou à casa,<br />

porque ainda há pouco o mandei procurar, e a<br />

velha me mandou dizer que dele não tem nem<br />

novas, nem mandadas...<br />

– É terrível...<br />

Olivier se abanava e conservava a mão<br />

Índice<br />

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esquerda no bolso da calça, espraiando o olhar<br />

observador por todos os circunstantes: uns formavam<br />

pequenos grupos e conversavam sobre<br />

os últimos acontecimentos relativos à liberdade<br />

dos escravos; outros, agitados, a fumar, passavam<br />

pelas salas, trocando palavras aqui e<br />

ali. José Maria recostou-se ao umbral da porta<br />

que comunicava ao quarto. Olivier fechou o leque<br />

e acendeu um charuto fino, tendo antes<br />

dado outro ao fogoso abolicionista. José Maria<br />

não quis fumar e guardou o charuto no bolso<br />

de dentro do fraque. Olivier [lhe disse], depois<br />

de uma longa fumaça:<br />

– O Pereira e o Freire devem estar aborrecidos,<br />

lá no telégrafo, a esperarem... Deixa lá<br />

que é uma cacetada...<br />

E depois de alguns instantes, como quem se<br />

recorda:<br />

– Que faz o teu vizinho, o Coronel Patusco?<br />

– Está danado... Temo que ele não resista<br />

ao golpe... Para te falar com franqueza, temo<br />

mais pela mulher dele. É medonha! Irra!<br />

– Horrorosa!...<br />

Coronel Patusco era o Coronel Lousada, a<br />

quem Olivier pregou aquele apelido canalha,<br />

por causa de suas maneiras e hábitos na sociedade.<br />

O povo, porém, ferindo outro alvo, o<br />

alcunhara de Alma Negra.<br />

Lousada era um terrível senhor de escravos,<br />

que abalava a cidade com suas torpezas, quase<br />

diariamente cometidas, com variantes de requintada<br />

selvageria. Lousada tinha especiais<br />

e originalíssimos instrumentos de suplício,<br />

como fossem: cabos preparados com estilhaços<br />

de vidros, por onde forçadamente subiam<br />

e desciam os escravos, até cortarem inteira e<br />

profundamente as mãos; redes com lâminas<br />

lacerantes e pregos onde se embalavam, num<br />

Índice<br />

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horrível balanço, aqueles infelizes, até se retalharem<br />

as carnes e se rasgarem os tecidos<br />

das costas e dos flancos; martelinhos para baterem<br />

na arcada do peito até o sangue espirrar<br />

ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de<br />

ferros que se levavam ao fogo até o rubro, para<br />

queimarem os olhos, a língua, e os membros<br />

dos escravos, que endoideciam nas prisões<br />

úmidas e sufocantes do pavimento térreo.<br />

De noite, à placidez mórbida e pavorosa de<br />

seu silêncio, ouviam, os que moravam nas casas<br />

contíguas ao sobrado do Coronel Lousada, gemidos<br />

surdos que mãos de ferro violentamente<br />

estrangulavam na garganta, espanqueamento<br />

de corpos, de encontro às paredes e às lajes,<br />

queixas e ais, imprecações de almas desesperadas,<br />

rugidos de corações intumescidos pela<br />

cólera, brados, pragas e vingança e, frequentemente,<br />

uma frase cheia de terror, do terror<br />

nascida, repetida com precipitação e fervor, na<br />

agonia da dor e do martírio: “Ai, meu senhor!<br />

Ai, meu senhor!”<br />

– Principiando por casa – continu[ou] Olivier<br />

–, eu já disse a tia Rosa que ponha no olho da<br />

rua a sua pouca gente, antes que a coisa chegue.<br />

É uma medida, José Maria, que, a meu<br />

ver, algo de moral e prudência...<br />

– E a velha está pelos autos?<br />

– Com a maior carga de resignação que pode<br />

concentrar. Porque, na verdade te digo eu –<br />

coordenou Olivier com um sorriso em que a pilhéria<br />

se debruçava graciosa –, esta pobreza<br />

fidalga daqui já ia pegando a moda (notaste o<br />

ia de minha frase?), e não viria longe o dia em<br />

que os escravos, os próprios escravos, procurariam<br />

ter escravos!...<br />

José Maria não pôde conter o riso ante o sério<br />

com que o Olivier proferiu estas palavras.<br />

Índice<br />

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Olivier sorriu e foi-se pelos grupos que enchiam<br />

a sala, apimentando e salgando a prosa alheia<br />

com epigramas que ele lançava com muito chiste<br />

e superior agudez de espírito.<br />

Olivier era uma prosa encantadora, fluente,<br />

salpicada de notas alegres e leves, até quando<br />

tratava de fatos, por sua natureza, graves<br />

e sérios. Suas crônicas eram as mais apreciadas<br />

da Província e, fora dela, corria o seu nome<br />

em evidência, recomendado pela pureza da<br />

linguagem, muito parecida, pela forma e pela<br />

ironia, com a do afamado folhetinista e poeta<br />

maranhense Gentil Homem de Almeida Braga,<br />

a cuja leitura Olivier, arrebatado por sua admiração<br />

incondicional, muito se entregara, de<br />

modo que os seus primorosos lavores saíam<br />

impregnados daquele suave perfume que ainda<br />

se evola dos períodos do folhetinista de<br />

Entre o céu e a terra, recordando o fino gosto<br />

artístico com que aquele excelso cinzelador de<br />

tão boa prosa escreveu o memorável folhetim<br />

que ele intitulou: Se os Holandeses não tivessem<br />

perdido a Batalha dos Guararapes!...<br />

Olivier, colocado com desassombro num dos<br />

mais afamados periódicos da Província, foi um<br />

dos maiores elementos contra a escravidão, e,<br />

como se não bastasse a sua ação na imprensa,<br />

onde ele, com vigor, e até certa violência,<br />

doutrinava, repisava o assunto na conversação,<br />

descrevendo negras cenas de selvageria<br />

desconhecida na capital e que se davam no<br />

interior, nas fazendas, e cujas notícias lhe chegavam<br />

por intermédio de cartas que raríssimos<br />

amigos lhe escreviam de lá, ou que escravos<br />

vendidos e que vinham para a capital contavam<br />

a tremer e espavoridos.<br />

Maranhense enfiou pelo quarto e foi ter<br />

à varanda a repetir pausadamente a seus<br />

Índice<br />

31 / 58


auxiliares as ordens já dadas sobre os foguetes<br />

e a bebida. O que não queria era que, à<br />

hora em que se recebesse o telegrama, nada<br />

estivesse em seu lugar e houvesse atrapalhos<br />

e descontentamentos.<br />

Maranhense era mulato, mais baixo que alto,<br />

e careca. Contava quarenta e tantos anos, grisalho,<br />

gordo e simpático. Marceneiro de profissão,<br />

e estudante nas horas vagas. Tinha<br />

decidido gosto pelas letras, pela ciência, por<br />

tudo enfim que fosse do domínio da inteligência<br />

humana. Se bem não lhe fosse possível<br />

cultivar o espírito com o trato constante do estudo,<br />

em disciplinas regulares, fazia, contudo,<br />

o que estava ainda à altura de suas forças:<br />

procurava relacionar-se com os literatos da terra,<br />

chegava-se àqueles de quem se apregoava<br />

um espírito esclarecido; e, como era inteligente,<br />

de uma assimilação fácil, deu força à sua<br />

loquacidade. José Maria discutia, argumentava,<br />

tinha ideias e pensamentos, e os expunha<br />

sempre, defendendo-os, quando se fazia preciso,<br />

ajudado do bom senso que sempre tivera.<br />

Entusiasta, impressionável, agitador e cheio<br />

de resolução entre os abolicionistas do grupo,<br />

tomou posição evidente, e sua casa, que já era<br />

um ponto de conservação assiduamente frequentado<br />

por muitos dos intelectuais da época,<br />

tornou-se um dos centros de reuniões de<br />

abolicionistas.<br />

Os escravos o consideravam como um dos<br />

seus protetores, e, porque ele era sincero na<br />

causa que defendia, eles o procuravam a todo<br />

o momento, para tratarem da liberdade deles.<br />

Os abolicionistas estavam preparados para<br />

festejar a grande e áurea Lei, salientando-se,<br />

entre todos os preparativos, os do Clube Artístico<br />

[sic] Maranhense, que eram caprichosos,<br />

Índice<br />

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sem igual.<br />

A passeata do Clube devia sair de uma casa,<br />

à Rua de Santaninha, onde já se achavam todos<br />

os aprestos, ornamentos e dourados que<br />

tinham de figurar na “sensacional”, segundo<br />

se expressava Santana Reis, um dos mais valentes,<br />

inteligentes e prestimosos membros do<br />

Clube.<br />

À Rua de Santaninha já estavam o retrato<br />

de José do Patrocínio e os de Nabuco, João Alfredo<br />

e outros do gabinete libertador e de gabinetes<br />

que o precederam, trabalhando para a<br />

liberdade dos negros.<br />

Da casa de Maranhense ainda tinham de ir<br />

muitas dúzias de foguetes, de balões, pequenos<br />

andores para os retratos, velas, alguns<br />

archotes, e um retrato da Princesa Isabel, já<br />

colocado com andor lantejoulado, trabalho imperfeito<br />

quanto às particularidades, mas tratável<br />

e completo nas linhas gerais.<br />

Depois de ter recomendado a seus discípulos<br />

um transporte cuidadoso de tudo aquilo, como<br />

quem diz uma oração, voltou à sala, onde o<br />

reboliço crescia momento a momento com os<br />

boatos desordenados que corriam.<br />

Olivier continuava a palrar, saboreando delicioso<br />

charuto. Maranhense acendeu o seu e<br />

foi-se, pensativo, a olhar o movimento da rua,<br />

que a mais e mais se aumentava, e a cumprimentar<br />

com rasgados cheios os transeuntes.<br />

O telegrama chegou às três horas da tarde.<br />

Os da comissão destacada no telégrafo deram<br />

o sinal convencionado, fazendo subir aos<br />

ares girândolas e foguetes.<br />

O pessoal de prontidão na casa de José<br />

Maria respondeu tocando também outras tantas<br />

girândolas. A sala do velho abolicionista<br />

tremeu de vivas atroadores, que romperam do<br />

Índice<br />

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peito ansioso de toda a assembleia.<br />

As moças correram às cestas de flores, e José<br />

Maria, com ar marcial, foi postar-se em frente<br />

a um retrato coberto de gaze transparente, colocado<br />

na sala, por cima do sofá. Ouviu-se,<br />

após, o tocar de foguetes em todos os bairros.<br />

Um grupo de populares, vindo da Rua do Passeio<br />

pela Travessa do Monteiro, desembocou<br />

em frente da casa de Maranhense, invadindo-<br />

-a depois. Olivier, a um sinal de José Maria,<br />

subiu a uma cadeira, impondo a sua estatura<br />

simpática e atraente, estendeu o braço direito,<br />

com a mão aberta, pedindo silêncio. Súbito o<br />

burburinho estancou. O orador começou o discurso.<br />

O causeur era um tribuno elegante e veemente.<br />

Palavra fácil, fluente, cativante dicção,<br />

imagens fortes e cheias de vida, voz áspera,<br />

gesto nervoso, dominou o auditório, comoveu-o,<br />

entusiasmou-o, lançou a chama encantadora<br />

do arroubo, e perorou entre frenéticos e<br />

tumultuosos aplausos.<br />

Foi um discurso de conceitos, de pensamentos,<br />

sentimental, que tocou ao auge de beleza<br />

e forma, quando falou na Princesa Isabel.<br />

Foi nesse ponto que Maranhense, repuxando<br />

a gaze com o correr do cordel que se lhe ligava,<br />

fez aparecer o retrato dela, feito a craiom, por<br />

um talentoso artista plástico. Uma orquestra<br />

composta de conhecidos professores, dirigida<br />

pelo clarinetista Evaristo da Conceição, executou<br />

um Hino da Liberdade, composição do<br />

mesmo Evaristo.<br />

Maranhense não se tinha em si de alegria:<br />

a todos abraçava, atabalhoadamente, derramando<br />

uma verbosidade sem fim. Olivier, ufano,<br />

chega à janela e fala ao povo que se apertava<br />

na rua estreita. Nesta ocasião, rebenta<br />

Índice<br />

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um grupo de abolicionistas, companheiros de<br />

Maranhense, rompendo violentamente a multidão.<br />

Levantou-se novo aranzel: novos discursos,<br />

novos abraços. José Maria não se contém:<br />

lança-se, por sua vez, à janela e saúda os seus<br />

irmãos de luta. Vítor Castelo responde, inflamado,<br />

fogoso, sacudindo o chapéu ao ar, num<br />

estrondoso viva a Isabel! E em frente da casa<br />

de José Maria, e dentro dela, se erguem exaltados<br />

ânimos, entusiásticas falas, e perene<br />

reina uma indizível e eloquente comunicação<br />

de ideias e pensamentos, por muito tempo enfreados<br />

e subjugados.<br />

Eram cinco horas da tarde, e a cidade fulgia<br />

de delírio, ardia na febre ruidosa e empolgante<br />

de sugestionadora alegria. Pelas ruas,<br />

cruzavam-se grupos e grupos de escravos, a<br />

gritar, loucos de satisfação; outros berravam<br />

obscenidades que, como pedradas, iam bater<br />

nas janelas dos escravocratas: insultos soezes,<br />

ofensas terríveis contra a família dos ex-<br />

-senhores que, temendo violências físicas, fechavam<br />

as portas, apenas acabavam de sair<br />

os últimos libertos.<br />

Momentos depois de proclamada a Lei, começou<br />

a divulgar-se a notícia de que uma escrava,<br />

ao passar pela Rua dos Afogados, dera<br />

uma bofetada numa senhora que estava à janela.<br />

Esta senhora passava por amarga decepção:<br />

viu saírem, portas a fora, sem um adeus,<br />

desvairados pela comoção da notícia, todos os<br />

seus escravos. Diziam os que a conheciam que<br />

era uma mulher má, sedenta de cruéis castigos,<br />

e que se apontava, distinta, pela impiedade<br />

de sua cólera, pelo arrebatamento do gênio<br />

irascível e impensadas ações.<br />

A arrebatada que lhe batera no rosto fora uma<br />

das suas escravas. Era um carafuza ainda<br />

nova, farta de carne, sensual, de bem talhadas<br />

Índice<br />

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formas sedutoras, que fascinara o marido da<br />

senhora, um velho comendador, bonacheirão,<br />

roído de reumatismo, constrangido de achaques<br />

próprios da velhice, mas que ainda tinha<br />

vista para os atrativos do gozo. As olhadelas<br />

furtivas do velho libidinoso deitavam chispas<br />

que feriram a retina de D. Amandra. A crioula<br />

começou a ser espiada e por vezes maltratada.<br />

Fatos tais eram comuns e provocavam sempre<br />

a indignação popular. Por isso comentavam<br />

a bofetada, com chacotas e sarcasmo<br />

pungente.<br />

Provocaram fortes gargalhadas e pilhérias<br />

picantes os inesperados cômicos que se deram:<br />

cozinheiras que abandonavam os patrões, sem<br />

lhes apresentar o jantar; outras, que faziam<br />

compras e que se foram com dinheiro e balde.<br />

E em muitas casas, se passaram cenas deprimentes<br />

e tristes: escravos dando expansão à<br />

raiva e ao ódio cometeram desatinos de toda<br />

a espécie, quebrando móveis e louças, e mais<br />

objetos que se lhes deparavam, e deixavam, a<br />

blasfemar, o teto onde tão desgraçados dias<br />

viveram, atirando ferinos e brutos impropérios<br />

que se iam quebrar, como garrafas e vidros,<br />

nas rótulas das janelas, nas portas, e na alma<br />

aniquilada dos infelizes ricaços de ontem, que<br />

se viram, em grande parte, pobres de um momento<br />

para outro.<br />

Não obstante, alguns dos ex-senhores não<br />

ficaram completamente abandonados, porque<br />

não eram maus. Ao abrirem as portas, ao franquearem<br />

a saída aos de há pouco escravos,<br />

ofereceram abrigo aos que quisessem continuar<br />

na sua companhia. Muitos aceitaram os<br />

convites, na maioria os velhos, já inválidos<br />

para uma existência laboriosa, e moças que<br />

eram crias de muito estima e algum conforto,<br />

Índice<br />

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em geral filhos [sic] de escravas com senhores<br />

moços. Mais que os ricos, sofreram, porém, os<br />

pobres que tinham escravos. Os pobres presumidos.<br />

Faziam economias, com prejuízo da<br />

alimentação, e ostentavam pequeno cabedal<br />

de negros. Os escravos dos pobres sofriam as<br />

mais ridículas vexações, porque o espírito pequenino<br />

dos seus senhores se deliciava em os<br />

ocupar a todo instante com as coisas mais insignificantes,<br />

bagatelas, que, à vista da falta<br />

de meios neles patentes, tomavam aspectos<br />

bem deslavados e grotescos.<br />

Pertencer à primeira sociedade era possuir,<br />

pelo menos, duas ou três cabeças de negros.<br />

Imagina-se facilmente o desconsolo em que ficaram<br />

esses pequenos proprietários, quando<br />

se viram, num minuto, abandonados pelos escravos<br />

que eles tinham comprado à custa de<br />

mil sacrifícios e inúmeras necessidades, aqueles<br />

servidores que trabalhavam diariamente à<br />

chuva e ao sol expostos, e que lhes garantiam,<br />

com o produto das energias gastas, o pão de<br />

cada dia.”<br />

Índice<br />

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Acervo do arquivo da Casa de Cultura Josué Montello<br />

JOSUÉ MONTELLO<br />

(1917-2006)<br />

Voltado, desde os bancos escolares,<br />

às plúrimas facetas da vida intelectual,<br />

Josué Montello destacou-se<br />

pela numerosa bibliografia de que foi<br />

autor (mais de cem títulos), da qual<br />

sobressai a obra romanesca, em larga<br />

parte ambientada em cenário maranhense.<br />

<strong>Seu</strong>s romances Os tambores de São<br />

Luís (Rio de Janeiro: José Olympio,<br />

1975) e Noite sobre Alcântara permanecem<br />

entre as grandes realizações<br />

da literatura brasileira do século XX.<br />

O texto abaixo foi extraído das páginas<br />

iniciais e finais de Os tambores<br />

de São Luís.<br />

Índice<br />

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“Até ali os tambores da Casa Grande das<br />

Minas tinham seguido seus passos, e ele via<br />

ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo<br />

da varanda, rufando forte os seus instrumentos<br />

rituais, com o acompanhamento dos ogãs e<br />

das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria<br />

deixava cair o xale para os antebraços, recebendo<br />

Toi-Zamadone, o dono do lugar.<br />

Por vezes, no seu passo firme pela calçada<br />

deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores,<br />

calados de repente no silêncio da noite,<br />

com o vento que amainava ou mudava de direção.<br />

Daí a pouco Damião tomava a ouvi-los,<br />

trazidos por uma rajada mais fresca, e outra<br />

vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches<br />

vestidas de branco, lhe refluía à consciência,<br />

magra, direita, porte de rainha, a cabeça<br />

começando a branquear.<br />

Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do<br />

querebetã. A intenção dele era apenas ouvir<br />

um pouco os tambores e olhar as danças, sentado<br />

no comprido banco da varanda, de rosto<br />

voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já<br />

o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham<br />

sentado no chão de terra batida, com as mãos<br />

entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam<br />

de pé, recostadas contra a parede.<br />

Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair<br />

do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou,<br />

em posição realmente privilegiada, podendo<br />

ver de perto os tambores tocando e as<br />

noviches dançando, por entre o tinir de ferro<br />

dos ogãs e o chocalhar das cabaças.<br />

Vez por outra sentia necessidade de ir ali,<br />

levado por invencível ansiedade nostálgica,<br />

que ele próprio, com toda a agudeza de sua<br />

inteligência superior, não saberia definir ou explicar.<br />

O certo é que, ouvindo bater os tambores<br />

rituais, como que se reintegrava no mundo<br />

Índice<br />

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mágico de sua progênie africana, enquanto se<br />

lhe alastrava pela consciência uma sensação<br />

nova de paz, que mergulhava na mais profunda<br />

essência de seu ser. Dali saía misteriosamente<br />

apaziguado, e era mais leve o seu corpo<br />

e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe<br />

ser propício o vodum que acompanha na Terra<br />

os passos de cada negro.<br />

Embora só houvesse no céu uma fatia de<br />

lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão,<br />

uma tênue claridade violácea descia sobre a<br />

cidade adormecida, com a multidão de estrelas<br />

que faiscavam na noite de estio. Em cada<br />

esquina, a sentinela de um lampião, com seu<br />

bico de gás chiante. Todas as casas fechadas.<br />

Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado<br />

rolar de um carro, com o ruído do cavalo<br />

a galope nas pedras do calçamento. E sempre<br />

o baticum dos tambores, ora fugindo, ora voltando,<br />

sem perder a cadência frenética, muito<br />

mais ligeira que o retinir das ferraduras.<br />

No canto da Rua do Passeio com a Rua do<br />

Mocambo, antes de passar para a calçada<br />

fronteira, Damião parou um momento, batido<br />

em cheio pela claridade do gás.<br />

Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro<br />

inglês, presente do governador Luís Domingues<br />

no último Natal, parecia mais comprido, a espinha<br />

dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros<br />

altos. Aos oitenta anos, dava a impressão<br />

de ter sessenta, ou talvez menos, com muita<br />

luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada.<br />

Até o começo do século, não dispensava<br />

a bengala de castão de prata com que entrou<br />

pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando<br />

a sua pasta de solicitador, para defender<br />

outro negro. Agora, trajava com simplicidade,<br />

muito limpo, a barba escanhoada, o paletó<br />

abotoado acima do peito, um alfinete de ouro<br />

Índice<br />

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junto ao laço da gravata.<br />

– Faça favor...<br />

Damião assustou-se com a voz rouca que lhe<br />

vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua<br />

do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos.<br />

E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino,<br />

enxuto, metido na sua sovada casaca<br />

de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado,<br />

bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura,<br />

e que logo lhe disse, com um pedaço de papel<br />

impresso na ponta dos dedos:<br />

– É o convite para o meu próximo espetáculo.<br />

– Outra vez A queda da bandeira?<br />

– É. O pessoal pede sempre. E o público é<br />

quem manda.<br />

Damião quis ainda saber por que o velho mágico<br />

preferia aquela hora da noite, com as casas<br />

fechadas, para distribuir os seus convites.<br />

– De dia – redarguiu ele, dando-lhe outro convite<br />

– os moleques vêm atrás de mim, me chamando<br />

de Troíra. Chegam a atiçar cachorros<br />

para me morder. De noite é mais calmo: os moleques<br />

estão dormindo.<br />

E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar<br />

o papelucho por baixo das portas, sem ruído,<br />

apenas roçando o chão da calçada com seu<br />

passo macio.<br />

Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer<br />

na cidade aquela figura caricata, debaixo<br />

de uma cartola preta, casaca, sapatos<br />

cambados, a andar acima e abaixo, com uma<br />

pasta de couro, também preta, e apresentando-se<br />

no Largo do Carmo, no Palácio do Governo,<br />

na redação dos jornais, no Liceu, no Paço<br />

Episcopal, e também à porta das igrejas, nas<br />

missas dominicais e nos casamentos, como o<br />

Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por<br />

curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São<br />

Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em<br />

Índice<br />

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diante se repetia todos os anos: a caprichada<br />

mágica intitulada A queda da bandeira. Sátiro<br />

subia uma escada, até o último degrau, bem<br />

no centro do palco, e dali, com uma bandeira<br />

desfraldada, recitava comprido bestialógico,<br />

cheio de palavras abstrusas, numa suposta<br />

língua de sua invenção, o gramazino, da qual<br />

proporcionava antes um pano de amostra com<br />

esta explicação: “O A do alfabeto gramazino<br />

é a mesma coisa que o A do alfabeto em português,<br />

com a diferença de que se escreve de<br />

cabeça para baixo e tem o som de bé.” Em seguida,<br />

enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora<br />

seca estrondava, assustando a plateia. E<br />

eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso,<br />

como se fosse voar, e caía pesadamente<br />

cá embaixo, nas tábuas do chão.<br />

– Bis, bis – gritavam-lhe da torrinha.<br />

E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias<br />

vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda,<br />

até que Damião, compadecido de sua insânia,<br />

começou a reclamar – Chega! Chega! – e o mágico<br />

afinal se retirou, manquejando, uma das<br />

mãos no quadril machucado, enquanto o pano<br />

do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e<br />

assobios.<br />

Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar<br />

o impresso por baixo das portas, Damião<br />

mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum<br />

dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava<br />

o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo,<br />

a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de<br />

Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa,<br />

a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu<br />

jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do<br />

Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em<br />

seguida, torcendo para a direita, a Rua das<br />

Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro<br />

e por fim a Gamboa, com a casa de sua<br />

Índice<br />

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isneta, num cômoro verde que escorregava<br />

para o mar.<br />

O próprio Tião, no mesmo carro em que fora<br />

buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de<br />

que, antes do anoitecer, a Biá começara a sentir<br />

fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz o<br />

primeiro filho.<br />

– Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está<br />

cheia de parentes. É bom que o senhor também<br />

esteja lá, para receber o seu trineto.<br />

– Sim, irei – concordara. – Mas não já. O primeiro<br />

parto dá muito rebate falso. Isso é coisa<br />

para o meio da noite.<br />

E antes do Tião sair:<br />

– Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam<br />

pelos mais velhos.<br />

– Hoje, tá tudo mudando – emendou o Tião.<br />

E como o tinham deixado só, no rebuliço do<br />

primeiro trineto da família, apenas com a criada<br />

que lhe servira apressadamente o jantar (e<br />

também se fora para a casa da Biá), Damião<br />

se vestiu devagar, sabendo que não adiantava<br />

ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na<br />

cadeira de balanço da varanda, antes de deixar<br />

a casa entregue ao Veludo, que andava na<br />

fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito.<br />

Levara bom tempo na esquina da Rua das<br />

Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o<br />

transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo<br />

que, se dependesse mesmo de um carro,<br />

só iria conhecer o trineto depois de grande. O<br />

jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite.<br />

Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante<br />

do Cemitério dos Ingleses, experimentou de<br />

repente uma sensação de frio, que lhe desceu<br />

da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o<br />

tivesse apanhado por trás, em toda a extensão<br />

do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu<br />

caminho, sem aumentar nem diminuir o passo,<br />

Índice<br />

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ao mesmo tempo que procurava convencer-se<br />

de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou<br />

adiante, apalpando os bolsos da calça, à<br />

procura do maço de cigarros. Tinha trazido os<br />

cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos.<br />

– Velho é assim mesmo: quando se lembra<br />

de uma coisa, esquece outra. Paciência.<br />

Senhor de si, voltou a caminhar, procurando<br />

espairecer os olhos no ermo da rua longa. De<br />

novo o vento soprou, agora mais forte, como se<br />

o tempo fosse mudar. O céu limpo tranquilizou<br />

Damião. Uma janela bateu; por cima de um<br />

muro, estalou um galho de árvore, que resvalou<br />

para a calçada; adiante, uma vidraça partiu,<br />

no bater violento de outra janela; uma lata<br />

vazia rolou pelo meio-fio.<br />

Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele<br />

teve a impressão de que algo estranho, que<br />

se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo<br />

naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão<br />

aborrecida, e esta retornou, insidiosa,<br />

opressiva, com a teimosia de um mau presságio.<br />

Pensou na Biá. Não, não seria nada com<br />

ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara<br />

que seu parto seria normal. Tudo bem,<br />

e a criança no seu lugar; era só esperar agora<br />

pela reação da natureza, sob a vigilância experiente<br />

da Comadre Ludovina.<br />

– E a Comadre Ludovina já está lá.<br />

Foi então que escutou o romper dos tambores,<br />

ali perto, na Casa Grande das Minas. Quase no<br />

mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram<br />

as cabaças, mas não suplantaram os tambores,<br />

que iam acelerando o tantantã nervoso que<br />

obriga as noviches a girarem sobre si mesmas.<br />

Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a seguinte,<br />

sem que um tamboreiro destoasse dos<br />

outros na vertigem do compasso. E só esse baticum<br />

frenético se impunha agora, apagando o<br />

Índice<br />

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som dos outros instrumentos, e também só ele<br />

o vento levava, rua abaixo e rua acima, dispersando-o<br />

na grande noite de agosto que se<br />

fechava sobre a cidade.<br />

Depois de passar para o outro lado da rua,<br />

Damião deu consigo na calçada do querebetã,<br />

e ali retardou a caminhada, querendo entrar.<br />

Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada<br />

de novo, na esquina do Beco das Crioulas,<br />

com janelas de rótulas e porta de duas folhas,<br />

sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda<br />

da porta estava aberta. Parado na soleira, ele<br />

olhou para dentro, e viu o corredor e a varanda<br />

já repletos, com as noviches dançando em volta<br />

da nochê Andreza Maria. E ia dar o primeiro<br />

passo no corredor, quando a nochê subiu o<br />

xale para os ombros, compelindo os tamboreiros<br />

a uma pausa brusca, logo interrompida por<br />

um bater mais forte, em outro ritmo, e veio caminhando<br />

para a porta, no espaço que se ia<br />

abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha<br />

dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse.<br />

Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo<br />

quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos?<br />

Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente.<br />

O importante é que, depois de ouvir<br />

os tamboreiros e assistir às danças rituais, se<br />

sentia preparado para ir ao encontro de seu<br />

trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches<br />

dançando rodeadas de velas, era outra vez o<br />

negro puro, filho de sua raça, em contato com<br />

as remotas raízes africanas. E assim entrou<br />

na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das<br />

Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã<br />

dos tambores.<br />

A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia<br />

não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de<br />

outro, com grades de ferro rendilhadas, vidros<br />

Índice<br />

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coloridos no leque das janelas, um ou outro<br />

portal de pedra. Sem relógio para ver as horas<br />

(o seu andava na loja do Maneco Ourives,<br />

para limpeza geral da máquina, já fazia uma<br />

semana), era debalde que Damião consultava<br />

de vez em quando a posição da lua, que ora<br />

se escondia por trás dos mirantes mais altos,<br />

ora repontava adiante, curva e pontuda como<br />

um chavelho de bumba-meu-boi entrando no<br />

terreiro.<br />

No canto da Rua de Santana, o bico de gás<br />

do lampião estava prestes a apagar, reduzido<br />

a uma chamazinha débil, que se encolhia no<br />

bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão<br />

a se fechar à sua volta. E outra vez Damião<br />

se assustou, agora com a zoada de uma<br />

lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras<br />

do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com<br />

uma pata traseira pendurada, que a arrastava<br />

com o focinho, enquanto o lixo se esparramava<br />

na calçada escura. Ao pressentir os passos de<br />

Damião, já bem perto, o cão assustou-se também,<br />

retirou depressa a cabeça de dentro da<br />

lata, e correu para o outro lado da rua, capengando,<br />

com um osso na boca.<br />

Um pouco além, Damião ouve o som de um<br />

piano mal tocado, para os lados da Rua do<br />

Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando<br />

identificar os compassos da valsa, uma carruagem<br />

dispara pela Rua do Passeio, à altura<br />

do Hospital Português, e é tão próximo o tropel<br />

dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica<br />

esperando que ela passe ao seu lado, seguindo<br />

a toda brida na direção do Largo do Quartel;<br />

como demore passar, ele se volta para trás,<br />

e não a vê: na rua deserta, só o cão rói o seu<br />

osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou<br />

a Rua do Mocambo, e seu rumor se afasta<br />

no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo<br />

Índice<br />

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tempo que o piano se cala, e volta a ressoar,<br />

um pouco mais distante, o baticum dos tambores,<br />

na Casa Grande das Minas.<br />

Damião se lembrou que Donana Jansen saía<br />

de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava<br />

uma volta comprida pela cidade, numa carruagem<br />

puxada por duas parelhas de cavalos sem<br />

cabeça, com um esqueleto na boleia brandindo<br />

o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das<br />

ferraduras, despencando ladeira abaixo.<br />

– Bobagem – reagiu Damião. – História inventada<br />

pelos inimigos políticos da velha. Quem<br />

morreu quer sossego.<br />

E apalpando novamente o bolso da calça,<br />

tirou fora um cigarro, que deixou no canto da<br />

boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto<br />

o botequim da esquina da Rua Grande. Como<br />

fora esquecer de trazer a caixa de fósforos?<br />

Logo ele que, depois de velho, não dispensava<br />

os cigarrinhos da noite, para esperar o sono...<br />

E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria,<br />

nos baixos de um sobradinho da Rua da<br />

Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da<br />

Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante<br />

de louça quebrada, a poucos passos, adiante<br />

da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar,<br />

intrigado. Era uma louça atrás da outra,<br />

e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas<br />

pancadas firmes, que faziam voar para todos<br />

os lados os cacos partidos.<br />

Do patamar da escadaria, estendeu o olhar<br />

para baixo.<br />

Ao pé do último socalco, à porta do sobrado<br />

do comendador Antônio Meireles, na claridade<br />

do dia que ia rompendo, um bando de negros<br />

em ação, cada qual com seu porrete de pau-<br />

-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de<br />

vasos de louça empilhados na calçada.<br />

Damião desceu os socalcos quase a correr, e<br />

Índice<br />

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antes de chegar cá embaixo começou a rir, adivinhando<br />

o que se passava.<br />

Dias e dias, já fazia alguns meses, era o assunto<br />

de São Luís inteira, nas rodas do Largo<br />

do Carmo, nas conversas do Passeio Público,<br />

no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana<br />

Jansen, com quem vivia às turras, o comendador<br />

Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra,<br />

para vendê-los quase de graça, um milheiro<br />

de belos penicos de louça, com a cara da<br />

velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube<br />

do fato e suportou com paciência o riso da cidade.<br />

Não reagiu logo: deu tempo ao tempo,<br />

enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos<br />

três, às dezenas, na loja do Comendador, os<br />

penicos com seu retrato, até ter a certeza de<br />

que, agora, sim, só ela os possuía.<br />

Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo<br />

de riso, Damião perguntou a um dos negros:<br />

– De quem vocês são escravos?<br />

– De Donana Jansen.<br />

Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos,<br />

e iam quebrando os urinóis com<br />

uma fúria divertida, repetindo as cacetadas rijas,<br />

que desfaziam a louça apenas com uma<br />

pancada. A vizinhança ia despertando com a<br />

zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam<br />

as rótulas, nas janelas dos sobrados,<br />

e já algumas pessoas se debruçavam das<br />

sacadas, enquanto outras, na rua, em chinelos,<br />

no chambre de dormir, riam alto, vendo as<br />

matanças dos penicos. Um cheiro insuportável<br />

de mijo podre desprendia-se de um vaso à<br />

parte, por sinal que maior que os outros, quase<br />

o triplo, e coberto com uma tampa também de<br />

louça.<br />

– E esse aí? – quis saber Damião.<br />

– Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo<br />

dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer<br />

pra tomar satisfação.<br />

Índice<br />

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E sem interromper as pancadas seguras, o<br />

negro abriu para Damião a dentadura farta,<br />

que lhe encheu a boca feliz, rematando com<br />

este comentário, entre um penico e outro:<br />

– Donana Jansen não é gente. Tou cansado<br />

de dizer. Quem se mete com ela tem sarna<br />

muita pra se coçar. Ora se tem!<br />

Ainda com o cigarro apagado no canto da<br />

boca, Damião aproximou-se da Rua Grande,<br />

pensando onde ia encontrar, ali perto, uma<br />

caixa de fósforos para comprar. E não tinha<br />

chegado à esquina, defronte de um casarão de<br />

altas janelas ogivais, quando viu entreaberta<br />

uma porta do botequim.<br />

Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe<br />

os passos, com a lua nova a se esconder e a<br />

brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora<br />

o assobio do vento, que disparava na rua deserta,<br />

varrendo as calçadas, para se desfazer<br />

no giro doido de um remoinho.<br />

Dentro do botequim, a única luz era a chama<br />

de um candeeiro a óleo, suspenso da parede<br />

esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz<br />

mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por<br />

cima do balcão, mal dando para clarear uma<br />

parte da saleta pontilhada de mesas vazias.<br />

Dentro do balcão, ninguém.<br />

Damião subiu o degrau da porta, avançou<br />

uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava<br />

que o atendessem, olhou em volta, aproximando-se<br />

do balcão. E foi aí que viu por terra,<br />

entre as duas primeiras mesas à sua direita,<br />

o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado,<br />

caído de bruços numa poça de sangue,<br />

com uma facada nas costas, à altura do coração.<br />

Parado, ficou um momento a fitá-lo, de<br />

olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a<br />

nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era<br />

gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver<br />

Índice<br />

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se lhe restava um alento de vida, mas o corpo<br />

permaneceu imóvel, com o busto achatando o<br />

braço direito, na posição em que tinha caído.<br />

Na claridade que ia esmorecendo, Damião<br />

olhou em volta, de sobrancelhas travadas.<br />

Numa das mesas, mais para o fundo da saleta,<br />

acumulavam-se garrafas de bebida, quase<br />

todas tombadas sobre o tampo de mármore,<br />

juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro<br />

atulhado de cinza e pontas de cigarro.<br />

Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de<br />

suas botinas, assim que deu outro passo, na<br />

direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita,<br />

espiou para dentro do balcão. Outro morto<br />

jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida<br />

por uma paulada. Estava de frente, com o<br />

busto meio apoiado no ângulo entre o balcão e<br />

a prateleira. E a luz que descia sobre ele, muito<br />

tênue, levemente avermelhada, permitiu que<br />

Damião prontamente identificasse, pelo rosto<br />

coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de<br />

bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo,<br />

lhe tinha vendido um maço de cigarros.<br />

Índice<br />

***<br />

Agora, deixado para trás o prédio da Cadeia<br />

Pública, ele via a luz da casa da Biá, ao fim de<br />

longo estirão baldio. Lá adiante, esparramava-se<br />

a Fábrica da Gamboa, com seus teares<br />

adormecidos. Do outro lado, a Quinta da Vitória,<br />

sem vivalma lá dentro, com o velho sobrado<br />

invadido pelo mato, as pilastras do portão cobertas<br />

de hera e musgo, as janelas desmanteladas,<br />

e só o tamarindeiro do Dr. Sousândrade<br />

ainda intacto, com as garras das raízes a se<br />

contorcerem por entre pedras salgadas, resistindo<br />

ao mar, ao abandono e aos ventos gerais.<br />

Já fazia mais de dez anos que Damião tinha<br />

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visto o poeta pela última vez, ali mesmo, arrimado<br />

à bengala, o rosto encovado, sem o tom<br />

vermelho de outrora, um fulgor febril nos olhos<br />

pensativos, caminhando com esforço, a voz fatigada:<br />

– Sabe de que vivo hoje, Professor? De pedras.<br />

Estou vendendo as pedras da quinta<br />

para comer.<br />

E com a ponteira da bengala mostrou o muro<br />

circundante, já quase todo desfeito sob os ramos<br />

verdes de uma trepadeira.<br />

No entanto, quando a República foi proclamada,<br />

ninguém mais feliz e lépido do que ele.<br />

Andava depressa, de bengala sobraçada, as<br />

abas do fraque a lhe festejarem as pernas magras,<br />

o cabelo liso caindo sob as abas da cartola,<br />

sempre com uma rosa branca na botoeira.<br />

Nomeado intendente da capital, dispensara a<br />

carruagem a que tinha direito, fazendo questão<br />

de andar a pé, da Quinta da Vitória ao outro<br />

lado da cidade, para dar o exemplo de que,<br />

no novo regime, as autoridades eram o próprio<br />

povo, sem regalias nem privilégios. Até mesmo<br />

a sua velha traquitana ele a pusera de lado.<br />

Depois de um silêncio, Damião aventurara a<br />

pergunta:<br />

– E a nossa universidade, Dr. Sousândrade?<br />

O poeta cruzou as mãos enrugadas por cima<br />

do castão da bengala, enquanto engolfava os<br />

olhos na linha do horizonte:<br />

– Longe... longe... longe... Mas, quando se<br />

aproximar, será tudo uma outra cidade, uma<br />

outra gente... Mas virá, e eu não verei.<br />

E pôs-se a recitar, sempre com o olhar perdido<br />

na distância, os ombros curvados:<br />

Solitário vivi, porque arruinaram<br />

Meu lar, meu Deus, e o amor que nele vive.<br />

Depois, ainda a recitar baixinho, foi andando<br />

Índice<br />

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devagar, por um caminho aberto na relva queimada,<br />

como alheado do mundo, sem despedir-<br />

-se do Damião, que o acompanhou com o olhar<br />

consternado, até vê-lo desaparecer, no mesmo<br />

passo lento, os ombros caídos, apoiando-se na<br />

bengala, entre as pilastras do portão da quinta.<br />

Lembrava-se bem de seu enterro, com o ataúde<br />

envolto na bandeira do Estado – idealizada<br />

pelo próprio Sousândrade, com as listas branca,<br />

vermelha e negra, simbolizando a fusão das<br />

raças na formação do povo brasileiro, e mais a<br />

estrela branca sobre campo azul, representativa<br />

da unidade autônoma do Maranhão. Muita<br />

gente, na tarde de sol. À frente do cortejo, a<br />

carreta negra, com frisos doirados, levando o<br />

esquife. E quando o féretro se aproximou do<br />

portão do cemitério, uma revoada de andorinhas<br />

cortou o céu, por cima da capela, e duas<br />

rolinhas se puseram a cantar, como a seguir o<br />

lento rolar do coche fúnebre, até que este sumiu,<br />

na volta da alameda.<br />

Damião desce agora uma pequena ladeira,<br />

perlongando o terreno baldio. Na luz escassa,<br />

consegue ver o chão que vai pisando. Em redor,<br />

silêncio, um grande silêncio, só interrompido<br />

por um coaxar de sapos, junto ao túnel por<br />

onde passa o trem. Aqui, ali, reluz um vaga-<br />

-lume. E sempre o cansado arfar das águas do<br />

rio que se misturam às águas do mar.<br />

De cabeça baixa, redobrando de atenção<br />

para não pisar em falso com a claridade escassa,<br />

Damião torna a ver o Dr. Sousândrade<br />

atravessando o Largo do Carmo, um livro contra<br />

o peito, para dar a sua aula de grego no Liceu<br />

Maranhense. Onde andariam os livros do<br />

poeta? Que fora feito dos seus últimos versos?<br />

E logo outros amigos lhe refluem à consciência:<br />

o Aluísio Porto, o Silvino Peres, o Albino Frias, o<br />

Índice<br />

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Vítor Lobato. Ele sabe agora, com a longa experiência<br />

de seus oitenta anos, que a vida é uma<br />

coleção de mortos. Os nossos mortos. Os mortos<br />

que só nós podemos ressuscitar nas iluminações<br />

de nossa consciência, e que carregamos<br />

conosco, sem que nos pesem, constranjam ou<br />

perturbem, até que sobrevenha para eles a<br />

morte definitiva, que é a nossa própria morte.<br />

Erguendo o olhar, divisou as cadeiras do alpendre,<br />

o pé de carambola ao lado da casa, o<br />

lampião aceso defronte do portão. E tomando<br />

por um atalho de terra, que subia em aclive,<br />

encurtou mais o caminho, logo ouvindo o latido<br />

do Veludo, que, ainda de longe, de orelhas<br />

fitas, as patas em cima do muro, lhe sentira o<br />

ranger dos passos.<br />

E assim que ele se pôs a limpar os pés cansados<br />

no capacho da entrada, antes mesmo<br />

de abrir o portão, ainda com o Veludo a saltar<br />

no jardim sacudindo a cauda, a Benigna apareceu<br />

no alpendre, com a sua cabeça branca<br />

bem penteada, a pele do rosto marcada com<br />

as rugas dos olhos e dos cantos da boca, mas<br />

ainda de ombros altos, elegante, a cintura fina,<br />

o brinco nas orelhas.<br />

Ela veio abrir-lhe o portão, com um xale passado<br />

nos ombros contra a friagem da noite:<br />

– Graças a Deus que chegaste! – exclamou,<br />

puxando o ferrolho. – Eu já estava assustada<br />

com a tua demora. Na certa, resolveste ler depois<br />

do jantar, e pegaste no sono. Foi o que<br />

eu calculei. Até prometi uma novena para São<br />

Cipriano. Se não chegasses agora, eu já tinha<br />

pedido ao Tião que fosse lá em casa te acordar.<br />

E Damião, depois de beijá-la:<br />

– É que eu vim a pé, querida. Procurei um<br />

carro, não achei: vim mesmo com as minhas<br />

pernas.<br />

– Damião! – ralhou ela, espantada, já no<br />

Índice<br />

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degrau do alpendre. – Isso é coisa que se faça<br />

na tua idade? Vir a pé do Largo de Santiago<br />

até à Gamboa! Não me faças mais isso!<br />

E segurando-o pelo braço, como a ampará-lo<br />

na subida do degrau, ajudou-o a dar impulso<br />

ao corpo, ao mesmo tempo que a filha, duas<br />

netas e quatro bisnetas acudiam ao alpendre,<br />

saindo da sala iluminada e cercando o velho<br />

com alvoroço.<br />

Sem largar o braço do marido, a Benigna dirigiu-se<br />

à Janu, que arrastava os pés pesados,<br />

muito gorda, amparando-se nos braços de uma<br />

das netas:<br />

– Teu pai não cria juízo. Nesta idade, parece<br />

menino. Não é que ele veio a pé, lá de casa até<br />

aqui?<br />

E obrigando Damião a sentar na cadeira mais<br />

próxima, ali mesmo no alpendre, continuou a<br />

ralhar-lhe, num tom de voz que era mais de<br />

ternura que de reprimenda:<br />

– Como castigo, não te dou a grande notícia.<br />

E depois de impor silêncio ao resto da família,<br />

com o dedo em riste defronte dos lábios:<br />

– Descansa um pouco aqui e tira logo as botinas:<br />

deves estar com os pés ardendo, de tanto<br />

andar.<br />

Damião sentiu a cadeira de vime gemer com<br />

os movimentos de seu corpo, e ia olhando em<br />

volta, com ar de riso, vendo os rostos felizes<br />

que o cercavam, enquanto um dos bisnetos,<br />

que chegara por último, tentava puxar-lhe as<br />

botinas, para calçar-lhe as chinelas do Tião.<br />

O próprio Tião entrou no alpendre, risonho,<br />

vermelho, um permanente ar alvissareiro, e<br />

despejou a novidade:<br />

– Já estávamos pensando que o senhor não<br />

tinha pressa em conhecer o seu trineto. Ele já<br />

está aqui à sua espera.<br />

E Damião, radiante:<br />

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– É homem? – indagou, após uma risada gostosa.<br />

– É – confirmou a Benigna. – A Biá teve um<br />

parto feliz, sem muitas dores, desses em que<br />

Deus põe a mão. E é um rapagão. Quatro quilos<br />

e duzentas. Um menino e tanto. E já tem nome,<br />

escolhido por mim. Desta vez, não vou deixar<br />

que ponhas nas crianças os tais nomes bonitos<br />

que tiras de teus livros. Nada de Plínios, nem<br />

de Píndaros, nem de Eurípedes. Chega! Aqui,<br />

queriam que fosse Alfredo. Que Alfredo coisa<br />

nenhuma. Vai se chamar Damião, como o trisavô.<br />

Damião é nome que enche a boca: Da-mi-<br />

-ão!<br />

E Damião, quando ela se calou:<br />

– Não – retrucou, com firmeza. – Fica para o<br />

outro. Este vai ser Julião, que era o nome do<br />

meu pai.<br />

– Vá lá – concordou a Benigna depois de um<br />

silêncio.<br />

E para o Tião, muito séria:<br />

– Assim que a Biá estiver mais descansada,<br />

pode arranjar o outro. Quanto mais cedo, melhor.<br />

E bonito, como o trisavô.<br />

E enquanto a filha, os netos e os bisnetos cercavam<br />

Damião, dando-lhe outras notícias do<br />

parto e do trineto, a Benigna desapareceu pela<br />

porta da sala, deixando no alpendre um pouco<br />

de seu perfume, que se misturava ao cheiro ativo<br />

da latada do jasmineiro, no muro do jardim.<br />

Calçado nas chinelas do Tião, que eram grandes<br />

para seus pés, Damião sentia que a paz<br />

da noite límpida o envolvia, com o sussurro do<br />

vento, a lua nova no céu estrelado, o silêncio<br />

da cidade adormecida e o choro de seu primeiro<br />

trineto. Chegaria ao tetraneto? Só se Deus<br />

lhe conservasse a lucidez, a vista perfeita e a<br />

companhia da Benigna. Sem isso, preferia a<br />

outra paz, quieto no seu túmulo.<br />

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E nisto a Benigna tornou a apontar no retângulo<br />

da porta, chamando-o agora para conhecer<br />

o Julião:<br />

– É clarinho – preveniu-lhe.<br />

E quando ele se curvou sobre o berço, muito<br />

emocionado, sentindo os olhos úmidos, ela lhe<br />

foi dizendo, enquanto erguia o candeeiro, para<br />

dar mais luz sobre a criança:<br />

– Tem tua cara, meu filho. Até o nariz chato<br />

é teu. Olha a testa. Também é tua. E esse beicinho<br />

espichado. Tudo teu. É mais para branco<br />

que para preto: moreninho, como um bom<br />

brasileiro.<br />

Damião olhava embevecido aquela pequena<br />

massa humana, ainda mole, com uns fios<br />

de cabelos úmidos, os olhinhos cerrados, os<br />

bracinhos encolhidos na camisinha de linho, e<br />

não podia deixar de lembrar-se do Barão, com<br />

a sua famosa teoria de que só na cama, com o<br />

rolar do tempo, se resolveria o conflito natural<br />

de brancos e negros, no Brasil. Tinha ali mais<br />

uma vez a prova, na sua própria família. Sua<br />

neta mais velha casara com um mulato; sua<br />

bisneta, com um branco, e ali estava seu trineto,<br />

moreninho claro, bem brasileiro. Apagara-<br />

-se nele, é certo, a cor negra, de que ele, seu<br />

trisavô, tanto se orgulhava. Mas também se<br />

viera diluindo, de uma geração para outra, o<br />

ressentimento do cativeiro. Daí a mais algum<br />

tempo, ninguém lembraria, com um travo de<br />

rancor, que, em sua pátria, durante três séculos,<br />

tinham existido senhores e escravos, brancos<br />

e pretos. Agora, ali em São Luís, já os negros<br />

entravam no Palácio do Governo, mesmo<br />

os do povo, com os pés no chão, a camisa para<br />

fora das calças, e iam falar com o governador<br />

Luís Domingues, que se levantava de sua cadeira<br />

e vinha apertar-lhes a mão. No Liceu<br />

Maranhense, além dele, Damião, ensinavam<br />

Índice<br />

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o Dr. Tibério e o Nascimento Moraes, ambos<br />

negros. Viriato Correia, que ele vira menino,<br />

de cabelinho espichado, muito serelepe, colete,<br />

corrente de ouro, já lhe mandara do Rio de<br />

Janeiro, com uma dedicatória feliz, o seu novo<br />

livro, os Contos do Sertão. O Públio de Melo,<br />

doutor formado no Recife, era agora o delegado<br />

da capital. Na Biblioteca Pública, estava o Astolfo<br />

Marques. Todos negros, compenetrados<br />

de sua origens, e abrindo caminho na vida,<br />

sem que ninguém lhes perguntasse de quem<br />

eram filhos, e ali em São Luís, na mesma terra<br />

onde outrora o poeta Gonçalves Dias, por ser<br />

bastardo e mestiço, não pudera casar com a<br />

Ana Amélia Ferreira Vale – que ele também conhecera,<br />

de cabelos longos, olhos negros, esbelta,<br />

cintura fina, um mimo de mulher.<br />

– Agora, chega! – interrompeu a Benigna,<br />

puxando Damião pelo braço. – Vamos deixar o<br />

menino dormir.<br />

E foi pôr o candeeiro sobre a cômoda.<br />

Damião tornou a olhar o trineto, desta vez na<br />

penumbra, ainda emocionado. Depois correu<br />

o cortinado de filó, para protegê-lo dos mosquitos.<br />

Na ponta dos pés, afofando os passos,<br />

aproximou-se da bisneta, beijou-lhe a testa e<br />

saiu do quarto sem ruído, cautelosamente.<br />

No corredor, disse-lhe o Tião, na sua grossa<br />

voz de dono da casa:<br />

– O senhor dorme hoje aqui.<br />

E a Benigna, atalhando:”<br />

– Eu já te disse, Tião, que esse tu não dobras.<br />

Eu, por mim, onde ponho a cabeça, aí durmo.<br />

Mas ele, não: só dorme no cantinho dele, e assim<br />

mesmo depois de ouvir o rangido da rede.<br />

– O rangido da rede, não – corrigiu Damião,<br />

dando o braço à Benigna. – O rangido da minha<br />

rede – acentuou. – É, Tião: velho é como<br />

gato – só está bem no seu canto. Quando<br />

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chegares à minha idade, verás que eu tenho<br />

razão. Tem um pouco de paciência: dá um jeito<br />

de nos levar.<br />

Daí a pouco, encolhidos no fundo da carruagem,<br />

com o próprio Tião a dirigir a parelha,<br />

os dois velhos começaram a atravessar a cidade,<br />

de mãos dadas, um junto do outro, a<br />

caminho do Largo de Santiago. Na saída da<br />

Rua do Passeio para a Rua Grande, Damião<br />

se lembrou dos dois homens assassinados no<br />

botequim da esquina. Lá dentro, as luzes estavam<br />

acesas: sinal de que a Polícia já sabia<br />

do crime. Quis contar o caso à Benigna; mas a<br />

viu tão sonolenta, com a cabeça descansada<br />

no seu ombro, que achou melhor só lhe falar<br />

na manhã seguinte. Além do mais, não queria<br />

que o Tião o escutasse: terminaria por dar com<br />

a língua nos dentes, cedendo ao seu incorrigível<br />

pendor para contar novidades. Só na Benigna<br />

podia mesmo confiar.<br />

Retraído na extremidade do banco, com o<br />

braço direito envolvendo as espáduas da companheira,<br />

sentia no rosto e nas mãos a úmida<br />

frialdade da madrugada, mais fria na longa<br />

rua deserta ao galope dos cavalos. Já no Largo<br />

do Quartel, também deserto, apenas com<br />

a figura miúda da sentinela na sua guarita<br />

de madeira, voltara a ouvir os tambores da<br />

Casa Grande das Minas, e logo recordou as<br />

noviches dançando, todas de branco, com um<br />

lenço na cabeça, os colares tilintando ao tilintar<br />

dos ogãs. Na esquina da Rua de Santa<br />

Rita, sentira mais próximo o bater cadenciado.<br />

E mais uma vez reconheceu que, a despeito<br />

do muito que vivera, e também do muito<br />

que lera e meditara, aqueles tambores tinham<br />

ainda o dom de lhe descer às raízes da consciência,<br />

para lhe dar de novo o mundo mágico<br />

de seus antepassados africanos, como se por<br />

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eles falassem os voduns primitivos, princípio e<br />

essência de todas as coisas.<br />

Na manhã seguinte levantou tarde, contra<br />

seu costume. A Benigna, ainda cedo, tinha saído<br />

para pagar a promessa de uma vela benta<br />

a São Benedito, na igreja de Santo Antônio,<br />

por ter o parto da Biá corrido normal. Ele tomou<br />

sozinho o seu café, que o aguardava na mesa<br />

posta, com o bule e a leiteira dentro dos abafadores.<br />

Depois, com uns restos de preguiça,<br />

foi à sala, tirou da estante um de seus clássicos<br />

latinos, e veio lê-lo na cadeira de balanço<br />

da varanda, junto ao velho vaso de cerâmica<br />

onde ainda se abriam as largas folhas de um<br />

tinhorão. Ali, antes de começar a leitura, deixou<br />

os olhos no ar, pensativo, com a sensação<br />

de que ia fechando harmoniosamente a parábola<br />

de seu destino, em paz com Deus e os<br />

homens. Apesar do que sofrera na infância e<br />

na juventude, e também dos reveses com que<br />

a adversidade agride o homem em qualquer<br />

tempo, a sorte lhe fora propícia. Tinha sido escravo,<br />

era um homem livre. Socialmente, viera<br />

de muito baixo, e ali se achava, com a sua<br />

casa, o seu nome, a sua família. Lutara pela<br />

libertação de sua raça e vira raiar o dia da<br />

almejada redenção. A rigor, só havia amado<br />

realmente uma mulher, com todo o ardor das<br />

paixões irreprimíveis, e era ela a companheira<br />

perfeita de sua velhice. Em casa, quando estava<br />

lendo ou escrevendo, não lhe sentia sequer<br />

os passos. E sempre disposta a servi-lo,<br />

sem uma queixa, sem uma rusga, espalhando<br />

alegria e confiança em seu redor. Da irmã,<br />

acabara por saber que morrera em Minas Gerais,<br />

para os lados de Congonhas do Campo,<br />

já velha e muito chorada pelos antigos senhores,<br />

dos quais não se quisera separar depois<br />

da abolição. No balanço da vida, pungia-lhe<br />

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apenas a tristeza de nunca ter tido notícias do<br />

Balbino. Mas consolava-se com a certeza de<br />

que, onde quer que estivesse, na Terra ou no<br />

Céu, não andaria fazendo má figura.<br />

– Que Deus olhe por ti, meu filho – suspirou.<br />

E ainda com o dedo indicador interposto nas<br />

folhas do livro, os olhos no ar, reclinou a cabeça<br />

no espaldar da cadeira, de coração reconhecido.<br />

Vira nascer agora o seu primeiro<br />

trineto, e era ainda um homem de cabeça lúcida,<br />

passo firme e memória feliz. Vivia rodeado<br />

de lembranças, na velha casa onde duas<br />

vezes se casara, e ali aprimorara a inclinação<br />

para encontrar nos livros a complementação<br />

da vida, com o gosto da leitura. Para ler, graças<br />

a Deus, nunca precisara de óculos. De vez<br />

em quando, sem qualquer aviso, entrava-lhe<br />

corredor adentro, com seu cavanhaque bem<br />

aparado, os olhos faiscantes, muito bem vestido,<br />

um cravo vermelho na lapela, o Dr. Luís<br />

Domin- gues, governador do Estado, sempre<br />

lhe trazendo um novo livro de presente, além<br />

da lembrança de uma rosa ou de um vidro de<br />

perfume para a Benigna, a quem chamava<br />

de “minha madrinha”. Aos domingos, reunia<br />

à sua volta, com os panelões que a Benigna<br />

preparava como ninguém, a filha, os netos e<br />

os bisnetos, com as mulheres e os maridos, e<br />

ainda alguns amigos mais chegados, e era tão<br />

grande a algazarra dentro de casa, que até<br />

o papagaio protestava, ralhando todo mundo<br />

de cima de seu poleiro. No Largo do Carmo,<br />

dia sim, dia não, tinha a sua roda de companheiros,<br />

em volta de uma fonte onde cantava e<br />

reluzia um repuxo. Nos outros dias, ia à Biblioteca<br />

Pública, e ali conversava com o seu amigo<br />

Astolfo Marques, que andava a coligir uma<br />

seleta de autores maranhenses, a que dava<br />

também a sua colaboração. Se mandava um<br />

Índice<br />

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artigo para a Pacotilha, via-o sempre na primeira<br />

página. Na rua, não eram apenas os<br />

amigos que o saudavam, com mostras de reverência:<br />

até mesmo pessoas desconhecidas,<br />

com as quais casualmente se encontrava, tiravam-lhe<br />

respeitosamente o chapéu. Da vida,<br />

que mais podia querer?<br />

Sentindo o ar abafado, levantou-se, abriu a<br />

porta do meio, deixando correr o vento da rua<br />

pela casa. E outra vez na cadeira de balanço,<br />

abriu ao acaso uma das elegias de Ovídio.<br />

Depois, de olhos cerrados, repetiu-a, verso<br />

a verso, parte pelo gosto de recordar, parte<br />

para sentir que a memória ainda lhe era fiel.<br />

E ia volver ao livro, para ler uma nova elegia,<br />

quando ouviu os passos da Benigna, desta<br />

vez soando alto nos ladrilhos do corredor. Interrompeu<br />

a leitura e ficou esperando por ela,<br />

com uma certa ansiedade, ao perceber-lhe no<br />

rosto contraído uma expressão nervosa.<br />

Depois de uns momentos, não conteve mais<br />

a pergunta:<br />

– Que é que tens, minha filha?<br />

Ela se deixou cair numa cadeira ao seu lado,<br />

ainda ofegante. E de mãos frias, os olhos<br />

assustados:<br />

– Ah, meu filho, nem te conto. Aqui em São<br />

Luís, ontem de noite, houve um crime medonho.<br />

Morreram duas pessoas. Imagina que foi<br />

assassinado o dono daquele botequim da Rua<br />

Grande que faz esquina com a Rua do Passeio<br />

e também um preto, de meia idade, que tinha<br />

acabado de desembarcar, vindo de Liverpool,<br />

para fazer surpresa ao pai, que não via desde<br />

que saiu daqui. Ele desceu do vapor já meio<br />

bêbado, com muito dinheiro na carteira, e foi<br />

para o botequim da Rua Grande, levado por<br />

um espanhol. Lá o espanhol matou ele com<br />

uma punhalada, para lhe roubar a carteira,<br />

Índice<br />

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Sebastião Moreira Duarte<br />

e depois matou o dono do botequim com uma<br />

paulada. Um horror. Me contaram tudo na<br />

igreja. Na cidade, não se fala de outra coisa.<br />

Damião tinha deixado cair as mãos sobre as<br />

pernas, tomado de um pressentimento terrível,<br />

que era quase uma certeza. Preto? De meia<br />

idade? Que vinha ver o pai? E vindo de Liverpool?<br />

E se fosse mesmo seu filho? Ficou uns<br />

momentos cm silêncio, o olhar parado, sem coragem<br />

de comunicar o seu temor à companheira.<br />

A tragédia pareceu-lhe brutal demais para<br />

o seu fim de vida. E ainda atordoado, com uma<br />

sensação repentina de secura queimando-lhe<br />

a boca, pediu à Benigna que lhe fosse buscar<br />

um copo d’água.»<br />

M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino<br />

Americana, University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras.<br />

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O Natal ainda existe?<br />

Comemorado pelos cristãos de toda orbe, a festa do Natal<br />

é tempo de corações abrandados pela presença de Deus<br />

conosco, é tempo de fazer as pazes entre os que estão brigados,<br />

pois o menino-Deus está no meio de nós e estando<br />

Deus, ainda que Deus-criancinha, vivendo com os homens,<br />

não se pode, nem se deve, viver com quizilas, futricas e<br />

disse-me-disse. Devem-se deixar de lado os egoísmos que<br />

durante o ano atrapalharam a comunhão com o próximo.<br />

É tempo de viver em fraterna alegria com todos. É tempo de<br />

partilha. É o tempo natalino! É ou não é?<br />

Índice<br />

João Dias Rezende Filho<br />

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Foto: Albani Ramos


Como um escritor-cristão ou um cristão-escritor, ou pelo<br />

menos um mero escrevinhador, já que escritor soa, certamente,<br />

pretensioso e acadêmico, pois bem, como eu dizia,<br />

como um escrevinhador e com algum apreço que tenho pela<br />

História começo traçando brevemente as origens do Natal.<br />

As primeiras notícias sobre a comemoração pelos cristãos<br />

do nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus, datam,<br />

pelo menos no Oriente, de fins do século I, ainda que fosse<br />

comemorado no dia 06 de janeiro, em vez do hoje tradicional<br />

25 de dezembro ocidental, em conexão com a festa dos<br />

chamados Reis Magos, ou, em grego, festa da epifania, que<br />

significa fenômeno milagroso, aparição maravilhosa. Cristo<br />

se revela em seu nascimento, mas revela-se, de modo excelente,<br />

às nações todas, representadas pelos três reis-magos<br />

e suas peles branca, amarela e negra, quando lhe visitam<br />

recém-nascido na estrebaria de Belém.<br />

No Ocidente, o Mistério de um Deus que se encarna e<br />

torna-se verdadeiro homem sem deixar de ser verdadeiro<br />

Deus é comemorado, segundo a mais antiga “folhinha” de<br />

que se tem notícia e que não é a do Sagrado Coração, tão<br />

popular entre os católicos de hoje, e sim o cronógrafo de<br />

354, pelo menos desde o século IV.<br />

Fontes diversas, como os comentários de São Cipriano de<br />

Cartago e São João Crisóstomo, ligam a origem da comemoração<br />

natalina com uma festa em honra ao Solis invictus<br />

(o sol invicto ou invencível); outras fontes ligam a festa do<br />

Natal aos festivais de inverno em que se dançava até altas<br />

horas da madrugada em honra de deuses pagãos. O certo<br />

é que muita coisa da cultura dita pagã ou pré-cristã europeia<br />

foi “batizada” e acolhida no seio do cristianismo em<br />

um legítimo abraçar de culturas e costumes diversos que<br />

resultou em um hibridismo muito natural e hoje familiar a<br />

todos. Assim, o dia 25 de dezembro não é a data real, isto é,<br />

histórica do nascimento de Cristo, mas uma data litúrgica,<br />

de natureza cultual, que foi introduzida na Igreja Católica<br />

no século IV para substituir o festival pagão do solstício de<br />

inverno, cristianizando costumes antiquíssimos daqueles<br />

povos.<br />

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Em seu Segundo Sermão no Natal do Senhor, o Papa Leão<br />

Magno (por volta do ano 440 d.C.) condena o costume que<br />

muitos ainda possuem no dia 25 de dezembro de cultuarem<br />

o sol e outros astros, ou seja, criaturas, em lugar do<br />

Sol verdadeiro, o Cristo. Diz São Leão Magno: “Caríssimos,<br />

animados da confiança que nasce de tão grande esperança,<br />

permanecei firmes na fé sobre a qual fostes estabelecidos,<br />

para que esse mesmo tentador, de cujo domínio Cristo<br />

vos subtraiu, não vos seduza novamente com algumas de<br />

suas ciladas e não corrompa as alegrias próprias deste dia<br />

mediante a habilidade de suas mentiras. Porque ele zomba<br />

das almas simples, servindo-se da crença perniciosa<br />

de alguns, para os quais a solenidade de hoje recebe sua<br />

dignidade não tanto do nascimento de Cristo quanto do<br />

levantar-se, como eles dizem, do ‘novo sol’. (...) Longe das<br />

almas cristãs essa superstição ímpia e essa mentira monstruosa.<br />

Nenhuma medida poderia traduzir a distância que<br />

separa o eterno das coisas temporais; o incorpóreo, das coisas<br />

corporais; o Senhor, das coisas que lhe são submetidas,<br />

porque, embora elas tenham uma beleza admirável,<br />

não tem a divindade, a única que deve ser adorada”. (1996:<br />

42 e 43)<br />

Sobre o ano exato do nascimento, sempre houve na Igreja<br />

uma preocupação em datar os eventos importantes da vida<br />

de Cristo, e com o Natal não seria diferente. Os Evangelhos<br />

fornecem algumas pistas para a datação do nascimento de<br />

Cristo, mas são insuficientes. Em Mateus, há a referência<br />

ao governo de Herodes, o Grande (Mt 2,1); em Lucas, faz-<br />

-se alusão a Quirino como governador da Síria (Lc 2,2). São<br />

duas indicações muito vagas que necessitam do complemento<br />

de outras fontes, como a do escritor e historiador judeu<br />

Flávio Josefo. Segundo Josefo, Herodes morreu antes<br />

da Páscoa do ano 750 da fundação de Roma ( em latim ab<br />

Urbe condita). A Páscoa neste ano teria caído no dia 11 de<br />

abril. Já Lucas faz referência ao censo convocado através<br />

do edito do Imperador César Augusto. O censo foi realizado<br />

no ano 746 da fundação de Roma. Se Cristo nasceu<br />

na época do censo e quando Herodes ainda vivia, logo terá<br />

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que ter nascido, necessariamente, entre os anos de 746 e<br />

750 da fundação de Roma. Quando da organização do chamado<br />

calendário gregoriano pelo monge Dionisius Exiguus<br />

(Dionísio, o Pequeno), este cometeu um erro e atribuiu a<br />

data do nascimento do Salvador ao ano de 753 da fundação<br />

de Roma, muito depois do censo e da morte do Tetrarca<br />

da Galiléia. Logo, Jesus não teria nascido no ano 1 da era<br />

Cristã, mas pelo menos 3 anos antes.... Pode-se dizer, fazendo<br />

uma blague, que Cristo nasceu antes de Cristo!<br />

Etimologicamente a origem da palavra natal é a seguinte:<br />

quer dizer nascimento, em latim, nātālis, substantivo que<br />

provem do verbo nāscor (nāsceris, nāscī, nātus sum), nascer.<br />

Em português, Natal, e em outras línguas neolatinas,<br />

como o italiano natale, o francês noël, natal em castelhano<br />

e mais tarde, navidad, de natividade, com o mesmo sentido.<br />

No Inglês, Christmas, que provem de Christes maesse<br />

(‘Christ’s mass’), que quer dizer missa de Cristo.<br />

Demos um enorme salto na história! E no Brasil, como<br />

era comemorado o Natal?<br />

No período colonial a Missa sempre foi o fato central na<br />

comemoração natalina. Era uma noite especial, onde as<br />

pessoas, mesmo as mais pobres, buscavam trajar-se da<br />

melhor forma possível para comparecer à Missa do Galo,<br />

que tem este nome, ou melhor, este apelido, por iniciar à<br />

meia-noite a acabar já madrugada adentro quando os galos<br />

estavam começando a cantar nos quintais. Outra explicação<br />

dá-nos conta de uma antiga lenda que fala de um galo<br />

de belo e afinado canto que teria anunciado em Belém de<br />

Judá a chegada do Filho de Deus.<br />

Naqueles Natais de outrora, os padres estavam em seus<br />

melhores e mais ricos paramentos litúrgicos; a solenidade<br />

perpassava toda igreja, o incenso enchia os ares e tudo<br />

perfumava; o cantochão da Schola Cantorum, bem ensaiado,<br />

entoando aleluias e Gloria in excelsis, adoçava os ouvidos,<br />

tudo isso contribuía para a sacra atmosfera natalina<br />

da Missa do Galo que maravilhava os fiéis, sobretudo no<br />

momento em que o sacerdote aproximava-se do presépio<br />

armado, em passos lentos e compassados, para deitar na<br />

Índice<br />

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humilde lapinha a singela imagem de um menino que, ao<br />

mesmo tempo, é Deus.<br />

Este fascínio que a aparatosa e bela Missa do Galo celebrada<br />

em iluminadas igrejas exercia nas pessoas é bem<br />

retratado em um famoso conto machadiano que tem por<br />

título justamente o de Missa do Galo. O jovem rapaz interiorano<br />

que estuda no Rio de Janeiro demora-se mais na<br />

Corte após o ano letivo para assistir à Missa do Galo. Claro<br />

que a prosa machadiana não deixaria de por uma Conceição<br />

no meio da história que quase faz o mancebo perder a<br />

tão esperada Missa.<br />

Além da Missa, havia outras formas de festejar o Natal<br />

que não as da liturgia da Igreja, como vemos no Dicionário<br />

do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo:<br />

“Natal – É a maior festa popular do Brasil, determinando<br />

um verdadeiro ciclo, com bailados, autos tradicionais, bailes,<br />

alimentos típicos, reuniões, etc. De meados de dezembro<br />

até Dia de Reis, 6 de janeiro, uma série de festas ocorre<br />

por todo Brasil, especialmente pelo interior, onde a tradição<br />

é mais viva e sensível. O bumba-meu-boi, boi, boi-calemba,<br />

cheganças, marujadas ou fandango, pastoris com as velhas<br />

lapinhas de outrora, congadas ou congos, reisados estão<br />

nos dias prestigiosos. Para aguardar-se a missa do galo, à<br />

meia-noite, há todos estes divertimentos públicos, nas festas<br />

particulares ou nas sociedades.” (1962: 505)<br />

E continua o mestre potiguar falando sobre os grandes e<br />

comoventes autos encenados até o século XVIII dentro das<br />

Igrejas, antes da Missa, e, depois, em grandes e iluminados<br />

palcos nas praças das cidades.<br />

Jomar Moraes, em seu Guia de São Luís do Maranhão,<br />

também nos fala sobre as comemorações populares do Natal,<br />

citando trecho de notícias publicadas em jornais maranhenses,<br />

em fins do século XIX e início do XX:<br />

“(...) e as festas do pujante ciclo natalino: filhas de Belém,<br />

de Jerusalém ou de Judá, pastorinhas, pastores, reis, lapinhas,<br />

presépios, queimação de palhinha”.<br />

Seguem aleatoriamente do rico material existente na imprensa,<br />

estas notas sobre festas natalinas:<br />

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Pastores de Natal – A começar no dia 23 do corrente, realizar-se-ão<br />

danças de pastores artisticamente armado no<br />

Estaminet da Estrada de Ferro em frente à estação Central<br />

da Companhia Ferro-Carril. Será facultado grátis o ingresso<br />

às exmas. famílias que se dignarem comparecer e também<br />

aos cavalheiros que dentro do Estaminet encontrarão<br />

cerveja fria, café, chocolate, cariru e frios que serão servidos<br />

por preços módicos<br />

Os Reis d’Avenice – Sairão hoje a cantar a tradicional<br />

vinda dos Magos os conhecidíssimos Reis d’Avenice, que<br />

tão apreciados foram no ao passado. Onde houver cerveja<br />

aí estarão eles glorificando Baltazar, Belchior e Gaspar,<br />

conforme nos informaram. Preparem-se para recebê-los<br />

condignamente as pessoas que tiverem deles cartões de<br />

aviso. E que o luar e as estrelas os acompanhem na sua<br />

peregrinação noturna.<br />

Hoje são outras as celebrações alusivas à época natalina.<br />

É que a cultura, expressão dinâmica da vida e espelho tridimensional<br />

do que, no povo, corresponde às exteriorizações<br />

de sua vitalidade, recicla-se permanentemente, ajustando-<br />

-se ao fluir do tempo, em sua marcha recriadora. Entretanto<br />

permanece a mesma a alma lúdica do nosso povo, representada<br />

por suas danças, seus festejos, suas inúmeras<br />

“brincadeiras”. (1989: 178, 179)<br />

Mas como disse Jomar Moraes, outras são as formas de<br />

festejar hoje o Natal; já não há mais os pastoris, os presépios<br />

e lapinhas. Temos o Papai Noel, que até tem origem cristã no<br />

velho bispo e depois santo Nicolau, mas que hoje é só uma<br />

personagem do imaginário popular que traz os presentes<br />

para as crianças e ajuda a aquecer as vendas natalinas...<br />

Cristo? Este já não aparece mais em primeiro plano, mas,<br />

às vezes, quando aparece, é um mero ator coadjuvante. O<br />

consumismo tomou o lugar do sentimento de fraternidade<br />

e união que dava ao Natal o ar de festa familiar. Agora o comércio<br />

reina absoluto onde antes reinava um Deus recém-<br />

-nascido.<br />

Porém, é tempo de lamentar-se? É tempo de acabar esta<br />

crônica repetindo a fina ironia do Bruxo do Cosme Velho:<br />

Índice<br />

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Mudaria o Natal ou mudei eu? Nem o Natal mudou, nem<br />

nós mudamos, mudaram os tempos, porque nossas virtudes<br />

e vícios permanecem os mesmos, e agora o folguedo<br />

natalino é o comprar e o ter, é o possuir e o gastar, o consumir<br />

e o comerciar, o roubar e o vender, vender até mesmo<br />

a ilusão de que o Natal ainda existe! Há, ainda, aqueles<br />

que possuem o tão falado espírito natalino e que se alegram<br />

verdadeiramente pela vinda do Salvador, com o nascimento<br />

da criança mais importante de toda a História e não apenas<br />

com os presentes e os lucros auferidos pelo ávido comércio<br />

e que, no Natal, partilham a vida e os bens? Ou temos que<br />

repetir com Leão Magno e reconhecer que no lugar da divindade<br />

o que hoje se adora é a criatura? No lugar de Deus,<br />

antes, adoravam-se as estrelas, a lua, o sol... Hoje, já nem<br />

os astros têm este privilégio. Adoram-se carros, casas, computadores,<br />

roupas e outros objetos que nem obras de Deus<br />

são, e sim obras do próprio homem. Ao fim e ao cabo, tudo<br />

não passa de um autoculto, uma adoração de si mesmo. O<br />

Natal ainda existe?<br />

Referências<br />

CÂMARA CASCUDO, LUíS DA. DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO. RIO<br />

DE JANEIRO: INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO- MINISTÉRIO DA EDUCAçãO E<br />

CULTURA,1962.<br />

LEãO MAGNO. SERMõES. SãO PAULO: PAULUS, 1996.<br />

LIRA, BRUNO CARNEIRO. O CICLO DO NATAL. CELEBRANDO A ENCARNAçãO<br />

DO SENHOR. SãO PAULO: PAULINAS, 2010.<br />

MORAES, JOMAR. GUIA DE SãO LUíS DO MARANHãO. SãO LUíS: EDIçõES LE-<br />

GENDA, 1989.<br />

João Dias Rezende Filho<br />

Bacharel em Direito, Teologia e Seminarista.<br />

Índice<br />

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BRASILEIROS<br />

NO MUNdO<br />

Índice<br />

Álvaro Lima<br />

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Imagem institucional


Historicamente, o Brasil pode ser considerado um país<br />

receptor de população. Ao longo da sua história acolheu<br />

imigrantes de vários países do mundo. Desde 1822 até<br />

1949, o país recebeu cerca de cinco milhões de imigrantes.<br />

De 1880 a 1903, entraram no país cerca de 1,9 milhão<br />

de europeus, sobretudo portugueses, espanhóis e alemães.<br />

De 1904 a 1930, outros 2,1 milhões, destacando-se a presença<br />

de italianos, poloneses, russos e romenos. De 1932<br />

a 1935, vieram os imigrantes japoneses. Finalmente, entre<br />

1953 e 1960, registrou-se uma imigração significativa de<br />

espanhóis, gregos e sírio-libaneses. Depois destas grandes<br />

levas migratórios o país «fechou-se», mantendo um fluxo<br />

líquido próximo a zero no período entre o pós-guerra e os<br />

anos 1980. Após um longo período de estabilidade migratória,<br />

na década de 1980, o Brasil experimentou, pela primeira<br />

vez, uma mudança negativa, passando desde então de<br />

um país majoritariamente receptor a um país expulsor de<br />

população. Isto não quer dizer que o país deixou de receber<br />

imigrantes. Principalmente a partir dos anos 90, verificou-<br />

-se a entrada de muitos coreanos e latino-americanos.<br />

O processo de emigração brasileira se inicia na década<br />

de 70 e sofre um crescimento abrupto ao longo da década<br />

de 80. A década de 90 representa um momento de estabilização<br />

relativa dos estoques, com um declínio nos fluxos<br />

de saída. Este processo retoma seu crescimento a partir de<br />

2000.<br />

Estima-se que desde de 1987, quando aproximadamente<br />

300.000 brasileiros viviam fora do país, a emigração brasileira<br />

tenha aumentado a uma taxa de 20 por cento ao ano.<br />

De acordo com o Centro de Desenvolvimento e Planejamento<br />

Regional da Universidade Federal de Minas Gerais, mais<br />

de 2,5 milhões de brasileiros viviam fora do país em 1995.<br />

O Ministério das Relações Exteriores estima que em 2010<br />

havia cerca de 3,1 milhões de imigrantes brasileiros espalhados<br />

por todos os continentes.<br />

Duas características importantes da emigração brasileira<br />

são a sua composição de classe e o seu caráter de imigração<br />

transnacional. Os imigrantes brasileiros, ao contrário de<br />

Índice<br />

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vários outros grupos de imigrantes, não estão fugindo de<br />

condições de pobreza absoluta assim como não são também<br />

refugiados políticos a procura de asilo, ou fugindo de<br />

guerras civis. A maioria deles é oriunda de zonas urbanas<br />

e das classes médias e médias baixas, vários deles com<br />

educação universitária. A exceção corresponde somente<br />

aos trabalhadores agrícolas e aos garimpeiros que partiram<br />

para as regiões fronteiriças do Brasil.<br />

Os imigrantes brasileiros, particularmente os saídos na<br />

década de 80, fugiam principalmente da crise econômica<br />

que assolou o país, tornando impossível para a classe média<br />

manter seu padrão de vida. Este período, além de conhecer<br />

hiperinflação, foi marcado por profundo desemprego, baixos<br />

salários, alto custo de vida e recessão econômica. Uma<br />

situação econômica drástica que pode ser exemplificada<br />

pelo fato de que o Brasil conheceu, nesse período, quatro<br />

moedas, cinco congelamentos de salários e preços, e nove<br />

programas de estabilização econômica (Brooke 1993).<br />

A imigração brasileira assume cada vez mais um caráter<br />

transnacional, isto é, os imigrantes brasileiros mantêm relações<br />

econômicas, sociais e políticas cada vez mais robustas<br />

com o Brasil e entre si, aumentando sua complexidade e<br />

impacto não somente econômico, como é o caso das remessas<br />

de dinheiro (remittances), mas também das remessas<br />

sociais (social remittances), como idéias, comportamentos e<br />

valores que, da mesma forma que as remessas econômicas,<br />

num constante vai e vem, desafiam noções de fronteiras e<br />

culturas nacionais rígidas.<br />

Por fim, o processo migratório envolve não somente aqueles<br />

que deixam o país para viver no exterior, mas também<br />

aqueles que, terminadas as suas jornadas em outras terras,<br />

voltam a seu lugar de origem - os chamados retornados.<br />

A atual crise econômica internacional e as políticas<br />

restritivas dos países receptores têm contribuído de forma<br />

crescente para esse fluxo de volta. Segundo o Ministério do<br />

Trabalho e Emprego, aproximadamente 20 por cento dos<br />

brasileiros residentes no Japão já retornaram ou preparam<br />

o retorno ao Brasil.<br />

Índice<br />

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Aeroporto Marechal Cunha Machado / São Luís - MA<br />

Por que os brasileiros emigram – A partida<br />

A partir de 1979, a economia brasileira começou a sentir<br />

o impacto do aumento da taxa de juros internacionais e do<br />

segundo choque do petróleo, ocorrendo então a maxidesvalorização<br />

de 1979, que causou um aumento da taxa de<br />

inflação, fazendo com que esta ultrapassasse 50 por cento<br />

ao ano, chegando ao final de 1979 a superar a casa dos<br />

três dígitos. No começo dos anos 1980 o país passou por<br />

uma forte recessão econômica, marcada por altas taxas de<br />

desemprego que se estenderam até o final da década. Durante<br />

este período e o início dos anos 90 verificou-se uma<br />

grande redução de postos de trabalho na economia e o crescimento<br />

do trabalho informal. Acoplado a este cenário de<br />

desemprego e precarização do trabalho, viveu-se um processo<br />

inflacionário que atingiu, em 1990, 1.795% ao ano.<br />

Por fim, as reformas econômicas do Presidente Collor de<br />

Mello trouxeram mais desencanto do que resultados, principalmente<br />

para as classes médias.<br />

A crise, juntamente com o impacto da reestruturação<br />

da economia mundial, afetaram o mercado de trabalho<br />

Índice<br />

73 / 58<br />

Imagem institucional


asileiro nos anos 90 e provocaram a queda na mobilidade<br />

social brasileira (Brito, 1995). Entre os anos de 1990 e<br />

1992, verificou-se uma redução de 19% no nível de emprego<br />

assalariado formal e uma elevação do trabalho por conta<br />

própria e do trabalho doméstico (Martes, 1999). Assim,<br />

conforme salienta Patarra e Baringer (1995), a migração interna,<br />

que foi sempre um elemento de absorção do excesso<br />

de mão de obra das várias regiões do país, não mais garantiu<br />

a mobilidade social, induzindo parcela significativa da<br />

classe média, principalmente os mais jovens, a buscar novas<br />

oportunidades na emigração para os Estados Unidos,<br />

Europa e Japão.<br />

A recuperação econômica dos anos 1993-1995 foi insuficiente<br />

para alterar este quadro econômico. No final da década,<br />

juros altos, aumento do desemprego, e a diminuição<br />

na produtividade, mantiveram a situação de crise. Por fim,<br />

não podemos minimizar a importância de fatores como a<br />

violência urbana e a desorganização social como motivos<br />

que influenciaram a decisão de emigrar. Em várias pesquisas<br />

realizadas nos Estados Unidos, assim como em outros<br />

países, os imigrantes brasileiros apontam como causa importante<br />

da emigração a “busca de uma vida melhor”, frase<br />

que engloba não só aspectos econômicos mas também de<br />

qualidade de vida.<br />

É necessário ressaltar que houve uma reestruturação no<br />

sistema produtivo das economias avançadas que provocou<br />

um aumento, como explica Piore (1980), da demanda por<br />

trabalhadores altamente qualificados e bem pagos, ao mesmo<br />

tempo que houve uma crescente procura por trabalhadores<br />

manuais de baixa qualificação e remuneração. Dá-<br />

-se, desta forma, uma bifurcação na estrutura do emprego<br />

das economias avançadas quanto ao salário, condições de<br />

trabalho, segurança e estabilidade.<br />

É nesse quadro, via a emigração, que se opera a troca<br />

do trabalho que dá prestígio no Brasil pelo trabalho que<br />

paga bem no exterior. Os imigrantes brasileiros, ainda que<br />

inseridos no mercado de trabalho informal desses países,<br />

conseguem rendimentos cerca de três a quatro vezes<br />

Índice<br />

74 / 58


superiores do que aqueles que alcançariam no Brasil. Como<br />

afirmou Teresa Sales (1999), esta é uma ascensão truncada,<br />

pois geralmente significa a troca de status pela possibilidade<br />

de consumo maior.<br />

Na década de 80, o fluxo de saída era oriundo principalmente<br />

das regiões sudeste e sul do Brasil, representando<br />

aproximadamente 91% de todo o fluxo de saída. Na década<br />

de 90 ele caiu para aproximadamente 79%. Esse declínio<br />

se deu em função (1) do aumento do retorno dos imigrantes<br />

brasileiros oriundos do Paraguai; (2) do aumento significativo<br />

da emigração da região norte para a Guiana Francesa,<br />

Venezuela, Peru e Bolívia; e (3) o aumento significativo da<br />

emigração da região nordeste para a Europa e os Estados<br />

Unidos. Além disso, a emigração para os Estados Unidos<br />

tornou-se mais diversificada, incluindo novas regiões de<br />

origem, como Goiás e vários estados do nordeste. Finalmente,<br />

na metade da década de 90, aumentou o fluxo de<br />

São Paulo para o Japão, com a emigração dos chamados<br />

dekasseguis.<br />

Cada vez mais os brasileiros que emigram são oriundos<br />

dos centros urbanos modernos e fazem parte das camadas<br />

médias da população. Hoje, mais de 16 estados brasileiros<br />

contribuem de forma expressiva para esse fluxo emigratório,<br />

sendo que os estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo,<br />

Paraná e Santa Catarina são os cinco estados que mais<br />

contribuem.<br />

Quanto somos e onde vivemos<br />

A mensuração dos imigrantes brasileiros em geral e num<br />

determinado país é muito difícil, porque (1) os registros sobre<br />

as saídas de brasileiros são muito precários; (2) poucos<br />

são os países que têm estatísticas confiáveis sobre o número<br />

de imigrantes em seu território, já que muitos estão no país<br />

irregularmente; (3) o tipo de informação obtida refere-se ao<br />

estoque, isto é, ao volume acumulado de imigrantes residentes<br />

no país na data do censo. Dessa forma, as informações<br />

sobre o número de brasileiros vivendo no exterior são<br />

contraditórias e, dependendo da fonte, apresentam grande<br />

Índice<br />

75 / 58


variação, como veremos a seguir.<br />

Utilizando técnicas indiretas, Carvalho (1996), com base<br />

nos censos brasileiros de 1980 e 1991, estimou que 1,8 milhão<br />

de pessoas com mais de dez anos de idade deixaram<br />

o país nos anos 1980. O Instituto Brasileiro de Geografia e<br />

Estatística (IBGE) “descobriu” no censo brasileiro de 1991<br />

uma ausência estatística de cerca de 1,4 milhões de pessoas<br />

entre as idades de 20 a 44 anos. Carvalho (2004), considerando<br />

o saldo migratório internacional do Brasil entre<br />

1990 e 2000, da população de 10 anos ou mais de idade,<br />

calcula que este saldo seria negativo em aproximadamente<br />

500 mil pessoas.<br />

Entretanto, mesmo com toda dificuldade em estimar os<br />

saldos migratórios, pode-se dizer com alguma certeza que,<br />

de 1980 a 2000, o Brasil perdeu no mínimo uma população<br />

de aproximadamente 2 milhões de pessoas – 1,8 milhão na<br />

década de 80, e pelo menos meio milhão na década seguinte.<br />

Como referido anteriormente, o Ministério das Relações<br />

Exteriores estima que em 2010 havia cerca de 3,1 milhões<br />

de imigrantes brasileiros concentrados, na sua maioria,<br />

na América do Norte (45,9%), Europa (29,2%), América do<br />

Sul (13%), Ásia (7,7%), África (0,9%), Médio Oriente (1,3%),<br />

América Central (0,2%) e Oceania (1,7%). Na América do<br />

Norte, os imigrantes brasileiros estão concentrados nos Estados<br />

Unidos (44%); na América Latina, no Paraguai (6%);<br />

na Ásia, no Japão (7%); e na Europa, no Reino Unido (6%),<br />

Portugal (4%) e na Alemanha (3%).<br />

O Censo Brasileiro Demográfico de 2010 incluiu um bloco<br />

de perguntas visando conhecer de forma mais detalhada<br />

o fenômeno da emigração brasileira. O IBGE estima que<br />

491.645 brasileiros vivem no exterior, reconhecendo que<br />

esse número sub-enumera essa população. Entre outros<br />

fatores para tal sub-enumeração, o IBGE cita (1) a possibilidade<br />

de todas as pessoas que residiam em determinado<br />

domicílio terem emigrado; (2) aquelas que ficaram no<br />

território brasileiro tenham vindo a falecer; (3) ou aqueles<br />

que há muito tempo encontram-se no exterior sejam<br />

desconsiderados.<br />

Finalmente, a Organização Internacional para as Migrações<br />

Índice<br />

76 / 58


- OIM (International Organization for Migration - IOM), no<br />

seu Perfil Migratório do Brasil de 2009, estima que há entre<br />

2,5 a 4 milhões de brasileiros vivendo fora do país, na sua<br />

maioria nos Estados Unidos, Paraguai, Japão, Reino Unido<br />

e Portugal.<br />

Por que os brasileiros voltam - O retorno<br />

O retorno dos brasileiros do exterior pode ser aferido pelo<br />

número daqueles que na data dos censos demográficos de<br />

1991 e 2000 residiam no Brasil, mas que retornaram ao país<br />

nos anos compreendidos entre 1986 e 1991, e 1995 e 2000.<br />

Neste caso, verificou-se um incremento de 181,5% nesse<br />

contingente, isto é, em 1991, 31.124 pessoas declararam<br />

Índice<br />

77 / 58<br />

Imagem institucional


um país estrangeiro de residência cinco anos antes da data<br />

de referência do censo, enquanto que em 2000 esse número<br />

era 87.599.<br />

Segundo Wilson Fusco e Sylvain Souchaud, o fluxo de<br />

retornados brasileiros, ainda que bastante diversificado,<br />

concentra-se em três países: Paraguai, Japão e Estados<br />

Unidos, responsáveis por cerca de 60% desse fluxo. Estes<br />

autores analisaram o retorno com base nos dados do censo<br />

brasileiro de 2000 (IBGE), o qual indica a distribuição,<br />

por município, dos retornados, definidos em função do país<br />

de nascimento e residência no momento do censo e da declaração<br />

da última residência em país estrangeiro nos dez<br />

anos anteriores ao censo.<br />

O retorno do Paraguai constitui o maior fluxo de brasileiros<br />

retornados. Em 2000, 50.201 pessoas nascidas e residentes<br />

no Brasil declararam residência anterior no Paraguai,<br />

representando 26,8% do total da população brasileira<br />

retornada. De uma forma geral, os retornados têm um nível<br />

educacional mais elevado do que o observado para os não-<br />

-migrantes, com exceção destes retornados do Paraguai,<br />

que têm um nível próximo do encontrado para os não-migrantes<br />

residentes em zonas rurais (instrução fundamental<br />

incompleta) e têm salários inferiores a estes da população<br />

residente. Esse fato pode ser explicado pela origem destes<br />

retornados que são na sua maioria agricultores. No entanto,<br />

os retornados da Europa, Estados Unidos, Canadá e<br />

Japão tinham pelo menos o 3º grau completo e salários<br />

superiores aos dos brasileiros morando em áreas metropolitanas<br />

(Fernandes, 2008).<br />

Ainda de acordo com Fernandes, em geral, os retornados<br />

dos países vizinhos estão, na sua maioria, trabalhando<br />

por conta própria e em atividade de um perfil de menor remuneração,<br />

enquanto que aqueles retornados dos Estados<br />

Unidos e da Europa estão ocupados em atividades, em geral,<br />

melhor remuneradas. A maioria dos retornados estão<br />

concentrados nos estados do Paraná (61,8%), Mato Grosso<br />

do Sul (16,3%), Mato Grosso (5,4%), Santa Catarina (5,4%),<br />

São Paulo (3,8%), Rio Grande do Sul (3,5%) e Rondônia<br />

(1,1%).<br />

Índice<br />

78 / 58


O Paraná não só é o lugar de nascimento de muitos migrantes<br />

mas também o lugar de última residência anterior<br />

ao ingresso no Paraguai. Muitas vezes, gaúchos, catarinenses<br />

e baianos, por exemplo, viviam por um determinado<br />

período de tempo no Paraná antes de emigrar para o<br />

Paraguai. O Rio Grande do Sul, assim como o Paraná, é<br />

um lugar onde a expansão da fronteira agrícola nos anos<br />

1980 e 1990 expulsou muitas famílias que alimentaram<br />

as camadas mais pobres da população brasileira imigrante<br />

no Paraguai. Diferentemente destes dois estados, que na<br />

sua grande maioria recebem retornados natos, os estados<br />

do Mato Grosso e Rondônia recebem retornados em busca<br />

de oportunidades e empregos ligados ao crescimento e<br />

dinamismo da agricultura comercial, principalmente aquela<br />

ligada à soja.<br />

Ainda de acordo com Fusco e Souchaud, os retornados<br />

do Japão formam o segundo maior grupo, contando<br />

com 17% do total dos retornados (31.775 pessoas). Ainda<br />

que perto do número de retornados dos Estados Unidos, a<br />

comunidade brasileira no Japão é muito menor do que esta<br />

última. Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato de a lei<br />

de imigração japonesa permitir múltiplo retornos, enquanto<br />

que a população brasileira indocumentada nos Estados<br />

Unidos raramente se arrisca a um retorno temporário.<br />

A maioria dos retornados do Japão, mais de 80%, volta<br />

a residir nos mesmos estados marcados pela imigração japonesa<br />

para o Brasil – São Paulo e Paraná. Em menor proporção<br />

eles se dirigem para Minas Gerais e Rio de Janeiro.<br />

Aqueles que voltam para o Pará são originários da antiga<br />

colônia Acará, atualmente Tomé-Açu (Beltrão et al, 2006).<br />

O retorno dos Estados Unidos, o terceiro maior, registrou<br />

um volume de 29.591 pessoas (16% do total de brasileiros<br />

retornados), segundo o censo de 2000.O número grande de<br />

imigrantes brasileiros indocumentados nos Estados Unidos<br />

dificulta não só a sua contagem no país de destino mas<br />

também a sua contagem quando do retorno.<br />

Os retornados dos Estados Unidos, predominantemente,<br />

voltam para São Paulo (7.495), Minas Gerais (6.241), e Rio<br />

Índice<br />

79 / 58


de Janeiro (4.971). Em seguida, verifica-se a presença destes<br />

no Paraná (1.755), Rio Grande do Sul (1.468), Distrito<br />

Federal (1.269) e Goiás (1.266).<br />

Finalmente, a maioria dos retornados dos Estados Unidos<br />

(97,2%) e Japão (94,4%) retornam para zonas urbanas,<br />

enquanto que os retornados do Paraguai apresentam um<br />

menor índice de domicílios urbanos (72%). Quando consideramos<br />

também as suas ocupações quando do retorno, a<br />

maioria daqueles retornados dos Estados Unidos trabalha<br />

nos setores de educação (19,8%), comércio (15%) e atividades<br />

imobiliárias (13%). Aqueles voltados do Paraguai apresentam<br />

uma grande participação no setor da agricultura<br />

(32%), seguido de ocupações industriais (15%), comércio<br />

(13,6%) e serviços domésticos (12%). Os brasileiros retornados<br />

do Japão ocupam posições com maior frequência<br />

nos setores do comércio (29,7%), industrial (12,5%) e agrícola<br />

(10,6%), conforme ilustrado na tabela ao lado.<br />

Contribuição econômica<br />

Os imigrantes brasileiros contribuem de várias maneiras<br />

para o progresso social e econômico dos países onde vivem.<br />

Suas contribuições resultam das suas atividades como trabalhadores<br />

e empresários e dos seus gastos como consumidores.<br />

Eles contribuem também para as economias locais das<br />

suas cidades natais via a remessa de dinheiro que, em<br />

2005, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento,<br />

totalizou mais de US$ 7,2 bilhões, tornando o Brasil o<br />

segundo maior receptor de remessas na América Latina,<br />

atrás apenas do México. Cerca de metade das remessas recebidas<br />

no Brasil vem de brasileiros que vivem nos Estados<br />

Unidos. Os seus investimentos e empreendimentos nos locais<br />

de origem, além das poupanças que trazem quando do<br />

retorno, aumentam o impacto econômico destes imigrantes.<br />

Esse fluxo de remessas não somente aumenta o consumo<br />

direto das famílias receptoras, mas também impacta a<br />

Índice<br />

80 / 58


economia como um todo, em virtude da maior propensão<br />

de consumo das famílias de baixa renda. O Professor Manuel<br />

Orozco, Diretor do programa “Remittances and Development”,<br />

da organização Inter-American Dialogue, calcula<br />

que cada dólar remetido aumenta a renda em $ 1,78 dólares,<br />

um impacto multiplicador bastante significante.<br />

Participação cidadã<br />

Os brasileiros contribuem ainda através da sua participação<br />

cultural e cívica. Suas organizações midiáticas, jornais,<br />

programas de televisão e rádio, são hoje parte do refazer destas<br />

sociedades. A mídia brasileira tem estabelecido presença<br />

permanente na vida das comunidades brasileiras. Hoje,<br />

somente nos Estados Unidos, há cerca de 300 veículos de<br />

comunicação de vários tipos, incluindo a existência da Associação<br />

Brasileira de Imprensa Internacional (ABI-I). Além<br />

destes veículos, a comunidade brasileira sustenta três das<br />

maiores redes de televisão brasileiras com transmissão diária<br />

via cabo ou satélite – a TV Globo Internacional, a TV Record<br />

e a Band Internacional, além da televisão pública TV<br />

Brasil Internacional.<br />

Organizações não governamentais de apoio social e de integração<br />

nas sociedades locais, de defesa dos direitos humanos<br />

e dos direitos dos trabalhadores brasileiros abundam<br />

entre as comunidades brasileiras imigrantes. Além destas<br />

organizações, existem várias entidades mais ou menos formais<br />

que se dedicam a aspectos culturais e esportivos - Organizações<br />

Culturais e Desportivas. Papel importante também<br />

é desempemhado pelas Entidades Religiosas. Estas<br />

entidades proporcionam não somente apoio espiritual, mas<br />

também material, e, às vezes, político para imigrantes que<br />

vivem à margem da sociedade.<br />

Além disso, a participação política via o voto à distância é<br />

de fundamental importância para que os imigrantes brasileiros<br />

articulem suas demandas junto ao governo brasileiro,<br />

de forma que este se engaje no apoio à diáspora brasileira.<br />

Por fim, Conselho de Representantes Brasileiros no<br />

Índice<br />

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Exterior e as Conferencias “Brasileiros no Mundo” são resultados<br />

de um longo processo de organização das comunidades<br />

brasileiras imigrantes. Estes instrumentos podem<br />

efetivar, na prática, a cidadania sem fronteiras.<br />

Referências<br />

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Casa: a Inserção do Imigrante Internacional de Retorno no Mercado de Trabalho.<br />

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MAXINE, L. Margolis. 2009. An Invisible Minority. Florida: University Press<br />

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Consular – DAC. http://www.digaai.org/wp/pdfs/estimativas_mundo.pdf<br />

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Subsecretaria Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior – SGEB, Departamento<br />

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August 18-24, 2001. http://www.digaai.org/wp/pdfs/migrantsandmigration.pdf<br />

Diretor de Pesquisas da Prefeitura de Boston e Diretor da organização nãogovernamental<br />

Innovations Network for Communities. De 1998 a 2004 foi Vice<br />

Presidente e Diretor de Pesquisas da Initiative for a Competitive Inner City – ICIC,<br />

uma organização nacional fundada em 1994 pelo Professor da Harvard Business<br />

School, Michael E. Porter.<br />

Índice<br />

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Índice<br />

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Índice<br />

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CALÇAdAS<br />

dE SÃO LUÍS<br />

Índice<br />

Ricardo Laender Perez<br />

O lugar de pedestre é na calçada.<br />

Ou pelo menos deveria ser. Fora da calçada, só na hora<br />

de atravessar a rua e, preferencialmente, na faixa a ele<br />

destinada. Parece não haver dúvidas a esse respeito. Mas<br />

basta que olhemos o que acontece na nossa cidade para<br />

começarmos a duvidar se todos entendem isso.<br />

Um olhar mais atento muda, no entanto, o<br />

questionamento. A questão não é se as pessoas entendem<br />

que a calçada é o local do pedestre: o pedestre na<br />

verdade não encontra a calçada. Pelo menos a calçada<br />

destinada ao deslocamento de pessoas. Aqui encontramos<br />

a calçada para estacionar carros, a calçada para prática<br />

de alpinismo entre os seus inúmeros desníveis, a calçada<br />

para colocar postes, a calçada dos latões de lixo, a<br />

calçada como rampa de entrada de carros, a calçada com<br />

crateras lunares, a calçada para colocar mostruário das<br />

lojas, a calçada para as bancas de ambulantes e... melhor<br />

parar por aqui.<br />

90 / 58<br />

Imagem institucional


Estacionamento<br />

sobre a calçada:<br />

falta dE consciência<br />

do cidadão.<br />

Só não encontramos a calçada para caminhar, aquela calçada<br />

básica, só para o deslocamento do cidadão, com segurança,<br />

sem risco de ser atropelado, de cair num buraco, de<br />

tropeçar no desnível do piso, se livrando dos postes da sinalização,<br />

dos da rede elétrica, das lixeiras.<br />

Na verdade precisamos mais do que calçadas: precisamos<br />

de passeios públicos, que sirvam para o deslocamento<br />

apressado dos que vão para o trabalho ou para o compromisso<br />

importante, mas que sejam também locais para o<br />

passeio, conversando com o amigo, olhando a cidade, as<br />

vitrines, de mãos dadas com alguém, tomando um sorvete<br />

numa tarde quente, levando as crianças pela mão... E mais:<br />

encontrando um banco em que se possa sentar, protegido<br />

pela sombra de uma árvore; a lixeira, para que o cidadão<br />

possa mostrar sua civilidade não jogando o lixo no chão; o<br />

telefone público, que anda meio fora de moda, mas ainda<br />

é útil; a floreira, que dá vida e embeleza a paisagem construída,<br />

tudo projetado visando a funcionalidade e dotado<br />

de um bom desenho, sem que sua existência prejudique os<br />

que precisam simplesmente se deslocar.<br />

Por que nossa realidade é tão diferente disso?<br />

Índice<br />

91 / 58<br />

Acervo pessoal


desníveis, postes,<br />

floreiras e lixeiras:<br />

ondE Está a calçada?<br />

“Ao analisar<br />

as razões<br />

do porque a<br />

cidade não tem<br />

sequer aquela<br />

calçada básica,<br />

dois fatores<br />

saltam aos<br />

olhos: falta de<br />

fiscalização<br />

pelo poder<br />

público e falta<br />

de civilidade<br />

do cidadão.”<br />

Ao analisar as razões do porque a cidade não tem<br />

sequer aquela calçada básica, dois fatores saltam aos<br />

olhos: falta de fiscalização pelo poder público e falta<br />

de civilidade do cidadão. Na legislação urbanística da<br />

cidade existem definições sobre a responsabilidade<br />

pela execução e manutenção das calçadas e a respeito<br />

da largura das mesmas, de acordo com o tipo<br />

de via. O proprietário do lote tem a responsabilidade<br />

pela execução e manutenção da calçada no trecho<br />

contíguo à sua propriedade; a largura está definida<br />

no Anexo I da Lei municipal 3253, que trata do Zoneamento,<br />

Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo<br />

no município de São Luís. É tratado de forma quase<br />

simplória, mas cumpre o papel de definir a ocupação<br />

do solo no que diz respeito às calçadas. Normas complementares,<br />

que aqui não existem, devem definir<br />

melhor questões técnicas como declividades transversal<br />

e longitudinal, tipos de piso, acesso aos lotes e<br />

edificações, ocupação e uso da faixa da calçada, etc.<br />

Índice<br />

92 / 58<br />

Acervo pessoal


Índice<br />

Pedestre: com a ocupação<br />

da calçada a solução é<br />

andar pela rua.<br />

Temos, portanto, a legislação. Mas falta a fiscalização. Quando<br />

a falta de fiscalização encontra a falta de civilidade do<br />

cidadão - a falta de educação mesmo! - , dá-se início ao processo<br />

que gera o cenário urbano caótico e feio que se estende<br />

atualmente por toda a cidade: no lugar da calçada, o matagal,<br />

o lixeiro a céu aberto, o depósito de entulho, material<br />

de construção, estacionamento de veículos... E o pedestre<br />

no meio da rua, driblando carros e motos.<br />

O incivilizado proprietário, que gosta de dizer que calçada<br />

é responsabilidade da prefeitura, às vezes até faz a “calçada”.<br />

Mas, na sua ganância imoral – apoiado na nossa conhecida<br />

lei de Gerson - surrupia precioso 01 metro - ou mais - da já<br />

estreita calçada para anexar ao seu terreno de 1000 m², que<br />

não muda nada no lado interno com essa anexação, mas esmaga<br />

o pedestre no lado externo e mais uma vez o joga no<br />

meio da rua.<br />

Atitudes cidadãs, civilizadas, a partir do entendimento do<br />

conceito do bem comum, fundamental para a vida em comunidade,<br />

resolveriam a maior parte do problema. Não havendo<br />

essa consciência, cabe ao poder público zelar pelo bem estar<br />

da coletividade, fiscalizando o cumprimento das normas legais<br />

e corrigindo os desvios.<br />

Mas aqui estamos falando, por enquanto, somente de conseguir<br />

implantar e manter aquela faixa singela, mínima, indispensável<br />

para o deslocamento seguro do pedestre.<br />

93 / 58<br />

Acervo pessoal


a ocupação ilegal<br />

do espaço público:<br />

falta de civilidade<br />

É preciso, entretanto, que essa faixa lindeira aos lotes, de<br />

responsabilidade de cada proprietário, não seja um trecho<br />

isolado, desconectado dos trechos a cargo dos vizinhos.<br />

É preciso que o somatório dos trechos se constitua num<br />

elemento contínuo, que permita a circulação do pedestre<br />

sem sobressaltos, especialmente daqueles portadores de<br />

necessidades especiais. É desejável ainda que haja um tratamento<br />

formal, estético, adequado, para que não se transforme<br />

esse caminho numa colcha de retalhos de gosto duvidoso<br />

e, pior ainda, com a funcionalidade prejudicada pelo<br />

uso de materiais inadequados (pisos de baixa durabilidade,<br />

materiais escorregadios, peças soltas e desniveladas, etc.).<br />

Prefeituras de várias cidades têm elaborado manuais de<br />

construção e manutenção de calçadas, disponibilizados pela<br />

internet, com instruções sobre sistema construtivo, materiais<br />

de acabamento, padronização formal, elencando os problemas<br />

mais comuns e respectivas soluções. Em certos casos,<br />

como em Belo Horizonte, a parte central da cidade é tratada<br />

rua a rua, indicando a padronização a ser seguida, disponibilizando<br />

os desenhos técnicos com os materiais, as cores, o<br />

desenho do piso e prevendo as principais situações a serem<br />

Índice<br />

94 / 58<br />

Acervo pessoal


ESQUINA<br />

Implantar sinalização tátil de<br />

alerta conforme folha de<br />

detalhe DO4 do projeto de<br />

padronização da área central<br />

resolvidas pelo construtor: rampas de acesso, instalação de<br />

bancas de revista, telefones públicos, posteamento de energia<br />

e sinalização, bancos e floreiras, árvores, jardineiras, etc.<br />

PADRONIZAçãO DE CALçADAS EM BELO HORIZONTE<br />

PLANTA DE TRECHO DA RUA DOS AIMORÉS<br />

1<br />

Ladrilhos hidraulicos liso, acabamento<br />

rucoso antiderrapante, cor natural.<br />

Ladrilhos hidraulicos faixa direcionamente<br />

tátil cor vermelha<br />

Calçada portuguesa branca<br />

Calçada portuguesa vermelha<br />

Calçada portuguesa preta<br />

Calçada portuguesa vermelha<br />

OBS:<br />

1 - Projeto aprovado pelo CDPCM - BH<br />

2 - O desenho da calçada portuguesa tem como referência o projeto Afonso Pena eixo simbólico - Baptista e<br />

Schimidt Arquitetura e Urbanismo.<br />

3 - O piso das esquinas com Rua da Bahia ou Av. Afonso Pena será em pedra portuguesa, ver detalhe dos desenhos<br />

das mesmas.<br />

4 - A localização das rampas de pedestre nas esquinas deverá ser definida por tecnicos da BHTRANS.<br />

5 - A sinalização tátil das esquinas, rampas de garagem e pedestres e mobiliário urbano, além da construção<br />

das calçadas<br />

portuguesas, piso cimentado, calçadas com inclinação acima de 10%, rampas de pedestre, anéis permeáveis e<br />

entrada de<br />

veículos devem seguir as normas estabelecidas nos detalhes construtivos folhas 01 a 011.<br />

Índice<br />

2<br />

3<br />

4<br />

5<br />

6<br />

7<br />

95 / 58<br />

Reprodução do Portal PBH


É urgente que São Luís produza o seu manual, nesse<br />

momento em que a cidade cresce de forma acelerada, com<br />

novas ocupações e adensamentos em áreas já urbanizadas.<br />

Seria muito bom que nessa nova São Luís, que hoje se espalha<br />

rápida e desordenadamente, pudéssemos ter os belos<br />

passeios da capital dos nossos fundadores. Paris, com as intervenções<br />

de Haussmann no período de 1853 a 1870, viu<br />

surgir os belos bulevares, com suas amplas calçadas, até hoje<br />

um exemplo do que há de mais convidativo para o caminhar.<br />

Paris - Amplos espaços públicos: calçadas largas e arborizadas.<br />

Estamos sendo muito ambiciosos? Paris... Europa...<br />

Não custa, então, lembrar de um exemplo nosso, tropical...<br />

No Rio de Janeiro, no começo do século passado, o prefeito<br />

Pereira Passos, no período de 1903 a 1906, empreendeu<br />

grandes reformas urbanísticas, transformando o centro da<br />

cidade. Grandes avenidas foram abertas, com demolição de<br />

edificações e desmonte de morros. Surgiam ali os passeios<br />

públicos generosos e os grandes espaços públicos.<br />

A frota de veículos era tão pequena que os pedestres<br />

podiam andar sem sustos até pelo meio da rua, mas ainda<br />

assim as calçadas eram largas e ordenadas.<br />

Índice<br />

96 / 58<br />

Acervo pessoal


avenida central<br />

Rio de Janeiro<br />

1906<br />

Mobiliário urbano<br />

arborização: conforto ambiental<br />

São exemplos que mostram que é possível fazer<br />

quando há visão e interesse publico. É preciso<br />

pensar a cidade para o futuro.<br />

Não precisamos, entretanto, de tal padrão em<br />

todas as vias. Estudos adequados podem definir<br />

dimensões mínimas compatíveis com o tipo<br />

de via, com os usos permitidos na área e a densidade<br />

populacional prevista. O que é realmente<br />

necessário, atendidas pelo menos as dimensões<br />

mínimas, é que as calçadas tenham as características<br />

essenciais para que o deslocamento<br />

das pessoas se faça de forma segura, eficiente,<br />

confortável. E que, sempre que possível, possam<br />

ser agregados elementos que tornem o uso<br />

do lugar público também prazeroso, como bancos<br />

que permitam o descanso eventual do passante<br />

e a conversa descontraída dos moradores<br />

da vizinhança; árvores que, além da benfazeja<br />

sombra, ajudam a reduzir o som das ruas nos<br />

imóveis adjacentes e melhoram a qualidade do<br />

ar; equipamentos de apoio ao cidadão tais como<br />

telefones públicos, caixas eletrônicos, bancas de<br />

revista, etc.<br />

ATENçãO! Vamos abrir aqui um parêntese:<br />

ainda há tempo para salvar a Avenida dos Holandeses!<br />

Existe espaço suficiente – que, diga-se<br />

Índice<br />

97 / 58<br />

Foto: Augusto Malta


de passagem, é público e está sendo gradativa e silenciosamente<br />

privatizado. Bons e largos passeios, arborizados,<br />

com todo o mobiliário urbano, são ainda possíveis. Acrescidos<br />

de uma ciclovia, dariam a essa via a feição e o conforto<br />

para o pedestre, compatíveis com sua importância no<br />

sistema viário da capital e com a ocupação que hoje já se<br />

vislumbra no seu entorno.<br />

Mas, afinal, como deve ser, em linhas gerais, uma calçada?<br />

Quais as dimensões mais adequadas? Onde colocar o<br />

mobiliário urbano? As árvores? Como resolver problemas<br />

já existentes?<br />

A calçada, em função do que nela ocorre, deve possuir 3<br />

faixas distintas: a de serviço, próxima ao meio fio, a faixa<br />

livre e a de acesso.<br />

De acordo com a cartilha do Programa Passeio Livre, da<br />

Toronto - Canadá: as três faixas que definem a ocupação da calçada<br />

Índice<br />

98 / 58<br />

Acervo pessoal


Prefeitura de São Paulo, a faixa de serviço é “destinada<br />

à colocação de árvores, rampas de acesso para veículo ou<br />

portadores de deficiências, poste de iluminação, sinalização<br />

de trânsito e mobiliário urbano como bancos, floreiras, telefones,<br />

caixa de correio e lixeiras”.<br />

“A faixa livre é destinada exclusivamente à circulação<br />

de pedestres, portanto deve estar livre de quaisquer<br />

desníveis, obstáculos físicos, temporários ou permanentes<br />

ou vegetação. Deve atender as seguintes características:<br />

• possuir superfície regular, firme, contínua e antiderrapante<br />

sob qualquer condição;<br />

• possuir largura mínima de 1,20m (um metro e vinte centímetros);<br />

• ser contínua, sem qualquer emenda, reparo ou fissura.<br />

Portanto, em qualquer intervenção o piso deve ser reparado<br />

em toda a sua largura seguindo o modelo original.”<br />

E, finalmente, a faixa de acesso, aquela área “em frente<br />

ao seu imóvel ou terreno, onde podem estar a vegetação,<br />

rampas, toldos, propaganda e mobiliário móvel como mesas<br />

de bar e floreiras, desde que não impeçam o acesso aos imóveis.<br />

É, portanto, uma faixa de apoio à sua propriedade.”<br />

Obviamente em locais onde a calçada já está implantada,<br />

a ocupação dos lotes consolidada e a calçada não tem largura<br />

suficiente, é preciso zelar primordialmente pela correta<br />

execução da faixa livre.<br />

É importante entender que se está falando aqui de dimensões<br />

mínimas, aquelas suficientes para a passagem de duas<br />

pessoas e a colocação de equipamentos tais como postes,<br />

placas de sinalização, etc. Excetuando as vias locais, com<br />

ocupação predominantemente residencial, as calçadas poderiam<br />

ter dimensão inicial de pelo menos 3,5m. Novas vias<br />

deveriam ser pensadas com o olhar no futuro. Passeios com<br />

10m de largura? Por que não? Não é necessário que sejam<br />

executados num primeiro momento com essa dimensão,<br />

mas é preciso que, orientado por um planejamento urbano<br />

de médio e longo prazos, sejam garantidos os espaços para<br />

a ampliação tanto da caixa de rolamento quanto dos passeios,<br />

quando necessário.<br />

Índice<br />

99 / 58


Programa Passeio livre – Prefeitura de são Paulo<br />

Faixas de serviço, livre e de acesso<br />

F a i x a s d e s e r v i ç o , l i v r e e d e a c e s s o<br />

Programa Passeio Livre – Prefeitura de<br />

São Paulo<br />

Índice<br />

100 / 58


Programa Passeio livre – Prefeitura de são Paulo<br />

Exemplo de uso das faixas da calçada<br />

F a i x a s d e s e r v i ç o , l i v r e e d e a c e s s o<br />

Programa Passeio Livre – Prefeitura de<br />

São Paulo<br />

Índice<br />

101 / 58


Programa Passeio livre – Prefeitura de são Paulo<br />

Exemplo de uso das faixas da calçada<br />

F a i x a s d e s e r v i ç o , l i v r e e d e a c e s s o<br />

Programa Passeio Livre – Prefeitura de<br />

São Paulo<br />

Índice<br />

102 / 58


A sensação que temos é que nossos padrões “involuíram”.<br />

Bairros de implantação antiga, como o Olho D´Água, têm<br />

um sistema viário e calçadas com dimensões bem mais<br />

adequadas aos tempos atuais do que aqueles surgidos em<br />

tempos mais recentes, como o Renascença II. Com o agravante<br />

que este último tem uma ocupação muito mais densa<br />

devido à verticalização das edificações.<br />

Onde a ocupação dos lotes já aconteceu e as calçadas foram<br />

implantadas de forma inadequada, a prefeitura deve<br />

cobrar a regularização, oferecendo a orientação técnica<br />

através de cartilhas e desenhos técnicos colocados à disposição<br />

do cidadão, inclusive pela internet e mesmo com a<br />

orientação presencial de técnicos dos órgãos municipais.<br />

Problemas como os “degraus”, que acontecem em ruas<br />

com declividade longitudinal, podem ser resolvidos com intervenções<br />

que definam uma faixa livre uniforme.<br />

São vários os exemplos constantes dessas cartilhas e<br />

contemplam a maior parte dos problemas hoje encontrados<br />

nas calçadas das nossas cidades. Bom senso e assessoria<br />

dos órgãos públicos podem resolver os casos não previstos.<br />

Bairro de são luís: olho d’ água<br />

Índice<br />

103 / / 104 58<br />

Acervo pessoal


os “degraus” impedem a<br />

circulaçao do pedestre.<br />

ondE Está a faixa livRE?<br />

Para que a São Luís do futuro possa ser mais humana e<br />

agradável, para que vidas possam ser preservadas e para que<br />

o ato de caminhar possa deixar de ser uma aventura penosa<br />

– e perigosa –, é preciso ações urgentes de planejamento<br />

urbano, de fiscalização pelo poder público e maior conscientização<br />

do cidadão.<br />

Ricardo Laender Perez<br />

Arquiteto, Urbanista, Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade<br />

Estadual do Maranhão e Membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/MA.<br />

Índice<br />

104 / 58<br />

Acervo pessoal


“<strong>Seu</strong>”<br />

é o tal!<br />

Índice<br />

Antônio Nelson Faria<br />

Não identificado em quaisquer verbetes nos dicionário<br />

dos mestres Aurélio e Houaiss, o vocábulo Google – apesar<br />

de palavra originária de língua estrangeira – faz parte do<br />

dia a dia dos moradores do Oiapoque ao Chuí, e de todos os<br />

outros habitantes desse nosso monumental mundo novo,<br />

reconhecido como Planeta Virtual.<br />

Com sua popularização, detonou pesados petardos e acabou<br />

defenestrando as clássicas enciclopédias Barsa e Delta<br />

Larousse, os ícones que dominaram por mais de um século<br />

a consulta à fonte da sabedoria, ajudando a formar e a<br />

ampliar a vida escolar, acadêmica e cultural dos cidadãos.<br />

Golpe perverso, o deste organizador instantâneo de informações.<br />

A essa baixa pode-se aplicar perfeitamente o axioma, quase<br />

que verdadeiro, que diz que a diferença entre o remédio e<br />

o veneno está na dose aplicada. Verdade ou mentira, o certo<br />

é que os antigos glossários impressos do conhecimento<br />

105 / 58


humano foram desbancados por este novo sinalizador do<br />

conhecimento. E, a partir da sua existência e disponibilização<br />

na Internet, o Google virou o tal, ao permitir, a qualquer<br />

simples mortal, usufruir o seu conteúdo com a instantaneidade<br />

e a velocidade de um cometa.<br />

Nestas novas eras da automação, a utilitária cartilha de<br />

tabuada, tão prática na memorização das operações matemáticas,<br />

foi aposentada. Como, também, a consulta no<br />

livro de Canto Orfeônico, da FTD, para confirmar que fagotista<br />

e oboísta são músicos que fazem soar os instrumentos<br />

de sopro derivados dos seus nomes. Esta inovação abafou<br />

os belos tempos do estudo e da pesquisa rascunhadas em<br />

caneta tinteiro, nas folhas de papel dos cadernos Avante,<br />

os únicos com capa de tema nacionalista e grampeado no<br />

miolo. Da mesma maneira com que acabou a época em que<br />

se batia em máquina de escrever. E igualmente da vantagem<br />

de possuir diploma do Curso Remington como item<br />

imprescindível para arranjar emprego em qualquer lugar.<br />

O tempo e o vento rolaram esse período ladeira abaixo.<br />

Você talvez se lembre da canção Que será, será, na voz de<br />

Doris Day, protagonista, com James Stuart, da espetacular<br />

película O homem que sabia demais, um dos clássicos do<br />

cinema. E das peripécias do comandante Garcez, aquele<br />

piloto da antiga Varig que, por pura barbeiragem, derrubou<br />

um Boeing 737, repleto de passageiros, na floresta do Mato<br />

Grosso do Sul, acabando com um bocado de gente... Pois é,<br />

esse motor de buscas, o Google, tem arquivado todas essas<br />

passagens da vida passada e uma infinidade de outras, do<br />

momento atual.<br />

Esse sítio eletrônico, apesar de americano, é adorado por<br />

todos. Está engajado no cotidiano do povo asiático, europeu,<br />

americano, africano e da Oceania. Isso mesmo! Em<br />

todo local em que existe vida humana, ele está presente.<br />

Independentemente de credo, língua ou cor, esta marca poderosa<br />

é presença viva no seu computador, tablet ou smartphone.<br />

Nos anos 70 do século passado, o gênio musical John<br />

Lennon cometeu a asneira de declarar que a sua banda, The<br />

Índice<br />

106 / 58


Beatles, era mais famosa e conhecida do que Jesus Cristo.<br />

Na época deu reboliço, e muitos fãs fizeram vista grossa ao<br />

compositor e cantor aclamado mundialmente. Hoje o Google<br />

serve todas as tribos e religiões e nem se gaba por isso.<br />

A sua notoriedade e sua extrema importância tornam o sítio<br />

imprescindível na vida de todo cidadão do planeta.<br />

Quem quer saber o significado de qualquer coisa, data,<br />

ou evento e, também, de qualquer fato, por mais insignificante<br />

que o seja, é só fazer a consulta. O nosso anjo da<br />

guarda da tecnologia e do acesso fácil à informação responde<br />

com precisão, na hora, a qualquer coisa. Até na área<br />

da famosa cultura inútil. Por essa e tantas outras é que<br />

nesse portal também se pode subtrair, copiar e plagiar,<br />

desde simples trabalhos para o ensino fundamental, até<br />

teses de mestrado e doutorado, acompanhadas de recheios<br />

ao gosto do freguês, e sem a necessidade de ir ao forno convencional<br />

ou de micro-ondas. Depende apenas da cara de<br />

pau do plagiador.<br />

Sempre fui péssimo em datilografia, horoscopia e quiromancia.<br />

Jamais consegui a façanha de dedilhar a máquina<br />

com todos os dez dedos das mãos que Deus nos deu. No<br />

máximo, até hoje, consigo tamborilar o teclado com o indicador<br />

e o médio de cada mão, criando uma reserva técnica<br />

de seis dedos, inúteis e fora de uso na lida diária nos teclados<br />

da informática.<br />

Quanto às minhas previsões e avaliações dos signos e do<br />

zodíaco, sempre foram péssimas e estapafúrdias. Meu turbante<br />

de astro foi para o beleléu bem antes do presságio da<br />

derrota da Seleção Canarinho, na Copa de 1978.<br />

Em contraposição à minha presciência furada, seu Google<br />

sempre tem respostas e soluções às pencas para curar o mau<br />

olhado, a calvície, a dor nos quartos, as doenças do amor,<br />

o bicho-de-pé, a lêndea e as promessas não cumpridas. E<br />

apresenta, de quebra, vasta literatura complementar de incentivo<br />

à plantação de joão-gomes, tamarindo, vinagreira,<br />

cânhamo, bombom da roça e mastruço, para quem estiver<br />

disposto a se aventurar no agronegócio da agricultura<br />

familiar.<br />

Índice<br />

107 / 58


Noções de criação de jaçanã, jurará, tatu, cotia e anta são<br />

itens suplementares acessados na mesma pesquisa. E se o<br />

internauta requerer aprendizado para cultivar outras espécies<br />

exóticas e proibidas, é só consultar a empresa on-line,<br />

que ela não pestaneja.<br />

Diligenciar a vida pública nacional está na moda. Por esta<br />

fantástica via, é possível identificar o salário de qualquer<br />

barnabé, edil ou alcaide da capital e do interior. Como, por<br />

exemplo, salientou um dileto amigo, satisfeitíssimo ao saber<br />

o “pomposo ordenado” do seu predileto opositor político.<br />

Tudo está escancarado neste fofoqueiro portal.<br />

O contato diário com este meio eletrônico acabou com a<br />

mania de guardar revista velha. Agora esse tipo de publicação<br />

só se encontra em consultório de dentista e em antessala<br />

de empresa de plano de saúde, local frequentado<br />

apenas por pobre coitado necessitando de autorização para<br />

qualquer consulta médica ou exame laboratorial.<br />

Mas, como da vida nada se leva a não ser as triviais aporrinhações<br />

e o eterno zelo para manter a vida atualizada e<br />

dentro dos padrões da indiferença alheia, como tão bem<br />

afirmou o grande pensador do átrio da Feira da Praia Grande,<br />

o inesquecível Basílio, nada nos resta a acrescentar,<br />

senão atualizar as nossas citações no www.google.com.br.<br />

Ou como sempre falou o intérprete da praça João Lisboa,<br />

Rei dos Homens, “doce só se for de tamarinho e refresco<br />

inigualável é o de jaca”. Haja paladar e estômago para digerir<br />

uma dupla de frutas tão extravagantes. Desse modo,<br />

assim “o mundo gira e a Lusitana roda”, antológico lema<br />

publicitário divulgado em placa de neon, da cidade do Rio<br />

de Janeiro.<br />

“Très exotique” também foi a expressão utilizada pelos<br />

franceses que desembarcaram em 1612, aqui na terra dos<br />

papagaios amarelos. Fascinados pela exuberante e rica variedade<br />

de nossas frutas, a numerosa força expedicionária<br />

da França Equinocial se esbaldou nestas plagas. O fidalgo<br />

gaulês Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière,<br />

ao longo de três anos de permanência na cidade, deve ter<br />

aproveitado ao máximo essas coisas raras e desconhecidas<br />

dos europeus.<br />

Índice<br />

108 / 58


Neste sítio de busca podemos encontrar igualmente similitudes<br />

com sinais da existência de coisas de suma importância,<br />

tais como conhecer as normas e procedimentos para<br />

alistamento na Legião Estrangeira; o marco regulatório necessário<br />

para a eficiência das agências reguladoras nacionais<br />

e a convenção para fabricação ilícita das cópia-piratas.<br />

Se você quiser ilustrar mais ainda a sua cultura, estão disponíveis,<br />

com fácil acesso, detalhes das carreiras de especialista<br />

em logística de alimentos e de distribuidor de produtos<br />

alternativos de alta rotatividade – os populares garçom<br />

e camelô – e o curso prático de empobrecimento ilícito para<br />

quem quer levar vantagens em concursos e nos vestibulares.<br />

Se você não se der por satisfeito, não desanime nem entre<br />

em paranoia, afinal de contas, o <strong>Seu</strong> Google sabe tudo. Basta<br />

selecionar a manha pretendida e apertar a tecla. Prontinho!<br />

Então ele aponta algum rumo ou até uma proposição<br />

qualquer, com fundamentação, argumentação e até um<br />

processo discursivo a perder de vista, de duas mil páginas<br />

ou mais. Quem determina a extensão é você.<br />

A sabedoria aponta para a busca da fonte da felicidade.<br />

Nela é emanada a luz maior que ilumina a nossa vida. Para<br />

quem ainda não encontrou as suas coordenadas, não desanime:<br />

procure <strong>Seu</strong> Google e pronto: logo, logo, a lâmpada<br />

se acenderá no fim do túnel e um caminho será indicado.<br />

É fantástico. É sobrenatural e inimaginável a força que<br />

a ferramenta possui para assessorar o seu conhecimento<br />

pretendido. E ainda mais: acendendo a luz no Google, a iluminação<br />

é de graça. Diferentemente do clarão da lâmpada<br />

da sua casa que é cobrada, todo mês, pela Cemar.<br />

Antônio Nelson Faria<br />

Jornalista.<br />

Índice<br />

109 / 58


Editor: Jorge Murad<br />

Edição: Instituto <strong>Geia</strong><br />

Gerente Executiva: Josilene Maia<br />

Editoração Eletrônica: Aline Durans e<br />

Raimundo Queiroz (estagiário)<br />

Fotografia: Albani Ramos<br />

Desenvolvedor Web: Helder Maia<br />

Colaboradores: Álvaro Lima, Antônio Nelson Farias, João Dias<br />

Rezende Filho, Ricardo Laender Perez e Sebastião Moreira Duarte.<br />

<strong>Plural</strong> é uma publicação bimensal editada pelo Instituto <strong>Geia</strong>,<br />

localizada na Av. Cel.Colares Moreira, nº 1, Q. 121, sala 102,<br />

São Luís–MA CEP 65.075-440 Fonefax: +55 98 3227 6655.<br />

contato@geiaplural.org.br<br />

www.geiaplural.org.br<br />

ISSN: 2238-4413<br />

Índice<br />

EXPEDIENTE<br />

As opiniões e conceitos emitidos pelos autores são de exclusiva<br />

responsabilidade dos mesmos, não refletindo a opinião da revista<br />

nem do Instituto <strong>Geia</strong>. Sua publicação tem o propósito de estimular<br />

o debate e refletir as diversas opiniões do pensamento atual.<br />

110 / 58


EMPRESAS ASSOCIADAS<br />

Agropecuária e Industrial Serra Grande<br />

Alpha Máquinas e Veículos do Nordeste<br />

ALUMAR<br />

Atlântica Serviços Gerais<br />

Bel Sul Administração e Participações<br />

CEMAR - Companhia Energética do Maranhão<br />

CIGLA - Cia. Ind. Galletti de Laminados<br />

Ducol Engenharia<br />

Grupo Mateus<br />

Lojas Gabryella<br />

Mardisa Veículos<br />

Moinhos Cruzeiro do Sul<br />

Niágara Empreendimentos<br />

Oi<br />

Rápido London<br />

SempreVerde<br />

Televisão Mirante<br />

UDI Hospital<br />

VALE<br />

Índice<br />

111 / 58


Índice<br />

geiaplural.org.br<br />

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