Cantares: literatura pornográfica dos pastores e pastoras de outrora
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<strong>Cantares</strong>: <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong><br />
<strong>dos</strong> <strong>pastores</strong> e <strong>pastoras</strong> <strong>de</strong> <strong>outrora</strong><br />
Artigo publicado no livro “Bíblia e Sexulida<strong>de</strong>” (Fonte Editorial, 2010), após ter sido<br />
solicitado por uma Revista Ecumênica metida a falar em libertaçã, mas que censurou o<br />
texto<br />
Elias Vergara, ost*<br />
Esta é tua estatura, semelhante à tamareira e teus seios a cachos.<br />
Eu disse: “Subirei na tamareira pegarei nas suas tâmaras”,<br />
e que sejam teus seios como cachos e o cheiro do teu nariz,<br />
como o das maçãs e o céu da tua boca como vinho bom,<br />
indo para o meu amado, verda<strong>de</strong>iramente<br />
escoando <strong>dos</strong> lábios adormeci<strong>dos</strong>.<br />
Eu sou para meu amado e sobre mim está o seu <strong>de</strong>sejo.<br />
Vai meu amado, sairemos pelo campo,<br />
passaremos a noite entre os ciprestes.<br />
Madrugaremos para ir para as vinhas,<br />
vejamos se floresceu a vi<strong>de</strong>ira,<br />
se as abriu o rebento e se floresceram as romãs.<br />
Lá darei, meu amor para ti.<br />
As mandrágoras <strong>de</strong>ram seu perfume<br />
diante <strong>de</strong> nossas portas todas as <strong>de</strong>lícias,<br />
novas, também velhas, meu amado, guardarei para ti.<br />
(<strong>Cantares</strong> 7, 8-14)<br />
Nosso título <strong>de</strong>ve ter assustado a quem está acostumado a leituras teológicas, exegéticas<br />
e pastorais. Como po<strong>de</strong>remos imaginar que <strong>de</strong>ntro do livro sagrado exista uma <strong>literatura</strong><br />
<strong>pornográfica</strong>?<br />
Peço que não se escandalizem a ponto <strong>de</strong> não ler estas linhas que nos vêem <strong>de</strong> um olhar<br />
muito mais psicanalítico do que teológico e exegético. Assim, me perdoem os teólogos<br />
e os exegetas, pois vou cometer alguns peca<strong>dos</strong> ao lidar com este texto sagrado.<br />
Minha pesquisa bíblica segue outro caminho bem diferente daquele ao qual estamos<br />
acostuma<strong>dos</strong> na aca<strong>de</strong>mia e nos seminários. Aqui confesso meu primeiro pecado: não<br />
dou tanta importância ao método histórico-crítico, mesmo reconhecendo a sua gran<strong>de</strong><br />
contribuição para o entendimento <strong>de</strong> alguns textos. Estou convencido <strong>de</strong> que a Bíblia<br />
está muito mais marcada pela mitologia do que pelos relatos históricos.
Começo minha pesquisa <strong>de</strong> <strong>Cantares</strong> usando um recurso fabuloso que hoje a internet<br />
po<strong>de</strong> nos disponibilizar: as imagens! Selecionamos uma palavra e o computador<br />
vasculha o mundo inteiro, e nos traz em segun<strong>dos</strong> as imagens que foram colocadas na<br />
re<strong>de</strong> que ilustram a palavra <strong>de</strong> nosso interesse. Isso é incrível! Fiz então esta pesquisa<br />
com <strong>Cantares</strong>. E qual a minha surpresa? Não há quase nenhuma representação<br />
iconográfica <strong>de</strong>ste belo livro bíblico. Raras são as imagens que ilustram o livro <strong>de</strong><br />
<strong>Cantares</strong>. Tente você mesmo e verifique como são raras as imagens que ilustram o<br />
conteúdo <strong>de</strong>ste livro na internet. Não achei este texto ilustrando o interior <strong>de</strong> igrejas ou<br />
<strong>de</strong> catedrais, como é comum com vários outros textos bíblicos.<br />
Fiquei perguntando o porquê e percebi que o livro <strong>de</strong> <strong>Cantares</strong> é também muito pouco<br />
lido nos cultos e celebrações <strong>de</strong> nossas igrejas cristãs. Então fiquei imaginando como<br />
seria fazer um filme sobre <strong>Cantares</strong>, ou então escrever uma história em quadrinhos <strong>de</strong><br />
<strong>Cantares</strong>, ou então pintar as principais cenas <strong>de</strong>ste livro em uma bonita catedral. O<br />
resultado seria: a pornografia!<br />
Não se assustem. A palavra “pornografia” tem a ver com imagens da prostituição. Isso<br />
mesmo – imagens ou textos que nos remetem a uma sexualida<strong>de</strong> proscrita, a uma<br />
sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sencaixada, a uma sexualida<strong>de</strong> marginal. Assim me parece ser a <strong>literatura</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Cantares</strong>. Um texto tão <strong>de</strong>sencaixado, tão proscrito, tão marginal que nem mesmo a<br />
iconografia ousou representá-lo no interior das igrejas. Imaginemos uma peça teatral<br />
representando as cenas <strong>de</strong>scritas em <strong>Cantares</strong> e imaginemos este teatro sendo<br />
apresentado no lugar da leitura da palavra, <strong>de</strong>ntro do culto evangélico ou da missa<br />
católica…! Impossível representar este texto bíblico, sem abrirmos a caixa lacrada <strong>dos</strong><br />
<strong>de</strong>sejos humanos, liga<strong>dos</strong> à libido, à sexualida<strong>de</strong> corpórea, libertando a energia erótica<br />
humana.<br />
Assim, por séculos, este conteúdo pornográfico foi censurado das mais diferentes<br />
formas. Alguns disseram que os personagens <strong>de</strong>ste texto não são humanos, que<br />
representam a Igreja e o Deus Javé. Outros simplesmente ignoram este livro, como se<br />
ele não existisse.<br />
Parece que é exatamente assim que fazemos com a <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong>, embora ela<br />
faça parte da vida da maioria das pessoas. Ajuda nos processos <strong>de</strong> iniciação sexual <strong>de</strong><br />
meninos e meninas, ajuda a libertar <strong>de</strong>sejos proibi<strong>dos</strong> em jovens, adultos e em i<strong>dos</strong>os.<br />
Ajuda a libertar fantasias sexuais. Enfim, a <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong> tem um papel muito<br />
positivo no <strong>de</strong>senvolvimento e na vivência sadia da sexualida<strong>de</strong> humana e a sua<br />
marginalida<strong>de</strong> só confirma a profunda crise que sempre viveu a humanida<strong>de</strong> cristã: a<br />
distância <strong>dos</strong> <strong>de</strong>sejos sexuais e a possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> sua satisfação.<br />
Assim me permito imaginar que a <strong>literatura</strong> contida em <strong>Cantares</strong> é uma <strong>literatura</strong> do<br />
amor erótico marginal do tempo <strong>dos</strong> <strong>pastores</strong> e das <strong>pastoras</strong>. Em <strong>Cantares</strong> se fala <strong>de</strong><br />
sexualida<strong>de</strong> explícita. A transa não tem limites <strong>de</strong> lugar, <strong>de</strong> padrões institucionais, ou <strong>de</strong><br />
preceitos religiosos. Parece um livro secular, pois não fala em Deus, pelo menos não no<br />
Deus que castra e que domina. E os protagonistas da sexualida<strong>de</strong> em <strong>Cantares</strong> não são<br />
casa<strong>dos</strong>, mas solteiros, e em sua solterice, se permitem o exercício da sexualida<strong>de</strong> sem<br />
limites e sem fronteiras. <strong>Cantares</strong> fala o tempo inteiro <strong>dos</strong> seres humanos e <strong>de</strong> suas<br />
necessida<strong>de</strong>s mais ocultas e profundas – os <strong>de</strong>sejos e fantasias eróticas marginais, é<br />
neste sentido uma <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong>.
Se você conseguiu me acompanhar até aqui, lhe convido agora a fazer uma visitação em<br />
nossa <strong>literatura</strong> poética brasileira da MPB, on<strong>de</strong> busco uma música bastante polêmica<br />
que mexe com os nossos conceitos <strong>de</strong> amor, sexualida<strong>de</strong>, sagrado e profano:<br />
Amor é um livro – sexo é esporte<br />
Sexo é escolha – amor é sorte<br />
Amor é pensamento – teorema<br />
Amor é novela – sexo é cinema<br />
Sexo é imaginação – fantasia<br />
Amor é prosa – sexo é poesia<br />
O amor nos torna patéticos<br />
Sexo é uma selva <strong>de</strong> epiléticos<br />
Amor é cristão – sexo é pagão<br />
Amor é latifúndio – sexo é invasão<br />
Amor é divino – sexo é animal<br />
Amor é bossa nova – sexo é carnaval<br />
Amor é para sempre, sexo também<br />
Sexo é do bom… Amor é do bem…<br />
Amor sem sexo é amiza<strong>de</strong><br />
Sexo sem amor é vonta<strong>de</strong><br />
Amor é um, sexo é dois<br />
Sexo antes, amor <strong>de</strong>pois<br />
Sexo vem <strong>dos</strong> outros e vai embora<br />
Amor vem <strong>de</strong> nós e <strong>de</strong>mora<br />
Amor é cristão – sexo é pagão<br />
Amor é latifúndio – sexo é invasão<br />
Amor é divino – sexo é animal<br />
Amor é bossa nova – sexo é carnaval<br />
Amor é isso, sexo é aquilo<br />
E tal e coisa… e coisa e tal<br />
(Amor e o sexo – Rita Lee, Roberto <strong>de</strong> Carvalho e Arnaldo Jabor)<br />
Quantas perguntas nos trazem esta pequena poesia. Sempre nos foi ensinado que o sexo<br />
só po<strong>de</strong> ser vivido se for com amor. E em nossas igrejas cristãs não se fala em sexo, só<br />
em amor. Quem cuida então da sexualida<strong>de</strong>?<br />
É justamente a pornografia! Admitamos ou não, todo o bom cristão já fez algum acesso<br />
à farta <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong> disponível nas bancas <strong>de</strong> revistas, filmes do cinema, ou<br />
nos computadores domésticos.<br />
Por que se tem tanto medo <strong>de</strong> aproximar a religião da sexualida<strong>de</strong>? Vejamos o que a<br />
música acima nos diz sobre o sexo: ele é um esporte, escolha, do escurinho do cinema,<br />
mexe com a imaginação e a fantasia, é uma selva <strong>de</strong> epiléticos, é pagão, é invasão, é<br />
animal, é carnaval, é para sempre, é bom. Em resumo: sexo não se controla, não se<br />
domestica.<br />
No mundo sagrado cristão não se fala em sexo, pois a prática livre da sexualida<strong>de</strong><br />
promove a libertação mais ampla do ser humano. Logo, se conclui que as práticas
eligiosas que castram as pessoas preten<strong>de</strong>m impor um processo constante <strong>de</strong><br />
domesticação e submissão, tornar o ser humano “fiel”.<br />
A libertação da <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong><br />
A <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong> é muito mais extensa e bem elaborada do que po<strong>de</strong>mos<br />
imaginar. Existe uma longa história <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s intelectuais que <strong>de</strong>dicaram suas vidas a<br />
produzir a linguagem que fala aos <strong>de</strong>sejos mais internos e íntimos <strong>dos</strong> seres humanos.<br />
Esses <strong>de</strong>sejos estão sempre conti<strong>dos</strong> <strong>de</strong> forma muito segura em nosso inconsciente. Ali<br />
moram todas as nossas fantasias que se constituem, ao longo <strong>de</strong> nossa história <strong>de</strong> vida,<br />
on<strong>de</strong> acumulamos profundas e intensas frustrações. Libertar esses sentimentos que estão<br />
tão bem guarda<strong>dos</strong> em nós é sempre perigoso, pois quando ganham a realida<strong>de</strong>,<br />
empo<strong>de</strong>ram os homens e mulheres com muita energia que lhes permite promover coisas<br />
que antes não se permitiam.<br />
A <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong> cumpre um papel muito semelhante ao das bebidas que<br />
embriagam as pessoas. Liberta a libido, liberta os <strong>de</strong>sejos, liberta o ser humano para o<br />
novo e para o gozo. Talvez por esta razão as Igrejas <strong>de</strong> uma forma geral, con<strong>de</strong>nam<br />
tanto a pornografia e as bebidas alcoólicas – porque não <strong>de</strong>sejam, <strong>de</strong> fato, libertar o ser<br />
humano, e sim torná-los fiéis, no sentido <strong>de</strong> obedientes, pacíficos, or<strong>de</strong>iros.<br />
Não pretendo aqui fazer um longo histórico da <strong>literatura</strong> <strong>pornográfica</strong>, pois essa<br />
pesquisa está disponível na internet para quem <strong>de</strong>sejar continuar a aprofundar este tema.<br />
Não se sinta constrangido ou constrangida. Pesquise sobre a história da <strong>literatura</strong><br />
<strong>pornográfica</strong> e você será surpreendido(a) com o um universo altamente libertário<br />
contido nesta produção humana.<br />
Quero apenas sugerir que possamos olhar para o nosso texto sagrado, com um pouco<br />
mais <strong>de</strong> malícia, com um pouco mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo sexual, com um pouco mais <strong>de</strong> interesse<br />
no prazer carnal, que levam as pessoas a gozar e ser felizes – plenas.<br />
Por esta razão trago aqui uma poesia <strong>pornográfica</strong> que encontrei em meio a tantas coisas<br />
espetaculares que estão sendo produzidas. Viajando pela internet, encontrei Elisa<br />
Lucinda, uma gran<strong>de</strong> poetisa brasileira contemporânea que precisa ser conhecida em seu<br />
todo, para que possamos enten<strong>de</strong>r que a sua poesia <strong>pornográfica</strong> é altamente libertária e<br />
<strong>de</strong>smascara nossa hipocrisia cristã, que tenta negar o tempo inteiro o nosso <strong>de</strong>sejo, as<br />
nossas fantasias.<br />
Passam muitas pessoas no saguão <strong>dos</strong> aeroportos.<br />
Passam neste aeroporto da agora,<br />
e eu, no meu pensamento,<br />
não me comporto, imagino elas fo<strong>de</strong>ndo:<br />
fulano com fulano,<br />
são casa<strong>dos</strong>, gozam, fazem planos?<br />
E ela, quer logo que acabe?<br />
E ele, penetra rosnando?<br />
Fantasio as inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encaixes,<br />
em como foram as noites <strong>de</strong> amor que tiveram para fazer essas
crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas<br />
brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holan<strong>de</strong>sas<br />
senegalesas turcas e gregas.<br />
(meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe, escrevo num café, estou, por fora,<br />
muito chique no cenário e nitidamente estrangeira.)<br />
Agora passam dois homens.<br />
Sentam à mesa ao lado.<br />
Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria,<br />
Uma iguaria da mais pura sacanagem!<br />
Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei.<br />
Pensam que escrevo o abstrato<br />
E capricham <strong>de</strong>scansa<strong>dos</strong> ao colo do idioma que não alcanço.<br />
Mas sou poliglota na linguagem <strong>dos</strong> olhares,<br />
cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro<br />
na pátria universal <strong>dos</strong> gestos, meu bem!<br />
Eles não escapam.<br />
Um chupa muito o outro, que eu sei,<br />
e o magrinho gosta <strong>de</strong> dar por cima e <strong>de</strong> lado.<br />
Importante dizer que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse meu pensamento safado<br />
também não tem pecado.<br />
Só me diverte<br />
Ver o que to<strong>dos</strong> negam,<br />
O que não se diz no social,<br />
Uma radiografia verbal da intimida<strong>de</strong> alheia é o que faço aqui,<br />
Sem que ninguém suspeite,<br />
Sem ninguém me permitir.<br />
Aquele tem pau pequeno e, pior que isso,<br />
e, mais que suas parceiras, acha isso um problema.<br />
Aquele ali também tem, mas ar<strong>de</strong> na cama e se empenha muito<br />
compensando a diferença.<br />
Aquela, num outro esquema,<br />
diz não gostar da coisa<br />
e fala sem parar.<br />
Só uma pirocada <strong>de</strong> jeito para fazê-la calar.<br />
A gostosa gordinha engole a espada todinha<br />
daquele altão <strong>de</strong>sajeitado,<br />
cujo grosso membro se torna,<br />
em meio às coxas <strong>de</strong>la, disfarçado.<br />
E o velhinho punheteiro<br />
De pau mole com jornal no colo?<br />
Talvez seja o único a adivinhar o teor <strong>dos</strong> meus escritos,
dado que me olha dissimulado e constante<br />
<strong>de</strong> modo a nunca per<strong>de</strong>r meus segre<strong>dos</strong> <strong>de</strong> vista.<br />
(Com licença mas é <strong>de</strong>ssa matéria hoje minha poesia)<br />
Enxerida, vejo a mulher com cabelo cortado à la moicano<br />
Com a menina que iniciara a tiracolo,<br />
Feliz sem ser por ela lambida<br />
E sem saber no que estou pensando.<br />
Passam as pessoas<br />
no saguão do aeroporto,<br />
fingem que fazem check-in<br />
fingem viajar sérias e <strong>de</strong> férias,<br />
fingem estar trabalhando…<br />
mentira,<br />
pra mim ta todo mundo trepando! (LUCINDA, 2006)<br />
Que bom que você <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> chegar até aqui. Acho que algumas pessoas já nos<br />
abandonaram no início <strong>de</strong>ste artigo. Mas sempre tem alguém que se interessa pela<br />
pornografia. É aquele sentimento do proibido que vai <strong>de</strong>spertando o interesse e então<br />
vamos nos permitindo transgredir os padrões estabeleci<strong>dos</strong> e pouco a pouco, vamos<br />
libertando os gran<strong>de</strong>s e pequenos <strong>de</strong>sejos internaliza<strong>dos</strong> em nossa alma. Não <strong>de</strong>veria a<br />
religião fazer justamente isso: libertar os <strong>de</strong>sejos da alma? Fazer as pessoas felizes?<br />
Permitir e estimular o gozo e o prazer humano?<br />
O saguão do aeroporto <strong>de</strong> Frankfurt, cenário por on<strong>de</strong> Elisa Lucinda <strong>de</strong>snuda os<br />
sentimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong> gozo conti<strong>dos</strong> das pessoas que por ali circulam, po<strong>de</strong> ser<br />
qualquer outro lugar. No ambiente <strong>de</strong> trabalho, no passeio pelo parque, na festinha <strong>de</strong><br />
aniversário, no escurinho do cinema, no jogo <strong>de</strong> futebol, nas reuniões do partido<br />
político, nos gran<strong>de</strong>s comícios, nas reuniões <strong>de</strong> culto ou da missa. Em qualquer lugar e<br />
em qualquer tempo, vamos sempre encontrar seres humanos <strong>de</strong>sejosos e ávi<strong>dos</strong> pela<br />
satisfação <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos. Assim, faça você mesmo o exercício <strong>de</strong> imaginar como Elisa<br />
Lucinda, as mais variadas tramas <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> sexo que estão contidas nos gestos, nos<br />
olhares, nas palavras que vamos proferindo por aí em qualquer lugar.<br />
Agora convido você a voltar ao texto bíblico <strong>de</strong> <strong>Cantares</strong>. Leia-o atentamente e faça<br />
como Elisa Lucinda: <strong>de</strong>ixe que a sexualida<strong>de</strong> seja liberta na trama literária do amado e<br />
da amada. Com olhares mais pornográficos se verá que não é possível ler <strong>Cantares</strong>, sem<br />
que nossa sexualida<strong>de</strong> seja também envolvida, <strong>de</strong>spertada. E então <strong>Cantares</strong> nos ajuda a<br />
nos tornarmos seres <strong>de</strong>sejantes, eróticos, prontos para o amor e também para o sexo.<br />
Assim po<strong>de</strong>mos construir um novo olhar para muitos outros textos da Bíblia. Você<br />
mesmo po<strong>de</strong>rá eleger algum texto <strong>de</strong> sua preferência. Basta haver pessoas se<br />
relacionando, po<strong>de</strong>remos ver ali a sexualida<strong>de</strong> humana sendo <strong>de</strong>spertada e <strong>de</strong>spertando<br />
as pessoas para a vida, para o gozo, para o prazer e para a liberda<strong>de</strong>.
Portanto a Bíblia é, sim, um livro sexuado. Ela retrata a história do cotidiano <strong>de</strong> homens<br />
e mulheres, jovens e crianças, gays e lésbicas, prostitutas e prostitutos, adúlteros e<br />
adúlteras. Fico pensando como seria oportuno que em cada trabalho exegético que<br />
fazemos <strong>de</strong> algum texto da Bíblia, pudéssemos agregar a pergunta sobre a sexualida<strong>de</strong><br />
humana contida naquele texto. Com certeza faríamos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scobertas, e nossos<br />
preconceitos no campo da sexualida<strong>de</strong> começariam a ser <strong>de</strong>sconstruí<strong>dos</strong>.<br />
Por isso recomendo que façamos muitos exercícios <strong>de</strong> leitura <strong>pornográfica</strong>. É claro que<br />
como em toda <strong>literatura</strong>, existem produções <strong>de</strong> boa e <strong>de</strong> péssima qualida<strong>de</strong>. O juízo será<br />
nosso. Mas façamos o exercício. Nossa pequena caixinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos escondi<strong>dos</strong> a sete<br />
chaves começará a ser libertada e vamos perceber que muitas coisas que julgamos nos<br />
outros, como comportamento ina<strong>de</strong>quado, também está contido em cada um <strong>de</strong> nós.<br />
Leiamos <strong>Cantares</strong> não só com os olhares <strong>dos</strong> santos e <strong>dos</strong> religiosos, nem só com os<br />
olhares <strong>dos</strong> bem-casa<strong>dos</strong>. Vamos entrar neste livro com os olhares <strong>de</strong> nossos mais<br />
íntimos <strong>de</strong>sejos e fantasias sexuais e eróticas. Assim <strong>de</strong>scobriremos que nossos <strong>de</strong>sejos<br />
tão duramente con<strong>de</strong>na<strong>dos</strong> e pecaminaliza<strong>dos</strong>, são <strong>de</strong>sejos humanos, <strong>de</strong> pessoas<br />
humanas que almejam a completu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> carinho, <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> sexo – “para que o meu<br />
gozo permaneça em vós, e o vosso gozo seja completo” (João 15,12)<br />
Notas<br />
• Mestre em Ciências da Religião e psicanalista, é clérigo da Diocese Anglicana<br />
<strong>de</strong> Brasília (Paróquia <strong>de</strong> São Felipe, em Goiânia, GO).<br />
•<br />
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