Cap. 8 – Jesus Cristo – sua morte
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Para meditar:<br />
<strong>Cap</strong>ítulo 8<br />
Cremos em <strong>Jesus</strong> <strong>Cristo</strong> <strong>–</strong> <strong>sua</strong> <strong>morte</strong><br />
Rev. Carlos Eduardo Calvani<br />
<strong>Cristo</strong> é a nossa paz. De dois povos, ele fez um só. Na <strong>sua</strong><br />
carne derrubou o muro da separação: o ódio. Aboliu a Lei<br />
dos mandamentos e preceitos. Ele quis, a partir do judeu e<br />
do pagão, criar em si mesmo um homem novo,<br />
estabelecendo a paz. Quis reconciliá-los com Deus num só<br />
corpo, por meio da cruz; foi nela que <strong>Cristo</strong> matou o ódio.<br />
(Efésios 2.14-16).<br />
... nós, porém, anunciamos <strong>Cristo</strong> crucificado, escândalo<br />
para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para<br />
aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, ele<br />
é o Messias, poder de Deus e sabedoria de Deus.<br />
(I Coríntios 1.23-24).<br />
Quanto a mim, que eu não me glorie, a não ser na cruz de<br />
nosso Senhor <strong>Jesus</strong> <strong>Cristo</strong>, por meio do qual o mundo foi<br />
crucificado para mim, e eu para o mundo.<br />
(Gálatas 6.14).<br />
Ninguém gosta de falar sobre <strong>morte</strong>. Essa nunca é uma palavra bem-<br />
vinda. Aliás, alguns psicanalistas afirmam que o maior sintoma de que as<br />
pessoas de nosso tempo não sabem lidar com a <strong>morte</strong> é a recusa em abordar<br />
com franqueza esse tema. Talvez, por isso, muitos gostariam que o título deste<br />
estudo fosse outro e que a palavra “<strong>morte</strong>” estivesse ausente de nosso estudo.<br />
Entretanto, é incontornável e indiscutível o fato de que o cristianismo se<br />
constituiu a partir da lembrança da horrível <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> e dos significados a<br />
ela atribuídos. Basta lembrarmos as muitas referências à <strong>morte</strong> de <strong>Cristo</strong> em<br />
nossa liturgia, nos hinos que entoamos e no símbolo maior do cristianismo, a<br />
cruz. Porém, a fé cristã afirma que, embora tenha experimentado <strong>morte</strong> cruel,<br />
<strong>Jesus</strong> a venceu na ressurreição. A vitória sobre a <strong>morte</strong> será abordada no<br />
próximo capítulo. Neste, porém, os credos nos conduzem a encarar a realidade<br />
de <strong>sua</strong> <strong>morte</strong>, na consciência de que um cristianismo sem cruz é falso e<br />
mutilado.<br />
“... foi também crucificado por nós...” (Credo Niceno)
“... foi crucificado, morto e sepultado...” (Credo Apostólico)<br />
Estas cláusulas reconhecem o fato inquestionável da <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong>.<br />
Mais à frente, a referência a Pilatos a situará historicamente. Porém, a cláusula<br />
não apenas admite a realidade dessa <strong>morte</strong>, mas também interpreta seu<br />
significado ao dizer que ela aconteceu “por nós”. Assim, essa <strong>morte</strong> se<br />
distingue de tantas outras da mesma época, por ter alcance universal. Surge<br />
aqui a pergunta: como pode uma pessoa sofrer e morrer em favor da<br />
humanidade de todos os tempos e de todos os lugares?<br />
A resposta está no âmbito da fé. Se somos cristãos, para nós não é<br />
suficiente falar da vida e <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> como se essa fosse uma história<br />
qualquer, semelhante à de outros mártires. A vida de <strong>Jesus</strong> é a vida de “Deus<br />
conosco”. É a história de Deus em nosso favor, em solidariedade conosco. Por<br />
isso, entendemos também que <strong>sua</strong> <strong>morte</strong> não é um fato isolado na história da<br />
humanidade. É a <strong>morte</strong> de alguém que se solidarizou e se identificou<br />
totalmente conosco. Sua ressurreição e <strong>sua</strong> vitória, desse modo, também se<br />
relacionam intimamente conosco.<br />
Os cristãos sempre entenderam que a <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> não foi um<br />
suicídio. Ele “foi crucificado”. Sua <strong>morte</strong> foi resultado da maneira como decidiu<br />
viver, em confronto com todos os poderes que diminuem a dignidade humana,<br />
em coerência com os valores de outro reino que não se confunde com qualquer<br />
reino, poder ou soberania deste mundo. Diante de Pilatos, ele mesmo declarou:<br />
O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus<br />
guardas lutariam para que eu não fosse entregue às autoridades. Mas o meu<br />
reino não é daqui (João 18.36).<br />
O Credo Niceno insiste que tal <strong>morte</strong> foi “por nós” ou “em nosso favor”.<br />
Tal interpretação está fortemente enraizada nas tradições religiosas herdadas<br />
do judaísmo. A idéia de substituição é freqüente no Antigo Testamento.<br />
Lembremos a narrativa do cordeiro sacrificado em lugar de Isaque (Gênesis<br />
22), do cordeiro pascal ou ainda a tradição do “servo sofredor” (Isaías 53).<br />
Desde os primórdios da vida da igreja, ainda nos tempos apostólicos, a<br />
mensagem cristã já relacionava a <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> com esses textos. Isaías 53<br />
(O Servo Sofredor que carrega nossas iniqüidades), por exemplo, é referência<br />
comum no livro de Atos e nas cartas de Paulo. A associação de <strong>Jesus</strong> com o<br />
Cordeiro aparece também em I Pedro 1.18 (vocês foram resgatados pelo<br />
precioso sangue de <strong>Cristo</strong>, como o de um cordeiro sem defeito e sem mancha.)<br />
e na tradição joanina (No dia seguinte, João viu <strong>Jesus</strong>, que se aproximava<br />
dele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo - João 1.29).<br />
Para se ter uma idéia da importância dessa metáfora atribuída a <strong>Jesus</strong>, basta<br />
lembrar que só o livro do Apocalipse apresenta 38 referências a <strong>Jesus</strong> como<br />
“cordeiro” (ver, especialmente os capítulos 5 a 7 e outras referências a partir do<br />
capítulo 13). Nas orações eucarísticas, sempre recordamos esse fato ao cantar<br />
o Agnus Dei (“Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, tem<br />
misericórdia de nós...”) e ao proclamar: “<strong>Cristo</strong>, nossa Páscoa, foi imolado por<br />
nós...”
A Igreja sempre entendeu que na <strong>morte</strong> de <strong>Cristo</strong> havia um caráter<br />
substitutivo ou “expiatório”. No decorrer da história surgiram diferentes<br />
interpretações dessa <strong>morte</strong>, cada qual com diferentes ênfases. No pensamento<br />
oriental, mais identificado com as Igrejas ortodoxas, predominou a idéia de<br />
“resgate”. A <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> teria resgatado a humanidade do poder das trevas,<br />
da <strong>morte</strong> e de <strong>sua</strong> influência. Alguns teólogos chegaram, inclusive, a propor<br />
interpretações de que a <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> teria sido uma espécie de “pagamento”<br />
feito ao diabo, a fim de que a humanidade fosse resgatada do seu poder<br />
maléfico. No pensamento ocidental medieval predominou mais a ênfase na<br />
“satisfação” divina. A <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> teria sido substitutiva porque ele satisfez<br />
a justiça divina tomando sobre si o peso da culpa dos pecados da humanidade<br />
e removendo essa culpa. As teologias surgidas no âmbito das reformas<br />
protestantes preferiram trabalhar com terminologias mais jurídicas, tais como a<br />
“justificação” (termo que nos lembra um tribunal, no qual um juiz absolve a<br />
culpa de um réu porque <strong>sua</strong> culpa já foi paga por outra pessoa, estando o réu,<br />
portanto, “justificado”).<br />
Atualmente, sem desprezar a tradição, a teologia contemporânea tem<br />
enfatizado outras dimensões, tais como a idéia da “solidariedade” com a<br />
humanidade, ou a obediência de <strong>Jesus</strong> aos propósitos divinos de pautar <strong>sua</strong><br />
vida pelo propósito maior de Deus, que seria a dignidade da Criação. Nesse<br />
caso, a cruz de <strong>Cristo</strong> é a demonstração mais clara e visível do amor de <strong>Cristo</strong><br />
pela humanidade.<br />
Para debater:<br />
- Dos modelos acima citados, quais são os que mais marcaram nosso<br />
processo de educação cristã?<br />
- Que tal um exercício? Identificar, em nosso Hinário Episcopal, a<br />
presença desses modelos de interpretação da <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong>. De que modo<br />
os hinos abordam a <strong>morte</strong> de <strong>Cristo</strong>? Ver, especialmente, os hinos 69, 72, 77,<br />
158, 235, 267). O mesmo exercício pode ser feito em cânticos mais recentes.<br />
“... padeceu, sob o poder de Pôncio Pilatos...” (Credo Apostólico)<br />
“... sob o poder de Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado...” (Credo<br />
Niceno)<br />
Se o exercício acima proposto foi, de fato, praticado, muitos devem ter<br />
identificado uma carga excessiva de referências ao sofrimento de <strong>Jesus</strong> na<br />
cruz. Essa ênfase tem forte tradição na história da Igreja e aparece nas<br />
inúmeras pinturas sobre a crucificação. Na piedade católica desenvolveu-se até<br />
mesmo uma devoção em torno do “coração de <strong>Jesus</strong>”, sempre vertendo<br />
sangue. Já na tradição protestante, o movimento pietista foi o maior<br />
responsável por popularizar a sentimentalização em torno da cruz, com forte
ênfase na culpa humana. Os hinos “morri na cruz por ti, que fazes tu por mim?”<br />
ou o clássico “Rude Cruz” são exemplos típicos dessa atitude.<br />
É claro que o sofrimento de <strong>Jesus</strong> foi real. Humano como nós, não há<br />
dúvida das dores que sofreu desde <strong>sua</strong> prisão, marcada pela tortura e os<br />
maus-tratos. Os próprios evangelistas relatam a angústia e o sofrimento de<br />
<strong>Cristo</strong>. O evangelho mais antigo diz que, no momento da <strong>morte</strong>, <strong>Jesus</strong> “lançou<br />
um forte grito” (Marcos 15.37). Contudo, é preciso que estejamos conscientes<br />
do risco de sentimentalizar demasiadamente a cruz, o que nos faz perder de<br />
vista o que levou <strong>Jesus</strong> à cruz, os motivos históricos de <strong>sua</strong> <strong>morte</strong>. Maraschin<br />
observa que “a piedade popular sentimentalizou a cruz. Fez do calvário uma<br />
espécie de dramatização cinematográfica dada à nossa contemplação para<br />
despertar o sentimento de culpa que todos carregamos involuntariamente, e<br />
torná-lo fonte de emoção e lágrimas”. 1 Esse potencial sentimentalista é muito<br />
bem utilizado por pregadores avivalistas e conversionistas, que reforçam a<br />
culpa humana, centralizando a mensagem no momento do calvário, mas sem<br />
considerar tudo que o antecedeu, ou seja, sem apontar para o ministério de<br />
<strong>Jesus</strong>, as opções concretas que ele fez e que despertaram a ira dos que o<br />
mataram. Quando isso acontece, a cruz torna-se símbolo de alienação,<br />
glorificação do sofrimento, resignação, apatia e conformidade com o destino e<br />
não um símbolo revolucionário como foi para a Igreja Primitiva.<br />
Já dissemos que a referência a Pilatos nos dois credos serve para situar<br />
historicamente a <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong>. Com isso, os cristãos afirmavam que a fonte<br />
de <strong>sua</strong> fé não é alguma narrativa sobrenatural de algo que tenha acontecido<br />
em outro mundo ou em outra possível dimensão, paralela à nossa história. A<br />
<strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> aconteceu em nossa história, em um tempo e lugar específicos.<br />
O sepultamento significa o reconhecimento formal de que ele morrera de<br />
verdade. O fato de acrescentar a expressão “foi sepultado” assegura mais<br />
ainda a realidade da <strong>morte</strong> e a plena identificação de <strong>Cristo</strong> com a experiência<br />
humana mais universal, que nivela todas as classes sociais e que lembra que<br />
somos pó e ao pó voltaremos<br />
Mas há outro fator a ser considerado. É a segunda vez em que aparece<br />
nos Credos o conceito de “poder”. A primeira, lembramos, foi na cláusula<br />
referente a Deus Pai, “Todo-Poderoso” ou “Onipotente”. Agora o conceito de<br />
“poder” reaparece na forma de um poder humano. E o que faz o poder<br />
humano? Ao invés de criar vida na terra, sustentar o universo e valorizar a<br />
dignidade dos seres humanos, o poder humano crucifica e mata.<br />
Ao dizer que <strong>Jesus</strong> foi crucificado “sob o poder de Pôncio Pilatos”, o<br />
Credo nos leva a considerar a <strong>morte</strong> de <strong>Jesus</strong> como resultado de seu<br />
ministério. Historicamente falando, ele foi condenado não apenas por motivos<br />
religiosos, mas também políticos. Em seu ministério <strong>Jesus</strong> questionou os<br />
poderes do mundo e atingiu o cerne das motivações políticas da época (tanto<br />
dos imperialistas romanos como de seus colaboradores judeus) bem como as<br />
conseqüências sociais e econômicas refletidas na miséria e no sofrimento dos<br />
pobres de seu tempo.<br />
1 O Espelho e a Transparência, p. 141.
Quando espiritualizamos demais a fé, tendemos a nos esquecer de que<br />
o ministério de <strong>Jesus</strong> sempre foi marcado pelo conflito com poderes políticos.<br />
Desde seu nascimento, quando Herodes promove a matança de meninos<br />
judeus, isso é feito por sentir-se ameaçado com o anúncio do nascimento de<br />
um novo rei. A tradição do evangelho de Mateus diz que, ainda bebê, <strong>Jesus</strong> foi<br />
perseguido e viveu algum tempo na condição de refugiado político, no Egito.<br />
Durante seu ministério, <strong>Jesus</strong> assumiu posições que claramente<br />
desafiavam os poderes estabelecidos e anunciou uma nova proposta de<br />
relações e vida, em comunidade, baseada em outros valores. O ministério de<br />
<strong>Jesus</strong> atingiu os interesses de classes sociais bem-estabelecidas como a dos<br />
saduceus, que colaboravam com o Império Romano, mas também incomodou<br />
aos fariseus, adversários dos saduceus. A proposta política dos fariseus,<br />
embora de cunho nacionalista, baseava-se em interpretações literais da Lei e<br />
não abria muito espaço à compaixão, à misericórdia e à solidariedade para<br />
com os pobres.<br />
É importante lembrar também que, em termos econômicos, <strong>Jesus</strong> foi<br />
pobre. Embora tivesse seu ofício de carpinteiro, aprendido com José, optou por<br />
solidarizar-se com os pobres, vivendo como um deles, não tendo onde reclinar<br />
a cabeça. São Paulo é claro ao dizer que <strong>Jesus</strong>, “embora fosse rico, se tornou<br />
pobre por causa de vocês” (II Coríntios 8.9). O que significa dizer que <strong>Jesus</strong><br />
era rico e se fez pobre? Não se trata aqui de uma afirmação de que a família<br />
de <strong>Jesus</strong> pertencia a uma classe abastada, pois todos os evangelhos afirmam<br />
não ser este o caso. No texto de II Coríntios, o apóstolo está mencionando a<br />
pré-existência de <strong>Cristo</strong> e <strong>sua</strong> glória junto ao Pai, “antes” da encarnação. Paulo<br />
herdou essa lógica do próprio testemunho da Igreja Primitiva. Em uma de <strong>sua</strong>s<br />
epístolas, ele cita um dos mais antigos hinos cristãos que trabalham com essa<br />
idéia: “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou à <strong>sua</strong> igualdade com<br />
Deus. Pelo contrário, assumiu a condição de servo tornando-se semelhante<br />
aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si<br />
mesmo, tornando-se obediente até a <strong>morte</strong>, e <strong>morte</strong> de cruz”. (Filipenses 2.6-<br />
8). Assim, é preciso lembrar que, na encarnação, o Verbo não apenas assumiu<br />
uma forma humana, mas também uma classe social. É a partir dessa classe<br />
que, agora, Deus olha e julga o mundo.<br />
Desse modo, é possível compreender a afirmação “padeceu por nós”,<br />
não apenas como um apelo sentimental a despertar nossas emoções. Ao lutar<br />
pela dignidade da vida humana e por <strong>sua</strong> solidariedade, <strong>Jesus</strong> padeceu para<br />
que ninguém mais precisasse padecer injustamente. Assim <strong>Jesus</strong> identifica-se<br />
com todos que já padeceram e que ainda padecem nas mais miseráveis<br />
condições de vida e <strong>morte</strong>. Na fome, na pobreza, na violência, na solidão, na<br />
agonia, nas guerras, nas perseguições, na injustiça dos poderes políticos ou<br />
econômicos do mundo
Para debater:<br />
- Quando <strong>Jesus</strong> responde a Pilatos que seu reino não era deste mundo<br />
(João 18.36), colocava-se em uma instância superior aos reinos deste mundo,<br />
capaz de julgar com profundidade e força os poderes políticos. De que modo<br />
isso nos ajuda a interpretar e julgar os reinos e impérios de nosso tempo?<br />
- Quais as implicações do reconhecimento do caráter político, social e<br />
econômico do ministério de <strong>Jesus</strong>? Somos capazes de compreender a <strong>morte</strong><br />
na cruz como resultado dessa opção? De que modo isso nos afeta?<br />
“... desceu ao Hades...” (Credo Apostólico) 2<br />
Essa frase só é encontrada no Credo Apostólico e tem ensejado muitas<br />
controvérsias na Igreja, talvez pela apropriação do conceito grego de Hades,<br />
que não aparece nas Escrituras. A referência mais próxima que encontramos,<br />
em Efésios 4.9, diz que o Redentor desceu aos lugares mais baixos da terra<br />
(Tradução Pastoral). Outras traduções dizem: descido às regiões interiores da<br />
terra (Almeida Revista e Atualizada), descido às partes mais baixas da terra<br />
(Almeida Revista e Corrigida), desceu até os lugares mais baixos da terra, isto<br />
é, até o mundo dos mortos. (Bíblia na Linguagem de Hoje), desceu às<br />
profundezas da terra (Bíblia de Jerusalém). No Credo Apostólico, em latim, a<br />
expressão é “descendit ad inferos” em algumas versões, ou “descendit ad<br />
inferna”, em outras.<br />
Essa afirmação procede dos contatos com a cosmologia grega. Dentro<br />
do pensamento grego havia um lugar para onde iam todos os mortos, o Hades.<br />
Este era dividido em dois setores: o Elísio (para onde iam todos os bons) e o<br />
Tártaro (para onde iam todos os maus). A cosmologia antiga era muito<br />
diferente da nossa. A maioria das culturas onde se desenvolveu o cristianismo<br />
acreditava que o universo estava dividido em pelos menos três andares. Nós<br />
vivemos no andar central, a terra. No andar superior, acima das nuvens,<br />
encontrava-se o céu, e a maioria acreditava que o céu era realmente um<br />
espaço físico. Abaixo de nós, nos níveis interiores encontrava-se o inferno,<br />
também compreendido como um espaço físico, a partir do imaginário da época.<br />
Tal cosmologia, naturalmente, influenciou pessoas a compreenderem o “mundo<br />
dos mortos”, “Hades” ou as “regiões inferiores” como um espaço geográfico,<br />
abaixo da terra.<br />
Antigamente, os credos que possuíam o artigo sobre a descida de <strong>Cristo</strong><br />
“ao inferno” ou ao “Hades” não continham o artigo relativo ao seu<br />
sepultamento, enquanto aqueles que falavam no sepultamento omitiam a<br />
descida ao Hades. No final do século IV a expressão “desceu ao Hades” foi<br />
inserida no Credo, mas não como um acréscimo ao que já havia, sendo apenas<br />
uma expressão substitutiva de “crucificado, morto e sepultado.” O mesmo<br />
acontece no Credo de Atanásio (século V ou VI). Ali, a expressão “desceu ao<br />
Hades” substitui a expressão “sepultado,” não sendo um acréscimo a ela.<br />
2 Um estudo mais longo e completo sobre essa expressão pode ser encontrado na página do CEA na<br />
internet.
Enquanto houve a omissão da cláusula “sepultado” e o aparecimento da<br />
cláusula substituta “desceu ao Hades,” ou vice-versa, não surgiu nenhum<br />
problema teológico novo. Isto aconteceu quando as duas expressões<br />
apareceram no mesmo Credo, uma após a outra, por volta do século VII.<br />
Durante o período do rei Eduardo VI (1547-1553), Thomas Becon<br />
elaborou um catecismo em que pergunta: “<strong>Cristo</strong> sofreu dores também no<br />
inferno?” Então, ele responde: “De modo algum. Pois quaisquer que tenham<br />
sido as dores que tivesse de sofrer por nossos pecados e impiedades, ele as<br />
sofreu todas em seu bendito corpo sobre o altar da cruz”. Já o Catecismo<br />
anglicano oferece a seguinte definição: P: O que significa dizer que ele desceu<br />
aos mortos, e responde: R: Significa que ele foi aos que partiram e lhes<br />
ofereceu também os benefícios da redenção. (Efésios 4.9-10; I Pedro 3.18-21)<br />
Atualmente, a tendência maior é compreender o Hades como um estado<br />
de espírito (a <strong>morte</strong> absoluta) e não um espaço físico. Assim como todos<br />
morrem, <strong>Cristo</strong> também morreu e, deste modo, se identificou radicalmente<br />
conosco na vida e na <strong>morte</strong>. A cláusula então é compreendida como a forma<br />
máxima do padecimento e da identificação com a experiência última do ser<br />
humano, a <strong>morte</strong>. A referência ao Hades, reafirma a plena humanidade de<br />
<strong>Jesus</strong>, que se identificou conosco, passando pela mesma angústia e solidão<br />
que todo ser humano experimenta na <strong>morte</strong>.