J’ai faim! Merde, j’ai faim! Era com esta lembrança de um filme francês, ou pelo menos a sentir uma convicção parecida com a de alguém num cenário amarelo torrado, em mangas de camisa, perigosamente ao pé da salamandra, (o que não acontecia no filme, mas também não importava porque como já foi referido, era mais uma convicção parecida, que outra coisa) com a barba por fazer, com a devida consequência de lhe causar comichão, que Elliot se debatia à uma da manhã numa noite de Inverno (Novembro… pode ser?) de segunda para terça. Deixar o conforto do lar para ir buscar alimento era algo que o incomodava muito, mesmo fazendo o esforço para se sentir pré-histórico e encarar aquilo como uma aventura. Estava frio, mas quanto a isso não havia problema. A técnica estava apurada, fruto de um casamento há muito afundado, mas que lhe deixou alguma sabedoria, como por exemplo ir ás bombas de gasolina a meio da noite para ir comprar à sua mulher grávida uma bocata de atum. O truque era repetir um velho hábito de infância escolar, naquelas manhãs ainda de noite, sem tirar o pijama em tons de um triste cinza. Ir bem alcochoado, vestir uma camisola larga por cima do pólo de algodão oferecido pela sogra, entalar com as meias a parte de baixo, subitamente delegadas à constrangedora posição de umas ceroulas, para quando vestisse as calças por cima, as ditas, que com um pouco de boa vontade também se poderiam chamar de meiascalça, não subissem pelas pernas acima, como naqueles sonhos em que uma centopeia nos trepa por aí adiante. 40 tr3s65 Enquanto se equipava devidamente, pensava nas palavras da ex-mulher antes de sair de casa. “Não te vais safar!”, disse ela com um sorriso triunfal antes de bater de vez com a por- ta. Com efeito, a despensa de Elliot estava vazia, não porque passava necessidades, mas porque era desleixado. Estava com uma fome do caraças e já só tinha no frigorífico um naco de pêssego em calda, que misteriosamente ainda mantinha a sua tonalidade artificialmente laranja choque. Já na rua, o frio bateu-lhe como uma chapada da- quelas de mão aberta e com balanço, encolheu- se por entre o néon vermelho do putedo da vizi- nhança e entrou no carro apressadamente. A viagem não seria muito longa até á roulote mais próxima, mas mesmo assim preferiu esperar para que o aquecimento do carro fizesse efeito e de- sembaciasse um pouco mais os vidros. O rádio teimava em memorizar uma estação religiosa, onde se faziam curas em directo e tudo! Por en- tre lombas claramente acima dos limites da lei na zona escolar, fez duas rotundas, passou num via- duto bordado de luzes brancas a acompanhar o desenho, e chegou ao destino sem encontrar um único carro na rua. O barulho do gerador da rou- lote devia chatear bastante as pessoas que mora- vam nos prédios em frente, mas numa atitude de “antes eles que eu”, lá fez o pedido “super-espe- cial para embrulhar se faz favor”, comprou duas cervejas pelo triplo do preço do que num super- mercado e foi para casa. Enquanto comia a bifana, nada de especial, lembrava-se das palavras da ex-mulher: “Não te vais safar!” “Não te vais safar!” Amaldiçoou-a duas vezes entre cada dentada.
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