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Comentários sobre o conto - Geia Plural

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Apresentação<br />

A noite do perdão<br />

Jomar Moraes<br />

Nas horas de Deus- Amém<br />

Ariel Vieira de Moraes<br />

Comentário <strong>sobre</strong> o<br />

<strong>conto</strong>“O monstro” José Neres<br />

A serpente e o touro<br />

<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“O Duplo” Joaquim Gomes<br />

<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“Artes do Diabo”<br />

Dino Cavalcante<br />

<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“O Asa-Negra” Dino Cavalcante<br />

Associados<br />

Arlete Nogueira da Cruz<br />

O olhar da rã<br />

Arlete Nogueira da Cruz<br />

O monstro<br />

ÍNDICE<br />

NÚMERO 09 - ABRIL / MAIO 2013<br />

Agora, Contos maranhenses<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

De como o homem foi à<br />

Lua desceu no vale da Boa<br />

Esperança Sebastião Moreira Duarte<br />

Uma difícil escolha<br />

José Neres<br />

Humberto de Campos<br />

A mulher cega<br />

Arlete Nogueira da Cruz<br />

Por quê o “ O Duplo” de<br />

Coelho Neto Joaquim Gomes<br />

O Duplo<br />

Coelho Neto<br />

Artes do Diabo<br />

Alfredo de Assis<br />

O Asa-Negra Arthur Azevedo<br />

Expediente<br />

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APRESENTAÇÃO<br />

O <strong>conto</strong> é, hoje, um gênero literário não muito popular.<br />

Com a valorização do romance e, em menor<br />

escala, da poesia, o <strong>conto</strong> praticamente desapareceu<br />

do mercado editorial. São raros os lançamentos de<br />

novos contistas e mesmo as reedições de contistas<br />

famosos, que <strong>sobre</strong>ssaíram em outros gêneros literários:<br />

Machado de Assis, Aluísio e Artur Azevedo,<br />

Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Ruth Rocha, Lima<br />

Barreto, Otto Lara Resende, Lygia Fagundes Telles,<br />

José J. Veiga, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, e<br />

tantos outros.<br />

Nesta nona edição da revista <strong>Plural</strong>, dedicada ao<br />

<strong>conto</strong> maranhense, os professores Sebastião Moreira<br />

Duarte, Joaquim Gomes, José Neres e Dino Cavalcante<br />

revelam as suas preferências e indicações de<br />

antigos e novos expoentes desse gênero.<br />

Jorge Murad<br />

Presidente do Conselho Deliberativo<br />

Instituto <strong>Geia</strong>


Agora, Contos<br />

Maranhenses<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

O<br />

Maranhão é a terra dos poetas, proclama-se<br />

já por quase dois séculos. E não<br />

faltam nomes que acorrem ao chamado da<br />

nossa lembrança, de Gonçalves Dias a Ferreira<br />

Gullar.<br />

O Maranhão é também a terra dos grandes romancistas,<br />

bastando lembrar criadores como Coelho Neto, Aluísio Azevedo,<br />

Graça Aranha, e Josué Montello, para citarmos apenas<br />

figuras pinaculares da literatura em prosa produzida<br />

no Brasil.<br />

Mas entre a Poesia e a Prosa está o Conto, gênero difícil<br />

de definir (a ponto de Mário de Andrade, numa blague, ter<br />

dito que <strong>conto</strong> é aquilo que cada um chamar de <strong>conto</strong>) e<br />

ainda mais difícil de realizar: tem sido lugar-comum afirmar-se<br />

que o <strong>conto</strong> está para a literatura de ficção como o<br />

soneto está para a literatura em versos.<br />

Pois, em que pese tenham sido mestres do gênero diversos<br />

maranhenses como Artur Azevedo, Coelho Neto, Humberto<br />

de Campos, Josué Montello, José Sarney, Nagib Jorge<br />

Neto e tantos mais, o <strong>conto</strong> parece um gênero de cultivo<br />

menor, no Maranhão e em qualquer parte.<br />

Com este número, a revista <strong>Plural</strong> pretende oferecer ocasião<br />

de desfazer tal ideia: em coerência com o seu feitio, de<br />

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encontrar um tema para nuclear os artigos que formam<br />

seu conteúdo, fez opção desta vez pelo Conto de sua terra,<br />

com o objetivo, também, de uma dupla homenagem: em<br />

primeiro lugar, aos contistas maranhenses de ontem e de<br />

hoje, sem distinção de cronologia nem consulta à Bolsa de<br />

Valores em que cada um se inscreva perante a Literatura;<br />

e, depois, aos próprios leitores, a quem pretende oferecer<br />

um variado cardápio de leituras que satisfaçam o seu apetite<br />

e lhe façam o deleite com a arte da palavra.<br />

Bom proveito. De todos. Para todos.<br />

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A noite do perdão<br />

Jomar Moraes<br />

U ma velha rixa os mantinha ferrenhamente<br />

inimizados.<br />

Questão de limites de propriedade rural, antiga demanda<br />

em torno da Vargem do Babaçu, terra de baixões<br />

fertilíssimos, próprios para cultura de cana de açúcar. Em<br />

toda a data Malhada Bonita, era o único lugar de águas<br />

ambudantes e perenes. Excelente para criação de gado. E<br />

não era só isso: calculava-se em aproximadamente vinte<br />

toneladas anuais, a produção de amêndoas de coco babaçu,<br />

caso fossem extraídas. Mas tudo se perdia, porque ambos<br />

os condomínios reclamavam a sua posse total. E como<br />

o caso se vinha arrastando ao longo de muitos anos, pelas<br />

diversas instâncias do Judiciário, nenhum deles podia impunemente<br />

penetrar ali. Pela só tentativa de fazê-lo, a parte<br />

que se julgasse ofendida ou prejudicada protestava imediatamente.<br />

E de maneira enérgica.<br />

Assim ocorreu quando Zé Nogueira contratou a venda de<br />

mil toros de cedro e pau darco à Serraria Boa Esperança.<br />

Os madeireiros só tiveram tempo de derribar duas árvores.<br />

Quando se preparavam para a terceira, foram emboscados<br />

pelos homens de Chico Severo e se viram constrangidos a<br />

trocar, de uma hora para outra, machados por rifles. E em<br />

lugar de árvores seculares, começaram a tombar, de ambos<br />

os lados, homens velhos e jovens, todos empenhados<br />

na defesa dos interesses de seus patrões.<br />

Ao todo morreram nove.<br />

Houve denúncias na imprensa da capital, discursos de<br />

acusação e de defesa na Assembleia Legislativa, mas tudo<br />

resultou em nada, pois os dois latifundiários tinham cobertura<br />

do Governo. Por golpe de matreirice, ambos pertenciam<br />

às hostes situacionistas. Sustentavam acirrada luta<br />

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política no âmbito do município, mas no plano estadual<br />

sempre estiveram ao lado da oligarquia dominante, com<br />

a qual tinham, inclusive, ligações de família. Até os parlamentares<br />

representantes da região eram eleitos com os<br />

votos dos dois adversários. E isso lhes dava condições de<br />

manter uma luta em torno da qual já se ia escrevendo longa<br />

crônica para cuja composição entravam sangue, ódios,<br />

violências e incompreensões.<br />

A cobiça funcionando como pomo de discórdias entre<br />

aqueles dois homens odientos que, afinal de contas, descendiam<br />

de um só tronco: o Coronel Jeremias Nogueira,<br />

dono de patente da Guarda Nacional e agraciado com a Ordem<br />

da Rosa, por “relevantes serviços prestados ao Império<br />

Brasileiro”.<br />

De como o velho Jeremias Nogueira se transformou em<br />

proprietário daquelas terras é uma longa história cheia de<br />

complicações, mas que importa contar, mesmo por cima,<br />

sem descer a pormenores, pois isso tomaria muito espaço<br />

e tempo, além de pôr a descoberto alguns aspectos do caráter<br />

desse ancião que morreu rezando, de rosário na mão,<br />

pedindo perdão pelos seus pecados e tendo sua alma encomendada<br />

por Mestre Arnóbio, que naquela ocasião substituiu<br />

o vigário, gravemente acamado, vítima de coice de<br />

burro bravo e sestroso.<br />

Diziam os mais antigos que, por ocasião da Balaiada, ele<br />

comandava na região, como voluntário graduado no posto<br />

de capitão, um grupo de legalistas que se destacou <strong>sobre</strong>modo<br />

nas operações de emboscadas contra os revoltosos,<br />

logrando abatê-los às dezenas. Afirmavam que saqueara<br />

várias fazendas e, após os combates, passava em revista rigorosa<br />

todos os cadáveres, arrancando-lhes até mesmo os<br />

dentes de ouro a ponta de punhal.<br />

Da Balaiada teria vindo o seu prestígio perante o Governo<br />

ela Província, que, em recompensa, lhe deu importantes<br />

posições de mando. ‘I’al foi sua ascensão, que chegou a<br />

ser Deputado Provincial em duas legislaturas. Deixou nos<br />

anais do Congresso um número considerável de projetos<br />

de lei e apartes solicitados, farto documentário de sua ignorância<br />

proverbial. Certa ocasião apresentou um projeto<br />

de lei proibindo as moças de aprenderem a ler, escrever e<br />

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contar, “para não arranjarem namoros escandalosos”. Foi<br />

por isso vaiado em plenário e revidou, lamentando que a<br />

família maranhense negasse o reconhecimento a um de<br />

seus “mais legítimos defensores”. Na capital do Estado celebrizou-se<br />

como uma figura bombástica. Mas no sertão,<br />

reunia em torno de sua pessoa o prestígio da força e de<br />

fortuna que detinha.<br />

Fez-se abastado proprietário de terras e gado, constituindo<br />

um vultoso patrimônio, herdado pelo filho único -<br />

Josias Nogueira, de índole muito diferente do pai. Era um<br />

solteirão festeiro. D. Juan matuto que morreu em plena<br />

juventude, sem deixar prole. Homem de coração boníssimo.<br />

Boêmio que nunca aprendeu a tocar nenhum instrumento<br />

musical, mas tinha muita sensibilidade. Dava<br />

casa, roupa e comida a Jerônimo Violeiro, que enchia de<br />

canções dolentes as noites enluaradas do sertão, em serenatas<br />

que marcaram para sempre a memória dos mais<br />

velhos. Amava as caboclinhas moradoras de suas terras,<br />

mas nunca fez mal a nenhuma delas sem que pagasse<br />

um dote compensador. Era um romântico, um sonhador<br />

que teria deixado até versos, talvez, se soubesse algo mais<br />

que ferrar o nome. Seus herdeiros foram Chico Severo e<br />

Zé Nogueira, primos entre si e os parentes mais próximos<br />

do finado Josias, que morreu cedo, mas deixou fama de<br />

bonitão.<br />

Os dois novos ricos efetuaram a divisão do gado, das<br />

casas e de alguns outros bens, sem grandes problemas. Mas<br />

quando chegou a vez de partilhar as terras, discordaram<br />

violentamente. Ambos reivindicavam o Baixão do Babaçu.<br />

E de primos e amigos que eram, em pouco tempo estavam<br />

feitos inimigos viscerais. Cada um se estabeleceu num ponto<br />

extremo da Malhada Bonita. Mas nenhum deles investia<br />

<strong>sobre</strong> aquela faixa de terra que valia, só ela, quase mais<br />

que o restante de toda a data. E não havia como dividir<br />

a contento de ambos as terras de Malhada Bonita. Se a<br />

divisão fosse feita de norte a sul, ficaria para Zé Nogueira<br />

o Baixão, com o que absolutamente não concordava Chico<br />

Severo. Este exigia obediência à trajetória solar, isto é –<br />

que a divisão da data Malhada Bonita tivesse por base<br />

uma linha reta iniciada na direção em que o sol nasce,<br />

terminando na em que se põe.<br />

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E isso lhe daria o vale fértil. Ninguém chegava a um<br />

acordo, principalmente nos últimos anos, quando o valor<br />

econômico do babaçu estava subindo em decorrência de<br />

sua industrialização. Ultimamente as coisas se haviam<br />

agravado de tal sorte, que parecia não mais ser possível<br />

evitar um desfecho que, mais hoje, mais amanhã, seria<br />

fatal. Notadamente depois que os capangas de Chico<br />

Severo tinham posto a perder todos os roçados dos<br />

moradores de Zé Nogueira, ateando-lhes fogo, antes que a<br />

derriba estivesse concluída.<br />

Até já se falava na presença de caras estranhas na casa<br />

de Zé Nogueira. Deviam ser matadores profissionais chamados<br />

para um serviço sob encomenda, que em casos de<br />

tamanha gravidade, não se manda gente de casa. Chico<br />

Severo, por sua vez, também adotou as medidas julgadas<br />

necessárias. Malhada Bonita estava em pé de guerra. De<br />

nada vinham adiantando as tentativas de pacificação do<br />

vigário da paróquia, Padre Saraiva. Os contentadores estavam<br />

irredutíveis. E a essas alturas talvez não pensassem<br />

somente no Baixão do Babaçu. O desenvolvimento das hostilidades<br />

gerara um sem número de atritos de toda ordem.<br />

E para eles não haveria mais remédio.<br />

Segundo um antigo e sempre respeitado código de honra<br />

vigente no sertão, a primeira vez que os chefes da contenda<br />

se encontrassem na estrada, matar-se-iam irrecorrivelmente.<br />

Bem verdade que eram primos. Mas o sertanejo que<br />

em geral é muito cioso de suas relações de parentesco, indo<br />

buscá-la remotamente, despreza-as e subestima-as, muitas<br />

vezes, com relativa facilidade, principalmente se o motivo<br />

da desavença é honra de família, terra ou gado.<br />

E esse código de honra era de cumprimento irreversível.<br />

Assim fora – registrava a crônica oral da região – no caso de<br />

dois ricos fazendeiros contemporâneos do coronel Jeremias<br />

Nogueira. Mantiveram uma prolongada disputa em torno<br />

de pastagem de gado, começaram a hostilizar-se reciprocamente<br />

e terminaram sendo encontrados mortos à beira<br />

de um caminho, ligados pelos amarradilhos das próprias<br />

camisas de mescla azul.<br />

Aproximava-se o Natal. Os filhos de Chico Severo, estuantes<br />

em São Luís do Maranhão, começaram a chegar,<br />

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Vinham para as férias. Eles se sentiam felizes, por voltarem<br />

à casa paterna, onde comemorariam o Natal. Mas não<br />

escondiam o pesar de encontrarem aquela situação de intranquilidade<br />

e <strong>sobre</strong>ssalto, com a vida do pai em constante<br />

ameaça, Tentaram convencê-lo de que deveria mudar-se<br />

para São Luís, onde poderia instalar uma firma dedicada ao<br />

comércio ou à indústria. Mas Chico Severo repelia a ideia<br />

com muita austeridade, tomando para justificativa dessa<br />

decisão o seu orgulho de homem sertanejo:<br />

– Se eu sair daqui, que esse patife vai dizer? Que sou covarde,<br />

que corri com medo dele. Meus meninos, ninguém<br />

foge ao seu destino. Se minha sorte é morrer de morte matada,<br />

não adianta correr, E mesmo assim, não receio o Zé<br />

Nogueira de nenhum, O risco que corre o pau, corre o machado.<br />

Os filhos de Chico Severo lamentavam a obstinação do<br />

pai. Mas afinal de contas, reconheciam que ele tinha suas<br />

razões, Estava defendendo a honra pessoal e um patrimônio<br />

que para eles era tão significativo quanto a própria vida.<br />

Na véspera do Natal a fazenda amanheceu com o pátio<br />

ornamentado de flores silvestres e palmeirinhas de pati. Na<br />

sala principal da casa grande, o presépio armado, com figuras<br />

em tamanho natural, dava ao ambiente um ar de festiva<br />

religiosidade. Isso já era tradição em Malhada Bonita. Os<br />

moradores se encarregavam espontaneamente de enfeitar a<br />

casa do patrão. Ele mandava abater duas reses e as distribuía<br />

fraternalmente a todos! À noite, fazia uma grande festa<br />

dançante na casa de Nhô Fabriciano, o mais velho habitante<br />

de Malhada Bonita. Chico Severo comparecia a ela, com<br />

a família, dançava algumas partes com suas agregadas, o<br />

mesmo fazendo sua mulher e filhos. Todos se confraternizavam,<br />

Depois abraçava um por um dos seus moradores<br />

e se retirava para a ceia familiar. E a festa continuava até<br />

o raiar do dia seguinte. Ali nunca houve uma briga dia de<br />

festa natalina, porque ninguém dançava armado. Era exigência<br />

de Chico Severo, Ele não admitia que alguém cometesse<br />

o sacrilégio de dançar armado no dia do nascimento<br />

de Jesus. De sertanejo ríspido que era, convertia-se<br />

em emotivo e sentimental. Certa ocasião, quando, antes<br />

da festa, ouviu os acordes da canção “Noite Feliz”, pediu a<br />

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Jomar Moraes<br />

Bastião do Forró que fechasse a sanfona. Subiu num tamborete,<br />

ensaiou breves palavras de confraternização e concluiu<br />

anunciando que no ano agrícola que se aproximava<br />

ninguém pagaria renda em suas terras.<br />

Meia-noite em ponto! A família toda reunida em torno da<br />

ceia natalina de rica baixela de prata e porcelana. Ao seu<br />

redor, a mulher e os onze filhos, sentados com rigorosa<br />

observância de idade. Tudo pronto. Esperam apenas que o<br />

chefe da casa abasteça de vinho a sua taça e erga o brinde<br />

à boa sina de todos. É a sua bênção patriarcal.<br />

Um tropel desperta a atenção dos circunstantes, Quem<br />

viria àquelas horas juntar-se à ceia do Chico Severo? O<br />

compadre Marcelino ou Januário Melão, seu vaqueiro em<br />

Fazenda Palestina? Ninguém estava sendo esperado naquela<br />

noite.<br />

O cavaleiro saltou rapidamente e sem pedir licença, sem<br />

dizer palavra, foi entrando pelo varandão.<br />

Era Zé Nogueira...<br />

Ali, somente Chico Severo e seus familiares... todos imobilizados<br />

pelo inesperado do fato. Chico Severo permanece<br />

de pé, com a taça na mão. Os olhos se entrecruzam, como<br />

chispas de muitos brilhantes ao sol. Silêncio absoluto!...<br />

Zé Nogueira avança com firmeza. A cinco passos levanta<br />

sugestivamente os braços, significando que a sua vinda é de paz.<br />

Confraternizam-se e deliberam terminar, de uma vez por<br />

todas, as divergências que há tanto os separam.<br />

Chico Severo dá a Zé Nogueira seu lugar na cabeceira da<br />

mesa.<br />

E a família inteira se levanta para cantar “Noite Feliz”!...<br />

Advogado, Escritor, Historiador e membro da Academia Maranhense de Letras.<br />

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De como o homem que foi à Lua<br />

desceu no vale da Boa Esperança<br />

E“<br />

m distância de 5 léguas do rio Gurupi e de 4 do Maracaçumé<br />

existem as afamadas minas de Maracaçumé,<br />

situadas no vale da Boa Esperança e seus<br />

arredores, o qual corre de E. para O., e é fechado por colinas<br />

baixas. [ ... ] Nos vales da Boa Esperança, do Piquizeiro,<br />

Monte Cristo, Baixas do Ouro Fino, nos declives, nas baixas,<br />

nos alagadiços, toda parte acha-se ouro, sendo os mais ricos<br />

depósitos em terrenos de aluvião, situados nos lugares mais<br />

baixos, e cercados pelas mais duras camadas de rocha”.<br />

Ó cobiçada de França,<br />

de Holanda, de Portugal,<br />

ó ilha bravia e mansa,<br />

tão fantástica e real.<br />

........................................<br />

Ó tu que, por força, entregas<br />

teu mar, teu porto, teu chão,<br />

para as ambições mais cegas,<br />

que agora te explorarão,<br />

tu, em que meu sonho encerro,<br />

que mundo haverá por trás<br />

desse horizonte de ferro,<br />

que é a serra de Carajás?”<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

(César Marques, Dicionário Histórico- Geográfico da Província do Maranhão,<br />

3ª ed. Rio de Janeiro, Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 368).<br />

(José Chagas, Maré de Aço (Onda de Alumínio, ou Naufrágio da Ilha).<br />

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– Vai tu, alma fresca!<br />

Para além da Serra da Desordem, nos contrafortes da<br />

Serra do Piracambu, rumo largo do rio que aí se abre, e por<br />

léguas em tomo, nunca ninguém ouviu ou <strong>conto</strong>u jamais a<br />

história que não fosse começando assim:<br />

– Foi no Vale da Boa Esperança! Foi no Piquizeiro Velho<br />

do Vale da Boa Esperança!<br />

E, de fato, onde mais se poderia imaginar a locação de<br />

uma cena como as da anedota? A tradição vinha de longe,<br />

não se sabe de que tempos imemoriais. Mesmo entre os<br />

membros do velho ajuntamento, ninguém se atrevesse a<br />

cruzar de noite a baixa do Piquizeiro. Na planície a perder<br />

de vista, o areal faiscava por todos os lados como se fosse<br />

a sala de espera do fogo do inferno. E, durante o dia, um<br />

brilho de enxofre deixava fosforescentes os pés de quem se<br />

metesse a passar sequer ao largo da clareira, onde se erguia,<br />

solitário, o Piquizeiro Velho. Sem que ninguém fizesse<br />

referências explícitas à árvore centenária, ali estava a raiz<br />

de toda a assombração. No silêncio da noite, juntando-se<br />

ao piado soturno de aves que nunca ninguém via, as suas<br />

folhas chiavam como lixa e, infiltrando-se entre as suas<br />

sombras, o luar dava vida a figuras amedrontadoras, espectros<br />

magérrimos que se vestiam de branco e dançavam<br />

em círculo, uma ciranda volátil que gelava o sangue nas<br />

veias. Eram almas penadas? Pediam reza? Mas foi do meio<br />

delas que uma se destacou, no galho mais alto do Piquizeiro<br />

Velho, para se dirigir a três negros do Igarapé do Milho,<br />

que por ali aconteceu de tomarem banho sem se darem<br />

conta do crepúsculo que avançava:<br />

– Irmão das almas quer ficar rico? Irmão das almas quer<br />

ficar rico?<br />

A voz ressoava como um ganido, por sete vezes, nos sete<br />

morros ao redor. E a copa da velha árvore se sacudia e se<br />

iluminava de repente, num amarelo de fornalha.<br />

– Irmão das almas quer ficar rico?<br />

Dois dos banhistas danaram-se a correr e ainda hoje<br />

tresmalham pelo cocoruto da Serra, nus como nasceram,<br />

podendo ser vistos como outra assombração, no contraste<br />

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da lua cheia. Ao terceiro lhe faltaram pernas para sumir-se.<br />

– Irmão das almas quer ficar rico?<br />

O negro fechou os olhos, o coração saltando-lhe pelos<br />

bofes, e, como num pesadelo infindo, estourou num grito:<br />

– Q-u-e-r-o-, s-i-i-i-i-m!<br />

– Pois vá tomar no cu, filho da puta!<br />

E uma gargalhada rouquíssima regougou como trovões<br />

intermitentes tomando conta do mundo. Folhas faiscaram.<br />

Correntes foram arrastadas. Gemidos pareciam vindos dos<br />

corredores do outro mundo. E, mais espantoso que tudo:<br />

desde então, a água ficou pesadíssima, quase escorregando<br />

dos dedos sem molhar as mãos, massa de chumbo brilhando<br />

no meio da caparrosa sem conta, sumindo por entre as<br />

rachaduras das pedras amarelentas.<br />

Vale da Boa Esperança! Teria sido possível encontrar lugar<br />

mais escondido no mundo? No fundo, as assombrações<br />

do Piquizeiro Velho eram a proteção do isolado, pois só eles<br />

sabiam: eram os maus senhores de escravos que ainda vinham,<br />

depois de mortos, tirar sossego e tataranetos dos fugitivos<br />

que, sem aviso prévio, orientados mais pelo instinto<br />

e pelo bom conhecimento da mata e do rio, ali se haviam<br />

entocado, a salvo da fúria dos capitães de mato. Sem se darem<br />

conta, por sucessivos segredos passados de ouvido a<br />

ouvido entre o estalejar do relho, do dia para a noite formaram<br />

mais um quilombo. Tinha que ser assim. Os que viveram<br />

de canoa a ninguém ensinaram o caminho e só por alto<br />

relembravam, exagerado, os precipícios que haviam vencido<br />

para chegarem às cabeceiras do rio. Os que tomaram o<br />

caminho da floresta brava calavam sempre, pois eram eles,<br />

mateiros experientes, os que guardavam o último segredo,<br />

as veredas do derradeiro refúgio que haveria de abrigar a<br />

todos contra o trabuco insaciável dos seus inimigos.<br />

Assim <strong>sobre</strong>viveram. Ali estavam os seus descendentes,<br />

cerca de duzentas famílias em convivência livre a céu aberto,<br />

numa sociedade sem chefes, sem senhores nem escravos, e<br />

da qual faziam parte até os animais domésticos, pois a ninguém<br />

admirava que porcos, galinhas, bodes, e até vacas e<br />

bezerros andassem soltos pelo casario de palha, entrando e<br />

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saindo como gente da família, às vezes até mesmo dividindo<br />

com eles a comida na mesma panela, que a terra era generosa<br />

e sem fronteiras, e todos eram igualmente filhos da<br />

Mãe Natureza. As roças não tinham cerca, as criações não<br />

tinham chiqueiro, o gado não tinha curral, e ninguém tinha<br />

peias. Ninguém iria perturbá-los jamais. Além dos sete<br />

morros que os rodeavam e que por eles montavam sentinela,<br />

tinham mais adiante os lombos largos da Serra dos<br />

Carajás. Para que melhor esconderijo?<br />

Só de vez em quando é que um representante deles, conhecido<br />

como Chico Venâncio, era destacado para ir comprar<br />

alguma fazenda ou vender cereais no povoado mais<br />

próximo, que ficava muitos dias de viagem na esteira do rio.<br />

Mas o diabo, que inventa tudo, inventou também o transístor,<br />

o rádio e o helicóptero. Muito devagar, mas com irrefreável<br />

curiosidade, os negros do Vale da Boa Esperança<br />

foram tomando conhecimento do mundo, uns dando opiniões,<br />

outros invejando o progresso, entusiasmados, firmando<br />

posições, embora os mais velhos permanecessem<br />

sempre absolutamente contra, atentos ao peso de palavras<br />

antigas que com dificuldade ainda podiam reunir na memória.<br />

Em todo caso, o aberto do mundo e suas novidades eram<br />

sempre um convite tentador. O próprio Chico Venâncio recorda<br />

a primeira vez que viu a televisão. Nunca pôde explicar<br />

para si mesmo o que se passava com aquela caixa com<br />

um homem falando e se mexendo, e o que conseguiu dizer<br />

foi só isso:<br />

– Quando der-se fé, o calunga vai querer soltar-se de lá<br />

de dentro pra vir puxar cavaco com a gente no meio do terreiro.<br />

Mas, quando uma vez levou a sua velha Bárbara numa<br />

das descidas pelo rio e viu que ela, sentada, puxava a barra<br />

do vestido porque o homem da televisão não parava de olhar<br />

entre as pernas dela, deu-se conta de que havia feito uma<br />

besteira descomunal e tratou de emendar-se a tempo. E<br />

daí a sua reprovação imediata e a irreconciliação com Preto<br />

Balbino, antes um dos mais chegados dos seus amigos e<br />

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um dos mais encantados com as novidades que os tempos<br />

anunciavam.<br />

É noite de lua cheia. Navegando nos ares, o luar cruza um<br />

nevoeiro esgarçado e volta a encher o mundo. Tomado pelo<br />

banzo e pela cachaça, Balbino vem ver a lua cavalgando as<br />

nuvens, a noite coalhada de branco:<br />

– Quando eu imagino que já teve gente botando o pé naquela<br />

jerigonça!<br />

E Chico Venâncio, no mesmo instante:<br />

– Nunca mais diga isso, viu?<br />

– Ora, e por quê?<br />

– Porque nunca ninguém teve na lua.<br />

– E num tem a história de três homens que foram à lua?<br />

Não diz que eles desceram na lua, pisaram e sapatearam<br />

na lua, deixaram a marca dos pés lá nela? Num deu na televisão?<br />

Todo mundo num viu?<br />

– Isso não aconteceu coisa nenhuma.<br />

– Você tá duvidando, é?<br />

– Duvidando, não. Estou é dizendo. E ninguém bota na<br />

minha cabeça que homem nenhum tenha chegado até a<br />

lua.<br />

– Será possível?<br />

– Aquilo foi puro truque, pode ficar certo, mandinga daquela<br />

cumbuca indecente. Coisa inventada pra pregar na<br />

cabeça dos bestas. Pra depois, ficarem rindo da gente.<br />

– Mas não pode. Diz que todo mundo viu.<br />

– Pois é. “Todo mundo viu”. Você viu?<br />

Quem diz que viu, só viu por aquela coisa. Pode ser?<br />

Eles enganaram o mundo todinho.<br />

– Mas tem até retrato.<br />

– Tem retrato e tudo, tá certo. Mas eu já vi até branco metido<br />

a sabedor das coisas dizendo que na lua não dá nunca<br />

pra ninguém ir, não. Não tem escada que chegue lá. O que<br />

acontece é que eles desceram aí em qualquer descampado<br />

e depois espalharam a mentira.<br />

– Será?<br />

– No duro. Ou, quem sabe, foi outra assombração, que<br />

nem essas do Piquizeiro Velho.<br />

Como poderiam Chico Venâncio, Preto Balbino e seu<br />

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grupo adivinhar jamais o que se passava na luzidia Capital<br />

dos Timbiras? Na manhã quente de agosto, dois vultos<br />

saíram apressados do Hotel Vila Rica a caminho do Correio.<br />

Nenhum cuidado tiveram em não ser vistos, e foi uma<br />

pena que ainda poucas pessoas estivessem se movimentando<br />

pelo centro da cidade àquela hora, pois quase ninguém<br />

pôde presenciar o espetáculo que só agora é relatado por<br />

uma testemunha ocular: um deles era tão desmedido no<br />

peso e na altura, que quando passou diante da estátua de<br />

Benedito Leite, o gigante de bronze teve um estremecimento<br />

geral e levou a mão à cabeça, certo de sua impotência em<br />

competir com o outro Gigante vivo, com medo do que antecipavam<br />

os seus olhos seculares. Na outra praça, quando<br />

os viu entrar no Correio, a estátua de João Lisboa levantou-se<br />

com fúria e jogou depressa mais um jornal debaixo<br />

da cadeira, para contemplar com toda atenção o que o seu<br />

amor à terra negava-se a aceitar: dessa vez era Atenas que<br />

era visitada pelo cavalo de Tróia e o povo, dormindo como<br />

antes, não se dava conta do assédio.<br />

Fora isso, pode-se dizer que os dois vultos passaram pelo<br />

centro da cidade quase sem ser vistos. No Correio, um deles<br />

abriu a caixa postal, desfez nervosamente a embalagem da<br />

encomenda e, em silêncio, entregou ao Gigante a copia de<br />

alguns papéis.<br />

– Os mapas chegaram, eh?<br />

– Vamos. Não podemos perder tempo.<br />

E saíram, quase voando, a caminho do aeroporto, onde<br />

um big jato os fez voar mais rápido ainda.<br />

– Sua excelência foi muito acessíve1.<br />

– Yeah. Razoável.<br />

– Nós devíamos ter voltado a falar com o Sunguelo.<br />

– Talvez da próxima. Vamos voltar logo.<br />

Voltaram logo, como prometeram, desta vez acompanhados<br />

de mais gente e mais dinheiro.<br />

Eram tempos agitados. Todo o Estado, por obras de sucessivos<br />

governos, ardia em franco progresso, dividido entre<br />

alguns poucos milionários e alguns muitos miseráveis.<br />

Municípios havia já completamente loteados e leiloados.<br />

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Noutros, mais da metade da área estava ocupada com a<br />

plantação de capim, e por toda a parte mais da metade dos<br />

crimes de morte era por questões de terra. O povo assistia a<br />

tudo encantado com as cores da televisão, que o progresso<br />

havia chegado para democratizar o conforto, misturando<br />

com o êxodo rural e a poluição, que os governantes haviam<br />

pedido a Deus em discursos oficiais.<br />

Bem-aventurados tinham sido aqueles que, entendendo<br />

o sinal dos tempos, haviam-se antecipado na prática difícil<br />

da grilagem, arte pura, de iniciados. A cidade inteira apontava<br />

com orgulho esses homens sumamente corajosos, que<br />

se enchiam de muitos capangas para fazer valer ainda mais<br />

a própria coragem.<br />

Quem não conhecia Juca Sunguelo, rosado e sólido cidadão,<br />

promovido de ex-incendiário de bancos a senhor<br />

de moderníssimas fazendas e muitas terras, adquiridas às<br />

custas de grossas gorjetas a escrivães, falsificadores de documentos<br />

e jagunços bem armados? De uma ponta a outra<br />

da cidade, se comentava com estupor o fulminante currículo<br />

de tão hábil e impune grileiro, demonstração ambulante<br />

de que o capitalismo rural alcançava o Grande Estado. Pois<br />

todos sabiam que Juca Sunguelo se dava até ao luxo de<br />

ter bezerros em incubadeiras e bois no ar condicionado, tomando<br />

leite em pó, enquanto mais da metade da população<br />

comia seis vezes menos do que precisava.<br />

– Aquilo é que é boi repotreúdo, sô! Criado com toddy!<br />

Eram tempos agitados aqueles, mas eram também tempos<br />

inigualavelmente românticos, cheios de namorados e<br />

poetas marginais, que tomavam a praça pública e invadiam<br />

a noite, escrevendo nas paredes suas declarações de amor<br />

e seus desabafos pessoais. Devia ser de um desses versejadores<br />

a seguinte estrofe que foi encontrada certa manhã,<br />

gravada no meio-fio, nas paredes, nas pontes da cidade:<br />

No Brasil verde-amarelo Em nosso mundão tão belo Em<br />

vez de pé-de-chinelo<br />

Bom é ser boi de Sunguelo.<br />

– Pelo que se vê, o homem não é assim tão querido em<br />

sua própria terra, comentou um dos dois vultos, quando,<br />

voltando, viu aqueles versos.<br />

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– Gente invejosa tem sempre por toda parte, disse o Gigante.<br />

Em todo caso, melhor para todos nós. Talvez isso o<br />

force a vender um pouco de suas terras para não dar tanto<br />

na vista. Nós vamos comprá-la barata.<br />

E, por instinto, segurou com mais força a alça da pasta<br />

grossa onde carregava os seus milhares de dólares vivos.<br />

Compraram de Sunguelo as terras que quiseram: cento e<br />

cinquenta mil hectares para um grande projeto de agricultura,<br />

pecuária e minérios, que iria injetar uma dose cavalar<br />

na andrajosa economia de subsistência estadual. Tiveram<br />

antes o pequeno cuidado de conferir tudo de acordo com o<br />

mapa que tinham em mãos. Tudo certo, tiveram só outro<br />

cuidadozinho muito humano:<br />

– Sr. Sunguelo... Só Outro probleminha final muito simples.<br />

– E o dinheiro?<br />

– Oh, no, dinheiro no problema. É que nós queremos a<br />

terra como ustedes dicen...<br />

– Livre e desembaraçada.<br />

– Desembaraçada, isso mesmo. Não queremos questões<br />

futuras.<br />

–Bem, isso é fácil. No momento, tenho mais de duzentos<br />

homens limpando a área. Posso lhe garantir que boa parte<br />

do serviço já foi feito. O que falta eu lhe dou a minha palavra<br />

de honra que dentro de dois, três meses...<br />

– Está certo. Nós podemos esperar esse tempo. Não temos<br />

tanta pressa e vamos dando andamento a outras fases do<br />

projeto.<br />

– Agora, pra ser sincero, como sei que vocês gostam das<br />

coisas direitas...<br />

– Sim.<br />

– Tem uma coisa.<br />

– Uma coisa?<br />

– É. No meio da área, no pé da Serra de Piracambu, pra<br />

dentro umas tantas léguas do último povoado que a gente<br />

tá acabando de dar fim, tem um outro, numa clareira no<br />

meio da mata, o Vale da Boa Esperança. Que aí não tem<br />

jeito.<br />

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– Como não tem jeito?<br />

– É... É uma espécie de isolado negro. Moram lá desde<br />

quando comprei as terras.<br />

– E com isso? Os outros também estavam.<br />

– Certo, mas é que nesses pretos a gente não pode mexer.<br />

O Gigante passou a soltar labaredas aos quatro ventos:<br />

– Mas, para que ser humanitário agora? Por que não poder<br />

mexer?<br />

– Não é bem isso. E que já fizemos o possível e não deu certo.<br />

Os meus homens já foram lá, alguns foram até mortos.<br />

A Polícia foi, voltou correndo. Todos voltam alarmados e<br />

não encontram nada. Ainda chegamos a queimar algumas<br />

casas deles, mas eles são capazes de reconstruir tudo com<br />

uma rapidez incrível.<br />

– Mas não se pode ter compaixão.<br />

Juca Sunguelo se fazia humilde ao contar a derrota de<br />

seus capangas e ao imaginar-se sem os dólares com que<br />

sonhava.<br />

– Não é o caso de ter ou deixar de ter compaixão, não se<br />

trata disso. O negócio é que a gente chegou a chamar a<br />

atenção de uma revoada de cientistas quando nos metemos<br />

a expulsar o pessoal do Vale da Boa Esperança. Tem muita<br />

gente interessada em estudar esses negros, os modos,<br />

a fala deles. Por mim, era melhor estudar um zoológico.<br />

Mas... Um dos seus assessores conhece o Professor Simplício<br />

Piticaia.<br />

– Quantos cientistas já foram lá?<br />

– Que eu saiba, só o Dr. Piticaia, É dificílimo chegar ao<br />

Vale. Mas todos fazem um barulho dos diabos.<br />

– Então, nada feito.<br />

O Gigante se levantou e deu com a cabeça nos lustres da<br />

sala. O grileiro pulou de lado.<br />

– No, nada interessa. Nenhum dos seus argumentos conta<br />

para mim. Você pode nos entregar também aquela área<br />

livre e...<br />

Juca Sunguelo se viu obrigado a juntar as suas últimas<br />

palavras, agarrando-se a elas com as forças todas que tinha:<br />

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– O senhor não vai entender. Por favor, vocês expliquem<br />

isso aí pra ele – pedia aos assessores do Monstro.<br />

– Qual é o problema?<br />

– É que a área é toda mal-assombrada. Todo mundo que<br />

vai lá, até o mais corajoso, volta na carreira conversando<br />

coisas que não sabe contar. No meio do Vale tem um piquizeiro<br />

enorme, uma das nossas árvores tropicais, está<br />

me entendendo? É impossível se fazer coisa séria contra os<br />

pretos sem atravessar o caminho onde está o piquizeiro. E<br />

contam que dois homens que foram enfrentar a visagem<br />

também se encantaram, andando nus no alto da serra.<br />

Surpreendentemente, o Gigante torceu a boca e, em vez<br />

de labaredas, soltou uma gargalhada:<br />

– Oh! Voodoo!<br />

– É isso mesmo, feitiçaria – completaram os seus cupinchas.<br />

– Coisas de negro mesmo.<br />

– No problema, no problema. – E abriu-se no que importava:<br />

- Paguem ao homem. O negócio está feito. Nós nos<br />

arranjamos quanto a esse Vale.<br />

– Está certo que negro e merda é tudo uma coisa só - concordou<br />

o assessor imediato. - Mas, por isso mesmo, não vamos<br />

apanhar merda com as mãos. Vamos limpar isso com<br />

muito cuidado, se não a gente também se suja.<br />

A comitiva olhava das alturas do helicóptero o casario de<br />

palha lá em baixo e a população toda correndo, apavorada<br />

com o bate-bate das asas do gafanhoto metálico.<br />

– Destruam tudo. Use napalm, if necessary - insistia o<br />

Gigante, encolhendo-se em oito das dez poltronas da máquina<br />

voadora.<br />

– Poderíamos fazer isso. O problema é que não iria pegar<br />

bem.<br />

– E quem vai se preocupar com esses animais nessa selva<br />

escondida?<br />

– Certo. Estamos distantes da civilização e estes são, em<br />

verdade, uns bugres. Acontece que se transformam mesmo<br />

numa atração internacional.<br />

– Você está brincando. Esses são uns macacos.<br />

– São, está bem. Mas, exatamente por isso, objetos dos<br />

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estudos científicos de que lhe falou o Sunguelo. Deixe eu<br />

lhe falar mais de Simplício Piticaia: é um antropólogo de<br />

fama internacional, um dos poucos que já manteve contato<br />

direto com esse grupo, depois de ganhar confiança deles, e<br />

já vem pesquisando há anos esta estranha fauna, com trabalhos<br />

apreciados em congressos e mais congressos.<br />

– Não posso acreditar nisso.<br />

– Acho melhor você acreditar. Nós nos colocaríamos muito<br />

mal se fôssemos mexer nesses pretos assim sem mais<br />

nem menos.<br />

O mostro coçou-se com raiva, jogando de lado a cabeleira<br />

leonina. Nunca que lhe pudesse entrar pela cabeça, qualquer<br />

que fosse o motivo, chegasse a impedir as muitas léguas<br />

contínuas dos seus muitos hectares de terra virgem.<br />

– Compramos um país...<br />

– Sim, um país dentro do País, maior do que muitos países<br />

por esse mundo afora.<br />

– Mas, desafortunadamente...<br />

– O quê?<br />

– Não podemos ocupa-lo.<br />

– Oh, não, não, está cedo para qualquer decisão final.<br />

Veja, eu não descartei nenhuma medida de força. É que<br />

acho que o assunto podia se resolver diferentemente, se<br />

pensássemos... Você me dá carta branca, por uns minutos?<br />

Só a muito custo o assessor extraordinário convenceu-o a<br />

descerem no meio da aldeia. À medida que o helicóptero perdia<br />

altura, o Gigante passou a exalar uns odores estranhos,<br />

não, como se pensou à primeira vista, em consequência do<br />

medo de ser comido vivo, mas por causa de uma desidratação<br />

amazônica de que ia sendo acometido.<br />

Mas não existia viv’alma nos casebres. O assistente especial<br />

percorreu toda a clareira até onde pôde e percebeu que<br />

havia gente escondida à beira da mata.<br />

– Alô, gente. Alô, gente. É de paz.<br />

À sombra das árvores ele viu os negros amontoados a um<br />

canto, apavoradíssimos, abraçados a um tronco como a um<br />

mastro de navio negreiro.<br />

– É de paz. Somos amigos. Quero falar com o chefe de<br />

vocês. Pode vir sem medo que não viemos pra fazer mal.<br />

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– Aqui num tem chefe. Quê que vocês andam procurando?<br />

- perguntaram Chico Venâncio e Preto Balbino.<br />

– Queríamos conversar com vocês.<br />

– Pois já estão conversando. Digam logo o que querem.<br />

– Onde estão os outros? Por que fugiram? Quantos são<br />

vocês? De que tamanho é a terra de vocês?<br />

– Tamanho? Aqui ninguém está preocupado com isso<br />

não, senhor.<br />

– Quem foi que deu ela a vocês?<br />

– Quem foi? Deus Nosso Senhor, que deu tudo a todos.<br />

– Não é isso. Pergunto como vocês conseguiram essa terra.<br />

– Como? Trabalhando nela.<br />

– Não, não eu quero dizer... como vocês podem dizer que<br />

essa terra é de vocês?<br />

Os dois pretos levaram-no a um canto da clareira e lhe<br />

mostraram as covas do cemitério.<br />

– Siô, os nossos avós e os avós dos nossos avós estão<br />

enterrados ali. Faz muito tempo que nós possui esta terra<br />

escondida nesse meio de mundo. Essa terra só pode é ser<br />

nossa porque num pode ser de ninguém.<br />

O homem parou, para tomar a medida do problema que<br />

enfrentava.<br />

– Bom, naturalmente...<br />

– Naturalmente, o quê?<br />

– Vocês estariam dispostos a se desfazer de sua terra...<br />

– O que o siô tá dizendo?<br />

– De vender parte dela?<br />

– Não, nós não temos terra pra vender, nem pra dar, nem<br />

pra escaimbar...<br />

– Mas, eu só queria...<br />

Chico Venâncio se viu obrigado a relembar uma longa história<br />

toda igual e diferente, que poderia se multiplicar muitas<br />

e muitas vezes, de como os seus antepassados falavam<br />

de senhores sangrando negros só pra ver o sangue misturar-se<br />

ao barro de construção das suas moradas ricas, outros<br />

deixando _ e achando bonito - os filhos emprenharem<br />

as mulheres negras e depois mandando queimar vivas, nas<br />

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fornalhas dos engenhos, as escravas e os filhos nas barrigas<br />

delas, os ventres estourando ao calor das chamas, as<br />

cabeças dos inocentes espocando no fogo como coisa podre.<br />

– Agora vosmicê vem me falar em vendas de terras? Pra<br />

quê? Pra onde é que a gente vai? Fazer o quê com o dinheiro<br />

de vosmicês?<br />

– Mas o senhor poderia falar com os outros.<br />

– Siô, aqui faz tempo que a gente aprendeu que é todo<br />

mundo junto ou então ninguém escapa.<br />

O assessor foi ficando nervoso, mudando de tática:<br />

– Agora você vai ver uma coisa.<br />

– Sim.<br />

– Esta terra já está toda vendida.<br />

– O quê? A quem?<br />

– A nós.<br />

– Nós, quem? De onde saíram vosmicês? Quem foi esse<br />

que foi vender o que não tem?<br />

Mas essa era outra longa história que não adiantava ser<br />

contada.<br />

– E então? – ressuscitou o Monstro, num grunhido.<br />

– Agora posso dizer que é um caso impossível.<br />

– Definitivamente?<br />

– Sim, mesmo porque a negralhada se dispersaria pela<br />

mata em qualquer ação mais séria e aí teria que ser uma<br />

luta homem a homem, uma verdadeira caçada.<br />

– Pro inferno – cuspiu o outro. – Vamos usar o desfolhante<br />

laranja. Só lamento porque haveremos de queimar a mata<br />

to a great extension.<br />

– Tenho uma última sugestão.<br />

– Outra? Qual?<br />

– Alugar um cérebro. Vamos conversar com aquele antropólogo<br />

de que lhe falei.<br />

O professor Simplício Piticaia demorou alguns dias a retornar<br />

de suas andanças pelo interior.<br />

– Doctor...<br />

– Em que posso servi-los?<br />

– Conhecemos de longe a fama de suas pesquisas e<br />

queríamos conhece-lo.<br />

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– Muito obrigado. Mas, pelo jeito, algo mais do que a intenção<br />

de ver um nariz ou um chafariz traz vocês até aqui.<br />

– Verdade.<br />

– Então, vamos ao que importa.<br />

– Certo. Gosto de gente assim – rosnou o Gigante, soltando<br />

fogo.<br />

O assessor explicou-lhe de que se tratava:<br />

– Ah, sim vocês são compradores de terras.<br />

– É. Temos lá uma invasão.<br />

– Sei: eles são invasores. Vocês são grileiros.<br />

– Não, não. Nós temos o título de propriedade, tudo legalizado.<br />

– Sim, como tem de ser. Uma questão de jeito, de prestígio<br />

e de semântica. Ricos e pobres disputando o mundo,<br />

há alguns milhões de anos. Grilagem e invasão são verso<br />

e reverso de uma só moeda. O invasor é o grileiro pobre. O<br />

grileiro é o invasor rico.<br />

– Doctor Piti...<br />

– Perdoem a digressão. O caso é que vocês estão mexendo<br />

em chapim de caba. Aquela é uma das últimas comunidades<br />

negras mais ou menos puras do País. Conservam<br />

quase intactos uns velhos costumes, como a sua religião<br />

anímica, e desconhecem muitos dos nossos. Como todos<br />

nós, são muito supersticiosos...<br />

– Supersticiosos?<br />

– Sim. A superstição é o adubo das suas relações com o<br />

Absoluto. Vocês certamente encontraram uma grande árvore,<br />

um piquizeiro centenário no meio da clareira, não?<br />

Não sei como lhes diga: eles temem a essa árvore como se<br />

ela fosse ao mesmo tempo, e conforme a ocasião, a encarnação<br />

de Deus ou do Diabo.<br />

– E o que desconhecem do nosso mundo atual?<br />

– Bem, não é desconhecer, mas... Por exemplo, a televisão,<br />

as viagens espaciais. Lembro-me quando riram e<br />

protestaram com animação quando lhes falei que o homem<br />

já tinha ido à lua.<br />

Os homens se despediram de Piticaia sem conseguir nada<br />

do que buscavam.<br />

No coração da megalópole paulista, no trigésimo segundo<br />

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andar de uma agência de publicidade, abre-se o debate <strong>sobre</strong><br />

a comunidade de pretos do Vale da Boa Esperança.<br />

Presentes, como convidados especiais, os assessores do<br />

Gigante, que não escondiam o desalento pelo fracasso de<br />

suas ideias, nem encontravam uma saída para salvaguardar<br />

a imagem da Grande Companhia que havia comprado<br />

uma parte das terras de Juca Sunguelo.<br />

– Sei que estamos progredindo, mas ainda vamos levar<br />

anos para no livrar deste sentimentalismo idiota no tratamento<br />

das questões racionais no Brasil.<br />

– Esperem um pouco – interveio um dos desenhistas da<br />

agência. – Vocês disseram que esses negros são muito supersticiosos?<br />

– São, sim.<br />

– E têm um medo danado de assombração?<br />

– Sim.<br />

– E desconhecem as nossas tecnologias mais elementares?<br />

– Sim, maios ou menos.<br />

– Vocês querem suspender tudo e deixar o resto por minha<br />

conta?<br />

– O que você vai fazer?<br />

– Quero apenas quinze dias e muito pouca grana. Dá pra<br />

vocês esperarem? Isso aqui é uma agência de publicidade.<br />

Eu preciso apenas de um camelô.<br />

Manhã clara e quente no Hotel Grande Mina, anexo do<br />

Aeroporto Internacional dos Carajás, em Santa Inês, no<br />

Maranhão. Três vultos aparentemente respeitáveis, apenas<br />

servido o café, encerram a conta e pagam em dólares. No<br />

aeroporto, apressadamente a gasalham as matulas e partem<br />

para o Vale da Boa Esperança.<br />

– Vamos parando por aí. Não devemos ter nenhuma pressa<br />

nisso.<br />

Ao pôr do sol, a máquina em que voam bate as asas <strong>sobre</strong><br />

a árvore de que tanto se diziam coisas. Um deles desce por<br />

uma corda e faz uns preparativos.<br />

Como antes, quase todos os negros se escondem no mato.<br />

O helicóptero alcança o meio da clareira e dele sai uma voz<br />

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por um megafone, o foguetório acompanhando-a de entre<br />

as folhas do Piquizeiro:<br />

- Atenção, atenção! Estamos aqui - e a noite se faz uma<br />

fogueira -, estamos aqui para anunciar uma grande novidade.<br />

Amanhã, às dez horas da manhã, grande show, o maior<br />

de todos os tempos, em todo o mundo, o maior de todos<br />

os acontecimentos. Amanhã, no alto do Piquizeiro Velho,<br />

o Homem-Que-Foi-à-Lua virá fazer uma visita a todos os<br />

moradores deste lugar. Ninguém deve perder este grandioso<br />

espetáculo em uma única apresentação: o senhor Neil<br />

Armstrong em pessoa virá contar para todos como foi a sua<br />

chegada à lua, as novidades incríveis, fantásticas, extraordinárias,<br />

que trouxe de lá. Não percam, não percam! Amanhã<br />

às dez horas!<br />

A voz sobe e desce pelas encostas dos pequenos morros,<br />

em cujas matas os pretos apavorados se escondem da<br />

maior visagem de sua vida.<br />

Só Preto Balbino e Chico Venâncio ainda teimam:<br />

– Eu num lhe disse?<br />

– Disse o quê, Balbino? Tu num tá vendo que o fim do<br />

mundo começa assim?<br />

– Eu num sei. Só sei que amanhã eu vou conversar com<br />

esse tal de Nélio Armestrume. Vou tirar essa questão a limpo,<br />

que não tou aguentando mais.<br />

Cedinho da manhã, os visitantes correm para o Piquizeiro<br />

com um sacolão e outros apetrechos. Quando os negros<br />

abrem os olhos vêem um balão gigantesco amarrado ao<br />

alto da árvore mal-assombrada.<br />

– Em que língua querem que eu fale? - pergunta o pontífice<br />

daquela cerimônia.<br />

– Fale numa língua que essa pretama entenda bem do<br />

que se trata - responde o chefe de operações.<br />

Às dez horas em ponto começa o grande espetáculo. Nova<br />

e estrondosa queima de fogos, para iniciar, e das alturas<br />

do balão para dentro da mata faz-se o maior de todos os<br />

anúncios:<br />

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– Hello, people! Meu nome é Neil Armstrong e trago uma<br />

saudação para todos os povos irmãos, habitantes do Universo.<br />

Estamos em missão de paz e fraternidade. Mas cumprimos<br />

o dever de avisar a todo o mundo <strong>sobre</strong> a Grande<br />

Ruína que vai acabar com metade da Terra. Os homens<br />

têm feito muito mal e estão se destruindo. Um grande banho<br />

de fogo, um grande banho de fogo - (e o foguetório zune<br />

por todo lado) - vai incendiar todas as florestas sem sobrar<br />

uma. Quem não quiser morrer, deve procurar o caminho<br />

dos rios ou refugiar-se por onde tenha água. Vocês não percam<br />

tempo. Desapareçam dessa mata logo. Vão-se embora<br />

todos. Quem não obedecer a essa recomendação vai virar<br />

uma rocha acesa cheirando a carne assada.<br />

A fala do astronauta termina por uma gargalhada e logo<br />

recomeça no mesmo tom:<br />

– Hello, people! Meu nome é Neil Armstrong ... - como se<br />

fosse uma gravação. A voz ecoa pelos sete morros junto<br />

com o ribombar dos foguetes e precisa ser repetidas muitas<br />

vezes:<br />

– ... meu nome é...<br />

– Seu Nélio. Seu Nélio. Quero uma palavrinha com vosmicê.<br />

Desça daí.<br />

Na Capital, o professor Simplício Piticaia lê a notícia do<br />

desbaratamento misterioso do isolado da Boa Esperança,<br />

que ele mesmo levara à imprensa. O jornal informa: quase<br />

todos parecem ter morrido afogados. Apenas um dos negros<br />

ficou lá, endoidecido, zanzando no meio da clareira,<br />

com as mãos pros céus:<br />

- Seu Nélio, seu Nélio. Desça daí...<br />

Só depois é que o jornal deu o que comprovavam há tempo<br />

uns escondidos mapas do levantamento aerofotogramétrico<br />

da Amazônia: no local onde era o casario dos negros<br />

estava a maior mina de ouro da região. A céu aberto.<br />

Sebastião Moreira Duarte<br />

M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino<br />

Americana, University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras.<br />

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Nas horas de Deus - Amém<br />

Ariel Vieira de Moraes<br />

A ltos Paus... Redondelas<br />

Mestre Barbosinha era homem de grandes predicativos,<br />

sujeitão prestigioso e dono da estima<br />

geral da gerente de Ribeira dos Pequis, comarca onde ostenta<br />

a condição de rábula e disso fazia alarde. De botar<br />

muito doutor munido de diploma e anel no dedo em posição<br />

de humildade.<br />

– Do desabusado requerer desterro em comarca distante<br />

– dizia o amigo Bertoldo, em conversa solta em roda de oficiais<br />

de justiça.<br />

– É como eu digo e redigo, seu Bertoldo! Não sou homem<br />

de apreciar demanda nanica, coisa de pequena monta. Sou<br />

muito Barbosinha de fazer o constituinte deixar a desavença<br />

se avantajar, amadurecer até dar o ponto. Aí este seu<br />

criado ataca a pendência à moda de doutor médico, aplicando<br />

mezinha de grande valimento, de desatarraxar o mal<br />

pelo nascedouro, sem recurso ou embargamento capaz de<br />

fazer voltar o padecimento.<br />

Em época de festejo preparado em recinto de igreja por<br />

padre Eucrásio, Barbosinha contraía modos de santo. De<br />

não largar por nada deste mundo a batina do vigário. Nessas<br />

ocasiões não botava conversa fora, nem desperdiçava<br />

tempo em assunto pagão.<br />

– Nem as pernas da prima Enedina, seu Bertoldo! Nem os<br />

seus ondulamentos constituem motivo de tentação a este<br />

seu criado.<br />

Mas de cem afilhados de batismo e outros tantos de crisma<br />

possía a jurisdição de Pequis.<br />

– Não possuo constituintes, seu doutor! Tenho compadres<br />

e comadres.<br />

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Os honorários, no grosso, vinham em moeda de gratidão.<br />

– Doutor Barbosinha, era gosto meu e da Do Santo que o<br />

senhor fosse padrinho de Getulinho. Não se falava mais em<br />

horários.<br />

Onde já se viu cobrar besteira de compadre? Comadre é<br />

parente! E estava enterrado o assunto.<br />

Fora dos festejos de padre Eucrásio, a bem da verdade,<br />

Barbosinha era outra pessoa. Dominava com grande competência<br />

o terreno do delito de safadeza. Dançador pé-deseda,<br />

não desperdiçava folguedo no Clube Cultural e Recreativo<br />

Pequiense. E em prosa vadia no Café Palácio:<br />

– É como eu sempre digo: não conheço ofício mais mimoso<br />

que este de alisar cangote de moça donzela em salão de<br />

festa de luz escassa. É ter início a função e este seu criado<br />

contrair um fungado renitente, coisa de origem jurídico-filosófica,<br />

mas muito do gosto das damas. Fungue, seu Barbosinha..<br />

Olhe, seu Bertoldo, não é qualquer menino de<br />

dezoito anos que vai colocar em situação de desvantagem<br />

este seu criado, em tarefa de fungamento e sem-vergonhice<br />

em casa de mulher desimpedida.<br />

A bem dizer, uma única desamizade em Pequis. O coronel<br />

Zequinha das contendas, político, dono de alambique e<br />

perdedor contumaz de questões para mestre Barbosinha.<br />

Na ultima demanda braba travada por encomenda de Damião<br />

de Esmeralda, vereador de oposição e que sentia especial<br />

gosto em patrocinar causas de seus eleitores contra<br />

o coronel, Barbosinha fizera-lhe umas ponderações.<br />

– Ouça, coronel: é do meu especial deleite contar com o<br />

senhor entre os opositores de minhas causas, porque um<br />

homem não pode, sem risco de rebaixamento, abrir mão do<br />

direito de escolher seus amigos e seus inimigos, e este seu<br />

criado nunca gostou de medir força com sujeito amareloso,<br />

padecente de malária. De modo que, em me considerando<br />

detentor vitalício de sua desamizade, da qual não abro mão,<br />

me dou o direito de lhe passar aviso: se o coronel não requerer<br />

reforço do céu, vai acabar pobrinho de Jó, em cobrimento<br />

de despesas de honorários de advogados e taxas do<br />

governo. E conselheirão: tome juízo, coronel! Tome juízo e<br />

acabe com essa fome de terra, que o senhor não é minhoca.<br />

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As ponderações de mestre Barbosinha ocuparam espaço<br />

de latifúndio na cabeça e no sono do coronel. Sujeitinho<br />

encapetado este Barbosinha, capaz de fazer gato-e-sapato<br />

com as palavras e de deixar tonto o juiz Gouveia, que acaba<br />

sempre concordando com suas teses, suas jurisprudências<br />

e sua hermenêutica. E foi no rabo de noite passada, em<br />

desconforto de insônia grave, que o coronel formou decisão<br />

passada e repassada em travesseiro desdormido. Vou produzir<br />

meu próprio advogado. Formo Astério meu filho em<br />

doutor e fica resolvida a questão. E riu esperançoso: vai ser<br />

Barbosinha de contrair mal de alegria a compartimento de<br />

fórum.<br />

Nos dias que se seguiam, o coronel não se dedicou a outra<br />

tarefa. Escrevia cartas e mais cartas a amigos seus da<br />

capital e passava o tempo restante em reunião do sigilo com<br />

Astperio, que, do dia para a noite, assumiu ares de gente<br />

importante, de não consentir intimidades com a criadagem,<br />

coisa que nunca fora de seu natural proceder. Criado pelas<br />

mãos de preta Emerenciana, acostuma-se desde menino<br />

a brincar com os filhos de cambiteiros e dos cortadores de<br />

cana, do sujeito não diferençar o patrão do empregado.<br />

Numa coisa apenas não mudou Astério. No avançado<br />

da madrugada com Rosilene, moça de grande serventia de<br />

cama e cheiro de maresia, porto particular de suas navegações<br />

noturnas, era menino de colo, chorão em noite de<br />

manha, de só dispensar os serviços da menina no clarear<br />

do dia.<br />

E foi em manhã de muito conselho do coronel e lágrimas<br />

de Rosilene, que Astério partiu para a capital.<br />

– Não me volte aqui sem diploma, seu Astério – dizia o coronel.<br />

Não carece! Mando tudo de que precisar, pois doutor<br />

é vivente ocupado, sem tempo para desperdiçar em coisa<br />

desimportante.<br />

Vez por outra Astério se fazia presente em cartas que relatavam<br />

os progressos que fazia. Já desbancara muita raposa<br />

velha do direito na capital, em apenas três anos de<br />

estudo. Contava as maiores vantagens, de deixar o coronel<br />

orgulhosão. No final vinha sempre o pedido de dinheiro para<br />

compra de livros e pagamento de cursos necessários à sua<br />

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ilustração. Babando de contente o coronel despachava malas<br />

de dinheiro para Astério.<br />

Romualdo Galego, cunhado do coronel, intervinha cauteloso:<br />

– Compadre, vá devagar com o andor, que o santo é<br />

de barro...<br />

– Umas favas, seu Romualdo! O santo é de madeira de lei!<br />

O senhor até parece desconhecer o sobrinho que tem. Leia<br />

as cartas! Leia e aquilate se é de barro! Ando a investir no<br />

futuro, compadre Romulo. No futuro nosso e do País, no<br />

campo da educação. Se todos obrassem com igual patriotismo,<br />

quebraríamos as peias do subdesenvolvimento e o<br />

País correria em asa de relâmpago ao encontro de seu glorioso<br />

destino! E discursava de general.<br />

A fama de Astério corria meio mundo, alardeada pelo coronel,<br />

em palestras, cartas e notícias na Gazeta Pequiense.<br />

Falavam do monstro da oratória em grandes julgamentos<br />

na capital. Elegiam Astério à condição de professor da faculdade,<br />

antes mesmo de terminar o curso. Contavam das<br />

viagens que o rapaz fazia frequentemente ao estrangeiro em<br />

tarefa de pesquisa, onde deixava ingleses e americanos embasbacados<br />

com suas teses. Até mestre Barbosinha arriscava<br />

em elogio:<br />

– Nunca me enganou esse menino. Foi meu aluno ainda<br />

no ginasial e já naquele tempo apresentava todos os sintomas<br />

de gênio que viria a ser.<br />

Passados seis anos desde a ida de Astério, chega a Ribeira<br />

dos Pequis a notícia de sua formatura, e em carta jeitosa,<br />

com fala macia, requeria mais dois anos de prazo para<br />

estudo no exterior em matéria de especialização.<br />

Não faz mal, seu Romualdo! – dizia o coronel. O doutor<br />

quer chegar em Ribeira munido de cultura, de modo a desbancar<br />

de vez com a topetice desse Barbosinha, que, a bem<br />

dizer, ainda advoga pela aritmética.<br />

– É compadre Zequinha, faz pena que Ribeira dos Pequis<br />

não tenha crescido o bastante para comportar sujeito letrado<br />

no calibre do doutor Astério... – dizia Romualdo compenetrado.<br />

Não sabia o coronel que Astério nunca frequentara recinto<br />

de faculdade e que empregava o tempo e o dinheiro que<br />

recebia em ofício de sem-vergonhice nas boates e cabarés,<br />

onde enterrava a fortuna do pai.<br />

E foi em manhã de sol e passarinho na fazenda Rancho<br />

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Grande, onde vivia a vida em gozo vitalício de alegria e felicidade,<br />

que o coronel recebeu com ar de deboche a visita do<br />

oficial de justiça Bertoldo, que exibia intimação por força de<br />

demanda que dera entrada contra a pessoa do coronel no<br />

fórum de Ribeira dos Pequis.<br />

– É ate muito bom, seu Bertolo. Eu estava mesmo desejoso<br />

de aquilatar o saber de um doutor de fabrico meu.<br />

E em carta alongada e severona, requereu a presença de<br />

Astério nestes termos: quero o senhor aqui, dentro do prazo<br />

estipulado peplo juiz. Nem um dia de atraso, seu Astério!<br />

Nem um dia!<br />

A herança de sangue somada às más companhias haviam-se<br />

encarregado de moldar a pessoa de Astério. De rapaz<br />

brincalhão e meio irresponsável que fora, transformara-se<br />

num vivente lavado de qualquer virtude. Formado e<br />

doutorado em escola de safadeza e malandragem, não pedeceu<br />

de abalo nem de preocupação. Viajou para Ribeira<br />

dos Pequis em atendimento ao chamado do coronel.<br />

Chegando na cidade, seguiu direto para a fazendo do pai<br />

montado em cavalo de trote especial trazido por Balseiro,<br />

seu afilhado, moleque de uns quinze anos, que, ao avistar<br />

o padrinho, ensaiou movimento de quem pretendia abraçá-lo,<br />

cujo gesto morreu ao nascer, frente ao olhar sério de<br />

Astério.<br />

–- A bênção, meu padrinho! Como o padrinho está formoso!<br />

O coronel nem vai lhe reconhecer... Ai, meu Deus! Eu<br />

ia esquecendo de entregar o bilhete de Rosilene. Meu padrinho<br />

quer que eu vá junto? É só esperar um bocadinho<br />

enquanto eu entrego uns queijos a padre Eucrásio.<br />

– Deus te abençoe, Balseiro! Vai tua viagem, que eu sigo<br />

na frente, pois careço de pensar e tu falas demais.<br />

Na viagem, os pensamentos de Astério navegaram em noite<br />

de tempestade e trvão brabo. Agora que se aproximava<br />

o momento decisivo, a emoção da paisagem, a estrada, tão<br />

sua conhecida, o cheiro da pastagem, os sons da terra,<br />

tudo conspirava contra sua tranquilidade. Já não conseguia<br />

sustentar a frieza de seu natural. Desta vez, seu Astério...<br />

– dizia lá consigo mesmo. Você vai ter que usar de<br />

toda astúcia ou não sobrará doutor para contar a história.<br />

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Percorreu a estrada de Rancho Grande em marcha de preguiça.<br />

Cada curva, cada riacho trazia-lhe à mente pedaços<br />

de sua vida. Nem sempre fora assim. Naquelas paragens<br />

conhecera Rosilene e navegara suas águas, não por mero<br />

prazer carnal, mas por amor mesmo, paixão... E teve saudades<br />

de si mesmo. Seria ainda capaz de chorar de emoção<br />

como no tempo de criança? – indagou-se. Não obteve resposta,<br />

pois um bando de macacos que saltavam de galho<br />

em galho nas copas das árvores em grande alarido trouxe-o<br />

de volta à realidade.<br />

– Altos paus, redondelas, ouvem-se os clamores! – exclamou<br />

em tom solene de discurso.<br />

Gostava, desde garoto, desse tipo de artimanha. Interpretava<br />

os acontescimentos em frases sem sentido lógico, o<br />

que lhe causava especial prazes, pois, falando sem pensar,<br />

às vezes criava frases curiosas, que depois anotava em caderno.<br />

– Boa frase! – disse de Astério para Astério.<br />

Agora, desperto dos pensamentos e mais dono das emoções,<br />

passou de pensativo a observador. Iria até o final da<br />

viagem ocupando o tempo em fazer suas frases.<br />

Perto de um lago avistou mulheres que lavavam roupas.<br />

Parando o cavalo, interpelou-as:<br />

– Hem, comadres o negócio aí é de xirre xirre xinxirre!<br />

As lavadeiras, que nada haviam entendido, concordaram<br />

com sorrisos. Astério ficou satisfeitocom essa outra frase<br />

que criaria e seguiu viagem e repeti-la, a fim de não a esquecer<br />

até o instante em que tivesse à mão seu caderno.<br />

O sol já apontave para o meio-dia, quando pisou em pastos<br />

de Rancho Grande. Um rebanho de caprinos pastava<br />

à beira da estrada. Astério ficou em pé <strong>sobre</strong> os estribos e<br />

declarou:<br />

– Aí vai o capitão Mendonça, com suas forças armadas,<br />

comandando seu batalhão e balançando seus badulaques!<br />

O capitão Mendonça, no caso, era um bode velho que<br />

encabeçava o rebanho. Riu satisfeito. Não conhecia tarefa<br />

a que tivesse maior apego que a de construir suas frases,<br />

anotá-las e usá-las em conversa de salão. Sempre surtiam<br />

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ons efeitos. Certa feita, em jantar na residência de deputado<br />

amigo seu, em que tomava parte muita gente importante,<br />

um convidado que não simpatizava com Astério, tentando<br />

coloca-lo em má situação, perguntara-lhe <strong>sobre</strong> o que<br />

achava da ditadura de vargas.<br />

– Não dê importância ao que eu acho, doutor Crispim!<br />

Mas, tenha medo daquilo que eu procuro. A resposta fora<br />

assunto de conversa em muita reunião de políticos, pois, na<br />

época, dizer o que pensava de Vargas era muito perigoso,<br />

de modo que a saída de Astério fora considerada de grande<br />

inteligência e ironia ao mesmo tempo, coisa que rendeu<br />

grande prestígio ao rapaz, que a havia cunhado em tempo<br />

da rapazote, quando em procura da chave do cofre da<br />

fazenda para retirar dinheiro escondido, como era de seu<br />

uso, encontrara um par de abotoaduras que o coronel julgava<br />

perdido há muito tempo.<br />

Chegando em casa, teve acolhida de grande ostentação;<br />

rede branca armada na varando para descanso do doutor<br />

e os parentes mais chegados, sentados ao redor, a indagar<br />

das aventuras. Astério fazia pose de moralista e, a todas as<br />

perguntas, respondia cauteloso, pois seu pai não era pessoa<br />

fácil de ser enganada.<br />

O coronel não regateou. Festejou o acontecido em jantar,<br />

convidados e discursos de boas-vindas. O povinho de<br />

Ribeira dos Pequis compareceu em peso e fez presença na<br />

farra que varou a noite, não contando em boa parte com<br />

a presença de Astério, que cedo recolheu-se, sob a justificativa<br />

que carecia de preparar-se para a audiência do dia<br />

seguinte.<br />

– Obra bem doutor! Obra com acerto, pois doutor é que<br />

nem soldado. Na hora da luta tem que estar descansado e<br />

com as ideias no lugar! – justificou o coronel Zequinha.<br />

– Tem razão, compadre! – dizia Romualdo em tom brincalhão.<br />

O doutor amanhã vai enfrentar missão espinhosa... Vai<br />

destroncar os chifres de um tal de Barbosinha.<br />

– E que chifres, seu Romualdo! – completou o coronel, arrancando<br />

risos dos convidados.<br />

Astério mergulhou noite a dentro nas intimidades de<br />

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Rosilene, que o esperava em camisola perfumada e corpo<br />

de vulcão. Mesmo um sujeito do tirocínio de Astério, nesses<br />

assuntos de cama, reconhecia ser de grande responsabilidade<br />

navegar as ondas bravias da menina, seus recurvados<br />

e possuídos de fundos.<br />

De manhã, no fórum, o movimento dava gosto. Todos<br />

queriam apreciar o duelo entre o experiente Barbosinha e<br />

o estudioso Astério. Houve até bolsa de apostas e torcida<br />

organizada.<br />

Mestre Barbosinha não conseguia esconder uma ponta<br />

de preocupação. Indagado pelo amigo Bertoldo, esclarecia:<br />

– Não é nada não, seu Bertoldo. É que sempre fui homem<br />

apreciador de demanda avultada, coisa grandona... E esta,<br />

a não ser que o doutorzinho caia no desplante de mijar na<br />

beca, vai ser guerra feia, coisa assim de cabrito pastar deitado<br />

para evitar bala perdida em rebarba de tiroteio, como<br />

diz o povo. Nunca neguei fogo, seu Bertoldo. Nunca! E é<br />

só nas grandes causas que este seu criado aqui exibe um<br />

chiado que aprendi com um doutor lá das Europas que conheci<br />

na capital, em congresso de grande importância. É<br />

coisa de meter medo, seu Bertoldo. Do vivente desavisado<br />

abandonar a causa e requerer desistência na hora.<br />

Doutor Gouveia, juiz do feito, não conseguia parar de alisar<br />

o bigodinho, em gesto denunciador de grande nervosismo.<br />

Consultava um livro atrás do outro. Em vão tentou<br />

tirar prosa com Astério, que a todas as perguntas respondia<br />

em monossílabos, <strong>conto</strong>rnando qualquer tentativa de<br />

aproximação. Até os autos do processo recusou-se a consultar.<br />

O escrivão Aparício Jurubeba comentava intrigado<br />

com mestre Barbosinha:<br />

– Olhe, seu Barbosinha, estou bestificado. O homem nem<br />

quis pegar no processo. Pior... olhou a papelada e torceu o<br />

beiço... Também, formado em escola do estrangeiro ia ligar<br />

para nossos processozinhos subdesenvolvidos? Saber é saber,<br />

meu Mestre.<br />

Às dez horas em ponto, entre tiques nervosos, vestido em<br />

beca engomada a exageradamente grande para sua pessoinha<br />

raquítica, o juiz Gouveia deu inicio à audiência em tom<br />

solene, dizendo não poder abrir mão de registrar a presença<br />

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pela primeira vez no fórum de Pequis de tão agigantado<br />

cultor das letras jurídicas, e no final, rendia graças ao Criador<br />

que, assim sem mais nem menos, havia decidido prestigiá-lo,<br />

escolhendo-o para presidir um feito grandemente<br />

histórico.<br />

Com a palavra, mestre Barbosinha cresceu em feitio de<br />

gigante e assumiu a soberania do verbo. Falava em palavras,<br />

em gestos e chiava à moda das cobras. Diquinho de<br />

Irene, moleque recadeiro com expediente no fórum, saiu<br />

porta a fora, no seu jeito desparafusado.<br />

– Acudam, que seu Barbosinha endoidou de vez! Está<br />

chiando em jeito de caldeira! Eu acho que ele vai explodir.<br />

A oratória de mestre Barbosinha deixava a assistência<br />

arrepiada. Era um desperdício de jurisprudência, um esbanjamento<br />

de cultura, um chiado levado da gota, e arrematou<br />

a peça com esta advertência educativa:<br />

– E fique sabendo o requerido que não vai sair desta casa<br />

da Justiça com a crista empinada de galo de briga. É bem<br />

provável que desça as escadas em jeito de pavão misterioso.<br />

Chegava sua vez, Astério, que exibira todo tempo uma<br />

tranquilidade de pedra, falou sisudo e em tom grave:<br />

– Em respeito à questão, tenho apenas três ponderações<br />

e três avisos que se resumem na mesma coisa, uma vez que<br />

quem adverte aconselha, quem aconselha avisa e quem avisa<br />

amigo é. Primeiramente advirto: Altos paus, redondelas,<br />

ouvem-se os clamores!<br />

Doutor Gouveia sentiu ligeira tontura e requereu ao oficial<br />

de justiça um copo de refresco de maracujá:<br />

– Com muito açúcar, seu Bertoldo! E se avexe!<br />

Astério dava seguimento à defesa:<br />

– Segundamente, aconselho que é de xirre xirre xinxirre.<br />

Danou-se – gritou Diquinho de Irene e calou-se para<br />

até o final da audiência, por decisão do Juiz Gouveia, que<br />

sentiu um desmaio e entornou o copo de refresco no processo<br />

em julgamento.<br />

– Terceiramente, quero fazer aviso: vejo o capitão Mendonça<br />

com suas forças armadas, comandando seu batalhão<br />

e balançando os seus badulaques.<br />

Doutor Gouveia, que já dera cabo de vários fios do<br />

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igodinho ralo, suspendeu a audiência e trancou-se no gabinete,<br />

de onde jurava a si mesmo nunca mais sair.<br />

Não se ouviu palavra em comentário da assistência. As<br />

pessoas iam saindo pouco a pouco, com sintoma de sufocamento<br />

e feições de quem enfrentara desavença com assombração.<br />

Barbosinha tentou penetrar na sala do juiz Gouveia; bateu<br />

e não obteve resposta.<br />

Coronel Zequinha indagou encabulado ao filho:<br />

– Só isso? Não se conformava. Pois contava de ver o filho<br />

deitar falação em jeito político. Só isso, seu Astério?<br />

– Achou pouco, coronel? Queria matar o juiz Gouveia?<br />

Indagado pelo constituinte <strong>sobre</strong> o significado do discurso<br />

de Astério, mestre Barbosinha ponderou cauteloso, diferentemente<br />

de seu natural:<br />

– Seu Damião, o homem tem grande preparo de estudo;<br />

merece a fama que tem. Nunca encontrei sujeito que, por<br />

mais artimanhoso que fosse, aguentasse cinco minutos de<br />

meu chiado. Este aí, seu Damião, veio munido de arma de<br />

grande poder de estrago; trata-se do prestígio e do poder<br />

aliados ao saber. “Altos paus, redondelas”, ele disse, lembra-se?<br />

Pois altos paus são os cassetetes deles e redondelas<br />

são nossas cabeças. É tudo retórica ocultista, coisa para<br />

iniciados nos grandes mistérios do direito, matéria em que<br />

para felicidade nossa, este seu criado é doutor. “De xirre<br />

xirre xinxirre” não passa de uma nova versão do chiado europeu<br />

e significa sangue esguichando. O nosso sangue, seu<br />

Damião! A última colocação quer significar que o homem<br />

é amigo desse tal capitão Mendonça, que invadirá Ribeira<br />

dos Pequis com suas forças armadas e, no final, serão<br />

eles os únicos a prevalecer, balançando seus badulaques<br />

na frente de nossas mulheres. Uma tragédia, seu Damião!<br />

Uma tragédia!<br />

– Vôte, seu Barbosinha! Então a coisa é séria mesmo...<br />

– É pouco, seu Barbosinha! Sério é adjetivo desimportante<br />

para aquilatar a gravidade da situação, mas guerra é guerra,<br />

e se o compadre fizer questão, nós iremos até as derradeiras<br />

consequências, e tombaremos mortos no campo<br />

raso da luta.<br />

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– Seu Barbosinha... Que mal pergunte, não lhe ocorre<br />

saída menos danosa? Uma coisa mais suave? – indaga<br />

Damião, encolhido.<br />

– De existir existe, seu Damião, porque advogado nasceu<br />

para este ofício de encontrar saída em labirinto. Só que eu<br />

acho difícil o senhor concordar.<br />

– Concordo sim, compadre Barbosinha! Diga a condição,<br />

que eu concordo.<br />

– Desista da ação e, se possível, faça as pazes com o coronel.<br />

– Seu Barbosinha, compadre, o senhor pensou com acerto.<br />

Depois, já era mesmo tempo do coronel ganhar uma,<br />

senão a coisa ia perder a graça.<br />

Formalizada a desistência que foi de pronto homologada<br />

pelo juiz Gouveia, Barbosinha aproximou-se meio sem graça<br />

de Astério e estendeu-lhe a mão.<br />

– Posso dar-lhe meus parabéns? E caiu em elogios: o senhor<br />

vestiu o arrazoado com roupa nova exibiu uma retorica<br />

impecável! Falava e tocava na gola da beca de Astério,<br />

como quem retira invisível poeira.<br />

Num gesto elegante, Astério retirou a beca e a entregou a<br />

mestre Barbosinha.<br />

– É sua, mestre. E fico feliz que tenha gostado dela. É<br />

nova em folha e eu faço questão que o senhor a receba<br />

como recordação deste dia.<br />

– Não sei se devo... – gaguejou Barbosinha.<br />

– Claro que deve, mestre! Depois, eu tenho várias retóricas<br />

em meu guarda-roupa. E, olhando em volta, em gesto de<br />

despedida: agora me deem licença, que devo descansar. E<br />

no ouvido de mestre Barbosinha: estou com o arrazoado<br />

todo moído da viagem que fiz a cavalo.<br />

Astério afastou-se em companhia do pai e de alguns parentes,<br />

sob os aplausos dos que lotavam a praça do fórum.<br />

Mestre Barbosinha sentiu uma tontura e apoiou-se num<br />

poste. Ficara de repente só. Pensou na vida, pensou em<br />

padre Eucrásio, nas pernas da prima Enedina e nos seus<br />

avantajados, pensou em nos sessenta e cinco anos de idade,<br />

em sua barriga, suas pernas finas, sua assimetria, seus<br />

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compadres, sua língua solta, sua luta, pensou nos livros,<br />

no tempo perdido, pensou em doutor Astério...<br />

– Umas favas! Doutor, umas favas!<br />

– Falando só, seu Barbosinha? Era padre Eucrásio. Se<br />

avexe, homem! Ainda temos muita coisa a providenciar até<br />

a saída da procissão. A reunião de hoje contará com a ilustre<br />

presença de doutor Astério. Vamos, homem!<br />

– Não, padre. Vá sozinho, que este seu criado mudou de<br />

rumo. Vou requerer abrigo em compartimento de bar, seu<br />

vigário. Vou encher a cara, depois vou foder a prima Enedina...<br />

– Você endoidou, seu Barbosinha? Santo Deus, homem!<br />

O que você tem, meu amigo?<br />

– Não é nada não, seu vigário. É que daqui pra diante este<br />

seu criado vai levar a vida na base do xirre xirre xinxirre.<br />

E desceu a Rua da Mangueira em seu passo desavexado,<br />

rumo ao cabaré de Sofia.<br />

Ariel Vieira de Moraes<br />

Advogado e Escritor.<br />

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Uma difícil escolha<br />

José Neres<br />

S elecionar dois <strong>conto</strong>s no meio de dezenas de<br />

excelentes textos é sempre uma tarefa árdua,<br />

principalmente quando tais escolhas serão levadas<br />

a público. Os leitores têm, sem dúvidas, seus<br />

autores e seus textos preferidos e isso invariavelmente levará<br />

à pergunta “por que X e não Y?”, ou à pertinente observação<br />

“Se fosse eu, colocaria o <strong>conto</strong> tal no lugar desse<br />

outro que foi escolhido!”. Tudo isso é compreensível, já que<br />

nem sempre entram em jogo apenas os critérios técnicos,<br />

mas também as preferências pessoais e a abrangência da<br />

leitura.<br />

Quando recebi o convite do senhor Editor da Revista<br />

<strong>Plural</strong> para selecionar dois <strong>conto</strong>s, com total liberdade de<br />

escolha, muitos títulos vieram à minha mente, entre eles<br />

Sabina (Artur Azevedo), Miss Mary (Viriato Correa), Catimbau<br />

(Humberto de Campos), O duplo (Coelho Neto), Vela<br />

ao Crucificado (Ubiratan Teixeira), As quatro Estações<br />

(Wilson Martins), O Motorista (Lindevânia Martins), Viagem<br />

tão longa (José Ewerton Neto), além de alguns outros<br />

<strong>conto</strong>s que constantemente revisito em minhas leituras.<br />

Mas era preciso sair do campo da emoção pura e apelar<br />

para algo mais técnico. Decidi então escolher dois <strong>conto</strong>s<br />

que seguissem os seguintes critérios: um de autoria<br />

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José Neres<br />

masculina e outro de autoria feminina; um <strong>conto</strong> mais longo<br />

e um mais curto; um de um autor já falecido e outro de<br />

alguém que merecesse ser homenageado em vida. Dessa<br />

forma cheguei aos dois <strong>conto</strong>s que aqui estão: O monstro<br />

(de Humberto de Campos) e A serpente eo touro, A mulher<br />

cega e o Olhar da rã (de Arlete Nogueira).<br />

Especialista em Literatura Brasileira pela PUC-MG e mestre em Educação pela Universidade<br />

Católica de Brasília. Professor de graduação e pós-gaduação nas instituições UFMA, FAMA e<br />

IESF.<br />

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<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“O Monstro”<br />

José Neres<br />

M<br />

ais conhecido hoje como cronista e memorialista,<br />

Humberto de Campos também incursionou<br />

pelos Campos da ficção, mais propriamente<br />

pelos <strong>conto</strong>s.<br />

Em O Monstro, que faz parte do volume O Monstro e<br />

Outros <strong>conto</strong>s, publicado em 1932, ele apresenta uma<br />

versão alternativa para o surgimento do Ser Humano.<br />

Mesmo partindo de referências bíblicas, Humberto de<br />

Campos não coloca o Homem como parte direta da criação<br />

divina, mas sim como fruto da inveja da Dor e da<br />

Morte, que se juntam para plagiar os seres que já estavam<br />

<strong>sobre</strong> a face da terra. De forma lírica, mas também<br />

crítica, o contista sintetiza o aparecimento, o apogeu e<br />

a morte do Homem, que, destituído de voz e obediente a<br />

suas criadoras, leva o terror e o medo por onde passa.<br />

Construído com leveza e objetividade, O Monstro é um<br />

<strong>conto</strong> que pode servir de base para diversos estudos e<br />

discussões acerca da essência humana.<br />

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O Monstro<br />

P elas margens sagradas do Eufrates, que fugia,<br />

então, sem espuma e sem ondas, caminhavam,<br />

na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte.<br />

Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida,<br />

cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham,<br />

nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam<br />

sem ruído olhando as coisas recém-criadas.<br />

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado<br />

no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados,<br />

a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas<br />

águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam,<br />

de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam<br />

a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior<br />

da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando<br />

a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os<br />

primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres<br />

novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa<br />

da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos,<br />

que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam<br />

ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado<br />

na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço<br />

à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras<br />

se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros<br />

cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso<br />

esverdeado porejando água fitavam mudos, com os largos<br />

olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros<br />

longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade<br />

virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita,<br />

de batráquios maiores. Auroques1 taciturnos, sacudindo<br />

1 Auroque – Espécie de boi selvagem<br />

Humberto de Campos<br />

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a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e<br />

gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se,<br />

urrando, com as patas enfiadas na terra mole.<br />

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os<br />

elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba,<br />

como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui<br />

e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros<br />

animais o ficavam olhando, como se perguntassem que<br />

focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas<br />

aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga.<br />

Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E<br />

quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num voo rápido,<br />

havia como que uma interrogação inocente nos olhos<br />

ingênuos de todos os brutos.<br />

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem<br />

interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham<br />

lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa,<br />

ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não<br />

se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha<br />

dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de<br />

agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo<br />

do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais<br />

entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece<br />

gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta,<br />

mas segura, das duas inimigas da Vida.<br />

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a<br />

Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.<br />

Para que mistério - disse, a voz surda -, para que mistério<br />

teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a<br />

terra de tanta coisa curiosa?<br />

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites<br />

do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou,<br />

num sorriso macabro, que fez rugir os leões:<br />

- Para nós ambas, talvez...<br />

- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma<br />

criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso<br />

cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria,<br />

com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes,<br />

das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do<br />

mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do<br />

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seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu<br />

o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito,<br />

aperfeiçoando-lhe a alma, formando-lhe o coração.<br />

Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço...<br />

Queres?<br />

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio;<br />

onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.<br />

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha<br />

das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da<br />

corrente.<br />

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos<br />

de lama pútrida, que o sol endurecera.<br />

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia<br />

nas mãos da oleira 2 sinistra que, assim, trabalhava<br />

inutilmente.<br />

- Traze mais água! - pedia.<br />

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e<br />

este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros<br />

que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca,<br />

os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um<br />

jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.<br />

- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos<br />

dócil.<br />

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.<br />

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido.<br />

Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se<br />

parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades,<br />

uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a<br />

do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena;<br />

andava <strong>sobre</strong> dois pés, como as aves, e trepava, rápido,<br />

como os bugios 3 .<br />

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a<br />

Criação. Os ursos, que jamais se haviam mostrado selvagens,<br />

urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação.<br />

As aves piavam nos ninhos, amedrontadas, e os<br />

leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele,<br />

2 Oleira – Pessoa que trabalha em olaria. Pessoa que trabalha com barro.<br />

3 Bugio – Espécie de macaco.<br />

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arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se<br />

a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um<br />

inimigo inesperado.<br />

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem<br />

pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No<br />

seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes.<br />

Certo, se aqueles seres se assombravam à sua<br />

aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua<br />

condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em<br />

amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas<br />

pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por<br />

um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras,<br />

os animais que lhe pareciam mais fracos.<br />

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram,<br />

disputando-se a primazia na criação do abantesma<br />

4 .<br />

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu<br />

com o barro!<br />

- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que<br />

amoleceu a lama?<br />

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram,<br />

as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte<br />

com que havia contribuído.<br />

- Eu dei a água! - tornou a Dor.<br />

- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.<br />

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro,<br />

apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A<br />

água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos<br />

do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não<br />

havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte<br />

aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos<br />

ombros, e partiu...<br />

Referências<br />

CAMPOS, Humberto. O Monstro e outros Contos. Rio de Janeiro: W. M. Jackson,<br />

1945, p. 9-15<br />

4 Abantesma - Fantasma. Assombração.<br />

Humberto de Campos<br />

Cronista, memorista. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.<br />

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Contos selecionados de<br />

Arlete Nogueira da Cruz<br />

A serpente e o touro<br />

E<br />

xiste uma cidade que fica numa ilha onde antigamente<br />

só habitavam índios. Hoje convivem ali povos<br />

de todo Brasil e do mundo, menos índios.<br />

Por outro lado, havia antigamente um ecossistema nessa<br />

ilha, com muitas espécies de árvores e de pássaros, principalmente<br />

palmeiras e sabiás, pelos quais um poeta acabou<br />

morrendo afogado, não existindo agora árvores, nem pássaros.<br />

Nessa ilha mora um menino, Joaquim, que é interessado<br />

nessas historias, observando ele mesmo como tudo vai seguindo<br />

um rumo que lhe parece desafiador.<br />

Mas, além dessas histórias, há também muitas lendas que<br />

correm de boca em boca. Entre elas, a da serpente e a do<br />

touro.<br />

Dizem que há uma serpente em torno da cidade que ameaçava<br />

apertar a ilha até que ela desapareça para sempre por<br />

força desse abraço. Dizem também que há um rei encantado<br />

em touro, aguardado para salvar o povo dele, mas que, quando<br />

desencantar, a velha cidade mergulhará no mar.<br />

Que destino, o dessa cidade! Joaquim pondera que, entre<br />

as duas possibilidades, é melhor que o rei desencante.<br />

Argumenta com os colegas da escola que é preferível viver<br />

no fundo do oceano, entre peixes e caracóis, mas viver que<br />

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desaparecer de vez, esmagado pela serpente.<br />

Joaquim já pensa em especializar-se em qualquer coisa<br />

ligada a oceanografia, engenharia de <strong>sobre</strong>vivência no mar<br />

ou biologia marinha, a fim de ajudar os seus conterrâneos<br />

caso rei desencante e o mar ali cubra o que resta.<br />

A mulher cega<br />

J<br />

ustina era uma pobre mulher cega que vivia a<br />

perambular pelas ruas, fazendo ponto nas imediações<br />

do extinto fórum da cidade. Ninguém lhe<br />

prestava a atenção e, quando muito, afastavam-na do caminho<br />

para que não atropelasse os diligentes transeuntes.<br />

Dizem que, há muitos anos, acontecera no lugar um crime<br />

espantoso, quando mataram o juiz, porque ele, no seu papel,<br />

começara a descobrir os crimes abomináveis de algumas personalidades<br />

poderosas da cidade. E antes que revelasse os<br />

nomes dos bandidos, foi assassinado numa emboscada, na<br />

bela manhã de sol.<br />

Foi justamente Justina quem descobriu o mandante do crime<br />

e entregou-o de mão beijada à polícia. Quando lhe perguntaram<br />

como conseguira essa façanha na qual tiveram empenhadas<br />

inutilmente as polícias municipal, estadual e federal,<br />

ela humildemente respondeu: “porque sou cega”.<br />

Referências<br />

CRUZ, Arlete Nogueira da. Contos Inocentes. Rio de Janeiro: Imago, 2000, p. 55.<br />

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O olhar da rã<br />

A<br />

rã falava pelos olhos que lhe espocavam da<br />

cabeça. Perto do lago, com as longas patas traseiras<br />

mutiladas, a rã não podia pular: foi o que<br />

concluiu o menino, conhecendo tão bem o olhar e pulo de<br />

rã. E como o pulo era o que parecia ao menino a razão maior<br />

de qualquer rã, esta rã estava sem a sua razão de ser.<br />

Todo olhar de rã, por si, é sem igual. Toda rã olha como<br />

quem está sob uma aflição, como quem fareja o alimento<br />

ou perscruta o limiar da afronta. Esse olhar de rã está ligado<br />

ao pulo com o qual empreende a busca ou a fuga na<br />

hora necessária.<br />

Mas o olhar desta rã era único, o menino logo percebeu.<br />

Nenhuma outra rã terá olhar parecido: quer fosse abundancia<br />

ou ameaça, ela apenas via com arredondados e enormes<br />

olhos, escancarados para o fim.<br />

O menino, então, agachou-se espantado e esperou.<br />

Arlete Nogueira da Cruz<br />

Romancista, ensaísta, poetisa e contista maranhense<br />

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Por quê o “ O Duplo” de<br />

Coelho Neto<br />

Joaquim Gomes<br />

S<br />

abemos que não é fácil a escolha de<br />

um autor, de um livro ou de uma narrativa,<br />

por exemplo, para atender a uma determinada<br />

linha de pesquisa, de publicação<br />

de uma revista, por razões que envolvem aspectos<br />

diversos, como o grau de afetividade com o autor, com<br />

o gênero ou com a temática abordada. No entanto, coubenos<br />

esta tarefa de apontar para a Revista <strong>Plural</strong>, do Instituto<br />

<strong>Geia</strong>, um <strong>conto</strong> de autoria de um escritor maranhense,<br />

para compor um número especial, evocando a escrita<br />

de autores das “terras de Gonçalves Dias”. Evidentemente,<br />

os participantes desse número especial reuniram, cada<br />

um a seu modo, explicações para o critério de sua escolha,<br />

embora tenhamos certeza de que não fora uma tarefa<br />

fácil por razões já explicitadas acima.<br />

Em nosso caso, partimos do desejo de trazer um autor<br />

cujo trabalho ainda não tinha sido por nós examinado/<br />

apontado, quer em publicação de artigos, quer em sala de<br />

aula. Como a proposta da <strong>Plural</strong>, a análise não seria de<br />

todo necessária, o que ainda não nos permitiu uma maior<br />

profundidade com a obra; então, o que nos teria levado<br />

Joaquim a Gomes escolher o <strong>conto</strong> “O Duplo”, de Coelho Neto, além do já<br />

dito? A leitura rica e intrigante, que a narrativa oferece,<br />

em que o leitor se encontra entre a dúvida e a certeza do<br />

fato, permanecendo a visão do “duplo”, além de a obra<br />

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atender a um viés de “comportamento”, enquadrando-se<br />

Mestre em Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista de São José do Rio Preto-SP<br />

e professor da Faculdade Atenas Maranhense.


<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“O Duplo”<br />

Joaquim Gomes<br />

O<br />

maranhense Coelho Neto (1864-1934) deixou um<br />

número expressivo de obras, entretanto pouco se<br />

vem lendo, por razões que se justificam em decorrência<br />

do espírito modernista pelo qual a sociedade mundial<br />

experimentou, produzindo rupturas no mundo das manifestações<br />

artísticas e literárias.<br />

Escritor de mão cheia, O Príncipe dos Prosadores Brasileiros<br />

passeou por vários gêneros e sua marca é inconfundível<br />

pelo estilo pomposo de sua linguagem. O <strong>conto</strong> “O Duplo”,<br />

publicado originalmente em 1927, faz parte da coletânea<br />

Contos da vida e da morte, merece destaque, pelo tema aqui<br />

proposto, bem como pela forma como o leitor é convidado<br />

a participar de um suposto caso de desdobramento, que se<br />

dá a partir da primeira linha da narrativa.<br />

O tema pode ser visto à luz de várias perspectivas, mas,<br />

para muitos estudiosos, o <strong>conto</strong> em apreço faz parte de um<br />

momento especial do autor, em que a presença do espiritismo<br />

em sua vida, além do seu contato com o sertão nordestino,<br />

o folclore, lendas, e outras histórias que povoam esse<br />

universo, permitiram esse encontro.<br />

Trata-se, portanto, de uma leitura rica e intrigante, em<br />

que o leitor, nolens volens, oscila entre a dúvida e certeza<br />

do fato, permanecendo a visão do “duplo”. A obra se insere<br />

no rol do fantástico, da literatura do medo, por apresentar<br />

fatos que não podem ser explicados pela lógica da realidade.<br />

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O Duplo<br />

Coelho Neto<br />

T<br />

emos, então, um caso de desdobramento da<br />

-<br />

personalidade do meu querido amigo?<br />

- Quem te disse?<br />

- Laura.<br />

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel.<br />

Por fim, meneando com a cabeça, desabafou, contrariando:<br />

- Laura... Laura, faz mal em andar contando essa história<br />

por aí.<br />

- Que tem?<br />

- Ora! Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco<br />

faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito<br />

do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde,<br />

entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me<br />

à risota de uns petimetres ridículos que o cercam.<br />

Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques<br />

e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem<br />

os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por<br />

essas casas. Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário,<br />

não frequento sessões nem leio, sequer, as tais obras<br />

de propaganda que pretendem revelar o que se passa no<br />

Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando<br />

a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente<br />

pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os<br />

Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença<br />

são os quatro evangelistas; fora de tais “termos” não dou<br />

um passo - nem para diante, seguindo os reformadores,<br />

que pregam o novo Credo, nem para trás, acercando-me<br />

de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde<br />

me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores,<br />

aí ficarei até morrer. Contei a Laura a tal história como<br />

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contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que<br />

ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que<br />

frequenta. O resultado disso é o que se está dando comigo,<br />

aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de<br />

todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem,<br />

imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.<br />

- Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio.<br />

Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam<br />

do <strong>sobre</strong>natural. Os fatos aí estão: produzem-se, reproduzem-se<br />

e, se ninguém os explica, muitos dão deles<br />

testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se<br />

visível, sensivelmente. Os cépticos encolhem os ombros<br />

sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que<br />

os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade,<br />

porém, é que nos achamos diante de uma porta<br />

de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor<br />

- Mistério. Mas já é muito havermos chegado à porta.<br />

Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro<br />

mundo, há alguma coisa que... ninguém sabe o que<br />

é. A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar<br />

um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações<br />

vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as<br />

dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi,<br />

então, um desdobramento da tua personalidade...?<br />

- Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos<br />

mais angustiosos da minha vida. Saindo do Alvear,<br />

subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres,<br />

onde comprei charutos e estive um instante a conversar<br />

com o Borges <strong>sobre</strong> coisas da vida. O Borges anda com<br />

a mania dos Marcos; possui não sei quantos milhões, e<br />

espera que a Alemanha recomponha as finanças para<br />

aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa<br />

que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o<br />

pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças<br />

germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem<br />

mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.<br />

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não<br />

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consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente,<br />

entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada,<br />

dessas que se esparralham. O bonde partiu e, oprimido<br />

pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir<br />

um dos jornais.<br />

Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade,<br />

a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos<br />

passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse<br />

o sentido, como deve acontecer com os aviadores que<br />

veem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em<br />

mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios,<br />

apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do<br />

mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma<br />

coisa.Voltei página do jornal - a mesma confusão, o<br />

mesmo empastamento. Foi então que levantei a cabeça,<br />

olhando em frente e vi, meu amigo, vi...!<br />

- Viste...?<br />

- A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado<br />

defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à<br />

plataforma. Era eu, eu! como refletido em um espelho, e<br />

certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros<br />

laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se<br />

de má sombra. Pasmado, sem poder desfitar os<br />

olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições,<br />

na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em<br />

exteriorização, pensei de mim comigo: “Se tal se dá é que<br />

o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim,<br />

deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o<br />

casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o<br />

que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida<br />

pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de<br />

um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica,<br />

se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um<br />

daqueles gordos. Desamparado, o meu corpo vazio tombaria.<br />

Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros<br />

de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento<br />

do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre<br />

em casa”. Que angústia, meu amigo! E o outro lá estava<br />

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em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento.<br />

Lembrei-me, então, de fazer um movimento com<br />

os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha<br />

vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu<br />

pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente<br />

e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser<br />

ainda restos de energia d’alma que me houvessem ficado<br />

nas células, como fica nas polias o movimento ainda<br />

depois do motor parado. Sentia-me rígido, petrificado e<br />

tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a<br />

começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.<br />

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde<br />

com todos os passageiros que ele continha e, arremessando<br />

os braços, pus-me de pé. A matrona levantou a cabeça<br />

com atrevimento e olhou-me com tal carranca que<br />

eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos<br />

braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo<br />

e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra<br />

quadrada de ufano com entono de desafio. Mas<br />

que me importavam ameaças A minha alegria era grande<br />

e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o<br />

meu outro “eu”, não o vi mais. Teria descido? Não! Não<br />

descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia<br />

de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de<br />

alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se<br />

agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a<br />

socorro. E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um<br />

minuto, e eu guardo de tais instantes a impressão penosa<br />

de um século de sofrimento. Eis o meu caso, o caso<br />

que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice<br />

de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o<br />

mundo. E crença que D. Juan de Maraña, encontrandose,<br />

certa noite, com um saimento, perguntou a um dos<br />

que conduziam o esquife: “Quem era o morto?” E logo lhe<br />

foi respondido:<br />

- É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o<br />

que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam,<br />

afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele.<br />

60 / 76


Coelho Neto<br />

E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo<br />

a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo;<br />

a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?<br />

- Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registramse,<br />

são observações, fatos, elementos para a Ciência do<br />

Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.<br />

Escritor. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.<br />

61 / 76


<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“Artes do Diabo”<br />

Dino Cavalcante<br />

A<br />

lfredo de Assis, membro fundador da Academia<br />

Maranhense de Letras, entrou para o<br />

panteon da história literária no Brasil com o<br />

livro de <strong>conto</strong>s Coisas da Vida. Nesse conjunto<br />

de narrativas, emerge um contista de extrema<br />

capacidade de criar tipos e tramas. Assis vai do texto<br />

cômico, como Estudantadas, até uma cena trágica, como<br />

Alma torva, sem perder o gênio criador. Como Eça de Queirós<br />

e Machado de Assis, grandes contistas da literatura de<br />

língua portuguesa, o autor de A linguagem das Sextilhas<br />

de Frei Antão cria suas narrativas buscando personagens<br />

das mais variadas classes sociais. Em Artes do Diabo, uma<br />

encomenda de uma imagem de Santo Antônio, feita a um<br />

artista de Portugal, leva Zeferino (morador de uma vila próxima<br />

a Caxias) a uma situação inusitada: carregar o santo<br />

(de apenas 18cm) para ser colocado num andor ricamente<br />

ornado para uma grande procissão. Para muitos, uma arte<br />

feita pelo próprio Diabo para que não houvesse o festejo de<br />

Santo Antônio.<br />

Dino Cavalcante<br />

Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual paulista e Professor do Departamento<br />

de Letras da Universidade Federal do Maranhão.<br />

62 / 76


Artes do Diabo<br />

Alfredo de Assis<br />

T oda a população da vila se preparava para ir ao<br />

encontro de Santo Antônio, orago da freguesia.<br />

Desusado movimento enchia as ruas, os sinos badalavam<br />

alegres na manhã luminosa, e de muitas casas<br />

flechavam para o ar inúmeros foguetes, numa atoarda<br />

constante, indo derramar no alto a fanfarra festiva do espírito<br />

católico da localidade.<br />

Vinha de longa data o esforçado empenho de muitos<br />

dos seus habitantes no sentido de ser substituída<br />

por outra, maior e mais perfeita, a antiga e pequena<br />

imagem do glorioso taumaturgo, pobre manufatura de<br />

um modesto imaginário sertanejo. Vivia ainda o frade<br />

que fora o segundo vigário da freguesia, quando surgiu<br />

a ideia, que vigorosamente, desde logo, alastrou nas almas,<br />

como planta de boa seiva. O frade aplaudiu-a com<br />

ardor, e listas foram espalhadas para a subscrição de<br />

donativos. Mas a sua morte <strong>sobre</strong>veio inopinada, e a<br />

realização do projeto, adiada indefinidamente, só agora,<br />

quatorze anos depois, ia tornar-se efetiva, graças, principalmente,<br />

à chegada do padre Hildebrando, ultimamente<br />

ordenado e sem demora nomeado pároco do lugar.<br />

Ambicionou o novo pastor que a primeira festividade a<br />

realizar-se na vila debaixo da sua direção se revestisse<br />

do possível brilhantismo e restasse indelével na memória<br />

de toda a freguesia como uma grata recordação da sua<br />

estreia na vida sacerdotal. E pois, indo ao encontro da<br />

aspiração dos seus paroquianos, cuidou, antes de tudo,<br />

da vinda de um novo Santo Antônio, que desejava escultura<br />

de viva beleza, a denunciar a mão de um mestre<br />

que a houvesse trabalhado ardendo no anseio de realizar<br />

uma obra-prima.<br />

63 / 76


A imagem viria de Lisboa - terra de grandes imaginários.<br />

Que admiráveis primores de lá não saíam! Bastava,<br />

para exemplo, ver a Nossa Senhora da Conceição,<br />

pertencente à mulher do capitão Felisbelo, intendente<br />

municipal. Uma maravilha de naturalidade! Um mimo!<br />

Como olhavam para a gente, os doces olhos daquela divina<br />

Senhora!<br />

Adotada prontamente a ideia do padre Hildebrando,<br />

um positivo, com reiteradas recomendações de andar<br />

depressa, partiu para Caxias, a fim de, telegraficamente,<br />

transmitir a uma casa comercial de São<br />

Luís a encomenda, firmada por um dos negociantes<br />

da vila, de um formoso Santo Antônio de 80 centímetros<br />

de altura. Oitenta centímetros, segundo consenso<br />

unânime, era um tamanho respeitável e digno do<br />

Padroeiro! O telegrama recomendava que a imagem devia<br />

ser pedida da capital portuguesa com toda a brevidade,<br />

a fim de que pudesse chegar a tempo de servir na festividade<br />

daquele ano. Devia estar em Caxias, o mais tardar,<br />

a 20 de maio.<br />

Dado esse primeiro passo - de certo, o mais importante<br />

-, começaram os demais preparativos da trezena.<br />

Os poderes municipais providenciaram solicitamente<br />

em relação à limpeza das ruas e praças, não esquecendo<br />

a estrada por onde o santo faria a sua entrada na<br />

localidade. A igreja, interna e externamente, passou<br />

por diversos melhoramentos. Renovaram-lhe as toalhas<br />

dos altares e a cal das paredes, o soalho e o teto,<br />

bancadas e lanternas. E era gozo dos olhos vê-la toda<br />

branca, por entre as árvores erguidas em torno, e com<br />

um ar de alegria e mais alta espiritualidade, como na antevisão<br />

de uma vida nova, cheia de luz e de glória...<br />

●●●<br />

O ponto de reunião donde os fiéis deviam partir para o<br />

encontro era a residência do vigário, ao largo da Matriz,<br />

uma casinha de fachada verde, com amendoeiras à frente<br />

64 / 76


e jardim ao lado. Às nove da manhã já transbordava de<br />

gente e os homens refluíam para a sombra das árvores,<br />

a fim de que as senhoras ficassem mais bem acomodadas.<br />

Entretanto, só excepcionalmente uma ou outra das<br />

pessoas que iam chegando deixava de, embora a custo,<br />

penetrar a sala onde se oferecia à admiração geral rico<br />

andor que se destinava à honra insigne de trazer o Padroeiro.<br />

O andor resplandecia ao centro da sala, fartamente enfeitado<br />

de galões, ostentando uma vasta policromia de fitas<br />

e flores, cuidadosamente presas a um fundo de seda<br />

azul-celeste.<br />

- Que encanto! Que beleza de trabalho! É um primor!<br />

Crivavam-no de elogios. Às moças que o haviam feito, e<br />

que pertenciam às melhores famílias da terra, não faltavam<br />

aplausos dos mais vibrantes.<br />

Finalmente, às 10 horas, abalou o vultoso cortejo, por<br />

entre o crebro estalar dos foguetes e ao som do Hino<br />

Nacional executado com entusiasmo pela Harmonia Maranhense,<br />

nome da charanga da vila. O andor, conduzido<br />

aos ombros de quatro robustos latagões, luzia, como<br />

um sólio de oiro, ao vivo esplendor dos raios solares. De<br />

quando em quando, incorporavam-se ao cortejo grupos<br />

endomingados e risonhos, postados de espera às margens<br />

do caminho. Eram pessoas da grande família matuta,<br />

em cujo coração ainda existe, desanuviada de toda<br />

a dúvida, com a crença perfeita em Deus e nos santos, a<br />

certeza plena da outra vida. E aquelas que, por qualquer<br />

motivo, não tinham podido fazer o mesmo, e residiam à<br />

vista da estrada, quedavam à porta das casas, olhando-<br />

-o, num enlevo, até que a multidão dos romeiros desaparecia<br />

ao longe, entre as árvores, ou na descida de alguma<br />

lombada...<br />

O sol, entretanto, já se aproximava do zênite, sem<br />

que o encontro se desse. Os romeiros começavam a inquietar-se.<br />

Teria acontecido alguma coisa ao portador<br />

da imagem? Segundo fora combinado, ele devia ter partido,<br />

na madrugada daquele dia, da fazenda dos Montes<br />

65 / 76


Altos, a sete léguas da vila. Por que, então, estava a demorar-se<br />

daquele modo?<br />

A preocupação era de todos, mas havia diversos que<br />

se mostravam animados e procuravam tranquilizar os<br />

demais. Decorrera alguma coisa inesperada, mas que<br />

não tinha importância, haviam de ver. Provavelmente<br />

o Zeferino não encontrara os animais a tempo de sair<br />

de madrugada. Não havia de ser outra coisa. Ora, logo<br />

quem! O Zeferino! Não se incomodassem, que ele, de um<br />

momento para o outro, apareceria em uma volta do caminho.<br />

Com efeito, pouco tardou que o condutor da imagem<br />

aparecesse na estrada, ao longe, alto e ruivo, tangendo<br />

uma carga. Era ele, não restava dúvida! E houve um<br />

sussurro, um rumor alegre, em que se confundiam todas<br />

as vozes na mesma vibração jubilosa. Foguetes e vivas<br />

atroaram o espaço e a filarmônica executou o Hino de<br />

Santo Antônio, que fora composto para a festividade do<br />

ano anterior.<br />

Com pouca demora, o Zeferino se viu rodeado, interrogado,<br />

efusivamente saudado. Como estava? Correra bem<br />

a viagem? Por que não pudera chegar mais cedo? Nada<br />

sofrera o santo, com o transporte? Estava perfeito?<br />

Uma velha, que havia ficado à distância, na impossibilidade<br />

de se aproximar, bradava:<br />

- Ó gente! Desafoguem o homem! Onde já se viu isto?<br />

Que desespero! Afastem-se, com os demônios, Deus me<br />

perdoe, que assim nem ele pode botar a carga abaixo! E<br />

fazem uma algazarra! Que coisa! Parece que nunca viram<br />

uma imagem!<br />

Quando o rumor serenou, foi que o Zeferino pôde falar.<br />

Sim, estava bom, fizera boa viagem. Quanto à demora<br />

que tivera, fora propositada. Quisera mesmo vir devagar,<br />

remanchando...<br />

Houve um espanto e em todos os semblantes a expressão<br />

da mesma pergunta:<br />

- Remanchando por quê?<br />

O Zeferino estava sensivelmente contrafeito. O círculo,<br />

em torno dele, tornou-se ainda mais apertado e compacto.<br />

66 / 76


- Era certo, viera mesmo remanchando, porque... queriam<br />

saber? Porque estava até com vergonha de os encontrar!<br />

Tornou-se maior a surpresa da vasta companhia.<br />

- Mas por que, homem de Deus? - perguntou alguém.<br />

O santo não veio?<br />

- Veio... mas foi uma de todos os diabos! Veio, mas a<br />

carga está vazia, porque não foi necessária! Querem ver<br />

o santo?<br />

E arrancou de uma das amplas algibeiras do paletó<br />

de riscado, onde se abrigava, cuidadosamente embrulhada,<br />

a imagenzinha de um frade, que depois<br />

verificaram não ir além de 18 centímetros, o qual sustinha<br />

em um dos braços um minúsculo Menino Deus<br />

de cabelos de oiro.<br />

- Sim, senhores, ali estava a rica imagem de quase<br />

um metro de altura, que tinham pedido da cidade<br />

de Lisboa! Pelo menos, era a que lhe haviam entregue<br />

em Caxias! Até andara perto de não a receber, de indignado<br />

que ficara! Sim, senhores, uma de cabo-de-<br />

esquadra!<br />

O santinho começou a andar de mão em mão, no meio<br />

de um imenso desconsolo. Ninguém se podia conformar<br />

com aquela extraordinária fatalidade. Havia quanto<br />

tempo não se falava em outra coisa, na vila e em<br />

toda a freguesia? E tantos preparativos, tanta alegria,<br />

tamanho entusiasmo! E o padre Hildebrando? E com<br />

que cara entrariam na vila, conduzindo o andor vazio,<br />

porque não haviam de levar um santo tão pequeno<br />

dentro de um andor tão grande?<br />

Cessava o foguetório, emudecera o Hino de Santo Antônio.<br />

Ninguém tinha alma para ouvir estalos de bombas<br />

e notas de músicas, depois de uma daquelas!<br />

E, quebrando o silêncio de subterrâneo, pesado e opressivo,<br />

que se estabeleceu por minutos, principiaram os comentários<br />

em torno do lamentável acontecimento. Lembraram-se<br />

várias hipóteses para explicar a substituição<br />

do tamanho da imagem. Uma, finalmente, foi admitida<br />

67 / 76


Alfredo de Assis<br />

por todos como verdadeira: o culpado fora o telégrafo.<br />

Por força, houvera engano na transmissão ou no recebimento<br />

do telegrama. Parecia impossível, de certo, confundir<br />

oitenta com dezoito. Mas não podia existir a mínima<br />

dúvida a respeito: havia sido o telégrafo a causa de<br />

tudo!<br />

A hipótese fora sugerida pelo sacristão, que a reforçava<br />

atribuindo o erro à intervenção do diabo, com toda a<br />

certeza interessado em estragar a alegria e o brilho da<br />

trezena.<br />

- Artes do diabo, fiquem sabendo! Se o próprio telégrafo<br />

não parece outra coisa!<br />

E, envoltos no mesmo ambiente de desconsolada tristeza,<br />

tornaram para a vila, que os esperava engalanada e<br />

festiva, e onde à noite haveria, depois da reza na igreja,<br />

um grande baile em casa do capitão Felisbelo...<br />

Escritor. Foi membro da Academia Maranhense de Letras.<br />

68 / 76


<strong>Comentários</strong> <strong>sobre</strong> o <strong>conto</strong><br />

“O Asa-Negra”<br />

Dino Cavalcante<br />

A<br />

rthur Azevedo, um dos mais fecundos comediógrafos<br />

da literatura brasileira, ajudou<br />

a popularizar um gênero teatral muito comum<br />

na França do século XIX: a revista de ano. Com<br />

essas obras – mais ainda com as comédias de<br />

costumes –, o autor de A Capital Federal escreveu<br />

uma das mais ricas páginas da literatura dramática nacional.<br />

Como contista, criou tipos inesquecíveis, como o Dr.<br />

Francelino Lopes, de Pobres Liberais, Epidauro Pamplona,<br />

de Um Capricho, Lima, de O Velho Lima, entre outros. São<br />

personagens que são expostas numa narrativa leve, com<br />

linguagem extremamente acessível a qualquer leitor, mesmo<br />

o menos experiente. Em O Asa-Negra, a personagem<br />

Raimundo é um alcantarense que, tanto no nascimento<br />

quanto na morte, sofre as angústias e as mazelas provocadas<br />

pelo seu conterrâneo e algoz Aureliano.<br />

Dino Cavalcante<br />

Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual paulista e Professor do Departamento<br />

de Letras da Universidade Federal do Maranhão.<br />

69 / 76


O Asa-Negra<br />

Arthur Azevedo<br />

Q<br />

uando, em 185..., poucos momentos antes de<br />

nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do<br />

parto e curvava-se instintivamente, agarrandose<br />

aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda<br />

pressa a única parteira que naquele tempo havia na<br />

pequena cidade de Alcântara.<br />

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados<br />

da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais<br />

rica.<br />

Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado;<br />

mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o<br />

filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado<br />

na tradição obstétrica de Alcântara.<br />

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis<br />

consequências não só da inépcia das mulheres que<br />

assistiram à sua mãe, como do falecimento desta. Era<br />

aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente<br />

achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira<br />

de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.<br />

* * *<br />

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou<br />

Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas<br />

uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador<br />

involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço.<br />

Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia<br />

ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve<br />

diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como<br />

Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava<br />

70 / 76


defesa, e estendia resignado a mão pequenina às<br />

palmatoadas estúpidas do mestre escola. Isto acontecia<br />

diariamente.<br />

O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura<br />

perda, pois que as acusações continuavam da parte de<br />

Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse<br />

outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta,<br />

sem instrução, não tendo achado no mundo espírito<br />

compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da<br />

inteligência medíocre.<br />

Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e<br />

mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de<br />

comércio.<br />

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado,<br />

que lhe mandou ensinar as primeiras letras e rudimentos<br />

de escrituração mercantil. A prática faria o resto.<br />

Dentro de algum tempo o menino, que já contava<br />

dezesseis anos, deveria entrar, como ajudante de guardalivros,<br />

para certo escritório de comissões; mas oito dias<br />

antes daquele em que devia tomar conta do emprego,<br />

morreu inesperadamente o seu protetor.<br />

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprasado,<br />

em casa do futuro patrão.<br />

- Cá estou eu.<br />

- Quem é você?<br />

- O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o<br />

defunto Sr. F.<br />

- Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore<br />

na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar,<br />

e eu tive que admitir outra pessoa.<br />

E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de<br />

camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo<br />

trabalho de escrita.<br />

- Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.<br />

O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o:<br />

era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um<br />

sorriso verdadeiramente satânico.<br />

71 / 76


* * *<br />

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo<br />

passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava<br />

maltrapilho e quase descalço.<br />

Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa<br />

agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou<br />

prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.<br />

Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra,<br />

moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente lhe<br />

chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as<br />

pequeninas intrigas do seu patrício.<br />

Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz<br />

simpático e geralmente estimado na sociedade em que<br />

ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele,<br />

como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o<br />

seu asa-negra.<br />

* * *<br />

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os<br />

olhos negros e inquietos de Leopoldina.<br />

Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena<br />

bonita, cujos <strong>conto</strong>rnos opulentos causariam inveja às<br />

louras napeias de Rúbens. A rapariga tinha nos olhos<br />

a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das<br />

mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro,<br />

prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas<br />

estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a<br />

pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio,<br />

porém as rijas dentadas de um gigante.<br />

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo<br />

dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante<br />

da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em<br />

que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altarmor,<br />

para arrebatar-lhe a noiva.<br />

Infelizmente assim não sucedeu.<br />

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil<br />

maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se<br />

tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para<br />

72 / 76


corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não<br />

lhe indagava das forças.<br />

As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina,<br />

quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor,<br />

confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa.<br />

Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato<br />

ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara<br />

com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde,<br />

começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar<br />

frandulagens e modas.<br />

De então em diante tornou-se um inferno a existência<br />

doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele<br />

evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos,<br />

e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o<br />

trabalho do dia seguinte.<br />

* * *<br />

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa<br />

em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos<br />

braços hercúleos de Aureliano.<br />

Excitado pelo desespero, cresceu para eles<br />

frenético, espumante; mas os quatro braços infames<br />

desentrelaçaram-se das criminosas delícias, e repeliramno<br />

vigorosamente.<br />

O pobre marido rolou <strong>sobre</strong> os calcanhares, e caiu de<br />

chapa, estatelado, sem sentidos.<br />

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido.<br />

Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou<br />

cabisbaixo para o trabalho.<br />

Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço<br />

repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara<br />

sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo,<br />

que tão boas provas dera até então de si.<br />

O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados<br />

saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E<br />

respondeu coisas incoerentes. Estava doido.<br />

Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por<br />

um tio, derradeiro destroço de toda a família.<br />

73 / 76


Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente,<br />

saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando<br />

consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São<br />

Marcos.<br />

* * *<br />

Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento,<br />

árido promontório situado perto de Alcântara, em frente<br />

àquela Baía de São Marcos, regurgitava alegremente de<br />

povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis<br />

afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha<br />

ermida solitária.<br />

Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada<br />

de todas as festas e romarias, compareceu também ao<br />

arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que<br />

se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.<br />

No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos,<br />

como diz o adágio: têm também olhos.<br />

* * *<br />

Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca,<br />

Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar,<br />

ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de<br />

Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era<br />

sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se<br />

refletia vagamente nas águas negras da baía, esperamno<br />

os braços roliços da viúva do doido.<br />

Embarcou.<br />

Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela<br />

manhã tomara a seu serviço.<br />

* * *<br />

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e<br />

o mar, que até então se conservara plácido e próspero,<br />

encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas<br />

esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a<br />

grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num<br />

estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de<br />

água suficiente para metê-la a pique.<br />

74 / 76


- Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se<br />

ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade<br />

das ondas. Nadava que nem Leandro.<br />

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não<br />

sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer...<br />

A embarcação submergiu-se.<br />

O náufrago agitava instintivamente os braços e as<br />

pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse<br />

milagrosamente uma prenda que nunca aprendera.<br />

Debalde!<br />

Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à<br />

tona d’água, chamado à vida pelo seu sangue de moço.<br />

Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou<br />

alguma coisa fria, muito fria... que flutuava. Agarrou-se<br />

a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e<br />

com ele finalmente foi arremessado à praia...<br />

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.<br />

Arthur Azevedo<br />

Jornalista e teatrólogo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.<br />

75 / 76


EMPRESAS ASSOCIADAS<br />

Agropecuária e Industrial Serra Grande<br />

Alpha Máquinas e Veículos do Nordeste<br />

ALUMAR<br />

Atlântica Serviços Gerais<br />

Bel Sul Administração e Participações<br />

CEMAR - Companhia Energética do Maranhão<br />

CIGLA - Cia. Ind. Galletti de Laminados<br />

Ducol Engenharia<br />

Grupo Mateus<br />

Lojas Gabryella<br />

Mardisa Veículos<br />

Moinhos Cruzeiro do Sul<br />

Niágara Empreendimentos<br />

Oi<br />

Rápido London<br />

SempreVerde<br />

Televisão Mirante<br />

UDI Hospital<br />

VALE


Editor: Jorge Murad<br />

Edição: Instituto <strong>Geia</strong><br />

Gerente Executiva: Josilene Maia<br />

Editoração Eletrônica: Aline Durans e<br />

Raimundo Queiroz (estagiário)<br />

Fotografia: Albani Ramos<br />

Desenvolvedor Web: Helder Maia<br />

Colaboradores: Dino Cavalcante, Joaquim Gomes, José Neres e<br />

Sebastião Moreira Duarte.<br />

<strong>Plural</strong> é uma publicação bimensal editada pelo Instituto <strong>Geia</strong>,<br />

localizada na Av. Cel.Colares Moreira, nº 1, Q. 121, sala 102,<br />

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EXPEDIENTE<br />

As opiniões e conceitos emitidos pelos autores são de exclusiva<br />

responsabilidade dos mesmos, não refletindo a opinião da revista<br />

nem do Instituto <strong>Geia</strong>. Sua publicação tem o propósito de estimular<br />

o debate e refletir as diversas opiniões do pensamento atual.

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