17.04.2013 Views

A Cura pelo Amor

A Cura pelo Amor

A Cura pelo Amor

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Contos<br />

Rasgos de Eternidade<br />

A tela nua estendia-se, imaculada, diante dos seus olhos entorpecidos, cansados depois<br />

de tantas vezes terem aberto aos homens as imagens que floresciam no seu mundo.<br />

Aquele era o seu derradeiro dia, o último tributo prestado <strong>pelo</strong> seu corpo enfraquecido,<br />

e, quase tacteando a paleta e os pincéis que, como se ansiassem <strong>pelo</strong> seu toque,<br />

repousavam prontamente a seu lado, o velho pintor fitava, com olhos de melancolia, o<br />

ponto zero do seu último acto criador.<br />

O negro… A nocturna obscuridade das paredes vencidas da imensidade, onde os<br />

mártires e os moribundos contemplam, com olhos cegos, o fúnebre esplendor do seu<br />

derradeiro momento. A sinistra noite de todos os sonhos e de todos os silêncios, onde<br />

apenas o laivos de uma dispersa neblina se atrevem a respirar, na solene noite despida<br />

da cintilação das estrelas e do melancólico brilho do luar, como um funéreo cântico de<br />

trevas que se elevasse em tributo aos espíritos do outro mundo.<br />

Levemente, o pintor tacteou os pincéis, buscando neles uma espécie de telepatia, capaz<br />

de criar na sua mente envelhecida a imagem que procurava. Negro como a sombra que<br />

se espraiava nas suas imagens, o vulto da morte parecia já debruçar-se, soturno e<br />

silencioso, sobre o seu corpo fragilizado, tocando-o com a carícia do fim dos tempos.<br />

Chegava ao fim, pois, o seu tempo, e, quando chegasse ao pórtico do além-vida (se algo<br />

existia, na verdade, para além da vida), queria levar nos seus pensamentos a memória<br />

daquela derradeira imagem, capaz de reflectir, em sua defesa <strong>pelo</strong> orgulho e pela inútil<br />

vaidade em que vivera, a sua cintilação dispersa entre os rasgos da eternidade.<br />

Púrpura dos quebrados e dos vencidos… O estandarte que se agita nos ventos da<br />

tempestade, ao longe, tão distante que as mãos que o procuram não o conseguem<br />

alcançar. Da cor dos sacrificados, dos imolados a um destino que, na sua derradeira<br />

acepção, não passa de viver e morrer, o estandarte oscila nos braços de um vento<br />

agitado, rasgado <strong>pelo</strong> furor das batalhas vencidas e pela fúria de mil lâminas cravadas<br />

sobre os corpos dos derrotados. Púrpura de fogos carbonizados, imolados no altar da<br />

derradeira controladora do mundo, capaz de extinguir, como no último tremular de<br />

uma vela, o sopro que animava as modulações do pó.<br />

Desenvolvia-se a imagem por dentro dos seus pensamentos e os pincéis agitam-se nas<br />

suas mãos, como se tivessem vontade própria. Queriam criar, imortalizar em objecto as<br />

forças que sussurram nos confins da imaginação. E, naquela noite final, fatal como a<br />

sombra de um destino iminente, o pintor não negaria aos instrumentos da sua obra o<br />

mais profundo desejo dos seus corações de madeira. Antes que a mão do silêncio o<br />

derrubasse, o seu legado deveria ficar eternizado perante os olhos do mundo, como ele<br />

sempre sonhara, caminhando incessantemente pelas sendas do orgulho, sem alcançar<br />

mais que as feridas que o consumiam. Ali, contudo, enquanto a imagem ganhava vida<br />

na sua totalidade, sabia que não seria desprezado, porque a sua criação, a última, a<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!