O Globo, 05/11/1954 - Geia Plural
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APRESENTAÇÃO<br />
O dia 22 de março de 2012 marca o bicentenário de nascimento de João<br />
Francisco Lisboa. Aluno de Francisco Sotero dos Reis, “afamado latinista e gramático<br />
exigente”, torna-se um dos mais aguerridos jornalistas do seu tempo. Funda o<br />
jornal O Brasileiro, em 1832; reedita o Farol Maranhense, após a morte de José<br />
Cândido de Morais e Silva, seu editor. Em seguida, redige o Eco do Norte, Crônica<br />
Maranhense e Publicador Maranhense. Após breve passagem como Secretário do<br />
Governo Provincial e Deputado à Assembleia e na Corte, volta ao jornalismo.<br />
Esta edição presta homenagem a Lisboa, publicando um texto de sua<br />
autoria sobre o Teatro Artur Azevedo, e artigos do Prof. Antônio Martins de Araújo,<br />
presidente da Academia Brasileira de Filologia e membro da Academia Maranhense<br />
de Letras.<br />
Sebastião Moreira Duarte, Ricardo Leão, Álvaro Lima e José Neres também<br />
colaboram nesta edição.<br />
Jorge Murad<br />
Presidente do Conselho Deliberativo
Vivendo aqui e lá: como os<br />
imigrantes estão criando<br />
espaços transnacionais que<br />
transformam comunidades e<br />
nações<br />
Álvaro Lima 4<br />
A eleição de Josué Montello<br />
para a Academia Brasileira<br />
de Letras<br />
José Neres 50<br />
Francisco Sotero dos<br />
Reis recontextualizado<br />
Antônio Martins de Araújo<br />
<strong>11</strong>7<br />
A ética do cristianismo<br />
Sebastião Moreira Duarte 24<br />
Teatro de São Luís<br />
João Lisboa 69<br />
ÍNDICE<br />
NÚMERO 3 - ABRIL/MAIO 2012<br />
Uma Atenas sem Panteões<br />
Ricardo Leão 40<br />
Ecos da vida e importância<br />
da obra histórica do<br />
maranhense João Francisco<br />
Lisboa no segundo centenário<br />
de seu nascimento<br />
Antônio Martins de Araújo 95<br />
Editor: Jorge Murad; Edição: Instituto <strong>Geia</strong>; Capa: Faroldigital<br />
Fotografia: Albani Ramos; Webmaster: Helder Maia; Colaboradores:<br />
Álvaro Lima, Antônio Martins de Araújo, José Neres, Ricardo Leão,<br />
Sebastião Moreira Duarte.<br />
Capa: reprodução de retrato de J. F. Lisboa - Obras de João Francisco<br />
Lisboa (Coleção Documentos Maranhenses - AML)<br />
<strong>Plural</strong> é uma publicação bimensal editada pelo Instituto <strong>Geia</strong>,<br />
localizada na Av. Cel.Colares Moreira, nº 1, Q. 121, sala 102,<br />
São Luís–MA CEP 65.075-440 Fonefax: +55 98 3227 6655<br />
contato@geiaplural.org.br<br />
As opiniões e conceitos emitidos pelos autores são de exclusiva<br />
responsabilidade dos mesmos, não refletindo a opinião da revista<br />
nem do Instituto <strong>Geia</strong>. Sua publicação tem o propósito de estimular o<br />
debate e refletir as diversas opiniões do pensamento atual.
Eu sou um brasileiro morando na América, mas minha vida é mais do<br />
que apenas a vida de um imigrante. Sou um dos milhões de imigrantes que hoje<br />
vivem vidas transnacionais. Moramos, trabalhamos, socializamos, nos divertimos,<br />
e fazemos política nos nossos países de origem e destino. Estamos aqui e lá,<br />
diferentemente de gerações passadas que deixaram as suas casas para nunca<br />
retornar.<br />
VIVENDO AQUI E LÁ:<br />
como os imigrantes estão criando espaços transnacionais<br />
que transformam comunidades e nações.<br />
Índice<br />
Álvaro Lima<br />
São Luís/MA<br />
4 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
A diferença entre imigrantes e<br />
transnacionais está espelhada na<br />
história da minha própria família.<br />
Cerca de 100 anos atrás, meu avô<br />
emigrou da Espanha para o Bra-<br />
sil. Deixou sua família para trás e<br />
nunca retornou à sua vila, Ponteve-<br />
dra, na Galícia. Como a maioria dos<br />
imigrantes daquela época, sua úni-<br />
ca opção era assimilar a cultura de<br />
seu novo país. Seus filhos – minha<br />
mãe, tios e tia – cresceram falando<br />
o português e nunca aprenderam<br />
o espanhol. Suas experiências com<br />
a antiga cultura de meu avô estava<br />
limitada à paella aos domingos, al-<br />
gumas poesias de Rosália Castro, e<br />
à celebração anual do 12 de Outu-<br />
bro, o dia da Raça.<br />
Aquilo era naquele tempo.<br />
Hoje, a tecnologia, economia, de-<br />
mografia, política e fatores cultu-<br />
rais têm acelerado de forma cres-<br />
cente a imigração transnacional.<br />
Enquanto imigrantes transnacio-<br />
Índice<br />
nais, nos envolvemos em atividades<br />
além-fronteiras, e através destas<br />
atividades construímos “campos<br />
sociais” relativamente estáveis,<br />
duráveis e densamente interliga-<br />
dos que atrelam nossos países de<br />
origem e destino, através da cir-<br />
culação de ideias, informações,<br />
produtos e dinheiro, além do mo-<br />
vimento de pessoas.<br />
Em qualquer momento, esta-<br />
mos firmemente assentados num<br />
lugar particular – Boston, por<br />
exemplo –, mas nossas vidas diá-<br />
rias estão vinculadas e dependen-<br />
tes de pessoas e recursos localiza-<br />
dos em outros países.<br />
Quando estou em Boston, in-<br />
terajo frequentemente com minha<br />
família, amigos e colegas no Brasil<br />
por telefone, e-mail, ou Skype, as-<br />
sim como muitos outros imigrantes<br />
independentemente das suas clas-<br />
ses sociais. Assim como eles, tenho<br />
conta bancária e investimentos aqui<br />
5 / 125
e no Brasil. Diferentemente de muitos deles,<br />
como um residente permanente, posso viajar<br />
para o Brasil sem receio de não poder retor-<br />
nar. Porque sou casado com uma canadense,<br />
meus dois filhos, ambos nascidos nos Estados<br />
Unidos, têm três nacionalidades.<br />
Vivo num espaço social transnacional, as-<br />
sim como muitos dos brasileiros, indianos, me-<br />
xicanos, equatorianos, cabo-verdianos, além<br />
de outros provenientes de países diversos. Pes-<br />
quisas sociológicas, incluindo as que tenho re-<br />
alizado, mostram que uma crescente fração dos<br />
imigrantes – milhões de pessoas que vivem nos<br />
Estados Unidos e dezenas de milhões em todo<br />
o mundo - vivem vidas transnacionais. Em-<br />
bora os imigrantes com maior padrão de vida<br />
sejam mais propensos a atividades transnacio-<br />
nais, é cada vez maior a proporção de imigran-<br />
tes de baixa renda que também vivem em es-<br />
paços transnacionais. Estes espaços englobam<br />
também dezenas de milhões de não imigrantes<br />
que são afetados por essas ações. Por exemplo,<br />
muitos imigrantes transnacionais têm fami-<br />
liares no seu país de origem que dependem de<br />
remessas de dinheiro para a sua subsistência e<br />
Índice<br />
“Vivo num<br />
espaço social<br />
transnacional,<br />
assim como muitos<br />
dos brasileiros,<br />
indianos,<br />
mexicanos,<br />
equatorianos,”...<br />
6 / 125
são influenciados pelas culturas dos<br />
países de residência daqueles no seu<br />
convívio.<br />
A minha experiência é diferen-<br />
te daquela dos imigrantes de outras<br />
nações. No Brasil, as condições so-<br />
ciais e econômicas e as regras de sa-<br />
ída são diferentes das de outros pa-<br />
íses como o México, Coreia do Sul,<br />
China, Filipinas e Índia. A diáspo-<br />
ra brasileira é mais recente do que<br />
a desses países. E as suas regras de<br />
imigração permitem que seus cida-<br />
dãos sejam cidadãos de outras na-<br />
ções, algo que a Coréia, por exem-<br />
plo, proíbe. Essas diferenças entre<br />
as nações certamente afetam a ma-<br />
neira como os imigrantes transna-<br />
cionais vivem e como eles percebem<br />
sua própria condição.<br />
Transnacionalismo é uma ten-<br />
dência crescente na vida global. E, à<br />
medida que este cresce e se espalha,<br />
cria novas dinâmicas que desafiam o<br />
ideal de assimilação, frustra o pensa-<br />
Índice<br />
mento político mesquinho de Estado-<br />
-Nação homogêneo e mono-cultural,<br />
e reforça a horizontalidade da econo-<br />
mia mundial.<br />
Quem são os imigrantes<br />
transnacionais<br />
Os perfis que surgem dos imi-<br />
grantes transnacionais mostram o<br />
quanto eles são diferentes dos imi-<br />
grantes de um século atrás. Naquela<br />
época, famílias imigrantes carrega-<br />
vam um álbum de fotos e um punha-<br />
do de receitas para rememorar o ve-<br />
lho país. Hoje, eles têm uma página<br />
no Facebook e ligam para casa pelo<br />
menos uma vez por semana gastan-<br />
do centavos. Checam as notícias dos<br />
seus países de origem pela televisão<br />
via satélite. Vão para casa nas férias<br />
quando encontram preços bons no<br />
Travelocity ou no Expedia. Quando<br />
estão nos seus países de origem, po-<br />
dem visitar a clínica ou escola que aju-<br />
daram a construir via investimentos<br />
7 / 125
Centro Histórico de São Luís/MA<br />
realizados por suas associações co-<br />
munitárias. Esses tipos de atividades<br />
realizadas com frequência e regulari-<br />
dade caracterizam a vida transnacio-<br />
nal. As remessas de dinheiro são tal-<br />
vez o comportamento transnacional<br />
mais bem documentado. Por exem-<br />
plo, os imigrantes dos países em de-<br />
senvolvimento morando nos Esta-<br />
dos Unidos enviam cerca de US$ 150<br />
bilhões para suas famílias, amigos<br />
e comunidades de origem todos os<br />
Foto: Albani Ramos<br />
Índice<br />
anos. Claro que os imigrantes de um<br />
século atrás enviavam dinheiro para<br />
casa também, mas o que era uma<br />
gota, hoje é uma enxurrada, grande o<br />
suficiente para revigorar a economia<br />
de toda uma nação. As perspectivas<br />
de desenvolvimento de alguns países<br />
tornaram-se indissociavelmente li-<br />
gadas às atividades econômicas das<br />
suas respectivas diásporas. Remessa<br />
de dinheiro é uma atividade regular<br />
de muitos imigrantes. Em 2007, rea-<br />
lizei uma pesquisa que mostra que 83<br />
por cento dos brasileiros que enviam<br />
dinheiro em Massachusetts o fazem<br />
todos os meses, às vezes duas vezes<br />
por mês - uma média de US$ 875 por<br />
mês.<br />
A investigação revelou que as<br />
remessas são apenas a ponta do ice-<br />
berg transnacional. Quase dois ter-<br />
ços dos entrevistados disseram que<br />
telefonam para casa duas ou mais<br />
vezes por semana, por cerca de meia<br />
hora cada ligação. A grande maioria<br />
8 / 125
“... profissionais<br />
nascidos em outros<br />
países detêm 25%<br />
das empresas de<br />
economia mista,<br />
47% das empresas<br />
de capital privado<br />
e mais da metade<br />
de todos os novos<br />
empreendimentos<br />
no Vale do Silício.”<br />
assiste programas de televisão ou rádio trans-<br />
mitidos desde o Brasil. Quase três em cada qua-<br />
tro enviam ou recebem e-mails de amigos e fa-<br />
miliares que ficaram no Brasil. Quase metade<br />
compra alimentos e temperos brasileiros e um<br />
em cada cinco adquire vídeos, DVDs e CDs de<br />
música e filmes brasileiros. Mais de um quarto<br />
dos entrevistados têm poupanças e cerca de 7<br />
por cento têm financiamentos imobiliários no<br />
Brasil. Um terço envia dinheiro para a sua famí-<br />
lia no Brasil para cobrir empréstimos imobiliá-<br />
rios e estudantis, pensões e outros investimen-<br />
tos.<br />
Estes comportamentos não são exclusivos<br />
dos imigrantes brasileiros bem-sucedidos. Qua-<br />
se dois terços dos brasileiros entrevistados que<br />
enviam dinheiro para o Brasil ganham menos<br />
de US$ 35,000 por ano, 62 por cento deles li-<br />
gam para casa duas ou mais vezes por semana e<br />
47 por cento das pessoas que não concluíram o<br />
ensino fundamental fazem uso da internet.<br />
Outras pesquisas têm apontado tendên-<br />
cias similares. Cerca de dois terços dos domi-<br />
nicanos imigrantes viajam para o seu país uma<br />
ou duas vezes por ano. Mais da metade dos<br />
Índice<br />
9 / 125
mexicanos que enviam dinheiro dos<br />
Estados Unidos o fazem todos os me-<br />
ses; cerca de 30 por cento têm conta<br />
poupança ou financiamento de imó-<br />
veis no México. Em 2007 um estudo<br />
relatou que 72 por cento dos latinos<br />
que vivem nos Estados Unidos en-<br />
viam dinheiro, viajam para casa ou<br />
telefonam para parentes, e 27 por<br />
cento possuem propriedades em seus<br />
países de origem.<br />
A realidade transnacional está<br />
também gerando impactos na políti-<br />
ca, tanto aqui como lá. Mais do que<br />
nunca, os imigrantes nos Estados<br />
Unidos cruzam fronteiras nacionais<br />
para votar, disputam cargos eleti-<br />
vos, contribuem para campanhas<br />
políticas, organizam comícios, par-<br />
ticipam em associações de ajuda as<br />
suas cidades de origem, sindicatos e<br />
igrejas. Por causa disto, políticos de<br />
outros países competem com gover-<br />
nadores e prefeitos na América pelo<br />
dinheiro que os imigrantes investem<br />
Índice<br />
em campanhas políticas. Boston e<br />
Nova Iorque, onde os partidos polí-<br />
ticos da República Dominicana têm<br />
comitês, são paradas obrigatórias<br />
para os candidatos dominicanos à<br />
Presidência da República. De acor-<br />
do com algumas estimativas, os do-<br />
minicanos arrecadam de 10 a 15 por<br />
cento dos fundos de campanha nos<br />
Estados Unidos e políticos domini-<br />
canos acreditam que a opinião dos<br />
imigrantes transnacionais influen-<br />
cia o pensamento dos dominicanos<br />
que ficaram no país. A influência dos<br />
transnacionais afeta políticos ameri-<br />
canos também. Quando Rudy Giulia-<br />
ni era prefeito de Nova York, viajava<br />
regularmente para Santo Domingo,<br />
capital da República Dominicana,<br />
em campanha eleitoral.<br />
Em Chicago, José Gutierrez, lí-<br />
der político mexicano-americano,<br />
detém influência nos Estados Unidos<br />
e no México. “Uma manhã”, relatou<br />
o Chicago Tribune, em abril de 2007,<br />
10 / 125
“ele revela um plano de mais serviços<br />
para imigrantes em Illinois como Di-<br />
retor do Gabinete de Políticas de De-<br />
fesa para Novos Americanos. Na noi-<br />
te seguinte, ele estava no seu estado<br />
de origem, Michoacan, reunido com<br />
partidários para escolher candidatos<br />
ao Congresso mexicano.” Gutierrez,<br />
que chegou em Chicago em 1986, diz<br />
que a política transnacional parte de<br />
uma nova consciência mexicana que<br />
transcende países e força mudanças<br />
em ambos os lados da fronteira. “O<br />
conceito Estado-nação está mudan-<br />
do”, ele disse ao Tribune. “Você não<br />
tem que dizer ‘eu sou mexicano’, ou<br />
‘eu sou americano.’ Você pode ser um<br />
bom cidadão mexicano e um bom ci-<br />
dadão americano, sem que haja um<br />
conflito de interesse. A soberania é<br />
flexível.”<br />
A política transnacional se es-<br />
tende ao exercício de mandato e<br />
voto além das fronteiras nacionais.<br />
Em 1997, Jésus Galvin, um agente<br />
Índice<br />
de viagens colombiano que vive em<br />
Hackensack, New Jersey, onde era<br />
vereador, disputou uma vaga ao Se-<br />
nado da Colômbia. Se eleito (ele não<br />
foi), Galvin planejava exercer fun-<br />
ções simultaneamente em Bogotá e<br />
Hackensack. Quando um mexicano<br />
dono de um restaurante em Chicago<br />
ajudou a construir novas estradas e<br />
a montar novos negócios em Telolo-<br />
apan, no estado mexicano de Guer-<br />
rero, a população da cidade o elegeu<br />
prefeito com a grande maioria dos<br />
votos. Os imigrantes da Colômbia,<br />
República Dominicana e do Brasil<br />
podem votar nas eleições nacionais<br />
em postos de votação montados nos<br />
Estados Unidos pelos seus consula-<br />
dos.<br />
Transferências de ideias polí-<br />
ticas, ideologias e práticas de or-<br />
ganização fluem nas duas direções<br />
entre os Estados Unidos e os paí-<br />
ses de origem. Enquanto noções de<br />
eleições livres e justas, liberdade de<br />
<strong>11</strong> / 125
imprensa e o direito à representa-<br />
ção legal migram para o sul, traba-<br />
lhadores migrantes transnacionais,<br />
especialmente do México e Améri-<br />
ca Central, são a espinha dorsal da<br />
base sindical que permitiu organizar<br />
o Sindicato Internacional dos Traba-<br />
lhadores do Setor de Serviços (SEIU),<br />
por exemplo, para obter melhores<br />
salários e condições de trabalho para<br />
faxineiros. Mexicanos, brasileiros e<br />
haitianos transnacionais têm ajuda-<br />
do a revitalizar igrejas de varias de-<br />
nominações. Hoje, quase um quar-<br />
to dos latinos nos Estados Unidos<br />
identificam-se como protestantes ou<br />
membro de outra denominação cris-<br />
tã, incluindo Testemunhas de Jeová<br />
e Mórmons. Uma pesquisa em 2006<br />
relatava que os latinos católicos nos<br />
Estados Unidos - cerca de dois terços<br />
da população latina – tendem a acre-<br />
ditar muito mais do que os católicos<br />
americanos que as igrejas devem tra-<br />
tar de assuntos sociais e políticos e<br />
Índice<br />
veem a religião como um guia moral<br />
para o pensamento político.<br />
O transnacionalismo também<br />
penetra o mundo do comércio. O<br />
Conselho Americano de Competiti-<br />
vidade relatou em 2007 que profis-<br />
sionais nascidos em outros países<br />
detêm 25 por cento das empresas<br />
de economia mista, 47 por cento das<br />
empresas de capital privado e mais<br />
da metade de todos os novos em-<br />
preendimentos no Vale do Silício.<br />
Muitas dessas empresas não são pe-<br />
quenas lojas ou restaurante servin-<br />
do o mercado étnico, mas empresas<br />
operando nos mercados nacional e<br />
internacional, principalmente es-<br />
tes dos seus países de origem. Wi-<br />
Chorus em San José, Califórnia, é<br />
uma dessas empresas. O seu funda-<br />
dor, Rehan Jalil, nascido no Paquis-<br />
tão e educado nos Estados Unidos,<br />
criou uma empresa para desenvol-<br />
ver tecnologia de baixo custo – ban-<br />
da larga sem fio - para o mundo em<br />
12 / 125
desenvolvimento, começando com a<br />
Índia. Ele levantou US$ 25 milhões<br />
com investidores americanos. “Essa<br />
tendência,” relatou The Wall Stre-<br />
et Journal no final de 2007, “repre-<br />
senta a mais nova ligação do Vale do<br />
Silício com a Índia”, um modelo de<br />
negócio em que se produz nos Es-<br />
tados Unidos e se vende na Índia.<br />
O co-fundador da Bubble Motion<br />
Inc., que desenvolveu um sistema<br />
de mensagens para pessoas que não<br />
falam Inglês, com escritórios na Ca-<br />
lifórnia e em Singapura, é Sunil Cou-<br />
shik, um nativo da Índia e veterano<br />
empresário lá e nos Estados Unidos.<br />
A ReaMetrix Inc, com empregados<br />
nos Estados Unidos e Índia, foi fun-<br />
dada pelo indiano Dr. Bala Manian,<br />
um físico, engenheiro e empresário<br />
do Vale do Silício, para desenvolver<br />
testes de diagnóstico de baixo custo<br />
para a diabetes e outras doenças.<br />
Enquanto isso, um número cres-<br />
cente de imigrantes possuem ou in-<br />
Índice<br />
vestem em empresas nos seus países<br />
de origem. Por exemplo, 39 por cento<br />
das 289 empresas localizadas no par-<br />
que industrial-científico de Hsinchu,<br />
próximo a Taipei, foram iniciadas<br />
por engenheiros taiwaneses educa-<br />
dos nos Estados Unidos, com experi-<br />
ência no Vale do Silício. Setenta des-<br />
sas empresas possuem escritórios no<br />
Vale do Silício que se dedicam a con-<br />
tratar trabalhadores, adquirir tecno-<br />
logia ou capital e explorar oportuni-<br />
dades de negócios.<br />
Em abril de 2007, Pablo Maia,<br />
um imigrante brasileiro que lidera o<br />
Grupo Pablo Maia Imóveis, de Fra-<br />
mingham, Massachusetts, anunciou<br />
o lançamento de um condomínio<br />
de luxo Spazio Nobre, em Ipatinga,<br />
no Brasil, uma cidade de origem de<br />
muitos brasileiros imigrantes nos<br />
Estados Unidos. Para fugir da que-<br />
da do mercado imobiliário ameri-<br />
cano, a empresa de Maia, hoje, ven-<br />
de mais imóveis no Brasil, onde as<br />
13 / 125
cidades que enviam imigrantes vivem<br />
um crescimento imobiliário, estimu-<br />
lado pelas remessas de dinheiro dos<br />
imigrantes. A Construmex, fundada<br />
em 2001 pela gigante empresa mexi-<br />
cana produtora de cimento CEMEX,<br />
ajudou mais de 8.000 famílias mexi-<br />
canas que vivem nos Estados Unidos<br />
a comprar ou construir suas casas no<br />
México. Tendências semelhantes fo-<br />
ram registradas na Colômbia, Equa-<br />
dor e El Salvador. Desde meados da<br />
década de 1980, dominicanos que<br />
vivem no exterior têm representado<br />
60 por cento das vendas anuais de<br />
imóveis no seu país de origem.<br />
Principais forças propulso-<br />
ras do transnacionalismo<br />
O transnacionalismo não é ri-<br />
gorosamente um fenômeno novo.<br />
De 1870 a 1910, quase 80 por cento<br />
dos imigrantes italianos nos Estados<br />
Unidos eram homens, a maioria dos<br />
quais deixou para trás esposas, filhos<br />
Índice<br />
e parentes que, eventualmente, vie-<br />
ram para os Estados Unidos. O mes-<br />
mo aconteceu com os homens judeus.<br />
Muitas vezes eram pioneiros que pos-<br />
teriormente enviavam dinheiro para<br />
pagar a passagem de outros mem-<br />
bros da família. Entre 1900 e 1906,<br />
o Correio de Nova York enviou 12,3<br />
milhões de ordens de pagamento in-<br />
dividuais para terras estrangeiras.<br />
Mas o foco e a intensidade das ativi-<br />
dades transnacionais cresceram dra-<br />
maticamente. Na década de 1980, o<br />
fenômeno foi observado pela primei-<br />
ra vez por estudiosos, quando estava<br />
começando a ganhar escala. Hoje em<br />
dia, pesquisas em ciências sociais su-<br />
gerem que 15 por cento de todos os<br />
imigrantes são transnacionais. Vários<br />
fatores tecnológicos, econômicos, de-<br />
mográficos, políticos e culturais têm<br />
construído o caminho para o cresci-<br />
mento da imigração transnacional.<br />
Alguns são amplamente reconheci-<br />
dos, outros não.<br />
14 / 125
Inovação na comunicação e<br />
transporte<br />
Os avanços tecnológicos nesses<br />
setores têm reduzido o tempo, custo,<br />
e dificuldade de viajar, realizar liga-<br />
ções e transações internacionais. Os<br />
imigrantes podem manter contato<br />
mais frequente e mais próximo com<br />
sua sociedade originária, o que lhes<br />
permite manter e expandir contatos<br />
pessoais, sociais e econômicos. Hoje,<br />
os imigrantes podem pegar um avião<br />
ou fazer uma chamada telefônica<br />
para saber como as coisas estão em<br />
casa. Maxine Margolis, professora<br />
de antropologia na Universidade da<br />
Flórida, ilustra esse ponto: “Quando<br />
perguntei a um brasileiro, proprie-<br />
tário de uma loja de móveis em Ma-<br />
nhattan, morador de Nova York há<br />
muitos anos, como dizer ‘wine rack’<br />
em Português, ele ficou embaraçado<br />
quando não pôde lembrar a expres-<br />
são. Tão rapidamente como consul-<br />
tar um dicionário, ele discou para o<br />
Índice<br />
Brasil para perguntar a um amigo.<br />
A comunicação mais fácil e ba-<br />
rata facilita o acesso a informações<br />
críticas. Quando o presidente pa-<br />
quistanês Pervez Musharraf fechou<br />
os jornais do país em novembro de<br />
2007, Muhammad Chaudrey, um ta-<br />
xista paquistanês que mora na região<br />
de Detroit, enviou e-mails para a sua<br />
família em Lahore com reportagens<br />
americanas sobre os últimos aconte-<br />
cimentos em seu país. Em um esforço<br />
mais amplo de luta contra a censura,<br />
os imigrantes chineses nos Estados<br />
Unidos criaram uma estação de tele-<br />
visão via satélite, New Tang Dynasty<br />
Television.O canal transmite progra-<br />
mas em chinês e inglês focados na<br />
promoção da democracia na China.<br />
cional<br />
O aumento do nível educa-<br />
O aumento considerável dos<br />
níveis de educação no mundo in-<br />
teiro têm servido para expandir os<br />
15 / 125
mercados de trabalho além-frontei-<br />
ras. A medida em que os países em<br />
desenvolvimento expandem o núme-<br />
ro de pessoas com alto nível educacio-<br />
nal, esses indivíduos ganham oportu-<br />
nidades de migrar para empregos e<br />
empresas em países desenvolvidos.<br />
“A migração internacional de pesso-<br />
as com formação universitária é algo<br />
que tem crescido dramaticamente ao<br />
longo do tempo,” afirma Elaine Fiel-<br />
ding, pesquisadora da Universidade<br />
de Michigan. Mais de 53 por cento<br />
dos imigrantes estrangeiros que vie-<br />
ram para a área de Detroit em 2004<br />
e 20<strong>05</strong> tinham, no mínimo, bachare-<br />
lado.”<br />
De acordo com o Institute of<br />
International Education, cerca de<br />
582.000 estrangeiros estudaram em<br />
“community colleges,” Universidades<br />
e escolas de pós-graduação em todo o<br />
país entre 2006 e 2007. Mais do que<br />
um quarto deles veio da Índia e Chi-<br />
na.<br />
Índice<br />
A concorrência global para tra-<br />
balhadores qualificados nos setores<br />
de informação, comunicação e tec-<br />
nologia criou uma abundância de<br />
oportunidades para as pessoas com<br />
o adequado conjunto de habilidades.<br />
Os governos nacionais estão facili-<br />
tando a concessão de vistos de traba-<br />
lho, introduzindo incentivos fiscais e<br />
tomando outras medidas para atrair<br />
esses talentos mundo afora. Nos Es-<br />
tados Unidos, corporações líderes<br />
de mercado têm negociado para que<br />
o governo federal alivie as restrições<br />
à contratação de trabalhadores alta-<br />
mente qualificados que foram impos-<br />
tas após <strong>11</strong>/9. Esses trabalhadores são<br />
extremamente móveis e formam um<br />
importante contingente de transna-<br />
cionais. Ao perseguirem oportunida-<br />
des de trabalho, eles criam circulação<br />
de investimentos, trabalho e família<br />
além-fronteiras.<br />
16 / 125
Liberalização de economias<br />
em desenvolvimento e o cresci-<br />
mento do mercado de trabalho<br />
em economias desenvolvidas<br />
Nas nações em desenvolvimen-<br />
to, a industrialização de setores eco-<br />
nômicos tradicionais cria grandes<br />
contingentes de subempregados. Es-<br />
sas economias estão cada vez mais<br />
ligadas às cadeias de abastecimento<br />
e distribuição de empresas interna-<br />
cionais – as pontes econômicas para<br />
emigração. Ao mesmo tempo, o de-<br />
clínio da indústria manufatureira e<br />
o crescimento do setor de serviços<br />
nas economias ocidentais transfor-<br />
maram suas estruturas ocupacionais<br />
e de rendimentos. O crescimento na<br />
oferta de emprego de baixo salário e<br />
da proporção de trabalhos temporá-<br />
rios e de meia jornada, assim como a<br />
expansão dos setores financeiro, de<br />
seguros, imobiliário, varejo e servi-<br />
ços estão criando oportunidades para<br />
imigrantes no topo e na base da pirâ-<br />
Índice<br />
mide ocupacional.<br />
À medida que a globalização ex-<br />
pande a classe média em muitos pa-<br />
íses não-ocidentais, mais mercados<br />
em potencial são criados para em-<br />
presas dos países desenvolvidos. Al-<br />
guns desses mercados são estimula-<br />
dos por atividades transnacionais. O<br />
Citigroup Inc., por exemplo, a maior<br />
entidade mundial de serviços finan-<br />
ceiros, firmou recentemente uma<br />
parceria com uma empresa de teleco-<br />
municações da Malásia para oferecer<br />
serviços que permitem a trabalhado-<br />
res estrangeiros naquele país enviar<br />
dinheiro usando seus telefones celu-<br />
lares.<br />
Muitos países desenvolvidos<br />
se tornaram dependentes da<br />
imigração para contrariar o de-<br />
clínio de suas populações<br />
Sem imigração, os países oci-<br />
dentais não são capazes de manter<br />
a taxa de crescimento demográfica<br />
17 / 125
necessária para manter o crescimento<br />
econômico. Pesquisadores canaden-<br />
ses calcularam que em 20<strong>11</strong>, os imi-<br />
grantes foram responsáveis por todo<br />
o crescimento da mão de obra do país.<br />
Hoje, a migração corresponde a 60<br />
por cento do crescimento econômi-<br />
co dos países ocidentais. Muitas das<br />
maiores cidades americanas, como<br />
Nova Iorque e Los Ângeles, assim<br />
como cidades menores, dependem<br />
da imigração para ter crescimento<br />
populacional e desenvolvimento eco-<br />
nômico. Os imigrantes são responsá-<br />
veis pelo crescimento econômico nos<br />
centros urbanos, afirma uma pesqui-<br />
sa publicada pelo Center for an Ur-<br />
ban Future: “empresários imigrantes<br />
altamente qualificados estão criando<br />
amplas ‘economias de enclaves’ com<br />
supermercados, clínicas de saúde,<br />
bancos, escritórios de advocacia, em-<br />
preendimentos de alta tecnologia e<br />
outras empresas”.<br />
O constante fluxo de imigrantes<br />
Índice<br />
sustenta as atividades econômicas<br />
transnacionais, como remessas de<br />
dinheiro, consumo de produtos dos<br />
seus países de origem, ligações telefô-<br />
nicas e viagens internacionais, assim<br />
como atividades políticas e culturais<br />
transnacionais. À medida que novos<br />
imigrantes chegam aos Estados Uni-<br />
dos ou outros países ocidentais, eles<br />
criam novas ligações com seus países<br />
de origem, aumentando assim as co-<br />
nexões transnacionais.<br />
Mudanças nas regras de en-<br />
trada e saída para os imigrantes.<br />
Transformações políticas globais<br />
e novos regimes legais internacionais<br />
estão mudando as regras de entrada<br />
e saída que os Estados-nação estabe-<br />
lecem para a imigração. Descoloniza-<br />
ção, a queda do comunismo, a ascen-<br />
são dos Direitos Humanos forçaram<br />
nações a prestar atenção aos direitos<br />
individuais, independentemente de<br />
se tratar de cidadãos nacionais ou<br />
18 / 125
estrangeiros. Cada nação estabele-<br />
ce o contexto para saída de seus ci-<br />
dadãos e de entrada para migrantes.<br />
Essas condições legais, econômicas,<br />
sociais e políticas – incluindo direi-<br />
tos a cidadania e regras comerciais,<br />
padrões de inclusão social, discrimi-<br />
nação e políticas externas – impedem<br />
ou facilitam o movimento além-fron-<br />
teiras e as atividades transnacionais.<br />
Alguns países começaram a mudar<br />
as suas políticas para acomodar as<br />
realidades transnacionais. O Méxi-<br />
co e as Filipinas, por exemplo, estão<br />
desenvolvendo políticas que definem<br />
sua população emigrante como par-<br />
te integrante do seu Estado-nação.<br />
Alguns países promovem ativamente<br />
a “reincorporação transnacional” de<br />
seus emigrantes para maximizar seus<br />
investimentos e as remessas. Ao mes-<br />
mo tempo, alguns países receptores<br />
têm expandido significativamente os<br />
direitos e prerrogativas dos imigran-<br />
tes. A complexidade destas questões<br />
Índice<br />
tem sido evidente no caso dos Estados<br />
Unidos, onde esforços para aprovar<br />
uma reforma na lei federal de imigra-<br />
ção até agora não obtiveram suces-<br />
so. O debate tem sido dominado pela<br />
ideologia anti-imigrante e preocu-<br />
pações de segurança, em detrimento<br />
de políticas efetivas e dos mais de 12<br />
milhões de imigrantes que vivem em<br />
condições precárias.<br />
O aumento da hibridação<br />
cultural<br />
A globalização da cultura e da<br />
identidade enfraquece tradicionais<br />
tensões entre o que é o próprio e o<br />
que é estrangeiro, e promove hibrida-<br />
ção cultural, que engloba ambos. Fo-<br />
mentada pelo consumo global, produ-<br />
ção e imigração, a hibridação cultural<br />
está competindo cada vez mais com<br />
culturas dominantes enraizadas em<br />
um único local e um conjunto de tra-<br />
dições. Nestor Garcia Canclini, um<br />
dos mais conhecidos e inovadores<br />
19 / 125
acadêmicos culturais na América La-<br />
tina, assinala que cultura cada vez<br />
mais é feita de material a partir daqui<br />
e de lá: “Eu ligo minha televisão, feita<br />
no Japão, e o que eu vejo é um filme<br />
mundial, produzido em Hollywood,<br />
feito por um diretor polonês, com<br />
assistentes franceses, atores de dez<br />
nacionalidades diferentes, em cenas<br />
filmadas em quatro países que tam-<br />
bém investiram na produção.” Moti-<br />
vados, em certa medida, pela difusão<br />
mundial da cultura americana, a hi-<br />
bridação, em muitos países, evolui de<br />
forma complexa, com contradições e<br />
fluxos de idas e vindas.<br />
“Em vez de criar uma única e<br />
aborrecida aldeia global, as forças<br />
da globalização estão, na realidade,<br />
encorajando a proliferação da di-<br />
versidade cultural,” afirma Michael<br />
Lynton, presidente e CEO da Sony<br />
Pictures Entertainment. Ele oferece<br />
a Sony como um caso: “o nosso es-<br />
túdio tem trabalhado com diretores<br />
Índice<br />
e atores na China, Índia, México, Es-<br />
panha e Rússia para fazer filmes que<br />
serão lançados em cada um desses<br />
mercados. “A empresa está produ-<br />
zindo séries originais de TV no Chile,<br />
Alemanha, Itália, Rússia e Espanha.<br />
Em vez de menos escolhas, há mais.<br />
E, ao invés de um mundo uniforme,<br />
americanizado, continua a haver um<br />
rico e vertiginoso leque de culturas.”<br />
Imigrantes transnacionais estão no<br />
centro desse processo – como “rein-<br />
terpretadores criativos” de cultura e<br />
transportadores além das fronteiras<br />
de modelos híbridos.<br />
As nações que enviam imigran-<br />
tes também sentem esse impacto<br />
cultural transnacional. Nestor Can-<br />
clini tem observado que, com 15 por<br />
cento de todos os equatorianos, e<br />
um décimo de todos os argentinos,<br />
colombianos, cubanos, mexicanos<br />
e salvadorenhos vivendo fora dos<br />
seus países, a América Latina não<br />
está completa no interior das suas<br />
20 / 125
fronteiras; suas culturas são mol-<br />
dadas em Los Angeles, Nova York e<br />
Madri. Uma pesquisa recente estabe-<br />
leceu a importância das “remessas so-<br />
ciais”, a transferência de significados<br />
sócio-culturais e as práticas que ocor-<br />
rem quando migrantes voltam a mo-<br />
rar ou visitam as suas comunidades<br />
de origem; quando não-imigrantes os<br />
visitam no país receptor; ou através<br />
de trocas de cartas, vídeos, e-mails<br />
e ligações telefônicas. David Fitzge-<br />
rald, um sociólogo da Universidade<br />
da Califórnia – Los Angeles, observa<br />
que os migrantes transnacionais de-<br />
safiam os ideais de identidade e fron-<br />
teiras de Estados-nação tanto no país<br />
onde moram como nos seus países de<br />
origem, com sua locomoção, por mo-<br />
rarem num país onde não possuem<br />
cidadania, e por serem cidadãos de<br />
um país onde não moram e, alternati-<br />
vamente, por reivindicar adesão a vá-<br />
rios países onde podem ser residen-<br />
tes, residentes em tempo parcial, ou<br />
Índice<br />
ausentes.<br />
A hibridação cultural, assim<br />
como outros aspectos do transnacio-<br />
nalismo, varia em frequência e pro-<br />
fundidade. Um dos fatores que molda<br />
os intercâmbios culturais é o contex-<br />
to de saída e entrada. Por exemplo,<br />
enquanto colombianos e dominica-<br />
nos veem de países da América La-<br />
tina e compartilham um idioma co-<br />
mum, seus contextos de saída e de<br />
acolhimento são muito diferentes,<br />
resultando em diferente padrões de<br />
incorporação na sociedade america-<br />
na. Pesquisas com imigrantes colom-<br />
bianos, que são na sua maioria bran-<br />
cos ou mestiços, mostram que eles se<br />
sentem menos discriminados que os<br />
dominicanos. Por outro lado, pesqui-<br />
sas realizadas entre dominicanos nos<br />
Estados Unidos constatou que eles<br />
são geralmente considerados como<br />
negros e discriminados enquanto tal.<br />
Quando um grupo de imigrantes<br />
encontra-se discriminado no país<br />
21 / 125
onde vive, seus integrantes geral-<br />
mente se unem e adotam uma pos-<br />
tura defensiva em relação ao país,<br />
de acordo com dados do Centro de<br />
Migração e Desenvolvimento da<br />
Universidade de Princeton. O grupo<br />
apela a símbolos de orgulho cultural<br />
trazidos de casa. Um bom exemplo<br />
disto é o grupo Guatemalteco Maia<br />
(Kanjobal), migrantes em Los Ange-<br />
les.<br />
Eles lidam com elevados níveis<br />
de discriminação via a revitalização<br />
e o reforço de formas tradicionais<br />
de identidade étnica através de um<br />
processo de transnacionalismo re-<br />
ativo. Quando, por outro lado, não<br />
existe a discriminação, as iniciativas<br />
transnacionais se tornam mais indivi-<br />
dualizadas e assumem formas típicas<br />
da classe média, tais como o Lions e<br />
o Kiwanis Clubs, e outras associações<br />
de caridade.<br />
Como as diferentes forças pro-<br />
pulsoras do transnacionalismo ope-<br />
Índice<br />
ram com intensidades variadas, jun-<br />
tamente com diferentes condições de<br />
saída e entrada, o transnacionalismo<br />
não é monolítico. Todavia, as forças<br />
econômicas, políticas e culturais que<br />
reforçam o transnacionalismo não<br />
vão desaparecer tão cedo. Estar aqui<br />
e lá veio para ficar.<br />
Porque eu nasci no Brasil, eu sou<br />
um “brasileiro”. Ter residência na<br />
América faz-me um “brasileiro-ame-<br />
ricano”. Viver e trabalhar em Boston<br />
me faz um “bostoniano.” E por ter<br />
crescido num país latino-americano,<br />
sou “latino.” Mas o que tudo isso sig-<br />
nifica num espaço transnacional? O<br />
que o transnacionalismo de milhões<br />
de imigrantes significa para as suas<br />
identidades, comunidades e países<br />
de origem? O que significa para uma<br />
América onde o censo americano rela-<br />
ta que, pela primeira vez, os sobreno-<br />
mes Garcia e Rodriguez encontram-se<br />
entre os 10 mais comuns e o sobreno-<br />
me Martinez está em <strong>11</strong>º lugar?<br />
22 / 125
À medida que o fenômeno transnacional muda a natureza da imigração, gera<br />
novas e espinhosas questões de política pública e cria novas oportunidades para<br />
inovadores sociais e empreendedores, ao mesmo tempo em que molda um espa-<br />
ço social que desafia o pensamento convencional sobre os imigrantes e o estado-<br />
-nação.<br />
Álvaro Lima<br />
Diretor de Pesquisas da Prefeitura de Boston e Diretor da organização não-governamental<br />
Innovations Network for Communities. De 1998 a 2004 foi Vice Presidente e Diretor de<br />
Pesquisas da Initiative for a Competitive Inner City – ICIC, uma organização nacional<br />
fundada em 1994 pelo Professor da Harvard Business School, Michael E. Porter.<br />
Índice<br />
23 / 125
Praça João Lisboa - São Luís/MA<br />
A éTIcA DO cRISTIANISmO 1<br />
Índice<br />
Sebastião Moreira Duarte<br />
Ele nunca usou uma frase que fizesse sua filosofia<br />
depender da ordem social em que viveu. Falou como alguém<br />
que tem consciência de que tudo é efêmero, inclusive as coisas<br />
que Aristóteles considerava eternas. [...] Jesus nunca fez sua<br />
moralidade depender da existência do Império Romano ou<br />
mesmo da existência do mundo. (G. K. Chesterton). 2<br />
O mundo moderno não é mau; sob determinados<br />
aspectos, o mundo moderno é, até, excessivamente bom.<br />
Podemos mesmo afirmar que ele está cheio das mais<br />
desregradas e desperdiçadas virtudes. [...] O mundo moderno<br />
está repleto de antigas virtudes cristãs que enlouqueceram.<br />
(G. K. Chesterton). 3<br />
1 - O autor precisa deixar bem claro que não está fazendo trabalho de teólogo ou de doutrinador religioso. Seu esforço é tão somente<br />
o de tentar apreender uma Filosofia e, a partir dela, uma Ética, na mensagem nuclear de Jesus de Nazaré. O fato, portanto, de não<br />
invocar a Cristo como uma divindade humanizada não manifesta nem crença nem descrença, assim como NÃO se dirige a fazer<br />
prosélitos ou a desfazer a fé de ninguém. Apenas seja relembrado que Teologia não é Filosofia. Tomar uma coisa pela outra, em<br />
substituição ou sobreposição, é cometer um reducionismo perigoso, qualquer que seja a perspectiva ou a finalidade com que se o<br />
faça.<br />
2 - O homem eterno (São Paulo: Mundo Cristão, 2010), p. 206.<br />
3 - Ortodoxia (Porto: Livraria Tavares Martins, 1974), p. 58.<br />
24 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
O Cristianismo como novidade civilizatória<br />
O corpus doutrinário do Cristianismo origina-se de Jesus, e foi guarda-<br />
do pelos livros do Novo Testamento 4 , transmitido pelo ensino apostólico (espe-<br />
cialmente por Paulo) e interpretado pelos Padres e Doutores da Igreja.<br />
Quase nada se sabe de Jesus, embora não pareça sensato negar-lhe exis-<br />
tência real. Sua vida envolve um mistério espantoso: ninguém, nem antes nem<br />
depois, deixou maior nome através dos séculos. Dos compatriotas seus contem-<br />
porâneos, nenhum seria sequer mencio-nado nas páginas da História, não fosse<br />
uma eventual associação com os feitos ou com a palavra dele. No entanto, esse<br />
homem incomum não escreveu livro, nem mesmo, do que terá sido pregação ori-<br />
ginalmente sua, se extrai um “sistema de ideias” que possa correr em paralelo ao<br />
dos grandes mestres do pensamento. Com toda evidência, sua intenção não era<br />
ensinar (com palavras), mas viver e, pela vida, dar exemplo. A rigor, sua verda-<br />
deera ele mesmo, o curso (o caminho) a fazer para alcançá-la era ele mesmo, e era<br />
como a dele mesmo a vida nova que adviria aos que se formassem por sua peda-<br />
gogia.<br />
Jesus teria sido galileu, daquela Galilaea gentium (a Galileia dos es-<br />
trangeiros), invadida por idólatras, mercadores materialistas “livres”, que eram<br />
o horror dos judeus (os habitantes da Judeia, a parte central da Palestina) e de<br />
sua ortodoxia monoteísta, repleta de escrúpulos ritualistas, dominada por uma<br />
elite religiosa presa a prescrições de rígido casuísmo legal, tão opressora quan-<br />
to os governantes romanos a quem estava aliada. Esse judaísmo de superfície,<br />
mas cheio de exigências tão descabidas o quanto implacáveis, girava em torno do<br />
4 - Não há esquecer-se, aqui, o Velho Testamento, o qual, porém, integra-se à Bíblia cristã como parte do legado judaico de que foi<br />
herdeiro o Cristianismo.<br />
Índice<br />
25 / 125
grupo dirigente do Tempo de Jerusalém, e no Templo (representação simbólica<br />
da Aliança de Deus com o “seu povo escolhido”) encontrava plena “justificação”<br />
para o mandonismo, a extorsão e a hipocrisia.<br />
O “Carpinteiro de Nazaré” pertenceria àquele segmento socioeconômico<br />
que ainda restava com alguma condição de “classe média”, numa Palestina de ter-<br />
ras pobres, devastada por invasões estrangeiras e pisoteada por tropas em guerra.<br />
Por seu espírito devoto, seu conhecimento da religião tradicional e por sentir na<br />
carne o contraste entre as “promessas de Deus” e o que sofria “o povo de Deus”<br />
por parte da teocracia de seu tempo, Jesus terá feito uma opção de vida comple-<br />
tamente “irregular”, que cedo ou tarde o colocaria em claríssimo e duríssimo con-<br />
fronto com os chefes religiosos centralizados em Jerusalém. Opção de vida, não<br />
de partidarismo político, pois o seu ponto de vista transcendia o momento histó-<br />
rico e o mando circunstancial, para enraizar-se nas fontes mais simples e remotas<br />
que levam à relação (religião) do ser humano com o Absoluto. Assim, desde logo<br />
percebe-se nas palavras e no comportamento de Jesus que ele não enfatiza rituais<br />
nem prega novo culto a Deus. Com relação à autoridade, não a desrespeita, mas<br />
não lhe dá maior “cartaz”, e até desobedece às leis, quando vê que, em face à im-<br />
posição legal (que é humana), a própria pessoa humana sai diminuída no que vale<br />
por si mesma, como o mais visível exemplar do que seja sagrado. Com tamanha<br />
coragem e clarividência, é ingenuidade imaginar que Jesus não tinha consciência<br />
da enrascada em que se metia e do fim sangrento que o aguardava. Coerente até o<br />
fim, ele não recuou em nada de seu caminho. E embora tenha sido um pregador –<br />
não hesitaríamos em dizer que muito a contragosto seu e contra a clara oposição<br />
dos seus familiares (Marc., VI,1-6; XIII, Mat., 54-58; Luc., IV, 28-30) –, um pro-<br />
feta entre milhares de profetas de “sinagogas disssidentes” (Eduardo Hoornaert)<br />
Índice<br />
26 / 125
de seu tempo – , a mensagem de Jesus causa assombro: nunca se viu nada tão<br />
singelo e, ao mesmo tempo, tão inusitado, com tamanha força de aliciamento e de<br />
exigência. Assombro maior ainda é sabermos que, vindo de uma pessoa comum,<br />
de um meio histórico-geográfico absolutamente insignificante, suas palavras fo-<br />
ram transformadas em doutrina de transformação e salvação. A novidade de sua<br />
mensagem terá força bastante para ombrear-se com a cultura grega e fundir-se a<br />
ela, e, mais tarde, submeter o Império Romano, estabelecendo uma nova civiliza-<br />
ção: a civilização greco-romano-judaica, ocidental-cristã.<br />
A “visão insólita” de Jesus<br />
Sócrates identificara virtude e conhecimento, resumindo toda a perfei-<br />
ção humana no autoconhecimento. Platão sustentara que a sabedoria se encontra<br />
no desapego total das coisas sensíveis e na contemplação das Ideias eternas. Aris-<br />
tóteles afirmara que a virtude consiste no conhecimento contemplativo. Jesus<br />
irá provar, com o próprio exemplo, que a perfeição da ética está em amarmos a<br />
Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Nesse amor du-<br />
plamente direcionado, compendia-se a Lei e os Profetas (as Escrituras Sagradas:<br />
todo e qualquer ensinamento válido), ou tudo o que, em sua linguagem específica,<br />
ele chamará de o Reino de Deus.<br />
Veja-se, antes de tudo, que aí – no amor ao próximo, posto no mesmo<br />
nível de exigência do amor a Deus – está uma proclamação de estupenda simpli-<br />
cidade, mas que reivindica a inversão de valores mais corajosa e mais difícil de<br />
processar-se no ser humano. Trata-se, em última análise, de recriar o homem,<br />
fazê-lo renascer sobre bases inteiramente inimaginadas (não por outra razão,<br />
Jesus, transformado no Cristo, será chamado de “segundo Adão” - Rom., V, 14 -,<br />
protótipo da nova humanidade), porque exigindo abrigo definitivo, voluntário e<br />
Índice<br />
27 / 125
livre, no interior de cada indivíduo. Só assim, ao manifestar-se, depois, nas ati-<br />
tudes e no comportamento exterior, tal amor não será um ato provisório de acei-<br />
tação intelectual, ou apenas um gesto su-perficial de condescendência e cortesia,<br />
uma filantropia vaga, uma atitude calculista de quem cede para ganhar simpatia<br />
ou simular bondade. Não: amor, preferência afetiva. Amor a Deus, que só se en-<br />
tende pelo amor ao próximo, sem restrição de espécie alguma, sem exceção de<br />
ninguém, nem mesmo do inimigo. Houve antes, acaso, proposta de implicação<br />
mais radical e mais revolucionária?<br />
– Para entendermos o alcance da revolução de Jesus, reflitamos que os<br />
judeus, embora se tomassem como o povo eleito de seu Deus, cultuavam-no com<br />
um medo imenso. O “Deus dos Exércitos”, que ia à frente das tropas israelenses e<br />
era garantia antecipada de derrota dos inimigos de seu povo, era uma divindade<br />
terrível e vingativa, até mesmo contra a sua gente. Seu nome não se podia pro-<br />
nunciar. Seu rosto não podia sequer desenhar-se. Na Bíblia, estava escrito que a<br />
Sabedoria principiava pelo temor a Deus;<br />
– Jesus trata a Deus com tal familiaridade, que o chama pelo nome de<br />
Pai, e autoriza os seus seguidores a assim dirigir-se à divindade, invocando-a do<br />
mesmo modo;<br />
– Para a religião judaica, a vida humana era o resultado de uma perda,<br />
de uma queda. Posto, ao ser criado, num jardim de delícias, o primeiro casal hu-<br />
mano recebera, além dos dons preternaturais (não sofrer, não envelhecer, não<br />
morrer, não ser ignorante), o dom sobrenatural da Graça, que lhe conferia o pri-<br />
vilégio de entreter-se “on line” com Deus, amigavelmente, a qualquer instante.<br />
Todo esse privilégio, porém, os Primeiros Pais perderam com a desgraça do Pe-<br />
cado Original. Certo, o Criador lhes fizera a promessa da Redenção – e os judeus<br />
Índice<br />
28 / 125
viviam esperando pelo Messias Salvador. Mas já demorava por demais o cumpri-<br />
mento daquela promessa, e muitos já não acreditavam mais nela;<br />
– Embora partindo da visão negativa dos judeus quanto à origem do<br />
homem e seu destino, Jesus a ultrapassa e a transforma numa possibilidade po-<br />
sitiva. Ele mesmo se anuncia como capaz de reatar as relações rompidas entre o<br />
homem e seu Criador, convidando cada ser humano a fazer a mesma coisa: pois,<br />
se um pai humano não nega o pão ao filho que o pede, assim o Pai-Deus não nega<br />
a salvação a quem a procure;<br />
– Aqueles eram tempos em que nenhum apreço se tinha aos pobres, às<br />
mulheres, às viúvas, aos órfãos, às crianças, aos doentes, aos escravos, aos prisio-<br />
neiros, desvalidos da terra. Jesus dedicará – e recomendará – amor de predile-<br />
ção aos miseráveis anônimos de seu e de todos os tempos, uma vez que “pobres<br />
sempre os tereis entre vós”. Na proclamação-síntese de sua mensagem, esses é<br />
que serão os bem-aventurados.<br />
A antropologia cristã: da nova Ontologia para a Ética mais<br />
comprometedora<br />
Falaremos, com todo fundamento, da “Ética de Jesus”, porque parece<br />
inegável que os “princípios fundadores” do Cristianismo vêm do Jesus histórico,<br />
apreendidos de seu modo de ser e de viver. Ou seja, os “cristianistas” (os apósto-<br />
los, os primeiros pensadores cristãos) não terão inventado uma religião a partir<br />
de Jesus, mas explicitado em doutrina e pensamento o que Jesus era e vivera. É<br />
certo que não se deve escamotear alguma “filtragem adaptadora”, não da mensa-<br />
gem nuclear que está no “modelo Jesus”, mas das implicações laterais de sua men-<br />
sagem. Da mesma forma, pelo débito que todos pagamos à nossa humanidade e à<br />
Índice<br />
29 / 125
circunstância histórica em que vivemos, não se podem esconder, na doutrina que<br />
tem alicerce na vida de Jesus, influências que de forma alguma seriam aceitas<br />
pela visão “católica” (holística, universal) do Jesus histórico (p. ex., a dualidade,<br />
inconciliável no ser humano, entre matéria e espírito, a ginofobia, o puritanismo<br />
gnóstico).<br />
Isso dito e assim sendo, poderemos – sem receio de falsear nem “fabri-<br />
car” um Jesus diferente do que existiu como homem – dizer que a nova antropo-<br />
logia anunciada pelo Cristianismo, desentranhada (repita-se tantas vezes quan-<br />
tas preciso) da vida do próprio Jesus, se fundamenta em princípios de ontologia<br />
humana quais nunca se formularam até então:<br />
a) Valor da vida e sentido da morte – Dos “físicos” gregos à “enci-<br />
clopédia de Biologia” que foi Aristóteles, passando aos pensadores pós-<br />
Igreja de Santo Antônio - São Luís/MA<br />
Índice<br />
30 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
-cristãos, tomando a cada um ou a todos em conjunto, nenhum sistema<br />
filosófico formulou tão penetrante entendimento do valor da vida quan-<br />
to o Cristianismo o traz embutido em sua doutrina: a vida vem de Deus<br />
e a ele remete. Ninguém é autor da própria vida, ninguém tem direito<br />
de dar cabo da própria vida, nem da vida de outrem, a título nenhum.<br />
(Os pensadores cris-tãos que fizeram a apologia da pena de morte, da<br />
guerra, ou da tortura, não praticaram menos que uma grave contraven-<br />
ção em face ao entendimento que Jesus revelava a respeito davida). Por<br />
causa da vida, a morte ganha uma dimensão iluminadora: é triste e ine-<br />
xorável, mas não é terminal. Guardemos a frase de São Paulo: “A morte<br />
é o salário do pecado” – expressão luminosa para quem entende a ter-<br />
minologia religiosa. A bem dizer, não há morte: há uma passagem, uma<br />
trans-formação do ser humano;<br />
b) Valor primacial da pessoa humana - Nenhuma filosofia ociden-<br />
tal, até Jesus, trouxe jamais, embutida em sua concepção, tão elevado<br />
valor da pessoa humana, em sua unicidade ontológica. Nada, no mundo<br />
criado, a supera em grandeza e dignidade. Cada ser humano, não impor-<br />
tando a sua condição – de saúde, de beleza, de raça, de nacionalidade,<br />
de status, de riqueza, de poder, de inteligência, ou o que seja –, cada<br />
ser humano, individuadamente, deve ser respeitado e tratado como fim<br />
e nunca como meio. Tratando-se de pessoa, o homem é uma unidade<br />
substancial de corpo e alma, ambos envolvidos em igual dignidade: o<br />
corpo é o “templo do Espírito Santo”, e não o cárcere da alma, como en-<br />
tendia Platão. A alma é incorruptível e imortal;<br />
c) Transcendência do ser humano - O homem é um ser insaciável,<br />
Índice<br />
31 / 125
preso à sua contingência, mas aspirando a levantar asas até o infinito,<br />
saciar-se de absoluto. Essa percepção, mal e mal vislumbrada nas filo-<br />
sofias anteriores, é central no pensamento que deriva de Jesus. No Cris-<br />
tianismo, a transcendência assume o prestígio de uma virtude teologal:<br />
chama-se Esperança;<br />
d) Libertação interior, liberdade exterior - Como entenderam<br />
mal a Jesus aqueles que esperavam dele o papel de um guerreiro, um<br />
general de exércitos, pronto a fazer, pela força das armas ou pela má-<br />
gica do milagre, a libertação política de seu povo contra a opressão es-<br />
trangeira! Não que o derramamento de sangue estivesse excluído de sua<br />
perspectiva existencial. Mas o sangue derramado em sua revolução foi,<br />
antes de tudo, o dele, e por implicação consequencial de seus atos, não<br />
como condição prévia, sine qua non, cobrança de um Deus desejoso de<br />
beber sangue e que exigisse a morte como preço a pagar por um “defeito<br />
de fabricação” (o Pecado Original), que, aliás, sendo ele o Criador, seria<br />
defeito seu, não de sua criatura. Essa foi uma contaminação judaica que<br />
passou ao Cristianismo a despeito de Jesus, não por sua causa, nem por<br />
suas palavras ou por seu exemplo.<br />
Jesus teria horror a ser um Alexandre, um César, um Judas Macabeu.<br />
E não por temperamento ou falta de coragem. Mas, pelo contrário: por<br />
excesso de coragem. Sobretudo, pela mais corajosa, pela mais compro-<br />
metedora e mais profunda penetração jamais feita no interior do ser hu-<br />
mano: empenhar-se pela liberdade exterior – liberdade da opressão, da<br />
servitude, da escravidão, do medo, da miséria, da injustiça, da desigual-<br />
dade, do legalismo, do que quer que seja externo ao ser humano – será<br />
Índice<br />
32 / 125
sempre envolver-se numa luta supliciante, que não chegará nunca a um<br />
termo, nem melhorará nada na vida de ninguém.<br />
E por quê? Porque toda e qualquer luta exterior combate os efeitos, mas<br />
não as causas, enxerga os meios, mas não alcança os fins. A Liberdade,<br />
a verdadeira Liberdade começa pela libertação interior: é o que Jesus<br />
proclama com o nome de Reino de Deus, luta a travar-se dentro de cada<br />
homem, contra o maior inimigo que é ele mesmo, contra as suas servi-<br />
dões recônditas, seu instinto destrutivo, sua propensão ao ódio, à mal-<br />
dade, às baixas paixões a que ele tende naturalmente, àquilo que em<br />
jargão religioso tem o nome de pecado.<br />
É fácil ver, daí, que tipo de revolucionário foi Jesus: um revolucionário<br />
da reharmonização do homem consigo mesmo, antes de tudo, para de-<br />
pois, e como consequência óbvia, obter a transformação de todas as es-<br />
truturas sociais em que esteja encastelada a injustiça e a maldade. Nes-<br />
se sentido, não houve na História maior revolucionário que ele, porque<br />
ninguém exigiu tanto da consciência humana.<br />
Entenda-se bem: implicar-se numa revolução dessas não é assumir o<br />
passivismo, o quietismo, a imobilidade, o absenteísmo, ou esperar de<br />
braços cruzados, e apenas torcer para que Deus apresse o espetáculo de<br />
torrar os maus nos churrascos do Apocalipse. Não. “Cristo não pregou<br />
nem liderou nenhuma revolução política contra os romanos dominado-<br />
res, mas não hesitou em combater todas as estruturas sociais e religiosas<br />
que estivessem em oposição com o novo homem e o novo comporta-<br />
mento que Ele se propunha inaugurar. Insurge-se não somente con-<br />
tra os profanadores do templo, mas sobretudo contra os opressores do<br />
Índice<br />
33 / 125
Catedral da Sé - São Luís/MA<br />
espírito: os escribas e fariseus. Não se importa com suas críticas e acusa-<br />
ções; sobrepõe-se às suas interpretações legalistas e casuísticas; fustiga<br />
seu orgulho e hipocrisia. É difícil encontrar em qualquer literatura do<br />
mundo uma invectiva tão contundente contra a autoridade espiritual<br />
constituída como é a de Cristo contra os chefes espirituais de seu tem-<br />
po. Nem poupa críticas e ironias contra a autoridade política, embora<br />
mande dar a César o que é de César,” 5 pela singela razão de que César irá<br />
passar, mas a Verdade dele, de Jesus, não passará: é tão permanente o<br />
quanto permanece a inquietação humana;<br />
5 - Dalle Nogare, Pedro. Humanismos e anti-humanismos. 5ed. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 46-47. (O grifo é nosso).<br />
Índice<br />
34 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
e) Igualdade radical e fraternidade universal de todos os se-<br />
res humano - Se nunca ninguém, nem antes nem depois de Jesus, fun-<br />
dou uma religião para proclamar-se o deus dessa mesma religião, nunca<br />
também religião nenhuma teve a coragem de chamar a Deus pelo nome<br />
de Pai. Contemplando a Deus como Pai, reconhecemos a igualdade de<br />
todos os homens perante Deus. Voltamos o olhar ao nosso redor e reco-<br />
nhecemos que todos temos os mesmos direitos fundamentais, e absorve-<br />
mos, logicamente, a todos os seres humanos como irmãos. Lembremos<br />
a passagem em que Jesus dialoga com a Samaritana (Jo., IV, 7-30), as<br />
parábolas do Bom Samaritano (Luc., X, 25-37), do Filho Pródigo (Luc.,<br />
XV, <strong>11</strong>-32), ou a oração do Pai-Nosso (Mat., VI, 9-13; Luc., XI, 2-4).<br />
f) Riqueza maior do perdão - “Ouvistes o que foi dito aos antigos:<br />
‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, vos digo...”. E Jesus man-<br />
da perdoar não sete vezes, mais setenta vezes sete. Eis outra mensagem<br />
única, que põe de cabeça para baixo qualquer visão de mundo “efeitis-<br />
ta”, superficial, de antecessores e sucessores de Jesus. Extraordinário<br />
psicólogo, o Mestre ensina que o perdão enriquece e melhora a quem<br />
perdoa, e não tanto a quem é perdoado, de quem, aliás, será boa aposta<br />
não esperar melhora nenhuma. A parábola do Filho Pródigo é exemplar,<br />
neste sentido. Os primeiros cristãos serão identificados por essa carac-<br />
terística: “Vede como eles se amam” – dizem deles os que não seguem<br />
os princípios deixados por Jesus. “Essa comunhão de corações e almas<br />
teve sua manifestação e confirmação mais esplêndidas e trágicas nos pe-<br />
ríodos em que os cristãos eram perseguidos e muitos deles mortos pe-<br />
los poderes públicos. O perigo, o sofrimento, o martírio sempre foram o<br />
Índice<br />
35 / 125
melhor cimento para a união dos sequazes de uma mesma causa. O san-<br />
gue derramado pela fidelidade ao mesmo Cristo comunicava aos primei-<br />
ros cristãos um sentido de fraternidade espiritual muito mais intenso<br />
que o da fraternidade carnal.” 6<br />
g) Cuidado preferencial pelos desvalidos - “Não nos consta a exis-<br />
tência de algum outro homem antes de Cristo que tenha tido tanto amor,<br />
atenção e respeito para com os pobres, e se tenha interessado, incomo-<br />
dado, sacrificado para socorrer às necessidades, também dos indivíduos<br />
particulares, quanto Jesus. [...] Cristo amou e ajudou sem exceção a to-<br />
dos aqueles que recorriam a ele [...]. Mas houve uma categoria de pes-<br />
soas que Ele amou com predileção e à qual dedicou particular atenção<br />
e cuidado: os marginais da sociedade, as prostitutas, os pecadores, os<br />
pobres [...], àqueles tempos em que [...] os pobres, os escravos, as mu-<br />
lheres, as crianças, etc., não valiam nada [...]. Pela primeira vez na histó-<br />
ria, todas essas criaturas começaram a ser consideradas e tratadas como<br />
pessoas. [...] Os Evangelhos são a única história da antiguidade em que<br />
os pobres – não como massa, mas como indivíduos, com seu nome e so-<br />
brenome – tornam-se protagonistas, ao lado da personagem principal”. 7<br />
Essa “opção preferencial pelos pobres”, como se vê, em nada se recheia<br />
de conteúdo e intenções secundárias – políticas, ou de qualquer outra<br />
ordem – que não o valor da pessoa humana como tal, e que assume cui-<br />
dado “compensatório” – maior e mais atento, portanto – quando esteja<br />
essa pessoa “desfigurada” em sua ontologia mais funda;<br />
h) Valor secundário dos bens materiais - O próprio Jesus diz que<br />
6 - Dalle Nogare, op. cit., p. 52.<br />
Índice<br />
36 / 125
não tem onde repousar a cabeça. E, se como está nos Atos dos Apóstolos,<br />
ele “passou fazendo o bem” (Atos, X, 38), foi pelos pobres que manifes-<br />
tou, sempre, um carinho especial. Na sua mais famosa proclamação, a<br />
das Bem-Aventuranças (Mat., V, 1-<strong>11</strong>), ele repete por oito formas dife-<br />
rentes o valor maior da pobreza, que, desde suas raízes até suas últimas<br />
consequências, traz consigo os sentimentos de generosidade, despren-<br />
dimento, compaixão, amor à justiça, mansidão, pureza de alma, etc. Em<br />
síntese, o verdadeiro amor ao próximo obriga a encarar este próximo<br />
(qualquer um, mas especialmente o mais necessitado) de modo que ele<br />
encontre, em nosso próprio ser, uma inserção anterior a qualquer bem<br />
de ordem material, de modo que a sua importância intrínseca nos leve<br />
a espontaneamente repartir com ele o que tenhamos, pouco ou muito.<br />
Jesus assim prega e assim pratica. Por perceber que os ricos são menos<br />
generosos que os pobres, lamenta pelos que se “amarram” na riqueza.<br />
E se entristece quando um moço rico (irrepreensível perante a ordem<br />
moral vigente) o procura para pedir-lhe orientação, sem entender este<br />
caminho da perfeição, tão simples, embora paradoxal, que lhe propõe<br />
o Mestre (Mat., XIX, 16-24). E os primeiros cristãos viviam num rígido<br />
regime comunista (Atos, II, 44-46; IV, 32-35), no qual os transgressores<br />
eram castigados severamente (Atos, V, 1-<strong>11</strong>).<br />
Antecipemos, a propósito, que, num mundo em que a escravidão era um<br />
fenômeno social bastante comum, os primeiros pregadores e escritores<br />
do Cristianismo contentam-se apenas em pregar a doutrina de Jesus e<br />
dar o exemplo, sem enfrentar diretamente o problema da servitude. Mas<br />
esses mesmos pregadores e escritores terão palavras duríssimas contra<br />
Índice<br />
37 / 125
os exploradores do suor alheio, a qualquer título. E uma das maiores di-<br />
ficuldades que enfrentará a nova religião, em sua marcha histórica para<br />
transformar-se na Religião do Ocidente, estará na complicada superação<br />
do conflito entre ser cristão e praticar atividades em que o lucro seja o<br />
resultado primordial (o comércio, a usura, o subsalário, etc.). Será pre-<br />
ciso chegarmos aos albores dos tempos modernos e alcançarmos uma<br />
Reforma radical da mensagem cristã (o Protestantismo), para aí, nessa<br />
inversão teológica, no bojo de sua mundividência, encontrarmos a clara<br />
justificação dos princípios capitalistas (Max Weber). Não por acaso, to-<br />
davia, essa nova ética encontrará seus fundamentos na Bíblia veterotes-<br />
tamentária, e não no Novo Testamento.<br />
Igreja de São joão - São Luís/MA<br />
Índice<br />
38 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
Em conclusão<br />
A partir do século IV, é impossível contar a história da civilização oci-<br />
dental sem que se leve em conta a orientação e influência do Cristianismo. O Oci-<br />
dente “é cristão” – e isso diz tudo. A prática dos princípios cristãos – a prática<br />
da caridade, da assistência aos pobres, aos doentes, aos órfãos, etc. tem levado<br />
milhões de almas ao sacrifício heroico, em seguimento ao exemplo de Jesus.<br />
Apesar disso, uma avaliação sumária da História ocidental evidencia o<br />
quanto o mundo que se diz cristão (incluindo católicos e protestantes, sem maior<br />
distinção) mostra-se longe de haver formado uma sociedade humana, verdadei-<br />
ramente baseada na mensagem do Galileu. Falha, não do Fundador, mas da ob-<br />
servância de seus ensinamentos, que exigem extremos de heroísmo e renúncia<br />
à comodidade humana. Como disse Chesterton: “O cristianismo não falhou: ele<br />
não foi ainda experimentado”.<br />
Sebastião Moreira Duarte<br />
M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino Americana,<br />
University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras.<br />
Índice<br />
39 / 125
Há tempos observo, com grande pesar, como aos poucos o Brasil<br />
vem perdendo, de modo preocupante e assustador, a memória de suas grandes<br />
personalidades históricas, sobretudo no campo da cultura e, mais particularmente,<br />
nas belas-letras.<br />
Muitas são as explicações históricas desse fenômeno lamentável, entre<br />
as quais a crescente ignorância de nosso povo em relação ao seu passado, aos seus<br />
heróis, aos símbolos de sua identidade nacional, fenômeno este ligado ao caótico<br />
e falido sistema educacional brasileiro.<br />
Índice<br />
Sede da Academia Maranhense de Letras São Luís/MA<br />
UmA ATENAS SEm PANTEõES<br />
Ricardo Leão<br />
40 / 125<br />
Foto: Gaudêncio Cunha 1908/Acervo do Museu Histórico e Artístico do Maranhão
Outros apontam o acelerado desinteresse em<br />
função dos paradigmas da modernidade, que abrevia a<br />
percepção do presente e do novo, fazendo com que todas<br />
as coisas, mesmo as mais veneráveis e venerandas,<br />
envelheçam com rapidez e sejam sistematicamente<br />
esquecidas e abandonadas. Qualquer que seja a causa<br />
do fenômeno, no entanto, a cada dia vejo que os<br />
brasileiros estão esquecendo quem são, e não possuem,<br />
em suas grandes cidades, em razão do vandalismo e<br />
qualquer outra causa, símbolos que possam lembrar-<br />
lhes de algumas glórias que, com efeito, nos trazem a<br />
grata lembrança dos homens de inteligência e gênio<br />
que já andaram entre nós um dia. Todos os dias, um<br />
estrangeiro poderia vir ao Brasil e perguntar: onde<br />
estão as estátuas de Bartolomeu Gusmão, Santos<br />
Dumont, Carlos Chagas, Oswaldo Cruz, Vital Brasil,<br />
Landell de Moura, César Lattes, Machado de Assis,<br />
Gonçalves Dias, Rui Barbosa, Carlos Drummond de<br />
Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles,<br />
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Gomes,<br />
Villa-Lobos? Isso porque, salvo exceções, não as temos<br />
mesmo.<br />
No caso particular de minha terra natal, o<br />
Maranhão, o caso chega a ser chocante. Não vou entrar<br />
aqui no mérito da discussão sobre a legitimidade<br />
Índice<br />
“...o<br />
Maranhão<br />
é a terra<br />
de nomes<br />
que a todo<br />
momento<br />
deveriam<br />
ser<br />
cultuados e<br />
lembrados<br />
pelos seus<br />
filhos.”<br />
41 / 125
histórica de mitos, assim chamados, como a Atenas Brasileira, mas o fato é que<br />
o Maranhão é a terra de nomes que a todo momento deveriam ser cultuados e<br />
lembrados pelos seus filhos.<br />
Acaso não é motivo de orgulho histórico que sejamos conterrâneos de<br />
Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Sousândrade, Teófilo Dias, Aluísio<br />
Azevedo, Artur Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia, Maria Firmina dos<br />
Reis, Joaquim Serra, Maranhão Sobrinho, Humberto de Campos, Graça Aranha,<br />
Teixeira Mendes, Nina Rodrigues, Gomes de Sousa, Cândido Mendes, Viriato<br />
Correia, Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, Nauro Machado, José Louzeiro, Josué<br />
Montello, José Chagas, Carlos Alberto Nunes, Luiz Costa Lima, só para ficarmos<br />
naqueles Reis, Sousândrade, Teófilo Dias, Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Coelho<br />
Neto, Raimundo Correia, Maria Firmina dos Reis, Joaquim Serra, Maranhão<br />
Sobrinho, Humberto de Campos, Graça Aranha, Teixeira Mendes, Nina Rodrigues,<br />
Gomes de Sousa, Cândido Mendes, Viriato Correia, Bandeira Tribuzi, Ferreira<br />
Gullar, Nauro Machado, José Louzeiro, Josué Montello, José Chagas, Carlos<br />
Alberto Nunes, Luiz Costa Lima, só para ficarmos naqueles indubitavelmente<br />
consagrados e canônicos?<br />
E onde foi parar a memória de todo esse acervo cultural construído ao<br />
longo de séculos, desde que o Padre Antônio Vieira pôs o pé nessa terra, e aqui<br />
produziu uma parcela significativa de seus mais célebres sermões? Por acaso os<br />
maranhenses andam a lembrar que Vieira, em razão disso, é tão maranhense,<br />
quanto baiano, brasileiro e português? Por acaso guardamos na memória que<br />
aqui, nesta terra de tantas alcunhas, epítetos e apelidos, uma parte considerável da<br />
cultura nacional foi forjada, criando uma das mais sólidas, contínuas e melhores<br />
tradições literárias e intelectuais do país? Essa não é a nossa verdadeira grife,<br />
Índice<br />
42 / 125
orgulho de nossa própria identidade, com a qual vangloriarmo-nos a todo<br />
momento de sermos maranhenses?<br />
Não sei em nome do quê a nossa atualidade social anda promovendo<br />
o esquecimento de toda essa cultura, e o que anda colocando no lugar dela,<br />
se tem algo melhor para pôr no lugar. Ou, ainda, por que alguns – e aqui me<br />
refiro, em específico, a educadores de nível superior – militam para que ela<br />
seja sistematicamente agredida e esquecida, vilipendiada, acusando-a de falsa,<br />
mentirosa, e com isto jogando fora a água, a bacia, e a criança.<br />
O fato é que andamos esquecidos que esta terra já produziu monumentos<br />
da cultura brasileira e de língua portuguesa, cuja memória deveria ser evocada<br />
todos os anos em liceus, ateneus, ginásios, escolas, faculdades, universidades,<br />
institutos, academias, grêmios, enfim, em todas as instituições que deveriam ser,<br />
por conta disso, baluartes permanentes de uma cultura que possui verdadeiros<br />
campeões da história da inteligência brasileira.<br />
Mas, onde andam os guardiães e campeões de nossa memória? Quem<br />
está de pé e alerta, a vigiar os panteões onde nossos heróis e grandes homens<br />
deveriam ser cultuados, reverenciados e lembrados por suas obras e façanhas,<br />
positivando a imagem do Maranhão e de sua gente?<br />
Pouca gente, nos dias de hoje, ainda se lembra que o Maranhão<br />
gerou os primeiros gramáticos da língua portuguesa de nosso país, ou que das<br />
dezoito gramáticas em circulação no Brasil do século XIX, dez eram escritas<br />
por maranhenses. Que o Maranhão era tão zeloso da língua que falava, que se<br />
colocava em pé de igualdade com a terra de Camões, uma versão ultramarina<br />
de Portugal em solo americano, a ponto de exibir, até hoje, um elevado grau de<br />
purismo gramatical em suas práticas culturais e linguísticas. Que o primeiro<br />
Índice<br />
43 / 125
gramático negro da língua, um dos primeiros professores negros do Colégio Pedro<br />
II, aprovado aos 20 anos de idade, e o primeiro professor negro da Escola Militar<br />
do Rio de Janeiro, Hemetério José dos Santos, era maranhense de boa cepa.<br />
Que muitos literatos e intelectuais negros e afrodescendentes brasileiros, saíram<br />
do Maranhão, e que, por isso, a tantas vezes citada Atenas Brasileira, por mais<br />
preconceituosa que fosse, como exemplifica O mulato de Aluísio Azevedo, possuía<br />
também suas aberturas a alguns casos excepcionais.<br />
Quem se lembra, no entanto, que esta cidade já possuiu no século XIX<br />
o mais avançado parque editorial e tipográfico do país, editando, primeiro aqui,<br />
traduções de livros e romances que, mais tarde, seriam publicados no resto do<br />
País? Quem se lembra que Raimundo Teixeira Mendes, o papa da Igreja Positivista<br />
brasileira, um dos líderes do movimento que culminou com a Proclamação da<br />
República, é o autor do desenho da atual bandeira brasileira? Qual o maranhense<br />
que ainda hoje bate orgulhosamente o peito ao lembrar que é da mesma terra de<br />
Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes, os dois maiores tradutores de Homero<br />
da língua portuguesa, cujas traduções são copiosamente editadas até hoje?<br />
Quantos maranhenses de nossos dias orgulham-se de fato de que um dos maiores<br />
precursores da modernidade literária internacional saiu dessas plagas, o genial<br />
poeta faber Sousândrade, nos termos de Ezra Pound? Ou de nomes influentes<br />
em outros setores da cultura, como Newton Sá (escultura), Antônio Almeida,<br />
Floriano Teixeira (pintura), Antônio Rayol, Turíbio Santos (música), Apolônia<br />
Pinto (teatro), sem mencionar tantos outros mais, tão brilhantes quanto? E em<br />
nome de quê, torno a perguntar, tudo isso está sendo perversamente esquecido e<br />
abandonado, como se fosse uma maldição, uma reles mentira, uma ilusão com a<br />
qual tivéssemos sido cegados e ludibriados durante quase 200 anos de história?<br />
Índice<br />
44 / 125
O que de melhor estão pondo no lugar?<br />
Contudo, não há como negar o fato<br />
histórico. Esta é a terra de muitos intelectuais<br />
– escritores, cantores, pintores, artistas –<br />
que a nossa cultura vem, há talvez 400 anos,<br />
entregando ao acervo da cultura nacional. Não<br />
há como negar que a cultura brasileira seria<br />
incrivelmente mais pobre sem a contribuição<br />
maranhense, definitiva por si mesma, em<br />
quase todos os campos da cultura e do saber,<br />
acadêmico, literário, artístico, ou de qualquer<br />
outra natureza.<br />
Não vejo razão para esquecermos quem<br />
fomos, pois é justamente em nossa genealogia,<br />
como diria Michel Foucault, que se encontra a<br />
raiz de quem somos e quem seremos.<br />
Mas resta o questionamento: o<br />
que faremos de todo o nosso passado? Uma<br />
resposta: transformamos em capital, o melhor<br />
capital que existe: o simbólico. Os maranhenses<br />
andam a esquecer que é justamente esse<br />
imenso patrimônio cultural que atrai turistas,<br />
que promove o orgulho identitário de nosso<br />
povo, que, ao lembrar quem são seus ancestrais<br />
mais nobres, consegue lembrar que também<br />
Índice<br />
“ Não há<br />
como negar<br />
que a cultura<br />
brasileira seria<br />
incrivelmente<br />
mais pobre<br />
sem a<br />
contribuição<br />
maranhense...”<br />
45 / 125
pertence à mesma linhagem genética e cultural. Afinal, os alemães são quem<br />
são, assim como os argentinos, franceses e portugueses são quem são, porque<br />
estão sempre a lembrar quem foram. E eles são Mozart, Brahms, Offenbach,<br />
Bach, Beethoven, Wagner, Strauss, Orff, Schiller, Goethe, Kant, Schope-nhauer,<br />
Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Bioy Casares, Borges, Cortázar, Sábato,<br />
Racine, Corneille, Molière, Laclos, Voltaire, Hugo, Lamartine, Baudelaire,<br />
Rimbaud, Mallarmé, Apolinaire, Camus, Sartre, Camões, Vieira, Bocage, Garret,<br />
Herculano, Camilo, Eça, Antero, Pessanha, Cesário, Florbela, Pessoa, Saramago.<br />
Nós, brasileiros, também temos o nosso panteão de grandes nomes, construídos<br />
ao longo de 500 anos de história, quase 200 anos de autonomia política, e a<br />
contribuição maranhense é das mais importantes e, indubitavelmente, a mais<br />
antiga e, talvez, a melhor.<br />
E por que o maranhense não deveria orgulhar-se disso tudo? Qual a razão<br />
para não celebrarmos, todos os anos, em nossas escolas, faculdades e universidades,<br />
a memória dos nossos ilustres antepassados, cultuando-a e evocando-a através<br />
de bustos, estátuas, placas comemorativas, aulas, prêmios, homenagens, festejos,<br />
comemorações?<br />
Talvez seja isso uma das grandes faltas de nossa cultura, até<br />
aqui. Enquanto em outros países a memória dos ilustres varões da pátria é<br />
permanentemente lembrada através de monumentos espalhados em todos os<br />
cantos, em nosso país, e, sobretudo e desgraçadamente no Maranhão, ela é<br />
vandalizada na forma de patrimônio público destruído, roubado e derretido.<br />
O nosso povo, sobretudo, deveria reivindicar espaços públicos nobres para o<br />
cultivo dessa memória, e manter permanente vigília sobre eles. Digo que devemos<br />
começar a erguer tais monumentos, e, depois de erguidos, vigiá-los, zelar por<br />
Índice<br />
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eles, transformá-los em pontos de culto do orgulho da identidade local e nacional.<br />
Por isso, no lugar de vandalismo e esquecimento, propostas. Há<br />
muito tempo, reclamamos espaços destinados a imensos e ajardinados jardins,<br />
a verdadeiros panteões da memória pública, para que os cidadãos tenham<br />
diante de si a permanente lembrança pedagógica de seu passado, em forma de<br />
monumentos, estátuas, bustos, fontes, altos e baixos-relevos, colocados como<br />
advertência de que podemos nos equiparar aos nossos antepassados em tudo.<br />
A questão é muito simples. Tais monumentos estão ausentes de nossas praças<br />
públicas, escolas, bibliotecas, faculdades, universidades, academias, institutos,<br />
e a simples existência destes símbolos da identidade cultural e histórica de um<br />
povo são meios eficazes de provocar nas pessoas a comoção pelo passado que<br />
possuem.<br />
Em São Luís, há excelentes espaços onde tais jardins públicos e panteões<br />
poderiam ser erguidos, com policiamento durante 24 horas por dia, a fim de<br />
preservá-los da destruição. Todo o entorno da Biblioteca Pública Benedito Leite<br />
poderia ser ajardinado, reurbanizado, até as proximidades do Liceu Maranhense,<br />
e convertido em um imenso jardim público, repleto de fontes, plantas, flores,<br />
árvores, coretos, bustos, estátuas, monumentos de todos os tamanhos, a evocarem<br />
a memória dos ilustres maranhenses e de suas importantes contribuições para<br />
a cultura de nossa terra e de nosso país. Um espaço como este – que poderia<br />
ser estendido a outras praças importantes de São Luís, como a Benedito Leite, a<br />
Gonçalves Dias, Alegria, entre outras – é reivindicado há tempos não apenas por<br />
maranhenses, mas também por todos os turistas que visitam a nossa terra e não<br />
encontram espaços públicos nobres, destinados para esse fim específico.<br />
O que ganha o Maranhão com estes empreendimentos? Nobreza, beleza,<br />
Índice<br />
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“ Não se trata<br />
de incentivar<br />
o localismo, o<br />
provincianismo,<br />
o preconceito<br />
com outras<br />
regiões do<br />
País. Trata-se<br />
de valorizar<br />
a própria<br />
identidade... ”<br />
capital simbólico, e orgulho próprio. Nossa<br />
cultura não tem nada a dever à cultura cearense,<br />
pernambucana, baiana, mineira, carioca,<br />
paulista, e muito menos gaúcha, catarinense,<br />
paranaense, paraense ou amazonense, entre<br />
outras. Não se trata de incentivar o localismo,<br />
o provincianismo, o preconceito com outras<br />
regiões do País. Trata-se de valorizar a<br />
própria identidade, como fazem os gaúchos,<br />
os pernambucanos, os mineiros, os baianos,<br />
os paulistas, os cariocas. Trata-se de jamais<br />
esquecer quem fomos, para não esquecer quem<br />
somos. Do contrário, resta a pergunta: a quem<br />
interessa que esqueçamos quem somos? Uma<br />
coisa é certa: não serão os paulistas, tampouco<br />
os mineiros, gaúchos ou cariocas, que farão<br />
esse favor à nossa cultura. Nós é que temos que<br />
apostar no melhor de nossa cultura. Contamos<br />
com um repertório impressionante e vasto.<br />
Belas festas, folclore, danças típicas, uma<br />
das melhores culinárias e um dos melhores<br />
cancioneiros populares. Mas, para muito<br />
além disso, temos uma das melhores e mais<br />
tradicionais culturas letradas, e isso não deve<br />
ser motivo de desprezo, deboche, vergonha,<br />
Índice<br />
48 / 125
tampouco objeto de vilipêndio, vandalismo, ou ignorância, mas de altivez. Não<br />
precisamos invejar a cultura alheia, e achar a horta do vizinho mais farta. Temos<br />
um celeiro abundante de grandes obras e um panteão imenso de grandes nomes.<br />
Só falta recolocá-los nos seus devidos lugares, para reconstruirmos o Maranhão<br />
de ontem, e construirmos o Maranhão de amanhã.<br />
De resto, é a hora de darmos as mãos nesse propósito, solidários e firmes.<br />
Ricardo Leão<br />
Mestre em Literatura de Lígua Portuguesa pela UNESP e Doutorando em teoria e História<br />
Literária pela UNICAMP, é autor das obras Simetria do Parto (2000) e Tradição e ruptura: a<br />
lírica moderna de Nauro Machado (2002).<br />
Índice<br />
49 / 125
Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />
A ELEIÇÃO DE JOSUé<br />
mONTELLO PARA A<br />
AcADEmIA BRASILEIRA<br />
DE LETRAS<br />
Índice<br />
José Neres<br />
50 / 125<br />
Acervo do Arquivo da Casa de Cultura Josué Montello
O ano era <strong>1954</strong>. Enquanto o escritor<br />
Ernest Hemingway era agraciado com o<br />
prêmio Nobel de Literatura e a roman-<br />
cista Dina Silveira de Queirós recebia o<br />
prêmio Machado de Assis pelo conjun-<br />
to de sua obra, o mundo lamentava a<br />
morte de expressivos nomes das artes,<br />
como Frida Khalo e Henri Matisse, o<br />
Brasil ficava de luto com o passamento<br />
de Oswald de Andrade e com o suicídio<br />
de Getúlio Vargas. No meio desse tur-<br />
bilhão de acontecimento, alguns fatos<br />
menos divulgados passaram quase des-<br />
percebidos, como a morte do médico,<br />
escritor e acadêmico Cláudio de Sousa<br />
e a consequente vacância da cadeira 29<br />
da Academia Brasileira de Letras.<br />
No entanto, para o mara-<br />
nhense Josué Montello, de todos os<br />
acontecimentos ocorridos naquele<br />
ano, a oportunidade de ingressar na<br />
ABL, um sonho acalentado desde mui-<br />
to tempo, era o que mais chamava sua<br />
atenção. Há muitos anos ele já frequen-<br />
tava os círculos intelectuais e era sem-<br />
Índice<br />
pre um nome lembrado para ocupar<br />
um dos acentos da Casa de Machado<br />
de Assis. Era chegada a hora de pôr<br />
seu nome à apreciação dos acadêmicos<br />
e lutar para ocupar a cadeira deixada<br />
por Cláudio de Sousa.<br />
Devidamente informado e estimu-<br />
lado por seu conterrâneo e amigo Viriato<br />
Corrêa, Montello começou a arquitetar<br />
a campanha que o levaria à Academia.<br />
Todo esse processo, desde os primei-<br />
ros contatos com os acadêmicos até sua<br />
atuação na ABL, está registrado no livro<br />
Montello: O Benjamim da Academia.<br />
Neste artigo, porém, iremos mostrar<br />
apenas como se deu a campanha mon-<br />
telliana e o momento de sua eleição.<br />
UM CANDIDATO ESPERADO<br />
No dia 28 de junho de <strong>1954</strong>, a Casa<br />
do Autor de Memórias Póstumas de<br />
Brás Cubas cobria-se de luto pelo fale-<br />
cimento do acadêmico Cláudio de Sou-<br />
sa 1 , ocupante da cadeira vinte e nove<br />
1 Cláudio Justiniano de Sousa (20/10/1876 – 28/06/<strong>1954</strong>). Médico, teatró-<br />
51 / 125
desde 1924. O triste acontecimento dei-<br />
xou vago o assento fundado pelo ma-<br />
ranhense Artur Azevedo e patroneado<br />
por Martins Pena.<br />
Foi o desejo de ver aquela cadeira<br />
novamente ocupada por um maranhen-<br />
se que levou o acadêmico Viriato Cor-<br />
rêa a tomar as providências necessárias<br />
para inscrever o amigo Josué Montello<br />
como candidato à vaga. O entusiasmo<br />
do grande historiador fez com que a de-<br />
cisão fosse tomada aparentemente sem<br />
uma consulta prévia ao principal inte-<br />
ressado no assunto.<br />
Em carta escrita em papel timbra-<br />
do da ABL, Corrêa comunica a Montello<br />
os acontecimentos. Eis a seguir alguns<br />
trechos da carta.<br />
Rio, 29-06-954<br />
Montelo 2<br />
Estou chegando do enterro do<br />
Cláudio de Souza. Morreu ele ontem às<br />
<strong>11</strong> horas da manhã. É que não estava<br />
logo e ensaísta paulista. Foi por duas vezes presidente da ABL. Escreveu,<br />
dentre outras obras, A Escola da Mentira e A Arte de Seduzir.<br />
2 Nas correspondências de Viriato Corrêa sempre está grafado Montelo,<br />
com apenas um L, conforme mantivemos na transcrição.<br />
Índice<br />
em casa quando da Academia fizeram<br />
a comunicação. Eu quis telegrafar-te,<br />
mas, na Academia, me aconselharam<br />
que não fizesse. Pois o telegrama, partindo<br />
àquela hora, chegaria aí depois<br />
das notícias das agências telegráficas.<br />
Tomei todas as medidas necessárias<br />
para a tua candidatura. (...) Boas notícias:<br />
O Magalhães Júnior e o Maurício<br />
não se apresentarão. Creio que o<br />
Oliveira e Silva será candidato. Mas<br />
esse é café pequeno. É possível que o<br />
Celso Kelly também o seja, (...) esse é<br />
caso mais sério. Até agora não se fala<br />
do Zé Lins do Rego.<br />
Cuida de ti, rapaz! Não durmas no<br />
ponto.<br />
Abraço a Ivone<br />
Teu velho amigo<br />
Viriato<br />
É possível notar, pelos fragmentos<br />
transcritos, que o velho historiador<br />
conhecia o desejo de Josué Montello<br />
de recuperar a cadeira vinte e nove<br />
para seu estado natal. Fica eviden-<br />
te também que mais alguém na Aca-<br />
demia sabia que era chegada a hora<br />
da candidatura do jovem intelectual<br />
maranhense. O trecho: “... na Acade-<br />
mia, me aconselharam que não fizes-<br />
se. Pois o telegrama, partindo àquela<br />
hora, chegaria aí depois das notícias<br />
52 / 125
das agências telegráficas” mostra que<br />
havia naquela instituição uma preocu-<br />
pação em dar a notícia de modo mais<br />
completo, sem a pouca informativida-<br />
de de um telegrama feito às pressas.<br />
Viriato fala com alívio do fato de nomes<br />
como José Lins do Rego e Magalhães<br />
Júnior não concorrerem ao pleito. Na<br />
época, o autor de Menino de Engenho<br />
era um dos homens mais citados nos<br />
círculos literários, e, no ponto de vista<br />
de Viriato Corrêa, esse poderia ser um<br />
forte obstáculo à vitória de Montello.<br />
No momento, o nome de “Zé Lins<br />
do Rego” não era um problema, mas<br />
havia outro que impunha respeito, o de<br />
Celso Kelly. Este já havia sido candida-<br />
to e, mesmo tendo sido derrotado em<br />
outra ocasião, contava, pelo menos em<br />
teoria, com a simpatia de boa parte dos<br />
acadêmicos. Por isso, o autor de A Ba-<br />
laiada refere-se a ele como sendo um<br />
“caso mais sério”. Da mesma forma, é<br />
visível o desdém com que é tratada a<br />
candidatura de Oliveira e Silva, escri-<br />
Índice<br />
tor tido como “café pequeno”, ou seja,<br />
um candidato que não oferecia mui-<br />
to perigo aos planos dos demais, pois<br />
contava com pouquíssimo apoio den-<br />
tro da Casa. Restava, então, preocupar-<br />
-se com Kelly, o mais forte dos adver-<br />
sários.<br />
Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />
53 / 125<br />
Acervo da Casa deCultura Josué Montello
Assim que a notícia da morte de<br />
Cláudio de Sousa foi divulgada, a im-<br />
prensa ligada à literatura começou a<br />
especular sobre quem seriam os prová-<br />
veis candidatos. Alguns imortais foram<br />
consultados a respeito de suas prefe-<br />
rências. O poeta Manuel Bandeira, alu-<br />
dindo ao fato de que tanto o fundador,<br />
quanto o patrono e o último ocupante<br />
terem sido homens de grande tradi-<br />
ção no teatro, fez a seguinte declaração<br />
para o jornal Última Hora, do dia 03 de<br />
julho de <strong>1954</strong>: “Deve ser escolhido um<br />
homem de teatro, em honra ao patro-<br />
no”.<br />
A declaração do poeta pernambu-<br />
cano era discretíssima e não dizia nada<br />
de concreto, pois os candidatos mais<br />
cotados para a vaga, Celso Kelly e Josué<br />
Montello, eram também ligados ao tea-<br />
tro, ou seja, Bandeira saiu pela tangente<br />
e não disse em quem votaria.<br />
Enquanto isso, em Lima, onde es-<br />
tava a trabalho, Montello, depois de ler<br />
a carta enviada por Viriato Corrêa nar-<br />
Índice<br />
rando os últimos acontecimentos, no<br />
primeiro tempo disponível que teve,<br />
começou a escrever cartas aos acadê-<br />
micos. 3 Todas as cartas primavam pela<br />
elegância, mas com o apuro estilísti-<br />
co que marcou os mais de cem livros<br />
publicados pelo autor. Nas cartas, ele<br />
apresenta seu nome para os acadêmi-<br />
cos, sem, contudo, enumerar os prê-<br />
mios conquistados, as obras editadas,<br />
nem os altos cargos por ele exercidos.<br />
De modo claro e simpático, ele coloca o<br />
nome à disposição daqueles que tinham<br />
o poder de voto, envolvendo os desti-<br />
natários em uma atmosfera de amisto-<br />
sa humildade, o que, sem dúvida, deve<br />
ter-lhe rendido vários votos no dia da<br />
eleição. Uma das cartas escritas não foi<br />
enviada para os imortais da Academia,<br />
mas para seu principal adversário na<br />
corrida rumo à ABL, Celso Kelly. Tal<br />
atitude revela dois traços importantes<br />
na personalidade do escritor: o respei-<br />
to pelo adversário e sua diplomacia.<br />
3 As cartas e telegramas escritos por Josué Montello foram organizados por Yvone<br />
Montello e estão disponíveis para pesquisa na Casa de Cultura Josué Montello.<br />
54 / 125
Acervo do arquivo da Casa de Cultura Josué Montello<br />
Índice<br />
A carta dirigida a<br />
Kelly, que tem um frag-<br />
mento reproduzido ao<br />
lado, traz um tom de cor-<br />
dialidade e lembra a seu<br />
opositor que a eleição<br />
para a Academia não é<br />
um meio de provar quem<br />
é o melhor, mas apenas<br />
um modo prático de escolher o novo ocupante de uma vaga deixada por um amigo<br />
em comum. O autor deixa claro, ainda, que, qualquer que fosse o resultado, nada<br />
interferiria na amizade entre os dois.Era uma forma de não transformar a disputa<br />
em uma espécie de guerra fria entre os dois principais candidatos. Nos documen-<br />
tos consultados de Josué, não foi encontrada referência a alguma resposta a essa<br />
carta, infelizmente.<br />
Precavido, o escritor maranhense não se limitou a enviar cartas, man-<br />
dou também dezenas de telegramas aos acadêmicos e a seus amigos mais pró-<br />
ximos. Um bom exemplo dessa atitude é o texto enviado a Odylo Costa, fi-<br />
lho: “Sou candidato Academia esperando teu amparo junto Ribeiro Couto.<br />
Certamente foram dias de grande ansiedade. A espera de novida-<br />
des sobre o andamento da campanha deve ter consumido muito de suas<br />
energias, mas do alto de sua juventude, o escritor pôde suportar as pres-<br />
sões internas e a falta de informação durante os dias que se seguiram.<br />
Mas não era só Josué Montello, em Lima, que estava ansioso. No Brasil, mais<br />
55 / 125
precisamente no Rio de Janeiro, den-<br />
tro da Academia, outro maranhense<br />
esperava o caminhar da situação. Era<br />
Viriato Corrêa, que transformado por<br />
vontade própria em principal “cabo<br />
eleitoral” da cam panha, sondava o<br />
ambiente para dar notícias seguras<br />
ao amigo. Três dias após ter mandado<br />
a notícia da vacância na ABL, o autor<br />
de Terra de Santa Cruz enviava outra<br />
carta ao conterrâneo. O texto tinha um<br />
tom de muita confiança na vitória. Eis<br />
um trecho dela:<br />
Montelo<br />
É preciso que embarques para cá o<br />
mais breve possível. Tens probabilidade<br />
de vencer. Voa de lá para cá já, já,<br />
já.<br />
Novidade: O Celso Kelly não está<br />
encontrando o ambiente que esperava.<br />
02 – 07 – <strong>1954</strong><br />
No restante da carta, o remetente<br />
faz um resumo da situação de cada um<br />
dos concorrentes à vaga, sempre com<br />
entusiasmo e confiante na vitória do<br />
amigo.<br />
Índice<br />
Realmente, Kelly não estava ten-<br />
do o apoio que esperava. No início, ele<br />
era o favorito, mas quando foi anun-<br />
ciada a tão esperada candidatura do<br />
autor de Aleluia, sua cotação começou<br />
a cair. Houve uma reviravolta nos se-<br />
tores intelectuais. Na própria Acade-<br />
mia, alguns imortais começaram a não<br />
ver com muita simpatia a candidatura<br />
de Celso Kelly. Por isso, algumas fra-<br />
ses, até certo ponto deselegantes, eram<br />
constantemente ditas nos meios acadê-<br />
micos. Um exemplo é o comentário de<br />
Rodrigo Otávio Filho que, quando foi<br />
perguntado sobre qual era seu candi-<br />
dato, disse sem meias palavras: “Voto<br />
até no Josué! Mas no Celso Kelly nun-<br />
ca!!!” 4<br />
A imprensa, por outro lado, ad-<br />
mitia que já não estava tão fácil saber<br />
quem seria o vencedor da disputa. No<br />
entanto, o jornal A Manhã, do Rio de<br />
Janeiro, mesmo antes de confirmar<br />
a candidatura de Montello, em sua<br />
4 In MAURO, José. “Café Society” confidencial. São Paulo: Civilização<br />
Brasileira, 1956.<br />
56 / 125
edição de 20 de julho de <strong>1954</strong>, já o co-<br />
locava em situação privilegiada ao es-<br />
pecular sobre os possíveis aspirantes à<br />
vaga.<br />
Os favoritos do novo páreo são o<br />
senhor Celso Kelly e o não-inscrito Josué<br />
Montello. Pode haver novidades.<br />
O romancista maranhense estava<br />
confiante na vitória, mas não revelava<br />
essa confiança à imprensa. Em seu ar-<br />
quivo pessoal, há uma tabela na qual ele<br />
anotava os possíveis votos que ele re-<br />
ceberia nos quatro escrutínios progra-<br />
mados. A tabela é uma folha de papel<br />
que traz datilografados os nomes dos<br />
eleitores e as respectivas intenções de<br />
voto. Uma análise no documento mos-<br />
tra que ele esperava uma vitória no 1º<br />
ou no 3º escrutínio, conforme ele mes-<br />
mo confessaria mais tarde, após o re-<br />
sultado:<br />
Eu sabia contar com os amigos que<br />
me acompanhariam em todas as fases<br />
da votação. Eles eram em número de<br />
onze. Outros votariam no primeiro e<br />
no terceiro escrutínio. Entre o primeiro<br />
e o segundo a coisa estava mais ou<br />
Índice<br />
menos equilibrada.<br />
(O Imparcial, 08 de novembro de <strong>1954</strong>)<br />
A respeito de suas esperanças de<br />
vitória, na mesma reportagem, o escri-<br />
tor dizia:<br />
Como a votação é secreta nenhum<br />
candidato pode afirmar que vai ganhar,<br />
mas apenas externar suas esperanças.<br />
Eu tinha também as minhas, é<br />
claro.<br />
(O Imparcial, 08 de novembro de <strong>1954</strong>)<br />
Quando recebeu a carta de Viriato<br />
Corrêa, que lhe pedia que voltasse ao<br />
Brasil rapidamente, Montello respon-<br />
deu-lhe com o seguinte telegrama: “Es-<br />
tou arrumando mala. Seguirei breve.<br />
Abraços.”<br />
Poucos dias depois, ele estava de<br />
volta ao país, para cumprir as formali-<br />
dades de candidatura.<br />
Em suas cartas aos acadêmicos,<br />
Montello já lhes avisava que, quando<br />
voltasse ao Brasil, faria visitas oficiais<br />
na qualidade de candidato. E assim<br />
fez. Iniciou uma longa peregrinação de<br />
entrevistas com os imortais, tentando<br />
convencê-los de que seu nome era uma<br />
57 / 125
alternativa a ser lembrada na hora da<br />
votação.<br />
Finalmente chegou o dia de encer-<br />
rar as inscrições para os pretendentes<br />
à vaga deixada por Cláudio de Sousa.<br />
Vários candidatos se apresentaram,<br />
eram eles: Josué Montello, Celso Kelly,<br />
Oliveira e Silva, Artur de Almeida Tor-<br />
res, Sérgio Gomes, Ernani Lopes, Osó-<br />
rio Dutra, Sílvio Júlio, Modesto de<br />
Abreu, Paulo Magalhães, Agnaldo San-<br />
tiago, Bueno da Cerqueira e Waldemar<br />
Bernadelli. Mas os principais concor-<br />
rentes ainda eram os dois primeiros.<br />
Foram meses de intensa campa-<br />
nha. Quando os dias que precediam à<br />
votação se aproximavam, os jornais ti-<br />
nham sempre uma nota sobre o pleito.<br />
O jornal Diário de Notícias, na véspera<br />
do pleito, trazia a seguinte matéria:<br />
Reúne-se amanhã, a Academia<br />
Brasileira de Letras, a fim de eleger<br />
o sucessor de Cláudio de Sousa, vaga<br />
que está a poltrona azul vinte e nove,<br />
cujo patrono é Martins Pena, sócio-<br />
-fundador Artur Azevedo e primeiro<br />
ocupante o poeta Vicente de Carvalho<br />
Índice<br />
(...) Apesar de se terem inscritos onze<br />
candidatos, o páreo será disputado<br />
pelos senhores Josué Montello e Celso<br />
Kelly, que são os candidatos mais cotados.<br />
(Diário de Notícias, 03/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Dois dos pré-candidatos, Bueno da<br />
Cerqueira e Waldemar Bernadelli, reti-<br />
raram a candidatura. Assim sendo, no<br />
dia da eleição, restavam onze concor-<br />
rentes. Certamente, a madrugada de<br />
04 de novembro de <strong>1954</strong> foi das mais<br />
longas para os onze aspirantes à imor-<br />
talidade.<br />
Tão nervoso quanto os candidatos,<br />
estava o velho escritor Viriato Corrêa.<br />
Seu voto ele sabia de quem era, mas o<br />
que dizer do dos outros? Não sabia. O<br />
jeito era esperar pelo resultado.<br />
O sol foi surgindo, e, com ele, a es-<br />
perança dos experientes homens que<br />
lutavam por umideal. Não havia mais<br />
tempo de fazer campanha. Era hora de<br />
colher os frutos das sementes cultivadas<br />
durante anos e cuidadosamente regadas<br />
ao longo dos últimos meses.<br />
Chegava o dia da eleição.<br />
58 / 125
Posse de Josué Montello na Academia Brasileira de Letras<br />
A ELEIÇÃO<br />
A eleição estava marcada para o<br />
dia 04 de novembro, às cinco da tarde,<br />
e o resultado deveria sair aproximada-<br />
mente meia hora depois. Os eleitores<br />
chegavam em pequenos grupos. O teor<br />
das conversas acabava invariavelmente<br />
na indiscreta pergunta sobre em quem<br />
o outro votaria.<br />
Acervo do arquivo da Casa de Cultura Josué Montello<br />
Índice<br />
O ar de mistério e de expectativa<br />
é revelado no jornal O Imparcial de<br />
09 de novembro daquele ano:<br />
Em sessão secreta, e num ambiente<br />
de intensa expectativa, em vista da<br />
presença, no Petit Trianon, de cinegrafistas,<br />
jornalistas e amigos de concorrentes,<br />
processou-se o pleito.<br />
O regulamento da eleição para a<br />
Academia havia sido reformulado me-<br />
ses antes e era a primeira vez que era<br />
posto em prática. O evento deveria ser<br />
realizado em, no máximo, quatro es-<br />
crutínios. O candidato que tivesse pelo<br />
menos um (01) voto na primeira conta-<br />
gem poderia concorrer nas outras três.<br />
Caso, em qualquer etapa da apuração,<br />
algum candidato conseguisse maio-<br />
ria absoluta dos votos, que na ocasião<br />
estava calculado em dezenove (19), a<br />
eleição estaria encerrada e o candida-<br />
to, eleito. Contudo, se nas quatro apu-<br />
rações nenhum dos candidatos atingis-<br />
se o mínimo estipulado, o pleito não<br />
teria vencedor, e a Academia abriria<br />
novo prazo para inscrições. Até mesmo<br />
59 / 125
os derrotados poderiam inscrever-se de<br />
novo para processo.<br />
Os imortais pegavam o elevador da<br />
ABL em grupo de quatro membros (o<br />
número máximo suportado pelo eleva-<br />
dor naquela época) e se dirigiam para<br />
um salão reservado, onde tomavam<br />
chá e conversavam, esperando a hora<br />
do voto. Antônio Carneiro Leão, Alceu<br />
Amoroso Lima, Otávio Mangabeira,<br />
Guilherme de Almeida e Afonso de Tau-<br />
nay não puderam comparecer à sessão,<br />
mas enviaram seus votos. O acadêmico<br />
recém-eleito Luís Viana Filho ficou im-<br />
pedido de votar, pois ainda não havia<br />
sido empossado, e o regimento interno<br />
da Casa rezava que somente os eleitos e<br />
já empossados tinham direito a voto.<br />
Alguns minutos antes das cinco ho-<br />
ras, o então presidente da instituição,<br />
Barbosa Lima Sobrinho, interrompia<br />
as conversas e o chá para anunciar que<br />
estava na hora de todos se dirigirem<br />
para o local da votação.<br />
Aquele dia era especial em todos os<br />
Índice<br />
sentidos. Uma das principais atrações<br />
do evento era a presença de Magalhães<br />
de Azeredo, o único dos fundadores da<br />
Academia que ainda estava vivo. Há<br />
muitos anos ele estava afastado fisica-<br />
mente das eleições, mas sempre enviava<br />
seus votos. Naquele ano, em passagem<br />
pelo Brasil, sua estada coincidiu com a<br />
época da eleição. Ele não se furtou ao<br />
dever de votar pessoalmente naquela<br />
data. Por sua autoridade de fundador,<br />
foi-lhe dado o direito de ser o primei-<br />
ro a depositar o voto. Depois dele, um a<br />
um, os imortais foram efetivar suas es-<br />
colhas.<br />
Minutos depois, estava encerrada a<br />
votação. Restava, agora, esperar as apu-<br />
rações.<br />
Foi dado início à contagem do pri-<br />
meiro escrutínio, não havia novidades.<br />
Celso Kelly e Josué Montello eram os<br />
mais votados. Todos já se preparavam<br />
para o segundo escrutínio. A tensão<br />
pairava no ar. Restava apenas um voto<br />
para ser apurado. Caso fosse para Kelly<br />
60 / 125
ou qualquer outro dos candidatos, teria<br />
início a segunda contagem. Uma voz leu<br />
a cédula: “Josué Montello.”<br />
Estava terminada a eleição. O autor<br />
de Janelas Fechadas era o novo imor-<br />
tal da Academia Brasileira de Letras. O<br />
jornal O Imparcial conta em sua edição<br />
de <strong>11</strong> de novembro como foi dada a no-<br />
tícia aos presentes que esperavam pelo<br />
resultado do sufrágio:<br />
Minutos depois, o acadêmico Viriato<br />
Corrêa levantou a cortina que vedava<br />
a sala onde transcorriam as eleições,<br />
proclamando o nome do vencedor, no<br />
caso o candidato por ele apoiado entusiasticamente.<br />
O resultado final da apuração foi o<br />
seguinte:<br />
• Josué Montello – 19 votos<br />
• Celso Kelly – 09 votos<br />
• Oliveira e Silva – 04 votos<br />
• Dutra Santiago – 04 votos<br />
• Os demais candidatos não<br />
tiveram votos.<br />
Depois de proclamada a vitória do<br />
autor de A Luz da Estrela Morta, os votos<br />
dos três escrutínios restantes foram<br />
Índice<br />
incinerados numa pira existente no recinto.<br />
Estava encerrado o processo eleitoral.<br />
Mesmo sendo secreta a votação, o<br />
jornal A Noite, através de pesquisas e<br />
especulações, fez uma hipotética rela-<br />
ção de votantes no vencedor. Segundo<br />
o periódico, votaram em Josué: Manuel<br />
Bandeira, Viana Moog, Alceu Amoro-<br />
so Lima, Múcio Leão, Cassiano Ricar-<br />
do, Menotti del Picchia, Viriato Corrêa,<br />
Afonso Taunay, Austregésilo de Athay-<br />
de, Magalhães de Azeredo, João Neves<br />
da Fontoura, Ademar Tavares, Elma-<br />
no Cardim, Hélio Lobo, Barbosa Lima<br />
Sobrinho, Gustavo Barroso e Aluísio de<br />
Castro.<br />
Facilmente se percebe que o jornal<br />
só citou dezessete nomes. Dois votos<br />
inesperados decidiram a sorte do escri-<br />
tor. Ninguém, além dos próprios votan-<br />
tes, sabe quem deu os votos decisivos.<br />
Talvez pensando nisso, o candidato elei-<br />
to disse dias depois em entrevista:<br />
61 / 125
Há votos, entretanto, que são verdadeiros<br />
enigmas, por outro lado, o julgamento<br />
antes feito pode ser alterado.<br />
(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
“Montello fez o sol parar”<br />
Acabada a apuração dos votos e<br />
declarado o resultado final, a imprensa<br />
começou a colher comentários dos aca-<br />
dêmicos a respeito do novo confrade. A<br />
maior parte deles estava satisfeita com<br />
o resultado. O grande motivo de espan-<br />
to não era o resultado, mas sim o fato<br />
de ele ter vindo logo no primeiro escru-<br />
tínio, fato bastante raro naquela Casa.<br />
A respeito disso, Magalhães de Azeredo<br />
fez o seguinte comentário para O Glo-<br />
bo do dia seguinte à eleição:<br />
A Academia votou bem. Bela votação.<br />
E não é muito comum entrar para<br />
a Academia logo no primeiro escrutínio.<br />
Os que estão aqui que o digam. O<br />
Josué deve estar radiante. Esse moço<br />
tem muito valor.<br />
(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
O então presidente da ABL, Barbosa<br />
Lima Sobrinho, não poupava elogios<br />
ao vencedor, elogiando-lhe a intelectualidade.<br />
Índice<br />
Eu me congratulo com essa nova<br />
geração literária do Brasil pela eleição<br />
de um de seus expoentes: que é sem dúvida<br />
Josué Montello. As letras estão de<br />
parabéns, pois se trata de um homem<br />
que vive, integralmente, para as coisas<br />
da inteligência.<br />
(Jornal do Dia, 21/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Outro que destacou o fato de Montello<br />
ser um homem dedicado à literatura<br />
foi o escritor Gustavo Barroso:<br />
Estou satisfeito pelo resultado do<br />
pleito. Josué Montello é, realmente,<br />
um homem das letras.<br />
(Jornal do Dia, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/1957)<br />
Depois da eleição, em entrevista,<br />
Manuel Bandeira finalmente revelou<br />
seu voto:<br />
Votaria no Josué nos quatro escrutínios.<br />
Mas, felizmente, não foi preciso.<br />
(Correio da Manhã, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Era meu candidato. Tinha quatro<br />
votos para ele, só foi preciso dar-lhe<br />
um.<br />
(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Principal articulador da campanha,<br />
Viriato Corrêa era um dos mais entusias-<br />
mado com a vitória de seu conterrâneo.<br />
Seu carinho para com o amigo fê-lo dar di-<br />
versas declarações a respeito da eleição.<br />
62 / 125
A Academia escolheu um dos maiores<br />
e mais moços escritores do Brasil.<br />
Grande vitalidade, grande talento,<br />
grande futuro.<br />
(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Uma vida literária harmoniosa recebeu<br />
hoje sua melhor recompensa, com<br />
seu ingresso na Academia. Foram seus<br />
livros que o elegeram e todos nós aqui<br />
nos alegramos de receber em plena juventude<br />
um escritor de tão alto merecimento.<br />
(O Imparcial, 09/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
O crítico Agrippino Grieco fez, se-<br />
gundo José Mauro, em seu “Café Socie-<br />
ty” Confidencial, a seguinte declaração:<br />
“Isto não é novidade, o Montello é aca-<br />
dêmico desde a escola primária.”<br />
Outro que se pronunciou sobre a<br />
eleição foi João Neves da Fontoura. Ele<br />
fez o comentário mais curioso a respei-<br />
to do novo imortal ao comparar o Josué<br />
das Sagradas escrituras que, querendo<br />
vencer uma batalha, ordenou que o sol<br />
e a lua parassem: Fontoura disse: “Jo-<br />
sué Montello fez o sol parar”. Em outra<br />
entrevista, o mesmo escritor disse que<br />
o eleito era “mais um valor novo que<br />
Índice<br />
ingressa na Academia com títulos ex-<br />
pressivos”.<br />
A imprensa e alguns acadêmicos,<br />
por causa da idade do novo imortal, que<br />
contava com apenas trinta e sete anos,<br />
logo o apelidaram de “Benjamim da<br />
Academia”. E ele ficou sendo chamado<br />
assim por um bom tempo.<br />
Antes da eleição do intelectual ma-<br />
ranhense, esse título pertencia a Álva-<br />
ro Lins, que, na época, tinha quarenta e<br />
dois anos.<br />
Mas onde estava o eleito? Segundo<br />
consta em várias reportagens da época,<br />
ele estava em casa, esperando pelo re-<br />
sultado das urnas. Para passar o tempo,<br />
rabiscava desenhos em pedaços de pa-<br />
pel (um dos desenhos está reproduzido<br />
abaixo). Toda vez que o telefone toca-<br />
va, ele tinha a impressão de que era do<br />
Petit Trianon comunicando o resultado<br />
do pleito. Depois de longos momentos<br />
de tortura (e, provavelmente, de inúme-<br />
ras consultas ao relógio), o telefone to-<br />
cou. Do outro lado da linha, com a voz<br />
63 / 125
emocionada, Viriato Corrêa dá a notícia<br />
com apenas uma palavra: “Eleito”.<br />
Foi por telefone também que o novo<br />
acadêmico fez as primeiras declarações<br />
a respeito da vitória. Suas palavras re-<br />
velam a confiança que tinha no sucesso<br />
da eleição e demonstra também que ele<br />
já se preparava para, um dia ou outro,<br />
ingressar na Casa de Machado de Assis.<br />
A entrevista saiu publicada na edição de<br />
21 de novembro de <strong>1954</strong> do Jornal do<br />
Dia:<br />
A Academia estava naturalmente<br />
no meu caminho de escritor. Dizia Afrânio<br />
Peixoto que em relação à Academia<br />
todos somos incendiários aos vinte anos<br />
e bombeiros aos quarenta. Apenas me<br />
inscrevi como bombeiro três anos antes<br />
e entro na Academia com trinta e sete.<br />
Em outra entrevista, falando a res-<br />
peito das dificuldades encontradas du-<br />
rante a campanha e de seus principais<br />
adversários, Montello creditou a vitória<br />
principalmente a sua juventude.<br />
Tive de enfrentar concorrentes muito<br />
sérios e entre eles cito especialmente<br />
Celso Kelly, que sempre me deu grande<br />
Índice<br />
trabalho, e o ministro Osório Dutra, general<br />
de muitas batalhas e com uma experiência<br />
enorme de tais pleitos. Desejo<br />
frisar que os demais eram todos estreantes,<br />
como eu, tendo, no caso levado<br />
a vantagem da idade. Como era mais<br />
moço, corri um pouco mais e venci.<br />
(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Sobre sua relação com os demais<br />
acadêmicos durante a campanha, o es-<br />
critor mostrou-se satisfeito com a atitu-<br />
de dos eleitores, mesmo com a daqueles<br />
que aparentemente não votariam nele.<br />
Segundo ele, não houve atitudes de hos-<br />
tilidade contra sua pessoa.<br />
O que tenho a dizer sobre minha<br />
eleição é que os acadêmicos, na sua totalidade,<br />
são meus amigos. Os que não<br />
votaram em mim tiveram para comigo<br />
uma atitude de neutralidade afetuosa.<br />
(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Horas depois, a casa do escritor era<br />
invadida por uma multidão de repórte-<br />
res, acadêmicos amigos e admiradores.<br />
Alguns jornais, dias depois, estampa-<br />
ram uma foto na qual aparecia o casal<br />
Josué e Yvonne Montello com um belo<br />
sorriso de felicidade que iluminava as<br />
64 / 125
páginas do periódico. Entre os que esta-<br />
vam na casa do vitorioso, destacava-se a<br />
figura solene, mas jovial, do historiador<br />
Viriato Corrêa, “o amigo de todas as ho-<br />
ras”, como tão bem disse numa ocasião<br />
Josué Montello. A presença do velho<br />
maranhense era indispensável naquele<br />
momento de alegria. Aquela era a hora<br />
de Josué fazer algumas declarações a<br />
respeito de sua espera para candidatar-<br />
-se à Academia e sobre os comentários<br />
de que ele substituiria o amigo na insti-<br />
tuição.<br />
Meu velho amigo Viriato Corrêa<br />
sugeriu um dia que eu fosse seu sucessor<br />
na Academia. Mas o Viriato foi feito<br />
para durar cem anos... e eu não sei se<br />
durarei tanto... Então eu propus uma<br />
solução melhor: que ele me recebesse<br />
na Academia... e é o que vai acontecer.<br />
(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Estava, assim, revelado oficialmen-<br />
te o nome do imortal que receberia o<br />
novo acadêmico no dia de sua posse.<br />
Uma escolha que mostrava o laço de<br />
união entre aqueles dois maranhenses<br />
de tanto talento no manejo das palavras.<br />
Índice<br />
Depois, perguntado como se sentiu com<br />
a sua eleição para a ABL, o escritor res-<br />
pondeu:<br />
Eu me senti feliz e satisfeito. A eleição<br />
para a Academia foi o maior estímulo<br />
que poderia receber na minha<br />
vida de homem de letras.<br />
(O <strong>Globo</strong>, <strong>05</strong>/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Outro fato surpreendente foi a de-<br />
claração de Josué de que há alguns me-<br />
ses recebera uma carta de Cláudio de<br />
Sousa, na qual o falecido acadêmico<br />
perguntava, num tom de reclamação, o<br />
porque de o autor de O Verdugo não ci-<br />
tar em seus livros as associações a que<br />
pertencia. A resposta seria dada dizen-<br />
do que aquele espaço estava reservado<br />
para escrever “membro da Academia<br />
Brasileira de Letras”. A seguir, ele di-<br />
ria que contava com a ajuda de Cláudio<br />
de Sousa para conseguir a tão almejada<br />
vaga e assim poder pôr nos próximos<br />
livros o nome das instituições a que<br />
pertencia. Mas o autor de A Escola da<br />
Mentira nunca recebeu essa resposta.<br />
Emocionado, Montello declarou que:<br />
65 / 125
A carta fora por mim recebida pela<br />
manhã e, à tarde, tive por intermédio<br />
de Viriato Corrêa, amigo de todas as<br />
horas, a notícia da morte de Cláudio de<br />
Sousa.<br />
(O Imparcial, 08/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Passada a euforia das comemo-<br />
rações, só restava, aparentemente, ao<br />
eleito preparar seu discurso de posse,<br />
que, segundo Neiva Moreira, já estava<br />
pronto e era belíssimo. Mas, a verdade<br />
era outra. Faltava ainda preparar-se fi-<br />
nanceiramente para comprar o fardão<br />
acadêmico, que não era nada barato.<br />
Mas esse problema de ordem financeira<br />
foi solucionado pelo governo do Estado<br />
do Maranhão, na figura do governador<br />
Eugênio de Barros, para quem Montello<br />
enviou um telegrama informando da vi-<br />
tória na Academia:<br />
Tenho a satisfação de comunicar<br />
ao meu ilustre amigo que acabo de<br />
conquistar, com minha eleição para a<br />
Academia Brasileira de Letras, a cadeira<br />
fundada pelo nosso conterrâneo,<br />
Artur Azevedo. Alcançando, assim, o<br />
mais alto instituto de cultura de nosso<br />
país, quero transmitir para o meu Maranhão<br />
esse triunfo. Afetuoso. Josué<br />
Índice<br />
Montello.<br />
(Jornal do Dia, 06/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
A repercussão da eleição de Mon-<br />
tello apareceu em diversos veículos<br />
de comunicação da época. No Jornal<br />
do Dia aparece a seguinte nota dando<br />
conta de que o escritor não teria mais<br />
problemas em adquirir seu fardão de<br />
posse.<br />
Foi eleito para a Academia Brasileira<br />
de Letras, na vaga de Cláudio de<br />
Sousa, o intelectual conterrâneo Josué<br />
Montello, autor de vários romances,<br />
entre os quais A Luz da Estrela Morta,<br />
sobre o qual acaba de ser verificado um<br />
plágio por um romancista italiano de<br />
renome universal. Presentemente, o escritor<br />
dá, em Lima, um curso de Literatura<br />
Brasileira.<br />
O governo do Estado resolveu presentear<br />
o novo imortal com o fardão<br />
acadêmico.<br />
(Jornal do Dia, 07/<strong>11</strong>/<strong>1954</strong>)<br />
Antes de seguir, é importante notar<br />
que o fato de Josué Montello ganhar a<br />
eleição logo no primeiro escrutínio não<br />
foi milagre. Foi, sim, fruto da esmerada<br />
inteligência do escritor. Numa de suas<br />
66 / 125
crônicas escritas para a revista Manche-<br />
te, cerca de três décadas depois do plei-<br />
to, ele revelaria como ganhou a eleição.<br />
Em seu texto, Montello dissertou sobre<br />
os fardões acadêmicos, contando fatos<br />
que aconteceram com os mais diversos<br />
imortais. Quase no meio da crônica, ele<br />
relembra sua vitória de 04 de novembro<br />
de <strong>1954</strong> e conta como ela aconteceu.<br />
Ele disse que foi efetivar sua can-<br />
didatura quando todos os demais pre-<br />
tendentes à vaga do médico e teatrólogo<br />
Cláudio de Sousa já o tinha feito. Uma<br />
das primeiras notícias que recebeu foi<br />
a de que, como o número de candida-<br />
tos era muito grande, era provável que<br />
ninguém fosse eleito, mas, se fosse, se-<br />
ria no terceiro ou quarto turno de vota-<br />
ção. Uma informação assim desanima-<br />
ria qualquer um, mas o autor de Cais da<br />
Sagração ficou foi ainda mais confiante<br />
com a novidade. Eis o que ele conta so-<br />
bre o fato:<br />
Índice<br />
Rapidamente percebi que, no pleito<br />
a que concorria, o único escrutínio disponível<br />
parecia ser o primeiro, foi nele<br />
que me fixei. (...) Viriato Corrêa, meu dileto<br />
amigo e eleitor exaltado, alarmou-<br />
-se, com as mãos na cabeça, quando lhe<br />
disse minha preferência:<br />
E eu firme: - Só quero o primeiro.<br />
Os outros, os dá a quem quiser.<br />
(Revista Manchete, 28/07/1990)<br />
Como se vê, Montello apostou to-<br />
das as fichas em sua eleição... e ganhou.<br />
67 / 125
REFERÊNCIAS<br />
• BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. 3ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.<br />
• MAURO, José. “Café Society” Confidencial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956.<br />
• MONTELLO, Josué. Confissões de um romancista. In: Romances e novelas. Rio de Janeiro:<br />
Nova Aguilar, 1986. V. 1.<br />
• ___________. Discurso de posse. Disponível em: www.academia.org.br.<br />
• ___________. O Modernismo na Academia – testemunhos e documentos. Rio de Janeiro:<br />
Academia Brasileira de Letras, 1984.<br />
• MONTELLO, Yvone (org) Cronologia de Josué Montello. In: Romances e novelas. Rio de<br />
Janeiro: Nova Aguilar, 1986. V. 1.<br />
• ___________. Josué Montello – Academia Brasileira de Letras – candidatura (1939/<strong>1954</strong>).<br />
Encadernado.<br />
• ___________. Josué Montello – Academia Brasileira de Letras – Eleição e posse<br />
(<strong>1954</strong>/1956). Encadernado.<br />
• NERES, José. Montello: O Benjamim da Academia. São Luís: Carajás, 2008.<br />
• Jornais e revistas citados no corpo do texto.<br />
José Neres<br />
Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG e mestre em Educação pela Universidade<br />
Católica de Brasília. Professor de graduação e pós-gaduação nas instituições UFMA, FAMA e<br />
IESF. Publicou 14 livros, entre eles: Estratégias para Matar um Leitor em Formação, Restos de<br />
Vidas Perdidas, 50 Pequenas traições, A Mulher de Potifar, Montello: O Benjamim da Academia,<br />
Maranhão na Ponta da Língua; além de haver organizado ou coorganizado os livros Tábua de<br />
Papel, O Discurso e as Ideias, Os Epigramas de Artur e O Verso e o Silêncio de Adelino Fontoura<br />
Índice<br />
68 / 125
A VIDA E A OBRA DE<br />
JOÃO FRANcIScO LISBOA<br />
(1812-2012)<br />
Estátua de João Lisboa na praça João Lisboa - São Luís/MA<br />
Em comemoração ao bicentenário de nascimento de um dos<br />
mais ilustres filhos do Maranhão.<br />
Índice<br />
Foto: Albani Ramos<br />
69 / 125
“A obra de João Francisco Lisboa é a glória de uma li-<br />
teratura. Ditosa a Província, hoje Estado, que se faz re-<br />
presentar na cultura mental por um tão alto espírito.”<br />
TEÓFILO BRAGA<br />
“João Francisco Lisboa continua a ser um dos nossos<br />
maiores escritores, e não só poderoso, senão fino, corre-<br />
to, culto, escritor que tem estilo e ideias, escritor a quem<br />
o gosto pelas letras não diminuiu o interesse pela vida.”<br />
Índice<br />
OCTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA<br />
“Ele teve, por amor da terra, a inquietação do homem,<br />
e fez toda obra num constante exercício de intros-<br />
pecção racional, honesto, lúcido e sereno. Esse o sen-<br />
tido profundo de sua obra; essa a lição de sua vida.”<br />
PEREGRINO JÚNIOR<br />
70 / 125
TEATRO SÃO LUÍS<br />
Um texto de João Lisboa<br />
Notas explicativas de Sebastião Moreira Duarte<br />
[É o atual Teatro Artur Azevedo, que antes se chamou Teatro União e tem quase a<br />
mesma idade do Autor deste folhetim. Situado à Rua do Sol, no Centro Histórico de São Luís,<br />
é uma das joias arquitetônicas da cidade, construído por iniciativa de Eleutério Lopes da Silva<br />
Varela e Estêvão Gonçalves Braga. Inaugurado em 1817 como propriedade daqueles senhores,<br />
incorporou-se, pela metade, como patrimônio do Governo da Província, em virtude do art. 41<br />
da Lei de 28 de outubro de 1848. A outra metade passou ao domínio público em 1850 (Lei nº<br />
276, de 22 de outubro). Fechado para reforma, foi reaberto em 14 de março de 1852. Passados<br />
apenas onze dias daquela data, João Lisboa, assinando-se pelo nome de Tímon, por que se fizera<br />
conhecido, extravasa sua veia crítica contra a administração da Casa. Seu estilo mordaz encontra<br />
mais um tema com que exercitar-se. Veículo apropriado para essa manifestação foi o folhetim,<br />
espécie de crônica jornalístico-literária muito em voga no século XIX, quando quase não havia<br />
diferença entre fazer jornal e fazer literatura. Mas se o mundo é um teatro, o teatro é o mundo: do<br />
microcosmo da sala de espetáculos, o Observador alarga vistas para o macrocosmo do ambiente<br />
externo, cujos atores se fazem presentes no Teatro, sem disfarçarem os papéis que representam,<br />
numa sociedade fechada, de aristocracia postiça, parasitária e intringuenta, complacente na<br />
própria ostentação, em cujo meio Tímon habita sem se habituar.<br />
Este folhetim saiu pela primeira vez n’O Publicador Maranhense, nº <strong>11</strong>83, a 25 de março de<br />
1852. João Francisco Lisboa tinha 40 anos quando o publicou. Republicando-o no bicentenário<br />
de seu nascimento, esforçamo-nos por fazê-lo acessível, quanto possível, ao leitor de hoje. As<br />
notas que se acrescem ao texto pretendem servir a tal propósito, sem esgotarem, no entanto, o<br />
que permanece por elucidar, por efeito do teor de referência imediata de que se reveste a folha<br />
de jornal].<br />
Ninguém imagina os reveses e desapontamentos que têm vindo ao pobre<br />
Tímon, 1 uns sobre outros, há tempos a esta parte. Todos sabem como ele teve a<br />
glória de ver fulgurar o seu nome na maior parte das chapas provinciais que o<br />
1 Pobre Tímon: o próprio Joãp Lisboa.<br />
Índice<br />
71 / 125
patriotismo dos diversos grupos andou por aí a confeccionar; e já Tímon se<br />
prometia de fazer um figurão imenso no nosso futuro parlamento, quando<br />
a ingratidão, a fraude e a má-fé, de mãos dadas, o excluíram do lugar que<br />
legitimamente lhe competia, para o colocarem, entre os derradeiros suplentes, em<br />
um ponto tão baixo que ainda a sonda lhe não pôde chegar. 1 O que sobretudo lhe<br />
doeu no íntimo d’alma foi não ter tido um único voto no colégio de São Bernardo 2 ,<br />
quando para certos dignos habitadores desse abençoado torrão reservava ele as<br />
suas páginas mais corretas, apaixonadas, e eloquentes!<br />
Mas não foi isso, porque infelizmente as desgraças sempre andam em<br />
chusma. Tímon aspirava ao posto de tenente-coronel do batalhão de reserva na<br />
Guarda Nacional; os seus relevantes serviços, a sua inabalável firmeza de caráter,<br />
e a pasmosa invariabilidade dos seus princípios, que faz desesperação e inveja<br />
dos seus indignos adversários, tudo lhe dava direitos inauferíveis a essa honra,<br />
que nas circunstâncias expostas, não se podia reputar como favor, senão rigorosa<br />
justiça. Justiça porém sem empenhos é cousa que se não conhece na terra que nos<br />
viu nascer; Tímon, pois, não teve outro remédio, senão recorrer aos milagrosos<br />
empenhos, sem todavia descer um ápice daquela dignidade de caráter que todo<br />
mundo lhe conhece, e admira.<br />
Os amigos e influentes, que andam de ombro a ombro com o poder,<br />
voltaram com muito boas palavras,<br />
E encheram-lhe com grandes abundâncias<br />
O peito de desejos e esperanças. 3<br />
Mas oh dor, oh indignação! De repente dão os jornais a notícia de que<br />
1 João Lisboa ficou na suplência como deputado à Assembleia Provincial, em 1851. Mas não se tome ao pé da letra, por não corresponder<br />
à verdade, o de que, neste início do folhetim, se queixa o narrador. Vale mais enxergar o artifício de que lança mão, em<br />
igualar-se a numerosos de seus concidadões, ociosos pedinchões de empregos, para depois criticá-los a gosto e com a autoridade<br />
de quem conhece, por dentro, as artimanhas dos cavadores de posições, que “anda[va]m de ombro com o poder” provincial.<br />
2 Colégio de São Bernardo: o eleitorado desse município, a nordeste do Maranhão, fronteiriço com o Piauí.<br />
3 Versos extraídos d’Os lusíadas de Camões (Canto V, 54). O pronome foi adaptado (no original: encheram-me, em vez de encheram-lhe)<br />
e atualizado, no texto-base, o substantivo abundâncias (por abondanças, em Camões).<br />
Índice<br />
72 / 125
outro pre-tendente mais feliz fora proposto! Tímon fulminado, esteve a pique<br />
de fazer um rompi-mento estrondoso, convertendo-se em político beija-flor<br />
para andar colhendo o suco onde ele se oferecesse, como o exigiam a honra e os<br />
interesses do partido, menoscabados em sua pessoa. 4 Um novo contratempo veio<br />
ainda exacerbar o seu mau humor, e no estado verdadeiramente assustador a que<br />
tinha chegado, já estaria ele a esta hora fazendo algum desembarque repentino<br />
na ilha de Cuba, para desabafar, se as emergências da situação (como se diz em<br />
estilo de artigo de fundo), 5 unidas a certas desculpas, e a novas promessas, desta<br />
feita com seus visos de sinceras e realizáveis, não tornassem aqui necessária a sua<br />
importante presença.<br />
Boca de cena do Teatro Arthur Azevedo<br />
4 A biografia do Autor obriga a uma “leitura reversa” do caráter de político em que ele acima se apresenta. Ver Henriques Leal: João<br />
Francisco Lisboa, in Pantheon maranhense, tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro: Alhambra, p. 295-387.<br />
5 Artigo de fundo: o editorial de jornal.<br />
Índice<br />
73 / 125<br />
Foto: Gaudêncio Cunha 1908/Acervo do Museu Histórico e Artístico do Maranhão
Tratava-se nada menos que de compensar as injustas preterições sofridas<br />
por Tímon, afiançando-se-lhe a vigésima-terceira vice-presidência, 6 que não pode<br />
tardar, e de dar aqui mesmo pasto abundante ao seu ardor belicoso-revolucionário.<br />
E como efeito, para que ir tentar aventuras libertadoras em ilhas e continentes<br />
estranhos, quando em nossa própria terra não nos falta em que lutar braço a braço<br />
com a tirania?<br />
O leitor perspicaz penetrou já sem dúvida que me refiro ao nosso Teatro, e<br />
ao abo-minável triunvirato que nele reina, governa e administra, com tão descarado<br />
e ferrenho despotismo.<br />
Esta deplorável história requer especificada de mais longe.<br />
As revoluções, os golpes de Estado, as constituições promulgadas e<br />
derribadas, as confiscações, deportações, e estados de sítio, de que certos países<br />
estrangeiros estão sendo lastimoso teatro, não podiam deixar de saltar para o nosso,<br />
e de inchar os bofes dos ambi-ciosos cá da terra, que por trás dos bastidores acharam<br />
ocasião e pretexto para cevar seus ânimos ferozes, e representar as mesmas cenas<br />
de perfídia e opressão cuja só notícia já nos comovia tanto.<br />
Um primeiro ato legislativo, promulgado em 1850, e que se pode chamar<br />
a grande Constituição Teatral, estreou a carreira; 7 depois em 1851 seguiram-se-<br />
lhe umas instruções orgânicas, e após estas, o monstruoso regulamento de 5 de<br />
março deste ano das graças de 1852, 8 avisos e anúncios, impressos, afixados e<br />
verbais, que têm posto tudo na mais de-plorável confusão. Já Tácito o havia dito,<br />
a multiplicidade das leis é sinal evidente de de-cadência e tirania: Corruptissima<br />
republica, plurimae leges.<br />
6 Vigésima-terceira vice-presidência: o tom mordaz em que é lavrado o texto leva o Autor a evidente exagero. Não chegavam a tal<br />
número as vices-presidências da Província.<br />
7 A grande Constituição Teatral: a Lei nº 276, de 22 de outubo de 1850, pela qual o Governo da Província assumiu o Teatro<br />
União, passando seus administradores à categoria de funcionários públicos.<br />
8 O Teatro foi adquirido pela Província, para em seguida ser entregue, mediante contrato de uso, a algum empresário, ou companhia<br />
de teatro, nacional ou estrangeira, que se habilitasse a mantê-lo em funcionamento. Não havendo quem se habilitasse ao<br />
encargo, o Governo (de Eduardo Olímpio Machado) nomeou uma comissão de três membros para administrar a Casa.<br />
Índice<br />
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Veja-se agora como a atrocidade do pensamento legislativo tem<br />
dignamente correspondido às perfídias e asperezas da execução. Apossados uma<br />
vez os triúnviros da autoridade, não se sabe como, e nem por que modo, mudaram<br />
o venerável nome do nosso teatro, que da União que era, se ficou chamando de São<br />
Luís. Esta mudança parece ser resultado de um vasto plano há muito combinado, e<br />
cuja chave só o tempo nos poderá dar; mas nenhum homem de tino tem deixado de<br />
notar com surpresa e indignação que certa gente já não data as suas cartas senão de<br />
São Luís, e que de São Luís se vão todos os dias chamando ora as huris, ora a baía,<br />
e agora enfim o mesmo teatro, que tinha seu nome próprio, muito bem soante ao<br />
ouvido e à moral, já consagrado pelo tempo, e por nenhum caso merecedor de ser<br />
apagado por um traço de pena ditatorial.<br />
A tirania, como é seu veso antigo, não se desprezou desta feita de recorrer<br />
à astúcia; e para interessar o comércio no êxito dos seus planos, foi um de seus<br />
primeiros cuidados anunciar que comprava floretes, plumas, galões, et caetera.<br />
Lembram-se todos da melúria com que os ditadores falavam a princípio<br />
nas assinaturas, dizendo a uns que eram baratíssimas, a outros que cada um<br />
escolhia o seu camarote onde bem lhe convinha &&, mas de repente, e com data<br />
de 3 de março, estala um anúncio em todos os jornais, que os assinantes pagassem<br />
o imposto de um trimestre adiantado dentro de cinco dias improrrogáveis (até 8<br />
de março) sob pena de revelia, exclusão, e devolução! Digam-me agora os homens<br />
sinceros e desapaixonados de todas as opiniões, sem diferença de matizes, em que<br />
mais odioso foi o atentado de 2 de dezembro, 9 onde pelo contrário se deu aos pobres<br />
dos franceses atarantados não menos de dezenove dias para dormirem sobre o<br />
caso antes de irem à urna? 10 Numa surpresa tão odiosa ninguém teve tempo de<br />
reconhecer-se e dar-se a conselho; e todos sem exceção, consternados, mudos, ou<br />
9 O atentado de 2 de dezembro [de 1851]: o golpe de estado levado a efeito por Luís Napoleão Bonaparte, que dissolveu a Assembleia<br />
Nacional Francesa e instalou o Segundo Império. Observe-se, em confronto, a data do folhetim de João Lisboa.<br />
10 Não menos de dezenove dias: os franceses tiveram até 20 e 21 de dezembro de 1851 para, em plebiscito, aprovarem o golpe de<br />
Luís Napoleão.<br />
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esmungando quando muito, foram depositar a cédula fatal nas fauces hiantes do<br />
cofre ditatorial. <strong>11</strong> Tímon, como os outros, caiu em seus cinquenta mil réis, posto<br />
que mais vermelho de cólera que um comunista, 12 visto que a sua tensão era ir<br />
pagando aos quatro mil réis, quinze ou vinte dias depois da respectiva récita, e de<br />
ser três ou quatro vezes procurado em vão pelo cobrador. Entretanto pensou acaso<br />
a ditadura nos desarranjos, apertos e desapontamentos que produziu esta medida<br />
atroz, no meio de um povo amável, que tem direito a ser distraído e recreado com<br />
delicadeza, e que há de sê-lo, nós o dizemos em alto e com [sic] som, em que lhe<br />
pês 13 a tirania? (Esta última frase é do melhor cunho, e revela um estudo profundo<br />
dos nossos clássicos).<br />
A esta violenta extorsão de 3, seguiu-se o abominável regulamento de 5<br />
de março (a ditadura cada vinte quatro horas aborta um monstrengo legislativo)<br />
em <strong>11</strong> férreos artigos, digna miniatura dos 58 da Constituição Consular, 14 caiada<br />
e rebocada, de Luís Napoleão. Estes onze artigos são um magnífico compêndio de<br />
despotismo, como cada um poderá verificar, mediante uma simples vista d’olhos.<br />
Os artigos 1º e 2º contêm disposições vexatórias sobre pagamento, senhas e<br />
bilhetes. O artigo 3º é uma verdadeira monstruosidade; como proibir num país<br />
livre que cada qual se acompanhe dos seus escravos? O 4º e 5º são parceiros do 7º,<br />
posto que de propósito os separassem, para nos deitar poeira nos olhos, e poder-<br />
se a tirania entronizar com pés de algodão. Com quatro palavras deram garrote à<br />
liberdade da algazarra e pateada, e à dos versos e improvisos, que ficam sujeitos à<br />
prévia revisão; e para segurar o efeito destas medidas, desarmamento e privação<br />
geral das benga-las chapéus de sol! Precaução odiosa, e cópia servil da censura<br />
<strong>11</strong> Fauces hiantes do cofre ditatorial: as bocas (fauces) escancaradas (hiantes) das urnas eleitorais francesas, de onde saiu ratificada<br />
a ditadura de Luís Napoleão.<br />
12 Mais vermelho ... que um comunista: a alusão, aqui e mais adiante, faz sentido pelo fato de que os comunistas foram os que<br />
mais protestaram contra o golpe de 1851. Lembrar, de Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852).<br />
13 Forma apocopada do subjuntivo (presente, terceira pessoa do singular) do verbo pesar. (Nota de Jomar Moraes, curador da<br />
edição do texto-base utilizado para estra transcrição).<br />
14 Miniatura dos 58 da Constituição Consular: a esse número se resumiam os artigos da Constituição baixada por Luís Napoleão, em 14 de<br />
janeiro 1852, em virtude dos poderes consulares que recebera no referido plebiscito.<br />
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dos jornais e do desarmamento da Guarda Nacional, operado em França! Para<br />
engodo, permitem sinais de aprovação e desaprovação; naturalmente poder-se-<br />
ão levantar os dedos para o ar, e piscar os olhos para os vizinhos mais próximos.<br />
Um silêncio verdadeiramente sepulcral! Solitudinem faciunt, pacem appellant.<br />
15 Art. 7º É proibido o uso de se fumar tanto nos corredores, como no salão de<br />
cima. A menor tirania deste é a da redação. Pode haver cousa mais deliciosa,<br />
principalmente para os que não fumam, do que o uso de se fumar? Art. 10. Oh! A<br />
formidável garantia dos lugares que cada um escolher na plateia, uma vez que os<br />
marque com qualquer sinal! A Comissão garante, uma vez que os espectadores se<br />
prostrem às suas plantas! Mas se o sinal for bifado 16 por algum comunista? Se o<br />
usurpador o empurrar com a mão do gato, ou lhe der algum pontapé? Latet anguis<br />
in herba! 17 Tudo isto tem por fim dar azo 18 a um abominável sistema de espionagem<br />
e delações, coroadas por conselhos de guerra que julguem os contraventores. E<br />
se não, aí está, para tirar as dúvidas, a cor encarnada das grades dos camarotes,<br />
que simbolizava a guilhotina e o reinado do terror, como até com reticências<br />
observou judiciosamente o folhetinista d’O Observador... 19 a quem peço perdão<br />
da minha temeridade em fazer, depois da sua, a análise deste monstruoso código.<br />
Ainda mais. Depois da sua promulgação, e de haverem apanhado o<br />
dinheiro dos assinantes, novo firmam 20 declarando que ninguém podia levar ao<br />
seu camarote mais de sete pessoas! Esta foi mesmo de escachar, 21 e sobretudo<br />
ao pobre Tímon, cuja família consta de mulher, oito filhos, sogra, e de duas<br />
15 Solitudinem faciunt...: fazem um deserto e dão-lhe o nome de paz. (Tácito, Vida de Agrícola, cap. XXX).<br />
16 Bifado: retirado sorrateiramente.<br />
17 Latet anguis...: Há uma serpente escondida na grama. (Virgílio, Bucólicas, III, v. 93).<br />
18 Dar azo: dar ensejo ou servir de pretexto.<br />
19 O folhetinista d’O Observador: Francisco Sotero dos Reis – antes, mestre, e, depois, ferrenho adversário político de João Lisboa.<br />
20 Novo firmam...: emitem novo regulamento.<br />
21 Escachar: rachar.<br />
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cunhadas, 22 que contando perto de um quarto com um vigésimo de século 23 de<br />
existência tempestuosa, e infamada[s] com numerosos naufrágios de candidaturas<br />
matrimoniais, se aferraram, como a sua última tábua de salvação, às esperanças que<br />
a exposição teatral lhes proporcionava de poderem enfim tomar parte no banquete<br />
da vida! (Depois de terminar esta longa, pomposa e laboriosa oração, descansei<br />
alguns momentos satisfeito).<br />
Não era possível sofrer tanto, e posto que com desprezo das regras de<br />
cronologia, em obséquio à conexão da matéria, direi já aqui que no dia aprazado<br />
invadi os corredores com todo meu povo, deixando boquiaberto o Sr. Januário 24 e a<br />
todos os mais satélites da tirania. Creio mesmo que foi o meu populoso camarote o<br />
que deu na vista d’O Observador, sendo fácil de explicar o engano com que contou<br />
14 em vez de 13 pessoas que realmente eram, e atribuiu a patronato o que era<br />
simples resultado do meu arrojo, e da desesperação das moças.<br />
Se eu ainda aqui disser que para as sete pessoas permitidas, só se<br />
dispuseram cinco cadeiras, ficará claro como água que os triúnviros juntaram<br />
à opressão o escárnio, ou antes a mangação, 25 como muito bem lhe chamou O<br />
Observador.<br />
Homens há que, não obstante os mais claros sintomas de perigo, tratam<br />
tudo de res-to, e em tom de zombaria; é justamente o que têm feito alguns dos<br />
nossos mal-avisados concidadãos, apesar de se estar a meter pelos olhos de todos a<br />
evidência de quanto até aqui tenho referido; mas fico que ainda os mais cegos cairão<br />
em si, se à infernal unidade de vistas que tem presidido à legislação e administração<br />
teatral juntarem os seguintes fatos e coincidências, pesando-os com a madureza<br />
22 Mulher, oito filhos...: seria essa a família do “pobre Tímon”, não a do próprio Autor. De seu matrimônio com D. Violante Rosa<br />
da Cunha Lisboa, João Lisboa não teve filhos. Em 1846, o casal adotou uma filha de seu amigo Olegário José da Cunha, a qual<br />
veio a falecer após um ano. O amigo deu-lhe uma segunda filha, batizada com o mesmo nome da primeira (Maria).<br />
23 Um quarto com um vigésimo de século: modo sutil de dizer a idade de uma mulher de trinta anos.<br />
24 Antigo porteiro, ou guarda do nosso Teatro. [Nota do Autor].<br />
25 Mangação: zombaria.<br />
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que merecem:<br />
1º Há pouco mais de um ano, um dos triúnviros fez à Europa uma viagem<br />
que já então muito deu que falar, deitando voz que ia contratar vapores;<br />
hoje porém está assaz averiguado que o de que se tratava era de fazer<br />
evaporar as nossas liberdades, e nesse intento lá se andaram fazendo<br />
conferências entre Luís Napoleão, o feld-marechal Haynau 26 e outros que<br />
tais, sendo o resultado o golpe de 2 de dezembro lá e aqui.<br />
2º A demissão de Mr. Pavion, por se haver distinguido em defender<br />
a liberdade do molequinho José, e em levantar aquelas formidáveis<br />
barricadas contra o Serra Lima.<br />
3º A inauguração da Sociedade Terpsícore no mesmo dia 2 de dezembro<br />
(!!! querem-no mais claro?), com uns estatutos ou carta outorgada, em<br />
que a Diretoria se declara de direito divino, superior a qualquer reforma<br />
ou deliberação da sociedade em massa, e isto contra os princípios mais<br />
comezinhos do contrato social, que torna indispensável, para que a cousa<br />
possa ir adiante, uma assembleia constituinte regularmente eleita, com<br />
ou sem cacetes, e um pacto fundamental, sinalagmático ou bilateral, que<br />
consagre a aliança do povo e do poder. A propósito desta Sociedade, tenho<br />
a satisfação de anunciar ao respeitável público que a tradução completa<br />
do seu majestoso título foi incumbida a um dos mais sábios helenistas<br />
desta erudita capital. 27<br />
4º O aparecimento em nossas plagas do afamado príncipe russo Labanoff<br />
de Rostoff Cevallos y Bajallos, senhor de Rogneda e mares adjacentes, 28 que<br />
26 O feld-marechal Haynau: Julius Jacob von Haynau (1786-1853), lembrado pela repressão feroz que promoveu contra minorias<br />
da população austro-húngara.<br />
27 Terpsícore, na mitologia grega, era a musa da Dança.<br />
28 Entende-se aqui sutil referência a algum contrabandista, real ou fictício, entre tantos de que ficou fama nos melhores anos do<br />
comércio maranhense ao longo do século XIX. Evidência disso encontra-se na mistura do nome (que se percebe propositalmente<br />
deturpado) do príncipe Dmitry Ivanovich Lobanov-Rostovsky com os espanhóis que se lhe seguem. O verdadeiro Lobanov-<br />
-Rostovsky já estava morto desde 1838.<br />
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posto inculque andar procurando emprego para uma famosa carregação<br />
de martas, zibelinas, 29 baús de Moscóvia, e colossos do Norte... em<br />
miniatura, com que traz abarrotado o seu iate, não padece dúvida que o<br />
seu verdadeiro fim é pôr tudo a jeito do seu grande imperador Nicolau,<br />
favoneando todos os absolutistas do mundo, a cujo cheiro anda. E se não,<br />
por que é que, tendo ele saído de Pernambuco com destino para aqui<br />
desde 19 de fevereiro, como anunciou o Diário Velho, ainda até hoje não é<br />
S. A. aparecido? É porque, segundo me informou o nosso amigo Gamboa,<br />
que anda à pista de toda a casta de contrabandos, o homem, ou jovem<br />
imberbe (Diário de Pernambuco citado), saltou às ocultas em Jericoacara,<br />
e, procurando abrigo, primeiro em casa do Aprício, na Maioba, por mais<br />
bonitinho, depois na do Antônio Gregório, no Cutim, se pôs em dous<br />
saltos de pulga nesta cidade, onde hospedado no Hotel Condeixa, tem<br />
tido repetidas conferências noturnas com a respeitabilíssima Comissão<br />
Diretora...<br />
Mas se há cegos que caminham descuidados às bordas do precipício, não<br />
faltaram contudo patriotas tão atilados como enérgicos que juraram sepultar-se<br />
nas ruínas do Teatro, antes do que submeter a cerviz ao jugo.<br />
O dia 14 de março amanheceu claro e sereno; e o sol, rutilando e ferindo<br />
o úmido e diáfano vapor que a terra exalava, bem como os orvalhos com que a<br />
chuva borrifara telhas e calçadas, produzia uma donosa 30 vista tal como a beleza<br />
de Camões, maltratada nos brincos 31 amorosos, rindo e chorando a um tempo,<br />
ostentava o olhar radiante, mas toldado e orvalhado pelas lágrimas. 32 Era o<br />
aniversário de uma princesa adorada pelas sua inefável bondade; e no dúplice<br />
29 Martas, zibelinas ou martas zibelinas: animais de peles muito apreciadas para o vestuário.<br />
30 Donosa: galante, graciosa.<br />
31 Brincos: brinquedos.<br />
32 É visível, nestas linhas e nas que se seguem, o tom de paródia grotesca, em que o Autor reproduz o estilo meloso, surrado e artificial,<br />
que tem feito a moda de certa crônica mundana.<br />
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agouro da formosura do dia, e das recordações que ele trazia, achavam os heróis<br />
maranhenses novos incentivos ao seu generoso ardor. A cólera e o entusiasmo<br />
porém subiram de ponto quando se soube que o vaso das iniquidades fora cheio<br />
com a sacrílega empalmação dos bilhetes de plateia; um grito unânime se levantou<br />
de todos os ângulos da cidade, e ficou assentado de pedra e cal que desse uma<br />
tremenda pateada à Companhia, à Comissão, e a tudo mais que tivesse ressaibos<br />
de tirania, fraude e incapacidade. E a polícia cá de fora ia feita nesta generosa<br />
conspiração, na pessoa de um dos seus mais zelosos agentes, ressentida, dizem,<br />
de umas certas usurpações que a polícia interior fizera de alguns dos seus mais<br />
sagrados direitos.<br />
À hora aprazada, a população ergueu-se como um só homem (!) e<br />
precipitou-se em ondas naquele santuário do prazer que a mais inqualificável<br />
perversidade traçava converter em antro de torturas. Os triúnviros passeavam pelos<br />
corredores e salões, um horrivelmente barbado, e os outros dous miseravelmente<br />
desbarbados, mas todos eles de torva e medonha catadura, agitados, e lançando<br />
ao povo olhares truculentos em que se traduzia o pensamento de Tibério: Odeunt<br />
dum metuant. 33<br />
Sem fazer cabedal do seu ódio impotente, corri açodado ao meu camarote,<br />
e quando vou a debruçar-me sobre as grades para dar o sinal da peleja ao povo<br />
impaciente... Eternos deuses! Um soberbo lustre, vertendo torrentes de luz, por<br />
mil bocas ou canudos, inunda a sala e as galerias, reflete no outro, no bronze, nas<br />
sedas, nas pérolas, nos diamantes , no olhar ardente das belas, ofende, deslumbra,<br />
ofusca e cega os nossos! Longe ideias vãs de ódio, guerra e combates! Um surdo<br />
murmúrio de admiração e gozo se levanta de todos os ângulos do edifício, atulhado<br />
d’alto a baixo, plateias, frisas, camarotes, torrinhas, varandas, de mil cabeças, e de<br />
33 Odeunt, dum metuant: decerto para retratar a falsa cultura do cronista parodiado, o Folhetinista adultera a conhecida frase: Oderint (e não<br />
odeunt) dum metuant (odeiem-me, desde que me temam), atribuindo-lhe autoria equivocada. Segundo Suetônio, era Calígula (e não Tibério)<br />
que repetia tal expressão, tomada de uma tragédia de Ácio (Vida de Calígula, 30.1).<br />
Índice<br />
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um duplicado número de ouvidos atentos, e de olhos acesos!<br />
Aturdido eu mesmo, e quase fulminado, fechei involuntário os meus, e<br />
quando os abri de novo, pareceu-me que dançava a sala, e toda a armação superior,<br />
ao som da ruidosa orquestra, como devem dançar, nas campinas desertas do oceano<br />
e ao formidável concerto das ondas, os vastos salões dos gigantescos vapores<br />
modernos!<br />
Balançado molemente deste jeito, e mais recobrado já do pasmo e<br />
estupefação do primeiro momento, pus-me a notar e a considerar um por um os<br />
mil prodígios que o fantástico recinto oferecia à minha vista enleada e surpresa. O<br />
leitor os poderá apreciar, sabendo que com haver Tímon ocorrido as sete partidas<br />
do mundo, nunca contudo vira cousa alguma que pudesse emparelhar com o nosso<br />
teatro!<br />
Teatro Artur Azevêdo - São Luís/MA<br />
Índice<br />
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Foto: Albani Ramos
Fundo branco em geral, nos tetos e caixas dos camarotes, e fundo azul-<br />
celeste nas pilastras do arco do proscênio, mas tudo soberbamente esmaltado e<br />
matizado com molduras de outro, festões e carrancas de bronze, arabescos e baixos-<br />
relevos, que suspendem, alegram e encantam. Nas pilastras se veem as musas<br />
da dança e do canto, do drama trágico e do drama mofador, 34 acompanhadas de<br />
emblemas e atributos, e no meio de uma admirável profusão de flores e frutos, que<br />
o capricho inteligente da arte derramou com largas mãos, do bojo talvez de uma<br />
cornucópia que também ali se enxerga. Que magnífica cortina de cetim verde nos<br />
recata os mistérios da cena, com sua rica barra de ouro, e como está gentilmente<br />
meio arregaçada por laços e cordões do mesmo luzente metal que a terra cria!<br />
Defronte, a grande tribuna, igualmente recatada, desdobra as vistas já fatigadas de<br />
tantos esplendores, o seu largo manto de veludo cremesim. 35<br />
Tudo isto porém seria nada, se este esplêndido edifício não palpitasse<br />
e respirasse no bulício e animação das centenas de espectadores que o enchem e<br />
atulham, do fundo à sumidade. Ali está, nem mais nem menos, a princesa Callimacki,<br />
Embaixatriz da Sublime Porta, que tanto relevo dera em Paris aos bailes do Eliseu;<br />
no camarote imediato, a branca e delicada Amina, desta feita antes encantadora<br />
e feiticeira, que encantada; mais avante a majestosa Juno, e a volumosa Ceres,<br />
um tanto crestada e trigueirinha, porque tendo ado-tado o sistema de agricultura<br />
brasileiro, andou talvez a presidir à queima dos roçados; do lado oposto, e frente<br />
a frente, a cruel Tormenta com seu olhar duro e abrasador; e Força-dos-Corações,<br />
lânguida e voluptuosa, mas não menos perigosa que a terrível companheira. Lá<br />
a descubro também, a graciosa Hebe, vertendo, dos rubicundos lábios, o riso e a<br />
mocidade. Só não sabia que a amável copeira dos deuses se tinha deixado atar pelo<br />
Himeneu àquele reforçado Tramontano que lhe fica ao lado.<br />
34 Terpsícore, Melpômene e Talia, respectivamente. Drama mofador: a comédia.<br />
35 Cremesim: variante (arcaica) de carmesim.<br />
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Estava ali também sublime e dino, 36 repimpado ora num, ora noutro<br />
camarote, o nosso reverendo e impreterível Padre Camilo, que nunca faltou nas<br />
grandes ocasiões.<br />
Era a Grécia, em suma, o Maranhão, o Olimpo e o Oriente em peso que<br />
se tinham dado rendez-vous 37 para aquele templo das musas e das artes; eram<br />
deusas, belezas, e huris de toda a casta; e eu seria tentado a julgar-me no meio de<br />
algumas das mil e uma noites, se bem, firme em meu conceito e entendimento,<br />
não visse que ao contrário era uma noite só que valia como mil.<br />
Pelas sagradas barbas do Profeta! Pois não é o próprio glorioso califa<br />
Aaronel-Raschid que acaba de assomar à tribuna imperial em toda a majestade<br />
do seu venerável aspecto? Ah! Tímon, prostrado, rendido, e transformado, estava<br />
outro inteiramente, e como se envelhecera nos hábitos de um cortesão, ergueu-se,<br />
e quase dum salto, pôs-se no salão onde o mesmo luxo e bom gosto que vira na<br />
sala do espetáculo o surpreenderia agradavelmente, se ainda a surpresa pudesse<br />
realizar-se naquela noite memorável. Uma multidão alegre, ruidosa e descuidada<br />
se cruzava em todos os sentidos, cortando, girando, e circulando a sala, e só Deus<br />
sabe que sentimentos me saltearam quando dei com os olhos nos triúnviros,<br />
túmidos de orgulho e rindo à socapa, de verem em que tinha disparado o arrojo<br />
de tantos Sansões, ainda há tão pouco furiosos e resolutos a enterrar-se com eles<br />
nas ruínas do edifício! Desviei-me prontamente, e penetrei o augusto camarim,<br />
arredando com o mais profundo acatamento o reposteiro de riquíssima caxemira<br />
primorosamente bordado.<br />
O interior daquele mimoso tabernáculo concentra e resume todo o luxo<br />
esparso pelas mais partes do edifício; um aveludado tapete amacia o pavimento;<br />
as paredes, forradas de finíssimo papel dourado; o teto branco, com molduras de<br />
36 Dino: digno. O verso é d’Os lusíadas (Canto I, 22) de Camões.<br />
37 Se tinham dado rendez-vous: haviam marcado encontro.<br />
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ouro, deixa ver no centro um belo florão, onde o ouro brilha igualmente.<br />
O califa contemplava a plateia, naturalmente satisfeito da pública<br />
felicidade; e quando, ao voltar-se, deu com os olhos em mim, um amável sorriso<br />
pairou-lhe nos lábios, como para adoçar o entono da majestade. “Comendador dos<br />
Crentes (lhe disse Tímon, adiantando-se respeitoso, e curvando-se quase a tocar<br />
as pontas das suas chinelas escarlates), permitiu Alá que no glorioso reinado de<br />
Vossa Grandeza o império próspero e florescente visse a tantos e tão pasmosos<br />
melhoramentos, como a regeneração do carnaval pela introdução das máscaras,<br />
e a abertura e remoçamento deste templo, ainda há pouco fechado sob sete selos,<br />
fétido, sórdido e imundo. O povo se diverte, Senhor, e para que o faça, não é mister<br />
que Vossa Grandeza o mande, sob pena de ter a cabeça cortada, como usava o<br />
magnífico Paxá que com o seu Urso brilha no drama do espirituoso Scribe; 38 basta<br />
um leve e gracioso aceno, e eis os risos, os jogos e folguedos que brotam como as<br />
flores, em perene primavera. Deixai que se evaporem em ríspidos e agros queixumes<br />
esses espíritos tristonhos que em tudo acham que notar e repreender, e à própria<br />
alegria seriam capazes de vestir de luto e dó, emprestando-lhe a desconsolação<br />
e desabrimento de que andam eternamente saturados. Enquanto eles cumprem<br />
assim o seu mísero fadário, cantem os fiéis afortunados o harmonioso e pátrio<br />
sabiá e a palmeira airosa que lhe serve de pouso; 39 invadam, passeiem, logrem e<br />
admirem o tempo, e mormente esses excomungados artigos de fundo de má morte,<br />
que seriam a nossa perdição, se aqui não viéssemos achar a salvação. Ah! Talvez<br />
não tardem alguns momentos, e venha a dança com seus vertiginosos rodopios<br />
pôr a coroa e remate a tanto prazer.”<br />
O califa sorriu-se, mas notando com aquela alta perspicácia que o<br />
caracteriza os olhares expressivos que eu lançava aos ângulos desguarnecidos<br />
38 O espirituoso Scribe: Eugène Scribe (1791-1861), autor de centenas de peças para o teatro, celebradíssimo em seu tempo, hoje<br />
quase completamente esquecido. O urso e o pachá era o título de uma opereta deste autor, encenada pela primeira vez em 15 de<br />
março de 1842, num hospital para doentes mentais, na França.<br />
39 Alusão a Gonçalves Dias e à sua Canção do Exílio.<br />
Índice<br />
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do camarim: “Não vês aqui”, disse, “as afamadas tortas de queijo, e os deliciosos<br />
pães-de-ló de macaxeira com que o pasteleiro imperial, o príncipe Breddedin<br />
Hassan, costuma a fazer vergar os nossos bufetes e aparadores, porque a pressa,<br />
por uma parte, e a sua eternidade, por outra, não permitiram que se aprontasse<br />
este confortável ingrediente do grande festim. Porém, (acrescentou com bondade)<br />
aqui tens um copo de água fresca e pura do soberbo e caudaloso Eufrates.”<br />
Tímon o sorveu de um trago, com não menos avidez que reconhecimento,<br />
e apartou-se, fazendo mil reverências e zumbaias, 40 mais ao modo oriental que ao<br />
grego, e tanto mais satisfeito e esperançado, que o califa em sua presença deu as<br />
mais terminantes ordens para que da verba de eventuais se tirasse o necessário<br />
para fazer-se e distribuir-se doces e confeitos pelo povo. 41<br />
Debruçado outra vez às grades de ferro do meu camarote, como esquecido<br />
de tudo quanto me arrastara àquele lugar, por então só vi a multidão alegre e<br />
fascinada, sem que o som de não sei quantas trombetas e timbales, e os rufos de duas<br />
caixas de guerra da or-questra, fossem cabais a despertar nela do profundo letargo<br />
em que jaziam os sentimentos belicosos com que para ali entrara. Longe disso,<br />
estava de tão boa feição que, erguido o pano, o dito mais sensaborão, os menores<br />
trejeitos e esgares, e quaisquer desastradas cambalhotas dos sereníssimos atores<br />
que por sobrenome não pecam, desafiavam e arran-cavam explosões enormes<br />
de palmas e aplausos, a cujo ruído, Tímon, o pobre Tímon, meio desperto, meio<br />
dormindo, só tinha força para suspirar, e dizer no seu foro interior: Ó atenienses,<br />
ó povo espirituoso e sem igual!<br />
Em um dos intervalos, sem saber-se como nem como não, armou-se com a<br />
rapidez do raio uma numerosa quadrilha no salão. Os que se impacientaram com este<br />
inopinado acontecimento (e segundo o pude colher de verídicas e desapaixonadas<br />
40 Zumbaias: mesuras, cumprimentos afetados, salamaleques.<br />
41 Pelo povo: para o povo, por entre o povo.<br />
Índice<br />
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informações, foram quase todos os que não conseguiram entrar na quadrilha) se<br />
derramaram depois cá por fora em mil várias conjecturas sobre a genuína causa<br />
dele, sendo que, dos meus confrades folhetinistas, uns o atribuem à falta de juízo,<br />
e outros a gosto mau e pior. Nada disso: a razão de todas estas aéreas chocalhices,<br />
é que poucos escrevem a história com o critério e sisudez que ela requer, e Tímon<br />
usa. É o caso. Estará o respeitável público lembrado que, a pedido meu, e para<br />
a vindoura festa dos Remédios, 42 encomendou ao Sr. Comendador Porto para o<br />
Oriente o famoso corno de Oberon; 43 entretanto havia todo mundo, engolfado nas<br />
distrações e susto da atualidade, perdido inteiramente de vista este im-portante<br />
negócio, mas o Sr. Gamboa, que não deixa passar contrabando ou camarão pela<br />
malha, e que, para não ser abelhudo, já levou para o seu tabaco, confiou-me debaixo<br />
de segredo que a encomenda veio no iate do príncipe Labanoff, em um rico estojo,<br />
e dentro de um baú de Moscóvia dos mais ordinários, para não desafiar suspeitas.<br />
Parece que na lida e barafunda dos últimos aprestos do Teatro, um dos triúnviros<br />
(não farei ao publico a injúria de supor que seja necessário nomear-lho para que o<br />
conheça) o esqueceu ali por acaso; e eis senão quando, tendo de tocar a banda de<br />
música dos Educandos 44 naquele intervalo, um dos meninos, descuidado e sem<br />
malícia, em vez do seu, embocou aquele inu-sitado instrumento. Agora o verão:<br />
salta o califa com toda a sua corte para o meio da sala, e saltam com ele, como<br />
tocados de súbita vertigem,<br />
Velhos e moços, donas e donzelas, 45<br />
42 A festa dos Remédios acontecia todos os anos, em outubro, no largo frontal à igreja do mesmo nome, hoje Praça Gon-çalves<br />
Dias. A seu respeito, João Lisboa escreveu (15.out.1851) um folhetim em que a descreve “a mais popular desta boa cidade de São<br />
Luís”. (Ver Obras, 4º v. 3. ed. São Luís: Alumar, 1991, p. 307-25).<br />
43 O famoso corno de Oberon: João Lisboa escreveu no folhetim A Festa de Nossa Senhora dos Remédios: “Sr. Comendador<br />
Porto, meu senhor, mande vir, por quem é, o corno de Oberon para a festa do ano que vem, e não olhe para despesa, pois se for<br />
indispensável, fico que a Assembleia Provincial vote uma prestação condigna a tão importante melhoramento...” (Obras, v. cit.,<br />
p. 324-25). A personagem Oberon vem de uma longa tradição de canções de gesta medievais e foi aproveitada por vários autores,<br />
entre eles os dramaturgos Shakespeare e Wieland (mencionado mais à frente neste texto) e o músico Carl Maria von Weber.<br />
O corno (fagote) de Oberon tinha o condão mágico, quando soado, de transportar pessoas para lugares distantes.<br />
44 A banda...: da Casa dos Educandos Artífices, instituição criada pelo governo da Província do Maranhão pela lei nº 1<strong>05</strong>, de<br />
23.ago.1841, para a educação profissional de meninos pobres.<br />
45 Velhos e moços...: verso d’Os lusíadas (Canto VII, 49) de Camões.<br />
Índice<br />
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todos com juvenil despejo, e animados de inaudito furor dançante, tal e qual como<br />
aconteceu em Bagdá, no tempo de Carlos Magno, segundo fielmente refere o erudito<br />
Wieland. E a prova de que foi esta a verdadeira causa do prodígio, e não outra, está<br />
em que mal o triúnviro supramencionado soube da folia, e atinando com a origem<br />
dela, arrancou o condão da boca do educando, para logo, e com não menor rapidez<br />
se dispersou toda a festival comitiva, esgueirando-se cada um, inerte, encolhido<br />
e cabisbaixo, como quem fora apanhado onde não supunha, ou acordava de uma<br />
embriaguez de ópio ou champanhe.<br />
Restabelecida por esta forma a verdadeira história, continuo a narração<br />
das minhas variadas impressões nesta longa e prodigiosa noite.<br />
No fim do espetáculo, cuja descrição e panegírico guardo para escrever<br />
lá para as calendas gregas, depois de mais bem informado e de dormir um pouco<br />
sobre a caso, no fim, digo, apareceu o ator Lisboa para cantar uma ária do Átila de<br />
Verdi. 46<br />
Neste ponto me é forçoso fazer duas pequenas digressões. O que pensará<br />
o respeitável público se lhe eu disser que o nosso amigo João Augusto, enganado<br />
pelas aparências falazes do anúncio triunviral, porfiou comigo que era Tímon quem<br />
ia cantar, a convite do califa, e por ser Dia d’Anos? Pois sucedeu tal qual como lhe<br />
conto, e já agora estou bem capacitado de que o tal anúncio trazia com efeito água<br />
no bico...<br />
A outra digressão resolve-se numa apologia toda pessoal. Por ocasião<br />
do meu folhetim dos Remédios, muitos invejosos do grande mérito da rainha<br />
do canto 47 cuidaram de rebaixá-lo, assoalhando que Tímon não tinha voto na<br />
46 João Lisboa menciona peças teatrais de aparecimento recente: a ópera Átila, de Verdi, foi levada à cena pela primeira vez em<br />
1846 (17.mar.).<br />
47 No folhetim A Festa de Nossa Senhora dos Remédios, João Lisboa diz que a rainha do canto é dotada de voz “melodiosa, elevada,<br />
extensa, flexível, variada, adaptada a todos os tons, natural sobreudo, fácil, espontânea, pura e agradável como a nascente que<br />
desliza e murmura entre floridas e cheirosas moutas” e “em estilo de pacotilhas e miscelâneas se chama a Exma. Sra. D. Rosa<br />
Laura de Sousa Rego, mas a quem Tímon em seu estilo desalinhado e singelo, mas respeitoso, chamará D. Rosinha Leles, como<br />
sempre a ouviu chamar.” (Obras, v. cit., p. 313).<br />
Índice<br />
88 / 125
matéria, pois, a respeito de música, entendia tanto como de lagar d’azeite. 48<br />
Calúnia despejada e conhecida por tal! O Maranhão sabe muito bem<br />
que frequentei com grande aproveitamento a escola de cantochão do Reverendo<br />
Joaquim Francisco, e, quando não fosse assim, Tímon podia amar a música como<br />
qualquer adora o sol fulgurante sem entender de astronomia, e como todos amam<br />
o perfume e matiz das flores, o murmúrio da fonte, o sorriso das belas e a gentileza<br />
e travessura da infância, sem preten-sões científicas ou artísticas de qualquer<br />
espécie.<br />
Pois bem, o Sr. Lisboa apareceu e cantou no fim e foi tão freneticamente<br />
aplaudido, como o fora logo no princípio o Sr. Albuquerque, o apurado escultor e<br />
arquiteto a quem devemos as primorosas decorações internas e externas do Teatro.<br />
Em ambos mereciam sê-lo – di-lo Tímon, dizem os mais folhetinistas. E di-lo o<br />
público todo inteiro.<br />
Já narrei as maravilhas que criou a inteligência e a mão firme e delicada<br />
do Sr. Albu-querque, ajudado pelos seus discípulos, os educandos Lobato, Moraes<br />
Rego, Diniz e Gonçalves da Silva, que, como órfãos amparados da Província, bem<br />
era que se houvessem também chamado à cena e vitoriado; do Sr. Lisboa direi agora<br />
que, com voz firme, cheia e sonora, fez agradavelmente despertar a quem jazia<br />
sopitado sob as inertes papoulas de Morfeu. 49 Bravo, meu caro, macte animo! 50 E<br />
andar assim por diante, para nos compensar em parte ao menos a famosa peça e<br />
logração que sofremos nos coros rezados.<br />
Não permite a justiça que Tímon se retire sem fazer honrosa menção dos<br />
Srs. Bran-dão e Gregório, que pintaram as decorações cênicas; havia sobretudo<br />
uma sala de madeira cetim cor-de-rosa que me encheu as medidas, e me enganou<br />
48 Esta frase tem por si a autoridade do Dr. Moraes Sarmento, que a empregou em correspondência oficial. [Nota do Autor]. Lagar:<br />
tanque ou estabelecimento onde se espreme a oliveira e se apura o azeite.<br />
49 Inertes papoulas de Morfeu: o sono.<br />
50 Macte animo!: Coragem! Palavras de Públio Papínio Estácio (Silvae 5, 97), poeta latino do primeiro século cristão.<br />
Índice<br />
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muito mais que o cetim verde da grande cortina da boca. A tout seigneur, tout<br />
honneur. 51<br />
Ao acordar na tristonha segunda-feira que se seguiu, com o corpo todo<br />
doído e al-quebrado das fortes comoções da véspera, é que pude medir atentamente<br />
o abismo de abjeção em que tínhamos caído, os inimigos amoucos 52 da tirania,<br />
deixando-nos vencer sem outro combate que os das seduções e prestígios da arte,<br />
de que ela com tanta perfídia fizera uso! Mas quando já dava o caso perdido e<br />
sem remédio, disparou o canhão de São Marcos, e dentro um pouco fundeou o<br />
Baiana, trazendo no seu bojo destinos mais ponde-rosos que os de César, que<br />
vêm a ser notícias mais positivas e mais particularizadas da queda, fuga, e loucura<br />
do compadre Juan Manuel de Rosas, diretor-em-chefe de todos os teatro e bailes<br />
mascarados do Rio da Prata. 53 Imagine cada um como ficariam os triúnviros,<br />
principalmente quando depois souberam da formidável faxina que os chiripás 54<br />
haviam feito nos fautores da tirania argentina! Não direi, para não me acusarem de<br />
plagiário de um dos nossos jornais, que eles perderam a tramontana, 55 ou, vendo<br />
arder as barbas do vizinho, se deram pressa em pôr as suas de remolho; mas, para<br />
não ser menos pitoresco, sustento que ficaram varados, e abaixaram a grimpa, ou<br />
o topete, ao mesmo tempo que a nossa imortal rapaziada,<br />
Índice<br />
(ó mocidade!<br />
Flor que promete esperançosos frutos!)<br />
tomou gás, encheu o peito e pôs-se corajosamente a metralhar dos folhetins a<br />
atarantada tirania que, quando se cuidava segura e triunfante, via-se de novo<br />
quase derribada de suas altas esperanças. Nenhum porém me encheu tanto as<br />
51 A tout seigneur...: A todo senhor, toda honra.<br />
52 Amoucos: moucos, surdos.<br />
53 Juan Manuel de Rosas: (1793-1877): militar e ditador argentino. Figura muito controvertida em seu tempo, lutou pela unificação<br />
de seu país e enfrentou forças estrangeiras que disputavam o território do Prata.<br />
54 Chiripás: os gaúchos argentinos. Chiripá é uma vestimenta gaúcha. (A explicação dada pelo Autor linhas adiante é uma tirada<br />
de humor).<br />
55 Perderam a tramontana: desnortearam-se, desarcitularam-se.<br />
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medidas como O Observador. Pois, se ele tocou logo a corda da nacionalidade, a<br />
mais melindrosa que pode haver no coração de um povo! Que precisão havia de<br />
se ir apanhar o rebotalho de Lisboa, quando o tínhamos aqui a rodo, e a pontapés,<br />
nossos caros patrícios, e porventura até correligionários? “Ruim por ruim (diz<br />
ele, com enérgica e ríspida onomatopeia, própria a eriçar a grenha ferrenha do<br />
triunvirato), ruim por ruim, e tanto por tanto, antes desse o nosso dinheiro para<br />
os nossos, que precisam dele, mas esses foram repelidos!...”<br />
Antes que passe adiante, ser-me-á necessário definir o que seja o chiripá,<br />
pois já vejo de todos os lados os meus amáveis leitores a inquirir-mo, e por outra<br />
parte não convém que a posteridade, ao ler os meus imortais folhetins, entre a<br />
flutuar em conjecturas, a qual delas mais disparatada e extravagante. Confesso em<br />
primeiro lugar que inda nunca vi os tais chiripás, mas, do que tenho podido colher<br />
das relações oficiais e extraoficiais da Batalha de Monte Casero, 56 deduzo que são<br />
certos animais de dous pés e sem penas, que não vestem calças! Que vista e figuras<br />
engraçadas não hão de eles fazer, mormente na corrida e perseguição do inimigo!<br />
O espetáculo contudo não é inteiramente novo na história; e se o leitor benévolo<br />
quiser folhear a do generoso fidalgo da Mancha, lá achará que D. Quixote fez de<br />
chiripá quando nas asperezas de Sierra Morena se deu a fazer penitência pela sua<br />
incomparável Dulcineia, à feição dos Amadis e Beltenebros. A reserva e pudor do<br />
folhetim vedam dizer mais...<br />
Seja porém como for, o certo é que os nossos Juans Manuéis recuaram.<br />
Tímon, já confuso e envergonhado pela sua derrota, ficara de alto a baixo<br />
desarvorado, quando ao sair do Teatro ouviu a aterradora notícia de que o drama<br />
ia ser repetido no próximo domingo! Misericórdia! Cinco com cinco, dez mortais<br />
atos de virtude conjugal! Onde vai isto parar? Querem levar o povo a cometer algum<br />
excesso? No primeiro ímpeto de deses-peração, cheguei até a redigir o seguinte<br />
56 Batalha de Monte Casero: travada a 3 de fevereiro de 1852, pelo Brasil e Uruguai contra as forças de Oribe e Rosas, na Argentina.<br />
Índice<br />
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anúncio:<br />
– Tímon passa a chave do seu camarote, e promete acomodar-se em<br />
preço e prazo. Procurar no seu escritório, Rua do Sol, como quem vai para a Sé,<br />
à mão direita, sobradinho místico ao ourives José Feliciano.<br />
Porém as notícias do vapor mudaram a situação num abrir e fechar de<br />
olhos: os triúnviros assombrados ficaram com a cabeça de tal modo perdida, que<br />
não só deram de mão ao premeditado suplício de repetição, como mudaram o<br />
dia, anunciando que o espetáculo designado para domingo 21 (designado onde, se<br />
ninguém sabia de tal?) ficava transferido para quinta-feira.<br />
Cheio de júbilo rasguei o meu anúncio, e já agora vivo mais satisfeito,<br />
porque, se perdi as esperanças de extirpar completamente a tirania, as conservo, ao<br />
menos, de que os triúnviros abrandem consideravelmente do seu primitivo rigor.<br />
Talvez cheguemos todos, opressores e oprimidos, a um razoável meio-termo, em que<br />
os diversos elementos se equilibrem de um modo verdadeiramente constitucional-<br />
representativo. Nada de conspiração e pateadas (contra a Diretoria, se entende),<br />
nada de artigos e folhetins acerbos; mas, em desconto, seja permitido ao menos aos<br />
espectadores de camarotes o levarem os seus chapéus de sol, e uma ama para as<br />
crianças, aqueles que as tiverem. Para longe esses abomináveis suplícios em cinco<br />
atos, que operam pelo torpor, como a cegude 57 ateniense, e o que se diminuir nos<br />
atos homicidas pode muito bem acrescentar-se no número de pessoas que cada<br />
assinante queira ou possa levar em sua companhia. Para que caluniar o gênero<br />
humano, suspeitando abusos em tamanha escala? Pois, para pôr em estado de<br />
sítio a meia dúzia de parasitas que na roda do ano não fundiriam quase nada, vale<br />
a pena de incomodar e vexar o numeroso e brioso povo de assinantes? Lembro<br />
até à Comissão Diretora um meio que, com ter sido já muitas vezes usado pelos<br />
maiores potentados, não deixa por isso de ser original, engenhoso e eficaz para<br />
57 Cegude: cicuta<br />
Índice<br />
92 / 125
o efeito requerido, sem quebra aparente da sua autoridade: não revogue as leis,<br />
mas faça a vista grossa, e abrande na execução. Aqui para nós, que ninguém nos<br />
ouve, cuidam que não sabemos que uma alta personagem, sofismando um artigo<br />
claríssimo das Constituições e Regimentos, saboreou voluptuosamente o uso de<br />
se fumar, dizendo que podia fazê-lo da janela, e para o ar livre e isento de toda<br />
humana sujeição?<br />
E pois que as cousas vão já tomando um tom e aspecto amigável, de que<br />
já também se vai ressentindo a linguagem ora mais branda deste folhetim, direi<br />
o que entendo sobre certos pontos controversos, com aquela imparcialidade e<br />
desinteresse que sempre caracterizaram os meus escritos.<br />
Tímon tem ouvido conversar e discutir sobre tais e tais peças de caráter,<br />
sobre tal dama central, &&. Sabidas as contas, as tais peças de caráter são essas<br />
soporíferas maçadas, que a Diretoria já lançou a um canto, preferindo-lhes peças<br />
curtas, vivas e alegres, onde é mais fácil suportar a... Mudemos antes de conversa.<br />
Damas centrais são umas certas vete-ranas que, no longo curso de suas campanhas<br />
teatrais, têm conseguido adquirir tanta glória como sisudez e obesidade; eis quanto<br />
meu juízo alcança a tal respeito. Sigo o voto da grande maioria que prefere damas<br />
litorais ou de beira-mar, isto é, moças, esbeltas, vivas e aéreas.<br />
Uma boa cópia de censores 58 (e são os mais moderados) assinalam sim<br />
os erros da Comissão, mas não os imputam a dolo e má vontade, senão a falta<br />
de experiência e conhecimentos práticos, pois nunca viajaram para ver teatros.<br />
Tímon vai muito para aí, e toma a confiança de lembrar que podiam incumbi-lo de<br />
uma missão a respeito fazendo-o viajar pelas principais cortes da Europa, a fim de<br />
surpreender os mistérios da ciência e da arte no seu próprio santuário e, por assim<br />
dizer, em flagrante, não podendo a missão ser de mais de seis nem de menos de<br />
quatro contos de réis por ano (afora as ajudas de custo), porém com a condição<br />
58 Uma boa cópia de censores: na vigência do Império, no Brasil, as obras teatrais eram exibidas a uma comissão de censores<br />
antes de serem encenadas.<br />
Índice<br />
93 / 125
essencial, sine qua non, de no fim da viagem ser obrigado a vir administrar o Teatro<br />
com ordenado nunca maior de 2:800$000 réis anuais. E de vez em quando deverá<br />
remeter extratos em boa letra<br />
Das constituições, leis, e costumes<br />
que for descobrindo por aqueles climas e ares novos.<br />
Ousará alguém dizer que seja caro e intempestivo o que proponho? Pois<br />
o Sr. Miró não nos está mais caro, e eu não tenho sobre ele os relevantes serviços<br />
prestados nos meus folhetins, e o ser brasileiro nato, posto que de origem grega?<br />
Invoco agora para aqui os saudáveis princípios de nacionalidade do colega d’O<br />
Observador. Dirão que tem família; pois eu já não deixei consignada nas páginas<br />
anteriores a formidável estatística da minha?<br />
Esta vantajosíssima proposta, ofereço-a com todo o respeito, obrigando-<br />
me, se for benignamente aceita, assinar termo de bem viver e de mais não tomar<br />
parte em algazarras antiordeiras. Entretanto que se não delibera sobre ela, me é<br />
forçoso pôr aqui remate a esta já longuíssima escritura. Aguardo-me para outra<br />
ocasião em que falarei, segundo a atenção que tiver merecido o meu projeto, mas<br />
em que continuarei a esforçar-me para dizer de tu-do, poupando nada obstante a<br />
sereníssima Companhia, e rendendo-lhe o culto do mais respeitoso silêncio.<br />
Índice<br />
Tímon<br />
(Do Publicador Maranhense, nº 1238, de 25 de março de 1852)<br />
94 / 125
EcOS DA VIDA E ImPORTÂNcIA<br />
DA OBRA HISTÓRIcA DO<br />
mARANHENSE JOÃO FRANcIScO<br />
LISBOA NO SEGUNDO cENTENÁRIO<br />
DE SEU NAScImENTO<br />
É uma feliz coincidência que o<br />
Maranhão, no mesmo ano em que<br />
celebra o IV Centenário da funda-<br />
ção de sua capital pelos franceses<br />
de Daniel de La Touche, Sieur de<br />
La Ravardière, comemore também<br />
o Bicentenário de nascimento de<br />
João Francisco Lisboa, filho, que<br />
foi, dos mais ilustres de sua terra, e<br />
a quem, neste ensaio, relembrare-<br />
mos, em obsequiosa homenagem,<br />
como homem público de exemplar<br />
integridade moral e – em perfeita<br />
coerência – como um exemplo de<br />
probidade na manipulação da lín-<br />
Índice<br />
Antônio Martins de Araújo<br />
gua vernácula. Estátua de João Lisboa na Praça João Lisboa - São Luís/MA<br />
95 / 125<br />
Foto: Albani Ramos
Uma vida exemplar<br />
João Lisboa nasceu aos 22 de mar-<br />
ço de 1812, na freguesia de Nossa Se-<br />
nhora das Dores do Itapecuru-Mirim,<br />
Maranhão, de abastada família de pro-<br />
prietários rurais.<br />
Tendo iniciado estudos de primei-<br />
ras letras em São Luís, abandonou-os<br />
aos <strong>11</strong> anos, obrigado, pela morte do<br />
pai, a entregar-se aos cuidados dos<br />
avós, no interior da Província. Aos 15<br />
anos, foi caixeiro de uma casa de co-<br />
mércio são-luisense. Mas já aos 17<br />
anos, em 1829, encontrou o caminho<br />
certo da vocação que haveria de con-<br />
sagrar-lhe o futuro: trocando o comér-<br />
cio pelos estudos humanísticos, fez-se<br />
aluno particular de Francisco Sotero<br />
dos Reis, o afamado latinista e gramá-<br />
tico exigente.<br />
João Lisboa chegou à juventude em<br />
momentos agitados do Brasil recém-<br />
-independente. No Maranhão, onde<br />
predominava a presença portuguesa,<br />
precisava-se de pouco pretexto para<br />
que velhos desentendimentos ainda<br />
dos tempos do Estado Colonial ganhas-<br />
Índice<br />
sem as ruas e as páginas da imprensa,<br />
então incipiente, aqui e em todo o País.<br />
Destaque-se o Sete de Abril, a abdica-<br />
ção de D. Pedro I, em 1831. O retorno<br />
do impetuoso governante a Portugal<br />
de tal modo fez recrudescer a animo-<br />
sidade dos brasileiros em ralação aos<br />
portugueses, que, a 13 de setembro da-<br />
quele ano, a força pública e o povo do<br />
Maranhão exigiam do presidente pro-<br />
vincial, Araújo Viana – o Visconde, de-<br />
pois Marquês, de Sapucaí, hoje famoso<br />
pela praça que lhe consagra o nome nos<br />
desfiles das escolas de samba no Rio de<br />
Janeiro –, a destituição de todos os por-<br />
tugueses, mesmo os naturalizados bra-<br />
sileiros, dos empregos que tinham, em<br />
razão do artigo 6º da Constituição do<br />
Império, e a consequente deportação<br />
deles para Portugal. Entre os signatá-<br />
rios do documento em que reivindica-<br />
vam tal medida, encontrava-se o jovem<br />
Lisboa, de apenas 18 anos de idade, e<br />
que no protesto se associara ao parente<br />
José Cândido de Moraes e Silva, conhe-<br />
cido como O Farol, por antonomásia<br />
tomada ao Farol Maranhense, jornal<br />
que fundara, de ferrenha oposição ao<br />
96 / 125
governo. A reação não se fazendo espe-<br />
rar, Araújo Viana perseguiu Moraes e<br />
Silva, forçando-o a suspender a publi-<br />
cação e homiziar-se alhures.<br />
Pois, naquele interregno – agosto<br />
de 1832 –, não hesitou João Lisboa em<br />
continuar o trabalho d’O Farol, fundan-<br />
do o jornal O Brasileiro (que circulou de<br />
24.8 a 16.<strong>11</strong>.1832). E, logo, com o fale-<br />
cimento do bravo publicista, tomou-lhe<br />
o posto e fez reaparecer o Farol Ma-<br />
ranhense, que ele ainda manteve por<br />
sete anos (de 22.<strong>11</strong>.1832 a 29.10.1839),<br />
tempo em que também passou a dirigir<br />
e editar o Eco do Norte (de 3.7.1834 a<br />
22.<strong>11</strong>.1836).<br />
Diante da subserviência dos peri-<br />
ódicos maranhenses a Araújo Viana,<br />
Lisboa catalisou a opinião pública em<br />
favor do entendimento entre os vários<br />
partidos que primavam em digladiar-se<br />
encarniçadamente entre si.<br />
Em novembro de 1835, colhendo<br />
frutos de suas campanhas jornalísticas<br />
e interrompendo a luta que travava nes-<br />
sa arena, aceitou servir como Secretário<br />
do Governo Provincial, na presidência<br />
Índice<br />
do Dr. Antônio Pedro da Costa Ferrei-<br />
ra, o Barão de Pindaré. Por duas vezes,<br />
em seguida, elegeu-se deputado à As-<br />
sembleia Provincial maranhense, onde<br />
defendeu com empenho a organização<br />
e a ampliação da instrução pública.<br />
Porém, o assassinato, em Caxias,<br />
do líder do Partido Liberal, Teixeira<br />
Mendes, o devolveu às lides jornalís-<br />
ticas. Diante do desinteresse da au-<br />
toridade governamental em punir os<br />
assassinos de Mendes, Lisboa exone-<br />
rou-se do rendoso cargo com que hon-<br />
rosamente provia a sua subsistência e<br />
à dos seus familiares, para, a 2 de ja-<br />
neiro de 1838, iniciar a publicação da<br />
Crônica Maranhense (de 2.1.1838 a<br />
24.3.1841), baluarte de suas crenças<br />
liberais e um dos periódicos de maior<br />
prestígio na imprensa maranhense do<br />
século XIX.<br />
É quando estala a revolta da Ba-<br />
laiada, em fins de 1838. A despeito de<br />
os governistas o acusarem de ser o líder<br />
oculto do movimento, Lisboa funciona<br />
como apaziguador, recomendando a<br />
seus concidadãos esquecerem ódios e<br />
rivalidades, em favor da paz e do bem<br />
97 / 125
comum. Para manter a chama acesa de<br />
seus ideais, ele não vacila em consumir<br />
em pouco tempo, na publicação da Crô-<br />
nica Maranhense, a pequena heran-<br />
ça paterna que lhe coubera.Em 1840,<br />
apresenta-se candidato à Deputação na<br />
Corte. Nauseado, todavia, pelas pérfi-<br />
das manobras dos seus próprios corre-<br />
ligionários, desiste da pretensão. Dois<br />
anos depois, retorna às lides jornalís-<br />
ticas e funda o Publicador Maranhen-<br />
se, mantendo-o vivo e atuante por três<br />
longos anos com a mais rigorosa neu-<br />
tralidade política.<br />
Reeleito deputado à Assembleia<br />
Provincial, Lisboa profere no seio dela<br />
memoráveis peças oratórias, como o fa-<br />
moso Discurso sobre a Anistia dos Per-<br />
nambucanos Revoltosos, em favor do<br />
líder Nunes Machado, cujo cadáver foi<br />
velado por seus companheiros em uma<br />
capela distante do lugar do óbito, para,<br />
assim, evitar ainda mais desagradáveis<br />
contratempos.<br />
Conquanto, porém, haja produzi-<br />
do considerável cópia de artigos jorna-<br />
lísticos e proferido lapidares discursos<br />
nas assembleias políticas, Lisboa pere-<br />
Índice<br />
nizou-se em razão de suas obras, que<br />
fazem elevada figura, indistintamente,<br />
no campo da Historiografia e da Litera-<br />
tura.<br />
Dado eloquente para que se pos-<br />
sa apurar o timbre de seu caráter e sua<br />
personalidade é a publicação do folheto<br />
Jornal de Tímon, que ele fez distribuir<br />
mediante assinatura mensal, de 1852<br />
a 1854. O nome de Tímon lhe ocorreu<br />
da antiguidade grega. Esse personagem<br />
existiu de fato, e ficou na História como<br />
amigo das letras e homem virtuoso, ao<br />
mesmo tempo que rigoroso vigilante<br />
pela prática das virtudes públicas. Não<br />
era tido, por esse mister, como figura<br />
acessível e de gênio fácil, retratando-se,<br />
antes, como intimista e pessimista. Sob<br />
a máscara daquele Tímon antigo, o Tí-<br />
mon Maranhense pôde criticar acerba-<br />
mente os vícios e os costumes políticos<br />
de seus muito pouco éticos correligio-<br />
nários. Reportemo-nos, neste ponto, a<br />
um de seus editores: “João Francisco<br />
Lisboa, em todos os jornais que escre-<br />
veu, disse sempre o que pensava, tudo<br />
que pensava, com uma decência mode-<br />
lar de fundo e de forma, de pensamento<br />
98 / 125
e de expressão. “No fermentar de pai-<br />
xões nem sempre nobres que caracte-<br />
rizam o Período Regencial, quis que os<br />
partidos políticos professassem, reci-<br />
procamente, ‘a moderação, a genero-<br />
sidade a incorrupta probidade’, baten-<br />
do-se contra ‘a feroz anarquia’ de que<br />
estivemos muito perto, a fim de evitar o<br />
perigo do despotismo ignóbil e bárbaro<br />
de chefes militares que ordinariamente<br />
sucede aos demagogos.”[1]<br />
Quando se afastou da política, Lis-<br />
boa chegou a afagar por algum tempo o<br />
projeto de escrever um romance anties-<br />
cravagista. Diante, todavia, do grande<br />
sucesso alcançado por A cabana de Pai<br />
Tomás, da norte-americana Henriette<br />
Beecher Stowe, cedo desistiu da ideia.<br />
Em julho de 1855, vamos encontrá-<br />
-lo na Corte, em cuja redação do Correio<br />
Mercantil analisava os trabalhos foren-<br />
ses, e, no Jornal do Comércio, escrevia<br />
artigos sobre política em geral. No ano<br />
seguinte, será comissionado pelo Go-<br />
verno Imperial, para, em Lisboa, subs-<br />
tituir o conterrâneo Antônio Gonçalves<br />
Dias na recolha de documentos para a<br />
nossa História.[2]<br />
Índice<br />
Alquebrado pelas lutas incansáveis<br />
que travou em vida, a morte o surpre-<br />
endeu em Lisboa, Portugal, onde fale-<br />
ceu a 26 de abril de 1863.[3]<br />
Um monumento perene: a obra<br />
A grande obra de João Francisco<br />
Lisboa talvez tivesse ficado toda dis-<br />
persa e perdida nas folhas de jornal em<br />
que originalmente, e em grande parte,<br />
ele a escreveu, não fosse o desvelo de<br />
Luís Carlos Pereira de Castro e Antônio<br />
Henriques Leal, que a recolheram, re-<br />
fazendo, no que possível, os passos per-<br />
corridos pelo Autor. No conjunto, essa<br />
obra foi publicada em três momentos<br />
diferentes: 1864-65, em São Luís; 1901,<br />
em Lisboa; e em 1989-1991, inicial-<br />
mente em Brasília e novamente em São<br />
Luís. No período que vai da primeira à<br />
última dessas edições, títulos esparsos<br />
de sua autoria foram impressos mais de<br />
uma vez, especialmente o Jornal de Tí-<br />
mon, os Apontamentos, notícias e ob-<br />
servações para servirem à História do<br />
Maranhão e a Vida do Padre Antônio<br />
Vieira. Demos o rol de seus escritos,<br />
conforme aparecem na primeira edi-<br />
ção:<br />
99 / 125
Obras de João Francisco Lisboa,<br />
4 v. São Luís: B. de Matos, 1864-1865.<br />
Edição e revisão de Luís Carlos Perei-<br />
ra de Castro e Antônio Henriques Leal,<br />
com notícia biográfica de A. H. Leal, re-<br />
trato e assinatura do Autor no 2º v.<br />
Os quatro volumes estão assim dis-<br />
tribuídos:<br />
1º v. – Jornal de Tímon: Prospec-<br />
to; Eleições na Antiguidade; Eleições<br />
na Idade Média e Tempos Modernos;<br />
Partidos e Eleições no Maranhão; Tí-<br />
mon a Seus Autores; Considerações<br />
Gerais. 518p.<br />
2º v. – Jornal de Tímon: Aponta-<br />
mentos, Notícias e Observações para<br />
Servirem à História do Maranhão (in-<br />
trod.); Livro I; Livro II: Invasão Fran-<br />
cesa; Livro III: Invasão Holandesa;<br />
Livro IV: Paralelo das Invasões Fran-<br />
cesa e Holandesa; Livro V: Índios;<br />
Livro VI: Índios; Livros VII: Índios e<br />
Jesuítas; Notas. 517p.<br />
3º v. – Jornal de Tímon: Aponta-<br />
mentos, Notícias e Observações para<br />
Servirem à História do Maranhão<br />
(Prólogo; 20 capítulos; Notas). 575p.<br />
Índice<br />
4º v. – Advertência do Dr. An-<br />
tônio Henriques Leal (Maranhão,<br />
10.6.1865); Vida do Padre Antônio<br />
Vieira (na Europa); Vida do Padre<br />
Antônio Vieira (no Brasil); Biografia<br />
de Manuel Odorico Mendes; A Festa<br />
de Nossa Senhora dos Remédios (fo-<br />
lhetim); A Festa dos Mortos ou a Pro-<br />
cissão dos Ossos (folhetim); Discurso<br />
sobre a Anistia aos Pernambucanos<br />
Revoltosos; A Questão do Prata (ar-<br />
tigo político); Notas (em número de<br />
sete); Apêndice (Lições de Literatu-<br />
ra do Sr. Francisco Sotero dos Reis).<br />
760p.<br />
Vem ao caso lembrar o quanto João<br />
Lisboa era exigente consigo mesmo e<br />
com os seus escritos, bastando mencio-<br />
nar o destino que pretendia dar à Vida<br />
do Padre Antônio Vieira, que deixou in-<br />
completa (não obstante seja essa obra,<br />
na opinião geral, uma fonte básica, in-<br />
dispensável ainda hoje para estudar-<br />
mos a trajetória existencial e as realiza-<br />
ções do grande Jesuíta): “Estes papéis<br />
devem ser queimados, sem serem li-<br />
dos, quando eu o determinar.”[4] Por<br />
sorte, os editores e a família do Tímon<br />
100 / 125
Maranhense não lhe obedeceram à de-<br />
Um clássico da língua<br />
terminação.<br />
João Lisboa – assevera Octávio<br />
Tarquínio de Sousa – “continua a ser<br />
dos nossos maiores escritores, e não só<br />
poderoso, senão também fino, corre-<br />
to, culto, escritor que tem estilo e tem<br />
ideias, escritor a quem o gosto pelas<br />
letras não diminuiu o interesse pela<br />
vida.”[5] Esse mesmo autor traz a pa-<br />
lavra de “um dos nossos críticos mais<br />
poupados de elogios”, por ele não men-<br />
cionado, para quem Lisboa “pode ser<br />
apresentado como o clássico por exce-<br />
lência, sem afetações descabidas de pu-<br />
rismo nem o culto obsoleto do arcaís-<br />
mo.” (Ibidem).<br />
Mas o que é um clássico?<br />
Ainda em 1535, o português Diogo<br />
de Gouveia, docente do Colégio Santa<br />
Bárbara, de Paris, diz em suas Cartas:<br />
“Em imitar os escritores de boa lingua-<br />
gem, apreciados por sua pureza, e por<br />
isso chamados clássicos, é que apren-<br />
demos os segredos do bem escrever”,<br />
sendo um clássico “escritor de boa lin-<br />
Índice<br />
guagem, apreciado pela pureza de seu<br />
escrever, ou seja, digno de ser imitado.”<br />
Idêntica definição encontra-se numa<br />
nota do Professor Cunha Rivara, inser-<br />
ta nas Reflexões da língua portuguesa,<br />
de Francisco José Freire, publicação<br />
do século XIX. Ei-la: “Clássico é o au-<br />
tor insigne na pureza da linguagem, na<br />
propriedade da frase, na elegância do<br />
estilo.” [6]<br />
Muito a propósito, entretanto, ob-<br />
serva o mesmo autor que Plínio, o Moço,<br />
embora reconhecesse o valor dos clássi-<br />
cos antigos, “nem por isso, desprezava<br />
os bons escritores de seu tempo, nem<br />
reputava a natureza tão cansada e exau-<br />
rida, que já não pudesse produzir cousa<br />
capaz e digna de louvor.” (Ibidem).<br />
Assis Cintra, interpretando juízo<br />
de Whitney, amplia deste modo o signi-<br />
ficado do termo em exame: “Autor clás-<br />
sico, etimologicamente, quer dizer au-<br />
tor escolhido, seleto, puro, apreciado,<br />
que tem boas qualidades, pouco impor-<br />
tando que seja, ou não, lido em classes<br />
das escolas.”[7] E mais: “Muito embora<br />
haja quem chame de clássicos somen-<br />
te aos autores lidos nas classes, nós<br />
101 / 125
devemos dar ao vocábulo a sua acepção<br />
extra: autor de nota, autor seleto, autor<br />
escolhido, autor distinto, ou seja, mes-<br />
tre da língua – pela pureza, elegância e<br />
propriedade do dizer”. (Ibidem).<br />
Através de Cintra, ainda, recolhe-<br />
mos a palavra do Padre Antônio Vieira,<br />
transcrita na Vida de São Domingos, de<br />
Cáceres (p. xvi), e que afirma ser clás-<br />
sico “o estilo claro com brevidade, dis-<br />
creto sem afetação, copioso sem redun-<br />
dância, e tão corrente, fácil e notável,<br />
que, enriquecendo a memória, e afei-<br />
çoando a vontade, não cansa o enten-<br />
dimento [...] – dizendo o comum com<br />
singularidade, o semelhante sem repe-<br />
tição, o sabido e vulgar com novidade,<br />
e mostrando as cousas (como faz a luz)<br />
cada uma como é, e todas com lustre.”<br />
“Será clássico” – afirma Cunha<br />
Rivara – “aquele autor que concorrer<br />
para elevar a sua língua ao maior grau<br />
de perfeição em cada um destes dotes,<br />
ou souber servir-se retamente dela já<br />
aperfeiçoada, praticando, sem mancha,<br />
nos seus escritos, [...] a pureza da lin-<br />
guagem, a propriedade da frase, e a ele-<br />
gância do estilo”.<br />
Índice<br />
“Destes dotes”, quais? Detalha-os o<br />
comentarista de Francisco José Freire:<br />
– “a pureza da linguagem, para não<br />
usar de palavras ou estranhas à língua,<br />
ou reprovadas pelo uso razoável, e evi-<br />
tar assim os barbarismos, arcaísmos, e<br />
solecismos”; (Ibidem).<br />
– “a propriedade da frase, para que<br />
cada ideia seja exprimida pelas pala-<br />
vras ou frase que mais propriamente<br />
a representam, a fim de que o ouvinte<br />
ou leitor possa cabalmente entender o<br />
pensamento do autor;[8]<br />
– “a elegância do estilo, para que<br />
as palavras, escolhidas com as condi-<br />
ções das duas regras antecedentes, se-<br />
jam dispostas por tal ordem e propor-<br />
ção que indiquem na mente do autor as<br />
ideias arranjadas segundo as suas mais<br />
convenientes e luminosas reações”; (p.<br />
17).<br />
O próprio autor das Reflexões so-<br />
bre a língua portuguesa, recomendan-<br />
do escrever com “abundância de ter-<br />
mos cheios de propriedade e energia,<br />
afluência de expressões genuínas, nas-<br />
cendo tudo de um estilo claro e correto”<br />
102 / 125
(p 16), confirma suas palavras com as<br />
do mestre coimbrão José Vicente Go-<br />
mes (autor das oitocentistas Noticias<br />
dos monumentos da língua latina e<br />
dos subsídios necessários para o estu-<br />
do da mesma), segundo quem “o escri-<br />
tor, para ser clássico, necessita ter a lin-<br />
guagem clara, copiosa, breve, corrente<br />
e fluida, viva e versátil”; e “não basta<br />
cultivar a razão em abstrato, sendo pre-<br />
ciso juntar-lhe a observação do mundo<br />
positivo”. (p. 17-18).<br />
Em síntese, repetiremos Cunha Ri-<br />
vara: “Seja qual for a época em que um<br />
autor tenha escrito, seja ele de ontem<br />
ou seja dos séculos passados, será com<br />
justiça reputado por clássico, isto é, por<br />
mestre prático da língua todo aquele<br />
que souber servir-se dos dotes próprios<br />
e da perfeição dela, com as condições<br />
apontadas da pureza, da propriedade e<br />
da elegância”.[9]<br />
Ponhamos, agora, em confronto<br />
com o exposto, a obra deixada por João<br />
Lisboa, para avaliarmos do teor clássico<br />
de seus escritos. As nótulas filológicas<br />
que respigamos, sem intuito de apro-<br />
fundar análise, poderão ajudar-nos na<br />
Índice<br />
convicção de que o maranhense João<br />
Francisco Lisboa é até hoje considera-<br />
do um dos mais respeitáveis cultores da<br />
língua portuguesa.[10]<br />
Ei-las:<br />
Armar a (= pretender, candida-<br />
tar-se a): “é natural que o candida-<br />
to inglês arme à popularidade.” (I,<br />
121);[<strong>11</strong>]<br />
Composição (= reconciliação):<br />
“de repente e ao toque oficial da sine-<br />
ta compõe-se o tumulto.” (I, 126);<br />
Correr [a obrigação] (= incum-<br />
bir): “havia dez, a quem corria parti-<br />
cular obrigação de defender os inte-<br />
resses da pátria.” (I, 24);<br />
Entender em (= aplicar-se a):<br />
“entendeu Catão principalmente nos<br />
meios mais eficazes de extirpar a cor-<br />
rupção eleitoral.” (I, 61);<br />
Fazer cabedal de (= dar apreço<br />
a algo): “César, sem fazer cabedal de<br />
semelhante exigência, o fez passar a<br />
Catão.” (IÇ, 72);<br />
Fenecer (= terminar): “[esta<br />
imensa autoridade] pode-se dizer que<br />
103 / 125
feneceu de todo com a monarquia mi-<br />
litar dos imperadores.” (I, 39);<br />
Ficar (= garantir): “Se este bom<br />
imperador [...] volvesse hoje ao mun-<br />
do [...] fico que não se faria rogar para<br />
expedir circulares garantindo a liber-<br />
dade de voto.” (I, 80);<br />
Haver-se (= proceder): “depois<br />
de eleito, se houve de maneira no go-<br />
verno de seu rebanho, que a história<br />
o qualificou príncipe dos apóstolos.”<br />
(I, 104);<br />
Lição (= leitura): “a lição dos seus<br />
escritos nunca fora vedada” (VPAV,<br />
2<strong>11</strong>);<br />
Lustroso (= apreciável, distinto):<br />
“aspirando incessantemente a cousas<br />
mais árduas e lustrosas.” (VPAV, 7);<br />
Orelhas (= ouvidos): “foram cen-<br />
suradas algumas proposições com<br />
nota de serem uma contra o comum<br />
sentido católico, fátuas, temerárias e<br />
escandalosas; e outras ofensivas das<br />
orelhas dos pios e fiéis católicos.”<br />
(VPAV, 209);<br />
Praticar (= conversar): “à pro-<br />
Índice<br />
porção que iam entrando, começa-<br />
vam logo a praticar sobre o grande<br />
assunto do dia.” (I, 181);<br />
Prevenção (= cuidado): “todas<br />
estas prevenções legais não preser-<br />
varam a tribuna de ser invadida por<br />
gente corrompida e de baixa condi-<br />
ção.” (I, 28);<br />
Responder (= corresponder):<br />
“[...] sem que o número de represen-<br />
tantes respondesse de nenhum modo<br />
ao dos representados.” (I, <strong>11</strong>6);<br />
Ser parte (= servir de motivo):<br />
“Messala Corvino a Cássio chamava<br />
publicamente seu general; e não foi<br />
isso parte para que os não abastassem<br />
a ambos em honras e riquezas.” ;<br />
Sisudo (= sensato): “o povo, sá-<br />
bio e sisudo como nenhum outro, ele-<br />
gia então os cidadãos mais capazes.”<br />
(I, 34);<br />
Sujeito (= indivíduo, sem o sen-<br />
tido pejorativo): “celebrou-se o ano<br />
de 1694, no colégio da Bahia, um con-<br />
gresso provincial para o fim de eleger-<br />
-se um sujeito que fosse a Roma por<br />
procurador da província.” (VPAV, 257);<br />
104 / 125
Ter mão (= conter): “tende mão,<br />
meu caro, e não vos deixeis arrebatar<br />
assim pelo orgulho da vossa indispu-<br />
tável superioridade.” (I, 152);<br />
Conquanto, em geral, João Lis-<br />
boa não apreciasse arcaísmos léxico-<br />
-semânticos, expressões populares e<br />
formas sincréticas de qualquer tipo,<br />
veja-se este raro arcaísmo: efeituar (=<br />
efetuar) (I, 184); bem como o prefixo<br />
mal com valor intensivo (como no céle-<br />
bre soneto A Carolina, de Machado de<br />
Assis): “por sugestões do tio, mandou,<br />
o sobrinho, dar uns tiros em Antônio<br />
Brito, que saiu malferido e ficou depois<br />
aleijado de um braço (P.P.A.V., 247).<br />
Agora, um exemplo escoteiro e ori-<br />
ginal da adjetivação de substantivo, na<br />
expressão é bem (= é bom que seja as-<br />
sim): “depois do furor e da demência,<br />
bem era que a imbecilidade tivesse tam-<br />
bém a sua vez.” (I, 92).<br />
Outrossim, os pronomes indefini-<br />
dos tanto e quanto equivaliam a tão<br />
grande e quão grande, como neste pas-<br />
so: “tanta era a precipitação vertigino-<br />
sa dos sucessos.” (I, 99). Note-se aqui<br />
Índice<br />
o termo sucessos, como sinônimo de<br />
simples acontecimento.<br />
Além disso, os pronomes demons-<br />
trativos este/aquele, e os indefinidos<br />
um/outro, classicamente são substi-<br />
tuídos por qual, como no português<br />
quinhentista. Assim o fez aqui Lisboa:<br />
“qual diz que todo o seu empenho é<br />
manter a ordem, [...] qual se erige em<br />
campeão exclusivo de uma cousa vaga e<br />
indeterminada a que se chama a digni-<br />
dade da província; qual enfim declara<br />
que na província não houve, em tempo<br />
algum, partidos políticos.” (I, 107).<br />
Já a expressão a qual podia usar-<br />
-se por cada qual, como o fez aqui: “as<br />
leis ainda multiplicavam as dificulda-<br />
des, exigindo deles uma infinidade de<br />
condições, a qual delas mais rigorosa.”<br />
(I, 27).<br />
Labora em equívoco quem pensa<br />
que a expressão haver aí é uma simples<br />
tradução do francês y avoir. Os gran-<br />
des cultores do nosso idioma usaram-<br />
-na, como Lisboa o fez cá: “então o al-<br />
goz [...] declarou que já tinha feito o seu<br />
dever e certamente não havia aí outra<br />
1<strong>05</strong> / 125
de cegude.” (I, 35).<br />
Também labora em ultracorreção<br />
digna de reparo quem evita usar o ver-<br />
bo dever no pretérito perfeito. Lisboa<br />
sabia disso e elegantemente o empre-<br />
gou aqui: “Augusto, o primeiro dos im-<br />
peradores, não deveu o supremo poder<br />
a ato algum positivo de eleição regular.”<br />
(I, 82).<br />
O mesmo se diga sobre quem evita<br />
os particípios regulares ganhado e gas-<br />
tado, um dos quais aqui por ele usado:<br />
“[...] cuja proteção tinham ganhado.”<br />
(I, 29).<br />
Quanto aos advérbios, não ignorou<br />
ele que apenas não é só palavra de ex-<br />
clusividade, podendo classicamente ser<br />
usado com o sentido de dificilmente,<br />
raramente, como aqui: “apenas haverá<br />
esquadrinhador de antiguidades que te-<br />
nha notícia das três malogradas letras.”<br />
(I, 93).<br />
Os advérbios já, (a)inda, nunca e<br />
jamais servem de reforço ou intensifica-<br />
ção de orações superlativas, como aqui:<br />
“é em verdade, a mais vasta agremiação<br />
de homens que inda viu o universo.” (I,<br />
54).<br />
Índice<br />
A locução adverbial a bom recado<br />
pode significar sob vigilância, como<br />
aqui: “[...] passando a mão em 33 honra-<br />
díssimos eleitores, que puseram a bom<br />
recado, em uma estrebaria.” (I, 123).<br />
Outrossim, a locução adverbial a<br />
olho, redução de a olhos vistos, é a que<br />
aqui usa Lisboa: “crescia a olho o valor<br />
de seus produtos e drogas.” (VPAV., 51).<br />
Vejam-se aqui outras locuções ad-<br />
verbiais por ele utilizadas: de espaço<br />
(= demoradamente): “para o diante,<br />
acharmos ocasião de apreciá-lo mais de<br />
espaço e assento.” (I, 231); torna via-<br />
gem (= de volta, retornando): “entrou<br />
o vapor do Pará, já de torna viagem.”<br />
(I, 199); pela boca pequena (= baixi-<br />
nho): “[...] disse-lhe Catão, pela boca<br />
pequena, que não era este o primeiro<br />
emprego que o Sr. Quintiliano reduzia<br />
a dinheiro.” (I, 249); a pouco e pouco<br />
(= paulatinamente): “a cobiça dos ricos<br />
conseguiu, a pouco e pouco, despojar<br />
os pobres.” (I, 45).<br />
Também no uso das preposições e<br />
locuções prepositivas, Lisboa primou<br />
em seguir as pegadas dos clássicos.<br />
106 / 125
Ei-las: sob cor de (= a pretexto de):<br />
“levaram-lhe uma bolsa com seis mil<br />
dobrões de ouro, sob cor de os distri-<br />
buir com esmola.” (VPAV, 151); sobre<br />
(= mais do que): “João Fernandes Viei-<br />
ra com seis mil dobrões de ouro, sobre<br />
todos, é um herói digno de admiração e<br />
reconhecimento de nós outros brasilei-<br />
ros.” (VPAV, 95); Enfim, neste tópico,<br />
sobreleva notar este exemplo de inver-<br />
são eufônica da preposição com o pro-<br />
nome demonstrativo: “quero ver agora<br />
no (= o em) que dá a sua grande candi-<br />
datura.” (I, 181).<br />
Agora, apenas dois exemplos do<br />
uso clássico de preposições e/ou de lo-<br />
cuções prepositivas: por maneira que<br />
(= de modo que): “o tráfico eleitoral de<br />
compra e venda não se introduziu senão<br />
longo tempo depois [...] por maneira<br />
que nunca se pôde saber ao certo qual<br />
o romano que abriu o exemplo de cor-<br />
romper o povo e os magistrados.” (I, 4);<br />
entretanto que (= ao passo que): “nem<br />
por isso ambicioso algum cuidou ainda<br />
de perpetuar-se no poder, entretanto<br />
que a última constituição francesa, por-<br />
que proibia expressamente pudesse ser<br />
Índice<br />
reeleito [...], foi por isso rasgada pelo<br />
presidente.” (I, 141).<br />
Estes, os mais notáveis usos clássi-<br />
cos dessa classe gramatical.<br />
Já faz muito tempo que as vestais<br />
do idioma tentaram fechar as portas do<br />
português do Brasil a quaisquer em-<br />
préstimos, principalmente franceses.<br />
Ocorre que alguns desses empréstimos<br />
se aclimataram tão bem ao idioma que<br />
aqui praticamos, que o opulentaram, e<br />
hoje tornaram-se prata de casa. Veja-<br />
mos alguns deles, acolhidos por Lisboa:<br />
“a política nas províncias cifra-se<br />
toda [...] na banalidade das declama-<br />
ções.” (I, 94);<br />
“a chicana, os doutores e os magis-<br />
trados são os que governam.” (I, 161);<br />
“a negociação de que ele reza tivera<br />
lugar durante a primeira embaixada do<br />
marquês.” (VPAV, 106);<br />
“a este lugar pertence agora a nar-<br />
ração de uma das cenas mais tocantes<br />
destes três memoráveis dias.” (I, 174);<br />
Eis aí como Lisboa não tergiversou<br />
em acolher os galicismos naturalizados<br />
107 / 125
como brasileiros: banalidade, chicana,<br />
ter lugar (= realizar-se) e tocante.<br />
Embora outros tais pareçam gali-<br />
cismos, são lexias de boa cepa luso-bra-<br />
sileira, como fortuna (= riqueza): “basta<br />
uma pequena fortuna em propriedade<br />
territorial [...] para conferir o direto de<br />
voto.” (I, 30); letras (= cartas): “apenas<br />
haverá algum esquadrinhador de an-<br />
tiguidades que tenha notícias das três<br />
malogradas letras.” (I, 93); refusar (=<br />
recusar): “uma vez eleito, nunca refu-<br />
sava os cargos.” (VPAV, I, 34); render<br />
graças (= agradecer): “o feliz candidato<br />
corria imediatamente ao templo para<br />
render graças aos deuses.” (I, 20); su-<br />
jeito (= assunto): “sujeito do evangelho<br />
do dia não podia decerto ser a primi-<br />
tiva conversão da gentilidade.” (VPAV,<br />
376). “S. Exa. tinha asseverado a todo o<br />
mundo que nada pretendia da provín-<br />
cia.” (I, 165).<br />
Quanto à morfossintaxe, começa-<br />
rei com o seguinte passo, com que João<br />
Lisboa prefere elegantemente que a<br />
concordância verbal se faça com o ad-<br />
junto adnominal, que lhe está mais pró-<br />
ximo, a fazer com o núcleo do sujeito:<br />
Índice<br />
“um grande número de homens ilustres<br />
estão banidos da França.” (I, 145).<br />
Na regência verbal, à moda clássica,<br />
Lisboa preposicionava o infinitivo com<br />
função de objeto direto: “a Providência<br />
determinou de fazer, neste particular,<br />
um milagre que não cabia na humana<br />
previsão.” (VPAV, 98).<br />
Aqui, ele silencia o pronome se, tão<br />
usual nos dias de hoje: “entre os dias de<br />
exclusão, sobressai a dos cobardes.” (I,<br />
27).<br />
Neste outro passo, utiliza a dupla<br />
regência, que, embora condenada pelos<br />
puristas e gramatiqueiros, tem foros de<br />
clássica: “os seus interesses, quero di-<br />
zer, os da província dos quais um bom<br />
presidente não sabe nem é capaz de se-<br />
parar os próprios.” (I, 201).<br />
Vasta e variegada, a regência ver-<br />
bal manipulada por Lisboa. Eis aqui al-<br />
gumas passagens dignas de registro:<br />
Admirar algo a alguém: “o que ad-<br />
mira menos é que tais opiniões em tal<br />
matéria pudessem excitar as descon-<br />
fianças do sombrio tribunal.” (VPAV,<br />
204);<br />
108 / 125
Começar de (= começar a): “os mes-<br />
mos partidos começavam de agitar-se.”<br />
(I, 163);<br />
Deparar (= mostrar): como tran-<br />
sitivo indireto de pessoa: “veio depois<br />
Péricles, o mais brilhante e magnífico<br />
ambicioso que porventura nos depara<br />
a história.” (I, 23);<br />
Deparar com (= encontrar): “ha-<br />
veis de deparar com rasgos tais de vir-<br />
tude e heroísmo”;<br />
Fazer – como transitivo direto de<br />
coisa e indireto de pessoa: “César, refu-<br />
sando-a, lhe fez saber que estava resol-<br />
vido gastar a quantia maior.” (I, 70);<br />
Fiar-se (= confiar em): “muitos só<br />
dele se fiavam”;<br />
Haver mister (= necessitar) como<br />
transitivo direto: “tivesse a bondade de<br />
mandar-lhe os volumes das leis de Mi-<br />
nos e Licurgo, pois os havia mister.” (I,<br />
19);<br />
Servir de (= servir para): “referirei<br />
um caso que, pela sua mesma singele-<br />
za, serve de caracterizar a integridade e<br />
inocência daqueles tempos.” (I, 53);<br />
Índice<br />
Topar (= encontrar) como transiti-<br />
vo direto: “quantos o topavam iam logo<br />
bradando: ali vai um dos tais.” (I, 103);<br />
No século XX se gastou em vão mui-<br />
to papel e tinta com uma famigerada lei<br />
de atração dos pronomes átonos, até<br />
que o filólogo Antenor Nascentes mos-<br />
trou exemplarmente que isso era ape-<br />
nas uma questão de preferência rítmi-<br />
ca, ou mesmo de eufonia. Desdenhando<br />
dessas infrutíferas leis, corretamente<br />
Lisboa as ignorava por completo. Ob-<br />
servem-se estes exemplos: “nós vere-<br />
mos que o jesuíta esqueceu-se inteira-<br />
mente de suas cautelas por motivos que<br />
não chegaram ao nosso conhecimento”<br />
(VPAV, 146); “mas nem tal sacrifício e<br />
abandono havia, porque capitulava-<br />
-se também livre para a Bahia” (VPAV,<br />
73); “uma tentativa feita para este fim<br />
e que realizou-se nos princípios do ano<br />
de 1650, malogrou-se por motivos que<br />
não chegaram ao nosso conhecimento.”<br />
(VPAV, 146).<br />
Apreciemos por fim estas duas<br />
apossínclises e/ou metáclises, vale di-<br />
zer, colocação do pronome átono an-<br />
tes de uma palavra anterior ao verbo<br />
109 / 125
egente: “morto Tibério, Caio Graco,<br />
seu irmão, determinou seguir o exem-<br />
plo glorioso que lhe ele legara.” (I, 52).<br />
“O território [...] era o mais azado para<br />
receber avisos e socorros na Europa e<br />
para se o inimigo estender facilmente<br />
para os lados.” (VPAV, 92).<br />
Agora, umas elegantes elipses:<br />
– da preposição em antes do pro-<br />
nome relativo que: “um dia que Tibério<br />
Graco assistia no Capitólio” (I, 49);<br />
– do termo intensivo tal, na ex-<br />
pressão de tal maneira... que: “votou<br />
um ódio tão entranhável ao gênero hu-<br />
mano e de maneira o reputava entre-<br />
gue aos crimes e aos vícios que se paga-<br />
va mais do desprezo que da estima dos<br />
homens.” (I, 10);<br />
– do advérbio mais, já antes enun-<br />
ciado: “o povo desta feita, ao menos,<br />
mais moderado e prudente que seus<br />
inimigos, satisfez-se com esta pequena<br />
reforma.” (I, 46).<br />
Passemos agora a um pleonasmo<br />
elegante: do aposto dêitico este, segui-<br />
do da partícula afirmativa sim: “Os ins-<br />
trumentos de que Deus se serve, esses<br />
Índice<br />
sim, podem ser bons ou maus.” (VPAV,<br />
56).<br />
Cremos escusado seguir adian-<br />
te em nossa tentativa de provar mate-<br />
rial e insofismavelmente por que razão<br />
ainda hoje, no Brasil e em Portugal, o<br />
maranhense João Francisco Lisboa é<br />
considerado um dos mais elegantes e<br />
perfeitos conhecedores dos segredos e<br />
da opulência da quase “última flor do<br />
Lácio mui culta e bela”.<br />
Em conclusão<br />
Dando por encerrada nossa tarefa,<br />
recorreremos à tese com que o profes-<br />
sor Fernando Segismundo pretendeu<br />
conquistar a cadeira de História Ge-<br />
ral e do Brasil no Colégio Pedro II.[12]<br />
Destacarei dela os principais juízos crí-<br />
ticos sobre a obra do Timon Brasileiro,<br />
por ele relacionados da obra A pesqui-<br />
sa histórica no Brasil, de José Honório<br />
Rodrigues:[13]<br />
Francisco Adolfo Varnhagen consi-<br />
derava João Lisboa “o nosso primeiro e<br />
único historiador, o pai da nossa histó-<br />
ria”. (p. 70)<br />
<strong>11</strong>0 / 125
Antônio Henriques Leal, nanotí-<br />
cia biográfica que apôs à sua edição<br />
das Obras do Timon Brasileiro, afirma:<br />
“Lisboa tem todas as virtudes do perfei-<br />
to historiador”. (p. 64).<br />
Referindo-se às revoltas de Manuel<br />
Beckman, no Maranhão, e à da Praia,<br />
em Pernambuco, Graça Aranha admite:<br />
“Se João Lisboa fosse do nosso tempo,<br />
teria aprofundadamente explicado to-<br />
das essas revoltas pela fórmula da luta<br />
de classes que, intuitivamente, assina-<br />
lou”. (Vide Obras, p. 897-98).<br />
À p. 279 de sua obra A glória de<br />
César e o punhal de Brutus: Cinco per-<br />
sonagens na tormenta das derrotas,<br />
Álvaro Lins é taxativo quanto à veraci-<br />
dade do espólio histórico de João Lis-<br />
boa, “até hoje [...] o único historiador<br />
nosso em cujas páginas se sentem pal-<br />
pitar algumas das agitações da alma<br />
popular, algumas das pulsações do co-<br />
ração da nacionalidade que se ia e se vai<br />
formando.”<br />
À p. 86 de sua obra citada, expen-<br />
de com a devida cautela José Honório<br />
Índice<br />
Rodrigues seu juízo sobre a obra de Lis-<br />
boa: “Os resultados finais do trabalho<br />
do Maranhense em Portugal ainda não<br />
podem ser devidamente apreciados, por<br />
falta do inventário completo de toda a<br />
documentação.”<br />
À p. 232 do 4º v. da sua História do<br />
Brasil, relativo ao Império, Pedro Cal-<br />
mon considera Lisboa “o escritor mag-<br />
nífico que sobrepujou os do seu tempo<br />
pela pureza de sua prosa.”<br />
Enfim, deste modo o julga Nelson<br />
Werneck Sodré à p. 2<strong>11</strong> de sua História<br />
da literatura brasileira (3ª ed.): “Exis-<br />
tiu em Lisboa um entendimento, uma<br />
afinidade com a nossa gente, em senso<br />
de proporções, que denunciam a sua<br />
indiscutível superioridade sobre Var-<br />
nhagen.”<br />
Pela alta representatividade de seus<br />
autores, não podemos passar ao largo<br />
dos seguintes juízos críticos, alguns dos<br />
quais firmados por ilustres conterrâ-<br />
neos de nosso clássico escritor. Todos<br />
eles extraídos do opúsculo intitulado<br />
João Lisboa, organizados pela Comis-<br />
são dos Festejos do Centenário de João<br />
<strong>11</strong>1 / 125
Francisco Lisboa, constituída pelos<br />
saudosos maranhenses Cônego José de<br />
Ribamar Carvalho, Domingos Vieira<br />
Filho, Mário Martins Meireles e Ruben<br />
Ribeiro de Almeida (vd. Bibliografia).<br />
Ei-los:<br />
“O seu discurso foi [...] um impro-<br />
viso, e todavia que obra-prima de elo-<br />
quência! Desde então fiquei fazendo de<br />
Lisboa o juízo que ele realmente mere-<br />
cia, como um talento verdadeiramente<br />
superior, diante do qual eu podia cur-<br />
var-me, seguro de não ser o admirador<br />
de um charlatão; e digo que esse ho-<br />
mem num teatro mais folgado e numa<br />
época revolucionário, tão própria para<br />
fazer sobressair os dotes oratórios, se-<br />
ria, um Demóstenes, um Mirabeau, um<br />
O’Connel.” CORREIA, Frederico Jose.<br />
Um livro de crítica. Maranhão, ed.,do<br />
autor, 1878, p. 184)<br />
Neste passo, firmado por um dos<br />
maiores críticos de nossa literatura, se<br />
destaca o lado sarcástico do Jornal de<br />
Timon, saído da pena de nosso biogra-<br />
fado:<br />
“É essa obra, única na literatura<br />
Índice<br />
nacional, que principalmente distingue<br />
João Lisboa entre os nossos escritores.<br />
É uma sátira da melhor qualidade, do<br />
mais elevado espírito, cheia de humor,<br />
de graça e de imaginação. Nem o pessi-<br />
mismo do autor carrega o quadro, que<br />
é palpitante de verdade. O tom é em<br />
parte o de romance, e por mais de um<br />
toque, João Lisboa precedeu os nossos<br />
realistas e naturalistas. É um livro de<br />
humour, no melhor sentido anglo-sa-<br />
xônio da palavra.” (VERÍSSIMO, José.<br />
In Estudos de Literatura Brasileira.<br />
2ª. série (sem localização, editor e data;<br />
vide p. 6 do citado opúsculo).<br />
Eis aqui o que disse de nosso bio-<br />
grafado outro grande nome da crítica<br />
litrária brasileira:<br />
“Até hoje [João Lisboa] é o único<br />
historiador nosso em cujas páginas se<br />
sentem palpitar algumas das agitações<br />
d’alma popular, algumas das pulsações<br />
do coração da nacionalidade que se ia e<br />
vai formando.<br />
Varnhagen, Pereira da Silva, Melo<br />
Morais, Norberto e Silva, Joaquim Ca-<br />
etano, Cândido Mendes – são mudos<br />
<strong>11</strong>2 / 125
por esse lado. ROMERO, Sílvio, Histó-<br />
ria da Literatura Brasileira (sem loca-<br />
lização, editor e data; vide p. 7 do citado<br />
opúsculo)<br />
De um conspícuo historiador na-<br />
cional mereceu João.Lisboa. estas pa-<br />
lavras:<br />
“Deveria ter vivido [João Lisboa]<br />
noutro meio mais largo do que um meio<br />
de província, já porque, como escritor,<br />
foi ao âmago das questões que subme-<br />
teu ao seu exame espiritual, já porque,<br />
como homem, pairou sempre acima das<br />
intrigas, grandes ou pequenas. Vivendo<br />
longe dos meios mais adiantados, não se<br />
tornou excêntrico, nem sequer pedan-<br />
te. Foi um precursor da moderna escola<br />
científica da história, sem verbosidades<br />
ocas, sem chinesices ridículas e sem<br />
gongorismos filosóficos (LIMA, Olivei-<br />
ra, Parnamirim, fevereiro de 1919).<br />
“Não menos importante é a Vida<br />
do Padre Antônio Vieira, que deixou<br />
incompleta e que com excessivos es-<br />
crúpulos não julgava em condições de<br />
ser publicada. “Estes papéis devem ser<br />
queimados, sem serem lidos, quando eu<br />
Índice<br />
o determinar.” – disse em nota do seu<br />
punho no invólucro que os guardava.<br />
Obra inacabada, mas em que se sente o<br />
biógrafo à altura do grande jesuíta, bió-<br />
grafo e não panegirista. SOUSA, Otávio<br />
Tarquínio. Prefácio às Obras Escolhi-<br />
das, Rio de Janeiro, Améric Edit. 1946).<br />
Do Catálogo da Imprensa no Ma-<br />
ranhão, que vinha preparando à época,<br />
disse dele o saudoso humanista mara-<br />
nhense Domingos Vieira Filho:<br />
“Lisboa [...] não é um simples ca-<br />
ricaturista do grotesco que intencio-<br />
nalmente deformasse os traços de suas<br />
figuras pra com isso obter efeitos ines-<br />
perados. Não. Ele perquire a alma das<br />
criaturas, revolvendo-lhes o imo pra<br />
perscrutar-lhes os segredos. Utiliza an-<br />
tes a caricatura com meio hábil para<br />
personificar a condição humana em<br />
suas vicissitudes. Por outro lado, não<br />
fez humorismo jovial. Em seus retratos<br />
morais está bem mais próximo do riso<br />
amargo de Daumier do que da garga-<br />
lhada jogralesca de Hogarth...<br />
Enfim, o patriarca de nossa histo-<br />
riografia científica assim considera o<br />
<strong>11</strong>3 / 125
grande maranhense:<br />
“Exemplar na vida, no talento, no<br />
estilo, João Francisco Lisboa escreveu<br />
excelente trabalho sobre a colonização<br />
holandesa e magnífico e ponderado<br />
paralelo entre a colonização holande-<br />
sa e francesa no Brasil. Claro, seguro,<br />
austero, ele é bem o exemplo da matu-<br />
ridade na historiografia brasileira do<br />
século XIX”. (RODRIGUES, José Ho-<br />
nório. Historiografia e Bibliografia do<br />
Dom´nio Holandês no Brasil, Rio, ed.<br />
Do autor, 1949).<br />
Embora não exaustivos, diante de<br />
tão conspícuos e indiscutíveis juízos, os<br />
estudiosos de nossa história e de nosso<br />
vernáculo não podem deixar de apre-<br />
ciar as obras de João Lisboa, a fim de<br />
se enriquecerem culturalmente sobre<br />
nosso invejável e glorioso passado. So-<br />
bretudo, as novas gerações, pois, como<br />
afirmou Álvaro Lins, “o Mestre mara-<br />
nhense não podia continuar conhecido<br />
dos leitores de hoje apenas pelos elo-<br />
gios dos compêndios de literatura e por<br />
escassos trechos de antologia, ou esti-<br />
vesse quase a constituir um privilégio<br />
dos não muito numerosos pesquisado-<br />
Índice<br />
res de suas obras.”<br />
<strong>11</strong>4 / 125
REFERÊNCIA<br />
• ADRIÃO, Padre Pedro. Tradições clássicas da língua portuguesa. Porto Alegre: J. Pe-<br />
reira da Silva, 1945.<br />
lo, 1947.<br />
• CALMON Muniz de Bittencourt, Pedro. História do Brasil. 4º vol. O Império. São Pau-<br />
• CARVALHO, Cônego José de Ribamar; VIEIRA FILHO, Domingos; MEIRELES, Mário<br />
Mário Martins; e ALMEIDA, Ruben Ribeiro de. João Lisboa. São Luís, MA, S.E.N.E.C. , Departa-<br />
mento de Culltura do Estado do Maranhão, 1963. 24 p.<br />
• CINTRA, Assis. Os clássicos e o antigo vernáculo. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, 1921.<br />
• FREIRE, Francisco José (pseud. Cândido Lusitano). Reflexões sobre a língua portu-<br />
guesa. Lisboa: Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1842.<br />
• LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense. 2ª ed.: [Rio de Janeiro: Alhambra,<br />
1987], t. II, p. 2<strong>05</strong>-387.<br />
• LESSA, Pedro. João Francisco Lisboa. Conferências (1912-1913) da Sociedade de Cul-<br />
tura Artística de São Paulo. SP: Cardoso Filho, 1914.<br />
• LINS, Álvaro. A glória de César e o punhal de Brutus: Cinco personagens na tormenta<br />
das derrotas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.<br />
• LISBOA, João Francisco. Obras. 4 v. Editores e revisores Antônio Henrique Leal e Car-<br />
los Pereira de Castro. São Luís: B. de Mattos, 1º v. 1864; 2º, 3º e 4º v., 1865.<br />
• ______Obras. 2 v. 1º v. com retrato de J. F. Lisboa e Antônio Henrique Leal, e uma<br />
Notícia; e 2º v. com apreciação crítica de Teófilo Braga. 2ª ed. Lisboa: Matos Moreira & Pinheiro,<br />
1891.<br />
• ______Obras escolhidas. 2 v. Seleção e prefácio de Octávio Tarquínio de Sousa. [Rio<br />
de Janeiro], Americ Edit., [1946].<br />
• ______Obras. 3ª ed. Org. e rev. de Jomar Moraes e Jorge Nascimento, com nota introdutória<br />
do primeiro. T. I. – Eleições na Antiguidade e Eleições e Partidos Políticos no Maranhão;<br />
T. II, 1º e 2º v., Apontamentos, Notícias e Observações para Servirem à História do Maranhão.<br />
São Luís: Alumar, 1991.<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 1ª. ed. É de 1865, inserta nas<br />
Obras. Está no vol. IV.<br />
Índice<br />
<strong>11</strong>5 / 125
• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 2ª.e nova edição é do Rio de Janeiro, 1874.<br />
VII, 374 p.. É de 1865, inserta nas Obras. Está no vol. IV.<br />
388 p. .<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 3ª. ed. é do Rio de Jsneiro, B.L.Garnier, 1891.<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 4ª. ed. é de Lisboa, juntamente com a 2ª. das<br />
Obras. Tip. Matos Moreira & Pinheiro, 1865.<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. A 5ª. ed. é de São Paulo, Edições Cultura, 1942..<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 6ª. ed. é do Rio de Janeiro,<br />
Améica Edit., 1946. Ocupra d pág. 150 à 201.<br />
• ______Vida do padre Antônio Vieira. Obra póstuma. A 7ª. ed. é de W.MÇ.Jackson<br />
Inc. Vol XIX da coleção Clássicos Jackson. XXIII,. 354 págs. Com prefácio de Peregrino Júnior..<br />
• ______Obras Escolhidas. Prefácio e seleção de Otávio Tarqjínio de Sopusa. Rio de<br />
Janeiro, Améric Edit. , 1946. 2 vols. 536 p. ol. 5 da coleção Joaquim Nabuco.<br />
• MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. Rio de Janeiro: DASP, 1960.<br />
• RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil: Sua Evolução e problemas<br />
atuais. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1952.<br />
• SEGISMUNDO, Fernando. João Francisco Lisboa, historiador. Tese para professor ti-<br />
tular de História Geral e do Brasil do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro, fevereiro de 1795. (Mimeo).<br />
• SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira: Seus fundamentos eco-<br />
nômicos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.<br />
• TAVARES, José Pereira. Como se devem ler os clássicos. Lisboa: Sá da Costa, 1941.<br />
Antônio Martins Araújo<br />
Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; preside a Academia<br />
Brasileira de Filologia, membro da Academia Maranhense de Letras; sócio efetivo da Academia<br />
Maranhense de Letras e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.<br />
Índice<br />
<strong>11</strong>6 / 125
FRANcIScO SOTERO DOS REIS<br />
REcONTExTUALIzADO<br />
Francisco Sotero dos Reis, que,<br />
como Machado de Assis, só teve<br />
iniciação escolar pouco<br />
além das primeiras letras,<br />
viveu seus setenta e um<br />
anos sem sair de São Luís<br />
do Maranhão, onde militou<br />
no jornalismo e, filiado<br />
ao Partido Conservador,<br />
exerceu mandatos de<br />
vereador daquela capital<br />
e deputado em diversas legislaturas<br />
da Assembleia Provincial, da qual foi<br />
presidente.<br />
Exerceu o cargo de professor<br />
catedrático do Liceu Maranhense,<br />
de que foi o primeiro diretor, e do<br />
Instituto de Humanidades, fundado<br />
Francisco Sotero dos Reis<br />
Índice<br />
Antônio Martins de Araújo<br />
e dirigido por Pedro Nunes Leal,<br />
estabelecimento onde exerceu o<br />
magistério de latim,<br />
português, e de literatura<br />
portuguesa e brasileira.<br />
Dessa última disciplina,<br />
então concebida com<br />
uma amplitude hoje<br />
inadmissível, ministrou o<br />
famoso Curso de literatura<br />
portuguesa e brasileira,<br />
posteriormente editada em cinco<br />
tomos de igual título.<br />
Tem-se verberado seu classicismo<br />
e sua lusitanidade como imobilismo e<br />
purismo. Faz-se tabula rasa contra o<br />
fato de suas Postillas de grammatica<br />
geral virem refertas de exemplos<br />
<strong>11</strong>7 / 125
de escritores medievais e clássicos<br />
portugueses, a despeito da presença<br />
discreta de brasileiros (assim mesmo<br />
estrangeirados) como José Basílio da<br />
Gama, os padres Santa Rita Durão e<br />
Antônio Pereira de Sousa Caldas, o<br />
marquês de Maricá e o abrasileirado<br />
Tomás Antônio Gonzaga.<br />
Por acaso era rebarbativa a<br />
exemplificação de casos gramaticais<br />
com exemplos colhidos aos clássicos<br />
portugueses em meados do século<br />
passado? Vejam-se dois casos<br />
parecidos: o gramático português<br />
Natividade justifica haver retirado<br />
ao padre Antônio Vieira todo o<br />
exemplário de sua obra, com este juízo<br />
de dom Francisco Alexandre Lobo (in<br />
Memoria sobre a vida e escriptos do<br />
Padre Antonio Vieira): “Se a língua<br />
portuguesa se perdesse, se acharia<br />
toda quanto à prosa em Vieira, assim<br />
como quanto ao verso em Camões”.<br />
E que dizer da gramática do suíço<br />
Charles Adrien Olivier Grivet (1816-<br />
Índice<br />
1876), que, após uma estada de apenas<br />
dois anos na Rússia, domiciliou-se<br />
na cidade de São Sebastião do Rio<br />
de Janeiro a primeiro de abril de<br />
mil oitocentos e cinquenta e seis? Aí<br />
regularmente lecionando, após seu<br />
nono ano de permanência, publicou<br />
uma alentada gramática, que iria<br />
merecer uma segunda edição póstuma,<br />
por ele deixada corrigida e bastante<br />
aumentada. Pasme-se. Vivendo na<br />
Corte e dela tirando seu sustento, esse<br />
preconceituoso senhor não honrou<br />
nenhuma das seiscentas e vinte e duas<br />
páginas de seu manual com exemplos<br />
de qualquer escritor brasileiro antigo<br />
ou contemporâneo seu.[2]<br />
Julgar Sotero fora de seu tempo<br />
e de seu espaço implica desfocar a<br />
verdade dos fatos. Quando, na década<br />
de sessenta do século dezenove,<br />
publicou suas obras gramaticais,<br />
ainda gozava de prestígio em nosso<br />
país a Gramática Filosófica, herança<br />
de Port-Royal e do sistema dos<br />
enciclopedistas, que procuravam<br />
estabelecer os princípios gerais da<br />
língua. Sotero concebeu suas obras<br />
<strong>11</strong>8 / 125
gramaticais dentro dessa filosofia<br />
linguística, e incidiu em alguns erros<br />
da Gramática portuguesa de Antônio<br />
José dos Reis Lobato (1770), como o<br />
de enxergar elipses por toda a parte,<br />
como lucidamente já mostrara José<br />
Leite de Vasconcelos.[3]<br />
Seguindo a tradição gramatical<br />
da Minerva, de Sanchez de las Brozas,<br />
Sotero partiu sempre do latim para<br />
o português, e não de modo inverso,<br />
como às vezes hoje se costuma fazer.<br />
Conquanto apreciasse a concisão do<br />
conceito de gramática formulado por<br />
Lancelot e Arnault, adotou ele a de<br />
Du Marsais, ressuscitado hoje pela<br />
Nova Retórica, do grupo µ. Este grupo<br />
considera a Gramática Geral ciência<br />
da palavra, e a Gramática Particular,<br />
arte, pois que esta é uma aplicação<br />
prática daquela. Em termos modernos,<br />
a Gramática Geral estaria mais para<br />
aquilo a que o sistema saussuriano<br />
chamou de langue, enquanto a<br />
Gramática Particular estaria para<br />
aquele sistema o que chamou de<br />
parole.<br />
Sotero publicou suas Postillas de<br />
Índice<br />
grammatica geral; aplicada à língua<br />
portuguesa pela analyse dos clássicos;<br />
ou guia para a construção portuguesa<br />
(São Luís, MA, Belarmino de Matos,<br />
1862) e a Grammatica portuguesa<br />
accommodada aos princípios geraes<br />
da palavra seguidos de imediata<br />
aplicação pratica (São Luís, MA,<br />
Belarmino de Matos, 1866 e 1871);<br />
esta segunda corrigida e anotada pelos<br />
filhos do autor sob a orientação do<br />
prof. Luís Carlos Pereira de Castro; e<br />
do editor Magalhães, a terceira edição,<br />
em 1877, ambos os editores de São<br />
Luís do Maranhão. O fato de serem<br />
maranhenses essas três edições é uma<br />
prova incontestável do prestígio que<br />
experimentaram no meio científico da<br />
época.<br />
Antes de crucificá-lo como<br />
passadista e retrógrado, primeiro se<br />
deve perguntar qual era a tradição<br />
gramatical brasileira anterior<br />
a ele. Quase nenhuma, todos<br />
responderão. Nas escolas, ensinava-<br />
se primeiramente latim, e, só depois,<br />
o português. Nos primórdios de nossa<br />
colonização, a bem do entendimento<br />
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dos colonizadores com os colonizados,<br />
ensinava-se primeiramente a<br />
gramática da língua geral que se<br />
falava nas costas do Brasil editadas<br />
em Portugal muitíssimo antes de<br />
podermos editar as gramáticas<br />
brasileiras da língua comum.<br />
Da existência de um esboço de<br />
gramática portuguesa escrita pelo<br />
malogrado frade carmelita e recifense<br />
Joaquim do Amor Divino Caneca<br />
(1774-1825), só há pouco tivemos<br />
notícia, e seguramente não chegou a<br />
fazer escola. Como também não fez<br />
escola a primeira gramática brasileira<br />
da autoria do maranhense Antônio da<br />
Costa Duarte, publicada bem antes<br />
do Compêndio da língua nacional, do<br />
gaúcho Antônio Pereira Coruja, que<br />
seguiu a tradição portuguesa da de<br />
Antônio dos Reis Lobato e durante<br />
muito tempo se pensou haver sido a<br />
primeira.<br />
Apesar do exemplário clássico e<br />
português exibido pelos dois, não é<br />
força de expressão dizer-se que Sotero<br />
“pontificava” no Maranhão, como<br />
Carneiro Ribeiro pontificaria em<br />
Índice<br />
seguida na Bahia. Não só pontificava,<br />
como chegou a fazer escola. Como<br />
também não é força de expressão<br />
dizer-se que Sotero exportava filologia<br />
para o resto do Império. Isso pode-se<br />
comprovar com um curioso manual<br />
didático do bacharel maranhense<br />
Augusto Freire da Silva (1836-1917).<br />
Chamava-se Noções de prosodia<br />
e ortografia para uso da infância<br />
que frequenta as aulas do grau do<br />
Instituto Santista, intercaladas de<br />
um resumo de etymologia e sintaxe,<br />
extrahido da Grammatica Portugueza<br />
de Francisco Sotero dos Reis pelo<br />
Dr. Pedro Nunes Leal, sob o título de<br />
Noções Grammaticaes, brevemente<br />
additadas e compiladas. (São Luís,<br />
1871).<br />
Chegou mesmo seu autor a tirar<br />
uma segunda edição dessa obra, “mais<br />
correta e aumentada,” com indicação<br />
de São Paulo, 1875, mas, com efeito,<br />
editada em São Luís, pela tipografia<br />
do Frias, no ano seguinte, com o novo<br />
título de Compendio da Grammatica<br />
Portugueza; constando [...] na parte<br />
lógica ou discursiva de um resumo de<br />
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Etymologia e Syntaxe extrahido com<br />
algumas alterações e acréscimos da<br />
Grammatica Portugueza de Francisco<br />
Sotero dos Reis. Uma novidade traz<br />
o livrinho na parte da pontuação, ao<br />
lado de exemplos de Camões, Vieira,<br />
Jacinto José Freire, Dinis, Gonzaga,<br />
Herculano e Garrett – exemplos de<br />
Gonçalves de Magalhães, Gonçalves<br />
Dias e Trajano Galvão.<br />
Ao que parece, contra Sotero, tem-<br />
se-lhe interpretado ao pé-da-letra o<br />
uso do verbo fixar em passos como<br />
este seu:<br />
[...] o Portuguez adquirindo copia<br />
de termos, principalmente com as<br />
viagens e explorações dos Portuguezes,<br />
passou, pouco mais de quatro séculos<br />
depois de sua formação, a ser a língua<br />
culta de Camões, que o fixou [grifamos]<br />
com seus Luzíadas, enriquecendo-o<br />
com um dialecto poético, que não<br />
tinha, e de Barros, que, com as duas<br />
Decadas de Asia, ennobrecêo-lhe a<br />
prosa dando-lhe conveniente número<br />
e majestade. (id., ibid., p. 263-264).<br />
Sotero tinha plena noção do<br />
dinamismo das línguas. De tal modo<br />
Índice<br />
que justificava assim a eleição de seu<br />
cânone:<br />
Antes de Camões e Barros, o<br />
Portuguez era um idioma ainda pobre,<br />
e por vezes hórrido nas maneiras<br />
de dizer, como se nota nas obras de<br />
nossos escriptores mais antigos, mas<br />
com eles, e depois deles, foi uma língua<br />
mui rica, e própria para todo gênero<br />
de assumptos. (id., ibid.)<br />
Como é sabido, as palavras, além<br />
de portarem valores denotativo e<br />
conotativo, podem ser usadas com<br />
significado extensivo e figurado. Ao<br />
escolher o cânone lusitano, Sotero<br />
desejou mostrar o dinamismo do<br />
idioma, a partir de dom Dinis até os<br />
árcades, e usou a expressão “fixar uma<br />
língua” com o sentido de “determinar<br />
qual é o uso dos melhores escriptores;<br />
seguil-os, imital-os,” como nos ensina,<br />
em 1873 (apenas cinco anos após as<br />
Postillas), o doutor frei Domingos<br />
Vieira em seu Thesouro da língua<br />
portuguesa.<br />
Mais do que um simples tratado<br />
de análise sintática, constituem-se<br />
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elas para seu tempo uma necessária<br />
introdução estilística aos textos<br />
medievais e clássicos. Diversamente da<br />
Grammatica gerall, que privilegiava<br />
os aspectos universais da língua<br />
falada sem preocupação prescritiva,<br />
as Postillas de Sotero elegeram um<br />
corpus literário por ele reputado como<br />
modelar, e tinhas claros objetivos<br />
prescritivos.<br />
Nelas, ele estudou a disposição<br />
dos termos e das orações no período;<br />
esmiuçou os “idiotismos” de toda<br />
ordem; esclareceu dificuldades<br />
gramaticais encontradiças na<br />
construção do texto; advertiu para<br />
o respeito à grafia de cada sincronia<br />
da língua para colher-se, o mais fiel<br />
possível, a pronúncia de cada tempo; e<br />
demorou-se longamente na apreciação<br />
dos desvios estilísticos à disposição<br />
dos usuários da língua literária. Era<br />
esse seu objetivo maior.<br />
Mais do que um simples manual<br />
de análise sintática, repetimos, é um<br />
pioneiro esboço de tratado de estilística<br />
literária. Assim explicou Sotero a<br />
inserção de textos dos escritores mais<br />
Índice<br />
antigos no suplemento à quinta parte<br />
da edição de que nos ocupamos:<br />
Neles poderá o leitor não só ver<br />
confirmado com maior número de au-<br />
toridades o juizão, que emitimos sobre<br />
as modificações por que tem passa-<br />
do a língua, desde nossos mais anti-<br />
gos escriptores até nós, como formar<br />
também o seu com segurança; sem<br />
ter presentes os respectivos originaes,<br />
hoje pela mor parte raros. (id., ibid.,<br />
p. 229; destaque na transcrição).<br />
E não se venha cobrar de Sotero<br />
(falecido em 1871) o conhecimento das<br />
obras do americano William Dwight<br />
Whitney, que entendia a linguagem<br />
como fato social e instrumento de<br />
comunicação. As obras desse linguista<br />
(traduzimos-lhe os títulos) são Vida<br />
e crescimento da língua, de 1875,<br />
e A língua e o estudo da língua, de<br />
1876, ambas posteriores à data de<br />
falecimento do maranhense. Somente<br />
a partir da década seguinte é que<br />
Paranhos da Silva, José Veríssimo e<br />
João Ribeiro começaram a citar esse<br />
Autor entre nós.<br />
Também não se venha falar da<br />
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tentativa heroica, mas, como não poderia deixar de ser, frustrada, da criação de<br />
uma língua brasileira, por parte do grande romancista cearense José Martiniano de<br />
Alencar, para a Corte migrado desde muito cedo. Essa tentativa, utópica por todo<br />
o sempre, foi já posta por terra depois que o saudoso filólogo mineiro Gladstone<br />
Chaves de Melo, para o Rio migrado desde muito cedo, publicou seus clássicos<br />
ensaios sobre a vernaculidade daquele prosador indianista.[4] Parece-me que<br />
mesma coisa deve ser dita sobre a teoria e a prática linguísticas de Gonçalves Dias.<br />
REFERÊNCIA<br />
[1] NATIVIDADE, Joaquim Antonio Correa da. Fundamentos da analyse<br />
grammatical e de estylo, e de composição de temas; extrahido dos melhores<br />
clássicos portugueses. Lisboa. G.M.Martins, 1862.<br />
[2] GRIVET, Charles Adrien Olivier. Nova grammatica analytica da língua<br />
portuguesa. 2ª. ed. Rio de Janeiro, Leuzinger, 1881.<br />
[3] VASCONCELOS, José Leite de. Opúsculos – Filologia (IV, parte II. Coimbra,<br />
Imprensa Universitária, 1929.<br />
[4] MELO, Gladstone Chaves de. Alencar e a “Lingua Brasileira.” 3ª. ed.<br />
(seguida do ensaio Alencar, cultor e artífice da língua. Rio de Janeiro, Conselho<br />
Federal de Cultura, 1972<br />
Antônio Martins Araújo<br />
Doutor em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; preside a Academia<br />
Brasileira de Filologia, membro da Academia Maranhense de Letras; sócio efetivo da Academia<br />
Maranhense de Letras e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.<br />
Índice<br />
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EMPRESAS ASSOCIADAS<br />
Agropecuária e Industrial Serra Grande<br />
Alpha Máquinas e Veículos do Nordeste<br />
ALUMAR<br />
Atlântica Serviços Gerais<br />
Bel Sul Administração e Participações<br />
CEMAR - Companhia Energética do Maranhão<br />
CIGLA - Cia. Ind. Galletti de Laminados<br />
Ducol Engenharia<br />
Grupo Mateus<br />
Lojas Gabryella<br />
Mardisa Veículos<br />
Moinhos Cruzeiro do Sul<br />
Niágara Empreendimentos<br />
Oi<br />
Rápido London<br />
SempreVerde<br />
Televisão Mirante<br />
UDI Hospital<br />
VALE<br />
Índice<br />
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Índice<br />
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