A diversidade eclesiológica no cristianismo primitivo
A diversidade eclesiológica no cristianismo primitivo
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Introdução<br />
A <strong>diversidade</strong> <strong>eclesiológica</strong> <strong>no</strong> <strong>cristianismo</strong> <strong>primitivo</strong><br />
Carlos Eduardo B. Calvani<br />
Geralmente os discursos em prol de da unidade teológica na Comunhão Anglicana<br />
e em outras igrejas se baseiam em um equívoco criado por uma leitura superficial da<br />
Bíblia que não se aprofunda em questões históricas, por medo ou incompetência. Unidade<br />
doutrinária é algo desconhecido do Novo Testamento. Por isso, melhor seria falar sempre<br />
em “teologias do Novo Testamento” (<strong>no</strong> plural), ao invés de em uma única teologia. Desse<br />
modo, as tentativas de legitimar interpretações teológicas particulares de um<br />
determinado grupo cristão a partir da totalidade dos escritos bíblicos está, de início,<br />
prejudicada e fadada ao fracasso e só encontrará ressonância em comunidades com<br />
tendências fundamentalistas ou que praticam leituras superficiais das sagradas escrituras.<br />
O texto de Raymond Brown que estudamos <strong>no</strong> encontro de eclesiologia promovido<br />
pelo CEA traz, na sua introdução 1 algumas pinceladas a respeito da <strong>diversidade</strong> na era subapostólica<br />
do NT. Fala, por exemplo, que “provavelmente a cidade de Éfeso tinha<br />
diferentes igrejas com diferentes teologias” e mostra sensíveis diferenças entre a teologia<br />
de algumas comunidades com o objetivo de “reconstruir as situações comunitárias<br />
detectáveis <strong>no</strong>s textos perguntando pela ênfase maior que distinguia tais comunidades”.<br />
Embora se concentre na questão <strong>eclesiológica</strong>, o texto lança luzes para compreendermos<br />
que havia também compreensões diversas a respeito de Jesus, bem como da ética e da<br />
espiritualidade.<br />
Não sou especialista em Bíblia, mas gosto de estudar um pouco o que os biblistas<br />
pesquisam atualmente e pretendo oferecer um peque<strong>no</strong> pa<strong>no</strong>rama dessa <strong>diversidade</strong> <strong>no</strong><br />
NT trazendo algumas provocações mais centradas na eclesiologia para <strong>no</strong>ssa discussão.<br />
Tentativas de compreender o desenvolvimento do Cristianismo <strong>primitivo</strong><br />
No século XIX a escola de Tübingen iniciou a tentativa de compreender a<br />
multiplicidade do Novo Testamento, mas sob o prisma do hegelianismo. Ferdinand<br />
Christian Baur falou em dois partidos que representariam tese e antítese: petrinismo e<br />
paulinismo. O primeiro, representado pelo evangelho de Mateus, a carta de Tiago e as de<br />
Pedro; o segundo pela corrente paulina. A obra de Lucas/Atos e as cartas dêuteropaulinas<br />
seriam tentativas de acomodação e mediação. Mas a síntese final teria sido alcançada<br />
1 Brown, Raymond. As Igrejas dos Apóstolos. Paulinas, São Paulo, Paulinas, 1986. O resumo que serviu de<br />
base para a reflexão bíblica <strong>no</strong> Encontro de Reflexão sobre Eclesiologia Anglicana (São Paulo, março de<br />
2006) está reproduzindo neste número da revista.
pelo evangelho de João. Segundo Baur, o que estava por trás era um conflito entre o<br />
particularismo judaico (petrinismo) e o universalismo (paulinismo).<br />
Hoje essa tese está superada. Não por ter sido considerada totalmente errada, mas<br />
por não ter sido suficientemente radical. Ela está certa, pelo me<strong>no</strong>s, ao dizer que houve<br />
um processo de acomodação e reconhecimento mútuo das comunidades em meio a<br />
conflitos, mas algumas emendas têm sido feitas <strong>no</strong>s estudos atuais do Novo Testamento,<br />
particularmente por H. Koster, Klaus Berger, Raymond Brown e Gerd Theissen.<br />
Brown, num estudo mais extenso sobre o evangelho joani<strong>no</strong>, 2 defende que aquela<br />
comunidade precisava de apoio para sobreviver ao ataque dos cristãos-gnósticos, que<br />
também não eram bem vistos pelas comunidades de tradição sinótica e judaizantes.<br />
Qualquer pessoa minimamente conhecedora do Novo Testamento sabe que a alta<br />
cristologia joanina difere bastante da sinótica, não apenas nas ênfases teológicas, mas<br />
também na seqüência narrativa da vida de Jesus. Os sinóticos apresentam – com poucas<br />
variações – a mesma seqüência – Jesus inicia seu ministério na Galiléia, após receber o<br />
batismo de João Batista, prega em várias cidades e só faz uma viagem a Jerusalém –<br />
aquela que culminaria na sua morte. A seqüência do evangelho joani<strong>no</strong> é diferente – Jesus<br />
faz três diferentes viagens a Jerusalém para participar das festas judaicas (onde aproveita<br />
para reinterpretá-las) e já <strong>no</strong> capítulo dois ele é visto purificando o Templo (o que, <strong>no</strong>s<br />
sinóticos acontece somente na última semana de sua vida). Para Brown, a comunidade<br />
joanina, com o passar do tempo se incorporou à “Grande Igreja” ligada ao grupo de Tiago<br />
e Pedro mas conseguiu preservar sua interpretação particular de Cristo. Mais tarde, o<br />
Concílio de<br />
Calcedônia e o Credo Nice<strong>no</strong> tentaram amenizar essas diferenças cristológicas através da<br />
doutrina das duas naturezas. Mas a comunidade joanina, para sobreviver, teve que se<br />
incorporar ao grupo que preserva a tradição sinótica, pagando o preço de se submeter à<br />
autoridade hierárquica de bispos, presbíteros e diáco<strong>no</strong>s, pois a crença na direção do<br />
Paráclito não se mostrara muito eficiente a longo prazo, como Brown demonstra <strong>no</strong><br />
capítulo sobre a crise nas comunidades joaninas. 3<br />
Então hoje em dia, há um certo consenso entre os estudiosos do NT de que:<br />
a. não houve somente dois partidos <strong>no</strong> <strong>cristianismo</strong> <strong>primitivo</strong>, mas vários, com<br />
tensões e conflitos. Theissen 4 fala em: judeu<strong>cristianismo</strong>, <strong>cristianismo</strong> sinótico,<br />
Pauli<strong>no</strong>, joani<strong>no</strong> e o <strong>cristianismo</strong> gnóstico;<br />
b. a síntese que põe fim a esse processo não está representada pelo evangelho de<br />
João, e sim pelo câ<strong>no</strong>n. O Corpus joani<strong>no</strong> não é a síntese, mas parte da <strong>diversidade</strong><br />
inicial. É com o câ<strong>no</strong>n que a fase produtiva de formação de uma <strong>no</strong>va linguagem<br />
2 Brown, Raymond, A Comunidade do Discípulo Amado. Paulinas, 1984, p. 157-169<br />
3 Brown, Raymond. As Igrejas dos Apóstolos. Paulinas, São Paulo, Paulinas, 1986, cap. VII.<br />
4 Theissen, Gerd. La Religión de los Primeros Cristia<strong>no</strong>s. Salamanca, Sigueme, 2002.
semiótica chega ao fim, embora deixando de lado outros escritos 5 . Conforme<br />
Theissen, “a formação do câ<strong>no</strong>n estabelece a linha divisória entre o <strong>cristianismo</strong><br />
<strong>primitivo</strong> e a igreja antiga”. 6<br />
c. Além disso, o câ<strong>no</strong>n representa a emancipação definitiva do <strong>cristianismo</strong> em<br />
relação à sua matriz, o judaísmo. Os escritos judaicos são agora totalmente<br />
subordinados à interpretação cristã e passam a ser conhecidos como “Antigo<br />
Testamento”.<br />
Os conflitos e a pluralidade do <strong>cristianismo</strong> <strong>primitivo</strong> até a formação do câ<strong>no</strong>n<br />
O primeiro conflito inter<strong>no</strong> vivido pelos seguidores de Jesus se deu entre cristãos<br />
oriundos do judaísmo e cristãos helenistas. As diferenças não eram somente de língua e<br />
cultura. Os helenistas entraram em conflito grave com a instituição central do judaísmo, o<br />
templo. Seu líder, Estevão, morre apedrejado por causa das críticas ao templo (Atos 7).<br />
Isso desencadeia perseguição a eles, e ao mesmo tempo, maior abertura desse grupo aos<br />
gentios. Alguns desse grupo, como Felipe, passam a pregar na Samaria e em cidades<br />
costeiras grecopalestinas. Outra parte vai para Antioquia e funda ali a primeira<br />
comunidade totalmente aberta a gentios convertidos ao <strong>cristianismo</strong> sem exigir que<br />
passassem antes pelo judaísmo.<br />
Por causa disso desencadeia-se outro conflito: a necessidade ou não de circuncisão<br />
para acolher os gentios convertidos. No concílio de Atos 15 há nitidamente dois grupos<br />
bem diferenciados, ou dois “partidos”. Paulo e Barnabé estão em um deles,<br />
representando, como uma espécie de delegados, a comunidade helenista aberta de<br />
Antioquia, enquanto Pedro e Tiago representam o grupo de Jerusalém. É bom observar<br />
que a decisão conciliar (“que se abstenham das contaminações dos ídolos, das relações<br />
sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue” - At 15.20) nunca foi seguida<br />
integralmente ao me<strong>no</strong>s na Galácia, pois mais tarde a carta aos Gálatas mostra que aquela<br />
comunidade não deu muita atenção à decisão preferindo tomá-la como uma<br />
“recomendação”. Klinghardt, Roloff 7 e Günter Klein 8 supõem que a decisão de Atos 15.20<br />
teve meramente a intenção de acalmar as correntes cristãs conservadoras de origem<br />
judaica que pressionavam o concílio. O próprio Paulo, quando relembra o concílio,<br />
acentua não a totalidade da decisão, mas apenas o que lhe pareceu ser mais importante:<br />
“recomendando-<strong>no</strong>s somente que <strong>no</strong>s lembrássemos dos pobres, o que me esforcei por<br />
fazer” (Gl 1.10).<br />
5 Uma interessante compilação de livros deuterocanônicos da época do <strong>cristianismo</strong> <strong>primitivo</strong> foi publicada<br />
em português com o título Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia (São Paulo, Novo Século, 2004) e traz o<br />
texto completo de textos judaicos, sete escritos sobre a infância de Jesus, doze evangelhos da época (entre eles<br />
o de Tomé, o de Felipe, o de Pedro, de Tiago e de Maria), várias epístolas e sete Apocalipses.<br />
6 Theissen, op. cit., p. 298.<br />
7 Roloff, J. Einführung in das Neue Testament, Stuttgart, 1995, p. 87<br />
8 Klein, Günther, Galater 2,6-9 und die Geschichte der Jerusalemer Urgemeinde. ZThK 57 (1960), p. 275-<br />
295
Na Galácia, Pedro e Barnabé compartilhavam na mesa, com gentios, refeições<br />
preparadas com alimentos proibidos aos judeus. Roloff argumenta que Tiago,<br />
representando o grupo judeu mais radical, foi à Galácia para exigir o cumprimento da<br />
decisão conciliar, acompanhado por alguns que Paulo chama “falsos irmãos” (Gl 2.4).<br />
Paulo, por sua vez, defende que a participação na mesa não podia ser questionada. Pedro<br />
e Barnabé retrocedem e se afastam da mesa gentílica talvez por razões diferentes. Só aí já<br />
temos quatro grupos: utilizando termi<strong>no</strong>logia geopolítica, poderíamos dizer: extremadireita<br />
(Tiago e os “falsos irmãos”); dois grupos moderados, um de centro-direita, que<br />
evita conflitos com a extrema-direita (Pedro, que se afastou da mesa, temendo os da<br />
circuncisão” – Gl 2.12b) e outro de centro-esquerda (Barnabé – “a ponto de o próprio<br />
Barnabé ter se deixado levar pela dissimulação deles” – Gl 2.13) ) e um de extremaesquerda<br />
(Paulo).<br />
Theissen, fala ainda de duas heranças paulinas: um paulinismo mais conservador<br />
(as cartas pastorais – 1 Tm, 2 Tm e Tt) e outro mais místico esquerda<br />
(Efésios/Colossenses), de um “Cristianismo sinótico” que combina elementos gentílicos e<br />
judaicos e de um “Cristianismo joani<strong>no</strong>” cuja área de influência ele localiza (seguindo<br />
pistas abertas por Cullmann) em Samaria. Essa região foi evangelizada por cristãos<br />
helenistas, particularmente Felipe (At 8), inclusive porque muitos do <strong>cristianismo</strong> sinótico<br />
evitavam essa área (cf Mt 10.5). Por isso o evangelho de João compartilha com os<br />
samarita<strong>no</strong>s a oposição ao templo de Jerusalém. De fato, <strong>no</strong> quarto evangelho, Samaria<br />
tem sempre significado positivo. Enquanto o “mundo” inteiro parece recusar Jesus, este é<br />
acolhido em Samaria a ponto de ser chamado “samarita<strong>no</strong>” (João 8.48). Felipe tem papel<br />
especial <strong>no</strong> evangelho de João. É ele quem facilita o acesso dos “gregos” a Jesus (Jo<br />
12.21).<br />
Disso tudo, Theissen conclui haver numerosos enlaces transversais que ora<br />
aproximam comunidades, ora as afastam (a escatologia joanina se assemelha à de Ef/Cl, p.<br />
ex, em alguns aspectos). Conforme Theissen, “tais enlaces não constituem ainda a<br />
unidade do <strong>cristianismo</strong> <strong>primitivo</strong>, mas sugerem a possibilidade de comunicação entre as<br />
diversas correntes”. 9<br />
No século II as quatro correntes básicas confluíram <strong>no</strong> que Theissen chama<br />
“<strong>cristianismo</strong> paleocatólico”, cujo testemunho mais importante é o câ<strong>no</strong>n, um acordo<br />
consensual entre os grupos. Segundo ele, “o câ<strong>no</strong>n é a grande resposta do <strong>cristianismo</strong><br />
<strong>primitivo</strong> em sua fase final à crise da identidade da Igreja”. 10<br />
O esforço por abafar a multiplicidade teológica<br />
9 Theissn, op. cit, p. 306.<br />
10 Idem, p. 310.
No fim do primeiro século, algumas das marcas iniciais do <strong>cristianismo</strong> começam a<br />
ser substituídas por práticas mais convencionais. O carismatismo itinerante começa a ser<br />
rejeitado pelas comunidades – a Didaquê, do início do século II já manifesta preocupações<br />
e prescreve como se relacionar com os profetas itinerantes; a escatologia perde peso e a<br />
voz das mulheres é gradativamente sufocada. A multiplicidade teológica começa a ser<br />
ameaçada pelo conceito de “ortodoxia”. Esse é um conceito bastante perigoso. Parece-me<br />
demasiadamente presunçoso um grupo ou uma pessoa afirmar apressadamente ser o<br />
detentor da “reta opinião” ou da “doutrina correta”. Numa ótica sociológica e históricocrítica<br />
admite-se que o fator decisivo para determinar o que é “ortodoxo” é o poder de<br />
um certo grupo em se estabelecer como <strong>no</strong>rma e ponto de referência. Talvez por isso<br />
Bultmann tenha afirmado com certa ironia: “A Grande Igreja é unicamente a heresia que<br />
teve mais êxito”. 11<br />
Importante para compreensão do desenvolvimento da Igreja do século II são as<br />
epístolas pastorais (I e II Tm e Tito), cuja eclesiologia é a primeira estudada por Brown <strong>no</strong><br />
texto distribuído. Nelas, percebe-se que um arrefecimento da expectativa escatológica do<br />
retor<strong>no</strong> iminente de Jesus e uma gradativa acomodação <strong>no</strong> mundo. A graça passa a ter<br />
papel educativo de “ensinar a abandonar a impiedade e as paixões mundanas para viver<br />
com autodomínio, justiça e piedade” (Tt 2.11-13). O carisma é substituído por cargos<br />
definidos e hierárquicos e o dom do Espírito já não tem a ver tanto com manifestações<br />
carismáticas, mas aparece relacionado a virtudes éticas (2 Tm 1.7) ou ao próprio cargo<br />
eclesiástico (2 Tm 1.14). Diferente do Apocalipse que espera a queda do Império, essas<br />
comunidades rezam pelo Estado Roma<strong>no</strong> e pretendem levar “uma vida calma e serena,<br />
com toda piedade e dignidade” (1 Tm 1.2-2), o que fez Dibelius chamá-las de “burguesia<br />
cristã primitiva”, dizendo que as comunidades que estão por trás das pastorais muito se<br />
assemelhariam a Igrejas Protestantes de classe-média alta. 12<br />
Nas pastorais há forte ênfase em doutrina “correta” (he hugiaí<strong>no</strong>usa didaskalía – 1<br />
Tm 1.10; 2 Tm 4.3; Tt 1.9, 2.1) e “palavras retas” (hugiai<strong>no</strong>ntes lógoi – 1 Tm 6.3; 2 Tm<br />
1.13). Aparentemente, são dois os grupos aos quais as pastorais se opõem: um grupo<br />
judeu-cristão que se preocupa com “genealogias, discussões e debates sobre a lei” (Tt 3.9)<br />
e que apregoa “fábulas judaicas e mandamentos de homens” (Tt 1.14). Outro grupo é de<br />
cristãos entusiastas ou carismáticos que afirma que a ressurreição já aconteceu (2 Tm 18)<br />
e que promove a emancipação das mulheres. A tática argumentativa do autor das<br />
pastorais é acusar este segundo grupo de libertinagem, com linguagem extremamente<br />
preconceituosa: “Entre esses encontram-se os que entram nas casas e cativam<br />
mulherzinhas cheias de pecados e possuídas por todo tipo de desejo, que estão sempre<br />
aprendendo e nunca chegam ao conhecimento da verdade” (2 Tm 3.6-7).<br />
11 Bultmann, Rudolf ,Teologia del Nuevo Testamento, Salamanca, Sigueme, 1980 (Tubingen, 1958), p. 563<br />
12 Dibelius, M. Las cartas Pastorales. Sígueme, 1999 (Tubingen, 1966), p.7.
Nogueira 13 , estudando a situação da Ásia Me<strong>no</strong>r, também observa que, nas<br />
comunidades vinculadas ao Apocalipse, a eclesiologia é diferente das pastorais. Não há<br />
menção à hierarquia de bispos, presbíteros e diáco<strong>no</strong>s, o que faz o autor supor que elas<br />
estivessem ligadas a grupos de carismáticos itinerantes judeu-cristãos. Há forte influência<br />
do Antigo Testamento, condenação do culto imperial, denúncia do comércio como fator<br />
de opressão e de enriquecimento de Roma e dos poderosos a seu serviço.<br />
Mas o grupo ligado ao Apocalipse também estava em tensão com alguns grupos –<br />
condenam os que seguem a “doutrina de Balaão” (2.14), os nicolaítas (2.15), e o autor faz<br />
referência pejorativa às profetizas associando-as a Jezabel (2.20). Contudo, dificilmente o<br />
Apocalipse seria bem visto pelas comunidades que estão por trás das pastorais, pois essas<br />
condenam cristãos com tendências judaizantes. Afinal, não seria difícil relacionar os<br />
cálculos apocalípticos e influências da Cabala às “fábulas judaicas’. Tampouco o(s)<br />
autor(es) do Apocalipse veriam com bons olhos as orações pelo imperador feitas nas<br />
comunidades das Pastorais. Poderíamos mencionar ainda como exemplo de <strong>diversidade</strong><br />
cristológica e <strong>eclesiológica</strong>, a epístola aos Hebreus, cujo conteúdo não há tempo agora<br />
para ser analisado.<br />
Outro caso curioso é a epístola de Judas está ligada, ao que tudo indica, ao grupo<br />
judaico mais radical. É um peque<strong>no</strong> sermão de caráter exortativo. Redigida com um estilo<br />
bastante contundente, estabelece nítido maniqueísmo entre seu grupo e outros<br />
indivíduos que ele chama de “homens ímpios, que transforma em libertinagem a graça de<br />
<strong>no</strong>sso Deus” (Jd 4). Para o autor, estes se introduzem <strong>no</strong> meio da comunidade cristã<br />
apregoando a degradação de certos valores. O autor anuncia-lhes severa punição,<br />
servindo-se de exemplos da tradição judaica, tais como a condenação de Sodoma e<br />
Gomorra, de Caim, Balaão e de ”anjos que não guardaram seu estado original”. Finaliza<br />
acusando-os de serem “murmuradores, arrogantes, aduladares (v.16), escarnecedores<br />
que promovem divisões” (v.18-19) e recomendando aos leitores que detestem até mesmo<br />
a roupa que usam (v.23). É uma epístola bastante irada e com linguagem pouco aberta a<br />
compreender a complexidade da diferença. Atualmente, os teólogos contemporâneos que<br />
quiserem acusar a pós-modernidade ou os desenvolvimentos da cultura e defender um<br />
<strong>cristianismo</strong> fechado, encontrarão muitos subsídios <strong>no</strong>s versículos de Judas.<br />
A questão, porém, é que, a compreensão da realidade não se dá de modo tão<br />
nítido como parece querer o autor de Judas. Jorge Aqui<strong>no</strong>, servindo-se da Teoria da<br />
Complexidade de Edgar Morin, fala que o mundo é complexo e exige um “sistema aberto”<br />
e, conseqüentemente, para nós, cristãos, uma “igreja aberta à complexidade”: “a<br />
complexidade da vida <strong>no</strong>s faz entender que a mesma pessoa é capaz de, em um<br />
momento, agir com amora, carinho, afeto, etc. e que, <strong>no</strong> instante seguinte, ela pode agir<br />
com violência e motivada pelo ódio e pela vingança. Não estamos diante de duas pessoas,<br />
mas de uma pessoa complexa” 14<br />
13 Nogueira, Paulo. “Multiplicidade teológica e a formação do catolicismo <strong>primitivo</strong> na Ásia Me<strong>no</strong>r”. Estudos<br />
de Religião, n. 8. São Bernardo do Campo, IMS, 1992, p. 35-47.
O autor de Judas não compreende a realidade de forma complexa. Ao contrário,<br />
para ele, o mundo está definido nitidamente entre salvos e perdidos, puros e impuros,<br />
fiéis e ímpios. Judas vive num “sistema fechado” que não admite desequilíbrio e<br />
instabilidade. Nesse ponto, é uma epístola muito propensa ao fundamentalismo.<br />
Observações pontuais sobre as eclesiologias do Novo Testamento<br />
Quero finalizar tecendo um breve comentário sobre o texto básico de <strong>no</strong>sso<br />
estudo – “As Igrejas dos Apóstolos”, de Raymond Brown. Afinal, o objetivo desse encontro<br />
é aprofundarmo-<strong>no</strong>s <strong>no</strong> estudo da eclesiologia e começamos pela Bíblia porque ela<br />
sempre é um espelho de <strong>no</strong>ssas vidas.<br />
Brown avalia sete tendências <strong>eclesiológica</strong>s <strong>no</strong> período sub-apostólico e em todas<br />
aponta forças e fraquezas. Nossa tarefa é tentarmos entender como cada grupo cristão<br />
daquela época procurou a seu modo, compreender o mistério da Igreja, que heranças<br />
positivas <strong>no</strong>s foram legadas e quais os perigos que podemos identificar nessas propostas.<br />
(a) A primeira, representada pelas pastorais e que enfatiza a estrutura da Igreja, os<br />
cargos, a hierarquia, a reta doutrina e que desemboca numa visão institucionalista; tem o<br />
valor de garantir estabilidade e continuidade, mas o risco de legitimar uma “igreja<br />
docente” que controla uma “igreja discente” e que, ao mesmo tempo, não estimula a<br />
reflexão teológica criativa;<br />
(b) A compreensão mística da Igreja como O Corpo de Cristo, representada pela<br />
herança paulinas em Efésios e Colossenses. Seria uma derivação ou uma reinterpretação<br />
(com certa influência gnótisca) do conceito de “corpo” utilizado por Paulo em I Coríntios. É<br />
uma visão bastante elevada da Igreja, próxima do que chamaríamos “alta eclesiologia” ou<br />
“high church”, em linguagem anglicana;<br />
(c) A Igreja como comunidade do Espírito, representada pela narrativa de<br />
Lucas/Atos, com grande ênfase missionária mas também com certo triunfalismo;<br />
(d) A Igreja como “Povo de Deus”, herança petrina (I Pd), conceito aliás,<br />
recuperado <strong>no</strong> século XX particularmente pelo Vatica<strong>no</strong> II;<br />
(e) A herança do 4º. Evangelho (João) – comunidade formada por pessoas ligadas<br />
afetivamente a Jesus. Parece ser uma eclesiologia que se aproxima de certas ênfases<br />
pietistas e que não deixa de ter seus valores mas também algumas fraquezas. Brown<br />
observa acertadamente que “uma igreja precisa levar as pessoas a algum contato íntimo e<br />
pessoal com Jesus, de modo que elas consigam experimentar, cada uma à sua maneira, o<br />
que as fez segui-lo em primeiro lugar. As Igrejas que fazem isso hão de sobreviver”;<br />
14 Aqui<strong>no</strong>, Jorge “A inclusividade anglicana e a <strong>no</strong>ção complexa de sistema aberto”. Revista Inclusividade,<br />
Porto Alegre, CEA, n. 9, p. 9-10.
(f) A herança das epístolas joaninas – comunidades formadas por pessoas guiadas<br />
pelo Espírito/Paráclito. Em termos sociológicos, parece-me que os problemas levantados<br />
por Brown, sobretudo quando fala das “fraquezas” dessa eclesiologia, se repetiram na<br />
história do <strong>cristianismo</strong> em grupos que radicalizaram o pietismo em formas mais<br />
carismáticas, rejeitando formas mínimas de organização e hierarquia e que perderam o<br />
controle de si mesmas, diluindo-se em cismas diversos devido aos riscos da subjetividade;<br />
(g) A herança da cristandade judaico-cristã em Mateus – ênfase na autoridade e<br />
em princípios hierárquicos sem anular o ensi<strong>no</strong> e exemplo de Jesus. Todos sabemos que o<br />
evangelho de Mateus sempre desempenhou forte papel nas eclesiologias católicas.<br />
Optando por apresentar a eclesiologia mateana por último, pareceu-me que Brown quis<br />
enfatizar a necessidade – ou incontornável contingência histórica – de princípios de<br />
hierarquia e autoridade para que uma comunidade sobreviva, mas mostra claramente que<br />
tais princípios devem estar sempre subordinados ao ensi<strong>no</strong> e á prática de Jesus. Isso é<br />
confirmado quando ele afirma na conclusão que “a grande ambigüidade do <strong>cristianismo</strong><br />
consiste em que, somente através de uma instituição, a mensagem de um Jesus nãoinstitucional<br />
pode ser preservada”.<br />
Em suma, o texto de Brown mostra que não se pode projetar sobre o primeiro<br />
século cristão a situação de uma igreja ideal, tampouco buscar <strong>no</strong> NT uma igreja perfeita.<br />
Essa igreja perfeita, em que havia plena unidade de pensamento ou mesmo de ética,<br />
nunca existiu. Isso é importante para saber que não podemos idealizar a IEAB tampouco a<br />
Comunhão Anglicana. Se quisermos ser fiéis ao testemunho bíblico, também não<br />
podemos pretender acentuar um único padrão eclesiológico em detrimento dos demais.<br />
Tal como os/as cristãs/aos do Novo Testamento, todos/as estamos buscando responder à<br />
<strong>no</strong>ssa vocação da melhor maneira possível. Nosso desafio é tentarmos extrair da<br />
experiência neotestamentária aquilo que <strong>no</strong>s falta <strong>no</strong> momento, bem como identificar nas<br />
fraquezas de <strong>no</strong>ssos/as irmãos e irmãs do passado, também as <strong>no</strong>ssas fraquezas e<br />
tentarmos superá-las respeitando e acolhendo outras experiências. Afinal de contas, o<br />
importante não é que todos tenhamos as mesmas idéias, mas que reconheçamos, tal<br />
como a comunidade joanina, que “há outras ovelhas que não são deste aprisco” e que<br />
cabe a Jesus também apascentá-las. Trata-se de compreender que, apesar de <strong>no</strong>ssas<br />
diferenças, somos “um só rebanho” e temos “um só pastor”.<br />
Bibliografia<br />
Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo, Novo Século, 2004<br />
AQUINO, Jorge “A inclusividade anglicana e a <strong>no</strong>ção complexa de sistema aberto”. Revista<br />
Inclusividade, Porto Alegre, CEA, n. 9, p. 9-10.<br />
BROWN, Raymond, A Comunidade do Discípulo Amado. Paulinas, 1984<br />
BROWN, Raymond. As Igrejas dos Apóstolos. Paulinas, São Paulo, Paulinas, 1986<br />
BULTMANN, Rudolf ,Teologia del Nuevo Testamento, Salamanca, Sigueme, 1980
(Tubingen, 1958), p. 563<br />
DIBELIUS, M. Las cartas Pastorales. Sígueme, 1999 (Tubingen, 1966), p.7.<br />
KLEIN, Günther, Galater 2,6-9 und die Geschichte der Jerusalemer Urgemeinde. ZThK 57<br />
(1960), p. 275-295<br />
NOGUEIRA, Paulo. “Multiplicidade teológica e a formação do catolicismo <strong>primitivo</strong> na Ásia<br />
Me<strong>no</strong>r”. Estudos de Religião, n. 8. São Bernardo do Campo, IMS, 1992, p. 35-47.<br />
ROLOFF, J. Einführung in das Neue Testament, Stuttgart, 1995, p. 87<br />
THEISSEN, Gerd. La Religión de los Primeros Cristia<strong>no</strong>s. Salamanca, Sigueme, 2002.