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que ia sucedendo e o que ia fazendo no presente imediato, como se o tempo não fosse<br />
aberto e unidireccional, mas fechado e circular, um anel retroactivo, condicionado por si<br />
próprio em todas as suas dimensões e direcções. Se assim fosse, então não só o passado<br />
condiciona o presente e este o futuro, mas o inverso também é verdadeiro, o que<br />
representaria para si uma autêntica tragédia. Ainda esta ideia não estava completamente<br />
assimilada, quando outra se revelou, ao compreender que o conjunto de relações e<br />
interacções em que estava naturalmente envolvido, por escolha sua ou como pano de fundo<br />
pressuposto a todas as escolhas, comprometia de forma aparentemente irremediável a<br />
aplicação coerente e consequente do planeado, na medida em que abria o seu sistema (o<br />
seu eu, o seu livro, a sua vida) a uma rede potencialmente infinita de interferências causais<br />
e casuais imprevisíveis. Mas o pior veio depois, quando sentiu que estava a perder o<br />
controlo do processo, não na sua consecução prática, mas na sua elaboração teórica, na<br />
própria origem. Dava-se progressivamente conta de que o seu inconsciente lhe pregava<br />
partidas e que os produtos desse trabalho mental ganhavam uma vida própria, autónoma e<br />
evoluíam quase independentemente da sua vontade consciente. Sentia-se agora atacado em<br />
todas as frentes. E, no entanto, por incrível ou impossível que pareça, tudo isto foi<br />
superado num esforço titânico de afirmação de uma vontade de poder que se queria<br />
omnipotente, omnisciente e omnipresente, isto é, divina. A primeira barreira foi<br />
ultrapassada intensificando a atenção na consciência vivida do instante, esquecendo ou<br />
elidindo, por suspensão, a memória do futuro, criando ou descobrindo uma dimensão de<br />
eterno presente. A segunda, por eliminação sistemática da complexidade dos factores e<br />
elementos externos secundários, concentrando o essencial do imaginado-agido no grau<br />
máximo da simplicidade e economia, a fim de fechar o sistema. Só esta solução drástica<br />
lhe permitiu prosseguir e, assim, não teve outra alternativa a não ser despojar-se de tudo o<br />
que fosse acessório para o projecto, desapegar-se de todas as coisas, pessoas, situações ou<br />
vivências que não interessassem ou pudessem prejudicar o objectivo, de tudo , enfim, que<br />
não pudesse controlar livremente. A consequência lógica disso traduziu-se na prática em<br />
fechar-se em casa a escrever o livro, fazendo coincidir em absoluto o acto ideativo da<br />
criação literária com o da experiência da vida, escrevendo para viver e vivendo para<br />
escrever, reduzindo tudo o resto a zero e constituindo-se assim como verdadeiro e pleno<br />
autor e actor, espectador e obra de si próprio, sujeito e objecto absoluto de si mesmo. Essa<br />
solução global radical permitia-lhe até resolver o problema da interferência na origem,<br />
visto que tudo o que escrevesse se esgotaria nesse mesmo acto e dispensaria qualquer<br />
manifestação exterior. Assim, extaticamente feliz pela solução perfeita encontrada,<br />
ESCREVER=VIVER, entregou-se a ela sem reservas, apenas para logo compreender que<br />
tinha caído numa terrível armadilha, num labirinto especular infinito, num autismo do qual<br />
não poderia sair a não ser assumindo a derrota da intenção original. Ou seria já tarde<br />
demais e tinha acabado de cavar a sua própria sepultura vital, na fórmula inversa,<br />
ESCREVER=MORRER? Numa aflição extrema, receando o pior, o seu espírito iluminouse<br />
e compreendeu tudo, compreendeu o carácter intrinsecamente luciferino do seu intento,<br />
a sua hybris ilimitada, a sua arrogância desmedida, o seu desafio temerário, arrogante e<br />
delirante à ordem universal das coisas, à interdependência global de tudo, ao determinismo<br />
infinito do cosmos. Compreendeu que era impossível, que nenhum ser contingente, finito e<br />
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