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E hoje, domingo de ramos trinta e cinco anos depois da amargura, Gomes era uma<br />
figura envelhecida e amargurada, que se mostrava a cada cliente um homem prestável e<br />
simpático, que facilmente conversava e que, acima de tudo, mantinha a aldeia com<br />
força, ferramentas e vinho. Hoje era uma data marcante para ele, mais um ano que<br />
recordava a falta dos seus filhos, família e amor. Talvez o quarto trancado, obrigar a<br />
trabalhos forçados uma grávida para que o cansaço não lhe permitisse vontade de sair,<br />
segui-la e segurá-la em todos os bailes e festas da aldeia não tivessem sido os mais<br />
acertados. Hoje, olhando o ramo pronto em cima do balcão, sentia o peso no seu<br />
coração vazio, sem nada que o ocupasse, que o fizesse bater, que lhe desse um sorriso<br />
honesto, que lhe desse alegria. Triste vida de alguém que tudo fez para ser abandonado<br />
e é obrigado a enfrentar esses erros ano após ano, sem ter direito a segunda hipótese.<br />
Sai pela porta para a praça do <strong>pelo</strong>urinho e, olhando para o altar, pensou “Que bem que<br />
ficava aqui um laço”. Entrou novamente na loja, deixou o ramo em cima do balcão,<br />
cortou um pouco de corda e fez um laço. Em seguida subiu à janela no andar de cima e<br />
pendurou o laço.<br />
O povo estava em roda, preparava-se para começar a missa, todos nas suas melhores<br />
roupas, com ramos na mão que perfumavam as colinas em volta, um acólito segurava<br />
numa caldeirinha de água benta, outro acendia as velas do altar improvisado e o<br />
sacerdote procurava as primeiras páginas da missa. Repentinamente um guincho de uma<br />
rapariga nova fez a plateia reparar no laço do senhor Gomes. Nele estava seguro o<br />
pescoço de um velhote, com o seu corpo inerte e praticamente morto. Finalmente<br />
acabava o desespero, a angústia e a negrura da sua vida.<br />
O sacerdote pediu a dois homens fortes para recuperarem o corpo, colocarem-no na casa<br />
mortuária da igreja e, perante uma plateia que já não conseguia responder às orações,<br />
realizou a missa, sim, porque hoje era domingo de ramos na aldeia.<br />
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Miguel Pereira