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O Globo, 05/11/1954 - Geia Plural

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APRESENTAÇÃO<br />

O dia 22 de março de 2012 marca o bicentenário de nascimento de João<br />

Francisco Lisboa. Aluno de Francisco Sotero dos Reis, “afamado latinista e gramático<br />

exigente”, torna-se um dos mais aguerridos jornalistas do seu tempo. Funda o<br />

jornal O Brasileiro, em 1832; reedita o Farol Maranhense, após a morte de José<br />

Cândido de Morais e Silva, seu editor. Em seguida, redige o Eco do Norte, Crônica<br />

Maranhense e Publicador Maranhense. Após breve passagem como Secretário do<br />

Governo Provincial e Deputado à Assembleia e na Corte, volta ao jornalismo.<br />

Esta edição presta homenagem a Lisboa, publicando um texto de sua<br />

autoria sobre o Teatro Artur Azevedo, e artigos do Prof. Antônio Martins de Araújo,<br />

presidente da Academia Brasileira de Filologia e membro da Academia Maranhense<br />

de Letras.<br />

Sebastião Moreira Duarte, Ricardo Leão, Álvaro Lima e José Neres também<br />

colaboram nesta edição.<br />

Jorge Murad<br />

Presidente do Conselho Deliberativo


Vivendo aqui e lá: como os<br />

imigrantes estão criando<br />

espaços transnacionais que<br />

transformam comunidades e<br />

nações<br />

Álvaro Lima 4<br />

A eleição de Josué Montello<br />

para a Academia Brasileira<br />

de Letras<br />

José Neres 50<br />

Francisco Sotero dos<br />

Reis recontextualizado<br />

Antônio Martins de Araújo<br />

<strong>11</strong>7<br />

A ética do cristianismo<br />

Sebastião Moreira Duarte 24<br />

Teatro de São Luís<br />

João Lisboa 69<br />

ÍNDICE<br />

NÚMERO 3 - ABRIL/MAIO 2012<br />

Uma Atenas sem Panteões<br />

Ricardo Leão 40<br />

Ecos da vida e importância<br />

da obra histórica do<br />

maranhense João Francisco<br />

Lisboa no segundo centenário<br />

de seu nascimento<br />

Antônio Martins de Araújo 95<br />

Editor: Jorge Murad; Edição: Instituto <strong>Geia</strong>; Capa: Faroldigital<br />

Fotografia: Albani Ramos; Webmaster: Helder Maia; Colaboradores:<br />

Álvaro Lima, Antônio Martins de Araújo, José Neres, Ricardo Leão,<br />

Sebastião Moreira Duarte.<br />

Capa: reprodução de retrato de J. F. Lisboa - Obras de João Francisco<br />

Lisboa (Coleção Documentos Maranhenses - AML)<br />

<strong>Plural</strong> é uma publicação bimensal editada pelo Instituto <strong>Geia</strong>,<br />

localizada na Av. Cel.Colares Moreira, nº 1, Q. 121, sala 102,<br />

São Luís–MA CEP 65.075-440 Fonefax: +55 98 3227 6655<br />

contato@geiaplural.org.br<br />

As opiniões e conceitos emitidos pelos autores são de exclusiva<br />

responsabilidade dos mesmos, não refletindo a opinião da revista<br />

nem do Instituto <strong>Geia</strong>. Sua publicação tem o propósito de estimular o<br />

debate e refletir as diversas opiniões do pensamento atual.


Eu sou um brasileiro morando na América, mas minha vida é mais do<br />

que apenas a vida de um imigrante. Sou um dos milhões de imigrantes que hoje<br />

vivem vidas transnacionais. Moramos, trabalhamos, socializamos, nos divertimos,<br />

e fazemos política nos nossos países de origem e destino. Estamos aqui e lá,<br />

diferentemente de gerações passadas que deixaram as suas casas para nunca<br />

retornar.<br />

VIVENDO AQUI E LÁ:<br />

como os imigrantes estão criando espaços transnacionais<br />

que transformam comunidades e nações.<br />

Índice<br />

Álvaro Lima<br />

São Luís/MA<br />

4 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


A diferença entre imigrantes e<br />

transnacionais está espelhada na<br />

história da minha própria família.<br />

Cerca de 100 anos atrás, meu avô<br />

emigrou da Espanha para o Bra-<br />

sil. Deixou sua família para trás e<br />

nunca retornou à sua vila, Ponteve-<br />

dra, na Galícia. Como a maioria dos<br />

imigrantes daquela época, sua úni-<br />

ca opção era assimilar a cultura de<br />

seu novo país. Seus filhos – minha<br />

mãe, tios e tia – cresceram falando<br />

o português e nunca aprenderam<br />

o espanhol. Suas experiências com<br />

a antiga cultura de meu avô estava<br />

limitada à paella aos domingos, al-<br />

gumas poesias de Rosália Castro, e<br />

à celebração anual do 12 de Outu-<br />

bro, o dia da Raça.<br />

Aquilo era naquele tempo.<br />

Hoje, a tecnologia, economia, de-<br />

mografia, política e fatores cultu-<br />

rais têm acelerado de forma cres-<br />

cente a imigração transnacional.<br />

Enquanto imigrantes transnacio-<br />

Índice<br />

nais, nos envolvemos em atividades<br />

além-fronteiras, e através destas<br />

atividades construímos “campos<br />

sociais” relativamente estáveis,<br />

duráveis e densamente interliga-<br />

dos que atrelam nossos países de<br />

origem e destino, através da cir-<br />

culação de ideias, informações,<br />

produtos e dinheiro, além do mo-<br />

vimento de pessoas.<br />

Em qualquer momento, esta-<br />

mos firmemente assentados num<br />

lugar particular – Boston, por<br />

exemplo –, mas nossas vidas diá-<br />

rias estão vinculadas e dependen-<br />

tes de pessoas e recursos localiza-<br />

dos em outros países.<br />

Quando estou em Boston, in-<br />

terajo frequentemente com minha<br />

família, amigos e colegas no Brasil<br />

por telefone, e-mail, ou Skype, as-<br />

sim como muitos outros imigrantes<br />

independentemente das suas clas-<br />

ses sociais. Assim como eles, tenho<br />

conta bancária e investimentos aqui<br />

5 / 125


e no Brasil. Diferentemente de muitos deles,<br />

como um residente permanente, posso viajar<br />

para o Brasil sem receio de não poder retor-<br />

nar. Porque sou casado com uma canadense,<br />

meus dois filhos, ambos nascidos nos Estados<br />

Unidos, têm três nacionalidades.<br />

Vivo num espaço social transnacional, as-<br />

sim como muitos dos brasileiros, indianos, me-<br />

xicanos, equatorianos, cabo-verdianos, além<br />

de outros provenientes de países diversos. Pes-<br />

quisas sociológicas, incluindo as que tenho re-<br />

alizado, mostram que uma crescente fração dos<br />

imigrantes – milhões de pessoas que vivem nos<br />

Estados Unidos e dezenas de milhões em todo<br />

o mundo - vivem vidas transnacionais. Em-<br />

bora os imigrantes com maior padrão de vida<br />

sejam mais propensos a atividades transnacio-<br />

nais, é cada vez maior a proporção de imigran-<br />

tes de baixa renda que também vivem em es-<br />

paços transnacionais. Estes espaços englobam<br />

também dezenas de milhões de não imigrantes<br />

que são afetados por essas ações. Por exemplo,<br />

muitos imigrantes transnacionais têm fami-<br />

liares no seu país de origem que dependem de<br />

remessas de dinheiro para a sua subsistência e<br />

Índice<br />

“Vivo num<br />

espaço social<br />

transnacional,<br />

assim como muitos<br />

dos brasileiros,<br />

indianos,<br />

mexicanos,<br />

equatorianos,”...<br />

6 / 125


são influenciados pelas culturas dos<br />

países de residência daqueles no seu<br />

convívio.<br />

A minha experiência é diferen-<br />

te daquela dos imigrantes de outras<br />

nações. No Brasil, as condições so-<br />

ciais e econômicas e as regras de sa-<br />

ída são diferentes das de outros pa-<br />

íses como o México, Coreia do Sul,<br />

China, Filipinas e Índia. A diáspo-<br />

ra brasileira é mais recente do que<br />

a desses países. E as suas regras de<br />

imigração permitem que seus cida-<br />

dãos sejam cidadãos de outras na-<br />

ções, algo que a Coréia, por exem-<br />

plo, proíbe. Essas diferenças entre<br />

as nações certamente afetam a ma-<br />

neira como os imigrantes transna-<br />

cionais vivem e como eles percebem<br />

sua própria condição.<br />

Transnacionalismo é uma ten-<br />

dência crescente na vida global. E, à<br />

medida que este cresce e se espalha,<br />

cria novas dinâmicas que desafiam o<br />

ideal de assimilação, frustra o pensa-<br />

Índice<br />

mento político mesquinho de Estado-<br />

-Nação homogêneo e mono-cultural,<br />

e reforça a horizontalidade da econo-<br />

mia mundial.<br />

Quem são os imigrantes<br />

transnacionais<br />

Os perfis que surgem dos imi-<br />

grantes transnacionais mostram o<br />

quanto eles são diferentes dos imi-<br />

grantes de um século atrás. Naquela<br />

época, famílias imigrantes carrega-<br />

vam um álbum de fotos e um punha-<br />

do de receitas para rememorar o ve-<br />

lho país. Hoje, eles têm uma página<br />

no Facebook e ligam para casa pelo<br />

menos uma vez por semana gastan-<br />

do centavos. Checam as notícias dos<br />

seus países de origem pela televisão<br />

via satélite. Vão para casa nas férias<br />

quando encontram preços bons no<br />

Travelocity ou no Expedia. Quando<br />

estão nos seus países de origem, po-<br />

dem visitar a clínica ou escola que aju-<br />

daram a construir via investimentos<br />

7 / 125


Centro Histórico de São Luís/MA<br />

realizados por suas associações co-<br />

munitárias. Esses tipos de atividades<br />

realizadas com frequência e regulari-<br />

dade caracterizam a vida transnacio-<br />

nal. As remessas de dinheiro são tal-<br />

vez o comportamento transnacional<br />

mais bem documentado. Por exem-<br />

plo, os imigrantes dos países em de-<br />

senvolvimento morando nos Esta-<br />

dos Unidos enviam cerca de US$ 150<br />

bilhões para suas famílias, amigos<br />

e comunidades de origem todos os<br />

Foto: Albani Ramos<br />

Índice<br />

anos. Claro que os imigrantes de um<br />

século atrás enviavam dinheiro para<br />

casa também, mas o que era uma<br />

gota, hoje é uma enxurrada, grande o<br />

suficiente para revigorar a economia<br />

de toda uma nação. As perspectivas<br />

de desenvolvimento de alguns países<br />

tornaram-se indissociavelmente li-<br />

gadas às atividades econômicas das<br />

suas respectivas diásporas. Remessa<br />

de dinheiro é uma atividade regular<br />

de muitos imigrantes. Em 2007, rea-<br />

lizei uma pesquisa que mostra que 83<br />

por cento dos brasileiros que enviam<br />

dinheiro em Massachusetts o fazem<br />

todos os meses, às vezes duas vezes<br />

por mês - uma média de US$ 875 por<br />

mês.<br />

A investigação revelou que as<br />

remessas são apenas a ponta do ice-<br />

berg transnacional. Quase dois ter-<br />

ços dos entrevistados disseram que<br />

telefonam para casa duas ou mais<br />

vezes por semana, por cerca de meia<br />

hora cada ligação. A grande maioria<br />

8 / 125


“... profissionais<br />

nascidos em outros<br />

países detêm 25%<br />

das empresas de<br />

economia mista,<br />

47% das empresas<br />

de capital privado<br />

e mais da metade<br />

de todos os novos<br />

empreendimentos<br />

no Vale do Silício.”<br />

assiste programas de televisão ou rádio trans-<br />

mitidos desde o Brasil. Quase três em cada qua-<br />

tro enviam ou recebem e-mails de amigos e fa-<br />

miliares que ficaram no Brasil. Quase metade<br />

compra alimentos e temperos brasileiros e um<br />

em cada cinco adquire vídeos, DVDs e CDs de<br />

música e filmes brasileiros. Mais de um quarto<br />

dos entrevistados têm poupanças e cerca de 7<br />

por cento têm financiamentos imobiliários no<br />

Brasil. Um terço envia dinheiro para a sua famí-<br />

lia no Brasil para cobrir empréstimos imobiliá-<br />

rios e estudantis, pensões e outros investimen-<br />

tos.<br />

Estes comportamentos não são exclusivos<br />

dos imigrantes brasileiros bem-sucedidos. Qua-<br />

se dois terços dos brasileiros entrevistados que<br />

enviam dinheiro para o Brasil ganham menos<br />

de US$ 35,000 por ano, 62 por cento deles li-<br />

gam para casa duas ou mais vezes por semana e<br />

47 por cento das pessoas que não concluíram o<br />

ensino fundamental fazem uso da internet.<br />

Outras pesquisas têm apontado tendên-<br />

cias similares. Cerca de dois terços dos domi-<br />

nicanos imigrantes viajam para o seu país uma<br />

ou duas vezes por ano. Mais da metade dos<br />

Índice<br />

9 / 125


mexicanos que enviam dinheiro dos<br />

Estados Unidos o fazem todos os me-<br />

ses; cerca de 30 por cento têm conta<br />

poupança ou financiamento de imó-<br />

veis no México. Em 2007 um estudo<br />

relatou que 72 por cento dos latinos<br />

que vivem nos Estados Unidos en-<br />

viam dinheiro, viajam para casa ou<br />

telefonam para parentes, e 27 por<br />

cento possuem propriedades em seus<br />

países de origem.<br />

A realidade transnacional está<br />

também gerando impactos na políti-<br />

ca, tanto aqui como lá. Mais do que<br />

nunca, os imigrantes nos Estados<br />

Unidos cruzam fronteiras nacionais<br />

para votar, disputam cargos eleti-<br />

vos, contribuem para campanhas<br />

políticas, organizam comícios, par-<br />

ticipam em associações de ajuda as<br />

suas cidades de origem, sindicatos e<br />

igrejas. Por causa disto, políticos de<br />

outros países competem com gover-<br />

nadores e prefeitos na América pelo<br />

dinheiro que os imigrantes investem<br />

Índice<br />

em campanhas políticas. Boston e<br />

Nova Iorque, onde os partidos polí-<br />

ticos da República Dominicana têm<br />

comitês, são paradas obrigatórias<br />

para os candidatos dominicanos à<br />

Presidência da República. De acor-<br />

do com algumas estimativas, os do-<br />

minicanos arrecadam de 10 a 15 por<br />

cento dos fundos de campanha nos<br />

Estados Unidos e políticos domini-<br />

canos acreditam que a opinião dos<br />

imigrantes transnacionais influen-<br />

cia o pensamento dos dominicanos<br />

que ficaram no país. A influência dos<br />

transnacionais afeta políticos ameri-<br />

canos também. Quando Rudy Giulia-<br />

ni era prefeito de Nova York, viajava<br />

regularmente para Santo Domingo,<br />

capital da República Dominicana,<br />

em campanha eleitoral.<br />

Em Chicago, José Gutierrez, lí-<br />

der político mexicano-americano,<br />

detém influência nos Estados Unidos<br />

e no México. “Uma manhã”, relatou<br />

o Chicago Tribune, em abril de 2007,<br />

10 / 125


“ele revela um plano de mais serviços<br />

para imigrantes em Illinois como Di-<br />

retor do Gabinete de Políticas de De-<br />

fesa para Novos Americanos. Na noi-<br />

te seguinte, ele estava no seu estado<br />

de origem, Michoacan, reunido com<br />

partidários para escolher candidatos<br />

ao Congresso mexicano.” Gutierrez,<br />

que chegou em Chicago em 1986, diz<br />

que a política transnacional parte de<br />

uma nova consciência mexicana que<br />

transcende países e força mudanças<br />

em ambos os lados da fronteira. “O<br />

conceito Estado-nação está mudan-<br />

do”, ele disse ao Tribune. “Você não<br />

tem que dizer ‘eu sou mexicano’, ou<br />

‘eu sou americano.’ Você pode ser um<br />

bom cidadão mexicano e um bom ci-<br />

dadão americano, sem que haja um<br />

conflito de interesse. A soberania é<br />

flexível.”<br />

A política transnacional se es-<br />

tende ao exercício de mandato e<br />

voto além das fronteiras nacionais.<br />

Em 1997, Jésus Galvin, um agente<br />

Índice<br />

de viagens colombiano que vive em<br />

Hackensack, New Jersey, onde era<br />

vereador, disputou uma vaga ao Se-<br />

nado da Colômbia. Se eleito (ele não<br />

foi), Galvin planejava exercer fun-<br />

ções simultaneamente em Bogotá e<br />

Hackensack. Quando um mexicano<br />

dono de um restaurante em Chicago<br />

ajudou a construir novas estradas e<br />

a montar novos negócios em Telolo-<br />

apan, no estado mexicano de Guer-<br />

rero, a população da cidade o elegeu<br />

prefeito com a grande maioria dos<br />

votos. Os imigrantes da Colômbia,<br />

República Dominicana e do Brasil<br />

podem votar nas eleições nacionais<br />

em postos de votação montados nos<br />

Estados Unidos pelos seus consula-<br />

dos.<br />

Transferências de ideias polí-<br />

ticas, ideologias e práticas de or-<br />

ganização fluem nas duas direções<br />

entre os Estados Unidos e os paí-<br />

ses de origem. Enquanto noções de<br />

eleições livres e justas, liberdade de<br />

<strong>11</strong> / 125


imprensa e o direito à representa-<br />

ção legal migram para o sul, traba-<br />

lhadores migrantes transnacionais,<br />

especialmente do México e Améri-<br />

ca Central, são a espinha dorsal da<br />

base sindical que permitiu organizar<br />

o Sindicato Internacional dos Traba-<br />

lhadores do Setor de Serviços (SEIU),<br />

por exemplo, para obter melhores<br />

salários e condições de trabalho para<br />

faxineiros. Mexicanos, brasileiros e<br />

haitianos transnacionais têm ajuda-<br />

do a revitalizar igrejas de varias de-<br />

nominações. Hoje, quase um quar-<br />

to dos latinos nos Estados Unidos<br />

identificam-se como protestantes ou<br />

membro de outra denominação cris-<br />

tã, incluindo Testemunhas de Jeová<br />

e Mórmons. Uma pesquisa em 2006<br />

relatava que os latinos católicos nos<br />

Estados Unidos - cerca de dois terços<br />

da população latina – tendem a acre-<br />

ditar muito mais do que os católicos<br />

americanos que as igrejas devem tra-<br />

tar de assuntos sociais e políticos e<br />

Índice<br />

veem a religião como um guia moral<br />

para o pensamento político.<br />

O transnacionalismo também<br />

penetra o mundo do comércio. O<br />

Conselho Americano de Competiti-<br />

vidade relatou em 2007 que profis-<br />

sionais nascidos em outros países<br />

detêm 25 por cento das empresas<br />

de economia mista, 47 por cento das<br />

empresas de capital privado e mais<br />

da metade de todos os novos em-<br />

preendimentos no Vale do Silício.<br />

Muitas dessas empresas não são pe-<br />

quenas lojas ou restaurante servin-<br />

do o mercado étnico, mas empresas<br />

operando nos mercados nacional e<br />

internacional, principalmente es-<br />

tes dos seus países de origem. Wi-<br />

Chorus em San José, Califórnia, é<br />

uma dessas empresas. O seu funda-<br />

dor, Rehan Jalil, nascido no Paquis-<br />

tão e educado nos Estados Unidos,<br />

criou uma empresa para desenvol-<br />

ver tecnologia de baixo custo – ban-<br />

da larga sem fio - para o mundo em<br />

12 / 125


desenvolvimento, começando com a<br />

Índia. Ele levantou US$ 25 milhões<br />

com investidores americanos. “Essa<br />

tendência,” relatou The Wall Stre-<br />

et Journal no final de 2007, “repre-<br />

senta a mais nova ligação do Vale do<br />

Silício com a Índia”, um modelo de<br />

negócio em que se produz nos Es-<br />

tados Unidos e se vende na Índia.<br />

O co-fundador da Bubble Motion<br />

Inc., que desenvolveu um sistema<br />

de mensagens para pessoas que não<br />

falam Inglês, com escritórios na Ca-<br />

lifórnia e em Singapura, é Sunil Cou-<br />

shik, um nativo da Índia e veterano<br />

empresário lá e nos Estados Unidos.<br />

A ReaMetrix Inc, com empregados<br />

nos Estados Unidos e Índia, foi fun-<br />

dada pelo indiano Dr. Bala Manian,<br />

um físico, engenheiro e empresário<br />

do Vale do Silício, para desenvolver<br />

testes de diagnóstico de baixo custo<br />

para a diabetes e outras doenças.<br />

Enquanto isso, um número cres-<br />

cente de imigrantes possuem ou in-<br />

Índice<br />

vestem em empresas nos seus países<br />

de origem. Por exemplo, 39 por cento<br />

das 289 empresas localizadas no par-<br />

que industrial-científico de Hsinchu,<br />

próximo a Taipei, foram iniciadas<br />

por engenheiros taiwaneses educa-<br />

dos nos Estados Unidos, com experi-<br />

ência no Vale do Silício. Setenta des-<br />

sas empresas possuem escritórios no<br />

Vale do Silício que se dedicam a con-<br />

tratar trabalhadores, adquirir tecno-<br />

logia ou capital e explorar oportuni-<br />

dades de negócios.<br />

Em abril de 2007, Pablo Maia,<br />

um imigrante brasileiro que lidera o<br />

Grupo Pablo Maia Imóveis, de Fra-<br />

mingham, Massachusetts, anunciou<br />

o lançamento de um condomínio<br />

de luxo Spazio Nobre, em Ipatinga,<br />

no Brasil, uma cidade de origem de<br />

muitos brasileiros imigrantes nos<br />

Estados Unidos. Para fugir da que-<br />

da do mercado imobiliário ameri-<br />

cano, a empresa de Maia, hoje, ven-<br />

de mais imóveis no Brasil, onde as<br />

13 / 125


cidades que enviam imigrantes vivem<br />

um crescimento imobiliário, estimu-<br />

lado pelas remessas de dinheiro dos<br />

imigrantes. A Construmex, fundada<br />

em 2001 pela gigante empresa mexi-<br />

cana produtora de cimento CEMEX,<br />

ajudou mais de 8.000 famílias mexi-<br />

canas que vivem nos Estados Unidos<br />

a comprar ou construir suas casas no<br />

México. Tendências semelhantes fo-<br />

ram registradas na Colômbia, Equa-<br />

dor e El Salvador. Desde meados da<br />

década de 1980, dominicanos que<br />

vivem no exterior têm representado<br />

60 por cento das vendas anuais de<br />

imóveis no seu país de origem.<br />

Principais forças propulso-<br />

ras do transnacionalismo<br />

O transnacionalismo não é ri-<br />

gorosamente um fenômeno novo.<br />

De 1870 a 1910, quase 80 por cento<br />

dos imigrantes italianos nos Estados<br />

Unidos eram homens, a maioria dos<br />

quais deixou para trás esposas, filhos<br />

Índice<br />

e parentes que, eventualmente, vie-<br />

ram para os Estados Unidos. O mes-<br />

mo aconteceu com os homens judeus.<br />

Muitas vezes eram pioneiros que pos-<br />

teriormente enviavam dinheiro para<br />

pagar a passagem de outros mem-<br />

bros da família. Entre 1900 e 1906,<br />

o Correio de Nova York enviou 12,3<br />

milhões de ordens de pagamento in-<br />

dividuais para terras estrangeiras.<br />

Mas o foco e a intensidade das ativi-<br />

dades transnacionais cresceram dra-<br />

maticamente. Na década de 1980, o<br />

fenômeno foi observado pela primei-<br />

ra vez por estudiosos, quando estava<br />

começando a ganhar escala. Hoje em<br />

dia, pesquisas em ciências sociais su-<br />

gerem que 15 por cento de todos os<br />

imigrantes são transnacionais. Vários<br />

fatores tecnológicos, econômicos, de-<br />

mográficos, políticos e culturais têm<br />

construído o caminho para o cresci-<br />

mento da imigração transnacional.<br />

Alguns são amplamente reconheci-<br />

dos, outros não.<br />

14 / 125


Inovação na comunicação e<br />

transporte<br />

Os avanços tecnológicos nesses<br />

setores têm reduzido o tempo, custo,<br />

e dificuldade de viajar, realizar liga-<br />

ções e transações internacionais. Os<br />

imigrantes podem manter contato<br />

mais frequente e mais próximo com<br />

sua sociedade originária, o que lhes<br />

permite manter e expandir contatos<br />

pessoais, sociais e econômicos. Hoje,<br />

os imigrantes podem pegar um avião<br />

ou fazer uma chamada telefônica<br />

para saber como as coisas estão em<br />

casa. Maxine Margolis, professora<br />

de antropologia na Universidade da<br />

Flórida, ilustra esse ponto: “Quando<br />

perguntei a um brasileiro, proprie-<br />

tário de uma loja de móveis em Ma-<br />

nhattan, morador de Nova York há<br />

muitos anos, como dizer ‘wine rack’<br />

em Português, ele ficou embaraçado<br />

quando não pôde lembrar a expres-<br />

são. Tão rapidamente como consul-<br />

tar um dicionário, ele discou para o<br />

Índice<br />

Brasil para perguntar a um amigo.<br />

A comunicação mais fácil e ba-<br />

rata facilita o acesso a informações<br />

críticas. Quando o presidente pa-<br />

quistanês Pervez Musharraf fechou<br />

os jornais do país em novembro de<br />

2007, Muhammad Chaudrey, um ta-<br />

xista paquistanês que mora na região<br />

de Detroit, enviou e-mails para a sua<br />

família em Lahore com reportagens<br />

americanas sobre os últimos aconte-<br />

cimentos em seu país. Em um esforço<br />

mais amplo de luta contra a censura,<br />

os imigrantes chineses nos Estados<br />

Unidos criaram uma estação de tele-<br />

visão via satélite, New Tang Dynasty<br />

Television.O canal transmite progra-<br />

mas em chinês e inglês focados na<br />

promoção da democracia na China.<br />

cional<br />

O aumento do nível educa-<br />

O aumento considerável dos<br />

níveis de educação no mundo in-<br />

teiro têm servido para expandir os<br />

15 / 125


mercados de trabalho além-frontei-<br />

ras. A medida em que os países em<br />

desenvolvimento expandem o núme-<br />

ro de pessoas com alto nível educacio-<br />

nal, esses indivíduos ganham oportu-<br />

nidades de migrar para empregos e<br />

empresas em países desenvolvidos.<br />

“A migração internacional de pesso-<br />

as com formação universitária é algo<br />

que tem crescido dramaticamente ao<br />

longo do tempo,” afirma Elaine Fiel-<br />

ding, pesquisadora da Universidade<br />

de Michigan. Mais de 53 por cento<br />

dos imigrantes estrangeiros que vie-<br />

ram para a área de Detroit em 2004<br />

e 20<strong>05</strong> tinham, no mínimo, bachare-<br />

lado.”<br />

De acordo com o Institute of<br />

International Education, cerca de<br />

582.000 estrangeiros estudaram em<br />

“community colleges,” Universidades<br />

e escolas de pós-graduação em todo o<br />

país entre 2006 e 2007. Mais do que<br />

um quarto deles veio da Índia e Chi-<br />

na.<br />

Índice<br />

A concorrência global para tra-<br />

balhadores qualificados nos setores<br />

de informação, comunicação e tec-<br />

nologia criou uma abundância de<br />

oportunidades para as pessoas com<br />

o adequado conjunto de habilidades.<br />

Os governos nacionais estão facili-<br />

tando a concessão de vistos de traba-<br />

lho, introduzindo incentivos fiscais e<br />

tomando outras medidas para atrair<br />

esses talentos mundo afora. Nos Es-<br />

tados Unidos, corporações líderes<br />

de mercado têm negociado para que<br />

o governo federal alivie as restrições<br />

à contratação de trabalhadores alta-<br />

mente qualificados que foram impos-<br />

tas após <strong>11</strong>/9. Esses trabalhadores são<br />

extremamente móveis e formam um<br />

importante contingente de transna-<br />

cionais. Ao perseguirem oportunida-<br />

des de trabalho, eles criam circulação<br />

de investimentos, trabalho e família<br />

além-fronteiras.<br />

16 / 125


Liberalização de economias<br />

em desenvolvimento e o cresci-<br />

mento do mercado de trabalho<br />

em economias desenvolvidas<br />

Nas nações em desenvolvimen-<br />

to, a industrialização de setores eco-<br />

nômicos tradicionais cria grandes<br />

contingentes de subempregados. Es-<br />

sas economias estão cada vez mais<br />

ligadas às cadeias de abastecimento<br />

e distribuição de empresas interna-<br />

cionais – as pontes econômicas para<br />

emigração. Ao mesmo tempo, o de-<br />

clínio da indústria manufatureira e<br />

o crescimento do setor de serviços<br />

nas economias ocidentais transfor-<br />

maram suas estruturas ocupacionais<br />

e de rendimentos. O crescimento na<br />

oferta de emprego de baixo salário e<br />

da proporção de trabalhos temporá-<br />

rios e de meia jornada, assim como a<br />

expansão dos setores financeiro, de<br />

seguros, imobiliário, varejo e servi-<br />

ços estão criando oportunidades para<br />

imigrantes no topo e na base da pirâ-<br />

Índice<br />

mide ocupacional.<br />

À medida que a globalização ex-<br />

pande a classe média em muitos pa-<br />

íses não-ocidentais, mais mercados<br />

em potencial são criados para em-<br />

presas dos países desenvolvidos. Al-<br />

guns desses mercados são estimula-<br />

dos por atividades transnacionais. O<br />

Citigroup Inc., por exemplo, a maior<br />

entidade mundial de serviços finan-<br />

ceiros, firmou recentemente uma<br />

parceria com uma empresa de teleco-<br />

municações da Malásia para oferecer<br />

serviços que permitem a trabalhado-<br />

res estrangeiros naquele país enviar<br />

dinheiro usando seus telefones celu-<br />

lares.<br />

Muitos países desenvolvidos<br />

se tornaram dependentes da<br />

imigração para contrariar o de-<br />

clínio de suas populações<br />

Sem imigração, os países oci-<br />

dentais não são capazes de manter<br />

a taxa de crescimento demográfica<br />

17 / 125


necessária para manter o crescimento<br />

econômico. Pesquisadores canaden-<br />

ses calcularam que em 20<strong>11</strong>, os imi-<br />

grantes foram responsáveis por todo<br />

o crescimento da mão de obra do país.<br />

Hoje, a migração corresponde a 60<br />

por cento do crescimento econômi-<br />

co dos países ocidentais. Muitas das<br />

maiores cidades americanas, como<br />

Nova Iorque e Los Ângeles, assim<br />

como cidades menores, dependem<br />

da imigração para ter crescimento<br />

populacional e desenvolvimento eco-<br />

nômico. Os imigrantes são responsá-<br />

veis pelo crescimento econômico nos<br />

centros urbanos, afirma uma pesqui-<br />

sa publicada pelo Center for an Ur-<br />

ban Future: “empresários imigrantes<br />

altamente qualificados estão criando<br />

amplas ‘economias de enclaves’ com<br />

supermercados, clínicas de saúde,<br />

bancos, escritórios de advocacia, em-<br />

preendimentos de alta tecnologia e<br />

outras empresas”.<br />

O constante fluxo de imigrantes<br />

Índice<br />

sustenta as atividades econômicas<br />

transnacionais, como remessas de<br />

dinheiro, consumo de produtos dos<br />

seus países de origem, ligações telefô-<br />

nicas e viagens internacionais, assim<br />

como atividades políticas e culturais<br />

transnacionais. À medida que novos<br />

imigrantes chegam aos Estados Uni-<br />

dos ou outros países ocidentais, eles<br />

criam novas ligações com seus países<br />

de origem, aumentando assim as co-<br />

nexões transnacionais.<br />

Mudanças nas regras de en-<br />

trada e saída para os imigrantes.<br />

Transformações políticas globais<br />

e novos regimes legais internacionais<br />

estão mudando as regras de entrada<br />

e saída que os Estados-nação estabe-<br />

lecem para a imigração. Descoloniza-<br />

ção, a queda do comunismo, a ascen-<br />

são dos Direitos Humanos forçaram<br />

nações a prestar atenção aos direitos<br />

individuais, independentemente de<br />

se tratar de cidadãos nacionais ou<br />

18 / 125


estrangeiros. Cada nação estabele-<br />

ce o contexto para saída de seus ci-<br />

dadãos e de entrada para migrantes.<br />

Essas condições legais, econômicas,<br />

sociais e políticas – incluindo direi-<br />

tos a cidadania e regras comerciais,<br />

padrões de inclusão social, discrimi-<br />

nação e políticas externas – impedem<br />

ou facilitam o movimento além-fron-<br />

teiras e as atividades transnacionais.<br />

Alguns países começaram a mudar<br />

as suas políticas para acomodar as<br />

realidades transnacionais. O Méxi-<br />

co e as Filipinas, por exemplo, estão<br />

desenvolvendo políticas que definem<br />

sua população emigrante como par-<br />

te integrante do seu Estado-nação.<br />

Alguns países promovem ativamente<br />

a “reincorporação transnacional” de<br />

seus emigrantes para maximizar seus<br />

investimentos e as remessas. Ao mes-<br />

mo tempo, alguns países receptores<br />

têm expandido significativamente os<br />

direitos e prerrogativas dos imigran-<br />

tes. A complexidade destas questões<br />

Índice<br />

tem sido evidente no caso dos Estados<br />

Unidos, onde esforços para aprovar<br />

uma reforma na lei federal de imigra-<br />

ção até agora não obtiveram suces-<br />

so. O debate tem sido dominado pela<br />

ideologia anti-imigrante e preocu-<br />

pações de segurança, em detrimento<br />

de políticas efetivas e dos mais de 12<br />

milhões de imigrantes que vivem em<br />

condições precárias.<br />

O aumento da hibridação<br />

cultural<br />

A globalização da cultura e da<br />

identidade enfraquece tradicionais<br />

tensões entre o que é o próprio e o<br />

que é estrangeiro, e promove hibrida-<br />

ção cultural, que engloba ambos. Fo-<br />

mentada pelo consumo global, produ-<br />

ção e imigração, a hibridação cultural<br />

está competindo cada vez mais com<br />

culturas dominantes enraizadas em<br />

um único local e um conjunto de tra-<br />

dições. Nestor Garcia Canclini, um<br />

dos mais conhecidos e inovadores<br />

19 / 125


acadêmicos culturais na América La-<br />

tina, assinala que cultura cada vez<br />

mais é feita de material a partir daqui<br />

e de lá: “Eu ligo minha televisão, feita<br />

no Japão, e o que eu vejo é um filme<br />

mundial, produzido em Hollywood,<br />

feito por um diretor polonês, com<br />

assistentes franceses, atores de dez<br />

nacionalidades diferentes, em cenas<br />

filmadas em quatro países que tam-<br />

bém investiram na produção.” Moti-<br />

vados, em certa medida, pela difusão<br />

mundial da cultura americana, a hi-<br />

bridação, em muitos países, evolui de<br />

forma complexa, com contradições e<br />

fluxos de idas e vindas.<br />

“Em vez de criar uma única e<br />

aborrecida aldeia global, as forças<br />

da globalização estão, na realidade,<br />

encorajando a proliferação da di-<br />

versidade cultural,” afirma Michael<br />

Lynton, presidente e CEO da Sony<br />

Pictures Entertainment. Ele oferece<br />

a Sony como um caso: “o nosso es-<br />

túdio tem trabalhado com diretores<br />

Índice<br />

e atores na China, Índia, México, Es-<br />

panha e Rússia para fazer filmes que<br />

serão lançados em cada um desses<br />

mercados. “A empresa está produ-<br />

zindo séries originais de TV no Chile,<br />

Alemanha, Itália, Rússia e Espanha.<br />

Em vez de menos escolhas, há mais.<br />

E, ao invés de um mundo uniforme,<br />

americanizado, continua a haver um<br />

rico e vertiginoso leque de culturas.”<br />

Imigrantes transnacionais estão no<br />

centro desse processo – como “rein-<br />

terpretadores criativos” de cultura e<br />

transportadores além das fronteiras<br />

de modelos híbridos.<br />

As nações que enviam imigran-<br />

tes também sentem esse impacto<br />

cultural transnacional. Nestor Can-<br />

clini tem observado que, com 15 por<br />

cento de todos os equatorianos, e<br />

um décimo de todos os argentinos,<br />

colombianos, cubanos, mexicanos<br />

e salvadorenhos vivendo fora dos<br />

seus países, a América Latina não<br />

está completa no interior das suas<br />

20 / 125


fronteiras; suas culturas são mol-<br />

dadas em Los Angeles, Nova York e<br />

Madri. Uma pesquisa recente estabe-<br />

leceu a importância das “remessas so-<br />

ciais”, a transferência de significados<br />

sócio-culturais e as práticas que ocor-<br />

rem quando migrantes voltam a mo-<br />

rar ou visitam as suas comunidades<br />

de origem; quando não-imigrantes os<br />

visitam no país receptor; ou através<br />

de trocas de cartas, vídeos, e-mails<br />

e ligações telefônicas. David Fitzge-<br />

rald, um sociólogo da Universidade<br />

da Califórnia – Los Angeles, observa<br />

que os migrantes transnacionais de-<br />

safiam os ideais de identidade e fron-<br />

teiras de Estados-nação tanto no país<br />

onde moram como nos seus países de<br />

origem, com sua locomoção, por mo-<br />

rarem num país onde não possuem<br />

cidadania, e por serem cidadãos de<br />

um país onde não moram e, alternati-<br />

vamente, por reivindicar adesão a vá-<br />

rios países onde podem ser residen-<br />

tes, residentes em tempo parcial, ou<br />

Índice<br />

ausentes.<br />

A hibridação cultural, assim<br />

como outros aspectos do transnacio-<br />

nalismo, varia em frequência e pro-<br />

fundidade. Um dos fatores que molda<br />

os intercâmbios culturais é o contex-<br />

to de saída e entrada. Por exemplo,<br />

enquanto colombianos e dominica-<br />

nos veem de países da América La-<br />

tina e compartilham um idioma co-<br />

mum, seus contextos de saída e de<br />

acolhimento são muito diferentes,<br />

resultando em diferente padrões de<br />

incorporação na sociedade america-<br />

na. Pesquisas com imigrantes colom-<br />

bianos, que são na sua maioria bran-<br />

cos ou mestiços, mostram que eles se<br />

sentem menos discriminados que os<br />

dominicanos. Por outro lado, pesqui-<br />

sas realizadas entre dominicanos nos<br />

Estados Unidos constatou que eles<br />

são geralmente considerados como<br />

negros e discriminados enquanto tal.<br />

Quando um grupo de imigrantes<br />

encontra-se discriminado no país<br />

21 / 125


onde vive, seus integrantes geral-<br />

mente se unem e adotam uma pos-<br />

tura defensiva em relação ao país,<br />

de acordo com dados do Centro de<br />

Migração e Desenvolvimento da<br />

Universidade de Princeton. O grupo<br />

apela a símbolos de orgulho cultural<br />

trazidos de casa. Um bom exemplo<br />

disto é o grupo Guatemalteco Maia<br />

(Kanjobal), migrantes em Los Ange-<br />

les.<br />

Eles lidam com elevados níveis<br />

de discriminação via a revitalização<br />

e o reforço de formas tradicionais<br />

de identidade étnica através de um<br />

processo de transnacionalismo re-<br />

ativo. Quando, por outro lado, não<br />

existe a discriminação, as iniciativas<br />

transnacionais se tornam mais indivi-<br />

dualizadas e assumem formas típicas<br />

da classe média, tais como o Lions e<br />

o Kiwanis Clubs, e outras associações<br />

de caridade.<br />

Como as diferentes forças pro-<br />

pulsoras do transnacionalismo ope-<br />

Índice<br />

ram com intensidades variadas, jun-<br />

tamente com diferentes condições de<br />

saída e entrada, o transnacionalismo<br />

não é monolítico. Todavia, as forças<br />

econômicas, políticas e culturais que<br />

reforçam o transnacionalismo não<br />

vão desaparecer tão cedo. Estar aqui<br />

e lá veio para ficar.<br />

Porque eu nasci no Brasil, eu sou<br />

um “brasileiro”. Ter residência na<br />

América faz-me um “brasileiro-ame-<br />

ricano”. Viver e trabalhar em Boston<br />

me faz um “bostoniano.” E por ter<br />

crescido num país latino-americano,<br />

sou “latino.” Mas o que tudo isso sig-<br />

nifica num espaço transnacional? O<br />

que o transnacionalismo de milhões<br />

de imigrantes significa para as suas<br />

identidades, comunidades e países<br />

de origem? O que significa para uma<br />

América onde o censo americano rela-<br />

ta que, pela primeira vez, os sobreno-<br />

mes Garcia e Rodriguez encontram-se<br />

entre os 10 mais comuns e o sobreno-<br />

me Martinez está em <strong>11</strong>º lugar?<br />

22 / 125


À medida que o fenômeno transnacional muda a natureza da imigração, gera<br />

novas e espinhosas questões de política pública e cria novas oportunidades para<br />

inovadores sociais e empreendedores, ao mesmo tempo em que molda um espa-<br />

ço social que desafia o pensamento convencional sobre os imigrantes e o estado-<br />

-nação.<br />

Álvaro Lima<br />

Diretor de Pesquisas da Prefeitura de Boston e Diretor da organização não-governamental<br />

Innovations Network for Communities. De 1998 a 2004 foi Vice Presidente e Diretor de<br />

Pesquisas da Initiative for a Competitive Inner City – ICIC, uma organização nacional<br />

fundada em 1994 pelo Professor da Harvard Business School, Michael E. Porter.<br />

Índice<br />

23 / 125


Praça João Lisboa - São Luís/MA<br />

A éTIcA DO cRISTIANISmO 1<br />

Índice<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

Ele nunca usou uma frase que fizesse sua filosofia<br />

depender da ordem social em que viveu. Falou como alguém<br />

que tem consciência de que tudo é efêmero, inclusive as coisas<br />

que Aristóteles considerava eternas. [...] Jesus nunca fez sua<br />

moralidade depender da existência do Império Romano ou<br />

mesmo da existência do mundo. (G. K. Chesterton). 2<br />

O mundo moderno não é mau; sob determinados<br />

aspectos, o mundo moderno é, até, excessivamente bom.<br />

Podemos mesmo afirmar que ele está cheio das mais<br />

desregradas e desperdiçadas virtudes. [...] O mundo moderno<br />

está repleto de antigas virtudes cristãs que enlouqueceram.<br />

(G. K. Chesterton). 3<br />

1 - O autor precisa deixar bem claro que não está fazendo trabalho de teólogo ou de doutrinador religioso. Seu esforço é tão somente<br />

o de tentar apreender uma Filosofia e, a partir dela, uma Ética, na mensagem nuclear de Jesus de Nazaré. O fato, portanto, de não<br />

invocar a Cristo como uma divindade humanizada não manifesta nem crença nem descrença, assim como NÃO se dirige a fazer<br />

prosélitos ou a desfazer a fé de ninguém. Apenas seja relembrado que Teologia não é Filosofia. Tomar uma coisa pela outra, em<br />

substituição ou sobreposição, é cometer um reducionismo perigoso, qualquer que seja a perspectiva ou a finalidade com que se o<br />

faça.<br />

2 - O homem eterno (São Paulo: Mundo Cristão, 2010), p. 206.<br />

3 - Ortodoxia (Porto: Livraria Tavares Martins, 1974), p. 58.<br />

24 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


O Cristianismo como novidade civilizatória<br />

O corpus doutrinário do Cristianismo origina-se de Jesus, e foi guarda-<br />

do pelos livros do Novo Testamento 4 , transmitido pelo ensino apostólico (espe-<br />

cialmente por Paulo) e interpretado pelos Padres e Doutores da Igreja.<br />

Quase nada se sabe de Jesus, embora não pareça sensato negar-lhe exis-<br />

tência real. Sua vida envolve um mistério espantoso: ninguém, nem antes nem<br />

depois, deixou maior nome através dos séculos. Dos compatriotas seus contem-<br />

porâneos, nenhum seria sequer mencio-nado nas páginas da História, não fosse<br />

uma eventual associação com os feitos ou com a palavra dele. No entanto, esse<br />

homem incomum não escreveu livro, nem mesmo, do que terá sido pregação ori-<br />

ginalmente sua, se extrai um “sistema de ideias” que possa correr em paralelo ao<br />

dos grandes mestres do pensamento. Com toda evidência, sua intenção não era<br />

ensinar (com palavras), mas viver e, pela vida, dar exemplo. A rigor, sua verda-<br />

deera ele mesmo, o curso (o caminho) a fazer para alcançá-la era ele mesmo, e era<br />

como a dele mesmo a vida nova que adviria aos que se formassem por sua peda-<br />

gogia.<br />

Jesus teria sido galileu, daquela Galilaea gentium (a Galileia dos es-<br />

trangeiros), invadida por idólatras, mercadores materialistas “livres”, que eram<br />

o horror dos judeus (os habitantes da Judeia, a parte central da Palestina) e de<br />

sua ortodoxia monoteísta, repleta de escrúpulos ritualistas, dominada por uma<br />

elite religiosa presa a prescrições de rígido casuísmo legal, tão opressora quan-<br />

to os governantes romanos a quem estava aliada. Esse judaísmo de superfície,<br />

mas cheio de exigências tão descabidas o quanto implacáveis, girava em torno do<br />

4 - Não há esquecer-se, aqui, o Velho Testamento, o qual, porém, integra-se à Bíblia cristã como parte do legado judaico de que foi<br />

herdeiro o Cristianismo.<br />

Índice<br />

25 / 125


grupo dirigente do Tempo de Jerusalém, e no Templo (representação simbólica<br />

da Aliança de Deus com o “seu povo escolhido”) encontrava plena “justificação”<br />

para o mandonismo, a extorsão e a hipocrisia.<br />

O “Carpinteiro de Nazaré” pertenceria àquele segmento socioeconômico<br />

que ainda restava com alguma condição de “classe média”, numa Palestina de ter-<br />

ras pobres, devastada por invasões estrangeiras e pisoteada por tropas em guerra.<br />

Por seu espírito devoto, seu conhecimento da religião tradicional e por sentir na<br />

carne o contraste entre as “promessas de Deus” e o que sofria “o povo de Deus”<br />

por parte da teocracia de seu tempo, Jesus terá feito uma opção de vida comple-<br />

tamente “irregular”, que cedo ou tarde o colocaria em claríssimo e duríssimo con-<br />

fronto com os chefes religiosos centralizados em Jerusalém. Opção de vida, não<br />

de partidarismo político, pois o seu ponto de vista transcendia o momento histó-<br />

rico e o mando circunstancial, para enraizar-se nas fontes mais simples e remotas<br />

que levam à relação (religião) do ser humano com o Absoluto. Assim, desde logo<br />

percebe-se nas palavras e no comportamento de Jesus que ele não enfatiza rituais<br />

nem prega novo culto a Deus. Com relação à autoridade, não a desrespeita, mas<br />

não lhe dá maior “cartaz”, e até desobedece às leis, quando vê que, em face à im-<br />

posição legal (que é humana), a própria pessoa humana sai diminuída no que vale<br />

por si mesma, como o mais visível exemplar do que seja sagrado. Com tamanha<br />

coragem e clarividência, é ingenuidade imaginar que Jesus não tinha consciência<br />

da enrascada em que se metia e do fim sangrento que o aguardava. Coerente até o<br />

fim, ele não recuou em nada de seu caminho. E embora tenha sido um pregador –<br />

não hesitaríamos em dizer que muito a contragosto seu e contra a clara oposição<br />

dos seus familiares (Marc., VI,1-6; XIII, Mat., 54-58; Luc., IV, 28-30) –, um pro-<br />

feta entre milhares de profetas de “sinagogas disssidentes” (Eduardo Hoornaert)<br />

Índice<br />

26 / 125


de seu tempo – , a mensagem de Jesus causa assombro: nunca se viu nada tão<br />

singelo e, ao mesmo tempo, tão inusitado, com tamanha força de aliciamento e de<br />

exigência. Assombro maior ainda é sabermos que, vindo de uma pessoa comum,<br />

de um meio histórico-geográfico absolutamente insignificante, suas palavras fo-<br />

ram transformadas em doutrina de transformação e salvação. A novidade de sua<br />

mensagem terá força bastante para ombrear-se com a cultura grega e fundir-se a<br />

ela, e, mais tarde, submeter o Império Romano, estabelecendo uma nova civiliza-<br />

ção: a civilização greco-romano-judaica, ocidental-cristã.<br />

A “visão insólita” de Jesus<br />

Sócrates identificara virtude e conhecimento, resumindo toda a perfei-<br />

ção humana no autoconhecimento. Platão sustentara que a sabedoria se encontra<br />

no desapego total das coisas sensíveis e na contemplação das Ideias eternas. Aris-<br />

tóteles afirmara que a virtude consiste no conhecimento contemplativo. Jesus<br />

irá provar, com o próprio exemplo, que a perfeição da ética está em amarmos a<br />

Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Nesse amor du-<br />

plamente direcionado, compendia-se a Lei e os Profetas (as Escrituras Sagradas:<br />

todo e qualquer ensinamento válido), ou tudo o que, em sua linguagem específica,<br />

ele chamará de o Reino de Deus.<br />

Veja-se, antes de tudo, que aí – no amor ao próximo, posto no mesmo<br />

nível de exigência do amor a Deus – está uma proclamação de estupenda simpli-<br />

cidade, mas que reivindica a inversão de valores mais corajosa e mais difícil de<br />

processar-se no ser humano. Trata-se, em última análise, de recriar o homem,<br />

fazê-lo renascer sobre bases inteiramente inimaginadas (não por outra razão,<br />

Jesus, transformado no Cristo, será chamado de “segundo Adão” - Rom., V, 14 -,<br />

protótipo da nova humanidade), porque exigindo abrigo definitivo, voluntário e<br />

Índice<br />

27 / 125


livre, no interior de cada indivíduo. Só assim, ao manifestar-se, depois, nas ati-<br />

tudes e no comportamento exterior, tal amor não será um ato provisório de acei-<br />

tação intelectual, ou apenas um gesto su-perficial de condescendência e cortesia,<br />

uma filantropia vaga, uma atitude calculista de quem cede para ganhar simpatia<br />

ou simular bondade. Não: amor, preferência afetiva. Amor a Deus, que só se en-<br />

tende pelo amor ao próximo, sem restrição de espécie alguma, sem exceção de<br />

ninguém, nem mesmo do inimigo. Houve antes, acaso, proposta de implicação<br />

mais radical e mais revolucionária?<br />

– Para entendermos o alcance da revolução de Jesus, reflitamos que os<br />

judeus, embora se tomassem como o povo eleito de seu Deus, cultuavam-no com<br />

um medo imenso. O “Deus dos Exércitos”, que ia à frente das tropas israelenses e<br />

era garantia antecipada de derrota dos inimigos de seu povo, era uma divindade<br />

terrível e vingativa, até mesmo contra a sua gente. Seu nome não se podia pro-<br />

nunciar. Seu rosto não podia sequer desenhar-se. Na Bíblia, estava escrito que a<br />

Sabedoria principiava pelo temor a Deus;<br />

– Jesus trata a Deus com tal familiaridade, que o chama pelo nome de<br />

Pai, e autoriza os seus seguidores a assim dirigir-se à divindade, invocando-a do<br />

mesmo modo;<br />

– Para a religião judaica, a vida humana era o resultado de uma perda,<br />

de uma queda. Posto, ao ser criado, num jardim de delícias, o primeiro casal hu-<br />

mano recebera, além dos dons preternaturais (não sofrer, não envelhecer, não<br />

morrer, não ser ignorante), o dom sobrenatural da Graça, que lhe conferia o pri-<br />

vilégio de entreter-se “on line” com Deus, amigavelmente, a qualquer instante.<br />

Todo esse privilégio, porém, os Primeiros Pais perderam com a desgraça do Pe-<br />

cado Original. Certo, o Criador lhes fizera a promessa da Redenção – e os judeus<br />

Índice<br />

28 / 125


viviam esperando pelo Messias Salvador. Mas já demorava por demais o cumpri-<br />

mento daquela promessa, e muitos já não acreditavam mais nela;<br />

– Embora partindo da visão negativa dos judeus quanto à origem do<br />

homem e seu destino, Jesus a ultrapassa e a transforma numa possibilidade po-<br />

sitiva. Ele mesmo se anuncia como capaz de reatar as relações rompidas entre o<br />

homem e seu Criador, convidando cada ser humano a fazer a mesma coisa: pois,<br />

se um pai humano não nega o pão ao filho que o pede, assim o Pai-Deus não nega<br />

a salvação a quem a procure;<br />

– Aqueles eram tempos em que nenhum apreço se tinha aos pobres, às<br />

mulheres, às viúvas, aos órfãos, às crianças, aos doentes, aos escravos, aos prisio-<br />

neiros, desvalidos da terra. Jesus dedicará – e recomendará – amor de predile-<br />

ção aos miseráveis anônimos de seu e de todos os tempos, uma vez que “pobres<br />

sempre os tereis entre vós”. Na proclamação-síntese de sua mensagem, esses é<br />

que serão os bem-aventurados.<br />

A antropologia cristã: da nova Ontologia para a Ética mais<br />

comprometedora<br />

Falaremos, com todo fundamento, da “Ética de Jesus”, porque parece<br />

inegável que os “princípios fundadores” do Cristianismo vêm do Jesus histórico,<br />

apreendidos de seu modo de ser e de viver. Ou seja, os “cristianistas” (os apósto-<br />

los, os primeiros pensadores cristãos) não terão inventado uma religião a partir<br />

de Jesus, mas explicitado em doutrina e pensamento o que Jesus era e vivera. É<br />

certo que não se deve escamotear alguma “filtragem adaptadora”, não da mensa-<br />

gem nuclear que está no “modelo Jesus”, mas das implicações laterais de sua men-<br />

sagem. Da mesma forma, pelo débito que todos pagamos à nossa humanidade e à<br />

Índice<br />

29 / 125


circunstância histórica em que vivemos, não se podem esconder, na doutrina que<br />

tem alicerce na vida de Jesus, influências que de forma alguma seriam aceitas<br />

pela visão “católica” (holística, universal) do Jesus histórico (p. ex., a dualidade,<br />

inconciliável no ser humano, entre matéria e espírito, a ginofobia, o puritanismo<br />

gnóstico).<br />

Isso dito e assim sendo, poderemos – sem receio de falsear nem “fabri-<br />

car” um Jesus diferente do que existiu como homem – dizer que a nova antropo-<br />

logia anunciada pelo Cristianismo, desentranhada (repita-se tantas vezes quan-<br />

tas preciso) da vida do próprio Jesus, se fundamenta em princípios de ontologia<br />

humana quais nunca se formularam até então:<br />

a) Valor da vida e sentido da morte – Dos “físicos” gregos à “enci-<br />

clopédia de Biologia” que foi Aristóteles, passando aos pensadores pós-<br />

Igreja de Santo Antônio - São Luís/MA<br />

Índice<br />

30 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


-cristãos, tomando a cada um ou a todos em conjunto, nenhum sistema<br />

filosófico formulou tão penetrante entendimento do valor da vida quan-<br />

to o Cristianismo o traz embutido em sua doutrina: a vida vem de Deus<br />

e a ele remete. Ninguém é autor da própria vida, ninguém tem direito<br />

de dar cabo da própria vida, nem da vida de outrem, a título nenhum.<br />

(Os pensadores cris-tãos que fizeram a apologia da pena de morte, da<br />

guerra, ou da tortura, não praticaram menos que uma grave contraven-<br />

ção em face ao entendimento que Jesus revelava a respeito davida). Por<br />

causa da vida, a morte ganha uma dimensão iluminadora: é triste e ine-<br />

xorável, mas não é terminal. Guardemos a frase de São Paulo: “A morte<br />

é o salário do pecado” – expressão luminosa para quem entende a ter-<br />

minologia religiosa. A bem dizer, não há morte: há uma passagem, uma<br />

trans-formação do ser humano;<br />

b) Valor primacial da pessoa humana - Nenhuma filosofia ociden-<br />

tal, até Jesus, trouxe jamais, embutida em sua concepção, tão elevado<br />

valor da pessoa humana, em sua unicidade ontológica. Nada, no mundo<br />

criado, a supera em grandeza e dignidade. Cada ser humano, não impor-<br />

tando a sua condição – de saúde, de beleza, de raça, de nacionalidade,<br />

de status, de riqueza, de poder, de inteligência, ou o que seja –, cada<br />

ser humano, individuadamente, deve ser respeitado e tratado como fim<br />

e nunca como meio. Tratando-se de pessoa, o homem é uma unidade<br />

substancial de corpo e alma, ambos envolvidos em igual dignidade: o<br />

corpo é o “templo do Espírito Santo”, e não o cárcere da alma, como en-<br />

tendia Platão. A alma é incorruptível e imortal;<br />

c) Transcendência do ser humano - O homem é um ser insaciável,<br />

Índice<br />

31 / 125


preso à sua contingência, mas aspirando a levantar asas até o infinito,<br />

saciar-se de absoluto. Essa percepção, mal e mal vislumbrada nas filo-<br />

sofias anteriores, é central no pensamento que deriva de Jesus. No Cris-<br />

tianismo, a transcendência assume o prestígio de uma virtude teologal:<br />

chama-se Esperança;<br />

d) Libertação interior, liberdade exterior - Como entenderam<br />

mal a Jesus aqueles que esperavam dele o papel de um guerreiro, um<br />

general de exércitos, pronto a fazer, pela força das armas ou pela má-<br />

gica do milagre, a libertação política de seu povo contra a opressão es-<br />

trangeira! Não que o derramamento de sangue estivesse excluído de sua<br />

perspectiva existencial. Mas o sangue derramado em sua revolução foi,<br />

antes de tudo, o dele, e por implicação consequencial de seus atos, não<br />

como condição prévia, sine qua non, cobrança de um Deus desejoso de<br />

beber sangue e que exigisse a morte como preço a pagar por um “defeito<br />

de fabricação” (o Pecado Original), que, aliás, sendo ele o Criador, seria<br />

defeito seu, não de sua criatura. Essa foi uma contaminação judaica que<br />

passou ao Cristianismo a despeito de Jesus, não por sua causa, nem por<br />

suas palavras ou por seu exemplo.<br />

Jesus teria horror a ser um Alexandre, um César, um Judas Macabeu.<br />

E não por temperamento ou falta de coragem. Mas, pelo contrário: por<br />

excesso de coragem. Sobretudo, pela mais corajosa, pela mais compro-<br />

metedora e mais profunda penetração jamais feita no interior do ser hu-<br />

mano: empenhar-se pela liberdade exterior – liberdade da opressão, da<br />

servitude, da escravidão, do medo, da miséria, da injustiça, da desigual-<br />

dade, do legalismo, do que quer que seja externo ao ser humano – será<br />

Índice<br />

32 / 125


sempre envolver-se numa luta supliciante, que não chegará nunca a um<br />

termo, nem melhorará nada na vida de ninguém.<br />

E por quê? Porque toda e qualquer luta exterior combate os efeitos, mas<br />

não as causas, enxerga os meios, mas não alcança os fins. A Liberdade,<br />

a verdadeira Liberdade começa pela libertação interior: é o que Jesus<br />

proclama com o nome de Reino de Deus, luta a travar-se dentro de cada<br />

homem, contra o maior inimigo que é ele mesmo, contra as suas servi-<br />

dões recônditas, seu instinto destrutivo, sua propensão ao ódio, à mal-<br />

dade, às baixas paixões a que ele tende naturalmente, àquilo que em<br />

jargão religioso tem o nome de pecado.<br />

É fácil ver, daí, que tipo de revolucionário foi Jesus: um revolucionário<br />

da reharmonização do homem consigo mesmo, antes de tudo, para de-<br />

pois, e como consequência óbvia, obter a transformação de todas as es-<br />

truturas sociais em que esteja encastelada a injustiça e a maldade. Nes-<br />

se sentido, não houve na História maior revolucionário que ele, porque<br />

ninguém exigiu tanto da consciência humana.<br />

Entenda-se bem: implicar-se numa revolução dessas não é assumir o<br />

passivismo, o quietismo, a imobilidade, o absenteísmo, ou esperar de<br />

braços cruzados, e apenas torcer para que Deus apresse o espetáculo de<br />

torrar os maus nos churrascos do Apocalipse. Não. “Cristo não pregou<br />

nem liderou nenhuma revolução política contra os romanos dominado-<br />

res, mas não hesitou em combater todas as estruturas sociais e religiosas<br />

que estivessem em oposição com o novo homem e o novo comporta-<br />

mento que Ele se propunha inaugurar. Insurge-se não somente con-<br />

tra os profanadores do templo, mas sobretudo contra os opressores do<br />

Índice<br />

33 / 125


Catedral da Sé - São Luís/MA<br />

espírito: os escribas e fariseus. Não se importa com suas críticas e acusa-<br />

ções; sobrepõe-se às suas interpretações legalistas e casuísticas; fustiga<br />

seu orgulho e hipocrisia. É difícil encontrar em qualquer literatura do<br />

mundo uma invectiva tão contundente contra a autoridade espiritual<br />

constituída como é a de Cristo contra os chefes espirituais de seu tem-<br />

po. Nem poupa críticas e ironias contra a autoridade política, embora<br />

mande dar a César o que é de César,” 5 pela singela razão de que César irá<br />

passar, mas a Verdade dele, de Jesus, não passará: é tão permanente o<br />

quanto permanece a inquietação humana;<br />

5 - Dalle Nogare, Pedro. Humanismos e anti-humanismos. 5ed. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 46-47. (O grifo é nosso).<br />

Índice<br />

34 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


e) Igualdade radical e fraternidade universal de todos os se-<br />

res humano - Se nunca ninguém, nem antes nem depois de Jesus, fun-<br />

dou uma religião para proclamar-se o deus dessa mesma religião, nunca<br />

também religião nenhuma teve a coragem de chamar a Deus pelo nome<br />

de Pai. Contemplando a Deus como Pai, reconhecemos a igualdade de<br />

todos os homens perante Deus. Voltamos o olhar ao nosso redor e reco-<br />

nhecemos que todos temos os mesmos direitos fundamentais, e absorve-<br />

mos, logicamente, a todos os seres humanos como irmãos. Lembremos<br />

a passagem em que Jesus dialoga com a Samaritana (Jo., IV, 7-30), as<br />

parábolas do Bom Samaritano (Luc., X, 25-37), do Filho Pródigo (Luc.,<br />

XV, <strong>11</strong>-32), ou a oração do Pai-Nosso (Mat., VI, 9-13; Luc., XI, 2-4).<br />

f) Riqueza maior do perdão - “Ouvistes o que foi dito aos antigos:<br />

‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, vos digo...”. E Jesus man-<br />

da perdoar não sete vezes, mais setenta vezes sete. Eis outra mensagem<br />

única, que põe de cabeça para baixo qualquer visão de mundo “efeitis-<br />

ta”, superficial, de antecessores e sucessores de Jesus. Extraordinário<br />

psicólogo, o Mestre ensina que o perdão enriquece e melhora a quem<br />

perdoa, e não tanto a quem é perdoado, de quem, aliás, será boa aposta<br />

não esperar melhora nenhuma. A parábola do Filho Pródigo é exemplar,<br />

neste sentido. Os primeiros cristãos serão identificados por essa carac-<br />

terística: “Vede como eles se amam” – dizem deles os que não seguem<br />

os princípios deixados por Jesus. “Essa comunhão de corações e almas<br />

teve sua manifestação e confirmação mais esplêndidas e trágicas nos pe-<br />

ríodos em que os cristãos eram perseguidos e muitos deles mortos pe-<br />

los poderes públicos. O perigo, o sofrimento, o martírio sempre foram o<br />

Índice<br />

35 / 125


melhor cimento para a união dos sequazes de uma mesma causa. O san-<br />

gue derramado pela fidelidade ao mesmo Cristo comunicava aos primei-<br />

ros cristãos um sentido de fraternidade espiritual muito mais intenso<br />

que o da fraternidade carnal.” 6<br />

g) Cuidado preferencial pelos desvalidos - “Não nos consta a exis-<br />

tência de algum outro homem antes de Cristo que tenha tido tanto amor,<br />

atenção e respeito para com os pobres, e se tenha interessado, incomo-<br />

dado, sacrificado para socorrer às necessidades, também dos indivíduos<br />

particulares, quanto Jesus. [...] Cristo amou e ajudou sem exceção a to-<br />

dos aqueles que recorriam a ele [...]. Mas houve uma categoria de pes-<br />

soas que Ele amou com predileção e à qual dedicou particular atenção<br />

e cuidado: os marginais da sociedade, as prostitutas, os pecadores, os<br />

pobres [...], àqueles tempos em que [...] os pobres, os escravos, as mu-<br />

lheres, as crianças, etc., não valiam nada [...]. Pela primeira vez na histó-<br />

ria, todas essas criaturas começaram a ser consideradas e tratadas como<br />

pessoas. [...] Os Evangelhos são a única história da antiguidade em que<br />

os pobres – não como massa, mas como indivíduos, com seu nome e so-<br />

brenome – tornam-se protagonistas, ao lado da personagem principal”. 7<br />

Essa “opção preferencial pelos pobres”, como se vê, em nada se recheia<br />

de conteúdo e intenções secundárias – políticas, ou de qualquer outra<br />

ordem – que não o valor da pessoa humana como tal, e que assume cui-<br />

dado “compensatório” – maior e mais atento, portanto – quando esteja<br />

essa pessoa “desfigurada” em sua ontologia mais funda;<br />

h) Valor secundário dos bens materiais - O próprio Jesus diz que<br />

6 - Dalle Nogare, op. cit., p. 52.<br />

Índice<br />

36 / 125


não tem onde repousar a cabeça. E, se como está nos Atos dos Apóstolos,<br />

ele “passou fazendo o bem” (Atos, X, 38), foi pelos pobres que manifes-<br />

tou, sempre, um carinho especial. Na sua mais famosa proclamação, a<br />

das Bem-Aventuranças (Mat., V, 1-<strong>11</strong>), ele repete por oito formas dife-<br />

rentes o valor maior da pobreza, que, desde suas raízes até suas últimas<br />

consequências, traz consigo os sentimentos de generosidade, despren-<br />

dimento, compaixão, amor à justiça, mansidão, pureza de alma, etc. Em<br />

síntese, o verdadeiro amor ao próximo obriga a encarar este próximo<br />

(qualquer um, mas especialmente o mais necessitado) de modo que ele<br />

encontre, em nosso próprio ser, uma inserção anterior a qualquer bem<br />

de ordem material, de modo que a sua importância intrínseca nos leve<br />

a espontaneamente repartir com ele o que tenhamos, pouco ou muito.<br />

Jesus assim prega e assim pratica. Por perceber que os ricos são menos<br />

generosos que os pobres, lamenta pelos que se “amarram” na riqueza.<br />

E se entristece quando um moço rico (irrepreensível perante a ordem<br />

moral vigente) o procura para pedir-lhe orientação, sem entender este<br />

caminho da perfeição, tão simples, embora paradoxal, que lhe propõe<br />

o Mestre (Mat., XIX, 16-24). E os primeiros cristãos viviam num rígido<br />

regime comunista (Atos, II, 44-46; IV, 32-35), no qual os transgressores<br />

eram castigados severamente (Atos, V, 1-<strong>11</strong>).<br />

Antecipemos, a propósito, que, num mundo em que a escravidão era um<br />

fenômeno social bastante comum, os primeiros pregadores e escritores<br />

do Cristianismo contentam-se apenas em pregar a doutrina de Jesus e<br />

dar o exemplo, sem enfrentar diretamente o problema da servitude. Mas<br />

esses mesmos pregadores e escritores terão palavras duríssimas contra<br />

Índice<br />

37 / 125


os exploradores do suor alheio, a qualquer título. E uma das maiores di-<br />

ficuldades que enfrentará a nova religião, em sua marcha histórica para<br />

transformar-se na Religião do Ocidente, estará na complicada superação<br />

do conflito entre ser cristão e praticar atividades em que o lucro seja o<br />

resultado primordial (o comércio, a usura, o subsalário, etc.). Será pre-<br />

ciso chegarmos aos albores dos tempos modernos e alcançarmos uma<br />

Reforma radical da mensagem cristã (o Protestantismo), para aí, nessa<br />

inversão teológica, no bojo de sua mundividência, encontrarmos a clara<br />

justificação dos princípios capitalistas (Max Weber). Não por acaso, to-<br />

davia, essa nova ética encontrará seus fundamentos na Bíblia veterotes-<br />

tamentária, e não no Novo Testamento.<br />

Igreja de São joão - São Luís/MA<br />

Índice<br />

38 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


Em conclusão<br />

A partir do século IV, é impossível contar a história da civilização oci-<br />

dental sem que se leve em conta a orientação e influência do Cristianismo. O Oci-<br />

dente “é cristão” – e isso diz tudo. A prática dos princípios cristãos – a prática<br />

da caridade, da assistência aos pobres, aos doentes, aos órfãos, etc. tem levado<br />

milhões de almas ao sacrifício heroico, em seguimento ao exemplo de Jesus.<br />

Apesar disso, uma avaliação sumária da História ocidental evidencia o<br />

quanto o mundo que se diz cristão (incluindo católicos e protestantes, sem maior<br />

distinção) mostra-se longe de haver formado uma sociedade humana, verdadei-<br />

ramente baseada na mensagem do Galileu. Falha, não do Fundador, mas da ob-<br />

servância de seus ensinamentos, que exigem extremos de heroísmo e renúncia<br />

à comodidade humana. Como disse Chesterton: “O cristianismo não falhou: ele<br />

não foi ainda experimentado”.<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino Americana,<br />

University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras.<br />

Índice<br />

39 / 125


Há tempos observo, com grande pesar, como aos poucos o Brasil<br />

vem perdendo, de modo preocupante e assustador, a memória de suas grandes<br />

personalidades históricas, sobretudo no campo da cultura e, mais particularmente,<br />

nas belas-letras.<br />

Muitas são as explicações históricas desse fenômeno lamentável, entre<br />

as quais a crescente ignorância de nosso povo em relação ao seu passado, aos seus<br />

heróis, aos símbolos de sua identidade nacional, fenômeno este ligado ao caótico<br />

e falido sistema educacional brasileiro.<br />

Índice<br />

Sede da Academia Maranhense de Letras São Luís/MA<br />

UmA ATENAS SEm PANTEõES<br />

Ricardo Leão<br />

40 / 125<br />

Foto: Gaudêncio Cunha 1908/Acervo do Museu Histórico e Artístico do Maranhão


Outros apontam o acelerado desinteresse em<br />

função dos paradigmas da modernidade, que abrevia a<br />

percepção do presente e do novo, fazendo com que todas<br />

as coisas, mesmo as mais veneráveis e venerandas,<br />

envelheçam com rapidez e sejam sistematicamente<br />

esquecidas e abandonadas. Qualquer que seja a causa<br />

do fenômeno, no entanto, a cada dia vejo que os<br />

brasileiros estão esquecendo quem são, e não possuem,<br />

em suas grandes cidades, em razão do vandalismo e<br />

qualquer outra causa, símbolos que possam lembrar-<br />

lhes de algumas glórias que, com efeito, nos trazem a<br />

grata lembrança dos homens de inteligência e gênio<br />

que já andaram entre nós um dia. Todos os dias, um<br />

estrangeiro poderia vir ao Brasil e perguntar: onde<br />

estão as estátuas de Bartolomeu Gusmão, Santos<br />

Dumont, Carlos Chagas, Oswaldo Cruz, Vital Brasil,<br />

Landell de Moura, César Lattes, Machado de Assis,<br />

Gonçalves Dias, Rui Barbosa, Carlos Drummond de<br />

Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles,<br />

Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Gomes,<br />

Villa-Lobos? Isso porque, salvo exceções, não as temos<br />

mesmo.<br />

No caso particular de minha terra natal, o<br />

Maranhão, o caso chega a ser chocante. Não vou entrar<br />

aqui no mérito da discussão sobre a legitimidade<br />

Índice<br />

“...o<br />

Maranhão<br />

é a terra<br />

de nomes<br />

que a todo<br />

momento<br />

deveriam<br />

ser<br />

cultuados e<br />

lembrados<br />

pelos seus<br />

filhos.”<br />

41 / 125


histórica de mitos, assim chamados, como a Atenas Brasileira, mas o fato é que<br />

o Maranhão é a terra de nomes que a todo momento deveriam ser cultuados e<br />

lembrados pelos seus filhos.<br />

Acaso não é motivo de orgulho histórico que sejamos conterrâneos de<br />

Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Sousândrade, Teófilo Dias, Aluísio<br />

Azevedo, Artur Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia, Maria Firmina dos<br />

Reis, Joaquim Serra, Maranhão Sobrinho, Humberto de Campos, Graça Aranha,<br />

Teixeira Mendes, Nina Rodrigues, Gomes de Sousa, Cândido Mendes, Viriato<br />

Correia, Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, Nauro Machado, José Louzeiro, Josué<br />

Montello, José Chagas, Carlos Alberto Nunes, Luiz Costa Lima, só para ficarmos<br />

naqueles Reis, Sousândrade, Teófilo Dias, Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Coelho<br />

Neto, Raimundo Correia, Maria Firmina dos Reis, Joaquim Serra, Maranhão<br />

Sobrinho, Humberto de Campos, Graça Aranha, Teixeira Mendes, Nina Rodrigues,<br />

Gomes de Sousa, Cândido Mendes, Viriato Correia, Bandeira Tribuzi, Ferreira<br />

Gullar, Nauro Machado, José Louzeiro, Josué Montello, José Chagas, Carlos<br />

Alberto Nunes, Luiz Costa Lima, só para ficarmos naqueles indubitavelmente<br />

consagrados e canônicos?<br />

E onde foi parar a memória de todo esse acervo cultural construído ao<br />

longo de séculos, desde que o Padre Antônio Vieira pôs o pé nessa terra, e aqui<br />

produziu uma parcela significativa de seus mais célebres sermões? Por acaso os<br />

maranhenses andam a lembrar que Vieira, em razão disso, é tão maranhense,<br />

quanto baiano, brasileiro e português? Por acaso guardamos na memória que<br />

aqui, nesta terra de tantas alcunhas, epítetos e apelidos, uma parte considerável da<br />

cultura nacional foi forjada, criando uma das mais sólidas, contínuas e melhores<br />

tradições literárias e intelectuais do país? Essa não é a nossa verdadeira grife,<br />

Índice<br />

42 / 125


orgulho de nossa própria identidade, com a qual vangloriarmo-nos a todo<br />

momento de sermos maranhenses?<br />

Não sei em nome do quê a nossa atualidade social anda promovendo<br />

o esquecimento de toda essa cultura, e o que anda colocando no lugar dela,<br />

se tem algo melhor para pôr no lugar. Ou, ainda, por que alguns – e aqui me<br />

refiro, em específico, a educadores de nível superior – militam para que ela<br />

seja sistematicamente agredida e esquecida, vilipendiada, acusando-a de falsa,<br />

mentirosa, e com isto jogando fora a água, a bacia, e a criança.<br />

O fato é que andamos esquecidos que esta terra já produziu monumentos<br />

da cultura brasileira e de língua portuguesa, cuja memória deveria ser evocada<br />

todos os anos em liceus, ateneus, ginásios, escolas, faculdades, universidades,<br />

institutos, academias, grêmios, enfim, em todas as instituições que deveriam ser,<br />

por conta disso, baluartes permanentes de uma cultura que possui verdadeiros<br />

campeões da história da inteligência brasileira.<br />

Mas, onde andam os guardiães e campeões de nossa memória? Quem<br />

está de pé e alerta, a vigiar os panteões onde nossos heróis e grandes homens<br />

deveriam ser cultuados, reverenciados e lembrados por suas obras e façanhas,<br />

positivando a imagem do Maranhão e de sua gente?<br />

Pouca gente, nos dias de hoje, ainda se lembra que o Maranhão<br />

gerou os primeiros gramáticos da língua portuguesa de nosso país, ou que das<br />

dezoito gramáticas em circulação no Brasil do século XIX, dez eram escritas<br />

por maranhenses. Que o Maranhão era tão zeloso da língua que falava, que se<br />

colocava em pé de igualdade com a terra de Camões, uma versão ultramarina<br />

de Portugal em solo americano, a ponto de exibir, até hoje, um elevado grau de<br />

purismo gramatical em suas práticas culturais e linguísticas. Que o primeiro<br />

Índice<br />

43 / 125


gramático negro da língua, um dos primeiros professores negros do Colégio Pedro<br />

II, aprovado aos 20 anos de idade, e o primeiro professor negro da Escola Militar<br />

do Rio de Janeiro, Hemetério José dos Santos, era maranhense de boa cepa.<br />

Que muitos literatos e intelectuais negros e afrodescendentes brasileiros, saíram<br />

do Maranhão, e que, por isso, a tantas vezes citada Atenas Brasileira, por mais<br />

preconceituosa que fosse, como exemplifica O mulato de Aluísio Azevedo, possuía<br />

também suas aberturas a alguns casos excepcionais.<br />

Quem se lembra, no entanto, que esta cidade já possuiu no século XIX<br />

o mais avançado parque editorial e tipográfico do país, editando, primeiro aqui,<br />

traduções de livros e romances que, mais tarde, seriam publicados no resto do<br />

País? Quem se lembra que Raimundo Teixeira Mendes, o papa da Igreja Positivista<br />

brasileira, um dos líderes do movimento que culminou com a Proclamação da<br />

República, é o autor do desenho da atual bandeira brasileira? Qual o maranhense<br />

que ainda hoje bate orgulhosamente o peito ao lembrar que é da mesma terra de<br />

Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes, os dois maiores tradutores de Homero<br />

da língua portuguesa, cujas traduções são copiosamente editadas até hoje?<br />

Quantos maranhenses de nossos dias orgulham-se de fato de que um dos maiores<br />

precursores da modernidade literária internacional saiu dessas plagas, o genial<br />

poeta faber Sousândrade, nos termos de Ezra Pound? Ou de nomes influentes<br />

em outros setores da cultura, como Newton Sá (escultura), Antônio Almeida,<br />

Floriano Teixeira (pintura), Antônio Rayol, Turíbio Santos (música), Apolônia<br />

Pinto (teatro), sem mencionar tantos outros mais, tão brilhantes quanto? E em<br />

nome de quê, torno a perguntar, tudo isso está sendo perversamente esquecido e<br />

abandonado, como se fosse uma maldição, uma reles mentira, uma ilusão com a<br />

qual tivéssemos sido cegados e ludibriados durante quase 200 anos de história?<br />

Índice<br />

44 / 125


O que de melhor estão pondo no lugar?<br />

Contudo, não há como negar o fato<br />

histórico. Esta é a terra de muitos intelectuais<br />

– escritores, cantores, pintores, artistas –<br />

que a nossa cultura vem, há talvez 400 anos,<br />

entregando ao acervo da cultura nacional. Não<br />

há como negar que a cultura brasileira seria<br />

incrivelmente mais pobre sem a contribuição<br />

maranhense, definitiva por si mesma, em<br />

quase todos os campos da cultura e do saber,<br />

acadêmico, literário, artístico, ou de qualquer<br />

outra natureza.<br />

Não vejo razão para esquecermos quem<br />

fomos, pois é justamente em nossa genealogia,<br />

como diria Michel Foucault, que se encontra a<br />

raiz de quem somos e quem seremos.<br />

Mas resta o questionamento: o<br />

que faremos de todo o nosso passado? Uma<br />

resposta: transformamos em capital, o melhor<br />

capital que existe: o simbólico. Os maranhenses<br />

andam a esquecer que é justamente esse<br />

imenso patrimônio cultural que atrai turistas,<br />

que promove o orgulho identitário de nosso<br />

povo, que, ao lembrar quem são seus ancestrais<br />

mais nobres, consegue lembrar que também<br />

Índice<br />

“ Não há<br />

como negar<br />

que a cultura<br />

brasileira seria<br />

incrivelmente<br />

mais pobre<br />

sem a<br />

contribuição<br />

maranhense...”<br />

45 / 125


pertence à mesma linhagem genética e cultural. Afinal, os alemães são quem<br />

são, assim como os argentinos, franceses e portugueses são quem são, porque<br />

estão sempre a lembrar quem foram. E eles são Mozart, Brahms, Offenbach,<br />

Bach, Beethoven, Wagner, Strauss, Orff, Schiller, Goethe, Kant, Schope-nhauer,<br />

Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Bioy Casares, Borges, Cortázar, Sábato,<br />

Racine, Corneille, Molière, Laclos, Voltaire, Hugo, Lamartine, Baudelaire,<br />

Rimbaud, Mallarmé, Apolinaire, Camus, Sartre, Camões, Vieira, Bocage, Garret,<br />

Herculano, Camilo, Eça, Antero, Pessanha, Cesário, Florbela, Pessoa, Saramago.<br />

Nós, brasileiros, também temos o nosso panteão de grandes nomes, construídos<br />

ao longo de 500 anos de história, quase 200 anos de autonomia política, e a<br />

contribuição maranhense é das mais importantes e, indubitavelmente, a mais<br />

antiga e, talvez, a melhor.<br />

E por que o maranhense não deveria orgulhar-se disso tudo? Qual a razão<br />

para não celebrarmos, todos os anos, em nossas escolas, faculdades e universidades,<br />

a memória dos nossos ilustres antepassados, cultuando-a e evocando-a através<br />

de bustos, estátuas, placas comemorativas, aulas, prêmios, homenagens, festejos,<br />

comemorações?<br />

Talvez seja isso uma das grandes faltas de nossa cultura, até<br />

aqui. Enquanto em outros países a memória dos ilustres varões da pátria é<br />

permanentemente lembrada através de monumentos espalhados em todos os<br />

cantos, em nosso país, e, sobretudo e desgraçadamente no Maranhão, ela é<br />

vandalizada na forma de patrimônio público destruído, roubado e derretido.<br />

O nosso povo, sobretudo, deveria reivindicar espaços públicos nobres para o<br />

cultivo dessa memória, e manter permanente vigília sobre eles. Digo que devemos<br />

começar a erguer tais monumentos, e, depois de erguidos, vigiá-los, zelar por<br />

Índice<br />

46 / 125


eles, transformá-los em pontos de culto do orgulho da identidade local e nacional.<br />

Por isso, no lugar de vandalismo e esquecimento, propostas. Há<br />

muito tempo, reclamamos espaços destinados a imensos e ajardinados jardins,<br />

a verdadeiros panteões da memória pública, para que os cidadãos tenham<br />

diante de si a permanente lembrança pedagógica de seu passado, em forma de<br />

monumentos, estátuas, bustos, fontes, altos e baixos-relevos, colocados como<br />

advertência de que podemos nos equiparar aos nossos antepassados em tudo.<br />

A questão é muito simples. Tais monumentos estão ausentes de nossas praças<br />

públicas, escolas, bibliotecas, faculdades, universidades, academias, institutos,<br />

e a simples existência destes símbolos da identidade cultural e histórica de um<br />

povo são meios eficazes de provocar nas pessoas a comoção pelo passado que<br />

possuem.<br />

Em São Luís, há excelentes espaços onde tais jardins públicos e panteões<br />

poderiam ser erguidos, com policiamento durante 24 horas por dia, a fim de<br />

preservá-los da destruição. Todo o entorno da Biblioteca Pública Benedito Leite<br />

poderia ser ajardinado, reurbanizado, até as proximidades do Liceu Maranhense,<br />

e convertido em um imenso jardim público, repleto de fontes, plantas, flores,<br />

árvores, coretos, bustos, estátuas, monumentos de todos os tamanhos, a evocarem<br />

a memória dos ilustres maranhenses e de suas importantes contribuições para<br />

a cultura de nossa terra e de nosso país. Um espaço como este – que poderia<br />

ser estendido a outras praças importantes de São Luís, como a Benedito Leite, a<br />

Gonçalves Dias, Alegria, entre outras – é reivindicado há tempos não apenas por<br />

maranhenses, mas também por todos os turistas que visitam a nossa terra e não<br />

encontram espaços públicos nobres, destinados para esse fim específico.<br />

O que ganha o Maranhão com estes empreendimentos? Nobreza, beleza,<br />

Índice<br />

47 / 125


“ Não se trata<br />

de incentivar<br />

o localismo, o<br />

provincianismo,<br />

o preconceito<br />

com outras<br />

regiões do<br />

País. Trata-se<br />

de valorizar<br />

a própria<br />

identidade... ”<br />

capital simbólico, e orgulho próprio. Nossa<br />

cultura não tem nada a dever à cultura cearense,<br />

pernambucana, baiana, mineira, carioca,<br />

paulista, e muito menos gaúcha, catarinense,<br />

paranaense, paraense ou amazonense, entre<br />

outras. Não se trata de incentivar o localismo,<br />

o provincianismo, o preconceito com outras<br />

regiões do País. Trata-se de valorizar a<br />

própria identidade, como fazem os gaúchos,<br />

os pernambucanos, os mineiros, os baianos,<br />

os paulistas, os cariocas. Trata-se de jamais<br />

esquecer quem fomos, para não esquecer quem<br />

somos. Do contrário, resta a pergunta: a quem<br />

interessa que esqueçamos quem somos? Uma<br />

coisa é certa: não serão os paulistas, tampouco<br />

os mineiros, gaúchos ou cariocas, que farão<br />

esse favor à nossa cultura. Nós é que temos que<br />

apostar no melhor de nossa cultura. Contamos<br />

com um repertório impressionante e vasto.<br />

Belas festas, folclore, danças típicas, uma<br />

das melhores culinárias e um dos melhores<br />

cancioneiros populares. Mas, para muito<br />

além disso, temos uma das melhores e mais<br />

tradicionais culturas letradas, e isso não deve<br />

ser motivo de desprezo, deboche, vergonha,<br />

Índice<br />

48 / 125


tampouco objeto de vilipêndio, vandalismo, ou ignorância, mas de altivez. Não<br />

precisamos invejar a cultura alheia, e achar a horta do vizinho mais farta. Temos<br />

um celeiro abundante de grandes obras e um panteão imenso de grandes nomes.<br />

Só falta recolocá-los nos seus devidos lugares, para reconstruirmos o Maranhão<br />

de ontem, e construirmos o Maranhão de amanhã.<br />

De resto, é a hora de darmos as mãos nesse propósito, solidários e firmes.<br />

Ricardo Leão<br />

Mestre em Literatura de Lígua Portuguesa pela UNESP e Doutorando em teoria e História<br />

Literária pela UNICAMP, é autor das obras Simetria do Parto (2000) e Tradição e ruptura: a<br />

lírica moderna de Nauro Machado (2002).<br />

Índice<br />

49 / 125


Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />

A ELEIÇÃO DE JOSUé<br />

mONTELLO PARA A<br />

AcADEmIA BRASILEIRA<br />

DE LETRAS<br />

Índice<br />

José Neres<br />

50 / 125<br />

Acervo do Arquivo da Casa de Cultura Josué Montello


O ano era <strong>1954</strong>. Enquanto o escritor<br />

Ernest Hemingway era agraciado com o<br />

prêmio Nobel de Literatura e a roman-<br />

cista Dina Silveira de Queirós recebia o<br />

prêmio Machado de Assis pelo conjun-<br />

to de sua obra, o mundo lamentava a<br />

morte de expressivos nomes das artes,<br />

como Frida Khalo e Henri Matisse, o<br />

Brasil ficava de luto com o passamento<br />

de Oswald de Andrade e com o suicídio<br />

de Getúlio Vargas. No meio desse tur-<br />

bilhão de acontecimento, alguns fatos<br />

menos divulgados passaram quase des-<br />

percebidos, como a morte do médico,<br />

escritor e acadêmico Cláudio de Sousa<br />

e a consequente vacância da cadeira 29<br />

da Academia Brasileira de Letras.<br />

No entanto, para o mara-<br />

nhense Josué Montello, de todos os<br />

acontecimentos ocorridos naquele<br />

ano, a oportunidade de ingressar na<br />

ABL, um sonho acalentado desde mui-<br />

to tempo, era o que mais chamava sua<br />

atenção. Há muitos anos ele já frequen-<br />

tava os círculos intelectuais e era sem-<br />

Índice<br />

pre um nome lembrado para ocupar<br />

um dos acentos da Casa de Machado<br />

de Assis. Era chegada a hora de pôr<br />

seu nome à apreciação dos acadêmicos<br />

e lutar para ocupar a cadeira deixada<br />

por Cláudio de Sousa.<br />

Devidamente informado e estimu-<br />

lado por seu conterrâneo e amigo Viriato<br />

Corrêa, Montello começou a arquitetar<br />

a campanha que o levaria à Academia.<br />

Todo esse processo, desde os primei-<br />

ros contatos com os acadêmicos até sua<br />

atuação na ABL, está registrado no livro<br />

Montello: O Benjamim da Academia.<br />

Neste artigo, porém, iremos mostrar<br />

apenas como se deu a campanha mon-<br />

telliana e o momento de sua eleição.<br />

UM CANDIDATO ESPERADO<br />

No dia 28 de junho de <strong>1954</strong>, a Casa<br />

do Autor de Memórias Póstumas de<br />

Brás Cubas cobria-se de luto pelo fale-<br />

cimento do acadêmico Cláudio de Sou-<br />

sa 1 , ocupante da cadeira vinte e nove<br />

1 Cláudio Justiniano de Sousa (20/10/1876 – 28/06/<strong>1954</strong>). Médico, teatró-<br />

51 / 125


desde 1924. O triste acontecimento dei-<br />

xou vago o assento fundado pelo ma-<br />

ranhense Artur Azevedo e patroneado<br />

por Martins Pena.<br />

Foi o desejo de ver aquela cadeira<br />

novamente ocupada por um maranhen-<br />

se que levou o acadêmico Viriato Cor-<br />

rêa a tomar as providências necessárias<br />

para inscrever o amigo Josué Montello<br />

como candidato à vaga. O entusiasmo<br />

do grande historiador fez com que a de-<br />

cisão fosse tomada aparentemente sem<br />

uma consulta prévia ao principal inte-<br />

ressado no assunto.<br />

Em carta escrita em papel timbra-<br />

do da ABL, Corrêa comunica a Montello<br />

os acontecimentos. Eis a seguir alguns<br />

trechos da carta.<br />

Rio, 29-06-954<br />

Montelo 2<br />

Estou chegando do enterro do<br />

Cláudio de Souza. Morreu ele ontem às<br />

<strong>11</strong> horas da manhã. É que não estava<br />

logo e ensaísta paulista. Foi por duas vezes presidente da ABL. Escreveu,<br />

dentre outras obras, A Escola da Mentira e A Arte de Seduzir.<br />

2 Nas correspondências de Viriato Corrêa sempre está grafado Montelo,<br />

com apenas um L, conforme mantivemos na transcrição.<br />

Índice<br />

em casa quando da Academia fizeram<br />

a comunicação. Eu quis telegrafar-te,<br />

mas, na Academia, me aconselharam<br />

que não fizesse. Pois o telegrama, partindo<br />

àquela hora, chegaria aí depois<br />

das notícias das agências telegráficas.<br />

Tomei todas as medidas necessárias<br />

para a tua candidatura. (...) Boas notícias:<br />

O Magalhães Júnior e o Maurício<br />

não se apresentarão. Creio que o<br />

Oliveira e Silva será candidato. Mas<br />

esse é café pequeno. É possível que o<br />

Celso Kelly também o seja, (...) esse é<br />

caso mais sério. Até agora não se fala<br />

do Zé Lins do Rego.<br />

Cuida de ti, rapaz! Não durmas no<br />

ponto.<br />

Abraço a Ivone<br />

Teu velho amigo<br />

Viriato<br />

É possível notar, pelos fragmentos<br />

transcritos, que o velho historiador<br />

conhecia o desejo de Josué Montello<br />

de recuperar a cadeira vinte e nove<br />

para seu estado natal. Fica eviden-<br />

te também que mais alguém na Aca-<br />

demia sabia que era chegada a hora<br />

da candidatura do jovem intelectual<br />

maranhense. O trecho: “... na Acade-<br />

mia, me aconselharam que não fizes-<br />

se. Pois o telegrama, partindo àquela<br />

hora, chegaria aí depois das notícias<br />

52 / 125


das agências telegráficas” mostra que<br />

havia naquela instituição uma preocu-<br />

pação em dar a notícia de modo mais<br />

completo, sem a pouca informativida-<br />

de de um telegrama feito às pressas.<br />

Viriato fala com alívio do fato de nomes<br />

como José Lins do Rego e Magalhães<br />

Júnior não concorrerem ao pleito. Na<br />

época, o autor de Menino de Engenho<br />

era um dos homens mais citados nos<br />

círculos literários, e, no ponto de vista<br />

de Viriato Corrêa, esse poderia ser um<br />

forte obstáculo à vitória de Montello.<br />

No momento, o nome de “Zé Lins<br />

do Rego” não era um problema, mas<br />

havia outro que impunha respeito, o de<br />

Celso Kelly. Este já havia sido candida-<br />

to e, mesmo tendo sido derrotado em<br />

outra ocasião, contava, pelo menos em<br />

teoria, com a simpatia de boa parte dos<br />

acadêmicos. Por isso, o autor de A Ba-<br />

laiada refere-se a ele como sendo um<br />

“caso mais sério”. Da mesma forma, é<br />

visível o desdém com que é tratada a<br />

candidatura de Oliveira e Silva, escri-<br />

Índice<br />

tor tido como “café pequeno”, ou seja,<br />

um candidato que não oferecia mui-<br />

to perigo aos planos dos demais, pois<br />

contava com pouquíssimo apoio den-<br />

tro da Casa. Restava, então, preocupar-<br />

-se com Kelly, o mais forte dos adver-<br />

sários.<br />

Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />

53 / 125<br />

Acervo da Casa deCultura Josué Montello


Assim que a notícia da morte de<br />

Cláudio de Sousa foi divulgada, a im-<br />

prensa ligada à literatura começou a<br />

especular sobre quem seriam os prová-<br />

veis candidatos. Alguns imortais foram<br />

consultados a respeito de suas prefe-<br />

rências. O poeta Manuel Bandeira, alu-<br />

dindo ao fato de que tanto o fundador,<br />

quanto o patrono e o último ocupante<br />

terem sido homens de grande tradi-<br />

ção no teatro, fez a seguinte declaração<br />

para o jornal Última Hora, do dia 03 de<br />

julho de <strong>1954</strong>: “Deve ser escolhido um<br />

homem de teatro, em honra ao patro-<br />

no”.<br />

A declaração do poeta pernambu-<br />

cano era discretíssima e não dizia nada<br />

de concreto, pois os candidatos mais<br />

cotados para a vaga, Celso Kelly e Josué<br />

Montello, eram também ligados ao tea-<br />

tro, ou seja, Bandeira saiu pela tangente<br />

e não disse em quem votaria.<br />

Enquanto isso, em Lima, onde es-<br />

tava a trabalho, Montello, depois de ler<br />

a carta enviada por Viriato Corrêa nar-<br />

Índice<br />

rando os últimos acontecimentos, no<br />

primeiro tempo disponível que teve,<br />

começou a escrever cartas aos acadê-<br />

micos. 3 Todas as cartas primavam pela<br />

elegância, mas com o apuro estilísti-<br />

co que marcou os mais de cem livros<br />

publicados pelo autor. Nas cartas, ele<br />

apresenta seu nome para os acadêmi-<br />

cos, sem, contudo, enumerar os prê-<br />

mios conquistados, as obras editadas,<br />

nem os altos cargos por ele exercidos.<br />

De modo claro e simpático, ele coloca o<br />

nome à disposição daqueles que tinham<br />

o poder de voto, envolvendo os desti-<br />

natários em uma atmosfera de amisto-<br />

sa humildade, o que, sem dúvida, deve<br />

ter-lhe rendido vários votos no dia da<br />

eleição. Uma das cartas escritas não foi<br />

enviada para os imortais da Academia,<br />

mas para seu principal adversário na<br />

corrida rumo à ABL, Celso Kelly. Tal<br />

atitude revela dois traços importantes<br />

na personalidade do escritor: o respei-<br />

to pelo adversário e sua diplomacia.<br />

3 As cartas e telegramas escritos por Josué Montello foram organizados por Yvone<br />

Montello e estão disponíveis para pesquisa na Casa de Cultura Josué Montello.<br />

54 / 125


Acervo do arquivo da Casa de Cultura Josué Montello<br />

Índice<br />

A carta dirigida a<br />

Kelly, que tem um frag-<br />

mento reproduzido ao<br />

lado, traz um tom de cor-<br />

dialidade e lembra a seu<br />

opositor que a eleição<br />

para a Academia não é<br />

um meio de provar quem<br />

é o melhor, mas apenas<br />

um modo prático de escolher o novo ocupante de uma vaga deixada por um amigo<br />

em comum. O autor deixa claro, ainda, que, qualquer que fosse o resultado, nada<br />

interferiria na amizade entre os dois.Era uma forma de não transformar a disputa<br />

em uma espécie de guerra fria entre os dois principais candidatos. Nos documen-<br />

tos consultados de Josué, não foi encontrada referência a alguma resposta a essa<br />

carta, infelizmente.<br />

Precavido, o escritor maranhense não se limitou a enviar cartas, man-<br />

dou também dezenas de telegramas aos acadêmicos e a seus amigos mais pró-<br />

ximos. Um bom exemplo dessa atitude é o texto enviado a Odylo Costa, fi-<br />

lho: “Sou candidato Academia esperando teu amparo junto Ribeiro Couto.<br />

Certamente foram dias de grande ansiedade. A espera de novida-<br />

des sobre o andamento da campanha deve ter consumido muito de suas<br />

energias, mas do alto de sua juventude, o escritor pôde suportar as pres-<br />

sões internas e a falta de informação durante os dias que se seguiram.<br />

Mas não era só Josué Montello, em Lima, que estava ansioso. No Brasil, mais<br />

55 / 125


precisamente no Rio de Janeiro, den-<br />

tro da Academia, outro maranhense<br />

esperava o caminhar da situação. Era<br />

Viriato Corrêa, que transformado por<br />

vontade própria em principal “cabo<br />

eleitoral” da cam panha, sondava o<br />

ambiente para dar notícias seguras<br />

ao amigo. Três dias após ter mandado<br />

a notícia da vacância na ABL, o autor<br />

de Terra de Santa Cruz enviava outra<br />

carta ao conterrâneo. O texto tinha um<br />

tom de muita confiança na vitória. Eis<br />

um trecho dela:<br />

Montelo<br />

É preciso que embarques para cá o<br />

mais breve possível. Tens probabilidade<br />

de vencer. Voa de lá para cá já, já,<br />

já.<br />

Novidade: O Celso Kelly não está<br />

encontrando o ambiente que esperava.<br />

02 – 07 – <strong>1954</strong><br />

No restante da carta, o remetente<br />

faz um resumo da situação de cada um<br />

dos concorrentes à vaga, sempre com<br />

entusiasmo e confiante na vitória do<br />

amigo.<br />

Índice<br />

Realmente, Kelly não estava ten-<br />

do o apoio que esperava. No início, ele<br />

era o favorito, mas quando foi anun-<br />

ciada a tão esperada candidatura do<br />

autor de Aleluia, sua cotação começou<br />

a cair. Houve uma reviravolta nos se-<br />

tores intelectuais. Na própria Acade-<br />

mia, alguns imortais começaram a não<br />

ver com muita simpatia a candidatura<br />

de Celso Kelly. Por isso, algumas fra-<br />

ses, até certo ponto deselegantes, eram<br />

constantemente ditas nos meios acadê-<br />

micos. Um exemplo é o comentário de<br />

Rodrigo Otávio Filho que, quando foi<br />

perguntado sobre qual era seu candi-<br />

dato, disse sem meias palavras: “Voto<br />

até no Josué! Mas no Celso Kelly nun-<br />

ca!!!” 4<br />

A imprensa, por outro lado, ad-<br />

mitia que já não estava tão fácil saber<br />

quem seria o vencedor da disputa. No<br />

entanto, o jornal A Manhã, do Rio de<br />

Janeiro, mesmo antes de confirmar<br />

a candidatura de Montello, em sua<br />

4 In MAURO, José. “Café Society” confidencial. São Paulo: Civilização<br />

Brasileira, 1956.<br />

56 / 125


edição de 20 de julho de <strong>1954</strong>, já o co-<br />

locava em situação privilegiada ao es-<br />

pecular sobre os possíveis aspirantes à<br />

vaga.<br />

Os favoritos do novo páreo são o<br />

senhor Celso Kelly e o não-inscrito Josué<br />

Montello. Pode haver novidades.<br />

O romancista maranhense estava<br />

confiante na vitória, mas não revelava<br />

essa confiança à imprensa. Em seu ar-<br />

quivo pessoal, há uma tabela na qual ele<br />

anotava os possíveis votos que ele re-<br />

ceberia nos quatro escrutínios progra-<br />

mados. A tabela é uma folha de papel<br />

que traz datilografados os nomes dos<br />

eleitores e as respectivas intenções de<br />

voto. Uma análise no documento mos-<br />

tra que ele esperava uma vitória no 1º<br />

ou no 3º escrutínio, conforme ele mes-<br />

mo confessaria mais tarde, após o re-<br />

sultado:<br />

Eu sabia contar com os amigos que<br />

me acompanhariam em todas as fases<br />

da votação. Eles eram em número de<br />

onze. Outros votariam no primeiro e<br />

no terceiro escrutínio. Entre o primeiro<br />

e o segundo a coisa estava mais ou<br />

Índice<br />

menos equilibrada.<br />

(O Imparcial, 08 de novembro de <strong>1954</strong>)<br />

A respeito de suas esperanças de<br />

vitória, na mesma reportagem, o escri-<br />

tor dizia:<br />

Como a votação é secreta nenhum<br />

candidato pode afirmar que vai ganhar,<br />

mas apenas externar suas esperanças.<br />

Eu tinha também as minhas, é<br />

claro.<br />

(O Imparcial, 08 de novembro de <strong>1954</strong>)<br />

Quando recebeu a carta de Viriato<br />

Corrêa, que lhe pedia que voltasse ao<br />

Brasil rapidamente, Montello respon-<br />

deu-lhe com o seguinte telegrama: “Es-<br />

tou arrumando mala. Seguirei breve.<br />

Abraços.”<br />

Poucos dias depois, ele estava de<br />

volta ao país, para cumprir as formali-<br />

dades de candidatura.<br />

Em suas cartas aos acadêmicos,<br />

Montello já lhes avisava que, quando<br />

voltasse ao Brasil, faria visitas oficiais<br />

na qualidade de candidato. E assim<br />

fez. Iniciou uma longa peregrinação de<br />

entrevistas com os imortais, tentando<br />

convencê-los de que seu nome era uma<br />

57 / 125


alternativa a ser lembrada na hora da<br />

votação.<br />

Finalmente chegou o dia de encer-<br />

rar as inscrições para os pretendentes<br />

à vaga deixada por Cláudio de Sousa.<br />

Vários candidatos se apresentaram,<br />

eram eles: Josué Montello, Celso Kelly,<br />

Oliveira e Silva, Artur de Almeida Tor-<br />

res, Sérgio Gomes, Ernani Lopes, Osó-<br />

rio Dutra, Sílvio Júlio, Modesto de<br />

Abreu, Paulo Magalhães, Agnaldo San-<br />

tiago, Bueno da Cerqueira e Waldemar<br />

Bernadelli. Mas os principais concor-<br />

rentes ainda eram os dois primeiros.<br />

Foram meses de intensa campa-<br />

nha. Quando os dias que precediam à<br />

votação se aproximavam, os jornais ti-<br />

nham sempre uma nota sobre o pleito.<br />

O jornal Diário de Notícias, na véspera<br />

do pleito, trazia a seguinte matéria:<br />

Reúne-se amanhã, a Academia<br />

Brasileira de Letras, a fim de eleger<br />

o sucessor de Cláudio de Sousa, vaga<br />

que está a poltrona azul vinte e nove,<br />

cujo patrono é Martins Pena, sócio-<br />

-fundador Artur Azevedo e primeiro<br />

ocupante o poeta Vicente de Carvalho<br />

Índice<br />

(...) Apesar de se terem inscritos onze<br />

candidatos, o páreo será disputado<br />

pelos senhores Josué Montello e Celso<br />

Kelly, que são os candidatos mais cotados.<br />

(Diário de Notícias, 03/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Dois dos pré-candidatos, Bueno da<br />

Cerqueira e Waldemar Bernadelli, reti-<br />

raram a candidatura. Assim sendo, no<br />

dia da eleição, restavam onze concor-<br />

rentes. Certamente, a madrugada de<br />

04 de novembro de <strong>1954</strong> foi das mais<br />

longas para os onze aspirantes à imor-<br />

talidade.<br />

Tão nervoso quanto os candidatos,<br />

estava o velho escritor Viriato Corrêa.<br />

Seu voto ele sabia de quem era, mas o<br />

que dizer do dos outros? Não sabia. O<br />

jeito era esperar pelo resultado.<br />

O sol foi surgindo, e, com ele, a es-<br />

perança dos experientes homens que<br />

lutavam por umideal. Não havia mais<br />

tempo de fazer campanha. Era hora de<br />

colher os frutos das sementes cultivadas<br />

durante anos e cuidadosamente regadas<br />

ao longo dos últimos meses.<br />

Chegava o dia da eleição.<br />

58 / 125


Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />

A ELEIÇÃO<br />

A eleição estava marcada para o<br />

dia 04 de novembro, às cinco da tarde,<br />

e o resultado deveria sair aproximada-<br />

mente meia hora depois. Os eleitores<br />

chegavam em pequenos grupos. O teor<br />

das conversas acabava invariavelmente<br />

na indiscreta pergunta sobre em quem<br />

o outro votaria.<br />

Acervo do arquivo da Casa de Cultura Josué Montello<br />

Índice<br />

O ar de mistério e de expectativa<br />

é revelado no jornal O Imparcial de<br />

09 de novembro daquele ano:<br />

Em sessão secreta, e num ambiente<br />

de intensa expectativa, em vista da<br />

presença, no Petit Trianon, de cinegrafistas,<br />

jornalistas e amigos de concorrentes,<br />

processou-se o pleito.<br />

O regulamento da eleição para a<br />

Academia havia sido reformulado me-<br />

ses antes e era a primeira vez que era<br />

posto em prática. O evento deveria ser<br />

realizado em, no máximo, quatro es-<br />

crutínios. O candidato que tivesse pelo<br />

menos um (01) voto na primeira conta-<br />

gem poderia concorrer nas outras três.<br />

Caso, em qualquer etapa da apuração,<br />

algum candidato conseguisse maio-<br />

ria absoluta dos votos, que na ocasião<br />

estava calculado em dezenove (19), a<br />

eleição estaria encerrada e o candida-<br />

to, eleito. Contudo, se nas quatro apu-<br />

rações nenhum dos candidatos atingis-<br />

se o mínimo estipulado, o pleito não<br />

teria vencedor, e a Academia abriria<br />

novo prazo para inscrições. Até mesmo<br />

59 / 125


os derrotados poderiam inscrever-se de<br />

novo para processo.<br />

Os imortais pegavam o elevador da<br />

ABL em grupo de quatro membros (o<br />

número máximo suportado pelo eleva-<br />

dor naquela época) e se dirigiam para<br />

um salão reservado, onde tomavam<br />

chá e conversavam, esperando a hora<br />

do voto. Antônio Carneiro Leão, Alceu<br />

Amoroso Lima, Otávio Mangabeira,<br />

Guilherme de Almeida e Afonso de Tau-<br />

nay não puderam comparecer à sessão,<br />

mas enviaram seus votos. O acadêmico<br />

recém-eleito Luís Viana Filho ficou im-<br />

pedido de votar, pois ainda não havia<br />

sido empossado, e o regimento interno<br />

da Casa rezava que somente os eleitos e<br />

já empossados tinham direito a voto.<br />

Alguns minutos antes das cinco ho-<br />

ras, o então presidente da instituição,<br />

Barbosa Lima Sobrinho, interrompia<br />

as conversas e o chá para anunciar que<br />

estava na hora de todos se dirigirem<br />

para o local da votação.<br />

Aquele dia era especial em todos os<br />

Índice<br />

sentidos. Uma das principais atrações<br />

do evento era a presença de Magalhães<br />

de Azeredo, o único dos fundadores da<br />

Academia que ainda estava vivo. Há<br />

muitos anos ele estava afastado fisica-<br />

mente das eleições, mas sempre enviava<br />

seus votos. Naquele ano, em passagem<br />

pelo Brasil, sua estada coincidiu com a<br />

época da eleição. Ele não se furtou ao<br />

dever de votar pessoalmente naquela<br />

data. Por sua autoridade de fundador,<br />

foi-lhe dado o direito de ser o primei-<br />

ro a depositar o voto. Depois dele, um a<br />

um, os imortais foram efetivar suas es-<br />

colhas.<br />

Minutos depois, estava encerrada a<br />

votação. Restava, agora, esperar as apu-<br />

rações.<br />

Foi dado início à contagem do pri-<br />

meiro escrutínio, não havia novidades.<br />

Celso Kelly e Josué Montello eram os<br />

mais votados. Todos já se preparavam<br />

para o segundo escrutínio. A tensão<br />

pairava no ar. Restava apenas um voto<br />

para ser apurado. Caso fosse para Kelly<br />

60 / 125


ou qualquer outro dos candidatos, teria<br />

início a segunda contagem. Uma voz leu<br />

a cédula: “Josué Montello.”<br />

Estava terminada a eleição. O autor<br />

de Janelas Fechadas era o novo imor-<br />

tal da Academia Brasileira de Letras. O<br />

jornal O Imparcial conta em sua edição<br />

de <strong>11</strong> de novembro como foi dada a no-<br />

tícia aos presentes que esperavam pelo<br />

resultado do sufrágio:<br />

Minutos depois, o acadêmico Viriato<br />

Corrêa levantou a cortina que vedava<br />

a sala onde transcorriam as eleições,<br />

proclamando o nome do vencedor, no<br />

caso o candidato por ele apoiado entusiasticamente.<br />

O resultado final da apuração foi o<br />

seguinte:<br />

• Josué Montello – 19 votos<br />

• Celso Kelly – 09 votos<br />

• Oliveira e Silva – 04 votos<br />

• Dutra Santiago – 04 votos<br />

• Os demais candidatos não<br />

tiveram votos.<br />

Depois de proclamada a vitória do<br />

autor de A Luz da Estrela Morta, os votos<br />

dos três escrutínios restantes foram<br />

Índice<br />

incinerados numa pira existente no recinto.<br />

Estava encerrado o processo eleitoral.<br />

Mesmo sendo secreta a votação, o<br />

jornal A Noite, através de pesquisas e<br />

especulações, fez uma hipotética rela-<br />

ção de votantes no vencedor. Segundo<br />

o periódico, votaram em Josué: Manuel<br />

Bandeira, Viana Moog, Alceu Amoro-<br />

so Lima, Múcio Leão, Cassiano Ricar-<br />

do, Menotti del Picchia, Viriato Corrêa,<br />

Afonso Taunay, Austregésilo de Athay-<br />

de, Magalhães de Azeredo, João Neves<br />

da Fontoura, Ademar Tavares, Elma-<br />

no Cardim, Hélio Lobo, Barbosa Lima<br />

Sobrinho, Gustavo Barroso e Aluísio de<br />

Castro.<br />

Facilmente se percebe que o jornal<br />

só citou dezessete nomes. Dois votos<br />

inesperados decidiram a sorte do escri-<br />

tor. Ninguém, além dos próprios votan-<br />

tes, sabe quem deu os votos decisivos.<br />

Talvez pensando nisso, o candidato elei-<br />

to disse dias depois em entrevista:<br />

61 / 125


Há votos, entretanto, que são verdadeiros<br />

enigmas, por outro lado, o julgamento<br />

antes feito pode ser alterado.<br />

(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

“Montello fez o sol parar”<br />

Acabada a apuração dos votos e<br />

declarado o resultado final, a imprensa<br />

começou a colher comentários dos aca-<br />

dêmicos a respeito do novo confrade. A<br />

maior parte deles estava satisfeita com<br />

o resultado. O grande motivo de espan-<br />

to não era o resultado, mas sim o fato<br />

de ele ter vindo logo no primeiro escru-<br />

tínio, fato bastante raro naquela Casa.<br />

A respeito disso, Magalhães de Azeredo<br />

fez o seguinte comentário para O Glo-<br />

bo do dia seguinte à eleição:<br />

A Academia votou bem. Bela votação.<br />

E não é muito comum entrar para<br />

a Academia logo no primeiro escrutínio.<br />

Os que estão aqui que o digam. O<br />

Josué deve estar radiante. Esse moço<br />

tem muito valor.<br />

(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

O então presidente da ABL, Barbosa<br />

Lima Sobrinho, não poupava elogios<br />

ao vencedor, elogiando-lhe a intelectualidade.<br />

Índice<br />

Eu me congratulo com essa nova<br />

geração literária do Brasil pela eleição<br />

de um de seus expoentes: que é sem dúvida<br />

Josué Montello. As letras estão de<br />

parabéns, pois se trata de um homem<br />

que vive, integralmente, para as coisas<br />

da inteligência.<br />

(Jornal do Dia, 21/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Outro que destacou o fato de Montello<br />

ser um homem dedicado à literatura<br />

foi o escritor Gustavo Barroso:<br />

Estou satisfeito pelo resultado do<br />

pleito. Josué Montello é, realmente,<br />

um homem das letras.<br />

(Jornal do Dia, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/1957)<br />

Depois da eleição, em entrevista,<br />

Manuel Bandeira finalmente revelou<br />

seu voto:<br />

Votaria no Josué nos quatro escrutínios.<br />

Mas, felizmente, não foi preciso.<br />

(Correio da Manhã, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Era meu candidato. Tinha quatro<br />

votos para ele, só foi preciso dar-lhe<br />

um.<br />

(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Principal articulador da campanha,<br />

Viriato Corrêa era um dos mais entusias-<br />

mado com a vitória de seu conterrâneo.<br />

Seu carinho para com o amigo fê-lo dar di-<br />

versas declarações a respeito da eleição.<br />

62 / 125


A Academia escolheu um dos maiores<br />

e mais moços escritores do Brasil.<br />

Grande vitalidade, grande talento,<br />

grande futuro.<br />

(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Uma vida literária harmoniosa recebeu<br />

hoje sua melhor recompensa, com<br />

seu ingresso na Academia. Foram seus<br />

livros que o elegeram e todos nós aqui<br />

nos alegramos de receber em plena juventude<br />

um escritor de tão alto merecimento.<br />

(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

O crítico Agrippino Grieco fez, se-<br />

gundo José Mauro, em seu “Café Socie-<br />

ty” Confidencial, a seguinte declaração:<br />

“Isto não é novidade, o Montello é aca-<br />

dêmico desde a escola primária.”<br />

Outro que se pronunciou sobre a<br />

eleição foi João Neves da Fontoura. Ele<br />

fez o comentário mais curioso a respei-<br />

to do novo imortal ao comparar o Josué<br />

das Sagradas escrituras que, querendo<br />

vencer uma batalha, ordenou que o sol<br />

e a lua parassem: Fontoura disse: “Jo-<br />

sué Montello fez o sol parar”. Em outra<br />

entrevista, o mesmo escritor disse que<br />

o eleito era “mais um valor novo que<br />

Índice<br />

ingressa na Academia com títulos ex-<br />

pressivos”.<br />

A imprensa e alguns acadêmicos,<br />

por causa da idade do novo imortal, que<br />

contava com apenas trinta e sete anos,<br />

logo o apelidaram de “Benjamim da<br />

Academia”. E ele ficou sendo chamado<br />

assim por um bom tempo.<br />

Antes da eleição do intelectual ma-<br />

ranhense, esse título pertencia a Álva-<br />

ro Lins, que, na época, tinha quarenta e<br />

dois anos.<br />

Mas onde estava o eleito? Segundo<br />

consta em várias reportagens da época,<br />

ele estava em casa, esperando pelo re-<br />

sultado das urnas. Para passar o tempo,<br />

rabiscava desenhos em pedaços de pa-<br />

pel (um dos desenhos está reproduzido<br />

abaixo). Toda vez que o telefone toca-<br />

va, ele tinha a impressão de que era do<br />

Petit Trianon comunicando o resultado<br />

do pleito. Depois de longos momentos<br />

de tortura (e, provavelmente, de inúme-<br />

ras consultas ao relógio), o telefone to-<br />

cou. Do outro lado da linha, com a voz<br />

63 / 125


emocionada, Viriato Corrêa dá a notícia<br />

com apenas uma palavra: “Eleito”.<br />

Foi por telefone também que o novo<br />

acadêmico fez as primeiras declarações<br />

a respeito da vitória. Suas palavras re-<br />

velam a confiança que tinha no sucesso<br />

da eleição e demonstra também que ele<br />

já se preparava para, um dia ou outro,<br />

ingressar na Casa de Machado de Assis.<br />

A entrevista saiu publicada na edição de<br />

21 de novembro de <strong>1954</strong> do Jornal do<br />

Dia:<br />

A Academia estava naturalmente<br />

no meu caminho de escritor. Dizia Afrânio<br />

Peixoto que em relação à Academia<br />

todos somos incendiários aos vinte anos<br />

e bombeiros aos quarenta. Apenas me<br />

inscrevi como bombeiro três anos antes<br />

e entro na Academia com trinta e sete.<br />

Em outra entrevista, falando a res-<br />

peito das dificuldades encontradas du-<br />

rante a campanha e de seus principais<br />

adversários, Montello creditou a vitória<br />

principalmente a sua juventude.<br />

Tive de enfrentar concorrentes muito<br />

sérios e entre eles cito especialmente<br />

Celso Kelly, que sempre me deu grande<br />

Índice<br />

trabalho, e o ministro Osório Dutra, general<br />

de muitas batalhas e com uma experiência<br />

enorme de tais pleitos. Desejo<br />

frisar que os demais eram todos estreantes,<br />

como eu, tendo, no caso levado<br />

a vantagem da idade. Como era mais<br />

moço, corri um pouco mais e venci.<br />

(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Sobre sua relação com os demais<br />

acadêmicos durante a campanha, o es-<br />

critor mostrou-se satisfeito com a atitu-<br />

de dos eleitores, mesmo com a daqueles<br />

que aparentemente não votariam nele.<br />

Segundo ele, não houve atitudes de hos-<br />

tilidade contra sua pessoa.<br />

O que tenho a dizer sobre minha<br />

eleição é que os acadêmicos, na sua totalidade,<br />

são meus amigos. Os que não<br />

votaram em mim tiveram para comigo<br />

uma atitude de neutralidade afetuosa.<br />

(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Horas depois, a casa do escritor era<br />

invadida por uma multidão de repórte-<br />

res, acadêmicos amigos e admiradores.<br />

Alguns jornais, dias depois, estampa-<br />

ram uma foto na qual aparecia o casal<br />

Josué e Yvonne Montello com um belo<br />

sorriso de felicidade que iluminava as<br />

64 / 125


páginas do periódico. Entre os que esta-<br />

vam na casa do vitorioso, destacava-se a<br />

figura solene, mas jovial, do historiador<br />

Viriato Corrêa, “o amigo de todas as ho-<br />

ras”, como tão bem disse numa ocasião<br />

Josué Montello. A presença do velho<br />

maranhense era indispensável naquele<br />

momento de alegria. Aquela era a hora<br />

de Josué fazer algumas declarações a<br />

respeito de sua espera para candidatar-<br />

-se à Academia e sobre os comentários<br />

de que ele substituiria o amigo na insti-<br />

tuição.<br />

Meu velho amigo Viriato Corrêa<br />

sugeriu um dia que eu fosse seu sucessor<br />

na Academia. Mas o Viriato foi feito<br />

para durar cem anos... e eu não sei se<br />

durarei tanto... Então eu propus uma<br />

solução melhor: que ele me recebesse<br />

na Academia... e é o que vai acontecer.<br />

(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Estava, assim, revelado oficialmen-<br />

te o nome do imortal que receberia o<br />

novo acadêmico no dia de sua posse.<br />

Uma escolha que mostrava o laço de<br />

união entre aqueles dois maranhenses<br />

de tanto talento no manejo das palavras.<br />

Índice<br />

Depois, perguntado como se sentiu com<br />

a sua eleição para a ABL, o escritor res-<br />

pondeu:<br />

Eu me senti feliz e satisfeito. A eleição<br />

para a Academia foi o maior estímulo<br />

que poderia receber na minha<br />

vida de homem de letras.<br />

(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Outro fato surpreendente foi a de-<br />

claração de Josué de que há alguns me-<br />

ses recebera uma carta de Cláudio de<br />

Sousa, na qual o falecido acadêmico<br />

perguntava, num tom de reclamação, o<br />

porque de o autor de O Verdugo não ci-<br />

tar em seus livros as associações a que<br />

pertencia. A resposta seria dada dizen-<br />

do que aquele espaço estava reservado<br />

para escrever “membro da Academia<br />

Brasileira de Letras”. A seguir, ele di-<br />

ria que contava com a ajuda de Cláudio<br />

de Sousa para conseguir a tão almejada<br />

vaga e assim poder pôr nos próximos<br />

livros o nome das instituições a que<br />

pertencia. Mas o autor de A Escola da<br />

Mentira nunca recebeu essa resposta.<br />

Emocionado, Montello declarou que:<br />

65 / 125


A carta fora por mim recebida pela<br />

manhã e, à tarde, tive por intermédio<br />

de Viriato Corrêa, amigo de todas as<br />

horas, a notícia da morte de Cláudio de<br />

Sousa.<br />

(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Passada a euforia das comemo-<br />

rações, só restava, aparentemente, ao<br />

eleito preparar seu discurso de posse,<br />

que, segundo Neiva Moreira, já estava<br />

pronto e era belíssimo. Mas, a verdade<br />

era outra. Faltava ainda preparar-se fi-<br />

nanceiramente para comprar o fardão<br />

acadêmico, que não era nada barato.<br />

Mas esse problema de ordem financeira<br />

foi solucionado pelo governo do Estado<br />

do Maranhão, na figura do governador<br />

Eugênio de Barros, para quem Montello<br />

enviou um telegrama informando da vi-<br />

tória na Academia:<br />

Tenho a satisfação de comunicar<br />

ao meu ilustre amigo que acabo de<br />

conquistar, com minha eleição para a<br />

Academia Brasileira de Letras, a cadeira<br />

fundada pelo nosso conterrâneo,<br />

Artur Azevedo. Alcançando, assim, o<br />

mais alto instituto de cultura de nosso<br />

país, quero transmitir para o meu Maranhão<br />

esse triunfo. Afetuoso. Josué<br />

Índice<br />

Montello.<br />

(Jornal do Dia, 06/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

A repercussão da eleição de Mon-<br />

tello apareceu em diversos veículos<br />

de comunicação da época. No Jornal<br />

do Dia aparece a seguinte nota dando<br />

conta de que o escritor não teria mais<br />

problemas em adquirir seu fardão de<br />

posse.<br />

Foi eleito para a Academia Brasileira<br />

de Letras, na vaga de Cláudio de<br />

Sousa, o intelectual conterrâneo Josué<br />

Montello, autor de vários romances,<br />

entre os quais A Luz da Estrela Morta,<br />

sobre o qual acaba de ser verificado um<br />

plágio por um romancista italiano de<br />

renome universal. Presentemente, o escritor<br />

dá, em Lima, um curso de Literatura<br />

Brasileira.<br />

O governo do Estado resolveu presentear<br />

o novo imortal com o fardão<br />

acadêmico.<br />

(Jornal do Dia, 07/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />

Antes de seguir, é importante notar<br />

que o fato de Josué Montello ganhar a<br />

eleição logo no primeiro escrutínio não<br />

foi milagre. Foi, sim, fruto da esmerada<br />

inteligência do escritor. Numa de suas<br />

66 / 125


crônicas escritas para a revista Manche-<br />

te, cerca de três décadas depois do plei-<br />

to, ele revelaria como ganhou a eleição.<br />

Em seu texto, Montello dissertou sobre<br />

os fardões acadêmicos, contando fatos<br />

que aconteceram com os mais diversos<br />

imortais. Quase no meio da crônica, ele<br />

relembra sua vitória de 04 de novembro<br />

de <strong>1954</strong> e conta como ela aconteceu.<br />

Ele disse que foi efetivar sua can-<br />

didatura quando todos os demais pre-<br />

tendentes à vaga do médico e teatrólogo<br />

Cláudio de Sousa já o tinha feito. Uma<br />

das primeiras notícias que recebeu foi<br />

a de que, como o número de candida-<br />

tos era muito grande, era provável que<br />

ninguém fosse eleito, mas, se fosse, se-<br />

ria no terceiro ou quarto turno de vota-<br />

ção. Uma informação assim desanima-<br />

ria qualquer um, mas o autor de Cais da<br />

Sagração ficou foi ainda mais confiante<br />

com a novidade. Eis o que ele conta so-<br />

bre o fato:<br />

Índice<br />

Rapidamente percebi que, no pleito<br />

a que concorria, o único escrutínio disponível<br />

parecia ser o primeiro, foi nele<br />

que me fixei. (...) Viriato Corrêa, meu dileto<br />

amigo e eleitor exaltado, alarmou-<br />

-se, com as mãos na cabeça, quando lhe<br />

disse minha preferência:<br />

E eu firme: - Só quero o primeiro.<br />

Os outros, os dá a quem quiser.<br />

(Revista Manchete, 28/07/1990)<br />

Como se vê, Montello apostou to-<br />

das as fichas em sua eleição... e ganhou.<br />

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REFERÊNCIAS<br />

• BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. 3ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.<br />

• MAURO, José. “Café Society” Confidencial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956.<br />

• MONTELLO, Josué. Confissões de um romancista. In: Romances e novelas. Rio de Janeiro:<br />

Nova Aguilar, 1986. V. 1.<br />

• ___________. Discurso de posse. Disponível em: www.academia.org.br.<br />

• ___________. O Modernismo na Academia – testemunhos e documentos. Rio de Janeiro:<br />

Academia Brasileira de Letras, 1984.<br />

• MONTELLO, Yvone (org) Cronologia de Josué Montello. In: Romances e novelas. Rio de<br />

Janeiro: Nova Aguilar, 1986. V. 1.<br />

• ___________. Josué Montello – Academia Brasileira de Letras – candidatura (1939/<strong>1954</strong>).<br />

Encadernado.<br />

• ___________. Josué Montello – Academia Brasileira de Letras – Eleição e posse<br />

(<strong>1954</strong>/1956). Encadernado.<br />

• NERES, José. Montello: O Benjamim da Academia. São Luís: Carajás, 2008.<br />

• Jornais e revistas citados no corpo do texto.<br />

José Neres<br />

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG e mestre em Educação pela Universidade<br />

Católica de Brasília. Professor de graduação e pós-gaduação nas instituições UFMA, FAMA e<br />

IESF. Publicou 14 livros, entre eles: Estratégias para Matar um Leitor em Formação, Restos de<br />

Vidas Perdidas, 50 Pequenas traições, A Mulher de Potifar, Montello: O Benjamim da Academia,<br />

Maranhão na Ponta da Língua; além de haver organizado ou coorganizado os livros Tábua de<br />

Papel, O Discurso e as Ideias, Os Epigramas de Artur e O Verso e o Silêncio de Adelino Fontoura<br />

Índice<br />

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A VIDA E A OBRA DE<br />

JOÃO FRANcIScO LISBOA<br />

(1812-2012)<br />

Estátua de João Lisboa na praça João Lisboa - São Luís/MA<br />

Em comemoração ao bicentenário de nascimento de um dos<br />

mais ilustres filhos do Maranhão.<br />

Índice<br />

Foto: Albani Ramos<br />

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“A obra de João Francisco Lisboa é a glória de uma li-<br />

teratura. Ditosa a Província, hoje Estado, que se faz re-<br />

presentar na cultura mental por um tão alto espírito.”<br />

TEÓFILO BRAGA<br />

“João Francisco Lisboa continua a ser um dos nossos<br />

maiores escritores, e não só poderoso, senão fino, corre-<br />

to, culto, escritor que tem estilo e ideias, escritor a quem<br />

o gosto pelas letras não diminuiu o interesse pela vida.”<br />

Índice<br />

OCTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA<br />

“Ele teve, por amor da terra, a inquietação do homem,<br />

e fez toda obra num constante exercício de intros-<br />

pecção racional, honesto, lúcido e sereno. Esse o sen-<br />

tido profundo de sua obra; essa a lição de sua vida.”<br />

PEREGRINO JÚNIOR<br />

70 / 125


TEATRO SÃO LUÍS<br />

Um texto de João Lisboa<br />

Notas explicativas de Sebastião Moreira Duarte<br />

[É o atual Teatro Artur Azevedo, que antes se chamou Teatro União e tem quase a<br />

mesma idade do Autor deste folhetim. Situado à Rua do Sol, no Centro Histórico de São Luís,<br />

é uma das joias arquitetônicas da cidade, construído por iniciativa de Eleutério Lopes da Silva<br />

Varela e Estêvão Gonçalves Braga. Inaugurado em 1817 como propriedade daqueles senhores,<br />

incorporou-se, pela metade, como patrimônio do Governo da Província, em virtude do art. 41<br />

da Lei de 28 de outubro de 1848. A outra metade passou ao domínio público em 1850 (Lei nº<br />

276, de 22 de outubro). Fechado para reforma, foi reaberto em 14 de março de 1852. Passados<br />

apenas onze dias daquela data, João Lisboa, assinando-se pelo nome de Tímon, por que se fizera<br />

conhecido, extravasa sua veia crítica contra a administração da Casa. Seu estilo mordaz encontra<br />

mais um tema com que exercitar-se. Veículo apropriado para essa manifestação foi o folhetim,<br />

espécie de crônica jornalístico-literária muito em voga no século XIX, quando quase não havia<br />

diferença entre fazer jornal e fazer literatura. Mas se o mundo é um teatro, o teatro é o mundo: do<br />

microcosmo da sala de espetáculos, o Observador alarga vistas para o macrocosmo do ambiente<br />

externo, cujos atores se fazem presentes no Teatro, sem disfarçarem os papéis que representam,<br />

numa sociedade fechada, de aristocracia postiça, parasitária e intringuenta, complacente na<br />

própria ostentação, em cujo meio Tímon habita sem se habituar.<br />

Este folhetim saiu pela primeira vez n’O Publicador Maranhense, nº <strong>11</strong>83, a 25 de março de<br />

1852. João Francisco Lisboa tinha 40 anos quando o publicou. Republicando-o no bicentenário<br />

de seu nascimento, esforçamo-nos por fazê-lo acessível, quanto possível, ao leitor de hoje. As<br />

notas que se acrescem ao texto pretendem servir a tal propósito, sem esgotarem, no entanto, o<br />

que permanece por elucidar, por efeito do teor de referência imediata de que se reveste a folha<br />

de jornal].<br />

Ninguém imagina os reveses e desapontamentos que têm vindo ao pobre<br />

Tímon, 1 uns sobre outros, há tempos a esta parte. Todos sabem como ele teve a<br />

glória de ver fulgurar o seu nome na maior parte das chapas provinciais que o<br />

1 Pobre Tímon: o próprio Joãp Lisboa.<br />

Índice<br />

71 / 125


patriotismo dos diversos grupos andou por aí a confeccionar; e já Tímon se<br />

prometia de fazer um figurão imenso no nosso futuro parlamento, quando<br />

a ingratidão, a fraude e a má-fé, de mãos dadas, o excluíram do lugar que<br />

legitimamente lhe competia, para o colocarem, entre os derradeiros suplentes, em<br />

um ponto tão baixo que ainda a sonda lhe não pôde chegar. 1 O que sobretudo lhe<br />

doeu no íntimo d’alma foi não ter tido um único voto no colégio de São Bernardo 2 ,<br />

quando para certos dignos habitadores desse abençoado torrão reservava ele as<br />

suas páginas mais corretas, apaixonadas, e eloquentes!<br />

Mas não foi isso, porque infelizmente as desgraças sempre andam em<br />

chusma. Tímon aspirava ao posto de tenente-coronel do batalhão de reserva na<br />

Guarda Nacional; os seus relevantes serviços, a sua inabalável firmeza de caráter,<br />

e a pasmosa invariabilidade dos seus princípios, que faz desesperação e inveja<br />

dos seus indignos adversários, tudo lhe dava direitos inauferíveis a essa honra,<br />

que nas circunstâncias expostas, não se podia reputar como favor, senão rigorosa<br />

justiça. Justiça porém sem empenhos é cousa que se não conhece na terra que nos<br />

viu nascer; Tímon, pois, não teve outro remédio, senão recorrer aos milagrosos<br />

empenhos, sem todavia descer um ápice daquela dignidade de caráter que todo<br />

mundo lhe conhece, e admira.<br />

Os amigos e influentes, que andam de ombro a ombro com o poder,<br />

voltaram com muito boas palavras,<br />

E encheram-lhe com grandes abundâncias<br />

O peito de desejos e esperanças. 3<br />

Mas oh dor, oh indignação! De repente dão os jornais a notícia de que<br />

1 João Lisboa ficou na suplência como deputado à Assembleia Provincial, em 1851. Mas não se tome ao pé da letra, por não corresponder<br />

à verdade, o de que, neste início do folhetim, se queixa o narrador. Vale mais enxergar o artifício de que lança mão, em<br />

igualar-se a numerosos de seus concidadões, ociosos pedinchões de empregos, para depois criticá-los a gosto e com a autoridade<br />

de quem conhece, por dentro, as artimanhas dos cavadores de posições, que “anda[va]m de ombro com o poder” provincial.<br />

2 Colégio de São Bernardo: o eleitorado desse município, a nordeste do Maranhão, fronteiriço com o Piauí.<br />

3 Versos extraídos d’Os lusíadas de Camões (Canto V, 54). O pronome foi adaptado (no original: encheram-me, em vez de encheram-lhe)<br />

e atualizado, no texto-base, o substantivo abundâncias (por abondanças, em Camões).<br />

Índice<br />

72 / 125


outro pre-tendente mais feliz fora proposto! Tímon fulminado, esteve a pique<br />

de fazer um rompi-mento estrondoso, convertendo-se em político beija-flor<br />

para andar colhendo o suco onde ele se oferecesse, como o exigiam a honra e os<br />

interesses do partido, menoscabados em sua pessoa. 4 Um novo contratempo veio<br />

ainda exacerbar o seu mau humor, e no estado verdadeiramente assustador a que<br />

tinha chegado, já estaria ele a esta hora fazendo algum desembarque repentino<br />

na ilha de Cuba, para desabafar, se as emergências da situação (como se diz em<br />

estilo de artigo de fundo), 5 unidas a certas desculpas, e a novas promessas, desta<br />

feita com seus visos de sinceras e realizáveis, não tornassem aqui necessária a sua<br />

importante presença.<br />

Boca de cena do Teatro Arthur Azevedo<br />

4 A biografia do Autor obriga a uma “leitura reversa” do caráter de político em que ele acima se apresenta. Ver Henriques Leal: João<br />

Francisco Lisboa, in Pantheon maranhense, tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro: Alhambra, p. 295-387.<br />

5 Artigo de fundo: o editorial de jornal.<br />

Índice<br />

73 / 125<br />

Foto: Gaudêncio Cunha 1908/Acervo do Museu Histórico e Artístico do Maranhão


Tratava-se nada menos que de compensar as injustas preterições sofridas<br />

por Tímon, afiançando-se-lhe a vigésima-terceira vice-presidência, 6 que não pode<br />

tardar, e de dar aqui mesmo pasto abundante ao seu ardor belicoso-revolucionário.<br />

E como efeito, para que ir tentar aventuras libertadoras em ilhas e continentes<br />

estranhos, quando em nossa própria terra não nos falta em que lutar braço a braço<br />

com a tirania?<br />

O leitor perspicaz penetrou já sem dúvida que me refiro ao nosso Teatro, e<br />

ao abo-minável triunvirato que nele reina, governa e administra, com tão descarado<br />

e ferrenho despotismo.<br />

Esta deplorável história requer especificada de mais longe.<br />

As revoluções, os golpes de Estado, as constituições promulgadas e<br />

derribadas, as confiscações, deportações, e estados de sítio, de que certos países<br />

estrangeiros estão sendo lastimoso teatro, não podiam deixar de saltar para o nosso,<br />

e de inchar os bofes dos ambi-ciosos cá da terra, que por trás dos bastidores acharam<br />

ocasião e pretexto para cevar seus ânimos ferozes, e representar as mesmas cenas<br />

de perfídia e opressão cuja só notícia já nos comovia tanto.<br />

Um primeiro ato legislativo, promulgado em 1850, e que se pode chamar<br />

a grande Constituição Teatral, estreou a carreira; 7 depois em 1851 seguiram-se-<br />

lhe umas instruções orgânicas, e após estas, o monstruoso regulamento de 5 de<br />

março deste ano das graças de 1852, 8 avisos e anúncios, impressos, afixados e<br />

verbais, que têm posto tudo na mais de-plorável confusão. Já Tácito o havia dito,<br />

a multiplicidade das leis é sinal evidente de de-cadência e tirania: Corruptissima<br />

republica, plurimae leges.<br />

6 Vigésima-terceira vice-presidência: o tom mordaz em que é lavrado o texto leva o Autor a evidente exagero. Não chegavam a tal<br />

número as vices-presidências da Província.<br />

7 A grande Constituição Teatral: a Lei nº 276, de 22 de outubo de 1850, pela qual o Governo da Província assumiu o Teatro<br />

União, passando seus administradores à categoria de funcionários públicos.<br />

8 O Teatro foi adquirido pela Província, para em seguida ser entregue, mediante contrato de uso, a algum empresário, ou companhia<br />

de teatro, nacional ou estrangeira, que se habilitasse a mantê-lo em funcionamento. Não havendo quem se habilitasse ao<br />

encargo, o Governo (de Eduardo Olímpio Machado) nomeou uma comissão de três membros para administrar a Casa.<br />

Índice<br />

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Veja-se agora como a atrocidade do pensamento legislativo tem<br />

dignamente correspondido às perfídias e asperezas da execução. Apossados uma<br />

vez os triúnviros da autoridade, não se sabe como, e nem por que modo, mudaram<br />

o venerável nome do nosso teatro, que da União que era, se ficou chamando de São<br />

Luís. Esta mudança parece ser resultado de um vasto plano há muito combinado, e<br />

cuja chave só o tempo nos poderá dar; mas nenhum homem de tino tem deixado de<br />

notar com surpresa e indignação que certa gente já não data as suas cartas senão de<br />

São Luís, e que de São Luís se vão todos os dias chamando ora as huris, ora a baía,<br />

e agora enfim o mesmo teatro, que tinha seu nome próprio, muito bem soante ao<br />

ouvido e à moral, já consagrado pelo tempo, e por nenhum caso merecedor de ser<br />

apagado por um traço de pena ditatorial.<br />

A tirania, como é seu veso antigo, não se desprezou desta feita de recorrer<br />

à astúcia; e para interessar o comércio no êxito dos seus planos, foi um de seus<br />

primeiros cuidados anunciar que comprava floretes, plumas, galões, et caetera.<br />

Lembram-se todos da melúria com que os ditadores falavam a princípio<br />

nas assinaturas, dizendo a uns que eram baratíssimas, a outros que cada um<br />

escolhia o seu camarote onde bem lhe convinha &&, mas de repente, e com data<br />

de 3 de março, estala um anúncio em todos os jornais, que os assinantes pagassem<br />

o imposto de um trimestre adiantado dentro de cinco dias improrrogáveis (até 8<br />

de março) sob pena de revelia, exclusão, e devolução! Digam-me agora os homens<br />

sinceros e desapaixonados de todas as opiniões, sem diferença de matizes, em que<br />

mais odioso foi o atentado de 2 de dezembro, 9 onde pelo contrário se deu aos pobres<br />

dos franceses atarantados não menos de dezenove dias para dormirem sobre o<br />

caso antes de irem à urna? 10 Numa surpresa tão odiosa ninguém teve tempo de<br />

reconhecer-se e dar-se a conselho; e todos sem exceção, consternados, mudos, ou<br />

9 O atentado de 2 de dezembro [de 1851]: o golpe de estado levado a efeito por Luís Napoleão Bonaparte, que dissolveu a Assembleia<br />

Nacional Francesa e instalou o Segundo Império. Observe-se, em confronto, a data do folhetim de João Lisboa.<br />

10 Não menos de dezenove dias: os franceses tiveram até 20 e 21 de dezembro de 1851 para, em plebiscito, aprovarem o golpe de<br />

Luís Napoleão.<br />

Índice<br />

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esmungando quando muito, foram depositar a cédula fatal nas fauces hiantes do<br />

cofre ditatorial. <strong>11</strong> Tímon, como os outros, caiu em seus cinquenta mil réis, posto<br />

que mais vermelho de cólera que um comunista, 12 visto que a sua tensão era ir<br />

pagando aos quatro mil réis, quinze ou vinte dias depois da respectiva récita, e de<br />

ser três ou quatro vezes procurado em vão pelo cobrador. Entretanto pensou acaso<br />

a ditadura nos desarranjos, apertos e desapontamentos que produziu esta medida<br />

atroz, no meio de um povo amável, que tem direito a ser distraído e recreado com<br />

delicadeza, e que há de sê-lo, nós o dizemos em alto e com [sic] som, em que lhe<br />

pês 13 a tirania? (Esta última frase é do melhor cunho, e revela um estudo profundo<br />

dos nossos clássicos).<br />

A esta violenta extorsão de 3, seguiu-se o abominável regulamento de 5<br />

de março (a ditadura cada vinte quatro horas aborta um monstrengo legislativo)<br />

em <strong>11</strong> férreos artigos, digna miniatura dos 58 da Constituição Consular, 14 caiada<br />

e rebocada, de Luís Napoleão. Estes onze artigos são um magnífico compêndio de<br />

despotismo, como cada um poderá verificar, mediante uma simples vista d’olhos.<br />

Os artigos 1º e 2º contêm disposições vexatórias sobre pagamento, senhas e<br />

bilhetes. O artigo 3º é uma verdadeira monstruosidade; como proibir num país<br />

livre que cada qual se acompanhe dos seus escravos? O 4º e 5º são parceiros do 7º,<br />

posto que de propósito os separassem, para nos deitar poeira nos olhos, e poder-<br />

se a tirania entronizar com pés de algodão. Com quatro palavras deram garrote à<br />

liberdade da algazarra e pateada, e à dos versos e improvisos, que ficam sujeitos à<br />

prévia revisão; e para segurar o efeito destas medidas, desarmamento e privação<br />

geral das benga-las chapéus de sol! Precaução odiosa, e cópia servil da censura<br />

<strong>11</strong> Fauces hiantes do cofre ditatorial: as bocas (fauces) escancaradas (hiantes) das urnas eleitorais francesas, de onde saiu ratificada<br />

a ditadura de Luís Napoleão.<br />

12 Mais vermelho ... que um comunista: a alusão, aqui e mais adiante, faz sentido pelo fato de que os comunistas foram os que<br />

mais protestaram contra o golpe de 1851. Lembrar, de Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852).<br />

13 Forma apocopada do subjuntivo (presente, terceira pessoa do singular) do verbo pesar. (Nota de Jomar Moraes, curador da<br />

edição do texto-base utilizado para estra transcrição).<br />

14 Miniatura dos 58 da Constituição Consular: a esse número se resumiam os artigos da Constituição baixada por Luís Napoleão, em 14 de<br />

janeiro 1852, em virtude dos poderes consulares que recebera no referido plebiscito.<br />

Índice<br />

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dos jornais e do desarmamento da Guarda Nacional, operado em França! Para<br />

engodo, permitem sinais de aprovação e desaprovação; naturalmente poder-se-<br />

ão levantar os dedos para o ar, e piscar os olhos para os vizinhos mais próximos.<br />

Um silêncio verdadeiramente sepulcral! Solitudinem faciunt, pacem appellant.<br />

15 Art. 7º É proibido o uso de se fumar tanto nos corredores, como no salão de<br />

cima. A menor tirania deste é a da redação. Pode haver cousa mais deliciosa,<br />

principalmente para os que não fumam, do que o uso de se fumar? Art. 10. Oh! A<br />

formidável garantia dos lugares que cada um escolher na plateia, uma vez que os<br />

marque com qualquer sinal! A Comissão garante, uma vez que os espectadores se<br />

prostrem às suas plantas! Mas se o sinal for bifado 16 por algum comunista? Se o<br />

usurpador o empurrar com a mão do gato, ou lhe der algum pontapé? Latet anguis<br />

in herba! 17 Tudo isto tem por fim dar azo 18 a um abominável sistema de espionagem<br />

e delações, coroadas por conselhos de guerra que julguem os contraventores. E<br />

se não, aí está, para tirar as dúvidas, a cor encarnada das grades dos camarotes,<br />

que simbolizava a guilhotina e o reinado do terror, como até com reticências<br />

observou judiciosamente o folhetinista d’O Observador... 19 a quem peço perdão<br />

da minha temeridade em fazer, depois da sua, a análise deste monstruoso código.<br />

Ainda mais. Depois da sua promulgação, e de haverem apanhado o<br />

dinheiro dos assinantes, novo firmam 20 declarando que ninguém podia levar ao<br />

seu camarote mais de sete pessoas! Esta foi mesmo de escachar, 21 e sobretudo<br />

ao pobre Tímon, cuja família consta de mulher, oito filhos, sogra, e de duas<br />

15 Solitudinem faciunt...: fazem um deserto e dão-lhe o nome de paz. (Tácito, Vida de Agrícola, cap. XXX).<br />

16 Bifado: retirado sorrateiramente.<br />

17 Latet anguis...: Há uma serpente escondida na grama. (Virgílio, Bucólicas, III, v. 93).<br />

18 Dar azo: dar ensejo ou servir de pretexto.<br />

19 O folhetinista d’O Observador: Francisco Sotero dos Reis – antes, mestre, e, depois, ferrenho adversário político de João Lisboa.<br />

20 Novo firmam...: emitem novo regulamento.<br />

21 Escachar: rachar.<br />

Índice<br />

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cunhadas, 22 que contando perto de um quarto com um vigésimo de século 23 de<br />

existência tempestuosa, e infamada[s] com numerosos naufrágios de candidaturas<br />

matrimoniais, se aferraram, como a sua última tábua de salvação, às esperanças que<br />

a exposição teatral lhes proporcionava de poderem enfim tomar parte no banquete<br />

da vida! (Depois de terminar esta longa, pomposa e laboriosa oração, descansei<br />

alguns momentos satisfeito).<br />

Não era possível sofrer tanto, e posto que com desprezo das regras de<br />

cronologia, em obséquio à conexão da matéria, direi já aqui que no dia aprazado<br />

invadi os corredores com todo meu povo, deixando boquiaberto o Sr. Januário 24 e a<br />

todos os mais satélites da tirania. Creio mesmo que foi o meu populoso camarote o<br />

que deu na vista d’O Observador, sendo fácil de explicar o engano com que contou<br />

14 em vez de 13 pessoas que realmente eram, e atribuiu a patronato o que era<br />

simples resultado do meu arrojo, e da desesperação das moças.<br />

Se eu ainda aqui disser que para as sete pessoas permitidas, só se<br />

dispuseram cinco cadeiras, ficará claro como água que os triúnviros juntaram<br />

à opressão o escárnio, ou antes a mangação, 25 como muito bem lhe chamou O<br />

Observador.<br />

Homens há que, não obstante os mais claros sintomas de perigo, tratam<br />

tudo de res-to, e em tom de zombaria; é justamente o que têm feito alguns dos<br />

nossos mal-avisados concidadãos, apesar de se estar a meter pelos olhos de todos a<br />

evidência de quanto até aqui tenho referido; mas fico que ainda os mais cegos cairão<br />

em si, se à infernal unidade de vistas que tem presidido à legislação e administração<br />

teatral juntarem os seguintes fatos e coincidências, pesando-os com a madureza<br />

22 Mulher, oito filhos...: seria essa a família do “pobre Tímon”, não a do próprio Autor. De seu matrimônio com D. Violante Rosa<br />

da Cunha Lisboa, João Lisboa não teve filhos. Em 1846, o casal adotou uma filha de seu amigo Olegário José da Cunha, a qual<br />

veio a falecer após um ano. O amigo deu-lhe uma segunda filha, batizada com o mesmo nome da primeira (Maria).<br />

23 Um quarto com um vigésimo de século: modo sutil de dizer a idade de uma mulher de trinta anos.<br />

24 Antigo porteiro, ou guarda do nosso Teatro. [Nota do Autor].<br />

25 Mangação: zombaria.<br />

Índice<br />

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que merecem:<br />

1º Há pouco mais de um ano, um dos triúnviros fez à Europa uma viagem<br />

que já então muito deu que falar, deitando voz que ia contratar vapores;<br />

hoje porém está assaz averiguado que o de que se tratava era de fazer<br />

evaporar as nossas liberdades, e nesse intento lá se andaram fazendo<br />

conferências entre Luís Napoleão, o feld-marechal Haynau 26 e outros que<br />

tais, sendo o resultado o golpe de 2 de dezembro lá e aqui.<br />

2º A demissão de Mr. Pavion, por se haver distinguido em defender<br />

a liberdade do molequinho José, e em levantar aquelas formidáveis<br />

barricadas contra o Serra Lima.<br />

3º A inauguração da Sociedade Terpsícore no mesmo dia 2 de dezembro<br />

(!!! querem-no mais claro?), com uns estatutos ou carta outorgada, em<br />

que a Diretoria se declara de direito divino, superior a qualquer reforma<br />

ou deliberação da sociedade em massa, e isto contra os princípios mais<br />

comezinhos do contrato social, que torna indispensável, para que a cousa<br />

possa ir adiante, uma assembleia constituinte regularmente eleita, com<br />

ou sem cacetes, e um pacto fundamental, sinalagmático ou bilateral, que<br />

consagre a aliança do povo e do poder. A propósito desta Sociedade, tenho<br />

a satisfação de anunciar ao respeitável público que a tradução completa<br />

do seu majestoso título foi incumbida a um dos mais sábios helenistas<br />

desta erudita capital. 27<br />

4º O aparecimento em nossas plagas do afamado príncipe russo Labanoff<br />

de Rostoff Cevallos y Bajallos, senhor de Rogneda e mares adjacentes, 28 que<br />

26 O feld-marechal Haynau: Julius Jacob von Haynau (1786-1853), lembrado pela repressão feroz que promoveu contra minorias<br />

da população austro-húngara.<br />

27 Terpsícore, na mitologia grega, era a musa da Dança.<br />

28 Entende-se aqui sutil referência a algum contrabandista, real ou fictício, entre tantos de que ficou fama nos melhores anos do<br />

comércio maranhense ao longo do século XIX. Evidência disso encontra-se na mistura do nome (que se percebe propositalmente<br />

deturpado) do príncipe Dmitry Ivanovich Lobanov-Rostovsky com os espanhóis que se lhe seguem. O verdadeiro Lobanov-<br />

-Rostovsky já estava morto desde 1838.<br />

Índice<br />

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posto inculque andar procurando emprego para uma famosa carregação<br />

de martas, zibelinas, 29 baús de Moscóvia, e colossos do Norte... em<br />

miniatura, com que traz abarrotado o seu iate, não padece dúvida que o<br />

seu verdadeiro fim é pôr tudo a jeito do seu grande imperador Nicolau,<br />

favoneando todos os absolutistas do mundo, a cujo cheiro anda. E se não,<br />

por que é que, tendo ele saído de Pernambuco com destino para aqui<br />

desde 19 de fevereiro, como anunciou o Diário Velho, ainda até hoje não é<br />

S. A. aparecido? É porque, segundo me informou o nosso amigo Gamboa,<br />

que anda à pista de toda a casta de contrabandos, o homem, ou jovem<br />

imberbe (Diário de Pernambuco citado), saltou às ocultas em Jericoacara,<br />

e, procurando abrigo, primeiro em casa do Aprício, na Maioba, por mais<br />

bonitinho, depois na do Antônio Gregório, no Cutim, se pôs em dous<br />

saltos de pulga nesta cidade, onde hospedado no Hotel Condeixa, tem<br />

tido repetidas conferências noturnas com a respeitabilíssima Comissão<br />

Diretora...<br />

Mas se há cegos que caminham descuidados às bordas do precipício, não<br />

faltaram contudo patriotas tão atilados como enérgicos que juraram sepultar-se<br />

nas ruínas do Teatro, antes do que submeter a cerviz ao jugo.<br />

O dia 14 de março amanheceu claro e sereno; e o sol, rutilando e ferindo<br />

o úmido e diáfano vapor que a terra exalava, bem como os orvalhos com que a<br />

chuva borrifara telhas e calçadas, produzia uma donosa 30 vista tal como a beleza<br />

de Camões, maltratada nos brincos 31 amorosos, rindo e chorando a um tempo,<br />

ostentava o olhar radiante, mas toldado e orvalhado pelas lágrimas. 32 Era o<br />

aniversário de uma princesa adorada pelas sua inefável bondade; e no dúplice<br />

29 Martas, zibelinas ou martas zibelinas: animais de peles muito apreciadas para o vestuário.<br />

30 Donosa: galante, graciosa.<br />

31 Brincos: brinquedos.<br />

32 É visível, nestas linhas e nas que se seguem, o tom de paródia grotesca, em que o Autor reproduz o estilo meloso, surrado e artificial,<br />

que tem feito a moda de certa crônica mundana.<br />

Índice<br />

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agouro da formosura do dia, e das recordações que ele trazia, achavam os heróis<br />

maranhenses novos incentivos ao seu generoso ardor. A cólera e o entusiasmo<br />

porém subiram de ponto quando se soube que o vaso das iniquidades fora cheio<br />

com a sacrílega empalmação dos bilhetes de plateia; um grito unânime se levantou<br />

de todos os ângulos da cidade, e ficou assentado de pedra e cal que desse uma<br />

tremenda pateada à Companhia, à Comissão, e a tudo mais que tivesse ressaibos<br />

de tirania, fraude e incapacidade. E a polícia cá de fora ia feita nesta generosa<br />

conspiração, na pessoa de um dos seus mais zelosos agentes, ressentida, dizem,<br />

de umas certas usurpações que a polícia interior fizera de alguns dos seus mais<br />

sagrados direitos.<br />

À hora aprazada, a população ergueu-se como um só homem (!) e<br />

precipitou-se em ondas naquele santuário do prazer que a mais inqualificável<br />

perversidade traçava converter em antro de torturas. Os triúnviros passeavam pelos<br />

corredores e salões, um horrivelmente barbado, e os outros dous miseravelmente<br />

desbarbados, mas todos eles de torva e medonha catadura, agitados, e lançando<br />

ao povo olhares truculentos em que se traduzia o pensamento de Tibério: Odeunt<br />

dum metuant. 33<br />

Sem fazer cabedal do seu ódio impotente, corri açodado ao meu camarote,<br />

e quando vou a debruçar-me sobre as grades para dar o sinal da peleja ao povo<br />

impaciente... Eternos deuses! Um soberbo lustre, vertendo torrentes de luz, por<br />

mil bocas ou canudos, inunda a sala e as galerias, reflete no outro, no bronze, nas<br />

sedas, nas pérolas, nos diamantes , no olhar ardente das belas, ofende, deslumbra,<br />

ofusca e cega os nossos! Longe ideias vãs de ódio, guerra e combates! Um surdo<br />

murmúrio de admiração e gozo se levanta de todos os ângulos do edifício, atulhado<br />

d’alto a baixo, plateias, frisas, camarotes, torrinhas, varandas, de mil cabeças, e de<br />

33 Odeunt, dum metuant: decerto para retratar a falsa cultura do cronista parodiado, o Folhetinista adultera a conhecida frase: Oderint (e não<br />

odeunt) dum metuant (odeiem-me, desde que me temam), atribuindo-lhe autoria equivocada. Segundo Suetônio, era Calígula (e não Tibério)<br />

que repetia tal expressão, tomada de uma tragédia de Ácio (Vida de Calígula, 30.1).<br />

Índice<br />

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um duplicado número de ouvidos atentos, e de olhos acesos!<br />

Aturdido eu mesmo, e quase fulminado, fechei involuntário os meus, e<br />

quando os abri de novo, pareceu-me que dançava a sala, e toda a armação superior,<br />

ao som da ruidosa orquestra, como devem dançar, nas campinas desertas do oceano<br />

e ao formidável concerto das ondas, os vastos salões dos gigantescos vapores<br />

modernos!<br />

Balançado molemente deste jeito, e mais recobrado já do pasmo e<br />

estupefação do primeiro momento, pus-me a notar e a considerar um por um os<br />

mil prodígios que o fantástico recinto oferecia à minha vista enleada e surpresa. O<br />

leitor os poderá apreciar, sabendo que com haver Tímon ocorrido as sete partidas<br />

do mundo, nunca contudo vira cousa alguma que pudesse emparelhar com o nosso<br />

teatro!<br />

Teatro Artur Azevêdo - São Luís/MA<br />

Índice<br />

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Foto: Albani Ramos


Fundo branco em geral, nos tetos e caixas dos camarotes, e fundo azul-<br />

celeste nas pilastras do arco do proscênio, mas tudo soberbamente esmaltado e<br />

matizado com molduras de outro, festões e carrancas de bronze, arabescos e baixos-<br />

relevos, que suspendem, alegram e encantam. Nas pilastras se veem as musas<br />

da dança e do canto, do drama trágico e do drama mofador, 34 acompanhadas de<br />

emblemas e atributos, e no meio de uma admirável profusão de flores e frutos, que<br />

o capricho inteligente da arte derramou com largas mãos, do bojo talvez de uma<br />

cornucópia que também ali se enxerga. Que magnífica cortina de cetim verde nos<br />

recata os mistérios da cena, com sua rica barra de ouro, e como está gentilmente<br />

meio arregaçada por laços e cordões do mesmo luzente metal que a terra cria!<br />

Defronte, a grande tribuna, igualmente recatada, desdobra as vistas já fatigadas de<br />

tantos esplendores, o seu largo manto de veludo cremesim. 35<br />

Tudo isto porém seria nada, se este esplêndido edifício não palpitasse<br />

e respirasse no bulício e animação das centenas de espectadores que o enchem e<br />

atulham, do fundo à sumidade. Ali está, nem mais nem menos, a princesa Callimacki,<br />

Embaixatriz da Sublime Porta, que tanto relevo dera em Paris aos bailes do Eliseu;<br />

no camarote imediato, a branca e delicada Amina, desta feita antes encantadora<br />

e feiticeira, que encantada; mais avante a majestosa Juno, e a volumosa Ceres,<br />

um tanto crestada e trigueirinha, porque tendo ado-tado o sistema de agricultura<br />

brasileiro, andou talvez a presidir à queima dos roçados; do lado oposto, e frente<br />

a frente, a cruel Tormenta com seu olhar duro e abrasador; e Força-dos-Corações,<br />

lânguida e voluptuosa, mas não menos perigosa que a terrível companheira. Lá<br />

a descubro também, a graciosa Hebe, vertendo, dos rubicundos lábios, o riso e a<br />

mocidade. Só não sabia que a amável copeira dos deuses se tinha deixado atar pelo<br />

Himeneu àquele reforçado Tramontano que lhe fica ao lado.<br />

34 Terpsícore, Melpômene e Talia, respectivamente. Drama mofador: a comédia.<br />

35 Cremesim: variante (arcaica) de carmesim.<br />

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Estava ali também sublime e dino, 36 repimpado ora num, ora noutro<br />

camarote, o nosso reverendo e impreterível Padre Camilo, que nunca faltou nas<br />

grandes ocasiões.<br />

Era a Grécia, em suma, o Maranhão, o Olimpo e o Oriente em peso que<br />

se tinham dado rendez-vous 37 para aquele templo das musas e das artes; eram<br />

deusas, belezas, e huris de toda a casta; e eu seria tentado a julgar-me no meio de<br />

algumas das mil e uma noites, se bem, firme em meu conceito e entendimento,<br />

não visse que ao contrário era uma noite só que valia como mil.<br />

Pelas sagradas barbas do Profeta! Pois não é o próprio glorioso califa<br />

Aaronel-Raschid que acaba de assomar à tribuna imperial em toda a majestade<br />

do seu venerável aspecto? Ah! Tímon, prostrado, rendido, e transformado, estava<br />

outro inteiramente, e como se envelhecera nos hábitos de um cortesão, ergueu-se,<br />

e quase dum salto, pôs-se no salão onde o mesmo luxo e bom gosto que vira na<br />

sala do espetáculo o surpreenderia agradavelmente, se ainda a surpresa pudesse<br />

realizar-se naquela noite memorável. Uma multidão alegre, ruidosa e descuidada<br />

se cruzava em todos os sentidos, cortando, girando, e circulando a sala, e só Deus<br />

sabe que sentimentos me saltearam quando dei com os olhos nos triúnviros,<br />

túmidos de orgulho e rindo à socapa, de verem em que tinha disparado o arrojo<br />

de tantos Sansões, ainda há tão pouco furiosos e resolutos a enterrar-se com eles<br />

nas ruínas do edifício! Desviei-me prontamente, e penetrei o augusto camarim,<br />

arredando com o mais profundo acatamento o reposteiro de riquíssima caxemira<br />

primorosamente bordado.<br />

O interior daquele mimoso tabernáculo concentra e resume todo o luxo<br />

esparso pelas mais partes do edifício; um aveludado tapete amacia o pavimento;<br />

as paredes, forradas de finíssimo papel dourado; o teto branco, com molduras de<br />

36 Dino: digno. O verso é d’Os lusíadas (Canto I, 22) de Camões.<br />

37 Se tinham dado rendez-vous: haviam marcado encontro.<br />

Índice<br />

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ouro, deixa ver no centro um belo florão, onde o ouro brilha igualmente.<br />

O califa contemplava a plateia, naturalmente satisfeito da pública<br />

felicidade; e quando, ao voltar-se, deu com os olhos em mim, um amável sorriso<br />

pairou-lhe nos lábios, como para adoçar o entono da majestade. “Comendador dos<br />

Crentes (lhe disse Tímon, adiantando-se respeitoso, e curvando-se quase a tocar<br />

as pontas das suas chinelas escarlates), permitiu Alá que no glorioso reinado de<br />

Vossa Grandeza o império próspero e florescente visse a tantos e tão pasmosos<br />

melhoramentos, como a regeneração do carnaval pela introdução das máscaras,<br />

e a abertura e remoçamento deste templo, ainda há pouco fechado sob sete selos,<br />

fétido, sórdido e imundo. O povo se diverte, Senhor, e para que o faça, não é mister<br />

que Vossa Grandeza o mande, sob pena de ter a cabeça cortada, como usava o<br />

magnífico Paxá que com o seu Urso brilha no drama do espirituoso Scribe; 38 basta<br />

um leve e gracioso aceno, e eis os risos, os jogos e folguedos que brotam como as<br />

flores, em perene primavera. Deixai que se evaporem em ríspidos e agros queixumes<br />

esses espíritos tristonhos que em tudo acham que notar e repreender, e à própria<br />

alegria seriam capazes de vestir de luto e dó, emprestando-lhe a desconsolação<br />

e desabrimento de que andam eternamente saturados. Enquanto eles cumprem<br />

assim o seu mísero fadário, cantem os fiéis afortunados o harmonioso e pátrio<br />

sabiá e a palmeira airosa que lhe serve de pouso; 39 invadam, passeiem, logrem e<br />

admirem o tempo, e mormente esses excomungados artigos de fundo de má morte,<br />

que seriam a nossa perdição, se aqui não viéssemos achar a salvação. Ah! Talvez<br />

não tardem alguns momentos, e venha a dança com seus vertiginosos rodopios<br />

pôr a coroa e remate a tanto prazer.”<br />

O califa sorriu-se, mas notando com aquela alta perspicácia que o<br />

caracteriza os olhares expressivos que eu lançava aos ângulos desguarnecidos<br />

38 O espirituoso Scribe: Eugène Scribe (1791-1861), autor de centenas de peças para o teatro, celebradíssimo em seu tempo, hoje<br />

quase completamente esquecido. O urso e o pachá era o título de uma opereta deste autor, encenada pela primeira vez em 15 de<br />

março de 1842, num hospital para doentes mentais, na França.<br />

39 Alusão a Gonçalves Dias e à sua Canção do Exílio.<br />

Índice<br />

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do camarim: “Não vês aqui”, disse, “as afamadas tortas de queijo, e os deliciosos<br />

pães-de-ló de macaxeira com que o pasteleiro imperial, o príncipe Breddedin<br />

Hassan, costuma a fazer vergar os nossos bufetes e aparadores, porque a pressa,<br />

por uma parte, e a sua eternidade, por outra, não permitiram que se aprontasse<br />

este confortável ingrediente do grande festim. Porém, (acrescentou com bondade)<br />

aqui tens um copo de água fresca e pura do soberbo e caudaloso Eufrates.”<br />

Tímon o sorveu de um trago, com não menos avidez que reconhecimento,<br />

e apartou-se, fazendo mil reverências e zumbaias, 40 mais ao modo oriental que ao<br />

grego, e tanto mais satisfeito e esperançado, que o califa em sua presença deu as<br />

mais terminantes ordens para que da verba de eventuais se tirasse o necessário<br />

para fazer-se e distribuir-se doces e confeitos pelo povo. 41<br />

Debruçado outra vez às grades de ferro do meu camarote, como esquecido<br />

de tudo quanto me arrastara àquele lugar, por então só vi a multidão alegre e<br />

fascinada, sem que o som de não sei quantas trombetas e timbales, e os rufos de duas<br />

caixas de guerra da or-questra, fossem cabais a despertar nela do profundo letargo<br />

em que jaziam os sentimentos belicosos com que para ali entrara. Longe disso,<br />

estava de tão boa feição que, erguido o pano, o dito mais sensaborão, os menores<br />

trejeitos e esgares, e quaisquer desastradas cambalhotas dos sereníssimos atores<br />

que por sobrenome não pecam, desafiavam e arran-cavam explosões enormes<br />

de palmas e aplausos, a cujo ruído, Tímon, o pobre Tímon, meio desperto, meio<br />

dormindo, só tinha força para suspirar, e dizer no seu foro interior: Ó atenienses,<br />

ó povo espirituoso e sem igual!<br />

Em um dos intervalos, sem saber-se como nem como não, armou-se com a<br />

rapidez do raio uma numerosa quadrilha no salão. Os que se impacientaram com este<br />

inopinado acontecimento (e segundo o pude colher de verídicas e desapaixonadas<br />

40 Zumbaias: mesuras, cumprimentos afetados, salamaleques.<br />

41 Pelo povo: para o povo, por entre o povo.<br />

Índice<br />

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informações, foram quase todos os que não conseguiram entrar na quadrilha) se<br />

derramaram depois cá por fora em mil várias conjecturas sobre a genuína causa<br />

dele, sendo que, dos meus confrades folhetinistas, uns o atribuem à falta de juízo,<br />

e outros a gosto mau e pior. Nada disso: a razão de todas estas aéreas chocalhices,<br />

é que poucos escrevem a história com o critério e sisudez que ela requer, e Tímon<br />

usa. É o caso. Estará o respeitável público lembrado que, a pedido meu, e para<br />

a vindoura festa dos Remédios, 42 encomendou ao Sr. Comendador Porto para o<br />

Oriente o famoso corno de Oberon; 43 entretanto havia todo mundo, engolfado nas<br />

distrações e susto da atualidade, perdido inteiramente de vista este im-portante<br />

negócio, mas o Sr. Gamboa, que não deixa passar contrabando ou camarão pela<br />

malha, e que, para não ser abelhudo, já levou para o seu tabaco, confiou-me debaixo<br />

de segredo que a encomenda veio no iate do príncipe Labanoff, em um rico estojo,<br />

e dentro de um baú de Moscóvia dos mais ordinários, para não desafiar suspeitas.<br />

Parece que na lida e barafunda dos últimos aprestos do Teatro, um dos triúnviros<br />

(não farei ao publico a injúria de supor que seja necessário nomear-lho para que o<br />

conheça) o esqueceu ali por acaso; e eis senão quando, tendo de tocar a banda de<br />

música dos Educandos 44 naquele intervalo, um dos meninos, descuidado e sem<br />

malícia, em vez do seu, embocou aquele inu-sitado instrumento. Agora o verão:<br />

salta o califa com toda a sua corte para o meio da sala, e saltam com ele, como<br />

tocados de súbita vertigem,<br />

Velhos e moços, donas e donzelas, 45<br />

42 A festa dos Remédios acontecia todos os anos, em outubro, no largo frontal à igreja do mesmo nome, hoje Praça Gon-çalves<br />

Dias. A seu respeito, João Lisboa escreveu (15.out.1851) um folhetim em que a descreve “a mais popular desta boa cidade de São<br />

Luís”. (Ver Obras, 4º v. 3. ed. São Luís: Alumar, 1991, p. 307-25).<br />

43 O famoso corno de Oberon: João Lisboa escreveu no folhetim A Festa de Nossa Senhora dos Remédios: “Sr. Comendador<br />

Porto, meu senhor, mande vir, por quem é, o corno de Oberon para a festa do ano que vem, e não olhe para despesa, pois se for<br />

indispensável, fico que a Assembleia Provincial vote uma prestação condigna a tão importante melhoramento...” (Obras, v. cit.,<br />

p. 324-25). A personagem Oberon vem de uma longa tradição de canções de gesta medievais e foi aproveitada por vários autores,<br />

entre eles os dramaturgos Shakespeare e Wieland (mencionado mais à frente neste texto) e o músico Carl Maria von Weber.<br />

O corno (fagote) de Oberon tinha o condão mágico, quando soado, de transportar pessoas para lugares distantes.<br />

44 A banda...: da Casa dos Educandos Artífices, instituição criada pelo governo da Província do Maranhão pela lei nº 1<strong>05</strong>, de<br />

23.ago.1841, para a educação profissional de meninos pobres.<br />

45 Velhos e moços...: verso d’Os lusíadas (Canto VII, 49) de Camões.<br />

Índice<br />

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todos com juvenil despejo, e animados de inaudito furor dançante, tal e qual como<br />

aconteceu em Bagdá, no tempo de Carlos Magno, segundo fielmente refere o erudito<br />

Wieland. E a prova de que foi esta a verdadeira causa do prodígio, e não outra, está<br />

em que mal o triúnviro supramencionado soube da folia, e atinando com a origem<br />

dela, arrancou o condão da boca do educando, para logo, e com não menor rapidez<br />

se dispersou toda a festival comitiva, esgueirando-se cada um, inerte, encolhido<br />

e cabisbaixo, como quem fora apanhado onde não supunha, ou acordava de uma<br />

embriaguez de ópio ou champanhe.<br />

Restabelecida por esta forma a verdadeira história, continuo a narração<br />

das minhas variadas impressões nesta longa e prodigiosa noite.<br />

No fim do espetáculo, cuja descrição e panegírico guardo para escrever<br />

lá para as calendas gregas, depois de mais bem informado e de dormir um pouco<br />

sobre a caso, no fim, digo, apareceu o ator Lisboa para cantar uma ária do Átila de<br />

Verdi. 46<br />

Neste ponto me é forçoso fazer duas pequenas digressões. O que pensará<br />

o respeitável público se lhe eu disser que o nosso amigo João Augusto, enganado<br />

pelas aparências falazes do anúncio triunviral, porfiou comigo que era Tímon quem<br />

ia cantar, a convite do califa, e por ser Dia d’Anos? Pois sucedeu tal qual como lhe<br />

conto, e já agora estou bem capacitado de que o tal anúncio trazia com efeito água<br />

no bico...<br />

A outra digressão resolve-se numa apologia toda pessoal. Por ocasião<br />

do meu folhetim dos Remédios, muitos invejosos do grande mérito da rainha<br />

do canto 47 cuidaram de rebaixá-lo, assoalhando que Tímon não tinha voto na<br />

46 João Lisboa menciona peças teatrais de aparecimento recente: a ópera Átila, de Verdi, foi levada à cena pela primeira vez em<br />

1846 (17.mar.).<br />

47 No folhetim A Festa de Nossa Senhora dos Remédios, João Lisboa diz que a rainha do canto é dotada de voz “melodiosa, elevada,<br />

extensa, flexível, variada, adaptada a todos os tons, natural sobreudo, fácil, espontânea, pura e agradável como a nascente que<br />

desliza e murmura entre floridas e cheirosas moutas” e “em estilo de pacotilhas e miscelâneas se chama a Exma. Sra. D. Rosa<br />

Laura de Sousa Rego, mas a quem Tímon em seu estilo desalinhado e singelo, mas respeitoso, chamará D. Rosinha Leles, como<br />

sempre a ouviu chamar.” (Obras, v. cit., p. 313).<br />

Índice<br />

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matéria, pois, a respeito de música, entendia tanto como de lagar d’azeite. 48<br />

Calúnia despejada e conhecida por tal! O Maranhão sabe muito bem<br />

que frequentei com grande aproveitamento a escola de cantochão do Reverendo<br />

Joaquim Francisco, e, quando não fosse assim, Tímon podia amar a música como<br />

qualquer adora o sol fulgurante sem entender de astronomia, e como todos amam<br />

o perfume e matiz das flores, o murmúrio da fonte, o sorriso das belas e a gentileza<br />

e travessura da infância, sem preten-sões científicas ou artísticas de qualquer<br />

espécie.<br />

Pois bem, o Sr. Lisboa apareceu e cantou no fim e foi tão freneticamente<br />

aplaudido, como o fora logo no princípio o Sr. Albuquerque, o apurado escultor e<br />

arquiteto a quem devemos as primorosas decorações internas e externas do Teatro.<br />

Em ambos mereciam sê-lo – di-lo Tímon, dizem os mais folhetinistas. E di-lo o<br />

público todo inteiro.<br />

Já narrei as maravilhas que criou a inteligência e a mão firme e delicada<br />

do Sr. Albu-querque, ajudado pelos seus discípulos, os educandos Lobato, Moraes<br />

Rego, Diniz e Gonçalves da Silva, que, como órfãos amparados da Província, bem<br />

era que se houvessem também chamado à cena e vitoriado; do Sr. Lisboa direi agora<br />

que, com voz firme, cheia e sonora, fez agradavelmente despertar a quem jazia<br />

sopitado sob as inertes papoulas de Morfeu. 49 Bravo, meu caro, macte animo! 50 E<br />

andar assim por diante, para nos compensar em parte ao menos a famosa peça e<br />

logração que sofremos nos coros rezados.<br />

Não permite a justiça que Tímon se retire sem fazer honrosa menção dos<br />

Srs. Bran-dão e Gregório, que pintaram as decorações cênicas; havia sobretudo<br />

uma sala de madeira cetim cor-de-rosa que me encheu as medidas, e me enganou<br />

48 Esta frase tem por si a autoridade do Dr. Moraes Sarmento, que a empregou em correspondência oficial. [Nota do Autor]. Lagar:<br />

tanque ou estabelecimento onde se espreme a oliveira e se apura o azeite.<br />

49 Inertes papoulas de Morfeu: o sono.<br />

50 Macte animo!: Coragem! Palavras de Públio Papínio Estácio (Silvae 5, 97), poeta latino do primeiro século cristão.<br />

Índice<br />

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muito mais que o cetim verde da grande cortina da boca. A tout seigneur, tout<br />

honneur. 51<br />

Ao acordar na tristonha segunda-feira que se seguiu, com o corpo todo<br />

doído e al-quebrado das fortes comoções da véspera, é que pude medir atentamente<br />

o abismo de abjeção em que tínhamos caído, os inimigos amoucos 52 da tirania,<br />

deixando-nos vencer sem outro combate que os das seduções e prestígios da arte,<br />

de que ela com tanta perfídia fizera uso! Mas quando já dava o caso perdido e<br />

sem remédio, disparou o canhão de São Marcos, e dentro um pouco fundeou o<br />

Baiana, trazendo no seu bojo destinos mais ponde-rosos que os de César, que<br />

vêm a ser notícias mais positivas e mais particularizadas da queda, fuga, e loucura<br />

do compadre Juan Manuel de Rosas, diretor-em-chefe de todos os teatro e bailes<br />

mascarados do Rio da Prata. 53 Imagine cada um como ficariam os triúnviros,<br />

principalmente quando depois souberam da formidável faxina que os chiripás 54<br />

haviam feito nos fautores da tirania argentina! Não direi, para não me acusarem de<br />

plagiário de um dos nossos jornais, que eles perderam a tramontana, 55 ou, vendo<br />

arder as barbas do vizinho, se deram pressa em pôr as suas de remolho; mas, para<br />

não ser menos pitoresco, sustento que ficaram varados, e abaixaram a grimpa, ou<br />

o topete, ao mesmo tempo que a nossa imortal rapaziada,<br />

Índice<br />

(ó mocidade!<br />

Flor que promete esperançosos frutos!)<br />

tomou gás, encheu o peito e pôs-se corajosamente a metralhar dos folhetins a<br />

atarantada tirania que, quando se cuidava segura e triunfante, via-se de novo<br />

quase derribada de suas altas esperanças. Nenhum porém me encheu tanto as<br />

51 A tout seigneur...: A todo senhor, toda honra.<br />

52 Amoucos: moucos, surdos.<br />

53 Juan Manuel de Rosas: (1793-1877): militar e ditador argentino. Figura muito controvertida em seu tempo, lutou pela unificação<br />

de seu país e enfrentou forças estrangeiras que disputavam o território do Prata.<br />

54 Chiripás: os gaúchos argentinos. Chiripá é uma vestimenta gaúcha. (A explicação dada pelo Autor linhas adiante é uma tirada<br />

de humor).<br />

55 Perderam a tramontana: desnortearam-se, desarcitularam-se.<br />

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medidas como O Observador. Pois, se ele tocou logo a corda da nacionalidade, a<br />

mais melindrosa que pode haver no coração de um povo! Que precisão havia de<br />

se ir apanhar o rebotalho de Lisboa, quando o tínhamos aqui a rodo, e a pontapés,<br />

nossos caros patrícios, e porventura até correligionários? “Ruim por ruim (diz<br />

ele, com enérgica e ríspida onomatopeia, própria a eriçar a grenha ferrenha do<br />

triunvirato), ruim por ruim, e tanto por tanto, antes desse o nosso dinheiro para<br />

os nossos, que precisam dele, mas esses foram repelidos!...”<br />

Antes que passe adiante, ser-me-á necessário definir o que seja o chiripá,<br />

pois já vejo de todos os lados os meus amáveis leitores a inquirir-mo, e por outra<br />

parte não convém que a posteridade, ao ler os meus imortais folhetins, entre a<br />

flutuar em conjecturas, a qual delas mais disparatada e extravagante. Confesso em<br />

primeiro lugar que inda nunca vi os tais chiripás, mas, do que tenho podido colher<br />

das relações oficiais e extraoficiais da Batalha de Monte Casero, 56 deduzo que são<br />

certos animais de dous pés e sem penas, que não vestem calças! Que vista e figuras<br />

engraçadas não hão de eles fazer, mormente na corrida e perseguição do inimigo!<br />

O espetáculo contudo não é inteiramente novo na história; e se o leitor benévolo<br />

quiser folhear a do generoso fidalgo da Mancha, lá achará que D. Quixote fez de<br />

chiripá quando nas asperezas de Sierra Morena se deu a fazer penitência pela sua<br />

incomparável Dulcineia, à feição dos Amadis e Beltenebros. A reserva e pudor do<br />

folhetim vedam dizer mais...<br />

Seja porém como for, o certo é que os nossos Juans Manuéis recuaram.<br />

Tímon, já confuso e envergonhado pela sua derrota, ficara de alto a baixo<br />

desarvorado, quando ao sair do Teatro ouviu a aterradora notícia de que o drama<br />

ia ser repetido no próximo domingo! Misericórdia! Cinco com cinco, dez mortais<br />

atos de virtude conjugal! Onde vai isto parar? Querem levar o povo a cometer algum<br />

excesso? No primeiro ímpeto de deses-peração, cheguei até a redigir o seguinte<br />

56 Batalha de Monte Casero: travada a 3 de fevereiro de 1852, pelo Brasil e Uruguai contra as forças de Oribe e Rosas, na Argentina.<br />

Índice<br />

91 / 125


anúncio:<br />

– Tímon passa a chave do seu camarote, e promete acomodar-se em<br />

preço e prazo. Procurar no seu escritório, Rua do Sol, como quem vai para a Sé,<br />

à mão direita, sobradinho místico ao ourives José Feliciano.<br />

Porém as notícias do vapor mudaram a situação num abrir e fechar de<br />

olhos: os triúnviros assombrados ficaram com a cabeça de tal modo perdida, que<br />

não só deram de mão ao premeditado suplício de repetição, como mudaram o<br />

dia, anunciando que o espetáculo designado para domingo 21 (designado onde, se<br />

ninguém sabia de tal?) ficava transferido para quinta-feira.<br />

Cheio de júbilo rasguei o meu anúncio, e já agora vivo mais satisfeito,<br />

porque, se perdi as esperanças de extirpar completamente a tirania, as conservo, ao<br />

menos, de que os triúnviros abrandem consideravelmente do seu primitivo rigor.<br />

Talvez cheguemos todos, opressores e oprimidos, a um razoável meio-termo, em que<br />

os diversos elementos se equilibrem de um modo verdadeiramente constitucional-<br />

representativo. Nada de conspiração e pateadas (contra a Diretoria, se entende),<br />

nada de artigos e folhetins acerbos; mas, em desconto, seja permitido ao menos aos<br />

espectadores de camarotes o levarem os seus chapéus de sol, e uma ama para as<br />

crianças, aqueles que as tiverem. Para longe esses abomináveis suplícios em cinco<br />

atos, que operam pelo torpor, como a cegude 57 ateniense, e o que se diminuir nos<br />

atos homicidas pode muito bem acrescentar-se no número de pessoas que cada<br />

assinante queira ou possa levar em sua companhia. Para que caluniar o gênero<br />

humano, suspeitando abusos em tamanha escala? Pois, para pôr em estado de<br />

sítio a meia dúzia de parasitas que na roda do ano não fundiriam quase nada, vale<br />

a pena de incomodar e vexar o numeroso e brioso povo de assinantes? Lembro<br />

até à Comissão Diretora um meio que, com ter sido já muitas vezes usado pelos<br />

maiores potentados, não deixa por isso de ser original, engenhoso e eficaz para<br />

57 Cegude: cicuta<br />

Índice<br />

92 / 125


o efeito requerido, sem quebra aparente da sua autoridade: não revogue as leis,<br />

mas faça a vista grossa, e abrande na execução. Aqui para nós, que ninguém nos<br />

ouve, cuidam que não sabemos que uma alta personagem, sofismando um artigo<br />

claríssimo das Constituições e Regimentos, saboreou voluptuosamente o uso de<br />

se fumar, dizendo que podia fazê-lo da janela, e para o ar livre e isento de toda<br />

humana sujeição?<br />

E pois que as cousas vão já tomando um tom e aspecto amigável, de que<br />

já também se vai ressentindo a linguagem ora mais branda deste folhetim, direi<br />

o que entendo sobre certos pontos controversos, com aquela imparcialidade e<br />

desinteresse que sempre caracterizaram os meus escritos.<br />

Tímon tem ouvido conversar e discutir sobre tais e tais peças de caráter,<br />

sobre tal dama central, &&. Sabidas as contas, as tais peças de caráter são essas<br />

soporíferas maçadas, que a Diretoria já lançou a um canto, preferindo-lhes peças<br />

curtas, vivas e alegres, onde é mais fácil suportar a... Mudemos antes de conversa.<br />

Damas centrais são umas certas vete-ranas que, no longo curso de suas campanhas<br />

teatrais, têm conseguido adquirir tanta glória como sisudez e obesidade; eis quanto<br />

meu juízo alcança a tal respeito. Sigo o voto da grande maioria que prefere damas<br />

litorais ou de beira-mar, isto é, moças, esbeltas, vivas e aéreas.<br />

Uma boa cópia de censores 58 (e são os mais moderados) assinalam sim<br />

os erros da Comissão, mas não os imputam a dolo e má vontade, senão a falta<br />

de experiência e conhecimentos práticos, pois nunca viajaram para ver teatros.<br />

Tímon vai muito para aí, e toma a confiança de lembrar que podiam incumbi-lo de<br />

uma missão a respeito fazendo-o viajar pelas principais cortes da Europa, a fim de<br />

surpreender os mistérios da ciência e da arte no seu próprio santuário e, por assim<br />

dizer, em flagrante, não podendo a missão ser de mais de seis nem de menos de<br />

quatro contos de réis por ano (afora as ajudas de custo), porém com a condição<br />

58 Uma boa cópia de censores: na vigência do Império, no Brasil, as obras teatrais eram exibidas a uma comissão de censores<br />

antes de serem encenadas.<br />

Índice<br />

93 / 125


essencial, sine qua non, de no fim da viagem ser obrigado a vir administrar o Teatro<br />

com ordenado nunca maior de 2:800$000 réis anuais. E de vez em quando deverá<br />

remeter extratos em boa letra<br />

Das constituições, leis, e costumes<br />

que for descobrindo por aqueles climas e ares novos.<br />

Ousará alguém dizer que seja caro e intempestivo o que proponho? Pois<br />

o Sr. Miró não nos está mais caro, e eu não tenho sobre ele os relevantes serviços<br />

prestados nos meus folhetins, e o ser brasileiro nato, posto que de origem grega?<br />

Invoco agora para aqui os saudáveis princípios de nacionalidade do colega d’O<br />

Observador. Dirão que tem família; pois eu já não deixei consignada nas páginas<br />

anteriores a formidável estatística da minha?<br />

Esta vantajosíssima proposta, ofereço-a com todo o respeito, obrigando-<br />

me, se for benignamente aceita, assinar termo de bem viver e de mais não tomar<br />

parte em algazarras antiordeiras. Entretanto que se não delibera sobre ela, me é<br />

forçoso pôr aqui remate a esta já longuíssima escritura. Aguardo-me para outra<br />

ocasião em que falarei, segundo a atenção que tiver merecido o meu projeto, mas<br />

em que continuarei a esforçar-me para dizer de tu-do, poupando nada obstante a<br />

sereníssima Companhia, e rendendo-lhe o culto do mais respeitoso silêncio.<br />

Índice<br />

Tímon<br />

(Do Publicador Maranhense, nº 1238, de 25 de março de 1852)<br />

94 / 125


EcOS DA VIDA E ImPORTÂNcIA<br />

DA OBRA HISTÓRIcA DO<br />

mARANHENSE JOÃO FRANcIScO<br />

LISBOA NO SEGUNDO cENTENÁRIO<br />

DE SEU NAScImENTO<br />

É uma feliz coincidência que o<br />

Maranhão, no mesmo ano em que<br />

celebra o IV Centenário da funda-<br />

ção de sua capital pelos franceses<br />

de Daniel de La Touche, Sieur de<br />

La Ravardière, comemore também<br />

o Bicentenário de nascimento de<br />

João Francisco Lisboa, filho, que<br />

foi, dos mais ilustres de sua terra, e<br />

a quem, neste ensaio, relembrare-<br />

mos, em obsequiosa homenagem,<br />

como homem público de exemplar<br />

integridade moral e – em perfeita<br />

coerência – como um exemplo de<br />

probidade na manipulação da lín-<br />

Índice<br />

Antônio Martins de Araújo<br />

gua vernácula. Estátua de João Lisboa na Praça João Lisboa - São Luís/MA<br />

95 / 125<br />

Foto: Albani Ramos


Uma vida exemplar<br />

João Lisboa nasceu aos 22 de mar-<br />

ço de 1812, na freguesia de Nossa Se-<br />

nhora das Dores do Itapecuru-Mirim,<br />

Maranhão, de abastada família de pro-<br />

prietários rurais.<br />

Tendo iniciado estudos de primei-<br />

ras letras em São Luís, abandonou-os<br />

aos <strong>11</strong> anos, obrigado, pela morte do<br />

pai, a entregar-se aos cuidados dos<br />

avós, no interior da Província. Aos 15<br />

anos, foi caixeiro de uma casa de co-<br />

mércio são-luisense. Mas já aos 17<br />

anos, em 1829, encontrou o caminho<br />

certo da vocação que haveria de con-<br />

sagrar-lhe o futuro: trocando o comér-<br />

cio pelos estudos humanísticos, fez-se<br />

aluno particular de Francisco Sotero<br />

dos Reis, o afamado latinista e gramá-<br />

tico exigente.<br />

João Lisboa chegou à juventude em<br />

momentos agitados do Brasil recém-<br />

-independente. No Maranhão, onde<br />

predominava a presença portuguesa,<br />

precisava-se de pouco pretexto para<br />

que velhos desentendimentos ainda<br />

dos tempos do Estado Colonial ganhas-<br />

Índice<br />

sem as ruas e as páginas da imprensa,<br />

então incipiente, aqui e em todo o País.<br />

Destaque-se o Sete de Abril, a abdica-<br />

ção de D. Pedro I, em 1831. O retorno<br />

do impetuoso governante a Portugal<br />

de tal modo fez recrudescer a animo-<br />

sidade dos brasileiros em ralação aos<br />

portugueses, que, a 13 de setembro da-<br />

quele ano, a força pública e o povo do<br />

Maranhão exigiam do presidente pro-<br />

vincial, Araújo Viana – o Visconde, de-<br />

pois Marquês, de Sapucaí, hoje famoso<br />

pela praça que lhe consagra o nome nos<br />

desfiles das escolas de samba no Rio de<br />

Janeiro –, a destituição de todos os por-<br />

tugueses, mesmo os naturalizados bra-<br />

sileiros, dos empregos que tinham, em<br />

razão do artigo 6º da Constituição do<br />

Império, e a consequente deportação<br />

deles para Portugal. Entre os signatá-<br />

rios do documento em que reivindica-<br />

vam tal medida, encontrava-se o jovem<br />

Lisboa, de apenas 18 anos de idade, e<br />

que no protesto se associara ao parente<br />

José Cândido de Moraes e Silva, conhe-<br />

cido como O Farol, por antonomásia<br />

tomada ao Farol Maranhense, jornal<br />

que fundara, de ferrenha oposição ao<br />

96 / 125


governo. A reação não se fazendo espe-<br />

rar, Araújo Viana perseguiu Moraes e<br />

Silva, forçando-o a suspender a publi-<br />

cação e homiziar-se alhures.<br />

Pois, naquele interregno – agosto<br />

de 1832 –, não hesitou João Lisboa em<br />

continuar o trabalho d’O Farol, fundan-<br />

do o jornal O Brasileiro (que circulou de<br />

24.8 a 16.<strong>11</strong>.1832). E, logo, com o fale-<br />

cimento do bravo publicista, tomou-lhe<br />

o posto e fez reaparecer o Farol Ma-<br />

ranhense, que ele ainda manteve por<br />

sete anos (de 22.<strong>11</strong>.1832 a 29.10.1839),<br />

tempo em que também passou a dirigir<br />

e editar o Eco do Norte (de 3.7.1834 a<br />

22.<strong>11</strong>.1836).<br />

Diante da subserviência dos peri-<br />

ódicos maranhenses a Araújo Viana,<br />

Lisboa catalisou a opinião pública em<br />

favor do entendimento entre os vários<br />

partidos que primavam em digladiar-se<br />

encarniçadamente entre si.<br />

Em novembro de 1835, colhendo<br />

frutos de suas campanhas jornalísticas<br />

e interrompendo a luta que travava nes-<br />

sa arena, aceitou servir como Secretário<br />

do Governo Provincial, na presidência<br />

Índice<br />

do Dr. Antônio Pedro da Costa Ferrei-<br />

ra, o Barão de Pindaré. Por duas vezes,<br />

em seguida, elegeu-se deputado à As-<br />

sembleia Provincial maranhense, onde<br />

defendeu com empenho a organização<br />

e a ampliação da instrução pública.<br />

Porém, o assassinato, em Caxias,<br />

do líder do Partido Liberal, Teixeira<br />

Mendes, o devolveu às lides jornalís-<br />

ticas. Diante do desinteresse da au-<br />

toridade governamental em punir os<br />

assassinos de Mendes, Lisboa exone-<br />

rou-se do rendoso cargo com que hon-<br />

rosamente provia a sua subsistência e<br />

à dos seus familiares, para, a 2 de ja-<br />

neiro de 1838, iniciar a publicação da<br />

Crônica Maranhense (de 2.1.1838 a<br />

24.3.1841), baluarte de suas crenças<br />

liberais e um dos periódicos de maior<br />

prestígio na imprensa maranhense do<br />

século XIX.<br />

É quando estala a revolta da Ba-<br />

laiada, em fins de 1838. A despeito de<br />

os governistas o acusarem de ser o líder<br />

oculto do movimento, Lisboa funciona<br />

como apaziguador, recomendando a<br />

seus concidadãos esquecerem ódios e<br />

rivalidades, em favor da paz e do bem<br />

97 / 125


comum. Para manter a chama acesa de<br />

seus ideais, ele não vacila em consumir<br />

em pouco tempo, na publicação da Crô-<br />

nica Maranhense, a pequena heran-<br />

ça paterna que lhe coubera.Em 1840,<br />

apresenta-se candidato à Deputação na<br />

Corte. Nauseado, todavia, pelas pérfi-<br />

das manobras dos seus próprios corre-<br />

ligionários, desiste da pretensão. Dois<br />

anos depois, retorna às lides jornalís-<br />

ticas e funda o Publicador Maranhen-<br />

se, mantendo-o vivo e atuante por três<br />

longos anos com a mais rigorosa neu-<br />

tralidade política.<br />

Reeleito deputado à Assembleia<br />

Provincial, Lisboa profere no seio dela<br />

memoráveis peças oratórias, como o fa-<br />

moso Discurso sobre a Anistia dos Per-<br />

nambucanos Revoltosos, em favor do<br />

líder Nunes Machado, cujo cadáver foi<br />

velado por seus companheiros em uma<br />

capela distante do lugar do óbito, para,<br />

assim, evitar ainda mais desagradáveis<br />

contratempos.<br />

Conquanto, porém, haja produzi-<br />

do considerável cópia de artigos jorna-<br />

lísticos e proferido lapidares discursos<br />

nas assembleias políticas, Lisboa pere-<br />

Índice<br />

nizou-se em razão de suas obras, que<br />

fazem elevada figura, indistintamente,<br />

no campo da Historiografia e da Litera-<br />

tura.<br />

Dado eloquente para que se pos-<br />

sa apurar o timbre de seu caráter e sua<br />

personalidade é a publicação do folheto<br />

Jornal de Tímon, que ele fez distribuir<br />

mediante assinatura mensal, de 1852<br />

a 1854. O nome de Tímon lhe ocorreu<br />

da antiguidade grega. Esse personagem<br />

existiu de fato, e ficou na História como<br />

amigo das letras e homem virtuoso, ao<br />

mesmo tempo que rigoroso vigilante<br />

pela prática das virtudes públicas. Não<br />

era tido, por esse mister, como figura<br />

acessível e de gênio fácil, retratando-se,<br />

antes, como intimista e pessimista. Sob<br />

a máscara daquele Tímon antigo, o Tí-<br />

mon Maranhense pôde criticar acerba-<br />

mente os vícios e os costumes políticos<br />

de seus muito pouco éticos correligio-<br />

nários. Reportemo-nos, neste ponto, a<br />

um de seus editores: “João Francisco<br />

Lisboa, em todos os jornais que escre-<br />

veu, disse sempre o que pensava, tudo<br />

que pensava, com uma decência mode-<br />

lar de fundo e de forma, de pensamento<br />

98 / 125


e de expressão. “No fermentar de pai-<br />

xões nem sempre nobres que caracte-<br />

rizam o Período Regencial, quis que os<br />

partidos políticos professassem, reci-<br />

procamente, ‘a moderação, a genero-<br />

sidade a incorrupta probidade’, baten-<br />

do-se contra ‘a feroz anarquia’ de que<br />

estivemos muito perto, a fim de evitar o<br />

perigo do despotismo ignóbil e bárbaro<br />

de chefes militares que ordinariamente<br />

sucede aos demagogos.”[1]<br />

Quando se afastou da política, Lis-<br />

boa chegou a afagar por algum tempo o<br />

projeto de escrever um romance anties-<br />

cravagista. Diante, todavia, do grande<br />

sucesso alcançado por A cabana de Pai<br />

Tomás, da norte-americana Henriette<br />

Beecher Stowe, cedo desistiu da ideia.<br />

Em julho de 1855, vamos encontrá-<br />

-lo na Corte, em cuja redação do Correio<br />

Mercantil analisava os trabalhos foren-<br />

ses, e, no Jornal do Comércio, escrevia<br />

artigos sobre política em geral. No ano<br />

seguinte, será comissionado pelo Go-<br />

verno Imperial, para, em Lisboa, subs-<br />

tituir o conterrâneo Antônio Gonçalves<br />

Dias na recolha de documentos para a<br />

nossa História.[2]<br />

Índice<br />

Alquebrado pelas lutas incansáveis<br />

que travou em vida, a morte o surpre-<br />

endeu em Lisboa, Portugal, onde fale-<br />

ceu a 26 de abril de 1863.[3]<br />

Um monumento perene: a obra<br />

A grande obra de João Francisco<br />

Lisboa talvez tivesse ficado toda dis-<br />

persa e perdida nas folhas de jornal em<br />

que originalmente, e em grande parte,<br />

ele a escreveu, não fosse o desvelo de<br />

Luís Carlos Pereira de Castro e Antônio<br />

Henriques Leal, que a recolheram, re-<br />

fazendo, no que possível, os passos per-<br />

corridos pelo Autor. No conjunto, essa<br />

obra foi publicada em três momentos<br />

diferentes: 1864-65, em São Luís; 1901,<br />

em Lisboa; e em 1989-1991, inicial-<br />

mente em Brasília e novamente em São<br />

Luís. No período que vai da primeira à<br />

última dessas edições, títulos esparsos<br />

de sua autoria foram impressos mais de<br />

uma vez, especialmente o Jornal de Tí-<br />

mon, os Apontamentos, notícias e ob-<br />

servações para servirem à História do<br />

Maranhão e a Vida do Padre Antônio<br />

Vieira. Demos o rol de seus escritos,<br />

conforme aparecem na primeira edi-<br />

ção:<br />

99 / 125


Obras de João Francisco Lisboa,<br />

4 v. São Luís: B. de Matos, 1864-1865.<br />

Edição e revisão de Luís Carlos Perei-<br />

ra de Castro e Antônio Henriques Leal,<br />

com notícia biográfica de A. H. Leal, re-<br />

trato e assinatura do Autor no 2º v.<br />

Os quatro volumes estão assim dis-<br />

tribuídos:<br />

1º v. – Jornal de Tímon: Prospec-<br />

to; Eleições na Antiguidade; Eleições<br />

na Idade Média e Tempos Modernos;<br />

Partidos e Eleições no Maranhão; Tí-<br />

mon a Seus Autores; Considerações<br />

Gerais. 518p.<br />

2º v. – Jornal de Tímon: Aponta-<br />

mentos, Notícias e Observações para<br />

Servirem à História do Maranhão (in-<br />

trod.); Livro I; Livro II: Invasão Fran-<br />

cesa; Livro III: Invasão Holandesa;<br />

Livro IV: Paralelo das Invasões Fran-<br />

cesa e Holandesa; Livro V: Índios;<br />

Livro VI: Índios; Livros VII: Índios e<br />

Jesuítas; Notas. 517p.<br />

3º v. – Jornal de Tímon: Aponta-<br />

mentos, Notícias e Observações para<br />

Servirem à História do Maranhão<br />

(Prólogo; 20 capítulos; Notas). 575p.<br />

Índice<br />

4º v. – Advertência do Dr. An-<br />

tônio Henriques Leal (Maranhão,<br />

10.6.1865); Vida do Padre Antônio<br />

Vieira (na Europa); Vida do Padre<br />

Antônio Vieira (no Brasil); Biografia<br />

de Manuel Odorico Mendes; A Festa<br />

de Nossa Senhora dos Remédios (fo-<br />

lhetim); A Festa dos Mortos ou a Pro-<br />

cissão dos Ossos (folhetim); Discurso<br />

sobre a Anistia aos Pernambucanos<br />

Revoltosos; A Questão do Prata (ar-<br />

tigo político); Notas (em número de<br />

sete); Apêndice (Lições de Literatu-<br />

ra do Sr. Francisco Sotero dos Reis).<br />

760p.<br />

Vem ao caso lembrar o quanto João<br />

Lisboa era exigente consigo mesmo e<br />

com os seus escritos, bastando mencio-<br />

nar o destino que pretendia dar à Vida<br />

do Padre Antônio Vieira, que deixou in-<br />

completa (não obstante seja essa obra,<br />

na opinião geral, uma fonte básica, in-<br />

dispensável ainda hoje para estudar-<br />

mos a trajetória existencial e as realiza-<br />

ções do grande Jesuíta): “Estes papéis<br />

devem ser queimados, sem serem li-<br />

dos, quando eu o determinar.”[4] Por<br />

sorte, os editores e a família do Tímon<br />

100 / 125


Maranhense não lhe obedeceram à de-<br />

Um clássico da língua<br />

terminação.<br />

João Lisboa – assevera Octávio<br />

Tarquínio de Sousa – “continua a ser<br />

dos nossos maiores escritores, e não só<br />

poderoso, senão também fino, corre-<br />

to, culto, escritor que tem estilo e tem<br />

ideias, escritor a quem o gosto pelas<br />

letras não diminuiu o interesse pela<br />

vida.”[5] Esse mesmo autor traz a pa-<br />

lavra de “um dos nossos críticos mais<br />

poupados de elogios”, por ele não men-<br />

cionado, para quem Lisboa “pode ser<br />

apresentado como o clássico por exce-<br />

lência, sem afetações descabidas de pu-<br />

rismo nem o culto obsoleto do arcaís-<br />

mo.” (Ibidem).<br />

Mas o que é um clássico?<br />

Ainda em 1535, o português Diogo<br />

de Gouveia, docente do Colégio Santa<br />

Bárbara, de Paris, diz em suas Cartas:<br />

“Em imitar os escritores de boa lingua-<br />

gem, apreciados por sua pureza, e por<br />

isso chamados clássicos, é que apren-<br />

demos os segredos do bem escrever”,<br />

sendo um clássico “escritor de boa lin-<br />

Índice<br />

guagem, apreciado pela pureza de seu<br />

escrever, ou seja, digno de ser imitado.”<br />

Idêntica definição encontra-se numa<br />

nota do Professor Cunha Rivara, inser-<br />

ta nas Reflexões da língua portuguesa,<br />

de Francisco José Freire, publicação<br />

do século XIX. Ei-la: “Clássico é o au-<br />

tor insigne na pureza da linguagem, na<br />

propriedade da frase, na elegância do<br />

estilo.” [6]<br />

Muito a propósito, entretanto, ob-<br />

serva o mesmo autor que Plínio, o Moço,<br />

embora reconhecesse o valor dos clássi-<br />

cos antigos, “nem por isso, desprezava<br />

os bons escritores de seu tempo, nem<br />

reputava a natureza tão cansada e exau-<br />

rida, que já não pudesse produzir cousa<br />

capaz e digna de louvor.” (Ibidem).<br />

Assis Cintra, interpretando juízo<br />

de Whitney, amplia deste modo o signi-<br />

ficado do termo em exame: “Autor clás-<br />

sico, etimologicamente, quer dizer au-<br />

tor escolhido, seleto, puro, apreciado,<br />

que tem boas qualidades, pouco impor-<br />

tando que seja, ou não, lido em classes<br />

das escolas.”[7] E mais: “Muito embora<br />

haja quem chame de clássicos somen-<br />

te aos autores lidos nas classes, nós<br />

101 / 125


devemos dar ao vocábulo a sua acepção<br />

extra: autor de nota, autor seleto, autor<br />

escolhido, autor distinto, ou seja, mes-<br />

tre da língua – pela pureza, elegância e<br />

propriedade do dizer”. (Ibidem).<br />

Através de Cintra, ainda, recolhe-<br />

mos a palavra do Padre Antônio Vieira,<br />

transcrita na Vida de São Domingos, de<br />

Cáceres (p. xvi), e que afirma ser clás-<br />

sico “o estilo claro com brevidade, dis-<br />

creto sem afetação, copioso sem redun-<br />

dância, e tão corrente, fácil e notável,<br />

que, enriquecendo a memória, e afei-<br />

çoando a vontade, não cansa o enten-<br />

dimento [...] – dizendo o comum com<br />

singularidade, o semelhante sem repe-<br />

tição, o sabido e vulgar com novidade,<br />

e mostrando as cousas (como faz a luz)<br />

cada uma como é, e todas com lustre.”<br />

“Será clássico” – afirma Cunha<br />

Rivara – “aquele autor que concorrer<br />

para elevar a sua língua ao maior grau<br />

de perfeição em cada um destes dotes,<br />

ou souber servir-se retamente dela já<br />

aperfeiçoada, praticando, sem mancha,<br />

nos seus escritos, [...] a pureza da lin-<br />

guagem, a propriedade da frase, e a ele-<br />

gância do estilo”.<br />

Índice<br />

“Destes dotes”, quais? Detalha-os o<br />

comentarista de Francisco José Freire:<br />

– “a pureza da linguagem, para não<br />

usar de palavras ou estranhas à língua,<br />

ou reprovadas pelo uso razoável, e evi-<br />

tar assim os barbarismos, arcaísmos, e<br />

solecismos”; (Ibidem).<br />

– “a propriedade da frase, para que<br />

cada ideia seja exprimida pelas pala-<br />

vras ou frase que mais propriamente<br />

a representam, a fim de que o ouvinte<br />

ou leitor possa cabalmente entender o<br />

pensamento do autor;[8]<br />

– “a elegância do estilo, para que<br />

as palavras, escolhidas com as condi-<br />

ções das duas regras antecedentes, se-<br />

jam dispostas por tal ordem e propor-<br />

ção que indiquem na mente do autor as<br />

ideias arranjadas segundo as suas mais<br />

convenientes e luminosas reações”; (p.<br />

17).<br />

O próprio autor das Reflexões so-<br />

bre a língua portuguesa, recomendan-<br />

do escrever com “abundância de ter-<br />

mos cheios de propriedade e energia,<br />

afluência de expressões genuínas, nas-<br />

cendo tudo de um estilo claro e correto”<br />

102 / 125


(p 16), confirma suas palavras com as<br />

do mestre coimbrão José Vicente Go-<br />

mes (autor das oitocentistas Noticias<br />

dos monumentos da língua latina e<br />

dos subsídios necessários para o estu-<br />

do da mesma), segundo quem “o escri-<br />

tor, para ser clássico, necessita ter a lin-<br />

guagem clara, copiosa, breve, corrente<br />

e fluida, viva e versátil”; e “não basta<br />

cultivar a razão em abstrato, sendo pre-<br />

ciso juntar-lhe a observação do mundo<br />

positivo”. (p. 17-18).<br />

Em síntese, repetiremos Cunha Ri-<br />

vara: “Seja qual for a época em que um<br />

autor tenha escrito, seja ele de ontem<br />

ou seja dos séculos passados, será com<br />

justiça reputado por clássico, isto é, por<br />

mestre prático da língua todo aquele<br />

que souber servir-se dos dotes próprios<br />

e da perfeição dela, com as condições<br />

apontadas da pureza, da propriedade e<br />

da elegância”.[9]<br />

Ponhamos, agora, em confronto<br />

com o exposto, a obra deixada por João<br />

Lisboa, para avaliarmos do teor clássico<br />

de seus escritos. As nótulas filológicas<br />

que respigamos, sem intuito de apro-<br />

fundar análise, poderão ajudar-nos na<br />

Índice<br />

convicção de que o maranhense João<br />

Francisco Lisboa é até hoje considera-<br />

do um dos mais respeitáveis cultores da<br />

língua portuguesa.[10]<br />

Ei-las:<br />

Armar a (= pretender, candida-<br />

tar-se a): “é natural que o candida-<br />

to inglês arme à popularidade.” (I,<br />

121);[<strong>11</strong>]<br />

Composição (= reconciliação):<br />

“de repente e ao toque oficial da sine-<br />

ta compõe-se o tumulto.” (I, 126);<br />

Correr [a obrigação] (= incum-<br />

bir): “havia dez, a quem corria parti-<br />

cular obrigação de defender os inte-<br />

resses da pátria.” (I, 24);<br />

Entender em (= aplicar-se a):<br />

“entendeu Catão principalmente nos<br />

meios mais eficazes de extirpar a cor-<br />

rupção eleitoral.” (I, 61);<br />

Fazer cabedal de (= dar apreço<br />

a algo): “César, sem fazer cabedal de<br />

semelhante exigência, o fez passar a<br />

Catão.” (IÇ, 72);<br />

Fenecer (= terminar): “[esta<br />

imensa autoridade] pode-se dizer que<br />

103 / 125


feneceu de todo com a monarquia mi-<br />

litar dos imperadores.” (I, 39);<br />

Ficar (= garantir): “Se este bom<br />

imperador [...] volvesse hoje ao mun-<br />

do [...] fico que não se faria rogar para<br />

expedir circulares garantindo a liber-<br />

dade de voto.” (I, 80);<br />

Haver-se (= proceder): “depois<br />

de eleito, se houve de maneira no go-<br />

verno de seu rebanho, que a história<br />

o qualificou príncipe dos apóstolos.”<br />

(I, 104);<br />

Lição (= leitura): “a lição dos seus<br />

escritos nunca fora vedada” (VPAV,<br />

2<strong>11</strong>);<br />

Lustroso (= apreciável, distinto):<br />

“aspirando incessantemente a cousas<br />

mais árduas e lustrosas.” (VPAV, 7);<br />

Orelhas (= ouvidos): “foram cen-<br />

suradas algumas proposições com<br />

nota de serem uma contra o comum<br />

sentido católico, fátuas, temerárias e<br />

escandalosas; e outras ofensivas das<br />

orelhas dos pios e fiéis católicos.”<br />

(VPAV, 209);<br />

Praticar (= conversar): “à pro-<br />

Índice<br />

porção que iam entrando, começa-<br />

vam logo a praticar sobre o grande<br />

assunto do dia.” (I, 181);<br />

Prevenção (= cuidado): “todas<br />

estas prevenções legais não preser-<br />

varam a tribuna de ser invadida por<br />

gente corrompida e de baixa condi-<br />

ção.” (I, 28);<br />

Responder (= corresponder):<br />

“[...] sem que o número de represen-<br />

tantes respondesse de nenhum modo<br />

ao dos representados.” (I, <strong>11</strong>6);<br />

Ser parte (= servir de motivo):<br />

“Messala Corvino a Cássio chamava<br />

publicamente seu general; e não foi<br />

isso parte para que os não abastassem<br />

a ambos em honras e riquezas.” ;<br />

Sisudo (= sensato): “o povo, sá-<br />

bio e sisudo como nenhum outro, ele-<br />

gia então os cidadãos mais capazes.”<br />

(I, 34);<br />

Sujeito (= indivíduo, sem o sen-<br />

tido pejorativo): “celebrou-se o ano<br />

de 1694, no colégio da Bahia, um con-<br />

gresso provincial para o fim de eleger-<br />

-se um sujeito que fosse a Roma por<br />

procurador da província.” (VPAV, 257);<br />

104 / 125


Ter mão (= conter): “tende mão,<br />

meu caro, e não vos deixeis arrebatar<br />

assim pelo orgulho da vossa indispu-<br />

tável superioridade.” (I, 152);<br />

Conquanto, em geral, João Lis-<br />

boa não apreciasse arcaísmos léxico-<br />

-semânticos, expressões populares e<br />

formas sincréticas de qualquer tipo,<br />

veja-se este raro arcaísmo: efeituar (=<br />

efetuar) (I, 184); bem como o prefixo<br />

mal com valor intensivo (como no céle-<br />

bre soneto A Carolina, de Machado de<br />

Assis): “por sugestões do tio, mandou,<br />

o sobrinho, dar uns tiros em Antônio<br />

Brito, que saiu malferido e ficou depois<br />

aleijado de um braço (P.P.A.V., 247).<br />

Agora, um exemplo escoteiro e ori-<br />

ginal da adjetivação de substantivo, na<br />

expressão é bem (= é bom que seja as-<br />

sim): “depois do furor e da demência,<br />

bem era que a imbecilidade tivesse tam-<br />

bém a sua vez.” (I, 92).<br />

Outrossim, os pronomes indefini-<br />

dos tanto e quanto equivaliam a tão<br />

grande e quão grande, como neste pas-<br />

so: “tanta era a precipitação vertigino-<br />

sa dos sucessos.” (I, 99). Note-se aqui<br />

Índice<br />

o termo sucessos, como sinônimo de<br />

simples acontecimento.<br />

Além disso, os pronomes demons-<br />

trativos este/aquele, e os indefinidos<br />

um/outro, classicamente são substi-<br />

tuídos por qual, como no português<br />

quinhentista. Assim o fez aqui Lisboa:<br />

“qual diz que todo o seu empenho é<br />

manter a ordem, [...] qual se erige em<br />

campeão exclusivo de uma cousa vaga e<br />

indeterminada a que se chama a digni-<br />

dade da província; qual enfim declara<br />

que na província não houve, em tempo<br />

algum, partidos políticos.” (I, 107).<br />

Já a expressão a qual podia usar-<br />

-se por cada qual, como o fez aqui: “as<br />

leis ainda multiplicavam as dificulda-<br />

des, exigindo deles uma infinidade de<br />

condições, a qual delas mais rigorosa.”<br />

(I, 27).<br />

Labora em equívoco quem pensa<br />

que a expressão haver aí é uma simples<br />

tradução do francês y avoir. Os gran-<br />

des cultores do nosso idioma usaram-<br />

-na, como Lisboa o fez cá: “então o al-<br />

goz [...] declarou que já tinha feito o seu<br />

dever e certamente não havia aí outra<br />

1<strong>05</strong> / 125


de cegude.” (I, 35).<br />

Também labora em ultracorreção<br />

digna de reparo quem evita usar o ver-<br />

bo dever no pretérito perfeito. Lisboa<br />

sabia disso e elegantemente o empre-<br />

gou aqui: “Augusto, o primeiro dos im-<br />

peradores, não deveu o supremo poder<br />

a ato algum positivo de eleição regular.”<br />

(I, 82).<br />

O mesmo se diga sobre quem evita<br />

os particípios regulares ganhado e gas-<br />

tado, um dos quais aqui por ele usado:<br />

“[...] cuja proteção tinham ganhado.”<br />

(I, 29).<br />

Quanto aos advérbios, não ignorou<br />

ele que apenas não é só palavra de ex-<br />

clusividade, podendo classicamente ser<br />

usado com o sentido de dificilmente,<br />

raramente, como aqui: “apenas haverá<br />

esquadrinhador de antiguidades que te-<br />

nha notícia das três malogradas letras.”<br />

(I, 93).<br />

Os advérbios já, (a)inda, nunca e<br />

jamais servem de reforço ou intensifica-<br />

ção de orações superlativas, como aqui:<br />

“é em verdade, a mais vasta agremiação<br />

de homens que inda viu o universo.” (I,<br />

54).<br />

Índice<br />

A locução adverbial a bom recado<br />

pode significar sob vigilância, como<br />

aqui: “[...] passando a mão em 33 honra-<br />

díssimos eleitores, que puseram a bom<br />

recado, em uma estrebaria.” (I, 123).<br />

Outrossim, a locução adverbial a<br />

olho, redução de a olhos vistos, é a que<br />

aqui usa Lisboa: “crescia a olho o valor<br />

de seus produtos e drogas.” (VPAV., 51).<br />

Vejam-se aqui outras locuções ad-<br />

verbiais por ele utilizadas: de espaço<br />

(= demoradamente): “para o diante,<br />

acharmos ocasião de apreciá-lo mais de<br />

espaço e assento.” (I, 231); torna via-<br />

gem (= de volta, retornando): “entrou<br />

o vapor do Pará, já de torna viagem.”<br />

(I, 199); pela boca pequena (= baixi-<br />

nho): “[...] disse-lhe Catão, pela boca<br />

pequena, que não era este o primeiro<br />

emprego que o Sr. Quintiliano reduzia<br />

a dinheiro.” (I, 249); a pouco e pouco<br />

(= paulatinamente): “a cobiça dos ricos<br />

conseguiu, a pouco e pouco, despojar<br />

os pobres.” (I, 45).<br />

Também no uso das preposições e<br />

locuções prepositivas, Lisboa primou<br />

em seguir as pegadas dos clássicos.<br />

106 / 125


Ei-las: sob cor de (= a pretexto de):<br />

“levaram-lhe uma bolsa com seis mil<br />

dobrões de ouro, sob cor de os distri-<br />

buir com esmola.” (VPAV, 151); sobre<br />

(= mais do que): “João Fernandes Viei-<br />

ra com seis mil dobrões de ouro, sobre<br />

todos, é um herói digno de admiração e<br />

reconhecimento de nós outros brasilei-<br />

ros.” (VPAV, 95); Enfim, neste tópico,<br />

sobreleva notar este exemplo de inver-<br />

são eufônica da preposição com o pro-<br />

nome demonstrativo: “quero ver agora<br />

no (= o em) que dá a sua grande candi-<br />

datura.” (I, 181).<br />

Agora, apenas dois exemplos do<br />

uso clássico de preposições e/ou de lo-<br />

cuções prepositivas: por maneira que<br />

(= de modo que): “o tráfico eleitoral de<br />

compra e venda não se introduziu senão<br />

longo tempo depois [...] por maneira<br />

que nunca se pôde saber ao certo qual<br />

o romano que abriu o exemplo de cor-<br />

romper o povo e os magistrados.” (I, 4);<br />

entretanto que (= ao passo que): “nem<br />

por isso ambicioso algum cuidou ainda<br />

de perpetuar-se no poder, entretanto<br />

que a última constituição francesa, por-<br />

que proibia expressamente pudesse ser<br />

Índice<br />

reeleito [...], foi por isso rasgada pelo<br />

presidente.” (I, 141).<br />

Estes, os mais notáveis usos clássi-<br />

cos dessa classe gramatical.<br />

Já faz muito tempo que as vestais<br />

do idioma tentaram fechar as portas do<br />

português do Brasil a quaisquer em-<br />

préstimos, principalmente franceses.<br />

Ocorre que alguns desses empréstimos<br />

se aclimataram tão bem ao idioma que<br />

aqui praticamos, que o opulentaram, e<br />

hoje tornaram-se prata de casa. Veja-<br />

mos alguns deles, acolhidos por Lisboa:<br />

“a política nas províncias cifra-se<br />

toda [...] na banalidade das declama-<br />

ções.” (I, 94);<br />

“a chicana, os doutores e os magis-<br />

trados são os que governam.” (I, 161);<br />

“a negociação de que ele reza tivera<br />

lugar durante a primeira embaixada do<br />

marquês.” (VPAV, 106);<br />

“a este lugar pertence agora a nar-<br />

ração de uma das cenas mais tocantes<br />

destes três memoráveis dias.” (I, 174);<br />

Eis aí como Lisboa não tergiversou<br />

em acolher os galicismos naturalizados<br />

107 / 125


como brasileiros: banalidade, chicana,<br />

ter lugar (= realizar-se) e tocante.<br />

Embora outros tais pareçam gali-<br />

cismos, são lexias de boa cepa luso-bra-<br />

sileira, como fortuna (= riqueza): “basta<br />

uma pequena fortuna em propriedade<br />

territorial [...] para conferir o direto de<br />

voto.” (I, 30); letras (= cartas): “apenas<br />

haverá algum esquadrinhador de an-<br />

tiguidades que tenha notícias das três<br />

malogradas letras.” (I, 93); refusar (=<br />

recusar): “uma vez eleito, nunca refu-<br />

sava os cargos.” (VPAV, I, 34); render<br />

graças (= agradecer): “o feliz candidato<br />

corria imediatamente ao templo para<br />

render graças aos deuses.” (I, 20); su-<br />

jeito (= assunto): “sujeito do evangelho<br />

do dia não podia decerto ser a primi-<br />

tiva conversão da gentilidade.” (VPAV,<br />

376). “S. Exa. tinha asseverado a todo o<br />

mundo que nada pretendia da provín-<br />

cia.” (I, 165).<br />

Quanto à morfossintaxe, começa-<br />

rei com o seguinte passo, com que João<br />

Lisboa prefere elegantemente que a<br />

concordância verbal se faça com o ad-<br />

junto adnominal, que lhe está mais pró-<br />

ximo, a fazer com o núcleo do sujeito:<br />

Índice<br />

“um grande número de homens ilustres<br />

estão banidos da França.” (I, 145).<br />

Na regência verbal, à moda clássica,<br />

Lisboa preposicionava o infinitivo com<br />

função de objeto direto: “a Providência<br />

determinou de fazer, neste particular,<br />

um milagre que não cabia na humana<br />

previsão.” (VPAV, 98).<br />

Aqui, ele silencia o pronome se, tão<br />

usual nos dias de hoje: “entre os dias de<br />

exclusão, sobressai a dos cobardes.” (I,<br />

27).<br />

Neste outro passo, utiliza a dupla<br />

regência, que, embora condenada pelos<br />

puristas e gramatiqueiros, tem foros de<br />

clássica: “os seus interesses, quero di-<br />

zer, os da província dos quais um bom<br />

presidente não sabe nem é capaz de se-<br />

parar os próprios.” (I, 201).<br />

Vasta e variegada, a regência ver-<br />

bal manipulada por Lisboa. Eis aqui al-<br />

gumas passagens dignas de registro:<br />

Admirar algo a alguém: “o que ad-<br />

mira menos é que tais opiniões em tal<br />

matéria pudessem excitar as descon-<br />

fianças do sombrio tribunal.” (VPAV,<br />

204);<br />

108 / 125


Começar de (= começar a): “os mes-<br />

mos partidos começavam de agitar-se.”<br />

(I, 163);<br />

Deparar (= mostrar): como tran-<br />

sitivo indireto de pessoa: “veio depois<br />

Péricles, o mais brilhante e magnífico<br />

ambicioso que porventura nos depara<br />

a história.” (I, 23);<br />

Deparar com (= encontrar): “ha-<br />

veis de deparar com rasgos tais de vir-<br />

tude e heroísmo”;<br />

Fazer – como transitivo direto de<br />

coisa e indireto de pessoa: “César, refu-<br />

sando-a, lhe fez saber que estava resol-<br />

vido gastar a quantia maior.” (I, 70);<br />

Fiar-se (= confiar em): “muitos só<br />

dele se fiavam”;<br />

Haver mister (= necessitar) como<br />

transitivo direto: “tivesse a bondade de<br />

mandar-lhe os volumes das leis de Mi-<br />

nos e Licurgo, pois os havia mister.” (I,<br />

19);<br />

Servir de (= servir para): “referirei<br />

um caso que, pela sua mesma singele-<br />

za, serve de caracterizar a integridade e<br />

inocência daqueles tempos.” (I, 53);<br />

Índice<br />

Topar (= encontrar) como transiti-<br />

vo direto: “quantos o topavam iam logo<br />

bradando: ali vai um dos tais.” (I, 103);<br />

No século XX se gastou em vão mui-<br />

to papel e tinta com uma famigerada lei<br />

de atração dos pronomes átonos, até<br />

que o filólogo Antenor Nascentes mos-<br />

trou exemplarmente que isso era ape-<br />

nas uma questão de preferência rítmi-<br />

ca, ou mesmo de eufonia. Desdenhando<br />

dessas infrutíferas leis, corretamente<br />

Lisboa as ignorava por completo. Ob-<br />

servem-se estes exemplos: “nós vere-<br />

mos que o jesuíta esqueceu-se inteira-<br />

mente de suas cautelas por motivos que<br />

não chegaram ao nosso conhecimento”<br />

(VPAV, 146); “mas nem tal sacrifício e<br />

abandono havia, porque capitulava-<br />

-se também livre para a Bahia” (VPAV,<br />

73); “uma tentativa feita para este fim<br />

e que realizou-se nos princípios do ano<br />

de 1650, malogrou-se por motivos que<br />

não chegaram ao nosso conhecimento.”<br />

(VPAV, 146).<br />

Apreciemos por fim estas duas<br />

apossínclises e/ou metáclises, vale di-<br />

zer, colocação do pronome átono an-<br />

tes de uma palavra anterior ao verbo<br />

109 / 125


egente: “morto Tibério, Caio Graco,<br />

seu irmão, determinou seguir o exem-<br />

plo glorioso que lhe ele legara.” (I, 52).<br />

“O território [...] era o mais azado para<br />

receber avisos e socorros na Europa e<br />

para se o inimigo estender facilmente<br />

para os lados.” (VPAV, 92).<br />

Agora, umas elegantes elipses:<br />

– da preposição em antes do pro-<br />

nome relativo que: “um dia que Tibério<br />

Graco assistia no Capitólio” (I, 49);<br />

– do termo intensivo tal, na ex-<br />

pressão de tal maneira... que: “votou<br />

um ódio tão entranhável ao gênero hu-<br />

mano e de maneira o reputava entre-<br />

gue aos crimes e aos vícios que se paga-<br />

va mais do desprezo que da estima dos<br />

homens.” (I, 10);<br />

– do advérbio mais, já antes enun-<br />

ciado: “o povo desta feita, ao menos,<br />

mais moderado e prudente que seus<br />

inimigos, satisfez-se com esta pequena<br />

reforma.” (I, 46).<br />

Passemos agora a um pleonasmo<br />

elegante: do aposto dêitico este, segui-<br />

do da partícula afirmativa sim: “Os ins-<br />

trumentos de que Deus se serve, esses<br />

Índice<br />

sim, podem ser bons ou maus.” (VPAV,<br />

56).<br />

Cremos escusado seguir adian-<br />

te em nossa tentativa de provar mate-<br />

rial e insofismavelmente por que razão<br />

ainda hoje, no Brasil e em Portugal, o<br />

maranhense João Francisco Lisboa é<br />

considerado um dos mais elegantes e<br />

perfeitos conhecedores dos segredos e<br />

da opulência da quase “última flor do<br />

Lácio mui culta e bela”.<br />

Em conclusão<br />

Dando por encerrada nossa tarefa,<br />

recorreremos à tese com que o profes-<br />

sor Fernando Segismundo pretendeu<br />

conquistar a cadeira de História Ge-<br />

ral e do Brasil no Colégio Pedro II.[12]<br />

Destacarei dela os principais juízos crí-<br />

ticos sobre a obra do Timon Brasileiro,<br />

por ele relacionados da obra A pesqui-<br />

sa histórica no Brasil, de José Honório<br />

Rodrigues:[13]<br />

Francisco Adolfo Varnhagen consi-<br />

derava João Lisboa “o nosso primeiro e<br />

único historiador, o pai da nossa histó-<br />

ria”. (p. 70)<br />

<strong>11</strong>0 / 125


Antônio Henriques Leal, nanotí-<br />

cia biográfica que apôs à sua edição<br />

das Obras do Timon Brasileiro, afirma:<br />

“Lisboa tem todas as virtudes do perfei-<br />

to historiador”. (p. 64).<br />

Referindo-se às revoltas de Manuel<br />

Beckman, no Maranhão, e à da Praia,<br />

em Pernambuco, Graça Aranha admite:<br />

“Se João Lisboa fosse do nosso tempo,<br />

teria aprofundadamente explicado to-<br />

das essas revoltas pela fórmula da luta<br />

de classes que, intuitivamente, assina-<br />

lou”. (Vide Obras, p. 897-98).<br />

À p. 279 de sua obra A glória de<br />

César e o punhal de Brutus: Cinco per-<br />

sonagens na tormenta das derrotas,<br />

Álvaro Lins é taxativo quanto à veraci-<br />

dade do espólio histórico de João Lis-<br />

boa, “até hoje [...] o único historiador<br />

nosso em cujas páginas se sentem pal-<br />

pitar algumas das agitações da alma<br />

popular, algumas das pulsações do co-<br />

ração da nacionalidade que se ia e se vai<br />

formando.”<br />

À p. 86 de sua obra citada, expen-<br />

de com a devida cautela José Honório<br />

Índice<br />

Rodrigues seu juízo sobre a obra de Lis-<br />

boa: “Os resultados finais do trabalho<br />

do Maranhense em Portugal ainda não<br />

podem ser devidamente apreciados, por<br />

falta do inventário completo de toda a<br />

documentação.”<br />

À p. 232 do 4º v. da sua História do<br />

Brasil, relativo ao Império, Pedro Cal-<br />

mon considera Lisboa “o escritor mag-<br />

nífico que sobrepujou os do seu tempo<br />

pela pureza de sua prosa.”<br />

Enfim, deste modo o julga Nelson<br />

Werneck Sodré à p. 2<strong>11</strong> de sua História<br />

da literatura brasileira (3ª ed.): “Exis-<br />

tiu em Lisboa um entendimento, uma<br />

afinidade com a nossa gente, em senso<br />

de proporções, que denunciam a sua<br />

indiscutível superioridade sobre Var-<br />

nhagen.”<br />

Pela alta representatividade de seus<br />

autores, não podemos passar ao largo<br />

dos seguintes juízos críticos, alguns dos<br />

quais firmados por ilustres conterrâ-<br />

neos de nosso clássico escritor. Todos<br />

eles extraídos do opúsculo intitulado<br />

João Lisboa, organizados pela Comis-<br />

são dos Festejos do Centenário de João<br />

<strong>11</strong>1 / 125


Francisco Lisboa, constituída pelos<br />

saudosos maranhenses Cônego José de<br />

Ribamar Carvalho, Domingos Vieira<br />

Filho, Mário Martins Meireles e Ruben<br />

Ribeiro de Almeida (vd. Bibliografia).<br />

Ei-los:<br />

“O seu discurso foi [...] um impro-<br />

viso, e todavia que obra-prima de elo-<br />

quência! Desde então fiquei fazendo de<br />

Lisboa o juízo que ele realmente mere-<br />

cia, como um talento verdadeiramente<br />

superior, diante do qual eu podia cur-<br />

var-me, seguro de não ser o admirador<br />

de um charlatão; e digo que esse ho-<br />

mem num teatro mais folgado e numa<br />

época revolucionário, tão própria para<br />

fazer sobressair os dotes oratórios, se-<br />

ria, um Demóstenes, um Mirabeau, um<br />

O’Connel.” CORREIA, Frederico Jose.<br />

Um livro de crítica. Maranhão, ed.,do<br />

autor, 1878, p. 184)<br />

Neste passo, firmado por um dos<br />

maiores críticos de nossa literatura, se<br />

destaca o lado sarcástico do Jornal de<br />

Timon, saído da pena de nosso biogra-<br />

fado:<br />

“É essa obra, única na literatura<br />

Índice<br />

nacional, que principalmente distingue<br />

João Lisboa entre os nossos escritores.<br />

É uma sátira da melhor qualidade, do<br />

mais elevado espírito, cheia de humor,<br />

de graça e de imaginação. Nem o pessi-<br />

mismo do autor carrega o quadro, que<br />

é palpitante de verdade. O tom é em<br />

parte o de romance, e por mais de um<br />

toque, João Lisboa precedeu os nossos<br />

realistas e naturalistas. É um livro de<br />

humour, no melhor sentido anglo-sa-<br />

xônio da palavra.” (VERÍSSIMO, José.<br />

In Estudos de Literatura Brasileira.<br />

2ª. série (sem localização, editor e data;<br />

vide p. 6 do citado opúsculo).<br />

Eis aqui o que disse de nosso bio-<br />

grafado outro grande nome da crítica<br />

litrária brasileira:<br />

“Até hoje [João Lisboa] é o único<br />

historiador nosso em cujas páginas se<br />

sentem palpitar algumas das agitações<br />

d’alma popular, algumas das pulsações<br />

do coração da nacionalidade que se ia e<br />

vai formando.<br />

Varnhagen, Pereira da Silva, Melo<br />

Morais, Norberto e Silva, Joaquim Ca-<br />

etano, Cândido Mendes – são mudos<br />

<strong>11</strong>2 / 125


por esse lado. ROMERO, Sílvio, Histó-<br />

ria da Literatura Brasileira (sem loca-<br />

lização, editor e data; vide p. 7 do citado<br />

opúsculo)<br />

De um conspícuo historiador na-<br />

cional mereceu João.Lisboa. estas pa-<br />

lavras:<br />

“Deveria ter vivido [João Lisboa]<br />

noutro meio mais largo do que um meio<br />

de província, já porque, como escritor,<br />

foi ao âmago das questões que subme-<br />

teu ao seu exame espiritual, já porque,<br />

como homem, pairou sempre acima das<br />

intrigas, grandes ou pequenas. Vivendo<br />

longe dos meios mais adiantados, não se<br />

tornou excêntrico, nem sequer pedan-<br />

te. Foi um precursor da moderna escola<br />

científica da história, sem verbosidades<br />

ocas, sem chinesices ridículas e sem<br />

gongorismos filosóficos (LIMA, Olivei-<br />

ra, Parnamirim, fevereiro de 1919).<br />

“Não menos importante é a Vida<br />

do Padre Antônio Vieira, que deixou<br />

incompleta e que com excessivos es-<br />

crúpulos não julgava em condições de<br />

ser publicada. “Estes papéis devem ser<br />

queimados, sem serem lidos, quando eu<br />

Índice<br />

o determinar.” – disse em nota do seu<br />

punho no invólucro que os guardava.<br />

Obra inacabada, mas em que se sente o<br />

biógrafo à altura do grande jesuíta, bió-<br />

grafo e não panegirista. SOUSA, Otávio<br />

Tarquínio. Prefácio às Obras Escolhi-<br />

das, Rio de Janeiro, Améric Edit. 1946).<br />

Do Catálogo da Imprensa no Ma-<br />

ranhão, que vinha preparando à época,<br />

disse dele o saudoso humanista mara-<br />

nhense Domingos Vieira Filho:<br />

“Lisboa [...] não é um simples ca-<br />

ricaturista do grotesco que intencio-<br />

nalmente deformasse os traços de suas<br />

figuras pra com isso obter efeitos ines-<br />

perados. Não. Ele perquire a alma das<br />

criaturas, revolvendo-lhes o imo pra<br />

perscrutar-lhes os segredos. Utiliza an-<br />

tes a caricatura com meio hábil para<br />

personificar a condição humana em<br />

suas vicissitudes. Por outro lado, não<br />

fez humorismo jovial. Em seus retratos<br />

morais está bem mais próximo do riso<br />

amargo de Daumier do que da garga-<br />

lhada jogralesca de Hogarth...<br />

Enfim, o patriarca de nossa histo-<br />

riografia científica assim considera o<br />

<strong>11</strong>3 / 125


grande maranhense:<br />

“Exemplar na vida, no talento, no<br />

estilo, João Francisco Lisboa escreveu<br />

excelente trabalho sobre a colonização<br />

holandesa e magnífico e ponderado<br />

paralelo entre a colonização holande-<br />

sa e francesa no Brasil. Claro, seguro,<br />

austero, ele é bem o exemplo da matu-<br />

ridade na historiografia brasileira do<br />

século XIX”. (RODRIGUES, José Ho-<br />

nório. Historiografia e Bibliografia do<br />

Dom´nio Holandês no Brasil, Rio, ed.<br />

Do autor, 1949).<br />

Embora não exaustivos, diante de<br />

tão conspícuos e indiscutíveis juízos, os<br />

estudiosos de nossa história e de nosso<br />

vernáculo não podem deixar de apre-<br />

ciar as obras de João Lisboa, a fim de<br />

se enriquecerem culturalmente sobre<br />

nosso invejável e glorioso passado. So-<br />

bretudo, as novas gerações, pois, como<br />

afirmou Álvaro Lins, “o Mestre mara-<br />

nhense não podia continuar conhecido<br />

dos leitores de hoje apenas pelos elo-<br />

gios dos compêndios de literatura e por<br />

escassos trechos de antologia, ou esti-<br />

vesse quase a constituir um privilégio<br />

dos não muito numerosos pesquisado-<br />

Índice<br />

res de suas obras.”<br />

<strong>11</strong>4 / 125


REFERÊNCIA<br />

• ADRIÃO, Padre Pedro. Tradições clássicas da língua portuguesa. Porto Alegre: J. Pe-<br />

reira da Silva, 1945.<br />

lo, 1947.<br />

• CALMON Muniz de Bittencourt, Pedro. História do Brasil. 4º vol. O Império. São Pau-<br />

• CARVALHO, Cônego José de Ribamar; VIEIRA FILHO, Domingos; MEIRELES, Mário<br />

Mário Martins; e ALMEIDA, Ruben Ribeiro de. João Lisboa. São Luís, MA, S.E.N.E.C. , Departa-<br />

mento de Culltura do Estado do Maranhão, 1963. 24 p.<br />

• CINTRA, Assis. Os clássicos e o antigo vernáculo. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1921.<br />

• FREIRE, Francisco José (pseud. Cândido Lusitano). Reflexões sobre a língua portu-<br />

guesa. Lisboa: Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1842.<br />

• LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense. 2ª ed.: [Rio de Janeiro: Alhambra,<br />

1987], t. II, p. 2<strong>05</strong>-387.<br />

• LESSA, Pedro. João Francisco Lisboa. Conferências (1912-1913) da Sociedade de Cul-<br />

tura Artística de São Paulo. SP: Cardoso Filho, 1914.<br />

• LINS, Álvaro. A glória de César e o punhal de Brutus: Cinco personagens na tormenta<br />

das derrotas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.<br />

• LISBOA, João Francisco. Obras. 4 v. Editores e revisores Antônio Henrique Leal e Car-<br />

los Pereira de Castro. São Luís: B. de Mattos, 1º v. 1864; 2º, 3º e 4º v., 1865.<br />

• ______Obras. 2 v. 1º v. com retrato de J. F. Lisboa e Antônio Henrique Leal, e uma<br />

Notícia; e 2º v. com apreciação crítica de Teófilo Braga. 2ª ed. Lisboa: Matos Moreira & Pinheiro,<br />

1891.<br />

• ______Obras escolhidas. 2 v. Seleção e prefácio de Octávio Tarquínio de Sousa. [Rio<br />

de Janeiro], Americ Edit., [1946].<br />

• ______Obras. 3ª ed. Org. e rev. de Jomar Moraes e Jorge Nascimento, com nota introdutória<br />

do primeiro. T. I. – Eleições na Antiguidade e Eleições e Partidos Políticos no Maranhão;<br />

T. II, 1º e 2º v., Apontamentos, Notícias e Observações para Servirem à História do Maranhão.<br />

São Luís: Alumar, 1991.<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 1ª. ed. É de 1865, inserta nas<br />

Obras. Está no vol. IV.<br />

Índice<br />

<strong>11</strong>5 / 125


• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 2ª.e nova edição é do Rio de Janeiro, 1874.<br />

VII, 374 p.. É de 1865, inserta nas Obras. Está no vol. IV.<br />

388 p. .<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 3ª. ed. é do Rio de Jsneiro, B.L.Garnier, 1891.<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 4ª. ed. é de Lisboa, juntamente com a 2ª. das<br />

Obras. Tip. Matos Moreira & Pinheiro, 1865.<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 5ª. ed. é de São Paulo, Edições Cultura, 1942..<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 6ª. ed. é do Rio de Janeiro,<br />

Améica Edit., 1946. Ocupra d pág. 150 à 201.<br />

• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 7ª. ed. é de W.MÇ.Jackson<br />

Inc. Vol XIX da coleção Clássicos Jackson. XXIII,. 354 págs. Com prefácio de Peregrino Júnior..<br />

• ______Obras Escolhidas. Prefácio e seleção de Otávio Tarqjínio de Sopusa. Rio de<br />

Janeiro, Améric Edit. , 1946. 2 vols. 536 p. ol. 5 da coleção Joaquim Nabuco.<br />

• MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. Rio de Janeiro: DASP, 1960.<br />

• RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil: Sua Evolução e problemas<br />

atuais. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1952.<br />

• SEGISMUNDO, Fernando. João Francisco Lisboa, historiador. Tese para professor ti-<br />

tular de História Geral e do Brasil do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro, fevereiro de 1795. (Mimeo).<br />

• SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira: Seus fundamentos eco-<br />

nômicos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.<br />

• TAVARES, José Pereira. Como se devem ler os clássicos. Lisboa: Sá da Costa, 1941.<br />

Antônio Martins Araújo<br />

Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; preside a Academia<br />

Brasileira de Filologia, membro da Academia Maranhense de Letras; sócio efetivo da Academia<br />

Maranhense de Letras e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.<br />

Índice<br />

<strong>11</strong>6 / 125


FRANcIScO SOTERO DOS REIS<br />

REcONTExTUALIzADO<br />

Francisco Sotero dos Reis, que,<br />

como Machado de Assis, só teve<br />

iniciação escolar pouco<br />

além das primeiras letras,<br />

viveu seus setenta e um<br />

anos sem sair de São Luís<br />

do Maranhão, onde militou<br />

no jornalismo e, filiado<br />

ao Partido Conservador,<br />

exerceu mandatos de<br />

vereador daquela capital<br />

e deputado em diversas legislaturas<br />

da Assembleia Provincial, da qual foi<br />

presidente.<br />

Exerceu o cargo de professor<br />

catedrático do Liceu Maranhense,<br />

de que foi o primeiro diretor, e do<br />

Instituto de Humanidades, fundado<br />

Francisco Sotero dos Reis<br />

Índice<br />

Antônio Martins de Araújo<br />

e dirigido por Pedro Nunes Leal,<br />

estabelecimento onde exerceu o<br />

magistério de latim,<br />

português, e de literatura<br />

portuguesa e brasileira.<br />

Dessa última disciplina,<br />

então concebida com<br />

uma amplitude hoje<br />

inadmissível, ministrou o<br />

famoso Curso de literatura<br />

portuguesa e brasileira,<br />

posteriormente editada em cinco<br />

tomos de igual título.<br />

Tem-se verberado seu classicismo<br />

e sua lusitanidade como imobilismo e<br />

purismo. Faz-se tabula rasa contra o<br />

fato de suas Postillas de grammatica<br />

geral virem refertas de exemplos<br />

<strong>11</strong>7 / 125


de escritores medievais e clássicos<br />

portugueses, a despeito da presença<br />

discreta de brasileiros (assim mesmo<br />

estrangeirados) como José Basílio da<br />

Gama, os padres Santa Rita Durão e<br />

Antônio Pereira de Sousa Caldas, o<br />

marquês de Maricá e o abrasileirado<br />

Tomás Antônio Gonzaga.<br />

Por acaso era rebarbativa a<br />

exemplificação de casos gramaticais<br />

com exemplos colhidos aos clássicos<br />

portugueses em meados do século<br />

passado? Vejam-se dois casos<br />

parecidos: o gramático português<br />

Natividade justifica haver retirado<br />

ao padre Antônio Vieira todo o<br />

exemplário de sua obra, com este juízo<br />

de dom Francisco Alexandre Lobo (in<br />

Memoria sobre a vida e escriptos do<br />

Padre Antonio Vieira): “Se a língua<br />

portuguesa se perdesse, se acharia<br />

toda quanto à prosa em Vieira, assim<br />

como quanto ao verso em Camões”.<br />

E que dizer da gramática do suíço<br />

Charles Adrien Olivier Grivet (1816-<br />

Índice<br />

1876), que, após uma estada de apenas<br />

dois anos na Rússia, domiciliou-se<br />

na cidade de São Sebastião do Rio<br />

de Janeiro a primeiro de abril de<br />

mil oitocentos e cinquenta e seis? Aí<br />

regularmente lecionando, após seu<br />

nono ano de permanência, publicou<br />

uma alentada gramática, que iria<br />

merecer uma segunda edição póstuma,<br />

por ele deixada corrigida e bastante<br />

aumentada. Pasme-se. Vivendo na<br />

Corte e dela tirando seu sustento, esse<br />

preconceituoso senhor não honrou<br />

nenhuma das seiscentas e vinte e duas<br />

páginas de seu manual com exemplos<br />

de qualquer escritor brasileiro antigo<br />

ou contemporâneo seu.[2]<br />

Julgar Sotero fora de seu tempo<br />

e de seu espaço implica desfocar a<br />

verdade dos fatos. Quando, na década<br />

de sessenta do século dezenove,<br />

publicou suas obras gramaticais,<br />

ainda gozava de prestígio em nosso<br />

país a Gramática Filosófica, herança<br />

de Port-Royal e do sistema dos<br />

enciclopedistas, que procuravam<br />

estabelecer os princípios gerais da<br />

língua. Sotero concebeu suas obras<br />

<strong>11</strong>8 / 125


gramaticais dentro dessa filosofia<br />

linguística, e incidiu em alguns erros<br />

da Gramática portuguesa de Antônio<br />

José dos Reis Lobato (1770), como o<br />

de enxergar elipses por toda a parte,<br />

como lucidamente já mostrara José<br />

Leite de Vasconcelos.[3]<br />

Seguindo a tradição gramatical<br />

da Minerva, de Sanchez de las Brozas,<br />

Sotero partiu sempre do latim para<br />

o português, e não de modo inverso,<br />

como às vezes hoje se costuma fazer.<br />

Conquanto apreciasse a concisão do<br />

conceito de gramática formulado por<br />

Lancelot e Arnault, adotou ele a de<br />

Du Marsais, ressuscitado hoje pela<br />

Nova Retórica, do grupo µ. Este grupo<br />

considera a Gramática Geral ciência<br />

da palavra, e a Gramática Particular,<br />

arte, pois que esta é uma aplicação<br />

prática daquela. Em termos modernos,<br />

a Gramática Geral estaria mais para<br />

aquilo a que o sistema saussuriano<br />

chamou de langue, enquanto a<br />

Gramática Particular estaria para<br />

aquele sistema o que chamou de<br />

parole.<br />

Sotero publicou suas Postillas de<br />

Índice<br />

grammatica geral; aplicada à língua<br />

portuguesa pela analyse dos clássicos;<br />

ou guia para a construção portuguesa<br />

(São Luís, MA, Belarmino de Matos,<br />

1862) e a Grammatica portuguesa<br />

accommodada aos princípios geraes<br />

da palavra seguidos de imediata<br />

aplicação pratica (São Luís, MA,<br />

Belarmino de Matos, 1866 e 1871);<br />

esta segunda corrigida e anotada pelos<br />

filhos do autor sob a orientação do<br />

prof. Luís Carlos Pereira de Castro; e<br />

do editor Magalhães, a terceira edição,<br />

em 1877, ambos os editores de São<br />

Luís do Maranhão. O fato de serem<br />

maranhenses essas três edições é uma<br />

prova incontestável do prestígio que<br />

experimentaram no meio científico da<br />

época.<br />

Antes de crucificá-lo como<br />

passadista e retrógrado, primeiro se<br />

deve perguntar qual era a tradição<br />

gramatical brasileira anterior<br />

a ele. Quase nenhuma, todos<br />

responderão. Nas escolas, ensinava-<br />

se primeiramente latim, e, só depois,<br />

o português. Nos primórdios de nossa<br />

colonização, a bem do entendimento<br />

<strong>11</strong>9 / 125


dos colonizadores com os colonizados,<br />

ensinava-se primeiramente a<br />

gramática da língua geral que se<br />

falava nas costas do Brasil editadas<br />

em Portugal muitíssimo antes de<br />

podermos editar as gramáticas<br />

brasileiras da língua comum.<br />

Da existência de um esboço de<br />

gramática portuguesa escrita pelo<br />

malogrado frade carmelita e recifense<br />

Joaquim do Amor Divino Caneca<br />

(1774-1825), só há pouco tivemos<br />

notícia, e seguramente não chegou a<br />

fazer escola. Como também não fez<br />

escola a primeira gramática brasileira<br />

da autoria do maranhense Antônio da<br />

Costa Duarte, publicada bem antes<br />

do Compêndio da língua nacional, do<br />

gaúcho Antônio Pereira Coruja, que<br />

seguiu a tradição portuguesa da de<br />

Antônio dos Reis Lobato e durante<br />

muito tempo se pensou haver sido a<br />

primeira.<br />

Apesar do exemplário clássico e<br />

português exibido pelos dois, não é<br />

força de expressão dizer-se que Sotero<br />

“pontificava” no Maranhão, como<br />

Carneiro Ribeiro pontificaria em<br />

Índice<br />

seguida na Bahia. Não só pontificava,<br />

como chegou a fazer escola. Como<br />

também não é força de expressão<br />

dizer-se que Sotero exportava filologia<br />

para o resto do Império. Isso pode-se<br />

comprovar com um curioso manual<br />

didático do bacharel maranhense<br />

Augusto Freire da Silva (1836-1917).<br />

Chamava-se Noções de prosodia<br />

e ortografia para uso da infância<br />

que frequenta as aulas do grau do<br />

Instituto Santista, intercaladas de<br />

um resumo de etymologia e sintaxe,<br />

extrahido da Grammatica Portugueza<br />

de Francisco Sotero dos Reis pelo<br />

Dr. Pedro Nunes Leal, sob o título de<br />

Noções Grammaticaes, brevemente<br />

additadas e compiladas. (São Luís,<br />

1871).<br />

Chegou mesmo seu autor a tirar<br />

uma segunda edição dessa obra, “mais<br />

correta e aumentada,” com indicação<br />

de São Paulo, 1875, mas, com efeito,<br />

editada em São Luís, pela tipografia<br />

do Frias, no ano seguinte, com o novo<br />

título de Compendio da Grammatica<br />

Portugueza; constando [...] na parte<br />

lógica ou discursiva de um resumo de<br />

120 / 125


Etymologia e Syntaxe extrahido com<br />

algumas alterações e acréscimos da<br />

Grammatica Portugueza de Francisco<br />

Sotero dos Reis. Uma novidade traz<br />

o livrinho na parte da pontuação, ao<br />

lado de exemplos de Camões, Vieira,<br />

Jacinto José Freire, Dinis, Gonzaga,<br />

Herculano e Garrett – exemplos de<br />

Gonçalves de Magalhães, Gonçalves<br />

Dias e Trajano Galvão.<br />

Ao que parece, contra Sotero, tem-<br />

se-lhe interpretado ao pé-da-letra o<br />

uso do verbo fixar em passos como<br />

este seu:<br />

[...] o Portuguez adquirindo copia<br />

de termos, principalmente com as<br />

viagens e explorações dos Portuguezes,<br />

passou, pouco mais de quatro séculos<br />

depois de sua formação, a ser a língua<br />

culta de Camões, que o fixou [grifamos]<br />

com seus Luzíadas, enriquecendo-o<br />

com um dialecto poético, que não<br />

tinha, e de Barros, que, com as duas<br />

Decadas de Asia, ennobrecêo-lhe a<br />

prosa dando-lhe conveniente número<br />

e majestade. (id., ibid., p. 263-264).<br />

Sotero tinha plena noção do<br />

dinamismo das línguas. De tal modo<br />

Índice<br />

que justificava assim a eleição de seu<br />

cânone:<br />

Antes de Camões e Barros, o<br />

Portuguez era um idioma ainda pobre,<br />

e por vezes hórrido nas maneiras<br />

de dizer, como se nota nas obras de<br />

nossos escriptores mais antigos, mas<br />

com eles, e depois deles, foi uma língua<br />

mui rica, e própria para todo gênero<br />

de assumptos. (id., ibid.)<br />

Como é sabido, as palavras, além<br />

de portarem valores denotativo e<br />

conotativo, podem ser usadas com<br />

significado extensivo e figurado. Ao<br />

escolher o cânone lusitano, Sotero<br />

desejou mostrar o dinamismo do<br />

idioma, a partir de dom Dinis até os<br />

árcades, e usou a expressão “fixar uma<br />

língua” com o sentido de “determinar<br />

qual é o uso dos melhores escriptores;<br />

seguil-os, imital-os,” como nos ensina,<br />

em 1873 (apenas cinco anos após as<br />

Postillas), o doutor frei Domingos<br />

Vieira em seu Thesouro da língua<br />

portuguesa.<br />

Mais do que um simples tratado<br />

de análise sintática, constituem-se<br />

121 / 125


elas para seu tempo uma necessária<br />

introdução estilística aos textos<br />

medievais e clássicos. Diversamente da<br />

Grammatica gerall, que privilegiava<br />

os aspectos universais da língua<br />

falada sem preocupação prescritiva,<br />

as Postillas de Sotero elegeram um<br />

corpus literário por ele reputado como<br />

modelar, e tinhas claros objetivos<br />

prescritivos.<br />

Nelas, ele estudou a disposição<br />

dos termos e das orações no período;<br />

esmiuçou os “idiotismos” de toda<br />

ordem; esclareceu dificuldades<br />

gramaticais encontradiças na<br />

construção do texto; advertiu para<br />

o respeito à grafia de cada sincronia<br />

da língua para colher-se, o mais fiel<br />

possível, a pronúncia de cada tempo; e<br />

demorou-se longamente na apreciação<br />

dos desvios estilísticos à disposição<br />

dos usuários da língua literária. Era<br />

esse seu objetivo maior.<br />

Mais do que um simples manual<br />

de análise sintática, repetimos, é um<br />

pioneiro esboço de tratado de estilística<br />

literária. Assim explicou Sotero a<br />

inserção de textos dos escritores mais<br />

Índice<br />

antigos no suplemento à quinta parte<br />

da edição de que nos ocupamos:<br />

Neles poderá o leitor não só ver<br />

confirmado com maior número de au-<br />

toridades o juizão, que emitimos sobre<br />

as modificações por que tem passa-<br />

do a língua, desde nossos mais anti-<br />

gos escriptores até nós, como formar<br />

também o seu com segurança; sem<br />

ter presentes os respectivos originaes,<br />

hoje pela mor parte raros. (id., ibid.,<br />

p. 229; destaque na transcrição).<br />

E não se venha cobrar de Sotero<br />

(falecido em 1871) o conhecimento das<br />

obras do americano William Dwight<br />

Whitney, que entendia a linguagem<br />

como fato social e instrumento de<br />

comunicação. As obras desse linguista<br />

(traduzimos-lhe os títulos) são Vida<br />

e crescimento da língua, de 1875,<br />

e A língua e o estudo da língua, de<br />

1876, ambas posteriores à data de<br />

falecimento do maranhense. Somente<br />

a partir da década seguinte é que<br />

Paranhos da Silva, José Veríssimo e<br />

João Ribeiro começaram a citar esse<br />

Autor entre nós.<br />

Também não se venha falar da<br />

122 / 125


tentativa heroica, mas, como não poderia deixar de ser, frustrada, da criação de<br />

uma língua brasileira, por parte do grande romancista cearense José Martiniano de<br />

Alencar, para a Corte migrado desde muito cedo. Essa tentativa, utópica por todo<br />

o sempre, foi já posta por terra depois que o saudoso filólogo mineiro Gladstone<br />

Chaves de Melo, para o Rio migrado desde muito cedo, publicou seus clássicos<br />

ensaios sobre a vernaculidade daquele prosador indianista.[4] Parece-me que<br />

mesma coisa deve ser dita sobre a teoria e a prática linguísticas de Gonçalves Dias.<br />

REFERÊNCIA<br />

[1] NATIVIDADE, Joaquim Antonio Correa da. Fundamentos da analyse<br />

grammatical e de estylo, e de composição de temas; extrahido dos melhores<br />

clássicos portugueses. Lisboa. G.M.Martins, 1862.<br />

[2] GRIVET, Charles Adrien Olivier. Nova grammatica analytica da língua<br />

portuguesa. 2ª. ed. Rio de Janeiro, Leuzinger, 1881.<br />

[3] VASCONCELOS, José Leite de. Opúsculos – Filologia (IV, parte II. Coimbra,<br />

Imprensa Universitária, 1929.<br />

[4] MELO, Gladstone Chaves de. Alencar e a “Lingua Brasileira.” 3ª. ed.<br />

(seguida do ensaio Alencar, cultor e artífice da língua. Rio de Janeiro, Conselho<br />

Federal de Cultura, 1972<br />

Antônio Martins Araújo<br />

Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; preside a Academia<br />

Brasileira de Filologia, membro da Academia Maranhense de Letras; sócio efetivo da Academia<br />

Maranhense de Letras e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.<br />

Índice<br />

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EMPRESAS ASSOCIADAS<br />

Agropecuária e Industrial Serra Grande<br />

Alpha Máquinas e Veículos do Nordeste<br />

ALUMAR<br />

Atlântica Serviços Gerais<br />

Bel Sul Administração e Participações<br />

CEMAR - Companhia Energética do Maranhão<br />

CIGLA - Cia. Ind. Galletti de Laminados<br />

Ducol Engenharia<br />

Grupo Mateus<br />

Lojas Gabryella<br />

Mardisa Veículos<br />

Moinhos Cruzeiro do Sul<br />

Niágara Empreendimentos<br />

Oi<br />

Rápido London<br />

SempreVerde<br />

Televisão Mirante<br />

UDI Hospital<br />

VALE<br />

Índice<br />

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Índice<br />

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