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alexandre herculano e antero de quental - Rotary Club Coimbra

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Alexandre Herculano<br />

e<br />

Antero <strong>de</strong> Quental


ALEXANDRE HERCULANO<br />

E<br />

ANTERO DE QUENTAL<br />

COIMBRA – 10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009


Ficha técnica<br />

Título: Alexandre Herculano e Antero <strong>de</strong><br />

Quental.<br />

Antologia: José Ribeiro Ferreira.<br />

Folha <strong>de</strong> Rosto: Retrato <strong>de</strong> rapariga. Pintura<br />

romana (c. 50-40 a.C.).


<strong>Rotary</strong> <strong>Club</strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> evoca:<br />

Alexandre Herculano<br />

(28.3.1810-13.9.1877)<br />

Antero <strong>de</strong> Quental<br />

(18.4.1842-11.9.1891)<br />

O FUTURO DO ROTARY<br />

ESTÁ EM SUAS MÃOS<br />

10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009<br />

5


Prefácio<br />

Quer evocar esta pequena antologia dois escritores<br />

que, embora literariamente um tanto esquecidos, não<br />

per<strong>de</strong>m o mérito <strong>de</strong> ser dois dos maiores símbolos da<br />

cultura portuguesa, quer pela sua obra, quer pelo seu<br />

pensamento, quer pela sua postura cívica e ética:<br />

Alexandre Herculano (1810-1877) e Antero <strong>de</strong> Quental<br />

(1842-1891). E o último foi mesmo um dos gran<strong>de</strong>s<br />

ícones dos seus tempos <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>. E nos Palácios<br />

Confusos lá está, na fachada <strong>de</strong> uma casa, a placa a<br />

recordar que ali habitou, quando estudante.<br />

Assinala assim a antologia – naturalmente marcada<br />

pelo gosto <strong>de</strong> quem a fez – os cento e trinta e dois anos<br />

da morte <strong>de</strong> Alexandre Herculano e os cento e <strong>de</strong>zoito da<br />

<strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental, ocorridas respectivamente em 13<br />

<strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1877 e em 11 do mesmo mês <strong>de</strong> 1891. A<br />

antologia – ou dupla antologia – <strong>de</strong>stina-se apenas a<br />

apoiar a sessão evocativa <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009, no<br />

<strong>Rotary</strong> <strong>Club</strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>, ou em outros clubes rotários<br />

que a ela queiram recorrer. Se feita com o intuito <strong>de</strong>


proporcionar a plena participação na celebração, não<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nharia incentivar também a leitura da obra dos dois<br />

escritores: a <strong>de</strong> Alexandre Herculano saída na Bertrand,<br />

com o título <strong>de</strong> Obras Completas, em edição dirigida por<br />

Vitorino Nemésio; a <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental publicada<br />

pela Dom Quixote, e pela Imprensa Nacional – Casa da<br />

Moeda.<br />

A vida <strong>de</strong>stes dois gran<strong>de</strong>s homens, e sobretudo o<br />

seu afastamento final, talvez nos <strong>de</strong>ixe a bailar no<br />

pensamento uma pergunta obsidiante – e possivelmente<br />

mais ainda incómoda e inquietante: porque se retiraram<br />

<strong>de</strong> toda a acção pública e actuação política estes dois<br />

homens <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> postura cívica e <strong>de</strong> não menor<br />

elevação moral?<br />

É implacável a secreta inveja dos pequenos <strong>de</strong>uses<br />

do po<strong>de</strong>r, qualquer que ele seja!<br />

<strong>Coimbra</strong>, setembro <strong>de</strong> 2009<br />

José Ribeiro Ferreira


ALEXANDRE HERCULANO


Gravura em ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> João Pedroso


Introdução<br />

Alexandre Herculano nasce em Lisboa em 28 <strong>de</strong><br />

março <strong>de</strong> 1810 e morre no seu retiro <strong>de</strong> Vale <strong>de</strong> Lobos,<br />

em Santarém, em 13 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1877. De permeio<br />

uma vida cheia <strong>de</strong> homem que se fez por si – uma vida<br />

<strong>de</strong>dicada à <strong>de</strong>scoberta da verda<strong>de</strong>, à busca e preservação<br />

<strong>de</strong> documentos históricos e culturais do país.<br />

Estudou Humanida<strong>de</strong>s na Congregação do Oratório<br />

<strong>de</strong> S. Filipe Néri, como preparação para a Universida<strong>de</strong>,<br />

mas nela nunca chegou a entrar, por falta <strong>de</strong> recursos. Em<br />

vez disso, fez o curso médio da Aula do Comércio, uma<br />

criação do Marquês <strong>de</strong> Pombal. Po<strong>de</strong>, pois, dizer-se que<br />

se trata quase <strong>de</strong> um autodidacta.<br />

Envolve-se no Movimento Liberal <strong>de</strong> 1820 e teve<br />

<strong>de</strong> se exilar algum tempo. Com esse movimento ascen<strong>de</strong><br />

ao po<strong>de</strong>r a burguesia e introduz-se a corrente literária do<br />

Romantismo que – aparecido na Europa em finais do séc.<br />

XVIII e inícios do XIX e introduzido em Porugal<br />

precisamente por Garrett e Herculano – tem predilecção<br />

pelos temas medievais, proconiza um regresso ao<br />

passado glorioso e aos gran<strong>de</strong>s heróis, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> um<br />

catolicismo purificado e os valores morais tradicionais.<br />

Herculano dirigiu o jornal/revista Panorama <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1837, com gran<strong>de</strong> êxito, já que chegou a atingir a tiragem<br />

11


<strong>de</strong> cinco mil exemplares que a cada passo esgotavam.<br />

Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> homem e <strong>de</strong> cidadão, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> e busca<br />

<strong>de</strong> forma <strong>de</strong>nodada a verda<strong>de</strong>; e, em consequência, dói-<br />

lhe profundamente na alma a crítica sem lisura.<br />

Tornada figura nacional, Herculano criou à sua<br />

volta uma aura <strong>de</strong> admiração, <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção e <strong>de</strong> respeito. O<br />

seu tempo ergueu-o à categoria <strong>de</strong> símbolo – estatuto que<br />

ainda hoje subsiste. Precisamente «símbolo dos mais<br />

profundos sentimentos da consciência nacional» o<br />

consi<strong>de</strong>ra António Sérgio, nos Ensaios III.<br />

A sua morte motivou luto nacional e é paradigma<br />

que se impõe na sua época e perdura ao longo dos<br />

tempos. Mereceu sepultura no Panteão dos Jerónimos e a<br />

trasladação dos seus restos mortais constituiu das<br />

maiores manifestrações <strong>de</strong> pesar vistas em Lisboa.<br />

Segundo-Bibliotecário, em 1833, na Biblioteca<br />

Pública do Porto, procura organizá-la a partir da<br />

biblioteca do Bispo e das <strong>de</strong> conventos e mosteiros. Em<br />

1836, <strong>de</strong>mite-se por coerência e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao juramento<br />

que fizera à Carta Constitucional, mas em 1839 é<br />

nomeado Director das Bibliotecas da Ajuda e das<br />

Necessida<strong>de</strong>s.<br />

Praticou géneros literários vários: poesia, ficção,<br />

história, jornalismo, ensaio (temas politicos, jurídicos,<br />

12


eligiosos, económicos, culturais). Romancista, poeta,<br />

historiador e ensaista – mas também homem público e<br />

bibliotecário cuidadoso e consciente –, essas múltiplas<br />

facetas são afinal sinal e símbolo <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />

permanência.<br />

A maior parte da bibliografia a seu respeito foca o<br />

homem e suas i<strong>de</strong>ias, em <strong>de</strong>trimento da produção<br />

literária. E mais parca é ainda a que aborda a sua obra<br />

poética.<br />

E curiosamente a poesia foi das suas primeiras<br />

tentativas literárias. E, por outro lado, significativo se<br />

torna verificar que – se exceptuarmos os poemas que se<br />

dispersam pela obra ficcional – pertence à sua juventu<strong>de</strong><br />

a maioria da sua produção poética, ou pelo menos a parte<br />

mais importante. Dizia Herculano que tinha sido poeta<br />

até aos vinte e cinco anos: e, se “Cruz mutilada” (1849),<br />

o último poema, aparece pelos seus quarenta, a parte<br />

mais significativa – “Semana Santa” (1829), “Arrábida”<br />

(1830), “Tristezas do <strong>de</strong>sterro” (escrito no exílio em<br />

Plymouth e em França), “A vitória e a pieda<strong>de</strong>” (1833),<br />

“Tempesta<strong>de</strong>” (1840) – é composta entre os vinte e os<br />

vinte e cinco anos e publicada na Harpa do Crente<br />

(1838). De qualquer modo, ao longo da vida – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa<br />

1ª edição <strong>de</strong> Harpa do Crente, até à terceira <strong>de</strong> Poesias<br />

(1872), também a última que publicou em vida –, não<br />

13


<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> trabalhar, modificar e aperfeiçoar os poemas.<br />

Um cuidado que o leva a alterar <strong>de</strong> forma profunda e a<br />

compor quase <strong>de</strong> novo “A vitória e a pieda<strong>de</strong>”, publicado<br />

pela primeira vez em Poesias <strong>de</strong> 1850, e que é sinal <strong>de</strong><br />

continuada atenção à sua obra poética.<br />

Assim justifica Herculano, em anotação ao poema,<br />

a sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> não ter queimado os versos <strong>de</strong> “Semana<br />

Santa”, como fizera a outros da sua primeira mocida<strong>de</strong>:<br />

«tenho a consciência <strong>de</strong> que há aí poesia» e «não há<br />

poeta, que, tendo essa consciência, consinta <strong>de</strong> bom<br />

grado em <strong>de</strong>ixar nas trevas o fruto das suas vigílias» 1 .<br />

Inserido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras produções poéticas no<br />

ambiente romântico, se aos seus poemas falta o lirismo<br />

confessional, ganham em contrapartida na reflexão e no<br />

testemunho e tem<strong>de</strong>m a abordar todos problemas morais<br />

e sentimentais: são meditações morais, religiosas,<br />

filosóficas; meditações a propósito <strong>de</strong> paisagens que<br />

infun<strong>de</strong>m o sentimento <strong>de</strong> infinida<strong>de</strong> e solidão, <strong>de</strong><br />

acontecimentos, <strong>de</strong> monumentos (perfeitos ou em ruínas,<br />

como o mosteiro abandonado ou a cruz mutilada,<br />

símbolo da divinda<strong>de</strong> e esquecido pelos servos que<br />

resgatara). São testemunhos sobre a guerra e sobre o<br />

exílio, talvez memória da Guerra civil que o afastou da<br />

1
In
Maria G. Vieira Lopes, Poesia <strong>de</strong> Alexandre Herculano (Lisboa,<br />

Comunicação, 1981), p. 78
<br />

14


pátria e evoca em poemas como “O soldado”, “A vitória<br />

e a pieda<strong>de</strong>”, “Tristezas do <strong>de</strong>sterro”, “O mosteiro<br />

<strong>de</strong>serto”, “A volta do proscrito”. São reflexões sobre<br />

Deus, a liberda<strong>de</strong>, a morte, o contraste entre eternida<strong>de</strong> e<br />

precarieda<strong>de</strong>/trasitorieda<strong>de</strong> da vida; reflexões motivadas<br />

por tempesta<strong>de</strong>s, pela imensidão do mar ou do<br />

firmamento, pelo sol poente ou pela noite; reflexões<br />

sobre o Juízo Final, como a visão <strong>de</strong> “Semana Santa” em<br />

que a cúpula do templo se abre e Deus, entre coros<br />

celestiais, <strong>de</strong>sce para julgar os mortos que se erguem dos<br />

túmulos. A sua mais antiga composição chegada até nós,<br />

Herculano aí ergue-se ao estatuto <strong>de</strong> profeta bíblico que<br />

visiona a catástrofe para «tiranos e hipócritas, e turbas /<br />

Envilecidas, bárbaras, e servas» (“Semana Santa” IV);<br />

proclama que «Deus é Deus e os homens livres»<br />

(“Semana Santa” I), como que fazendo a i<strong>de</strong>ntificação<br />

dos i<strong>de</strong>ais cristãos com os liberais.<br />

E assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse primeiro poema, o sejeito<br />

poético apresenta-se a si próprio como o Poeta e se<br />

assume como a Voz, o Guia, o Profeta. Como tal, é um<br />

eleito e intermediário. E essa missão divina <strong>de</strong> guia, que<br />

é o poeta, reforça a unida<strong>de</strong> do eu. Ou seja, Herculano<br />

<strong>de</strong>nota alto conceito da função e do papel <strong>de</strong> poeta. É<br />

que, em sua opinião, é missão do poeta a Justiça, a<br />

Coragem, a Moral – portanto, afasta-se do que é banal,<br />

15


quotodiano, real, pessoal. Assim o poema é a palavra do<br />

Guia e o poeta transcen<strong>de</strong> o homem individual e passa a<br />

ser o sujeito que veicula a Voz – a voz bíblica e<br />

profética. Daí que se compreenda om frequento recurso<br />

da poesia <strong>de</strong> Alexandre Herculano ao mo<strong>de</strong>lo bíblico 2 .<br />

Na sua poesia, a generalização e a abstração<br />

superam e ultrapassam o individual e pessoal: é disso<br />

exemplo “Tristezas do <strong>de</strong>sterro” em que Herculano <strong>de</strong>ixa<br />

na sombra o caso do seu próprio exílio, <strong>de</strong> que parte a<br />

sua reflexão, para abordar a questão geral do exilado e <strong>de</strong><br />

alguém que per<strong>de</strong>u a pátria. Esta ausência do pessoal é<br />

significativa da postura do autor <strong>de</strong> Harpa do Crente, já<br />

que contrasta com o que é usual no seu tempo e na escola<br />

romântica. O discurso poético <strong>de</strong> Herculano assenta<br />

assim em valores morais que se sobrepõem a quaisquer<br />

valores estéticos <strong>de</strong> escola 3 . O poeta fala em nome <strong>de</strong><br />

algo que o transcen<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que a sua voz é instrumento. E,<br />

em Herculano, esse algo transcen<strong>de</strong>nte é Deus.<br />

Os poemas, longos, <strong>de</strong> métrica variável, mas em<br />

que predominam os <strong>de</strong>cassílabos, procuram criar um<br />

ambiente emocional pela junção <strong>de</strong> quadros que<br />

2 ‐
Em
“Semana
Santa”
faz
mesmo
adaptações
<strong>de</strong>
salmos
e
da
<br />

passos
da
Lamentações
<strong>de</strong>
Jeremias.
<br />

3- Vi<strong>de</strong> Maria da Graça Vi<strong>de</strong>ira Lopes, A Poesia <strong>de</strong> Alexandre<br />

Herculano (Lisboa, 1981), p. 25.<br />

16


aparentam dispersão. Assim o poema “A Arrábida”<br />

percute o tema geral da religião em sucessivas <strong>de</strong>scrições<br />

da natureza, alusões políticas, meditações sobre a morte,<br />

diatribes à cida<strong>de</strong>.<br />

A poesia <strong>de</strong> Herculano, cheia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

comunicativo, apresenta diversida<strong>de</strong> métrica nos poemas<br />

longos; insiste no vocabulário que evoca o belo horrível,<br />

o sepulcral, o apocalíptico; prefere o recurso ao<br />

hipérbato; utiliza comparações e metáforas, linguagem<br />

eloquente; estrutura da frase, com alternância <strong>de</strong> períodos<br />

longos e curtos, ao serviço da amplidão, do método e da<br />

severida<strong>de</strong>; tom explicativo, no qual têm especial<br />

importância os atributos, apostos, orações relativas<br />

explicativas, predominância das conjunções mas e<br />

porque como partículas características na ligação<br />

frásica 4 .<br />

Há muito <strong>de</strong> poesia na ficção <strong>de</strong> Herculano. Por<br />

exemplo, O Eurico o Presbítero já foi comparado a um<br />

poema épico e tem, <strong>de</strong> facto, processos literários que são<br />

comuns nesse género literário. Entre os vários processos<br />

literários que esmaltam o romance, sobressaem os<br />

símiles à maneira homérica que A. Magina Ferreira não<br />

4 - O estilo <strong>de</strong> Eurico o Presbítero. Contribuição para o estudo do<br />

estilo <strong>de</strong> Herculano (<strong>Coimbra</strong>, Suplem. 4 <strong>de</strong> Biblos, 1945).<br />

17


distingue das simples comparações 5 . Eis exemplo bem<br />

elucidativo do uso <strong>de</strong> similes no romance (pp. 103-104):<br />

Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras do mar,<br />

que, estalando, rola pelos <strong>de</strong>spenha<strong>de</strong>iros e, abrindo um<br />

abismo, se atufa nas águas, assim o cavaleiro <strong>de</strong>sconhecido,<br />

rompendo por entre os godos, precipitou-se para on<strong>de</strong> mais<br />

cerrado em redor <strong>de</strong> Teodomiro e Mugueiz fervia o pelejar. 6<br />

Esta comparação sugestiva — que, <strong>de</strong> imediato, dá<br />

a i<strong>de</strong>ia clara dos estragos que a passagem do cavaleiro<br />

negro causava nas hostes muçulmanas — impressionoume<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os adolescentes anos em que pela primeira vez<br />

li o Eurico o presbítero. Mais tar<strong>de</strong>, quando me<br />

familiarizei com os Poemas Homéricos, a sua recordação<br />

trouxe-me a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comparar os símiles da Ilíada e da<br />

Odisseia com o uso <strong>de</strong>sse processo literário no referido<br />

romance <strong>de</strong> Herculano.<br />

Não se estranhará por isso que aponha na antologia<br />

dois trechos do Eurico o Presbítero que consi<strong>de</strong>ro<br />

significativos do seu tom épico ou meditativo e reflexivo.<br />

5 - O estilo <strong>de</strong> Eurico, pp. 19-26.<br />

6 - As citações são feitas pela edição das obras completas <strong>de</strong><br />

Alexandre Herculano, dirigida por Vitorino Nemésio: Eurico o<br />

presbítero, introdução e revisão <strong>de</strong> Vitorino Nemésio, notas <strong>de</strong><br />

Maria Helena Lucas, verificação do texto <strong>de</strong> António C. Lucas<br />

(Lisboa, 1972).<br />

18


Antologia


Herculano<br />

Desenho <strong>de</strong> Luís Filipe


Semana santa<br />

Der Gedanke Gott weckt einen furchterlichen<br />

Nachhar auf. Sein Name heisst Richter.<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Deus acorda um tremendo vizinho.<br />

Seu nome é Juiz.<br />

I<br />

Tíbio o sol entre as nuvens do ocidcnte,<br />

Já lá se inclina ao mar. Grave e solene<br />

Vai a hora da tar<strong>de</strong>! O oeste passa<br />

Mudo nos troncos da alameda antiga,<br />

Que à voz da primavera os gomos brota:<br />

O oeste passa mudo, e cruza o átrio<br />

Pontiagudo do templo, edificado<br />

Por mãos duras <strong>de</strong> avós, em monumento<br />

De uma herança <strong>de</strong> fé, que nos legaram,<br />

A nós seus netos, homens <strong>de</strong> alto esforço,<br />

Que nos rimos da herança, e que insultamos<br />

A cruz e o templo e a crença <strong>de</strong> outras eras;<br />

Nós, homens fortes, servos <strong>de</strong> tiranos,<br />

Que sabemos tão bem rojar seus ferros<br />

Sem nos queixar, menosprezando a Pátria<br />

E a liberda<strong>de</strong>, e o combater por ela.<br />

21<br />

Schiller


Eu não! — eu rujo escravo; eu creio e espero<br />

No Deus das almas generosas, puras,<br />

E os déspotas maldigo. Entendimento<br />

Bronco, lançado em século fundido<br />

Na servidão <strong>de</strong> gozo ataviada,<br />

Creio que Deus é Deus, e os homens livres!<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 5-6<br />

Página manuscrita <strong>de</strong> "Mosteiro Deserto"<br />

22


O Salmo 7<br />

(XVIII <strong>de</strong> “Semana Santa”)<br />

Quanto é gran<strong>de</strong> o meu Deus!... Té on<strong>de</strong> chega<br />

O seu po<strong>de</strong>r imenso<br />

Ele abaixou os céus, <strong>de</strong>sceu, calcando<br />

Um nevoeiro <strong>de</strong>nso.<br />

Dos querubins nas asas radiosas<br />

Librando-se, voou;<br />

E sobre turbilhões <strong>de</strong> rijo vento<br />

O mundo ro<strong>de</strong>ou.<br />

Ante o olhar do Senhor vacila a terra,<br />

E os mares assustados<br />

Bramem ao longe, e os montes lançam fumo.<br />

Da sua mão tocados.<br />

Se pensou no Universo, ei-lo patente<br />

Ante a face do Eterno:<br />

Se o quis, o firmamento os seios abre,<br />

Abre os seios o inferno.<br />

Dos olhos do Senhor, homem, se po<strong>de</strong>s,<br />

Escon<strong>de</strong>-te um momento:<br />

7 
‐
Este
salmo
imita,
pela
or<strong>de</strong>m
em
que
aparecem,
os
<br />

salmos
17.8‐11;
138.7‐12;
7.13‐14.
<br />

23


Vê on<strong>de</strong> encontrarás lugar que fique<br />

Da sua vista isento:<br />

Sobe aos céus, transpõe mares, busca o abismo,<br />

Lá teu Deus hás-<strong>de</strong> achar;<br />

Ele te guiará, e a <strong>de</strong>xtra sua<br />

Lá te há-<strong>de</strong> sustentar:<br />

Desce à sombra da noite, e no seu manto<br />

Envolver-te procura;<br />

Mas as trevas para ele não são trevas,<br />

Nem é a noite escura.<br />

No dia do furor, em vão buscaras<br />

Fugir ante o Deus forte,<br />

Quando do arco tremendo, irado, impele<br />

Seta em que pousa a morte.<br />

Mas o que o teme dormirá tranquilo:<br />

No dia extremo seu,<br />

Quando na campa se rasgar da vida<br />

Das ilusões véu.<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 22-23<br />

24


A Lamentação<br />

(XX <strong>de</strong> “Semana Santa”)<br />

Como assim jaz e solitária e queda<br />

Esta cida<strong>de</strong> outrora populosa!<br />

Qual viúva ficou e tributária<br />

A senhora das gentes.<br />

Chorou durante a noite; em pranto as faces,<br />

Sozinha, entregne à dor, nas penas suas<br />

Ninguém a consolou: os mais queridos<br />

Contrários se tornaram.<br />

Ermas as praças <strong>de</strong> Sião e as ruas,<br />

Cobre-as a ver<strong>de</strong> relva: os sacerdotes<br />

Gemem; as virgens pálidas suspiram<br />

Envoltas na amargura.<br />

Dos filhos <strong>de</strong> Israel nas cavas faces<br />

Está pintada a macilenta fome;<br />

Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,<br />

Um pão <strong>de</strong> infâmia eivado.<br />

O trémulo ancião, <strong>de</strong> longe, os olhos<br />

Volve a Jerusalém, <strong>de</strong>la fugindo;<br />

Vê-a, suspira, cai, e em breve expira<br />

Com o seu nome nos lábios.<br />

25


Que horror! – ímpias as mães os tenros filhos<br />

Despedaçaram: bárbaras quais tigres,<br />

Os sanguinosos membros palpitantes<br />

No ventre sepultaram.<br />

Deus, compassivo olhar volve a nós tristes:<br />

Cessa <strong>de</strong> Te vingar! Vê-nos escravos,<br />

Servos <strong>de</strong> servos em país estranho.<br />

Tem dó <strong>de</strong> nossos males!<br />

Acaso serás Tu sempre inflexível?<br />

Esqueceste <strong>de</strong> todo a nação tua?<br />

O pranto dos Hebreus não te comove?<br />

És surdo a seus lamentos?<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 26-27<br />

26


É tão suave ess’ hora,<br />

Em que nos foge o dia,<br />

E em que suscita a lua<br />

Das ondas a ar<strong>de</strong>ntia.<br />

Se em alcantis marinhos,<br />

Nas rochas assentado,<br />

O trovador medita<br />

Em sonhos enleado!<br />

O mar azul se encrespa<br />

Coa vespertina brisa,<br />

E no casal da serra<br />

A luz já se divisa.<br />

A voz<br />

E tudo em roda cala<br />

Na praia sinuosa,<br />

Salvo o som do remanso<br />

Quebrando em furna algosa.<br />

27


Ali folga o poeta<br />

Nos <strong>de</strong>svarios seus,<br />

E nessa paz que cerca<br />

Bendiz a mão <strong>de</strong> Deus.<br />

Mas <strong>de</strong>spregou seu grito<br />

A alcíone gemente:<br />

E nuvem pequenina<br />

Ergueu-se no oci<strong>de</strong>nte;<br />

E sobe, e cresce, e imensa<br />

Nos céus negra flutua,<br />

E o vento das procelas<br />

Já varre a fraga nua.<br />

Turba-se o vasto oceano,<br />

Com hórrido clamor;<br />

Dos vagalhões nas ribas<br />

Expira o vão furor.<br />

E do poeta a fronte<br />

Cubriu véu <strong>de</strong> tristeza;<br />

Partiu-se a luz do raio<br />

Seu hino à natureza.<br />

28


Pela alma lhe vagava<br />

Um negro pensamento.<br />

Da alcíone ao gemido,<br />

Ao sibilar do vento.<br />

Era blasfema i<strong>de</strong>ia.<br />

Que triunfava emfim;<br />

Mas voz soou ignota.<br />

Que lhe dizia assim:<br />

— « Cantor, esse queixume<br />

Da núncia das procelas,<br />

E as nuvens, que te roubam<br />

Miríadas <strong>de</strong> estrelas,<br />

E o frémito dos euros,<br />

E o estourar da vaga,<br />

Na praia, que revolve,<br />

Na rocha, on<strong>de</strong> se esmaga,<br />

On<strong>de</strong> espalhava a brisa<br />

Sussurro harmonioso,<br />

Em quanto do éter puro<br />

Descia o sol radioso,<br />

29


Tipo da vida do homem,<br />

E do universo a vida;<br />

Depois do afã repouso,<br />

Depois da paz a lida.<br />

Se ergueste a Deus um hino.<br />

Em dia <strong>de</strong> amargura;<br />

Se te amostraste grato<br />

Nos dias <strong>de</strong> ventura,<br />

Seu nome não maldigas,<br />

Quando se turba o mar:<br />

No Deus, que é pai, confia,<br />

Do raio ao cintilar.<br />

Ele o mandou: a causa<br />

Disso o universo ignora,<br />

E mudo está. O nume,<br />

Como o universo, adora!» —<br />

Oh sim, torva blasfémia<br />

Não manchará seu canto!<br />

Brama a procela embora;<br />

Pese sobre ele o espanto;<br />

30


Que <strong>de</strong> sua harpa os hinos<br />

Derramará contente,<br />

Aos pés <strong>de</strong> Deus, qual óleo<br />

Do nardo rescen<strong>de</strong>nte.<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 45-50<br />

Capa <strong>de</strong> Os Dois Mundos 2 (30.9.1877)<br />

<strong>de</strong>dicado à morte <strong>de</strong> Herculano.<br />

Colaborou Antero <strong>de</strong> Quental.<br />

31


«No teu seio rcclinado<br />

Dorrnirei, Senhor, um dia,<br />

Quando for na terra fria<br />

Meu repouso procurar;<br />

Quando a lousa do sepulcro<br />

Sobre mim tiver caído<br />

E este espírito afligido<br />

Vir a tua luz brilhar!<br />

No teu seio, <strong>de</strong> pesares<br />

O existir não se eutretece;<br />

Lá eterno o amor floresce,<br />

Lá floresce eterna paz:<br />

Lá bramir junto ao poeta.<br />

Não irão paixões e dores,<br />

Vãos <strong>de</strong>sejos, vãos temores<br />

Do <strong>de</strong>sterro em que ele jaz.<br />

Resignação<br />

Hora extrema, eu te saúdo!<br />

Salve, oh trevas da jazida,<br />

D’on<strong>de</strong> cspera erguer-se à vida<br />

Meu espírito imortal!<br />

32


Anjo bom, não me abandones<br />

Neste trance dilatado;<br />

Que contrito, resignado<br />

Me acharás na hora fatal.<br />

E <strong>de</strong>pois... perdoa, oh anjo,<br />

Ao amor do moribundo,<br />

Que só <strong>de</strong>ixa neste mundo<br />

Pouco pó, muito gemer.<br />

Oh... <strong>de</strong>pois... dize à mesquinha<br />

Um segredo <strong>de</strong> doçura:<br />

Que na pátria o amor se apura,<br />

Que o <strong>de</strong>sterro viu nascer.<br />

Que é o céu a pátria nossa;<br />

Que é o mundo exilio breve;<br />

Que o morrer é cousa leve;<br />

Que é princípio, não é fim:<br />

Que duas almas que se amaram<br />

Vão lá ter nova existência,<br />

Confundidas numa essência,<br />

A <strong>de</strong> um novo querubim.»<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 90-91<br />

33


A rosa<br />

Pura em sua inocência,<br />

Entre a sarça espinhosa,<br />

Purpúrea esplen<strong>de</strong>, inda botão intacto,<br />

Na madrugada a rosa.<br />

É da campina a virgcm<br />

A pudibunda flor;<br />

Em seus eflúvios matutina brisa<br />

Bebe o primeiro amor.<br />

O sol inunda as veigas;<br />

Calou-se o rouxinol;<br />

E a flor ébria <strong>de</strong> glória, à luz fervente,<br />

Desabrochou-a o sol.<br />

O sopro matutino<br />

No seio seu pousara:<br />

Prostituída à luz, fugiu-lhe a brisa,<br />

Que a linda rosa amara.<br />

34


Bela se ostenta um dia;<br />

Saúdam-na as pastoras;<br />

Dão-lhe mil beijos, gorgeando, as aves;<br />

Voam do gozo as horas.<br />

Lá vem chegando a noite,<br />

E ela empali<strong>de</strong>ceu:<br />

Incessante prazer mirrou-lhe a seiva;<br />

A rosa emurcheceu.<br />

Desce o tufão dos montes,<br />

Os matos sacudindo;<br />

Desfalecida a flor <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> as folhas,<br />

Que o vento vai sumindo.<br />

On<strong>de</strong> estará a rosa,<br />

Do prado a bela filha?<br />

O tufão, que espalhou seus frágeis restos,<br />

Passou: não <strong>de</strong>ixou trilha.<br />

Da sarça a flor virente<br />

Nasceu, gozou, e é morta:<br />

E a qual <strong>de</strong>sses amantes <strong>de</strong> um momento<br />

Seu fado escuro importa?<br />

35


Nenhum, nenhum por ela<br />

Gemeu saudoso à tar<strong>de</strong>;<br />

Não há quem junte as <strong>de</strong>rramadas folhas<br />

Quem amoroso as guar<strong>de</strong>.<br />

Só da manhã o sopro,<br />

Passando no outro dia,<br />

Da rosa, que adorou, quando a inocência<br />

Em seu botão sorria,<br />

Junto do tronco humil<strong>de</strong><br />

O curso <strong>de</strong>morando,<br />

Veio <strong>de</strong>positar perdão, sauda<strong>de</strong>,<br />

Queixoso sussurrando.<br />

De quantas és a imagem,<br />

Oh <strong>de</strong>sgraçada flor!<br />

Quantos perdões sobre um sepulcro abjecto<br />

Tem murmurado o amor!<br />

Poesias I (Lisboa, Bertrand, 1977), pp. 173-177<br />

36


[Baltasar]<br />

Santo filho <strong>de</strong> David,<br />

Divinal<br />

Salvador da triste raça<br />

Humanal,<br />

Loas ao Menino Jesus<br />

Que <strong>de</strong>scestes lá do assento<br />

Celestial;<br />

Vós da glória imperador<br />

Eternal,<br />

Aceitai este ofertório<br />

Não real;<br />

Pobre si. É quanto posso:<br />

Não hei al.<br />

o que fora compridoiro<br />

De auto tal<br />

Bem o sei; an<strong>de</strong>i más vias,<br />

Por meu mal;<br />

Que <strong>de</strong>z dias prantei tendas<br />

De arraial<br />

Nas soidões fundas d'Arábia,<br />

37


Mui fatal.<br />

Meus camelos há tisnado<br />

Sol mortal;<br />

E o <strong>de</strong> vento do <strong>de</strong>serto<br />

Vendaval.<br />

O presente que aí ve<strong>de</strong>s<br />

Pouco val;<br />

É <strong>de</strong> incenso esta boceta,<br />

Tal e qual;<br />

Que o tesouro que eu trazia,<br />

Mui cabal,<br />

Soterrou-mo a tempesta<strong>de</strong><br />

No areal.<br />

[Belchior]<br />

Vindo sou lá do Cataio<br />

A adorar-vos alto infante,<br />

Re<strong>de</strong>ntor:<br />

Não me pôs na alma <strong>de</strong>smaio<br />

Ser <strong>de</strong> terra tão distante,<br />

Rei senhor.<br />

É bem torva a minha face:<br />

Minhas mãos tingidas são<br />

De negrura;<br />

38


Mas na terra on<strong>de</strong> o sol nace<br />

Mais se cobre o coração<br />

De tristura;<br />

Porque o torpe Mafame<strong>de</strong><br />

Sua crença mui sandia<br />

Mandou lá;<br />

E não há quem <strong>de</strong>la arre<strong>de</strong><br />

Essa gente, que aperfia<br />

Em ser má.<br />

Real tronco <strong>de</strong> Jessé<br />

Mui fermoso, se eu pu<strong>de</strong>ra<br />

Vos levara;<br />

E convosco a vossa fé:<br />

Os incréus eu convertera,<br />

E salvara.<br />

Ora quero ver se peito<br />

São José, que é vosso padre...<br />

Poesias II (Lisboa, Bertrand, 1978), pp. 194-196<br />

39


A meditação<br />

No templo. Ao romper <strong>de</strong> alva.<br />

Dia <strong>de</strong> Natal da era <strong>de</strong> 748.<br />

Então os Godos cairão na guerra;<br />

Então fero inimigo há-<strong>de</strong> oprimi-los<br />

Com ruínas sem conto, e o susto e a fome.<br />

40<br />

Hino <strong>de</strong> Santo Isidoro,<br />

em Lucas <strong>de</strong> Tui, Chronicon. Liv. 3º.<br />

1<br />

Mais <strong>de</strong> sete séculos são passados <strong>de</strong>pois que tu, oh<br />

Cristo, vieste visitar a terra.<br />

E as tuas palavras foram escutadas pelos indomáveis<br />

filhos da Gótia, e eles ajoelharam aos pés da Cruz.<br />

Era que nessas palavras divinas havia uma poesia<br />

celeste, a qual as almas ru<strong>de</strong>s mas virgens do Setentrião<br />

sentiam casar-se com as suas primitivas virtu<strong>de</strong>s.<br />

Tu evangelizavas a liberda<strong>de</strong> e con<strong>de</strong>navas todo o<br />

género <strong>de</strong> tirania: tu restituías ao valor a sua generosida<strong>de</strong>,<br />

à generosida<strong>de</strong> a sua modéstia; tu revelavas inau-


ditos mistérios no esforço do morrer: a constância dos<br />

teus mártires escurecia a dos nossos guerreiros quando,<br />

<strong>de</strong>baixo do punhal <strong>de</strong> inimigo vitorioso, recusavam confessar-se<br />

vencidos.<br />

Tu convertias o amor, esse afecto <strong>de</strong>licioso, até<br />

então limitado ao gozo material da mulher, em<br />

sentimento gran<strong>de</strong> e sublime: alargavas o âmbito do<br />

coração por toda a terra, por tudo quanto nela vive e<br />

respira, e davas-lhe para conquistar todas as existências<br />

dos céus.<br />

A generosida<strong>de</strong>, o esforço e o amor, ensinaste-os tu<br />

em toda a sua sublimida<strong>de</strong>; só nas almas dos bárbaros<br />

estavam eles em gérmen. Não para os Romanos<br />

corrompidos, mas para nós, os selvagens setentrionais,<br />

era o cristianismo. Para estes o Evangelho assemelhavase<br />

ao Sol que rompe <strong>de</strong> além das serras e que ilumina,<br />

aquece e alegra; para os escravos abjectos dos césares<br />

assemelhava-se ao Sol mergulhando-se no mar, que só<br />

<strong>de</strong>ixa nos campos escuridão, frialda<strong>de</strong> e tristeza.<br />

Por isso, enquanto eles voltavam as costas à tua Cruz<br />

ou a lançavam <strong>de</strong> envolta com os ídolos nos seus mesquinhos<br />

larários, nós quebrávamos no fundo das selvas<br />

ou no topo das montanhas as imagens <strong>de</strong> Odin, <strong>de</strong> Tor e<br />

<strong>de</strong> Freda e corríamos a abraçarmo-nos com ela.<br />

Tem compaixão <strong>de</strong> nós, oh Cristo: lembra-te <strong>de</strong> que<br />

41


os ossos dos que assim o fizeram ainda não são inteira-<br />

mente cinzas <strong>de</strong>baixo das lousas; porque só quatro<br />

séculos têm passado por cima <strong>de</strong>les.<br />

2<br />

Quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra <strong>de</strong><br />

Espanha?<br />

Uma geração <strong>de</strong>generada pisa os restos <strong>de</strong> heróis:<br />

homens sem crença, blasfemos ou hipócritas, suce<strong>de</strong>ram<br />

aos que criam na gran<strong>de</strong>za moral do género humano e na<br />

providência <strong>de</strong> Deus.<br />

Dantes, os príncipes do povo eram os capitães das<br />

hostes: a espada dos reis a primeira que se tingia no<br />

sangue dos inimigos da pátria.<br />

Dantes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam<br />

curvavam-se para beijar a fímbria da sua estringe;<br />

porque a paz e a esperança entravam em todas as moradas<br />

sobre que <strong>de</strong>sciam as bênçãos <strong>de</strong>le.<br />

Dantes, o juiz era o pai do oprimido, o tribunal o<br />

abrigo do inocente, a justiça o nervo do Império Gótico.<br />

Dantes, nos conselhos dos prelados, dos nobres, dos<br />

homens livres, as leis iam buscar a sanção da sabedoria e<br />

aferir-se pela utilida<strong>de</strong> comum. Lá, o rei sabia que o<br />

po<strong>de</strong>r lhe vinha <strong>de</strong> Deus e da vonta<strong>de</strong> dos Godos, que o<br />

ceptro era cajado <strong>de</strong> pastor, não cutelo <strong>de</strong> algoz, e a coroa<br />

42


uma carga pesada, não uma auréola <strong>de</strong> vanglória.<br />

Hoje, nos paços <strong>de</strong> Toletum so retumba o ruído das<br />

festas, os francos e os vascónios talam as províncias do<br />

Norte, e a espada dos guerreiros só reluz nas lutas civis.<br />

Hoje, os príncipes na embriaguez dos banquetes<br />

esqueceram-se das tradições <strong>de</strong> avós; esqueceram-se <strong>de</strong><br />

que era aos capitães das hostes da Germânia que os<br />

romanos imbeles davam o nome <strong>de</strong> reis.<br />

Hoje, a prostituição entrou no templo do Crucificado:<br />

os claustros das catedrais velam com o seu manto<br />

<strong>de</strong> pedra as abominações da torpeza, e as mãos do<br />

sacerdote <strong>de</strong>ixam muitas vezes hume<strong>de</strong>cida a tela que<br />

veste os altares com vestígios do sangue <strong>de</strong>rramado<br />

covar<strong>de</strong> e vilmente.<br />

Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equida<strong>de</strong>: o<br />

juiz ven<strong>de</strong> a consciência no mercado dos po<strong>de</strong>rosos,<br />

como as mulheres <strong>de</strong> Babilónia vendiam a pudicícia nas<br />

praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.<br />

Hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados,<br />

dos nobres e dos homens livres: a coroa é uma conquista,<br />

a lei vonta<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sonrado vencedor <strong>de</strong> pelejas<br />

domésticas, a liberda<strong>de</strong> palavra mentida.<br />

Império <strong>de</strong> Espanha, império <strong>de</strong> Espanha! porque<br />

foram os teus dias contados?<br />

43


3<br />

O Sol oriental que ora bate ri<strong>de</strong>nte no pavimento da<br />

igreja aflige a minha alma, porque me parece que, alu-<br />

miando esta terra con<strong>de</strong>nada, se assemelha a homem<br />

cruel que viesse dar uma risada junto ao 1eito do moribundo.<br />

Porque te havia eu <strong>de</strong> amar, oh Sol, se tu és o<br />

inimigo dos sonhos do imaginar; se tu nos chamas à<br />

realida<strong>de</strong>, e a realida<strong>de</strong> é tão triste?<br />

Pela escuridão da noite, nos 1ugares ermos e às<br />

horas mortas do alto silêncio a fantasia do homem é mais<br />

ar<strong>de</strong>nte e robusta.<br />

É então que ele dá movimento e vida aos penhascos,<br />

voz e entendimento às selvas que se meneiam e gemem à<br />

mercê da brisa nocturna.<br />

É então que ele colige as suas recordações; une,<br />

parte, transmuda as imagens das existências que viu<br />

passar ante si e estampa nas sombras que o ro<strong>de</strong>iam um<br />

universo transitório, mas para ele real.<br />

E é belo esse mundo <strong>de</strong> fantasmas aéreos, por entre<br />

cujos lábios <strong>de</strong>scorados não transpiram nem perjúrio nem<br />

dobrez, e a cujos olhos sem brilho não assoma o reflexo<br />

<strong>de</strong> ânimos pervertidos.<br />

Aí há o repouso, a paz e a esperança que <strong>de</strong>sapareceram<br />

da terra; porque o mundo das visões cria-o a mente<br />

44


pura do poeta: ela dá corpo e vulto ao que já só é i<strong>de</strong>al, e<br />

o passado, <strong>de</strong>ixando cair o seu imenso sudário, ergue-se<br />

em pé e, pondo-se diante do que medita, diz-lhe: — aqui<br />

estou eu!<br />

E este o compara com o presente e recua <strong>de</strong> involuntário<br />

terror:<br />

Porque o cadáver que se alevanta do pó é formoso e<br />

santo, e o presente que vive e passa e sorri é horrendo e<br />

maldito.<br />

E o poeta atira-se chorando ao seio do cadáver e respon<strong>de</strong>-lhe:<br />

— escon<strong>de</strong>-me tu!<br />

É lá que esta alma, árida como a urze, sente, quando<br />

aí se abriga, refrescá-la um como orvalho do céu.<br />

Eurico o Presbítero (Lisboa, Bertrand, 1972), pp. 41-46<br />

45


A visão<br />

Presbitério. Antemanhã.<br />

Oito dos idos <strong>de</strong> Abril da era <strong>de</strong> 749.<br />

No espelho da visão está a<br />

segurança da verda<strong>de</strong>.<br />

Código Visigótico I. 1-2<br />

1<br />

O sono ou a vigília, que me importa esta ou aquele?<br />

As horas da minha vida são quase todas dolorosas;<br />

porque a imaginação do homem não po<strong>de</strong> dormir.<br />

Para o povo, ignorante e impiamente crédulo, a noite<br />

é cheia <strong>de</strong> terrores; em cada folha que range na selva ele<br />

ouve um gemido <strong>de</strong> alma que vagueia na terra; em cada<br />

sombra <strong>de</strong> árvore solitária que se balouça com a aragem<br />

sente o mover <strong>de</strong> um fantasma; as exalações dos brejos<br />

são para ele luz <strong>de</strong> <strong>de</strong>mónios, alumiando folgares <strong>de</strong><br />

feiticeiras.<br />

Mas, quando jaz no leito do repouso, o seu dormir é<br />

tranquilo. Ao cruzar os umbrais domésticos esses terrores<br />

sumiram-se com os objectos que os geraram. A sua alma<br />

parece <strong>de</strong>spir-se da fantasia grosseira, como o corpo se<br />

<strong>de</strong>spe da estringe áspera que lhe resguarda os membros.<br />

46


Não assim eu. Quando as pálpebras cerrando-se me<br />

escon<strong>de</strong>m o mundo das realida<strong>de</strong>s, os olhos do espírito<br />

volvem-se para o mundo das existências i<strong>de</strong>ais. Às vezes,<br />

a felicida<strong>de</strong> e a esperança vêm consolar-me então; muitas<br />

mais, porém, os sonhos maus me perseguem; e por bem<br />

alto preço me saem os instantes <strong>de</strong> ventura transitória<br />

trazidos por visões consoladoras.<br />

Esta foi para mim uma noite cruel. Ainda o suor frio<br />

que me corria da fronte se não secou; ainda o coração<br />

parece mal caber no peito, e o pulso bate <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e<br />

violento.<br />

Terribilíssimos foram os sonhos que Deus mandou<br />

ao presbítero; mas, porventura, mais terrível é a sua<br />

significação.<br />

Diz-me voz íntima que esse doloroso espetáculo a<br />

que assistiu a minha alma é, oh Espanha, o mistério dos<br />

teus <strong>de</strong>stinos.<br />

E esta foi a visão:<br />

2<br />

Eram as horas das trevas profundas. Sem saber<br />

como, achava-me no viso mais alto do Calpe: trapassavame<br />

a medula dos ossos o vento frio da noite, e pareciame<br />

que os membros hirtos se me haviam pregado no topo<br />

da penedia.<br />

Olhava fito ante mim, e os meus olhos rompiam a<br />

47


escuridão do horizonte, como se a luz do Sol o<br />

iluminasse.<br />

O espectáculo maravilhoso que se passava nesse<br />

espaço insondável fazia-me erriçar os cabelos que o norte<br />

me açoutava com o sopro gelado.<br />

Eis o que eu vi nessa hora <strong>de</strong> agonia, ali alguns não<br />

sei se instantes ou séculos.<br />

O mar cessou <strong>de</strong> agitar-se e rugir, semelhante ao<br />

metal fervente <strong>de</strong>stinado para a feitura <strong>de</strong> estátua colossal<br />

que resfriasse <strong>de</strong> súbito em vasta cal<strong>de</strong>ira.<br />

Era horribilíssimo ver convertido em cadáver, <strong>de</strong><br />

todo imóvel e mudo, o oceano; aquele oceano que há<br />

mais <strong>de</strong> quarenta séculos nem um só dia <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

revolver-se e bramir em torno dos continentes, como o<br />

tigre ao redor da rês que jaz morta.<br />

O sibilar das rajadas também cessou completamente.<br />

Parado sobre a face da terra, o ar era semelhante ao<br />

lençol do finado a quem recalcaram a gleba que o cobre,<br />

frio, húmido, pesado, sem ranger, sem movimento,<br />

cosido sobre o peito, on<strong>de</strong> acabou o bater do coração e o<br />

arfar compassado dos pulmões.<br />

Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima<br />

foi avultando pouco a pouco, <strong>de</strong>rramando-se pelo horizonte<br />

e repintando a abóbada imensa dos céus.<br />

Depois, esse dado sinistro reverberou na terra: as<br />

cimas agudas, <strong>de</strong>ntadas, tortuosas, alvacentas das fragas<br />

48


marinhas tinham-se abatido e livelado, como os cerros<br />

informes <strong>de</strong> neve amontoada, que, <strong>de</strong>rretidos nos primeiros<br />

dias <strong>de</strong> Estio, vão, <strong>de</strong>spenhando-se, formar um lago<br />

chão e morto na cal<strong>de</strong>ira mais funda <strong>de</strong> vale fechado.<br />

Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado,<br />

como a atmosfera que pesava em cima <strong>de</strong>le: e,<br />

além, jazia o cadáver do mar.<br />

Eu, o Silêncio e a Solidão éramos quem estava aí.<br />

3<br />

Subitamente, naquele vasto horizonte, até então puro<br />

na sua luz horrenda, dois castelos <strong>de</strong> nuvens cerradas e<br />

negras começaram a alevantar-se, um da banda da<br />

Europa, outro do lado <strong>de</strong> África.<br />

Os bulcões conglobados corriam um para o outro e<br />

multiplicavam-se, vomitando novos castelos <strong>de</strong> nuvens,<br />

que se difundiam, flutuando enoveladas com formas<br />

incertas.<br />

E aquelas montanhas vaporosas e negras rasgaram-se<br />

<strong>de</strong> alto a baixo em fendas semelhantes a algares<br />

profundos, e os seus fragmentos informes e cambiantes<br />

vacilavam trémulos em ascensão diagonal para as alturas<br />

do céu.<br />

Ao aproximarem-se, os dois exércitos <strong>de</strong> nuvens prolongaram-se<br />

em frente um do outro e toparam em cheio.<br />

Era uma verda<strong>de</strong>ira batalha.<br />

49


Como duas vagas encontradas, no meio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

procela, que, tombando uma sobre a outra, se quebram<br />

em cachões que espadanam lençóis <strong>de</strong> escuma para<br />

ambos os lados, antes que a menos violenta se incorpore<br />

na mais possante, assim aquelas nuvens tenebrosas se<br />

<strong>de</strong>spedaçavam, <strong>de</strong>rramando-se pela imensidão da<br />

abóbada afogueada.<br />

Então, pareceu-me ouvir muito ao longe um choro<br />

sentido misturado com gritos agudos, como os do que<br />

morre violentamente, e um tinir <strong>de</strong> ferro, como o <strong>de</strong><br />

milhares <strong>de</strong> espadas, batendo nas cimeiras <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

elmos.<br />

Mas este ruído foi-se alongando e cessou: os bulcões<br />

alevantados da banda <strong>de</strong> África tinham embebido em si<br />

os que subiam da Europa, e <strong>de</strong>sciam rapidamente para o<br />

lado dos campos góticos.<br />

Depois, senti lá em baixo, na raiz da montanha, um<br />

rir diabólico. Olhei: o Calpe esboroava-se ao redor <strong>de</strong><br />

mim, e os rochedos sobre que eu estava assentado vacilavam<br />

nos seus fundamentos.<br />

Despertei. Tinha os cabelos hirtos, e o suor frio<br />

manava-me da fronte aquecida por febre ar<strong>de</strong>nte.<br />

Senhor, Senhor! foste tu que <strong>de</strong>ste a ler à minha<br />

alma a última página do livro eterno em que a Providência<br />

escreveu a história do Império Godo?<br />

Eurico o Presbítero (Lisboa, Bertrand, 1972), pp. 55-60<br />

50


BIBLIOGRAFIA<br />

Obras <strong>de</strong> Alexandre Herculano<br />

Poesia:<br />

Harpa do Crente (1836)<br />

Poesias (Lisboa, 1850)<br />

Poesias, em 2 vols (Lisboa, Bertrand, 1977-1978), edição <strong>de</strong><br />

Obras Completas por Vitorino Nemésio, com introdução.<br />

Romance, novella e conto:<br />

Eurico o Presbítero (1844). Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong><br />

Vitorino Nemésio (Lisboa, Bertrand, 1972).<br />

O Monge <strong>de</strong> Cister (1848). Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong><br />

Vitorino Nemésio (Lisboa, Bertrand, 1977).<br />

Lendas e Narrativas (1851). Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong><br />

Vitorino Nemésio (Lisboa, Bertrand, 1974).<br />

O Bobo (1878). Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong> Vitorino<br />

Nemésio (Lisboa, Bertrand, 1972).<br />

Cenas <strong>de</strong> um ano da minha vida e Apontamentos <strong>de</strong> viagem.<br />

Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong> Vitorino Nemésio (Lisboa,<br />

Bertrand, 1973).<br />

O Pároco da Al<strong>de</strong>ia. O Galego. Edição <strong>de</strong> Obras Completas <strong>de</strong><br />

Vitorino Nemésio (Lisboa, Bertrand, 1969).<br />

História e ensaio:<br />

História <strong>de</strong> Portugal (1 vol. em 1846). Edição <strong>de</strong> Obras<br />

Completas. Prefácio e notas <strong>de</strong> José Mattoso (Lisboa,<br />

Bertrand, 1980-1981).<br />

História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em<br />

Portugal (1º vol. 1854). Edição Obras Completas, Introdução<br />

<strong>de</strong> Borges <strong>de</strong> Macedo (Lisboa, Bertrand, 1975-1976).<br />

Portugaliae Monumenta Histórica (). Recolha <strong>de</strong> documentos<br />

portugueses medievais (sécs. XII e XIII).<br />

Opúsculos. Edição organizada e comentada por Jorge Custódio e<br />

José Manuel Garcia. 6 vols. (Lisboa, Presença, 1982-1987).<br />

Epistolografia:<br />

Cartas <strong>de</strong> Vale <strong>de</strong> Lobos. 3 vols. (Lisboa, Bertrand, 1980-1981).<br />

51


Estudos sobre Alexandre Herculano<br />

António José Saraiva, Herculano Desconhecido (Porto, 1953).<br />

António José Saraiva, Herculano e o Liberalismo em Portugal<br />

(Lisboa, Bertrand, 1977).<br />

Cândido Beirante, A I<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> Herculano (Santarém, 1977).<br />

J. Borges <strong>de</strong> Macedo, Alexandre Herculano. Polémica e<br />

Mensagem (Lisboa, Bertrand, 1980).<br />

José Ribeiro Ferreira, «Os símiles no Eurico o presbítero <strong>de</strong><br />

Herculano», Humanitas 47, Tomo 2 (1995) 909-933.<br />

Maria da Graça V. Lopes, A Poesia <strong>de</strong> Alexandre Herculano<br />

(Lisboa, Comunicação, 1981).<br />

Vasco Graça Moura, «Herculano poeta», in Herculano e a sua<br />

Obra (Porto, Fund. Eng. António <strong>de</strong> Almeida, s.d.).<br />

Vitorino Nemésio, A Mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Herculano até à sua Volta do<br />

Exílio (1810-1832) (Lisboa, INCM, 2003).<br />

Alexandre Herculano. Exposição bibliográfica comemorativa do<br />

I Centenário da sua Morte – 1877-1977 (Porto 1977).<br />

Edição <strong>de</strong> Opúsculos II (1873)<br />

52


ANTERO DE QUENTAL


Antero <strong>de</strong> Quental<br />

Retrato <strong>de</strong> Columbano


Introdução<br />

Antero <strong>de</strong> Quental nasce em Ponta Delgada (ilha<br />

<strong>de</strong> S. Miguel, Açores) em 18 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1842 e também<br />

em Ponta Delgada morre no dia 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1891.<br />

pelas 19h00, suicidando-se com dois tiros <strong>de</strong> revólver.<br />

Em 5 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1890 Antero partira para Ponta<br />

Delgada e aí, <strong>de</strong>vido a circunstâncias várias, agrava-se a<br />

sua saú<strong>de</strong> nervosa, que o apoquentava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1874. Uma<br />

carta enviada a Oliveira Martins, com data <strong>de</strong> 29 <strong>de</strong><br />

agosto <strong>de</strong> 1891, dá a i<strong>de</strong>ia do drama em que se <strong>de</strong>batia<br />

nesses seus últimos tempos: «Peço à minha razão que<br />

comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem,<br />

mas <strong>de</strong> que eles não parecem susaceptíveis». A situação<br />

culmina pelas 19h00 <strong>de</strong>sse dia 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1891:<br />

suicídio com dois tiros <strong>de</strong> revólver, no Campo <strong>de</strong> S.<br />

Francisco, junto ao muro da cerca do Convento da<br />

Esperança, sentado num banco que paradoxalmente tinha<br />

por cima, na pare<strong>de</strong>, uma âncora e inscrita a palavra<br />

‘esperança’.<br />

Assim termina uma vida apaixonada, intensamente<br />

vivida e com ardor <strong>de</strong>dicada a causas e i<strong>de</strong>ais.<br />

Feitos os primeiros estudos (S. Miguel, Lisboa,<br />

55


<strong>Coimbra</strong>), em 1858, com <strong>de</strong>zasseis anos, matricula-se em<br />

Direito em <strong>Coimbra</strong> – a que chama «encantada e quase<br />

fantástica <strong>Coimbra</strong>» – e obtém o título <strong>de</strong> bacharel em<br />

1864.<br />

Tornou-se guia dos estudantes e da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Cimbra, praticamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se matriculou. É<br />

elucidativo o testemunho <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós em texto que<br />

significativamente intitula “Un génio que era um<br />

santo”, publicado em Antero <strong>de</strong> Quental. In Memoriam 8 :<br />

refere que Antero «era em <strong>Coimbra</strong> e nos domínios da<br />

Inteligência o Príncipe da Mocida<strong>de</strong>»; que «resumiu,<br />

com <strong>de</strong>susado brilho, o tipo do académico revolucionário<br />

e racionalista»; que, além <strong>de</strong> Chefe, era um Messias, até<br />

pela sua bonda<strong>de</strong> e sorriso, pela sua «grenha cor <strong>de</strong> oiro<br />

que flamejava por cima das multidões»; e que, <strong>de</strong> certo<br />

modo, havia já «hábitos messiánicos nesse bando <strong>de</strong><br />

discípulos que o acompanhavam através <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>, <strong>de</strong><br />

capa solta, enlevados na sua palavra» – «luminosa<br />

palavra» que «era uma das suas magníficas forças <strong>de</strong><br />

atracção» – e que ninguém «jamais possuiu um verbo <strong>de</strong><br />

tanta soli<strong>de</strong>z, harmonia, finura e brilho».<br />

E Eça conta <strong>de</strong> modo eloquente como se tornou um<br />

8‐
Edição fac-similada (Lisboa, INCM, 1993), pp. 481-522 (citações,<br />

pp. 481-483) = Obras <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queiroz (Porto, Lello), vol. 2, pp.<br />

1540-1565 (citações, pp. 1541-1542).
<br />

56


<strong>de</strong>sses discípulos: uma noite atravessava o Largo da Feira<br />

e avistou nas escadarias da Sé Nova Antero, que ainda<br />

<strong>de</strong>sconhecia, a usar da palavra: a lua aureolava-lhe a<br />

face, a cabeleira loura e a barba ruiva; a capa negra, presa<br />

apenas por uma ponta, rojava nas lajes brancas, qual<br />

manto <strong>de</strong> imagem; o braço levantado parecia revolver as<br />

alturas. «E, sentados nos <strong>de</strong>gaus da igreja, outros homens<br />

embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras,<br />

escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.» E<br />

Eça conclui que também ele, <strong>de</strong>slumbrado, se sentou:<br />

«<strong>de</strong>stracei a capa, também me sentei num <strong>de</strong>grau, quase<br />

aos pés <strong>de</strong> Antero que improvisava, a escutar, num<br />

enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me<br />

conservei na vida».<br />

Temperamento irrequieto, homem irreverente e<br />

<strong>de</strong>nodado <strong>de</strong>fensor da liberda<strong>de</strong> e da igualda<strong>de</strong>, ao ser<br />

escolhido pelos estudantes, em 1862, para saudação da<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> ao Príncipe Humberto <strong>de</strong> Itália, <strong>de</strong><br />

visita à cida<strong>de</strong>, não presta homenagem «ao representante<br />

da Casa <strong>de</strong> Sabóia», mas ao filho <strong>de</strong> Victor Manuel,<br />

«primeiro soldado da in<strong>de</strong>pendência italiana» e amigo do<br />

revolucionário Garibaldi 9 .<br />

9 - Antero <strong>de</strong> Quental, Prosas Sócio-políticas, publicadas e<br />

apresentadas por Joel Serrão (Lisboa, INCM, 1982), p. 169 (a<br />

partir <strong>de</strong> agora: Prosas).<br />

57


Significativa também é a criação e a actuação da<br />

‘Socieda<strong>de</strong> do Raio’ e a ‘Rolinada’, <strong>de</strong> que Antero é peça<br />

fundamental. A primeira era socieda<strong>de</strong> secreta fundada<br />

em 1862 com o objectivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar o Reitor Basílio<br />

Alberto <strong>de</strong> Sousa Pinto, odiado pelos alunos <strong>de</strong>vido às<br />

suas medidas anacrónicas e severas: no dia da festa<br />

solene <strong>de</strong> distribuição dos prémios na Sala dos Capelos<br />

(8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro), ao levantar-se o Reitor para discursar,<br />

os estudantes abandonam a sala, em manifestação ruidosa<br />

<strong>de</strong> ‘viva a liberda<strong>de</strong>’ e ‘abaixo o inquisidor’. Antero<br />

redige o famoso Manifesto dos Estudantes da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> à opinião ilustrada do país,<br />

assinado por 314 estudantes, em que se pe<strong>de</strong> a reforma<br />

do ensino, e a acção acaba, <strong>de</strong> facto, com a <strong>de</strong>missão do<br />

Reitor.<br />

A ‘Rolinada’ (1864) – <strong>de</strong>signação <strong>de</strong>rivada do<br />

nome do ministro contestado, Rolim <strong>de</strong> Moura –<br />

constituiu um protesto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da Aca<strong>de</strong>mia que<br />

se traduz, por proposta <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental, no êxodo<br />

para o Porto, «berço da liberda<strong>de</strong> portuguesa».<br />

Bacharel em 1864 e sem gran<strong>de</strong> interesse pelo<br />

estudo do Direito, abandona <strong>Coimbra</strong> sem um projecto<br />

<strong>de</strong> vida <strong>de</strong>finido e a saltitar <strong>de</strong> entusiasmo em<br />

entusiasmo.<br />

Em 1869 conhece Oliveira Martins, uma relação<br />

58


enéfica aos dois, e passa a residir em Lisboa, em casa <strong>de</strong><br />

Batalha Reis – local também frequentado por Ramalho<br />

Ortigão, Eça <strong>de</strong> Queirós, Oliveira Martins, João <strong>de</strong> Deus,<br />

Manuel <strong>de</strong> Arriaga, Salomão Sáragga, José Fontana e que<br />

ficou conhecido como ‘O Cenáculo’.<br />

Antero vive então (entre 1870 e 1877) período <strong>de</strong><br />

intenso labor literário e político: por um lado, publica<br />

Primaveras Românticas (1872) e faz sair em jornais<br />

alguns sonetos, excertos da tradução do Fausto <strong>de</strong><br />

Goethe e vários artigos <strong>de</strong> crítica literária – em que inicia<br />

a análise objectiva e fundamentada, ao contrario do<br />

elogio mútuo habitual – entre os quais uma apreciação à<br />

Teoria da Literatura Portuguesa <strong>de</strong> Teófilo Braga, que<br />

vai motivar o corte <strong>de</strong> relações entre os dois 10 .<br />

Por outro lado, e concomitantemente, <strong>de</strong>senvolve<br />

consi<strong>de</strong>rável activida<strong>de</strong> política e social no movimento<br />

10 - Trata-se do estudo «Consi<strong>de</strong>rações sobre a Filosofia da História<br />

Literária portuguesa» (1872), em que reconhece o mérito da obra,<br />

mas critica algumas conclusões apressadas e ilações falsas e<br />

manifesta discordância por uma ou outra teoria. A acusação <strong>de</strong><br />

Teófilo, <strong>de</strong> que o movera sinistros <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> o prejudicar no<br />

concurso para catedrático na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, motiva uma<br />

resposta contun<strong>de</strong>nte, e até cruel, <strong>de</strong> Antero («Duas palavras a<br />

propósito do Folheto do sr. Teófilo Braga, mas não em resposta ao<br />

sr. Teófilo Braga e ao seu Folheto»), em que afirma continuar a<br />

acreditar literariamente em Teófilo Braga, mas consi<strong>de</strong>rá-lo como<br />

homem um vilãozinho mesquinho e verda<strong>de</strong>iro «cano <strong>de</strong> esgoto»,<br />

por não ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reacção racional a uma «oposição leal e<br />

serena <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias».<br />

59


socialista: colabora na fundação <strong>de</strong> associações operárias,<br />

publica vários folhetos <strong>de</strong> propaganda, introduz em<br />

Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores.<br />

São <strong>de</strong>ssa época as Conferências do Casino (inauguradas<br />

em 22 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1871), o folheto O que é a<br />

Internacional (1872), a fundação do jornal República, a<br />

criação do Partido dos Operários Socialistas.<br />

O próprio Antero, sobre esses seus anos <strong>de</strong><br />

militância, reconhece <strong>de</strong> forma crítica que consumiu<br />

«muita activida<strong>de</strong> e algum talento, merecedor <strong>de</strong> melhor<br />

emprego», em artigos, folhetos, conferências<br />

revolucionárias, e que tudo queria reformar – e «nem<br />

sequer estava a meio caminho da formação <strong>de</strong> mim<br />

mesmo» (Cartas III, p. 93) 11 .<br />

As Conferências do Casino motivaram enorme<br />

contestação nos jornais católicos, conservadores e<br />

legitimistas e abriram violenta campanha contra os<br />

conferencistas. Estão especialmente em causa a segunda<br />

da autoria <strong>de</strong> Antero e intitulada “Causas da <strong>de</strong>cadência<br />

dos povos peninsulares nos últimos três séculos” (27 <strong>de</strong><br />

maio <strong>de</strong> 1871); a que Adolfo Coelho proferiu sobre “O<br />

ensino” (19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1871), em que critica as<br />

11 - Trata-se da Carta autobiográfica a W. Storck. Cito as Cartas pela<br />

edição em três volumes, com leitura, org., prefácio e notas <strong>de</strong> Ana<br />

Mª A. Martins (Lisboa, INCM, 2009).<br />

60


ingerências da religião na socieda<strong>de</strong> e preconiza a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência e a separação <strong>de</strong> Igreja e do<br />

Estado; e a <strong>de</strong> Salomão Sáragga sobre “Os historiadores<br />

críticos <strong>de</strong> Jesus” que não chegou a ser pronunciada, por<br />

entretanto terem sido proibidas as Conerências e o<br />

Casino encerrado.<br />

Os organizadores reagiram e publicaram<br />

numerosos folhetos. Vale a pena regferir duas<br />

intervenções <strong>de</strong> Antero: a “Resposta aos Jornais<br />

católicos” (Jornal do Comércio <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> Junho) –<br />

classificada por Camilo como «uma das coisas mais belas<br />

e mais eloquentes que ainda lera em língua portuguesa» –<br />

e a “Carta ao Exmo Sr. Anónio José d’Ávila, Marquês <strong>de</strong><br />

Ávila e Bolama, Presi<strong>de</strong>nte do Conselho <strong>de</strong> Ministros”.<br />

Da primeira cito um passo das palavras <strong>de</strong> Antero<br />

que merece ser meditado pelo que representa <strong>de</strong><br />

dignida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> respeito pela opinião alheia – uma atitu<strong>de</strong><br />

que <strong>de</strong>víamos ter sempre por paradigma: confessa<br />

respeito por todas as opiniões, em especial a dos<br />

vencidos, e refere que essas opiniões, «se vivem muito<br />

pelas i<strong>de</strong>ias, vivem tanto ou mais ainda pelo amor e pelo<br />

carácter dos que as representam». Daí que consi<strong>de</strong>re o<br />

partido católico e que, embora o combata, lhe respeita «a<br />

lealda<strong>de</strong> da crença». Declara por isso que esperaria<br />

reciprocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentos e que não po<strong>de</strong> «senão<br />

61


estranhar e sobretudo lastimar o procedimento dos<br />

jornais católicos, que para impugnar as conclusões da<br />

minha conferência» recorreram a insinuações pérfidas<br />

sobre intenções e convicção, adulterando palavras e<br />

atribuindo opiniões a que não se alu<strong>de</strong>. E Antero conclui:<br />

«Isto tem um nome muito feio, e que eu não quero dar a<br />

pessoas que, apesar <strong>de</strong> tudo, me obstino em respeitar.»<br />

(Prosas, p. 311).<br />

Da “Carta”, refere a contradição entre o apregoar<br />

liberda<strong>de</strong> e abertura e a prática: afirma-se ser Portugal «o<br />

país mais liberal da Europa» e invejar esta «a nossa<br />

sorte», mas quando alguém se <strong>de</strong>cidiu a pensar, logo o<br />

Presi<strong>de</strong>nte do Governo pôs «o seu chapéu ensebado em<br />

cima da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento». E conclui que, se<br />

algo do episódio perdurar, satisfá-lo a certeza <strong>de</strong> que «em<br />

1871 houve em Portugal um ministro que fez uma acção<br />

má e tola, e um homem que teve franqueza caridosa <strong>de</strong><br />

lho dizer» (Prosas, p. 305 e 310).<br />

A doença nervosa, que se manifesta em 1874,<br />

coloca-o <strong>de</strong> novo, <strong>de</strong> forma imperiosa, «em face do<br />

gran<strong>de</strong> problema da existência – drama que aparece<br />

traduzido em vários poemas que são típicos do<br />

pessimismo português, como “Elogio da Morte” (seis<br />

sonetos), “Os cativos”, “Os vencidos”, “Hino da manhã”.<br />

Este último é caracterizado por Eça <strong>de</strong> Queirós como<br />

62


«um dos mais angustiosos lamentos que tem escapado a<br />

um forte e altivo coração <strong>de</strong> homem».<br />

Adopta, como prometera, as duas filhas do seu<br />

gran<strong>de</strong> amigo <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> Germano Meireles, que<br />

falecera em 1877, e em 1881 abandona Lisboa – cida<strong>de</strong><br />

que, segundo as suas palavras, «patusca, chatina, intriga,<br />

goza, explora, compra e é comprada, ven<strong>de</strong> e é vendida»<br />

– e, com elas, vai fixar-se em Vila do Con<strong>de</strong> e aí, em<br />

casa simples e mo<strong>de</strong>sta, vive a sua época literariamente<br />

mais produtiva: escreve os últimos sonetos que, além <strong>de</strong><br />

ultrapassarem a sua fase pessimista, são os melhores, em<br />

sua opinião, e melhor traduzem o seu pensamento e as<br />

suas concepções da vida e do mundo.<br />

Vida espiritualmente dramática, Antero, embora<br />

aberto aos problemas filosóficos e sociais da Europa <strong>de</strong><br />

seu tempo, nunca conseguiu adaptar o seu pensamento e<br />

orientação prática aos particularismos da realida<strong>de</strong><br />

histórica portuguesa, e sentiu sempre certo <strong>de</strong>sfasamento.<br />

Daí que abdique, a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada altura, <strong>de</strong> um<br />

empenhamento imediato e directo e se afaste.<br />

De Vila do Con<strong>de</strong> o retira a criação da Liga<br />

Patriótica do Norte (1890), na sequência do Ultimatum<br />

inglês, quando o convencem <strong>de</strong> que só ele a po<strong>de</strong>ria<br />

dirigir. E é apoteótica a recepção que é feita a Antero no<br />

momento da sua chegada à estação <strong>de</strong> S. Bento, no Porto<br />

63


(6 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1890), bem indicativa do conceito em<br />

que o tinham e da admiração que lhe <strong>de</strong>dicavam.<br />

Refere então que «o nosso maior inimigo não é o<br />

inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo,<br />

falso e criminosamente vaidoso, po<strong>de</strong> afirmar o<br />

contrário» (Prosas, p. 447). Infelizmente as intrigas e os<br />

jogos <strong>de</strong> interesses políticos logo começaram. E Antero,<br />

que não queria <strong>de</strong>svirtuar o pensamento inicial da Liga<br />

nem vê-la instrumento <strong>de</strong> ambições pessoais, apresenta a<br />

sua <strong>de</strong>missão (finais <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1890) e regressa a Vila<br />

do Con<strong>de</strong>, com a <strong>de</strong>cepção na alma e certa irritação –<br />

«quase cólera», como confessa a Oliveira Martins<br />

(Cartas III, p. 323).<br />

Só mais uma nota, antes <strong>de</strong> passarmos a breve<br />

alusão à sua produção literária. Refere Antero que a<br />

gran<strong>de</strong> Revolução «só po<strong>de</strong> ser uma revolução moral e<br />

essa não se faz <strong>de</strong> um dia para o outro». E afirma<br />

também, na Carta a W. Storck, que o mundo moral só<br />

subsiste pela renúncia ao egoismo.<br />

Se a influência <strong>de</strong> Antero foi consi<strong>de</strong>rável no<br />

<strong>de</strong>bate <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e no domínio político e social, não foi<br />

menos relevante a sua marca no campo da literatura.<br />

Deixando <strong>de</strong> lado várias intervenções <strong>de</strong> teoria e<br />

crítica literárias, apenas avanço algumas anotações sobre<br />

64


a sua criação poética.<br />

A vocação poética <strong>de</strong> Antero parece ter sido<br />

<strong>de</strong>spertada pela leitura do poema “Deus” <strong>de</strong> Herculano<br />

(Poesias I, pp. 93-99) que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os <strong>de</strong>z anos o<br />

impressionava. Aliás o retirado <strong>de</strong> Vale <strong>de</strong> Lobos – a<br />

quem Antero <strong>de</strong>dica significativo estudo, por ocasião da<br />

sua morte 12 – é um dos seus gran<strong>de</strong>s mentores e, nas<br />

Cartas, são a bem dizer sinónimas expressões como ‘o<br />

Herculano’, ‘o Velho’, ‘o Mestre’.<br />

Antero confessa, em carta a Carolina Michaëlis,<br />

que nunca preten<strong>de</strong>ra ser poeta nem para tal se preparara,<br />

mas «tenho sempre encontrado a poesia a meu lado e<br />

esponteneamente quase involuntariamente têm revestido<br />

a forma poética o meu pensar e sentir, coisas que em<br />

mim andam sempre muito irmãs» (Cartas II, p. 479)<br />

Po<strong>de</strong>mos dividir a produção poética <strong>de</strong> Antero em<br />

três fases: o Antero romântico ou a fase que se po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signar como ‘jevenília’; o Antero revolucionário ou<br />

‘realista’ que correspon<strong>de</strong> à época da composição das<br />

O<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>rnas, quer na edição <strong>de</strong> 1865, quer na edição<br />

refundida <strong>de</strong> 1875; e o Antero da maturida<strong>de</strong> que<br />

privilegia o soneto como forma poética (a fase dos<br />

Sonetos).<br />

Se na fase romântica – os livros Primaveras<br />

12 - «»<br />

65


Românticas (1875) e Raios <strong>de</strong> Extinta Luz (publicado<br />

postumamente em 1892 e a 3ª edição aumentada <strong>de</strong><br />

1948) que agrupam os poemas compostos até 1864 e em<br />

que adquirem certa importância os temas amorosos – nas<br />

outras fases secundários ou diluídos – e em que a mulher<br />

surge em modulações diversas. Sobre o poesia <strong>de</strong> Antero<br />

<strong>de</strong>sta fase escrevem António José Saraiva e Óscar Lopes<br />

que nos <strong>de</strong>ixa «a impressão <strong>de</strong> uma encruzilhada <strong>de</strong><br />

muitos caminhos, todos aparentemente praticáveis pelos<br />

seus dons, e entre os quais se veio a fazer uma opção» 13 .<br />

Nunca é <strong>de</strong>mais sublinhar a importância da<br />

publicação das O<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>rnas (1865) na história da<br />

literatura portuguesa, pelo espanto que provoca e pelas<br />

intervenções que motiva, quer a favor, quer contra. É, por<br />

exemplo, apreciação negativa <strong>de</strong> Feliciano <strong>de</strong> Castilho<br />

que origina o opúsculo <strong>de</strong> resposta <strong>de</strong> Antero Bom Senso<br />

e Bom Gosto e a bem conhecida Questão Coimbrã que<br />

resulta em dicussão acalorada e produz quase meia<br />

centena <strong>de</strong> intervenções. Entre elas, um outro opúsculo<br />

<strong>de</strong> Antero, A Dignida<strong>de</strong> das Letras e as Literaturas<br />

Oficiais, saído poucos meses <strong>de</strong>pois, primeiro manifesto<br />

<strong>de</strong> uma da literatura realista portuguesa: nele prucura<br />

elaborar uma teoria da nova escola, reflecte sobre os<br />

<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> um povo e fundamenta, <strong>de</strong> forma séria, a<br />

13 - Hist. Lit. Port. ( 17 1996), p. 829.<br />

66


missão moral e social do escritor.<br />

As O<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>rnas traçam os passos <strong>de</strong> uma<br />

epopeia da humanida<strong>de</strong>, sob o influxo das ciências<br />

genéticas, e estão eivadas <strong>de</strong> panteísmo <strong>de</strong> instpiração<br />

vária.<br />

Nos Sonetos – que Antero consi<strong>de</strong>rava «a forma<br />

lírica por excelência» – se encontra a sua melhor obra<br />

poética. Des<strong>de</strong> cedo começou a publicar sonetos: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

edição Stenio dos 21 primeiros sonetos (Porto, 1861) até<br />

à publicação <strong>de</strong> Sonetos Completos (1886), edição<br />

organizada pelo autor e prefaciada por Oliveira Martins.<br />

A respeito <strong>de</strong>sta última edição, consi<strong>de</strong>ra Antero que são<br />

«o testemunho do pobre poeta que acabou» e refere que,<br />

se <strong>de</strong>le «ficar alguma coisa nas letras portuguesas, será<br />

este livrinho». Confessa, por outro lado, que a<br />

predilecção pela forma poética do soneto – embora no<br />

prefácio da edição <strong>de</strong> 1861 o filie na tradição petrarquista<br />

e camoniana – não foi propositada, mas talvez sugerida<br />

ou influenciada pelos <strong>de</strong> poetas que admirava e lia:<br />

Camões, Miguel Ângelo, Shakespeare, Byron, Heine,<br />

Nerval (Cartas II, p. 478, 479 e 480). Sem esquecer João<br />

<strong>de</strong> Deus, já que refere ter-lhe ele revelado «o soneto<br />

como ele é e como <strong>de</strong>ve ser» 14 .<br />

14 - Para análise mais pormenorizada das três fases da produção<br />

poética <strong>de</strong> Antero vi<strong>de</strong> A. José Saraiva e Óscar Lopes, Hist. Lit.<br />

67


Antero <strong>de</strong> Quental sente gran<strong>de</strong> satisfação, ao ver<br />

os seus Sonetos vertidos para alemão por Wilhelm Storck<br />

(1887). A carta que lhe dirige é bem elucidativa, ao<br />

afirmar que se trata da «mais alta consagração que o<br />

livrinho podia ter» e que a apreciação dos seus versos «a<br />

ponto <strong>de</strong> os julgar dignos <strong>de</strong> serem transcritos, com a<br />

mesma pena que transcrevera os <strong>de</strong> Camões, confesso<br />

que me obriga a invocar toda a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que sou<br />

capaz para me não tornar em extremo orgulhoso».<br />

O que acima fica exposto são algumas notas sobre<br />

um homem que viveu intensamente e que, conforme os<br />

gostos e os humores, aparece classificado <strong>de</strong> modo vário:<br />

irreverente, <strong>de</strong>srespeitador, ingrato, iconoclasta,<br />

excêntrico, louco, neurótico, homem <strong>de</strong> acção, poeta,<br />

filósofo, místico, santo.<br />

Port. ( 17 1996), pp. 827-834; e Nuno Júdice, «Introdução» a Antero<br />

<strong>de</strong> Quental, Sonetos. Org., introd. e notas <strong>de</strong> (Lisboa, INCM,<br />

1994).<br />

68


Antologia


Antero <strong>de</strong> Quental<br />

(1887)


Depois que, dia a dia...<br />

Depois que, dia a dia, aos poucos <strong>de</strong>smaiando,<br />

Se foi a nuvem d'ouro i<strong>de</strong>al que eu vira erguida:<br />

Depois que vi <strong>de</strong>scer, baixar no céu da vida<br />

Cada estrela e fiquei nas trevas laborando:<br />

Depois que sobre o peito os braços apertando<br />

Achei o vácuo só, e tive a luz sumida<br />

Sem ver já on<strong>de</strong> olhar, e em todo vi perdida<br />

A flor do meu jardim, que eu mais an<strong>de</strong>i regando:<br />

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos:<br />

Virei-me a outro céu, nem ergo já meus olhos<br />

Senão a estrela i<strong>de</strong>al, que a luz d'amor contém.<br />

Não temas pois — Oh vem! o céu é puro; e calma<br />

E silenciosa a terra; e doce o mar; e a alma ...<br />

A alma! não a vês tu? Mulher, mulher! oh vem!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 61-62<br />

71


Oh! vem! se às mágoas...<br />

Oh! vem! se às mágoas ando há muito afeito,<br />

Juntos po<strong>de</strong>mos contra a dor lutar:<br />

Não po<strong>de</strong>m mágoas contra um peito amigo.<br />

Oh! vem, que eu sofro! vem sofrer comigo.<br />

E então meu peito,<br />

Há-<strong>de</strong> acalmar!<br />

Se sofres, sofro: quem não pisa abrolhos?<br />

Quem rosas colhe sem lhe a mão sangrar?<br />

Mas, quando a angústia me negar conforto<br />

Dum pranto, ao menos, a meu peito absorto<br />

Volve teus olhos ...<br />

Hei-<strong>de</strong> chorar!. ..<br />

Oh! vem! que eu sofro! vem trazer-me a calma,<br />

Que anelo e busco no teu puro olhar!<br />

Se a minha estrela se apagar sumida,<br />

Oh, surge, surge, no meu céu da vida ...<br />

E então minha alma ...<br />

Há-<strong>de</strong> exultar! ...<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 62-63<br />

72


Pimaveras Românticas III<br />

Vida! mas vida plácida,<br />

E doce, e maviosa...<br />

Bem como, à noite, os cânticos<br />

Do rouxinol à rosa.<br />

Vida! que os astros fulgidos<br />

Às terras invejaram,<br />

Se nós a divulgáramos...<br />

Se os astros a sonharam...<br />

Vida! que as noites trémulas<br />

Tem medo <strong>de</strong> acordar,<br />

Tanto duvidam, vendo-nos,<br />

Se é vida ou se é sonhar.<br />

Vida! brando crepúsculo<br />

E esplêndido clarão...<br />

Dois extremos unindo-se<br />

Num mesmo coração.<br />

73


Vida! <strong>de</strong> sóis falando-se<br />

Através do esplendor...<br />

De flores namorando-se...<br />

Vida ... vida d'amor!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 107-108<br />

Solar do Bom Sucesso da Família Quental<br />

Ponta Delgada.<br />

74


II<br />

Guitarra, minha guitarra,<br />

Quem as cordas te estalou?<br />

Acabe-se esta cantiga<br />

Aon<strong>de</strong> o amor se acabou!<br />

IV<br />

Guitarra, minha guitarra,<br />

Quem te havia <strong>de</strong> estalar?!<br />

Bem se acaba uma cantiga...<br />

O amor não quer acabar!<br />

VI<br />

Guitarra, minha guitarra,<br />

Já que a corda te estalou,<br />

Po<strong>de</strong> acabar a cantiga<br />

Aon<strong>de</strong> o amor acabou!<br />

À guitarra<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 129, 131 e 133<br />

75


Versos<br />

Escritos num exemplar das Flores do Mal<br />

As flores que nossa alma <strong>de</strong>scuidada<br />

Colhe na mocida<strong>de</strong> com mão casta,<br />

São belas, sim: basta aspirá-las, basta<br />

Uma vez, fica a gente enfeitiçada.<br />

Nascem num prado ou riba sossegada,<br />

Sob um céu puro e luz serena e vasta;<br />

Têm fragrância subtil, mas nunca exausta,<br />

Falam d' Amor e Bem à alma enlevada ...<br />

Mas as flores nascidas sobre o asfalto<br />

Dessas ruas, no pó e entre o bulício,<br />

Sem ar, sem luz, sem um sorrir do alto,<br />

Que têm elas, que assim nos endoi<strong>de</strong>cem?<br />

Têm o que mais as almas apetecem...<br />

Têm o aroma irritante e acre do Vício!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 175-176<br />

76


Ignoto Deo<br />

Que beleza mortal se te assemelha,<br />

Ó sonhada visão <strong>de</strong>sta alma ar<strong>de</strong>nte,<br />

Que reflectes em mim teu brilho ingente,<br />

Lá como sobre o mar o sol se espelha?<br />

O mundo é gran<strong>de</strong> — e esta ânsia me aconselha<br />

A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,<br />

Pelo mundo procuro um Deus clemente,<br />

Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...<br />

Não é mortal o que eu em ti adoro.<br />

Que és tu aqui? olhar <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>,<br />

Gota <strong>de</strong> mel em taça <strong>de</strong> venenos...<br />

Pura essência das lágrimas que choro<br />

E sonho dos meus sonhos! se és verda<strong>de</strong>,<br />

Descobre-te, visão, no céu ao menos!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 217<br />

77


A um crucifixo<br />

Há mil anos, born Cristo, ergueste os magros braços<br />

E clamaste da cruz: «Há Deus!» e olhaste, ó crente,<br />

O horizonte futuro e viste, em tua mente,<br />

Um alvor i<strong>de</strong>al banhar esses espaços!<br />

Porque morreu sem eco o eco <strong>de</strong> teus passos,<br />

E <strong>de</strong> tua palavra (ó Verbo) o som fremente?<br />

Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que <strong>de</strong>scrente<br />

Arrojaras <strong>de</strong> novo à campa os membros lassos...<br />

Agora, como então, na mesma terra erma,<br />

A mesma humanida<strong>de</strong> é sempre a mesma enferma,<br />

Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...<br />

E agora, como então, viras o mundo exangue<br />

E ouviras perguntar: «De que serviu o sangue<br />

Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?»<br />

Poesia Completa (Lisboa, Dom Quixote, 2001), pp. 229-230<br />

78


Pequenina<br />

Eu bem sei que te chamam pequenina,<br />

E ténue, como o véu solto na dança,<br />

Que és, no juízo, apenas a criança,<br />

Pouco mais, nos vestidos, que a menina...<br />

Que és o regato <strong>de</strong> água mansa e fina;<br />

A folhinha do til que se balança;<br />

O peito que, em correndo, logo cansa,<br />

E a fronte que ao sofrer logo se inclina...<br />

Mas, filha, lá nos montes on<strong>de</strong> an<strong>de</strong>i,<br />

Tanto me enchi <strong>de</strong> angústia e <strong>de</strong> receio<br />

Ouvindo do infinito os longos ecos,<br />

Que não quero imperar nem já ser rei,<br />

Senão tendo meus reinos em teu seio<br />

E súbditos, criança, em teus bonecos!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 236-237<br />

79


A Sulamita<br />

Quem anda lá por fora, pela vinha,<br />

Na sombra do luar meio encoberto,<br />

Subtil nos passos e espreitando incerto,<br />

Com brando respirar <strong>de</strong> criancinha?<br />

80<br />

Ego dormio, et cor meum vigilat.<br />

Um sonho me acordou... não sei que tinha...<br />

Pareceu-me senti-lo aqui tão perto...<br />

Seja alta noite, seja num <strong>de</strong>serto,<br />

Quem ama até em sonhos adivinha...<br />

Moças da minha terra, ao meu amado<br />

Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,<br />

Mas que po<strong>de</strong> ir contente e <strong>de</strong>scansado,<br />

Pois se tão cedo adormeci, conforme<br />

É meu costume, olhai, dormia embora,<br />

Porque o meu coração é que não dorme...<br />

Cântico dos Cânticos<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 237-238


Sonho oriental<br />

Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,<br />

Muito longe, nos mares do Oriente,<br />

On<strong>de</strong> a noite é balsâmica e fulgente<br />

E a lua cheia sobre as águas brilha...<br />

O aroma da magnólia e da baunilha<br />

Paira no ar diáfano e dormente...<br />

Lambe a orla dos bosques, vagamente,<br />

O mar com finas ondas <strong>de</strong> escumilha...<br />

E enquanto eu na varanda <strong>de</strong> marfim<br />

Me encosto, absorto num cismar sem fim,<br />

Tu, meu amor, divagas ao luar,<br />

Do profundo jardim pelas clareiras,<br />

Ou <strong>de</strong>scansas <strong>de</strong>baixo das palmeiras,<br />

Tendo aos pés um leão familiar.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 238.<br />

81


Sonho<br />

Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã –<br />

Que um vento me levava arrebatado,<br />

Através <strong>de</strong>sse espaço constelado<br />

On<strong>de</strong> uma aurora eterna ri louçã...<br />

As estrelas, que guardam a manhã,<br />

Ao verem-me passar triste e calado,<br />

Olhavam-me e diziam com cuidado:<br />

On<strong>de</strong> está, pobre amigo, a nossa irmã?<br />

Mas eu baixava os olhos, receoso<br />

Que traíssem as gran<strong>de</strong>s mágoas minhas,<br />

E passava furtivo e silencioso,<br />

Nem ousava contar-lhes, às estrelas,<br />

Contar às tuas puras irmãzinhas,<br />

Quanto és falsa, meu bem, e indigna <strong>de</strong>las!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001) , p. 241.<br />

82


Acordando<br />

Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta<br />

Este meu vão sofrer, esta agonia,<br />

Como sobe cantando a cotovia,<br />

Para o Céu a minha alma sobe e canta.<br />

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,<br />

Que ao mundo traz piedosa mais um dia...<br />

Canta o enlevo das coisas, a alegria<br />

Que as penetra <strong>de</strong> amor e as alevanta...<br />

Mas, <strong>de</strong> repente, um vento húmido e frio<br />

Sopra sobre o meu sonho: um calafrio<br />

Me acorda. – A noite é negra e muda: a dor<br />

Cá vela, como dantes, ao meu lado...<br />

Os meus cantos <strong>de</strong> luz, anjo adorado,<br />

São sonho só, e sonho o meu amor!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001) , p. 244.<br />

83


Mãe...<br />

Mãe — que adormente este viver dorido,<br />

E me vele esta noite <strong>de</strong> tal frio,<br />

E com as mãos piedosas ate o fio<br />

Do meu pobre existir, meio partido...<br />

Que me leve consigo, adormecido,<br />

Ao passar pelo sítio mais sombrio...<br />

Me banhe e lave a alma lá no rio<br />

Da clara luz do seu olhar querido...<br />

Eu dava o meu orgulho <strong>de</strong> homem — dava<br />

Minha estéril ciência, sem receio,<br />

E em débil criancinha me tornava,<br />

Descuidada, feliz, dócil tambérn,<br />

Se eu pu<strong>de</strong>sse dormir sobre o teu seio,<br />

Se tu fosses, querida, a minha mãe!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 245<br />

84


Velut umbra<br />

Fumo e cismo. Os castelos do horizonte<br />

Erguem-se, à tar<strong>de</strong>, e crescem, <strong>de</strong> mil cores,<br />

E ora espalham no céu vivos ardores,<br />

Ora fumam, vulcões <strong>de</strong> estranho monte...<br />

Depois, que formas vagas vêm <strong>de</strong>fronte,<br />

Que parecem sonhar loucos amores?<br />

Almas que vão, por entre luz e horrores,<br />

Passando a barca <strong>de</strong>sse aéreo Aqueronte...<br />

Apago o meu charuto quando apagas<br />

Teu facho, ó sol... ficamos todos sós...<br />

É nesta solidão que me consumo!<br />

Ó nuvens do Oci<strong>de</strong>nte, ó coisas vagas,<br />

Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,<br />

Beleza e altura se me vão em fumo!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 246-247<br />

85


Mea culpa<br />

Não duvido que o mundo no seu eixo<br />

Gire suspenso e volva em harmonia;<br />

Que o homem suba e vá da noite ao dia,<br />

E a homem vá subindo insecto e seixo.<br />

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,<br />

Nem chamo ao céu da vida noite fria;<br />

Não chamo à existência hora sombria;<br />

Acaso, à or<strong>de</strong>m; nem à lei <strong>de</strong>sleixo.<br />

A Natureza é minha mãe ainda...<br />

É minha mãe... Ah, se eu à face linda<br />

Não sei sorrir; se estou <strong>de</strong>sesperado;<br />

Se nada há que me aqueça esta frieza;<br />

Se estou cheio <strong>de</strong> fel e <strong>de</strong> tristeza...<br />

É <strong>de</strong> crer que só eu seja o culpado!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 247<br />

86


O palácio da ventura<br />

Sonho que sou um cavaleiro andante.<br />

Por <strong>de</strong>sertos, por sóis, por noite escura,<br />

Paladino do amor, busco anelante<br />

O palácio encantado da Ventura!<br />

Mas já <strong>de</strong>smaio, exausto e vacilante,<br />

Quebrada a espada já, rota a armadura...<br />

E eis que súbito o avisto, fulgurante<br />

Na sua pompa e aérea formosura!<br />

Com gran<strong>de</strong>s golpes bato à porta e brado:<br />

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado<br />

Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!<br />

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...<br />

Mas <strong>de</strong>ntro encontro só, cheio <strong>de</strong> dor,<br />

Silêncio e escuridão – e nada mais!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 248<br />

87


A i<strong>de</strong>ia II<br />

Pálido Cristo, ó condutor divino!<br />

A custo agora a tua mão tão doce<br />

Incerta nos conduz, como se fosse<br />

Teu gran<strong>de</strong> coração per<strong>de</strong>ndo o tino...<br />

A palavra sagrada do Destino<br />

Na boca dos oráculos secou-se:<br />

A luz da sarça-ar<strong>de</strong>nte dissipou-se<br />

Ante os olhos do vago peregrino!<br />

Ante os olhos dos homens — porque o mundo<br />

Desprendido rolou das mãos <strong>de</strong> Deus,<br />

Como uma cruz das mãos dum moribundo!<br />

Porque já se não lê seu nome escrito<br />

Entre os astros... e os astros, como ateus,<br />

Já não querem mais lei que o infinito.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 259-260<br />

88


A um crucifixo<br />

Não se per<strong>de</strong>u teu sangue generoso,<br />

Nem pa<strong>de</strong>ceste em vão, quem quer que foste,<br />

Plebeu antigo, que amarrado ao poste<br />

Morreste como viI e faccioso.<br />

Desse sangue maldito e ignominioso<br />

Surgiu armada uma invencível hoste...<br />

Paz aos homens e guerra aos <strong>de</strong>uses! – pôs-te<br />

Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...<br />

Do pobre que protesta foste a imagem:<br />

Um povo em ti começa, um homem novo:<br />

De ti data essa trágica linhagem.<br />

Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,<br />

Lembraremos, her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>sse povo,<br />

Que entre nossos avós se conta Cristo.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 265<br />

89


Justitia mater<br />

Nas florestas solenes há o culto<br />

Da eterna, íntima força primitiva:<br />

Na serra, o grito audaz da alma cativa,<br />

Do coração, em seu combate inulto:<br />

No espaço constelado passa o vulto<br />

Do inominado Alguém, que os sóis aviva:<br />

No mar ouve-se a voz grave e aflitiva<br />

Dum Deus que luta, po<strong>de</strong>roso e inculto.<br />

Mas nas negras cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> solta<br />

Se ergue, <strong>de</strong> sangue mádida, a revolta,<br />

Como incêndio que um vento bravo atiça,<br />

Há mais alta missão, mais alta glória:<br />

O combater, a gran<strong>de</strong> luz da história,<br />

Os combates eternos da Justiça!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 269<br />

90


A um poeta<br />

Tu, que dormes, espírito sereno,<br />

Posto à sombra dos cedros seculares,<br />

Como um levita à sombra dos altares<br />

Longe da luta e do fragor terreno,<br />

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,<br />

Afugentou as larvas tumulares...<br />

Para surgir do seio <strong>de</strong>sses mares,<br />

Um mundo novo espera só um aceno…<br />

Escuta! é a gran<strong>de</strong> voz das multidões!<br />

São teus irmãos, que se erguem! são canções...<br />

Mas <strong>de</strong> guerra... e são vozes <strong>de</strong> rebate!<br />

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,<br />

E dos raios <strong>de</strong> luz do sonho puro,<br />

Sonhador, faze espada <strong>de</strong> combate!<br />

91<br />

Surge et ambula!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 270-271


Hino à razão<br />

Razão, irmã do Amor e da Justiça,<br />

Mais uma vez escuta a minha prece.<br />

E a voz dum coração que te apetece,<br />

Duma alma livre, só a ti submissa.<br />

Por ti é que a poeira movediça<br />

De astros e sóis e mundos permanece;<br />

E é por ti que a virtu<strong>de</strong> prevalece,<br />

E a flor do heroísmo medra e viça.<br />

Por ti, na arena trágica, as nações<br />

Buscam a liberda<strong>de</strong>, entre clarões;<br />

E os que olham o futuro e cismam, mudos,<br />

Por ti, po<strong>de</strong>m sofrer e não se abatem,<br />

Mãe <strong>de</strong> filhos robustos, que combatem<br />

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 271<br />

92


Mors-Amor<br />

Esse negro corcel, cujas passadas<br />

Escuto em sonhos, quando a sombra <strong>de</strong>sce,<br />

E, passando a galope, me apareee<br />

Da noite nas fantásticas estradas,<br />

Don<strong>de</strong> vem ele? Que regiões sagradas<br />

E terríveis cruzou, que assim parece<br />

Tenebroso e sublime, e lhe estremece<br />

Nao sei que horror nas crinas agitadas?<br />

Um cavaleiro <strong>de</strong> expressão potente,<br />

Formidável, mas plácido, no porte,<br />

Vestido <strong>de</strong> armadura reluzente,<br />

Cavalga a fera estranha sem temor:<br />

E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»<br />

Respon<strong>de</strong> o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»<br />

93<br />

A Luís <strong>de</strong> Magalhães<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 279


Estoicismo<br />

Tu que não crês, nem amas, nem esperas,<br />

Espírito <strong>de</strong> eterna negação,<br />

Teu hálito gelou-me o coração<br />

E <strong>de</strong>stroçou-me da alma as primaveras...<br />

Atravessando regiões austeras,<br />

Cheias <strong>de</strong> noite e cava escuridão,<br />

Como num sonho mau, só ouço um não,<br />

Que eternamente ecoa entre as esferas...<br />

Porque suspiras, porque te lamentas,<br />

Cobar<strong>de</strong> coração? Debal<strong>de</strong> intentas<br />

Opor à Sorte a queixa do egoísmo...<br />

Deixa aos tímidos, <strong>de</strong>ixa aos sonhadores,<br />

A esperança vã, seus vãos fulgores...<br />

Sabe tu encarar sereno o abismo!<br />

94<br />

A Manuel Duarte <strong>de</strong> Almeida<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 280


À Virgem Santíssima<br />

Num sonho todo feito <strong>de</strong> incerteza,<br />

De nocturna e indizível ansieda<strong>de</strong>,<br />

É que eu vi teu olhar <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong><br />

E (mais que pieda<strong>de</strong>) <strong>de</strong> tristeza...<br />

Não era o vulgar brilho da beleza,<br />

Nem o ardor banal da mocida<strong>de</strong>...<br />

Era outra luz, era outra suavida<strong>de</strong>,<br />

Que até nem sei se as há na natureza…<br />

Um místico sofrer... uma ventura<br />

Feita só do perdão, só da ternura<br />

E da paz da nossa hora <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira...<br />

Ó visão, visão triste e piedosa!<br />

Fita-me assim calada, assim chorosa...<br />

E <strong>de</strong>ixa-me sonhar a vida inteira!<br />

95<br />

Cheia <strong>de</strong> graça. Mãe <strong>de</strong> Misericórdia.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 285-286


Nox<br />

Noite, vão para ti meus pensamentos,<br />

Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,<br />

Tanto estéril lutar, tanta agonia<br />

E inúteis tantos ásperos tormentos...<br />

Tu, ao menos, abafas os lamentos,<br />

Que se exalam da trágica enxovia...<br />

O eterno Mal, que ruge e <strong>de</strong>svaria,<br />

Em ti <strong>de</strong>scansa e esquece, alguns momentos...<br />

Oh! antes tu também adormecesses<br />

Por uma vez, e eterna, inalterável,<br />

Caindo sobre o mundo, te esquecesses.<br />

E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,<br />

Dormisse no teu seio inviolável,<br />

Noite sem termo, noite do Não-ser!<br />

96<br />

A Fernando Leal<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 286-287


No turbilhão<br />

No meu sonho <strong>de</strong>sfilam as visões,<br />

Espectros dos meus próprios pensamentos,<br />

Como um bando levado pelos ventos,<br />

Arrebatado em vastos turbilhões...<br />

Numa espiral, <strong>de</strong> estranhas contorções,<br />

E don<strong>de</strong> saem gritos e lamentos,<br />

Vejo-os passar, em grupos nevoentos,<br />

Distingo-lhes, a espaços, as feições...<br />

– Fantasmas <strong>de</strong> mim mesmo e da minha alma,<br />

Que me fitais com formidável calma,<br />

Levados na onda turva do escarcéu,<br />

Quem sóis vós, meus irmãos e meus algozes?<br />

Quem sois, visões misérrimas e atrozes?<br />

Ai <strong>de</strong> mim! ai <strong>de</strong> mim! E quem sou eu?!...<br />

97<br />

A Jaime Batalha Reis<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 288-289


Elogio da morte<br />

Altas horas da noite, o Inconsciente<br />

Saco<strong>de</strong>-me com força, e acordo em susto.<br />

Como se o esmagassem <strong>de</strong> repente,<br />

Assim me pára o coração robusto.<br />

Não que <strong>de</strong> larvas me povoe a mente<br />

Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,<br />

Ou forceje a razão porque afugente<br />

Algum remorso, com que encara a custo…<br />

Nem fantasmas nocturnos visionários,<br />

Nem <strong>de</strong>sfilar <strong>de</strong> espectros mortuários,<br />

Nem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim terror <strong>de</strong> Deus ou Sorte…<br />

Nada! O fundo <strong>de</strong> um poço, húmido e morno,<br />

Um muro <strong>de</strong> silêncio e treva em torno,<br />

E ao longe os passos sepulcrais da Morte.<br />

I<br />

98<br />

Morrer é ser iniciado<br />

Antologia Grega


II<br />

Na floresta dos sonhos, dia a dia,<br />

Se interna meu dorido pensamento;<br />

Nas regiões do vago esquecimento<br />

Me conduz, passo a passo, a fantasia.<br />

Atravesso, no escuro, a névoa fria<br />

Dum mundo estranho, que povoa o vento,<br />

E meu queixoso e incerto sentimento<br />

Só das visões da noite se confia.<br />

Que místicos <strong>de</strong>sejos me enlouquecem?<br />

Do Nirvana os abismos aparecem<br />

A meus olhos, na muda imensida<strong>de</strong>!<br />

Nesta viagem pelo ermo espaço<br />

Só busco o teu encontro e o teu abraço,<br />

Morte! irmã do Amor e da Verda<strong>de</strong>!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 298-300<br />

99


Contemplação<br />

Sonho <strong>de</strong> olhos abertos, caminhando<br />

Não entre as formas já e as aparências,<br />

Mas vendo a face imóvel das essências,<br />

Entre i<strong>de</strong>ias e espíritos pairando...<br />

A Francisco Machado <strong>de</strong> Faria e Maia<br />

Que é o mundo ante mim? fumo on<strong>de</strong>ando,<br />

Visões sem ser, fragmentos <strong>de</strong> existências...<br />

Uma névoa <strong>de</strong> enganos e impotências<br />

Sobre vácuo insondável rastejando...<br />

E <strong>de</strong>ntre a névoa e a sombra universais<br />

Só me chega um murmúrio, feito <strong>de</strong> ais...<br />

É a queixa, o profundíssimo gemido<br />

Das coisas, que procuram cegamente<br />

Na sua noite e dolorosamente<br />

Outra luz, outro fim só pressentido...<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 303-304<br />

100


Lacrimae rerum<br />

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,<br />

Quantas vezes tenho eu interrogado<br />

Teu verbo, teu oráculo sagrado,<br />

Confi<strong>de</strong>nte e intérprete da Sorte!<br />

Aon<strong>de</strong> vão teus sóis, como coorte<br />

De almas inquietas, que conduz o Fado?<br />

E o homem porque vaga <strong>de</strong>solado<br />

E em vão busca a certeza que o conforte?<br />

Mas, na pompa <strong>de</strong> imenso funeral,<br />

Muda, a noite, sinistra e triunfal,<br />

Passa volvendo as horas vagarosas...<br />

É tudo, em tomo a mim, dúvida e luto;<br />

E, perdido num sonho imenso, escuto<br />

O suspiro das coisas tenebrosas...<br />

101<br />

A Tommazzo Cannizzarro<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 304


Logos<br />

102<br />

Ao Sr. D. Nicolas Salmeron<br />

Tu, que eu não vejo, e estás ao pe <strong>de</strong> mim<br />

E, o que é mais, <strong>de</strong>ntro em mim — que me ro<strong>de</strong>ias<br />

Com um nimbo <strong>de</strong> afectos e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias,<br />

Que são o meu princípio, meio e fim...<br />

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim<br />

Me arrebatas contigo e me passeias<br />

Em regiões inominadas, cheias<br />

De encanto e <strong>de</strong> pavor... <strong>de</strong> não e sim...<br />

És um reflexo apenas da minha alma,<br />

E, em vez <strong>de</strong> te encarar com fronte calma,<br />

Sobressalto-me ao ver-te e tremo e exoro-te...<br />

Falo-te, calas... calo, e vens atento...<br />

És um pai, um irmão, e é um tormento<br />

Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 308-309


Solemnia verba<br />

Disse ao meu coração: Olha por quantos<br />

Caminhos vãos andámos! Consi<strong>de</strong>ra<br />

Agora, <strong>de</strong>sta altura fria e austera,<br />

Os ermos que regaram nossos prantos...<br />

Pó e cinzas, on<strong>de</strong> houve flor e encantos!<br />

E noite, on<strong>de</strong> foi luz <strong>de</strong> primavera!<br />

Olha a teus pés o mundo e <strong>de</strong>sespera,<br />

Semeador <strong>de</strong> sombras e quebrantos!<br />

Porém o coração, feito valente<br />

Na escola da tortura repetida,<br />

E no uso do penar tornado crente,<br />

Respon<strong>de</strong>u: Desta altura vejo o Amor!<br />

Viver não foi em vão, se é isto a vida,<br />

Nem foi <strong>de</strong> mais o <strong>de</strong>sengano e a dor.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 311-312<br />

103


Na mão <strong>de</strong> Deus<br />

Na mão <strong>de</strong> Deus, na sua mão direita,<br />

Descansou afinal meu coração.<br />

Do palácio encantado da Ilusão<br />

Desci a passo e passo a escada estreita.<br />

Como as flores mortais, com que se enfeita<br />

A ignorância infantil, <strong>de</strong>spojo vão,<br />

Depus do I<strong>de</strong>al e da Paixão<br />

A forma transitória e imperfeita.<br />

Como criança, em lôbrega jornada,<br />

Que a mãe leva no colo agasalhada<br />

E atravessa, sorrindo vagamente,<br />

Selvas, mares, areias do <strong>de</strong>serto...<br />

Dorme o teu sono, coração liberto,<br />

Dorme na mão <strong>de</strong> Deus eternamente!<br />

104<br />

À Exmª. Sr.ª D. Vitória <strong>de</strong> O. M.<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 313


Mais luz!<br />

105<br />

A Guilherme <strong>de</strong> Azevedo<br />

Lasst mehr Licht hereinkommen!<br />

Últimas palavras <strong>de</strong> GOETHE<br />

Amem a noite os magros crapulosos,<br />

E os que sonham com virgens impossíveis,<br />

E os que se inclinam, mudos e impassíveis,<br />

À borda dos abismos silenciosos...<br />

Tu, lua, com teus raios vaporosos,<br />

Cobre-os, tapa-os, e torna-os insensíveis,<br />

Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,<br />

Como aos longos cuidados dolorosos!<br />

Eu amarei a santa madrugada,<br />

E o meio-dia, em vida refervendo,<br />

E a tar<strong>de</strong> rumorosa e repousada.<br />

Viva e trabalhe em plena luz: <strong>de</strong>pois,<br />

Seja-me dado ainda ver, morrendo,<br />

O claro sol, amigo dos heróis!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), p. 399


Flebunt euntes<br />

106<br />

Ao Sr. Alexandre Herculano<br />

I<br />

Também sei, também sei o que são lágrimas!<br />

E sei quanto se <strong>de</strong>ve<br />

Às cinzas dos Avós, quando as lançamos<br />

Aos ventos do oceano!<br />

II<br />

Eu falo das ruínas do passado,<br />

E <strong>de</strong> glórias futuras;<br />

E meu peito está cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos<br />

E aspirações imensas.<br />

E solto o canto, ébrio <strong>de</strong> esperanças,<br />

Ao ver a nova Aurora:<br />

E ergo a face, e meus olhos são <strong>de</strong> chama,<br />

Por saudar a Justiça!<br />

E ao ver a gran<strong>de</strong> Lei, que vem correndo<br />

Pela encosta dos tempos,<br />

Como carro, e esmagando os troncos velhos,<br />

E <strong>de</strong>slocando tudo;


Bato as mãos — porque o eixo <strong>de</strong>sse carro<br />

É o braço da Verda<strong>de</strong>!<br />

E o motor, que o impele, é a cal<strong>de</strong>ira<br />

Gigante do Progresso!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 459-460<br />

Edição dos Sonetos Completos (1886)<br />

organizada por Oliveira Martins<br />

107


Serenata<br />

Caiu do céu uma estrela,<br />

Ai, que eu bem a vi tombar!<br />

Era a noite pura a bela,<br />

Murmurava ao longe o mar...<br />

Era tudo êxtase e calma,<br />

Perfume, encanto, fulgor...<br />

Só no fundo da minha alma<br />

Que <strong>de</strong>sconforto e que dor!<br />

Dorme e sonha, minha bela,<br />

Embalada ao som do mar...<br />

Caiu do céu uma estrela,<br />

Triste do que a viu tombar!<br />

Era uma estrela caída,<br />

Uma entre tantas, não mais!<br />

Era uma ilusão perdida,<br />

Era um ai entre mil ais!<br />

108


E hás-<strong>de</strong> viver torturado,<br />

Louco, incerto coração,<br />

Só por um astro apagado,<br />

Por uma morta ilusão?<br />

Dorme e sonha, minha bela...<br />

Como chora ao longe o mar!<br />

Caiu do céu uma estrela,<br />

Ai <strong>de</strong> mim que a vi tombar!<br />

Poesia Completa (Lisboa, 2001), pp. 655-656<br />

Anterro <strong>de</strong> Quental (1872)<br />

109


Tendências Gerais da Filosofia na segunda<br />

meta<strong>de</strong> do séc. XIX<br />

Início do Manuscrito autógrafo.<br />

110


BIBLIOGRAFIA<br />

Obras <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quetal<br />

Poesia:<br />

Beatrice (1863)<br />

Raios <strong>de</strong> Extinta Luz (poemas escritos <strong>de</strong> 1856 a 1860 e saídos<br />

em jornais). Publicado por Teófilo Braga em 1892.<br />

Sonetos. Edição Stenio (1861 – 21 primeiros sonetos).<br />

O<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>rnas (1865, 2ª edição 1875).<br />

Poemas <strong>de</strong> Macadame (1869).<br />

Primaveras Româmticas. Versos dos Vinte Anos (1861-1864)<br />

(1872).<br />

Sonetos Completos. Edição organizada por Oliveira Martins<br />

(1886).<br />

Tesouro Poético da Infância. Antologia organizada e nota<br />

prévia <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental (1883). Em 2003 saiu edição<br />

da Dom Quixote.<br />

Poesia Completa (Lisboa, Dom Quixote, 2001). Orgasnização e<br />

prefácio <strong>de</strong> Fernando Pinto do Amaral.<br />

Filosofia:<br />

Bom Senso e Bom Gosto. Carta ao Excelentíssimo Senhor<br />

António Feliciano <strong>de</strong> Castilho (1865).<br />

O Futuro da Música (1866)<br />

Ensaio sobre as bases filosóficas da Moral ou Filosofia da<br />

Liberda<strong>de</strong> (1871-1885).<br />

A filosofia da natureza dos naturalistas (1886).<br />

Tendências Gerais da Filosofia na segunda meta<strong>de</strong> do séc. XIX<br />

(1890). Expõe Antero <strong>de</strong> forma metódica e <strong>de</strong>finitiva a sua<br />

filosofia e interpreta a sua evolução intelectual como um<br />

diálogo com os mais representativos pensadores<br />

contemporâneos<br />

Filosofia (Univ. Açores, Ed. Comunicação, 1989), organ.,<br />

introd. e notas <strong>de</strong> Joel Serrão. Reúne os escritos filosóficos<br />

<strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental, os acima referidos e outros.<br />

111


Epistolografia:<br />

Cartas (3 vols., INCM, 2009). Leitura, org. e prefácio <strong>de</strong> Ana<br />

Maria Almeida Martins.<br />

Escritos políticos:<br />

Manifesto dos Estudantes da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> à<br />

Opinião Ilustrada do País (1861).<br />

Defesa da Carta Encíclica <strong>de</strong> Sua Santida<strong>de</strong> Pio IX contra a<br />

chamada Opinião Liberal (1865).<br />

Portugal perante a Revolução <strong>de</strong> Espanha (1868).<br />

Causas da <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ncia dos povos peninsulares nos últimos três<br />

séculos (1871).<br />

O que é a Internacional?(1871)<br />

Manifesto Eleitoral Socialista (1880).<br />

Prosas Sócio-Políticas (Lisboa, INCM, 1982), organizadas,<br />

publicadas e prefaciadas por Joel Serrão. Reune os<br />

estudos, discursos e outras intervenções <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong><br />

Quental.<br />

Estudos sobre Antero <strong>de</strong> Quental<br />

Além dos estudos introdutórios das obras referidas acima,<br />

quem <strong>de</strong>sejar aprofundar a vida, actuação, obra e pensamento <strong>de</strong><br />

Antero <strong>de</strong> Quental po<strong>de</strong> consultar as seguintes obras, da extensa<br />

bibliografia que sobre ele existe:<br />

Ana Maria Almeida Martins, Antero <strong>de</strong> Quental. Fotobiografia<br />

(Lisboa, INCM, 2008).<br />

Ana Maria Almeida Martins, O essencial sobre Antero <strong>de</strong><br />

Quental (Lisboa, INCM, 3 2001).<br />

Fernando Catroga, Antero <strong>de</strong> Quental. História, Socialismo,<br />

Política (Lisboa, Notícias, 2001).<br />

Isabel Pires <strong>de</strong> Lima (ed.), Antero <strong>de</strong> Quental e o Destino <strong>de</strong><br />

uma Geração (Porto, Asa, 1993).<br />

Joaquim <strong>de</strong> Carvalho, Evolução Espiritual <strong>de</strong> Antero e outros<br />

escritos (Angra do Heroísmo, 1983).<br />

José Bruno Carreiro, Antero <strong>de</strong> Quental. Subsídios para a sua<br />

biografia (2 vols. Braga, Pax, 1981)<br />

112


ÍNDICE<br />

Prefácio ………………………………. 7<br />

Alexandre Herculano ………………… 9<br />

Introdução …………………………. …… 11<br />

Antologia ………………………………… 19<br />

Semana Santa I …………….................. 21<br />

Salmo (XVIII <strong>de</strong> Semana Santa) ……... 23<br />

Lamentação (XX <strong>de</strong> Semana Santa) .…. 25<br />

A voz …………………………………. 27<br />

Resignação …………………………… 32<br />

A rosa ………………………………… 34<br />

Loas ao Menino Jesus ………………... 37<br />

A meditação ………………………….. 40<br />

A visão ……………………………….. 46<br />

Bibliografia …………………………….. 51<br />

Antero <strong>de</strong> Quental ………………………… 53<br />

Introdução ……………………………… 55<br />

Antologia ……………………………….. 69<br />

Depois que, dia a dia ………………… 71<br />

Oh! vem! se às mágoas ………………. 72<br />

Primaveras românticas III ……………. 73<br />

À guitarra …………………………….. 75<br />

Versos inscritos num exemplar das<br />

Flores do Mal…………………… 76<br />

Ignoto Deo …………………………… 77<br />

A um crucifixo ……………………….. 78<br />

Pequenina ……………………………. 79<br />

A Sulamita …………………………… 80<br />

113<br />

Pág.


Sonho oriental ……………………….. 81<br />

Sonho ………………………………… 82<br />

Acordando …………………………… 83<br />

Mãe …………………………….......... 84<br />

Velut umbra …………………………. 85<br />

Mea culpa …………………………… 86<br />

O Paláco da ventura …………………. 87<br />

A i<strong>de</strong>ia II …………………………….. 88<br />

A um crucifixo ……………………….. 89<br />

Justitia Mater ………………………… 90<br />

A um poeta …………………………… 91<br />

Hino à razão ………… ………………. 92<br />

Mors-Amor …………………………… 93<br />

Estoicismo ……………………………. 94<br />

À Virgem Santíssima ………………… 95<br />

Nox …………………………………… 96<br />

No turbilhão ………………………….. 97<br />

Elogio da morte ……………………… 98<br />

Contemplação ……………………….. 100<br />

Lacrimae rerum ……………………… 101<br />

Logos ………………………………… 102<br />

Solemnia verba ………………………. 103<br />

Na mão <strong>de</strong> Deus ……………………… 104<br />

Mais luz ……………………………… 105<br />

Flebunt euntes ……………………….. 106<br />

Serenata ……………………………… 108<br />

Bibliografia …………………………….. 111<br />

Índice ………………………………………. 113<br />

114


Esta publicação foi possível graças ao patrocínio <strong>de</strong><br />

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